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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 82
ANO DE 1936 18 DE FEVEREIRO
SESSÃO N.° 78 DA ASSEMBLEA NACIONAL
Em 17 de Fevereiro
Presidente o Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários os Ex.mos Srs.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favlla Vieira.
Pedro Augusto Pinto da Fonseca Botelho Neves
SUMARIO- O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 hora» e 45 minutos.
Antes da ordem do dia.-Foram aprovados os últimos dois números do Diário das Sessões, com algumas rectificações a um deles. Leu-se o expediente.
Ordem do dia.-O Sr. Deputado Botelho Neves realizou o seu aviso prévio acerca da ponte sobre o Tejo. Foram ratificados os decretos-leis nº 26:287 e 26:289.
Iniciou-se a discussão, na generalidade, das bases relativas ao Código Administrativo, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Almeida Garrett, Ayuedo de Oliveira, Alberto Navarro e Carlos Borges.
Srs. Deputados presentes à chamada, 54.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão, 12.
Srs. Deputados que faltaram à sessão, 11.
Srs. Deputados que responderam à chamada:
Alberto Eduardo Valado Navarro.
Alberto Pinheiro Torres.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Alexandre Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Alfredo Delesque dos Santos Sintra.
Álvaro de Freitas Morna.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Alberto Bressane Leite Perry de Sousa Gomes.
António de Almeida Pinto da Mota.
António Augusto Aires.
António Augusto Correia de Aguiar.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Hintze Ribeiro.
António Pedro Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
António Rodrigues dos Santos Pedroso.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Aguedo de Oliveira.
Artur Leal Lobo da Costa.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancela de Abreu.
Augusto Faustino dos Santos Crespo.
Domingos Garcia Pulino.
D. Domitila Hormizinda Miranda de Carvalho.
Eduardo Aguiar Bragança.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Correia Pinto.
Francisco Manuel Henriques Pereira Cirne de Castro.
Francisco Xavier de Almeida Garrett.
Henrique Linhares de Lima.
João Antunes Guimarães.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Rodrigues de Almeida.
José Alberto dos Reis.
José António Marques.
José Dias de Araújo Correia.
José Luiz Supico.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Queiroz e Lencastre.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz Augusto de Campos Metrass Moreira de Almeida.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Pestana dos Reis.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Cândida Parreira.
Mário de Figueiredo.
Miguel Costa Braga.
Paulino António Pereira Montês.
Pedro Augusto Pinto da Fonseca Botelho Neves.
Sebastião Garcia Ramires.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Alberto Cruz.
Diogo Pacheco de Amorim.
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Fernando Augusto Borges Júnior.
Fernando Teixeira de Abreu.
Henrique Mesquita de Castro Cabrita.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Diniz da Fonseca.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Saudade e Silva.
Júlio Alberto de Sousa Schiappa de Azevedo.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Vasco Borges.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Angelo César Machado.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Cândido Pedro da Silva Duarte.
Francisco José Nobre Guedes.
João Augusto das Neves.
João Garcia Pereira.
Joaquim Moura Relvas.
Joaquim dos Prazeres Lança.
José Nosolini Pinto Osório Silva Leão.
Manuel Fratel.
Querubim do Vale Guimarãis.
O Sr. Presidente:-Vai proceder-se à chamada.
Fez-se a chamada. Eram l5 horas e 40 minutos.
O Sr. Presidente:-Estão presentes 54 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram l5 horas e 45 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente:-Se algum Sr. Deputado tem qualquer rectificação a apresentar aos Diários n.º 80 e 81, pode fazè-lo.
O Sr. Antunes Guimarãis:-No Diário da» Sessões n.° 80, p. 527, quási no final do antepenúltimo período da col. l.a, onde se diz «que as garantirão contra os desastres ocorridos» deverá ler-se «que os garantirão contra os desastres ocorridos».
Na mesma página, lin. 54.ª da col. 2.ª, onde se diz «... assistência em todos os campos de actividade» deverá acrescentar-se «por intermédio das companhias seguradoras, e com a intervenção da Inspecção de Seguros, como, aliás, consta desta proposta de lei quando se refere a sindicatos».
O Sr. Presidente:-Como mais ninguém pede a palavra, consideram-se aprovados os Diários n.º 80 e 81, com as rectificações apresentadas pelo Sr. Deputado Antunes Guimarãis ao Diário n.° 80.
Recebi um oficio do Sr. Presidente da Câmara Corporativa comunicando-me que as secções 12.ª e 18.ª tinham apresentado uma modificação no seu parecer relativo à proposta de lei do acidentes de trabalho.
Essa modificação, que diz respeito ao artigo 10.° da proposta, será publicada no Diário das Sessões, para V. Ex.ªs tomarem conhecimento doía.
A modificação em referência é a seguinte:
Sr. Presidente da Ássemblea Nacional - Excelência.- Tendo as secções 12.ª e 18.ª desta Câmara Corporativa, que elaboraram o parecer sobro a proposta de lei n.° 67, sobre acidentes de trabalho, verificado que no novo texto sugerido para o artigo 10.° da proposta, por lapso, devido à urgência com que o parecer foi ultimado, não se menciona a forma especial de redução da responsabilidade.
patronal no caso de a doença profissional ser o cancro dos radiologistas, decidiram, em complemento do seu parecer, comunicar a V. Ex.ª, para que se digno transmiti-lo à Câmara da mui digna presidência de V. Ex.ª, o texto rectificado do artigo que sugerem que se adopte, em substituição do artigo 10.° da proposta. Esse testo é o seguinte:
Artigo 10.° A responsabilidade patronal pêlos encargos resultantes de doenças profissionais subsiste pelo espaço de um ano a contar da data do despedimento do trabalhador, e pelo prazo de cinco anos se a doença profissional for o cancro dos radiologistas. A responsabilidade, porém, vai deminuindo em razão do tempo decorrido entro o despedimento e o momento em que a doença se manifesta, reduzindo-se de um duodécimo o montante do total dos encargos anuais, por cada mês que decorrer após o despedimento, excepto se a doença for o cancro dos radiologistas, pois nesse caso a redução será do um vigésimo daqueles encargos por cada trimestre que decorrer após o despedimento.
A bem da Nação.
Palácio da Ássemblea Nacional, l5 de Fevereiro de 1936.-O Presidente, Eduardo Augusto Marques.
O Sr. Presidente:-Vai ler-se o
Expediente.
Telegramas
Ao ser aprovada na Assemblea Nacional a reforma do Ministério da Instrução, a Câmara Municipal de Viana fio Alentejo saúda calorosamente V. Ex.ª pelo seu alto significado espiritual e cristão.-O Vogal, servindo de Presidente, Francisco Fadista.
Em nome da Câmara de Carregai do Sal apresento a V. Ex.ª as melhores felicitações pela aprovação da reforma do ensino, eminente obra do Estado Novo, que até pela fornia elevada da sua discussão altamente honra a Assemblea vossa mui digna Presidência. - O Presidente da Câmara.
A Câmara Municipal da Póvoa de Varzim presta respeitosa homenagem a V. Ex.ª pela superior discussão do projecto da reforma da educação nacional, que resultará altamente benéfica instrução do País. - O Presidente da Câmara Municipal, Manuel João de Amorim Alves.
Saúdo respeitosamente V. Ex.ª pela aprovação das bases da reforma do Ministério da Instrução, única barreira contrapor à desordem comunista. - O Administrador do Concelho de Vinhais, Almendra.
Sobre o mesmo assunto foram recebidos mais os seguintes telegramas:
Da Câmara Municipal de Mirandela.
Do presidente da Câmara Municipal de Vagos, Bilelo.
Do presidente da Câmara Municipal de Valongo, Costa Almeida.
Do presidente da Câmara de 'Castelo de Paiva, em nome da comissão administrativa, Freitas Carvalho.
Do presidente da União Nacional, de Vagos.
Do presidente da Câmara de Estarreja.
Dos presidentes da Câmara e da União Nacional, e administrador do concelho de Almeida, Simões de Carvalho, Morão de Paiva e Soares de Carvalho.
Do presidente da comissão concelhia da União Nacional, de Aveiro, capitão Gamelas.
Do presidente da comissão da União Nacional, na freguesia do Campo de Valongo, Júlio Jorge Coelho.
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Do presidente da Câmara e comissão concelhia da União Nacional, de Freixo de Espada-à-Cinta, António Rodrigues.
Do presidente da comissão da União Nacional, do distrito de Portalegre, António Biscaia de Macedo.
Do administrador do concelho de Mirandela, Esteves.
Do presidente da comissão administrativa de Armamar, Rodrigues Cardoso.
Do presidente da Junta de Freguesia de Melres, Gondomar, Alfredo Moreira Amarante.
Do presidente da Câmara Municipal de Aguiar da Beira, Almeida Coelho.
Do administrador do concelho de Alcobaça, Manuel Carolino.
Do presidente da Câmara Municipal de Penalva do Castelo, Teodósio de Almeida.
Do presidente da Câmara Municipal de Gaia, José da Fonseca Meneres.
Do presidente da Câmara Municipal de Felgueiras, Leal de Faria.
Do presidente da Câmara Municipal de Matozinhos, F. da Hora Aroso.
Do presidente da Câmara Municipal e União Nacional, de Vinhais, Firmino Martins.
Do presidente da comissão concelhia da União Nacional, da Póvoa de Varzim, Abílio de Carvalho.
Em nome da Câmara Municipal e da União Nacional, de Aviz, José Francisco de Moura, administrador do concelho de Aviz.
Do administrador do concelho-de Baião, Fonseca.
Do presidente da comissão administrativa da Câmara Municipal de Alcobaça, -Manuel Carolino.
Da comissão concelhia da União Nacional, de Mirandela.
Do presidente da comissão concelhia da União Nacional, de Valongo, Costa Almeida.
Do administrador do concelho de Vagos, Bilelo.
Do administrador do concelho de Aguiar da Beira, Araújo Gomes.
Do presidente da comissão da União Nacional, de Terroso, Póvoa de Varzim, Dr. Silva Pereira.
Do administrador do concelho de Valongo, Castro Neves.
Do presidente da Junta de Freguesia de Atalaia, concelho da Barquinha, Edmundo Cotafo.
Do presidente da comissão paroquial da União Nacional, de Valongo, João Vale.
Do presidente da comissão da União Nacional, de Armamar, Magalhãis Pimentel.
Do presidente da comissão administrativa de Amarante, Costa Santos.
Atendendo óleo de mendubi ser produto nosso colonial e azeite conservas grande parte importado estrangeiro disposição projecto decreto restringindo fabricação óleo e sua distribuição além prejudicar enormemente indústria conservas vem ferir economia nacional motivo pedimos não se tornem efectivas tais determinações. - O Presidente da Associação Comercial e Industrial, Júdice Cabral, de Lagos.
Sindicato Agrícola Vila Viçosa testemunha V. Ex.ª seu aplauso proposta de lei Deputados Almeida Garrett e Franco Frazão certo que medidas preconizadas são as únicas atinentes defesa olivícola sem prejuízo indústria conservas peixe cuja actual posição fica assegurada. - O Presidente Sindicato Agrícola, Joaquim António Cordeiro.
Funcionários municipais concelho Sousel rogam a V. Ex.ª se digne interceder para que na projectada reforma Código Administrativo sejam fixados equiparados aos do Estado seus vencimentos. -- João Henrique
Oliveira, Aníbal Sonsa Figueiredo, Mariano Filipe Mendes, Francisco Cardoso Justa, Manuel Neves.
Funcionários municipais concelho Montalegre respeitosamente cumprimentam V. Ex.ª e ousam pedir valiosa interferência de V. Ex.ª no sentido do novo Código Administrativo serem estabelecidos vencimentos dos funcionários administrativos e sua equiparação aos do Estado. -António Canedo, médico; Germano Canção, tesoureiro; João Baptista, chefe da secretaria; Sebastião Afonso da Silva, chefe da secção administrativa; Abílio Gonçalves Barroto, amanuense; Germano Costa. Ferreira, amanuense.
Petição dos funcionários da Câmara Municipal de Proença-a-Nova solicitando que no novo Código Administrativo seja fixado o mínimo dos seus vencimentos, para assim o Estado Novo garantir u todos os funcionários da Nação iguais deveres e também iguais direitos.- João Crisóstomo G. Alonso, Elio Joaquim Tavares, António Inácio, Joaquim Lopes Tavares.
Ex.mo Sr. Presidente da Assemblea Nacional.. - Excelência. - A comissão delegada dos funcionários e mais empregados das juntas gerais dos distritos do continente, composta de modestos funcionários da Junta Geral do distrito de Lisboa, por ser a que se encontra mais próxima do Poder Central, saúda na pessoa de V. Ex.' a Assemblea Nacional, por V. Ex. superior e brilhantemente orientada.
Iniciando-se hoje a apreciação pela Assemblea Nacional do parecer da Câmara Corporativa sobre as bases do Código Administrativo, diploma este ansiosamente esperado há mais de um quarto de século e cuja promulgação o Governo julga agora oportuna, e que inquestionavelmente é de grande vantagem por vir suprir sensível falta, esta comissão vem perante V. Ex.ª, em seu nome e no de todos os seus colegas das juntas gerais que vão ser extintas, solicitar o alto patrocínio de V. Ex.ª, e ousando contar com ele, para que no decorrer do debate que dentro em pouco se vai abrir nâo sejam esquecidas as simples, claras e justas aspirações que, sem mais preâmbulos, para não tomarmos muito do precioso tempo de V. Ex.ª, passamos a expor, chamando para elas a esclarecida atenção de V. Ex.ª:
a) Os funcionários das juntas gerais de distrito que se encontram colocados, ocupando os seus lugares ao abrigo de disposições legais, desejam lhes sejam assegurados os seus direitos, transitando, como é de justiça, para os quadros fia nova autarquia já prevista na Constituição e a criar pelo futuro Código;
b) São dezoito as secretarias das juntas gerais a extinguir e reduzido é, talvez a metade, o número de províncias. Dir-se-á, portanto, não haver possibilidade de colocar todo o pessoal, mas tal não poderá suceder se se considerar que os serviços hão-de aumentar proporcionalmente, pela sua concentração, e em relação ao número de concelhos que farão parte de cada província, tornando-se indispensável todo o funcionalismo dos quadros das juntas gerais e ainda os empregados contratados e assalariados das mesmas juntas e os dos estabelecimentos de cultura e assistência actualmente a seu cargo;
c) Os funcionários das juntas gerais a extinguir, dentro das respectivas categorias, desde que tenham dado provas de competência, devem ser providos nos cargos correspondentes do conselho provincial, independentemente de qualquer diploma especial obrigatoriamente decretado após a sua nomeação, o qual só deve atingir nomeações novas;
d) Caso, porém, a arrumação de todo o pessoal não possa fazer-se exclusivamente nos conselhos provia-
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ciais, o que não sucederá, podiam, a exemplo do praticado em 6 de Agosto de 1892, quando as juntas gerais também foram extintas, passar para os governos civis, excedendo os próprios quadros, e mantendo-se-lhe todos os seus direitos e regalias quanto a categorias, reformas e vencimentos, que de nenhuma forma devem ser deminuídos;
e) Que, a exemplo do que foi estabelecido pelo artigo 50.° da lei n.° 621, sejam garantidas as categorias dos funcionários que por virtude de leis em vigor se encontrem desempenhando funções provisórias nas juntas gerais à data da publicação do novo Código Administrativo;
f) Que no novo Código Administrativo se indique o organismo que assume a responsabilidade do pagamento das pensões de aposentação que constituem e viriam a constituir encargo das juntas gerais, logo que estas desapareçam;
g] Que os funcionários administrativos sejam considerados funcionários públicos especialmente para os efeitos do artigo 22.° da Constituição.
Eis, em toda a sua simplicidade, as aspirações dos funcionários e empregados contratados e assalariados' fixos das juntas gerais de distrito que vão ser extintas, as quais, repetimos, se nos afiguram justas e humanas e a bem pouco se limitam: justiça e só justiça.
Em resumo: apelando para V. Ex.ª, em nome de uma classe de funcionários que, pela natureza dos seus serviços, pela sua dedicação pelo trabalho e pela sua lealdade, bem merecem lhes seja garantido o pão de cada dia, para si e para os seus, até agora auferido nas funções que desempenham, ficamos aguardando confiadamente, pelo decidido apoio de V. Ex.ª, que as nossas aspirações se tornem realidades, sem que tenhamos de sofrer prejuízos de qualquer espécie ou deslocações ruinosas, porque obrigariam ao desmanchar de muitos lares, criados carinhosamente e à custa de muito sacrifício durante anos em que os vencimentos jamais acompanharam proporcionalmente á desvalorização da moeda.
Esperando que V. Ex.ª se dignará dispensar o maior interesse ao nosso apelo, muito atenciosamente nos subscrevemos.
A bem da Nação.
Lisboa, -17 de Fevereiro de 1936. - A Comissão Delegada: Francisco José Gomes de Carvalho, Leopoldo Humberto Frederico, Henrique Martinho, e outra assinatura ilegível..
O Sr. Presidente:-Visto ninguém usar da palavra, vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente:-Tem a palavra o Sr. Deputado Botelho Neves para realizar o seu aviso prévio acerca da ponte, sobre o Tejo.
O Sr. Botelho Neves: -Sr. Presidente e Srs. Deputados: o assunto que hoje me faz subir a esta tribuna é um assunto de verdadeiro interesse nacional e, ao mesmo tempo, um compromisso do Estado Novo.
É uma velha idea-porque já em Abril de 1879 o engenheiro português Miguel Correia Pais publicava uma memória descritiva, acompanhada do respectivo ante-projecto, de uma ponte sobre o rio Tejo, com características semelhantes às da ponte do Montijo.
Ninguém ignorei (ainda que alguns finjam ignorá-lo) quanto o Estado Novo tem feito para melhorar as condições da vida da Nação: são pontes, escolas, hospitais, estradas, redes de água, rodes telefónicas, eléctricas, que surgem simultaneamente em todo o País, e pode dizer-se,
em boa verdade, que as obras de grande envergadura só agora começaram a ser realizadas, dentro do grandioso plano da reconstrução nacional.
Todavia uma grande obra se impunha, meus senhores, e a ela o Governo dedicou a sua atenção.
Trata-se de evitar que o País, com cerca de 1:000 quilómetros de comprimento e 200 de largura, continue por mais tempo dividido em duas partes pelo rio, no sentido da sua largura.
Trata-se, portanto, de aumentar o número de ligações entre as duas margens do Tejo e - se possível fosse construir a grandiosa ponte de Lisboa.
Assim, em 1934 foi aberto concurso para a construção da ponte de Lisboa-Montijo e, simultaneamente, ordenado à Junta Autónoma de Estradas que elaborasse um estudo e um ante-projecto duma outra ponte a construir em Vila Franca de Xira.
Eu suponho que dificuldades de ordem vária impediram que fossem tomadas resoluções definitivas acerca da ponte de Lisboa-Montijo-pois que o programa do concurso, na sua base vi, dizia que as propostas seriam abertas em 30 de Agosto de 1934 e que o Governo se pronunciaria sobre elas no prazo de sessenta dias, prazo que poderia ser prorrogado por trinta dias, no caso de assim ser julgado conveniente.
Temos, portanto, que as propostas deveriam ser abertas em 30 de Agosto de 1934, e três meses passados o País deveria saber ao certo se era ou não possível construir a grande ponte de Lisboa.
Quanto à ponte de Vila Franca, creio que falta apenas determinar o regime das águas do rio em Vila Franca - o que também se me afigura não ser de difícil realização.
Ainda que a opinião pública, até esta data, não tenha sido esclarecida quanto à possibilidade da construção da ponte de Lisboa, suponho que não andarei longe da verdade afirmando que as dificuldades que têm surgido não são dificuldades de ordem técnica, mas sim dificuldades de ordem financeira - ainda que dificuldades de ordem técnica existam.
Descanse, porém, a Assemblea, que eu não vou sujeitá-la a ouvir uma larga crítica de natureza técnica, porque me falta competência e eu suponho não ter o direito de, nesta altura da sessão, lhe roubar muito tempo com este assunto, quando tanto há ainda a produzir.
Mas como não posso nem devo deixar de emitir a minha opinião neste local, nesta tribuna, que é o ponto através do qual fala a opinião pública, devo dizer o que penso, ainda que por uma forma resumida e cautelosa.
Ë que nós não devemos consentir, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que uma aspiração nacional e um honesto desejo de satisfazê-la possam servir, por mais tempo, para ataques à situação, e não devemos consentir que tome foros de cidade o gracejo, que por aí já corre, de que certos factos, que nunca se farão, coincidirão com a construção da ponte do Tejo em Lisboa - substituindo a clássica frase de quando as galinhas tiverem dentes.
Quere-me parecer, Sr. Presidente, que o insucesso da ponte de Lisboa estava nas próprias bases financeiras do concurso. Porque, em resumo, o construtor teria de pagar-se com a exploração da ponte, conforme se diz na base viu do caderno de encargos:
«A empresa poderá emitir obrigações até ao montante autorizado pelo Governo, em harmonia com o orçamento da obra, e com o seu capital social, as quais, emitidas em série, somente entrarão em circulação à medida que o avanço dos trabalhos o justifique, e sempre com prévia autorização do Governo. O Estado obriga-se a to-
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mar para si até 20 por cento da importância das obrigações emitidas.
$ único. Estas obrigações não poderão vencer juro superior a 4 1/2 por cento e serão obrigatoriamente amortizadas durante o prazo da concessão» - que noutra base se diz ser de cinquenta anos.
Parece-me que nenhum dos concorrentes se convenceu, tanto mais que um declarou que as bases financeiras não eram de aceitar e que a ponte talvez pudesse ser construída por uma verba que poderá ser computada em cerca de 500:000 contos.
Eu devo declarar a V. Ex.ªs que opiniões autorizadas afirmam e demonstram que essa verba seria apenas para começar. Teríamos, portanto, como base 500:000 contos. Mas admitamos como bom o número dos 500:000 contos, e vamos calcular «grosso modo» os encargos que daí resultariam. Sendo a amortização por cinquenta anos, nós temos cie contar anualmente com a verba de 10:000 contos, destinados u amortização, e calculando-se a 4 1/2 por cento o juro médio anual, ou seja o juro de 250:000 contos, nós teremos uma verba média anual para juros de obrigações de 11:250 contos. Calculemos as despesas de conservação e de manutenção na base de 4 por cento do valor da ponte, e teremos assim a verba anual de 20:000 contos, e não me digam que esta verba é exagerada, pois que, se nos primeiros anos as despesas de conservação de uma ponte são reduzidas, crescem extraordinariamente pêlos anos fora, principalmente tratando-se de uma' ponte metálica.
Somando todos estes encargos, nós encontramos a verba anual de 41:000 contos, e note-se que eu não falo em despesas de administração, fiscalização geral, juros do capital da sociedade exploradora, de 30:000 contos de juros e amortização das obrigações emitidas para efeitos de expropriação. Não falo em nenhuma dessas verbas. Parece-me, portanto, que não andarei longe da verdade se disser que esta ponte tinha de assegurar o rendimento mínimo anual de 50:000 contos.
Se admitirmos, porém, que uma mercadoria ao atravessar esta ponte não deve ser onerada no seu valor em mais de 2 por cento, chegamos a esta conclusão: para perfazer os 50:000 contos destinados a solvei-os encargos é necessário que, durante o prazo de um ano, passem sobre esta ponte 2.500:000 contos de mercadorias, ou sejam cerca de 25.000:000 de libras, ou ainda tanto como o nosso comércio de importação e exportação somadas.
Gosto muito de reduzir a números o meu pensamento.
Eu sei que, de facto, não será só a mercadoria a utilizar a ponte; haverá também o passageiro, mas, para simplicidade do cálculo, reduzi tudo a mercadoria, admitindo que o passageiro também é uma mercadoria.
Não me parece, então, possível que se vá construir uma ponte para tornar mais cara a travessia do Tejo do que actualmente ela é, utilizando fragatas e vapores.
E a prova de que isso poderia acontecer está no facto de, nos termos da base XIII do caderno de encargos, uni concorrente apresentar, como taxa para um automóvel de quatro passageiros, unia verba aproximada a 30$, ou seja quási que o dobro que actualmente paga para atravessar o Tejo, e isto sem gastar gasolina.
Estes números, Srs. Deputados, para muitos e para mim mesmo, não poderão servir para base de um cálculo. Servem no entanto para representar a grandeza da obra e as possibilidades da sua execução no momento actual.
Não é que eu seja de forma alguma contrário à idea de vir a construir-se em Lisboa uma ponte - mas só depois de outros melhoramentos de mais possível realização e mais urgentes.
Uma obra destas deverá ser realizada quando for indispensável ou quando se der a hipótese de haver capitais sobrantes.
Uma ponte destas pode construir-se por uma necessidade pública - e não me parece que já seja tanto o dinheiro em Portugal que sobre para o aplicar em melhoramentos que não são indispensáveis imediatamente e sem possibilidade de um rendimento razoável.
Sobre as dificuldades de ordem técnica prometi não me alongar, mas é de admitir que elas existam, tratando-se de uma ponte com cerca de 5:000 metros de comprimento e, portanto, com numerosos pilares, que, em muitos casos, têm de atravessar camadas lodosas com cerca de 60 metros de espessura.
Se considerarmos que aos 60 metros de espessura, até se atingir o fixe, se deve juntar a altura de água ao zero higrométrico, e mais os trinta e tantos metros que é necessário que a ponte tenha para não embaraçar a navegação, chegamos íi conclusão de que grande número desses pilares terão de ter 110 metros de altura, ou seja mais de três vezes a altura do elevador de Santa Justa - verdadeiras pirâmides do Egipto semeadas e espalhadas no formoso Tejo.
E, assim, no estudo geológico que acompanha o caderno de encargos diz-se, honestamente, em determinada altura:
«Esta importante formação lodosa constitue, pela sua extensão e enorme espessura, a principal dificuldade de ordem técnica e financeira a vencer na construção de qualquer ponte sobre o rio Tejo a montante de Santa Apolónia e a jusante de Vila Franca».
Pois foi-se procurar um traçado exactamente dentro daquela zona, bem definida pêlos autores do estudo geológico, que indicavam como sendo a única onde não se deviam construir pontes; quere dizer: a montante de Santa Apolónia e a jusante de Vila Franca.
Diz-se também no estudo geológico que anãs cotas 56-29 e 57-22 se encontra uma camada de quartzo e basalto, certamente fazendo parte de uma pequena camada de grés grosseiro.
Quere dizer: para a construção desses pilares tem-se apenas esta indicação vaga e, possivelmente, duvidosa. E sobre isto devem nascer pilares com cento e tantos metros, para segurar a ponte, por onde hão-de transitar mercadorias e vidas.
Mas eu creio que os recursos actuais da engenharia poderão vencer todas estas dificuldades.
E facto que esta ponte, pela sua localização, resolvia por uma forma superior o problema das ligações ferroviárias entre 'as margens norte e sul do Tejo. È facto. Pêlos estudos realizados em relação à ponte de Vila Franca, chegou-se à conclusão de que o custo dessa ponte poderá oscilar entre 15:000 e 20:000 contos e que o seu comprimento será de 450 metros, em vez dos 5:000 que deverá ter a de Lisboa-Montijo.
Eu sei que é difícil estabelecer paralelos entre duas pontes tam diferentes, com condições e dificuldades técnicas diferentes a vencer, mas parece-me que, se a ponte de Lisboa é unia ponte considerada nacional, a de Vila Franca, por este reduzido preço, só aparentemente se poderá considerar uma ponte regional.
Por várias vezes as Câmaras Municipais de Vila Franca, Alenquer, Arruda, Loures emfim, todas as câmaras municipais dos concelhos limítrofes- se dirigiram ao Ministério das Obras Públicas pedindo a rápida realização da construção da ponte em Vila Franca, preguntando, por vezes, se o facto do estar pendente ainda uma resolução acerca da construção da ponte em Lisboa não seria razão para que o projecto da construção da ponte em Vila Franca estivesse sondo prejudicado.
Foi respondido que não, que as duas pontes podiam coexistir, porque os seus fins eram absolutamente distin
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tos. Portanto nada havia que impedisse a realização da ponto de Vila Franca de Xira, ainda que se construísse a de Lisboa.
Devo dizer a V.Ex.ª que sou de opinião contrária, e creio que é fácil justificá-la. Não me parece que a forma mais eficaz de garantir à ponte de Lisboa um rendimento que cubra os seus encargos seja colocar ao pé dela uma outra ponte por onde o tráfego se escoaria.
Julgo que é evidente.
Por isso em meu espírito pesa já a convicção de que o problema da ponte em Vila Franca de Xira continuará eternamente era estudo, ou, pelo menos, até que alguma cousa de positivo se determine acerca da ponte de Lisboa.
É claro que o ideal seria a construção das duas pontes, seria óptimo a construção só de uma ponte em Lisboa, mas já seria bom a construção do uma ponte em Vila Franca do Xira.
Nós sabemos que o ideal, por vezes, é inatingível e que o óptimo é inimigo do bom, e parece me que ambos estes casos se dão na presente conjuntura.
De resto, quanto à ponte de Vila Franca ainda nem sequer vieram a público os seus encargos.
Ora eu pregunto: épode e deve o País por mais tempo continuar sem saber o que se vai fazer, ou, melhor ainda, sem saber o que mais convém aos interesses nacionais?
E Podemos continuar a correr atrás dos sonhos?
, Podemos continuar a correr atrás dos sonhos, passando ao lado das realidades sem as atendermos? Afigura-se-me que não. O que é preciso é cortar a corrente da crítica; o que ó necessário é acabar com a forma como o País se encontra em comunicação através do rio.
Eu creio que nenhum Sr. Deputado desconhece a má ligação que existe entro as duas margens do Tejo. Creio que nenhum Sr.' Deputado ignora as deploráveis consequencias deste estado de cousas, e vou chamar à atenção do Estado citando um caso que a muitos terá passado despercebido. O que só dá, por exemplo, com a vinda de rebanhos para Lisboa, que têm de percorrer léguas e léguas pura vir encontrar passagem para a margem norte.
O Sr. Carlos Borges (em aparte):-A culpa não ó de ninguém. É que êsse gado não devia transitar léguas e léguas por qualquer caminho; devia ser transportado por outra maneira.
O Orador:-Eu estou absolutamente de acordo com V. Ex.ª ...
O Sr. Carlos Borges:-Concordo com as considerações de V. Ex.ª; simplesmente direi que, emquanto não houver segurança para o trânsito nas antigas pontes, não se devem fazer pontes novas.
O Orador:-Muitíssimo bom. Devem-se reparar primeiramente as pontes que estão mal e pensar depois em construir as outras.
O Sr. Carlos Borges (interrompendo): - Concordo inteiramente com esse modo de ver de V. Ex.ª
O Orador:-Parece-me, Sr. Presidente, que é chegado o momento do tomar uma resolução, e, se não se pode adoptar desde já a forma óptima, ao menos a realização imediata, construindo uma ponte reduzida que venha melhorar não só as condições económicas das regiões, como as condições económicas do País. Sobretudo, só essa ponto for ligada com uma auto-estrada que permita fazer esse trajecto em pouco mais do vinte minutos.
O Sr. Carlos Borges (interrompendo'):-Isso era muito luxuoso ...
O Orador:-Se não for possível a construção da auto--estrada, ao menos que se melhore a estrada até Vila Franca; julgo que o encargo dessa melhoria, adicionado ao preço do 10:000.000$, custo da ponte de Vila Franca, ainda ficaria muito aquém da soma da construção da ponte Lisboa-Montijo.
O Sr. Presidente:-Eu peço a V. Ex.ª que restrinja as suas considerações. V. Ex.ª tem apenas mais alguns minutos para concluir o seu discurso.
O Orador:-V. Ex.ª deu-me quinze minutos para terminar.
O Sr. Presidente:-Mas V. Ex.ª já está falando há mais de vinte minutos.
O Orador:-Eu vou terminar.
O Sr. Carlos Borges:-A ponte vale bem mais uns minutos...
O Orador:-Eu limito-me a considerações genéricas, não para um determinado local. Não pretendo forçar a Assemblea a dar a sua opinião sobre detalhes, e assim, concretizando o meu pensamento, vou .mandar para a Mesa uma moção para sor submetida à apreciação da
Assemblea.
O Sr. Presidente: -Segundo as disposições do Regimento o do que só estabeleceu ultimamente, V. Ex.ª não pode apresentar uma moção sem o debate ser generalizado.
O Sr. Melo Machado:-Requeiro a generalização do debato. Pausa.
O Sr. Carlos Borges (em aparte): - Eu creio que o pensamento do Sr. Melo Machado é apenas o de subir b tribuna para fazer algumas considerações e permitir assistir ao orador apresentar a sua moção.
O Sr. Presidente:-Defiro o requerimento só para esse efeito.
O Sr. Botelho Neves:-Em face do exposto, mande para a Mesa a seguinte
Moção
Considerando que, desde há muito, se reconhece a suficiência de ligações entre as margens norte e sul do Tejo e tanto assim que há já aproximadamente dois anos se abriu concurso para a construção da ponte Lisboa-Montijo, sem que o Pais até hoje tenha conhecimento da possibilidade técnica e económica da sua construção;
Considerando que se torna urgente definir o critério sobre esta matéria e proceder por forma a que o Estado Novo efective uma grande aspiração nacional, tornando Táceis e económicas as comunicações entre as duas margens do mais importante rio do País, a na parte mais importante do seu curso;
Considerando que a falta dessa ligação entre as duas margens do rio Tejo prejudica gravemente a economico nacional o dificulta o seu desenvolvimento:
A Assemblea Nacional exprime o voto de que o govêrno procure resolver, com a possível urgência, este problema, mandando proceder à construção da nova ponte sobre o Tejo no local que, técnica e economicamente, si apresente como o mais conveniente.
Sala das Sessões da Assemblea Nacional, 17 de Fevereiro de 1936.-Os Deputados: Pedro Botelho Neves-
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António de Almeida Pinto da Mota- Francisco Cardoso de Melo Machado-José Penalva Franco Frazão-José Luiz Supico --Francisco de Almeida Garrett-Augusto Cancela de Abreu-António Hintze Ribeiro - António Cortês Lobão-António Rodrigues dos Santos Pedroso - António Augusto Aires.
O Sr. Presidente:-Submeto à apreciação da Assemblea a moção que acaba de ser apresentada. A moção exprime este voto:
Leu.
O Sr. Presidente: -Vou por à votação a moção. Posta à votação a moção, foi aprovada.
O Sr. Presidente:-Está em discussão a ratificação do decreto-lei n.° 26:287.
Foi aprovada, sem discussão, a ratificação do decreto-lei n.° 26:287.
O Sr. Presidente:-Está em discussão a ratificação do decreto-lei n.° 26:289.
Foi aprovada, sem discussão, a ratificação do decreto-lei n.° 26:289.
O Sr. Presidente:-Passamos agora-à terceira parte da ordem do dia: discussão na generalidade duas bases relativas ao Código Administrativo.
O Sr. Almeida Garrett:-Sr. Presidente: não creio que a esta Assemblea tenha sido ainda presente uma proposta de lei que, como a que vai ser apreciada e discutida hoje, tam profunda e tam extensamente interesse a toda a Nação e tam largas repercussões políticas possa suscitar.
Isto, de resto, foi sempre assim, pois a promulgação ou alteração de um Código Administrativo provocou sempre vivas e apaixonadas controvérsias e sempre emocionou grandemente a Nação.
E que as suas disposições são as que mais directa e constantemente dizem respeito aos povos; são aquelas que mais de perto e mais frequentemente interferem nas suas actividades e mais visivelmente condicionam ou limitam os seus interesses ou satisfazem as suas aspirações.
Tirado o periódico pagamento das contribuições ou os lastimáveis inventários que por esses campos fora tom transformado em verdadeiro trabalho de Danaides o esforço dos que mourejando uma vida inteira tiveram a pretensão de assegurar aos seus uma pequena leira de terra ou umas mal sobrepostas telhas, o povo, na sua maioria, do que sabe ó que directa e forçosamente se tem de haver o tem de lidar com os regedores, com as juntas do freguesia, com as camaras o com os administradores de concelho.
Sendo assim, para êlo o Código Administrativo são apenas as regras que fixam as atribuições daquelas entidades, lhe estabelecem os seus deveres para com elas e lho dizem do que delas há a esperar para o seu maior bem -estar, para o seu sossego e para uma melhor satisfação das suas aspirações e necessidades.
Compreende-se assim a benéfica ou perigosa repercussão que sobre a grei terá um novo Código Administrativo, consoante a administração local que dele deriva se tornar ou não para ela monos pesada, mais simples, mais efectiva, mais solícita ou, direi mesmo, mais ou menos paternal.
Importa por isso que esta Assemblea pondere bem as consequências e o alcance dos princípios que informam as bases da proposta do lei n.° 73.
Porque sempre me interessou, tanto pelo passado como pelo presente, o que diz respeito às administrações locais e até porque a elas mo dediquei o melhor que pude e soube, julguei poder sobre o assunto apresentar algumas considerações, pedindo para tanto a condescendente atenção de V. Ex.ªs Consta a proposta em discussão de trinta base, em algumas das quais, no todo ou em parte, se não fez mais do que dar cumprimento a disposições constitucionais.
Não há portanto que discutir o que em virtude destas disposições as bases encerram, embora me anime a afirmar que, a meu ver, melhor fora que a Constituição não tivesse tornado obrigatório o agrupamento dos concelhos cumulativamente em distritos e províncias, pois não só não descortino que vantagem possa advir desta dualidade, como até receio que ela, traduzindo-se em realidades, seja uma fonte permanente de dificuldades, atritos e descontentamentos, sem a contrapartida de uma melhor administração ou de uma melhor formação política do País. Devo dizer que uma atenta leitura das bases da proposta só muito imprecisamente mo esclareceu sobre a orientação o alcance dos princípios o medidas que virão a informar o Código Administrativo que o Governo deseja ser autorizado a publicar.
Assim ó que nas trinta bases por quinze vezes se empregam expressões como estas: &nos termos constantes do Código», «como no Código será especificado», «nos casos previstos pelo Código», éte., o que não ô de molde, creio, a elucidar ninguém.
Tanto mais razão me deve assistir neste reparo quanto é certo a Câmara Corporativa, no seu tam brilhante e lúcido parecer -documento que mais uma vez me leva a admirar o grande talento e muito saber do seu ilustre relator, se viu na necessidade de sobre mais do um assunto nos vir dizer o que julga virá a ser a orientação do Código.
As bases apresentadas, afora o que se relaciona com a classificação de concelhos e freguesias, com a constituição, eleição, dissolução ou tutela dos seus corpos administrativos e ainda com algumas das várias sujeições e restrições a que serão sujeitas as deliberações e as finanças dos corpos administrativos, dizem-nos apenas que os municípios poderão em certos casos municipalizar serviços de interesse local, que os presidentes das câmaras dos seus substitutos serão nomeados pelo Governo e serão remunerados e que, exceptuados os concelhos de Lisboa e Porto, os presidentes das câmaras serão cumulativamente magistrados administrativos dos concelhos, possivelmente também autoridades policiais nos concelhos rurais do 2.ª e 3.ª ordem e ainda impulsionadores e dirigentes do turismo no todo ou em parte dos seus concelhos, se não for modificada ou eliminada a base IX, como muito bem sugere o parecer da Câmara Corporativa.
Ë pouco, pois, o que nos dizem as bases apresentadas, e tanto mais quanto é certo que, sendo de há muito esperado e desejado um novo Código Administrativo, se produziu um certo desapontamento por não ver na proposta de lei focados certos problemas que há muito reclamam uma solução.
Referir-me-ei apenas à criação de uma polícia rural, por ter a convicção de que só através dos corpos administrativos locais ela deverá ser organizada, a fim de que resulte unia cousa prática, efectiva e económica, e não mais um flagelo e motivos de irritação para os povos.
Contra os atropelos, violências, invasões de propriedade, devastações e roubos, as populações rurais estão desprovidas da assistência e protecção que o Estado a todos deve.
Urge terminar com esta injustiça c solucionar tal situação.
E possível que o Governo tenha fundadas razoes para resolver este assunto por outra fornia, se é que já dele se ocupou. Por esse motivo, não apresentarei base alguma neste sentido. Nisto, como noutras cousas, se
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reconhece que talvez fosse útil um maior contacto entre a Assemblea Nacional e o Governo. Sem ele, afigura--se-me que se trabalhará sempre um pouco defeituosamente.
Mas voltemos à proposta de lei em discussão.
Não lhe nego a oportunidade, nem lhe recusarei o meu voto na generalidade.
Por emquanto, visto que da generalidade se trata, quero desde já 'dizer que concordo com as modificações sugeridas pela Câmara Corporativa para as bases III, V, VI, XII, XIV, XV, XVII e XXVII.
Quanto à base IX, concordo, como já dei a entender, com a sua eliminação.
Relativamente à base XXX, concordo com a sugestão da Câmara Corporativa, mas entendo que o n.° 6.° deverá ter uma redacção diferente, pelo que entregarei na Mesa uma1 proposta de alteração, que procurarei justificar, ao fazer-se a discussão da proposta de lei na especialidade.
Se o n.° 1. desta base XXX for votado, nos termos sugeridos pela Câmara Corporativa, como se me afigura convir, seja-me lícito manifestar o desejo de que o Código não venha a determinar tantas e tais cousas que a autonomia financeira dos corpos administrativos, de que este número fala, se não transforme em pura ficção.
Não concordo com a base VII da proposta, nem com as alterações sugeridas pela Câmara Corporativa, embora esta na sua primeira fórmula tenha atendido a um dos seus defeitos.
A minha não concordância com os termos desta base (a VII) obriga-me desde já a produzir algumas considerações gerais.
O presidente de uma câmara, para assumir a responsabilidade, tanto de ordem moral, como material, de cabalmente desempenhar tantas funções, como as que a proposta do Governo lhe quere atribuir, não pode ser um simples burocrata. Se o for, em regra, entriucheirar-se-á dentro das horas oficiais de trabalho e, por esta razão, e pela das suas múltiplas atribuições, o público virá a ser fortemente sacrificado com ausências e demoras, que o irritarão justamente, porque o sabe remunerado e, portanto, com maior obrigação de o atender.
Claro que, no que vou dizendo, me não refiro aos concelhos urbanos de l.ª ordem e, porventura, a algum também urbano do 2. As Câmaras de Lisboa e Porto, e no meu entender também a de Coimbra, são organismos que não se podem comparar às outras câmaras, nem regular pêlos mesmos moldes, como de resto reconhece e prevê a proposta de lei.
Feito este pequeno parêntese, direi mais que é necessário que haja caridade, carinho e consideração para com todos aqueles que precisam de recorrer a qualquer repartição ou autoridade. Impõe-se, sobretudo, que se não sujeite a repetidas caminhadas, ou à perda de dias de trabalho, todo aquele que tem de vir de longe, ou penosamente ganha a vida.
Eu sei o que, sob este aspecto, de verdadeiramente desolador se passava e infelizmente se passa ainda, embora em muito menor grau - graças aos esforços moralizadores e disciplinadores do Estado Novo-, por esse País fora. Chamo a atenção para este ponto, no desejo sincero de que amanhã não haja razão para se dizer pelas aldeias de Portugal que cada vez se vai tornando, para todos, mais aborrecida a vida, com as dificuldades, exigências, perdas de tempo e complicadas papeladas; tudo cousas, sobretudo, penosas para o nosso tam atrasado povo, que delas nada sabe nem compreende, e que, quanto mais humilde é, mais desatendido continua a ser.
A burocratização das câmaras agravará os males que venho de apontar. Com o «28 de Maio» as câmaras deixaram, felizmente, de ser instrumentos da política partidária e, melhor ou pior, e muitas vezes muito bem, passaram a cuidar da administração local, na qual, com interesse e com uma louvável feição, quási que paternal. Não lhe façamos perder esta feição, que convém manter e estimular.
Diz-se que, sendo a função do presidente da câmara e do seu substituto remunerada, estes funcionários exercerão com maior assiduidade os seus deveres e que, como afirma o parecer da Câmara Corporativa, assegurado o exclusivismo da função, ficará garantida maior rapidez e eficácia para a acção administrativa. Quero crer que nalgum caso isolado a situação, por efeito da remuneração, melhore, isto é, traga maiores benefícios para os administrados; no geral, porém, julgo que tal não virá a suceder.
Vou dizer porquê.
Em primeiro lugar, não tenho grande fé no exclusivismo das funções. Se, até aqui, os presidentes das câmaras acumulavam os seus afazeres pessoais com os camarários, muitas vezes com maior prejuízo próprio do que dos munícipes, com a disposição que se pretende adoptar receio muito não venha a suceder o contrário.
Em segundo lugar, tirados os concelhos urbanos de 1.ª e 2.ª ordem, o factor retribuição - nos termos com que a proposta o estabelece - só poderá deminuir a já muito reduzida élite dos que, prestando-se a servir, tenham capacidade e prestígio para bem desempenhar o lugar de presidente de uma câmara. Mas, mesmo que assim não fosse, o que inevitavelmente sucederá é passarem os vereadores a ser figuras demasiadamente secundárias, sem relevo algum, o que não contribuirá, por certo, para vitalizar e prestigiar a instituição e agravará, ainda mais, um dos males que se vinha notando por vezes: o da excessiva predominância dos presidentes.
Apoucada fortemente a qualidade dos vereadores e deminuído o zelo e interesse pela cousa pública, muito sofrerá a política do espírito, que se impõe não só manter como revigorar nas instituições municipais, e tanto mais quanto é certo que os outros corpos administrativos serão sempre o reflexo do que forem os municípios.
Em terceiro lugar, com o sentimental e condescendente feitio português, quási sempre sucederá que, para a escolha dos presidentes das câmaras e seus substitutos., se olhará mais às necessidades dos pretendentes do que aos seus méritos.
Isto será inevitável, e pensar o contrário é viver fora das realidades.
Com a remuneração as câmaras transformar-se-ão em puros organismos burocráticos sem uma vida superior, feita de emulações e estímulos, sem espiritualidade, sem um fecundante interesse e brio regional, sem alma, numa palavra.
Se é isto o que se pretende, está bem, mas tenha-se a certeza de que assim se esfacelará o mais seguro elo moral que, para ligar o Poder Central aos povos, gerações sucessivas vinham pacientemente fortalecendo.
Materializada a instituição municipal, faltará o ascendente e prestígio do seu presidente e o conselho municipal ou será um organismo morto, ou será o teatro em que se digladiarão influências, ambições e despeitos pessoais
Tanto na proposta como no parecer parece ter-se a obsessão dos caciques, mas felizmente, para sossego de todos, reconhece uma e outro que a reforma administrativa terá a virtude de afastar o fantasma. Devo dizer que, em minha opinião, já não existe caciquismo. Vou
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até mais longe - já não é possível ressuscitá-lo, tam profundamente se modificou o terreno social e político em que lhe era possível vegetar.
O que há e haverá sempre são as maiores ou menores influências pessoais, derivadas do prestígio que, pela sua inteligência, carácter ou saber, alguém adquira. Estas influências pessoais, quando dedicadas ao bem comum, só são para desejar, como tive ocasião de ouvir declarar ao Dr. Oliveira Salazar, ao referir que uma das causas da decadência de Portugal proviera justamente da perda dessas influências, como consequência do êxodo que, dos mais cultos e educados, se produzira dos campos para os grandes centros.
Para a elaboração do Código não há pois que pensar em defender os corpos administrativos de um caciquismo inexistente ou, pelo menos, inoperante; mas há que pensar, sim e apenas, no que mais convém «à índole do País, aos seus costumes, tradições e necessidades, sem o que nada poderá melhorar e prosperar e nada poderá existir de verdadeiro e sólido»
Em conformidade com o que acabo de expor, depositarei na Mesa uma proposta de substituição para a base VII, em que se procura pôr o presidente da câmara, ou quem o substitua, a coberto de despesas com que alguns não poderão arcar, sem contudo serem atingidos os princípios que defendi.
Acrescentarei apenas e desde já que, presidentes das câmaras e seus substitutos, ambos remunerados, se me afigura um exagero evidente, excepção feita talvez e unicamente dos concelhos urbanos de l.ª ordem.
Por emquanto tenho dito.
Reservarei o resto das minhas considerações para quando se tratar da discussão na especialidade.
As propostas a que se refere o discurso anterior são as seguintes:
Proposta de emenda
Perfilhando a redacção sugerida pela Câmara Corporativa para a base XXX, proponho que o seu n.° 6.° fique assim redigido:
6.° As juntas de freguesia não poderão lançar impostos ou cobrar adicionais às contribuições do Estado, mas receberão, para melhoramentos rurais, da parte das receitas que, por lei, as câmaras tiverem para este efeito de consignar, os subsídios por elas julgados necessários.
O Deputado Francisco Xavier de Almeida Garrett.
Proposta de substituição
Proponho que a base VII seja substituída pela seguinte base:
Base VII. - O presidente da câmara será nomeado pelo Governo de entre os respectivos munícipes, pelo prazo de um ano.
Para as suas despesas de representação ou deslocação, ou para o vereador ou vereadores que o tenham de substituir ou acompanhar, o Governo determinará para cada câmara a importância máxima que poderá ser orçamentada.
O Deputado Francisco Xavier de Almeida Garrett.
O Sr. Aguedo de Oliveira:-Sr. Presidente: esta reforma administrativa tem por si duas grandes razões políticas: a da conveniência e a da oportunidade.
Ela é conveniente porque se destina a estabelecer qualquer cousa mais perfeita do que aquilo quê está.
Tem por si uma razão de oportunidade porque a reforma administrativa pretende apenas soldar intimamente o passado com o futuro através do presente.
Chegou o momento azado, visionado profeticamente por Alexandre Herculano, de restaurar e revigorar o conhecido elemento indispensável de organização social:
o velho município.
Não é caso, creio, de repetir aquilo que conta Júlio de Vilhena acerca do Nogueira do Ministério do Reino.
O Nogueira tinha sempre um projecto de Código Administrativo para fornecer ao Ministro do Reino incipiente.
Era uma questão de tintura ou de verniz político segundo a feição partidária do Ministro que acabava de tomar conta da pasta.
O próprio Rodrigues Sampaio, autor do Código de 1878, ao que parece, também foi vítima de uma tiragem especial. Esta tiragem especial resultou também, ao que afirmam, uma reimpressão.
Subi a esta tribuna em condições particularmente desfavoráveis.
Passaram por ela as águias da oratória portuguesa, discutindo exactamente este assunto, que se vem arrastando há um século.
Passou por ela Garrett, José Estêvão, aqueles que aliaram à imaginação viva a facúndia e aqueles que equilibraram a arte de dizer com a perfeição inultrapassável da forma.
Miravam então as águias o sol nas alturas, mas hoje os tempos são outros, e a minha geração foi educada um pouco neste sistema, incolor, sem entusiasmo, sem brilho e de menos imaginação, de estudar, reflectir, concretizar e expor cruamente.
Há nesta tarefa um mixto de cienticismo e um mixto de ensaísmo em que a imaginação e a locução tom pequena parte a desempenhar.
Faz-me lembrar aquele quadro de João Paulo Laurens, que representa um escolar da idade-média debruçado sobre os livros de estudo, já próximo da vida, tímido, hesitante, desconhecedor das perturbações e responsabilidades fatais duma época particularmente agitada, que lhe acrescentariam a timidez inicial.
Verdade seja que o muito estudo, por bem aturado que seja, não pode em caso nenhum suprir o menos singular talento.
Tratando deste assunto, encontrei à entrada, no meu caminho, dois capelos carmezins, mais um vez o Dr. Fezas Vital, com o seu primoroso, límpido, fluente e cristalino relatório, e o Dr. Marcelo Caetano, que há poucos dias proferiu uma conferência admirável na Sociedade de Geografia, tendente a esclarecer as generalidades essenciais deste problema.
Esses são, em particular aspecto, da alta estirpe lusíada dos grandes jurisconsultos, como João das Regras, Pinto Ribeiro, Melo Freire, que tiveram uma função útil na cátedra e desempenharam uma função útil na vida pública. Eles são daqueles que conciliam a cátedra com a vida.
Encontro no meu caminho o Governo da Nação, de quem parte a iniciativa da proposta, e ao lado, o chefe da renovação portuguesa, o tenente-coronel Linhares de Lima, que a subscreveu, um dos valores mais úteis, um dos valores positivos, um dos valores de moral inquebrantável desta casa e do antigo Governo.
Vozes:-Muito bem!
O Orador:-Figura de inteligência vibrátil o nervosa, ele soube trazer até nós o que era uma aspiração secular: - uma proposta de reforma administrativa com princípio, meio e fim.
Nós temos que louvar este intuito reformador, porque lhe são devidos todos os louvores. Também não temos
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que censurar ou deminuir a sua realização, pela razão muito simples de que essa realização depende em grande parte de nós.
Vou, sobre este assunto, expor as minhas ideas, ideas coincidentes, ideas vizinhas, daqui resultando, pois, não uma atitude critica, mas sim levíssimos reparos apenas que pretendo fazer-lhe, e dos quais resultarão esclarecimentos, critérios, mas não derivará a idea de emenda, nem de correcção. Pretende fazer-se aquilo que Garrett chamou a ratificação e a nacionalização dos princípios administrativos. Com que base? Com base na peça mestra do sistema tradicional português.
Vamos, pois, rever todo o sistema administrativo, à luz da tradição, dos ensinamentos da experiência e da ciência -tarefa imposta pela lógica e imposta pela necessidade.
Vamos, pois, rever todo o sistema administrativo, vamos fazê-lo passar pela oficina da lei, revê-lo como se revê um motor, para o afinar mais perfeitamente, de» forma a que o seu trabalho produza maior rendimento.
Parecerá que a proposta de lei em discussão tem o seu quê de empírico e o seu quê de ecléctico. A observação procede algo e convém aclará-la.
Todas as propostas de substituição e de reforma são, como reflexo da doutrina, sempre extremista, ou da consciência jurídica, sempre insatisfeita, na articulação do pensamento inicial algo de empírico. É isto da natureza do processo legislativo e não deve estranhar-se.
Por outro lado, a atitude tem um pouco de eclectismo no sentido de dar ainda guarida ao espírito e às injunções de direito estranho. Usou-se do que é preconizado na doutrina de outros países, daquilo que está naturalmente na prática legal de várias nações. Mas nós somos realistas e não podemos dizer que levamos o nosso idealismo até ao absoluto, e o problema, porque não é só nosso, porque é universal, porque é um problema de consciência jurídica, tem naturalmente esse seu quê de eclectismo irredutível. Não pode por aí estabelecer-se conclusão que deminua o valor intrínseco da proposta.
A consciência jurídica tem as suas exigências, e nem sempre ela se pauta pelo ideal figurado nas nossas ambições; quási sempre ela obedece às necessidades da hora presente.
Serviu-se a reforma do instituto basilar do município mas o município actual prende-se ao município antigo por laços bastante delicados. Ele era a corporação tradicional reconhecida na lei, composta de famílias, com seus lares, com os seus centros de habitação dentro da área sujeita à jurisdição de uma câmara, ou dentro dos limites de um determinado concelho.
Nestas disputas imensas e tradicionais da formação natural ou artificial do município, o município, à face da história, é um produto realmente espontâneo e natural das sociedades humanas, porque é um tipo lusitano, que mergulha nas profundidades da existência do País, mas é também, em bastantes casos, uma ficção legal que cobre certas tendências, certas semi-realidades. Portanto as reformas administrativas devem completar o que está, o não se pode dizer que tenham actuado sempre ao sabor de erros anteriores.
O município tradicional distancia-se notavelmente, sob o ponto de vista jurídico, do município actual, sobretudo daquilo que nós queremos que seja o município futuro.
O município tradicional era a pessoa moral soberana, no sentido da pessoa de utilidade pública e fins desinteressados, com carácter de perpetuidade, que tinha por fim as chamadas liberdades popularos. Isto resumo-se na fórmula: o povo administra se a si próprio, o que implica a idea de uma soberania municipal. Quero dizer: o município não estava subordinado a outra qualquer entidade.
Ora - eu tenho esta opinião - o município futuro deve viver adentro da orgânica corporativa do Estado Novo. Sendo assim, o município passa a ser uma organização visando fins de interesse social, podendo até exercer direitos políticos.
Eu gosto de ler o que a este respeito escreveu um ilustre professor da Universidade de Viena, que é um dos príncipes da ciência jurídica contemporânea. Está noutra zona de vida política, adversária pois, mas merece todo o meu respeito, como aliás me merecem aqueles que vêm contrariar com elevação as nossas ideas.
E ele faz a demonstração clara de que esta idea tradicional do município soberano é errada. O que este tinha era delegação e não atributos próprios de poder político. O direito de coacção é monopólio absoluto do Estado.
O que há, portanto, é um órgão que há-de ter feição nitidamente corporativa, que vai agir dentro de determinadas zonas, em conformidade com as regras da comunidade nacional. E é isto certamente um ideal jurídico defensável e, como tal, uma representação que tem valor mental. Mas, como todas as ideas força do nosso tempo, terá igualmente começo de acção. E a reforma administrativa é mais do que começo de acção, é acção positiva, é acção no sentido de melhorar o que se passa, de dar satisfação aos anseios e aspirações de um século, pelo menos.-
Daqui o valor prático da tradição municipal, e deverá tirar-se um ensinamento: é que, se for possível, deve ser levado às ilhas adjacentes e colónias o princípio municipal, como elemento dinamizante de toda a vida corporativa portuguesa.
Mas, Sr. Presidente, se se dá isto sob o aspecto jurídico e político, há um aspecto económico também muito desenvolvido na doutrina e que precisa ter realização plena na forma agora discutida.
Nós queremos, nós ambicionamos, que o município venha a ser uma empresa próspera, que o município seja regido pêlos mesmos princípios de economia, impulsão, eficiência, racionalização e desenvolvimento, que fazem o êxito de uma grande empresa industrial e comercial.
Isto quere dizer, Sr. Presidente, que o município deve ter chefes capazes e regras, entidades e atribuições que claramente os levem ao êxito.
Há um ponto, porém, que julgo deixado lia sombra e que até certo ponto há vantagem em tornar nítido e claro.
O município é órgão do Estado, do Estado Novo e, como tal, deve ter função política; não deve ter meramente função administrativa. Ele tem de colaborar na vida política do Estado, ser um elemento concordante
de solidariedade nacional; ele tem de cooperar com outros órgãos corporativos na reorganização do progresso nacional.
Eu quero que o município tenha uma alma e um querer político, e desta teoria resultam vários corolários.
Presidente, vereadores, delegados e representantes das juntas de freguesia elevem ter não só as necessárias qualidades de ordem moral, não só a idoneidade administrativa, mas "também a necessária idoneidade política; devem dar garantias de boa conduta, não só sob o ponto de vista moral, mas nacional.
A lei administrativa deve ser isto mesmo - os vereadores devem ser dirigentes úteis, responsáveis, que dêem garantias, e escolhidos entre os elementos da população que tenham dado as suas provas de isenção em prol do bem comum.
Outro ponto que a reforma parece deixar na sombra
- e neste particular houve indicações de doutrina dos congressos, polémicas, conferências - deriva do sentido de se vincar aquilo que será a freguesia nova.
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A reforma apresenta o município como um todo essencial do sistema jurídico e a freguesia um aglomerado reduzido à condição de elemento de composição do município; é uma unidade que entra dentro do todo municipal, mas precisaríamos, ao organizar, ao reformar, que sobretudo à freguesia nascente fosse assegurada uma individualidade mais viva, uma função mais positiva do que a de simples aspecto da vida de um município.
Havia um movimento muito forte, umas tendências do pensamento português bastante caracterizadas em acordo, e parece-me que seria vantajoso demarcar o conceito da freguesia futura: conjunto de famílias, povoados, aldeias, grupos de casais ou de herdades que tradicional ou demogràficamente tenham a sua individualidade, mas que representem sobretudo um valor possível no campo da administração pública. Sempre dentro da construção proposta pelo Govêrno há uma questão e, força é confessar, é uma questão que atrás dela pode esconder um pretexto de divisão civil, j não digo que seja uma guerra civil, mas uma divisão civil!- que ressalta da proposta de lei: é a chamada questão das províncias.
A nossa Constituição - deve confessar-se - cedeu a um geometrismo muito forte. A tradição que havia a respeito de províncias não era tam nítida como alguns pretendem.. Tradição militar, tradição meramente regional e indefinida, a província, talvez fácil de surpreender através daquilo que se chama a psicologia colectiva, era difícil, em todo o caso, de demarcar, sob o ponto desvista das aspirações administrativas. Repito: a Constituição cedeu a um certo geometrismo porque supõe a província como agrupamento superior de municípios, e nós temos de respeitar aquilo que está na Constituição. Se dentro de determinada medida for possível atenuar estas causas exageradas de insolidarismo, ou partindo e subdividindo os órgãos correspondentes, ou, possivelmente, reduzindo o número deles, talvez que seja resolvida assim uma inquietante questão política.
Mas a proposta de lei estabelece uma certa diferenciação mesmo dentro do tipo fundamental do município, e essa diferenciação está nas grandes cidades, nos chamados concelhos de vária ordem e nos chamados concelhos urbanos e rurais. Obedecendo mais a um critério económico do que administrativo, que é predominante no momento que passa e na ordem lógica das aspirações durante muito tempo postas pela doutrina, suponho que podem distinguir-se vários tipos de concelhos. Temos, por um lado, as grandes cidades, temos, por outro, as cidades dos municípios, temos, por outro, concelhos industriais e comerciais, concelhos agrícolas, póvoas marítimas, concelhos mineiros e termais, e há ainda concelhos rurais em formação mesmo no momento actual.
Não pode concluir-se que se deva estabelecer para cada tipo de concelho um foral e, portanto, se regresse à confusão, à dissociação administrativa dos tempos medievos. Mas suponho que para efeito de assistência técnica, que é absolutamente indispensável, para efeito de predomínio na representação corporativa, para efeito de função económica a atribuir e desempenhar, e da própria imponência do número da representação, convinha talvez levar mais longe a diferenciação do que tal como ela foi feita.
Mas como através desta questão administrativa está uma questão política, devo dizer que o Governo é que sabe o que melhor convém fazer no assunto. Portanto, neste particular, eu voto incondicionalmente aquilo que está na proposta de lei.
Sr. Presidente: problemas há de tutela jurídica ainda que me parece que andam esparsos pelas diversas bases e que, possivelmente, era necessário agrupar, sintetizar e distinguir.
È o artigo 127.° da Constituição que estabelece «que a vida administrativa ».
Leu.
Comportam-se aqui, portanto, várias faculdades. Faculdades que dizem respeito- à chamada vigilância jurídica e faculdades que dizem respeito à tutela propriamente dita ou à ingerência nos negócios municipais.
A vigilância reveste várias formas: examina-se umas vezes a legalidade, as obrigações impostas; analisa-se a competência; procura-se suspender ou determinar até qual é a forma ou qual é a substância do acto. Depois disto informa-se o Poder para este poder agir.
A ingerência que reveste a fornia, em tempos considerada tam odiosa, da tutela administrativa, umas vezes o Governo aprova-a, outras vezes confirma-a e outras vezes, ainda, sujeita-a a autorização prévia e, possivelmente, substitue-a.
Estes problemas estão repartidos por várias bases na proposta de lei da reforma administrativa e poderiam ser agrupados, melhorando-se a economia da proposta.
Temos assim um nó desatado nos problemas postos nas minhas últimas palavras.
O regime administrativo muitas vezes - se não é quási sempre - é independente do regime político, como realização e como triunfo reformador. Em França o regime administrativo manteve-se durante a revolução, durante a monarquia aristocrática, durante a república e a democracia.
Quere dizer: se nós fôssemos capazes de traçar um regime administrativo perfeito, ele poderia sobreviver até a todas as emergências de ordem política, ainda que neste particular nós queiramos estabelecer um regime administrativo perfeitamente sequente, lógico, com. o nosso regime político, havendo assim duas vantagens onde nos bastaria uma só.
Uma reforma administrativa depende de condições de êxito, de condições de sucesso de ordem política que cumpre lembrar.
Ela depende de uma certa perfectibilidade de civismo, depende de uma melhoria na economia nacional e depende daquilo que se chama o reforço da garantia jurídica.
A perfectibilidade da vida cívica encontra-se na organização de serviços, na assistência, na competência, na educação geral, ordena-se e desenvolve-se dentro dos vários eixos de rodagem da vida cotidiana que caem na alçada da administração.
A melhoria da economia nacional ajuda naturalmente o novo estado de cousas e é sempre difícil implantar novos costumes e novas práticas administrativas quando as condições da riqueza não são porventura as melhores, nem mesmo as mais favoráveis.
O reforço da garantia jurídica é a condição indispensável e essencial para que uma reforma administrativa seja o que os reformadores quiseram.
Ele tem por fim regularizar ou ordenar e sistematizar toda a vida jurídica, valendo mais os meios e cauções que asseguram o cumprimento da lei e o reconhecimento dos direitos do que todas as declarações deles.
Esta tríplice condição, à luz da experiência actual, garante-nos o bom êxito, o particular sucesso da reforma que aqui é posta.
E porque assim é, eu atrevo-me apenas a formular duas sugestões, que ficarão apontadas na margem da discussão deste processo dialéctico ou contraditório, que é o processo parlamentar: uma no sentido de dever ser criada em Lisboa uma junta municipal capaz de centralizar as aspirações administrativas,
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capaz de servir de procurador geral dos municípios junto do Govêrno e capaz de se esforçar no sentido da propaganda do estudo e no melhoramento da idea municipalista e da vida local; e outra, no sentido de o Governo ter conveniência em proceder a um inquérito as condições da vida municipal, antes de pôr em vigor o futuro Código Administrativo, em l de Janeiro de 1937.
Quando foi das reformas dos forais, houve uma junta de letrados que andou cinco anos a apurar o que se passava nos diferentes municípios.
Parece-me conveniente que se faça uma espécie de questionário, inquérito ou análise à vida dos diferentes municípios.
A prática costuma também iluminar a doutrina.
Suponho que a reforma administrativa proposta é uma adição desejável ao sistema do direito português.
Tem as suas dificuldades o que naturalmente chocam com toda a teoria legal nova. Mas, repetindo aquilo que dizia um escritor americano da minha predilecção: nós resolvemos os problemas constitucionais e abordamos por agora os problemas administrativos. A eficácia da administração pública depende sempre, em todos os tempos e em todos os lugares, da competência técnica dos administradores, da luta pela legalidade e da atitude pessoal das elites naturalmente interessadas.
Três caminhos se deparam na frente de todas as administrações: o da centralização administrativa, que dá ao Poder Central faculdades tais que tudo abraçam, que tudo estreitam, e tornam limitadamente previsto o âmbito dentro do qual se desenvolve a vida das várias entidades administrativas.
Segundo caminho: o da anarquia da autonomia local, que é quando as organizações locais são dotadas de uma independência, de uma regra de singularidade em seu viver, que desafia o próprio elo do Poder Central que pretende subjugá-las.
Há um terceiro caminho ...
Creio que o caminho da sabedoria está no meio termo. Parece-me que foi esse o seguido pela reforma proposta.
Porém, neste caso como em todos os outros, a Assemblea Nacional cumprirá o seu dever.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bom!
O Sr. Alberto Navarro:-Sr. Presidente: também eu sou daqueles que tardiamente sobem pela primeira vez a esta tribuna.
A minha saúde gravemente abalada por doença, por um lado, e, por outro, a apreciação de assuntos que, na sua grande maioria, não eram da minha especialidade fizeram com que não tivesse uma actuação directa no debate dos trabalhos discutidos até agora na Assemblea Nacional.
Hoje, porém, que se trata da discussão da proposta de lei para as bases da reforma de um Código Administrativo, eu entendi que, tendo-me dedicado especialmente a esto tam interessante ramo de direito, devia trazer a minha colaboração a esta Assemblea, embora essa colaboração fosse desvalíosa e modesta.
Antes, porém, que inicie as minhas considerações, seja-me lícito, Sr. Presidente, associar-me às homenagens que todos os Deputados que pela primeira voz aqui sobem tom prestado a V. Ex.ª.
V. Ex.ª é um professor distinto, entre os mais distintos, que sabe (por experiência própria o digo) transformar os seus discípulos em amigos dedicados que pela vida fora se lembram sempre de quanto lhe devem. V. Ex.ª, pro-cessualista distinto entre os mais distintos, ao lado de Dias Ferreira, Alves de Sá e Dias da Silva, pelo seu talento, pelo seu fino trato, pela forma como tem sabido conduzir os trabalhos desta Assemblea, merece todas as homenagens.
(Apoiados).
Por isso do coração me associo a elas.
A V. Ex.ªs, Srs. Deputados, as minhas saudações.
Sr. Presidente: na sessão do 20 de Dezembro de 1930 deu-se um facto que, se passou despercebido para muitos, para outros teve foros de acontecimento sensacional: o Governo apresentara a esta Assemblea uma proposta de reforma da administração local.
Foi com estas palavras que há precisamente um mês, na Sociedade de Geografia, o Sr. professor Dr. Marcelo Caetano abriu a sua notável conferência sobre o Muni-cipalismo na reforma administrativa.
Tinha razão o ilustre conferente: acontecimento sensacional se pode chamar a este facto, porque além da lei n.° 88, de 7 de Agosto de 1913, impropriamente chamada por muitos Código Administrativo, além da lei n.° 621, de 23 de Junho de 1916, da lei n.° 1:453, do Código Administrativo de 1878, no seu título viu, do Código de 4 de Maio de 1896 na parte não revogada, há um sem número de leis díspares e diversas que fazem absolutamente incoerente, desconhecido e caótico o direito administrativo vigente.
Os homens que tomaram conta do poder em 1910 prometeram um Código Administrativo. A própria Constituição de 1911 declarou num dos seus artigos que seria uma das pedras angulares da futura administração pública em Portugal a publicação dum Código Administrativo. Mas não passaram de promessas estas palavras.
O Governo apresenta hoje as bases para a reforma do Código Administrativo. Tinha-as prometido também e, fiel à sua promessa, cumpre honradamente a sua palavra; a Nação verifica mais uma vez que os homens do Estado Novo não faltam ao que prometem e que aquilo que não era senão uma aspiração, uma vaga aspiração de há muito tempo, vai dentro em breve tornar-se uma realidade.
Sr. Presidente: entendo que para apreciar e discutir as bases que hoje estão aqui submetidas à nossa apreciação é preciso lançar um olhar retrospectivo, embora rápido, sobre o que tem sido a administração pública no nosso País.
Começou ela pelo decreto n.° 23, de 16 de Maio de 1832, que faz parte dos impropriamente chamados diplomas da Ditadura da Terceira, e foi expedido de Ponta Delgada por D. Pedro de Bragança, regente em nome de sua filha, a Rainha D. Maria II, decreto esse que é devido ao espírito brilhante daquele que em vida se chamou Mousinho da Silveira.
Começa por dividir o País em províncias, comarcas e concelhos, pondo à frente dos corpos administrativos um prefeito, um sub-prefeito e um presidente da câmara, criando ao lado destes uma junta de cidadãos eleita pêlos munícipes.
Este decreto não foi bem aceite, tendo o País reagido fortemente contra o espírito centralizador deste diploma. Os queixumes surgiram imediatamente, porque a Nação estava afeita ainda às liberdades municipais, que foi a organização mais completa que tivemos na Idade Média.
Acrescia ainda que os prefeitos tornaram-se pequeninos déspotas, logo apodados de «pachás», reminiscência talvez das Lettres persanes, de Montesquieu, então muito em voga.
A este decreto foram feitas várias alterações, e refiro-me apenas à lei de 25 de Abril de 1835, porque aí, pela primeira vez, nos aparece o País dividido em distritos, concelhos e freguesias e aparece também aquela autoridade que, durante o século XIX, prestou grandes e reais serviços à manutenção da ordem: o administrador de concelho.
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Em 1836, pela derrota dos defensores da Carta, é posta em vigor a Constituição de 1822, e publicou-se então o Código de 31 de Dezembro de 1836.
E o primeiro ensaio da codificação do direito administrativo em Portugal, há um século exacto - fá-lo em Dezembro, j Singular contraste, Sr. Presidente: há cem anos os homens representados na pintura mural que encima a cadeira de V. Ex.ª, puros idealistas, cujas nobres intenções ninguém pode pôr em dúvida, chefiados por essa grande figura de tribuno que se chamou Manuel Passos, tam respeitável que merece a nossa simpatia, faziam uma revolução movidos pelas ideas que então dominavam o mundo!
Filhos espirituais da Evolução Francesa, discípulos ferverosos de Jean-Jacques, sob o emblema falaz da liberdade, cercando o trono de «instituições republicanas», na frase tam expressiva de Manuel Passos, no discurso em que defende os actos da sua ditadura, esses homens, talvez inconscientes, foram os verdadeiros precursores da desorganização do Estado, do desprestígio do poder supremo, do desrespeito pela lei, pela ordem e pela hierarquia.
Coerentes com as suas ideas, publicam um Código Administrativo eivado dos mesmos defeitos e dos mesmos vícios, com o princípio da descentralização, copiado do Código que então vigorava em França, e esse diploma, transplantado para Portugal, apenas deu resultados funestos, o que fazia dizer a Almeida Garrett, no seu célebre discurso na Câmara dos Deputados, invertendo o verso do poeta, que esse era fruto:
«Pior tornado em terreno alheio!»
Tudo parecia ter ruído da revolução de 1836, o que era constatado tristemente pelo seu chefe, Manuel Passos, quando exclamava:
«Se a revolução está morta, não foram os seus inimigos que a mataram!»
Enganara-se o tribuno. Alguma cousa subsistia da revolução de 36: era o vírus demo-liberal, herdado dos homens de 20, e que, medrando pelo século XIX, em sua plena pujança, ia envolvendo o País em onda demagógica, que tudo subvertia, se não fosse a reacção, salvadora do 28 de Maio!
Curioso contraste este, repito, Sr. Presidente!
Há um século exacto, os homens de então, de acordo com os princípios individualistas que defendiam, publicaram um Código Administrativo que, posto em vigor, veio fomentar e desenvolver a desordem e a desorganização!
Hoje um século depois - os homens de 1936, profundamente nacionalistas, reagindo fortemente contra as doutrinas nefastas do século anterior, discutem e vão aprovar umas bases para a publicação de um Código Administrativo que, respeitando as antigas liberdades municipais, há-de acabar com a desorganização actual!
Ao Código de 1836 sucedeu o de 1842, de Costa Cabral. É um diploma a que se tem de fazer referência, porque vigorou no País durante trinta e seis anos.
Profundamente centralizador, ele permitiu o desenvolvimento do País sob o ponto de vista administrativo e conseguiu formar uma burocracia especializada neste ramo.
Depois de várias tentativas de reforma, de Anselmo Braamcamp e Garrett, surge-nos o Código de 1867, de Martens. Ferrão, com a colaboração do malogrado - como então se dizia - José Júlio. Código este que vigorou apenas uns meses, porque caiu pela revolução conhecida pela «Janeirinha».
Em 1870 subiu ao poder Saldanha, que publicou um Código também descentralizados Vigorou pouco tempo, porque, caído Saldanha, lhe foi negado o bill de indemnidade.
Chegamos a 1878 e aparece-nos o Código de Rodrigues Sampaio, descentralizador este também, e que, conforme o seu autor o declarara no relatório, procurava o governo do povo pelo povo.
Foi nefasto este Código, e foi este que o Governo Provisório de õ de Outubro de 1910 adoptou para ser restabelecido em Portugal, após a implantação do regime !
Ao Código de 1878 seguiu-se o Código de 1886, de José Luciano de Castro, absolutamente a centralizador», e a este, depois da reforma de 1892, de José Dias, seguiu-se o Código de 1895, do Governo Hintze - Franco, que, publicado em ditadura, se transforma depois no Código de 1896.
O Código de 1896 merece especial referência. Diploma notável, nunca foi igualado por outro qualquer e ainda hoje vigora, com reais benefícios e vantagens para a administração pública.
Não merece referência o 'Código de 1900, que durou «o que duram as rosas», e entramos no regime republicano.
Temos a lei n.° 88, extremamente descentralizadora, com a novidade do referendum,, seguindo-se a lei n.° 621, o Código Administrativo de 1878 e o de 1886, e era tal confusão que aqueles que cultivam este ramo de direito administrativo não sabiam quais eram os diplomas que vigoravam, tendo sido necessário que, já na vigência do Estado Novo, se publicasse o decreto n.º 12:073, de 9 de Agosto de 1926, para que se pudesse então fazer uma destrinça de todos aqueles diplomas.
Pareceu-me interessante, Sr. Presidente, fazer à Assemblea um relato, embora rápido, do que tem sido a codificação administrativa em Portugal de há um século para cá e as suas vicissitudes e mostrar a V. Ex.ª os diplomas que se têm publicado sobre o assunto.
E V. Ex.ªs verão, por esse rápido relato, que dentro desses diplomas vamos encontrar duas ideas absolutamente antagónicas, dois princípios absolutamente diversos e divergentes, porque um é liberal e constitucional e o outro autoritário e governamental.
São esses princípios antagónicos a descentralização e a centralização. .
Os individualistas do século anterior, profundamente imbuídos das doutrinas de Adam Smith, procuravam por todas as formas enfraquecer o Poder Central e dar ao indivíduo todas as possíveis liberdades, porque - diziam eles - o indivíduo é o único motor para conseguir a civilização, e a actividade privada, mais do que nenhuma outra, é a única capaz de dar à sociedade bem-estar e progresso.
Não viam eles que erravam! Erravam sob o ponto de vista histórico e sob o ponto de vista racional, Erravam sob o ponto de vista racional, porque o homem isolado é fraco, os seus esforços são incoerentes, e só pela associação, e só pela colectividade, ele se torna forte e os seus esforços não se coordenam senão pela associação, e a associação mais poderosa actualmente é a Nação, isto é, o Estado organizado!
Não viam também que erravam sob o ponto de vista histórico, porque, partindo a humanidade do homem isolado, toda a sua evolução consistiu no agrupamento dos indivíduos, na sua integração no seio das colectividades; ora, sendo o Estado o termo mais aperfeiçoado da colectividade, é para ele que devem tender e concentrar-se todas as actividades dos indivíduos!
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Com estas doutrinas os individualistas do século XIX iam atirando o País para uma demagogia infrene.
Mas alguns políticos do século XIX reagiram contra ela e um dos diplomas mais claros dessa reacção é o Código Administrativo de 1896, da autoria de João Franco. Esses homens que reagiram contra as ideas da época viram bem que era o interesse nacional que os fazia defender a idéa da centralização administrativa.
Quando Richelieu e Colbert enviam pelas províncias da França os seus intendentes, é para, enfraquecendo o feudalismo, procurar um acréscimo do Poder Real - isto é, o fortalecimento do Poder Central.
Quando Bonaparte dotou a França de um sistema administrativo tam vigoroso que ainda hoje - salvo algumas pequenas modificações- se mantém, foi para, depois do abalo formidável da revolução francesa, restabelecer e restaurar o Poder Central.
Quando em Espanha e em Portugal - ensina Herculano - os povos obtêm ou reclamam ali os fueros, aqui as suas cartas de foral, é para reagirem contra as extorsões dos ricos-homens e poderosos da Igreja.
Mas quando o rei lhes concede de boa mente esses forais, é o seu pensamento, ou antes o seu instinto, que procura organizar o povo para o habilitar a resistir por si, em virtude da união das famílias, formando assim a colectividade que mais tarde, solidificada, há-de ser a Nação.
Quando no século XIX os homens do Governo de então defendem a centralização, esses, contra o correr das ideas da época, adivinham e perscrutam que esse princípio é a própria força do Estado, e sem ele tudo cai na desorganização e no caos!
Quando os homens do Estado Novo, um século depois, apresentam a esta Câmara umas bases de reforma administrativa profundamente, nacionalistas, com o princípio da centralização que atravessa por todas elas, é porque eles sabem que só pela fortificação do Poder Central, que expande a sua orientação através de todos os órgãos até às autarquias locais, se poderá estabelecer uma nação forte num Estado forte.
Creio, Sr. Presidente, ter mostrado à Assemblea a idea mater que presidiu à orientação e à confecção destas bases, isto é, a centralização, e por todas elas nós encontramos esse princípio.
Encontramo-lo quando dizem que o presidente da câmara é de nomeação governamental; encontramo-lo na interferência e fiscalização do Poder Central em todos os actos das câmaras; encontramo-lo quando estabelece o regime de tutela; encontramo-lo ainda quando exige para certas deliberações municipais a autorização do Poder Central.
Feita, portanto, referência a esta idéa primacial, que a meu ver orientou o autor da proposta, vou focar a V. Ex.ª alguns princípios essenciais que se encontram dentro das bases e que será também interessante mostrar à Assemblea.
Refiro-me apenas ao município, porque o município na reforma administrativa toma feição primacial, e não podia deixar de ser, porque o artigo 123.° da Constituição de 1933 diz que o território do continente se divide em concelhos, que se formam de freguesias e se agrupam em distritos e províncias.
Os concelhos suo classificados em urbanos e rurais, distinção esta que aparece pela primeira vez, e tam lógica que julgo não será preciso defendê-la. O parecer da Câmara Corporativa é desta opinião.
Já que me refiro pela primeira vez a este parecer, seja-me lícito secundar as palavras aqui proferidas pelo nosso ilustre colega Sr. Dr. Águedo de Oliveira, nos louvores que féis ao mesmo parecer.
E realmente notável, o que não admira, porque é seu autor o ilustre Prof. Dr. Fezas Vital, que é hoje, talvez, o primeiro administrativista português.
Uma voz: - É com certeza.
O Orador:- O meu «talvez» resulta do facto de que num país como o nosso, onde há tam poucos, eu, quando falo do primeiro, lembro-me também do Dr. Marcelo Caetano. Mas, Sr. Presidente, estava eu a referir-me ao concelho e a câmara municipal.
Pelas bases é a câmara municipal constituída por vereadores eleitos e por um presidente da câmara, de nomeação do Governo.
O parecer da Câmara Corporativa levanta a questão da constitucionalidade da nomeação, pelo Governo, do presidente da câmara. Diz ela que não há dúvidas sobre a coustitucionalidade da base.
Eu também as não tenho. Basta ler comparativamente os artigos 19.°, 20.° e 21.° da Constituição para verificar que o Governo tem poderes para essa nomeação.
Assim, nós vemos que pelo artigo 19.° da Constituição, cabe privativamente às famílias, representadas pêlos seus chefes, o direito de eleger as juntas de freguesia.
A redacção dos artigos 20.° e 21.° da Constituição é absolutamente diferente quando trata da câmara municipal.
Assim, no artigo 20.° diz que aos organismos corporativos compete participar na eleição das câmaras municipais e dos conselhos de província.
No artigo 21.° dispõe que as juntas de freguesia concorrem para as eleições das câmaras municipais.
A redacção, portanto, como V. Ex.ª vêem, é diferente, o que nos leva à conclusão de que as câmaras municipais podem ser constituídas por membros de nomeação do Governo (o presidente, segundo a base VII) e por membros eleitos pelas freguesias e organismos corporativos.
A base VII determina que os presidentes das câmaras e os seus substitutos recebam remuneração pêlos cardos que exercem. Já hoje aqui ouvi nesta Câmara o ilustre Deputado Sr. Almeida Garrett insurgir-se contra a remuneração, e julgo até que apresentou uma emenda a esta base, em sentido absolutamente contrário, isto é, estabelecendo que tais funções devem ser exercidas gratuitamente.
O Sr. Almeida Garrett (interrompendo). - Eu não me pronunciei contra as nomeações feitas polo Governo, mas sim contra o princípio de remuneração.
O Orador: - Sr. Presidente: entendo, e entendi sempre, que essas funções devem ser remuneradas.
Em municípios importantes, como os de Lisboa, Porto, Coimbra e tantos outros, essas funções são tam delicadas, absorventes e trabalhosas, que as pessoas que as quiserem exercei honesta e honradamente não o poderão fazer sem prejuízo da sua vida particular ou oficial.
E, sendo assim, é portanto absolutamente justo e legítimo que essas funções sejam remuneradas, porque, senão, vamos cair naquilo que temos procurado evitar até agora, isto é, que sejam os menos competentes, os menos zelosos e os menos honestos que desempenham tais funções.
O Sr. Águedo de Oliveira (interrompendo): - Isso não se dá de uma maneira geral.
O Orador: - Mas tem sucedido muitas vezes.
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O parecer da Câmara Corporativa entende que estas funções devem ser gratuitas e obrigatórias, como eram na legislação anterior.
É um princípio que só pode defender, mas que em minha opinião tem muitos inconvenientes. Mas o que acho absolutamente indefensável é que sejam remuneradas apenas as funções de presidente da câmara e não sejam também remuneradas as funções dos outros vereadores.
Se as funções do presidente da câmara são delicadas, se é ele quem orienta a política municipal, quer sob o ponto de vista financeiro, quer sob o aspecto de desenvolvimento do concelho, quer ainda sob o aspecto político, é certo que há pelouros tam importantes nos municípios que muitas vezes dão tanto ou mais trabalho do que as funções presidenciais.
O Sr. Almeida Garrett (interrompendo): - Isso é verdade para os municípios urbanos de 1.ª ordem e possivelmente para alguns de 2.ª ordem. Para os outros parece-me que isso não será bem assim. Os serviços têm estado mais ou menos concentrados no presidente e os vereadores têm sido meros auxiliares.
O Orador: - V. Ex.ª dá-me um belo argumento. Se os meus receios só servem para os grandes municípios, para os municípios das grandes cidades, para os municípios de 1.ª ordem, é porque a minha argumentação está certa, o que não quere dizer que não devamos também olhar para os municípios mais modestos.
Entendo preferível que se remunerem as funções municipais, a fim de obter pessoas competentes que as desempenhem, muito embora se abra uma excepção para certos municípios de pequena importância e cujo orçamento não comporta aquela despesa.
Portanto, eu entendo que a remuneração deve ser extensiva não só aos presidentes das câmaras, mas também aos vereadores.
Não façamos diferenciação, porque, caso contrário, haverá logo unia dissidência, uma emulação entre o presidente, que recebe, e os outros vereadores, que trabalham e não recebem.
Isto é absolutamente fatal, e eles, em vez de trabalharem, só levantarão dificuldades ao presidente da câmara, dizendo que, se ele recebe, é ele que deve trabalhar.
O presidente da câmara municipal é também magistrado administrativo. Se não quiserem fazer uma disparidade tam flagrante entre os presidentes e os vereadores, retribuam o magistrado administrativo, mas não como presidente da câmara.
No parecer propõe-se um aditamento com que eu não estou de acordo.
Diz-se que a nomeação pelo Governo dos presidentes das câmaras deve ser feita entre os munícipes.
Não me parece vantajosa esta limitação, porque, se realmente a maior parte das vezes os presidentes das câmaras devem ser do conhecimento do concelho e devem ser escolhidos entre os munícipes, casos haverá, com toda a certeza, em que, por conveniência política e de interesse local, o presidente da câmara seja escolhido fora dos munícipes do concelho.
Cria-se na base m um conselho municipal.
Este conselho municipal é a reedição do Senado da lei n.° 88 e de outros diplomas administrativos.
Não posso de forma alguma concordar com a criação deste órgão municipal.
O conselho municipal tem por fim ser o fiscalizador e orientador da política municipal, da política da câmara, mas, como reúne muito poucas vezes, sucede, na prática, que, ou não se importa com aquilo que faz a câmara, ou, quando se meta a fiscalizar, não tem elementos para o fazer, porque desconhece absolutamente a política e a orientação da comissão executiva.
Tive a honra de ser durante três anos vereador da minoria da Câmara Municipal desta cidade.
O Senado reunia apenas duas vezes por ano, em Outubro e Abril.
Fizeram-se contratos importantíssimos, realizaram-se actos de tal forma graves que levantaram, clamores e protestos!
Pois bem: eu e os meus colegas da minoria levantámos por vezes várias questões, algumas das quais apaixonaram a opinião pública. Pois nunca conseguimos um documento sequer que nos habilitasse a estudar a questão.
Muitas vezes eu e os meus colegas, invocando as nossas garantias de vereadores, procurámos ver documentos, analisar actos e contratos, mas os empregados da secretaria diziam que, por ordem do presidente, isso era expressamente vedado, e nós, Senado municipal, não podíamos fiscalizar honestamente nem cumprir honradamente o mandato que nos tinha sido confiado.
Mas no entanto, se a Assemblea Nacional entender que é absolutamente necessária a existência do conselho municipal, o que com toda a certeza não aprovará é a base III tal como ela está redigida.
E que dando representações às juntas de freguesia, às Misericórdias, aos órgãos corporativos e aos maiores contribuintes dos concelhos, vai-se formar em cada município uma assemblea tam numerosa que não haverá forma
Só no concelho de Barcelos há oitenta e nove freguesias.
No concelho de Barcelos, portanto, o conselho municipal, segundo a base m, seria em número superior ao dos Deputados que constituem esta Assemblea.
Não pode ser.
Preconiza-se, também, na base X a municipalização dos serviços de interesse público, e não com o fim lucrativo, mas com o fim meramente social.
Esta base já hoje é lei do País, porque há os decretos n.º 13:350, de 25 de Março de 1927, 13:913, de 30 de Junho do mesmo ano, e 14:815, de 31 de Dezembro também de 1927, que permitem a municipalização dos serviços.
Sou absolutamente contrário a esta medida.
E o socialismo municipal posto em prática.
Várias câmaras do País têm tentado a municipalização; várias têm seguido por esta esteira - e, a não ser o caso excepcional de Coimbra porque esse Município é excepcional, em vista de, à frente dele, estarem sempre, qualquer que seja a representação política do País, figuras proeminentes e, em especial, homens de categoria mental e professores da Universidade), a não ser nesse concelho', dizia eu, onde há experiências interessantes, como as dos professores Dias da Silva e Marnoco e Sousa, a municipalização dos serviços nos outros concelhos tem sido uma verdadeira desgraça.
O Sr. Almeida Garrett (em aparte) : - V. Ex.ª dá-me licença? No meu concelho a municipalização tem funcionado lindamente,
O Orador: - O concelho de V. Ex.ª, felizmente, é uma excepção, porque estão à frente dele pessoas muito competentes, com uma grande autoridade, com uma grande ilustração, e que, portanto, dão uma orientação aos serviços municipais.
O Sr. Pinto de Mesquita: - Há outras excepções
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O Sr. Juvenal de Araújo: - Sim, senhor; há outras excepções!
O Orador:-Ainda bem, mas mesmo que assim seja não falha a regra.
O Sr. Cancela de Abreu: - Confirmam a regra!
O Orador: - Justamente. A municipalização dos serviços é sempre, como eu dizia, para um fim social, mas as câmaras raramente atendem a esse fim. Crestava de preguntar ao Sr. Deputado Almeida Garrett se com a municipalização dos serviços a Câmara Municipal de Castelo Branco tira lucros.
O Sr. Almeida Garrett: - Não tem tirado rendimento para os cofres municipais. De resto, a lei existente não o permite, porque determina que os rendimentos dos serviços municipalizados sejam aplicados a melhoramentos públicos, beneficiações doutros, etc.
O Orador: - Eu folgo muito com essa declaração de V. Ex.ª, que mais vem confirmar a excepção que há pouco apontei, porque a maior parte .dos serviços municipalizados é instituída para se obterem lucros a fim de taparem outras necessidades das câmaras.
O Sr. Almeida Garrett: - Estão fora da lei!
O Orador: - Mas é contra isso que me insurjo visto que é absolutamente necessário, se se permitir que a municipalização se faça, que as câmaras municipais cumpram a lei.
As câmaras que têm hoje serviços municipalizados - e estudei alguns deles!- na sua maioria fazem esses serviços para obter lucros próprios de forma a aplicá-los noutros serviços.
Não tem a escrita feita sob o aspecto industrial, como a lei exige, e faltam absolutamente a todas as regras legais que estão determinadas pêlos decretos que permitiram a municipalização dos serviços.
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª está a falar há quási quarenta e cinco minutos. Se está longe de terminar as suas considerações, poderei conceder-lhe mais quinze minutos.
O Orador: - Muito obrigado a V. Ex.ª, Sr. Presidente, mas eu pouco tempo me demorarei já.
Este regime de municipalização está condenado em toda a parte, é a regi e, na França. O sistema da régie municipal foi muito adoptado em França, deu os mesmos resultados que tem dado no nosso País, e é preciso notar que a França é um país muito mais adiantado do quo o nosso, infelizmente, e, portanto, onde os serviços se podiam desenvolver com muito maior rendimento.
E foi tal o desregramento do princípio da municipalização, que o Conselho de Estado teve, em várias decisões suas, de declarar que o regime de municipalização só era admissível quando fosse transitório e de curta duração.
Na Alemanha, depois da guerra, quando os socialistas dominaram, adoptaram o mesmo critério de municipalização de serviços.
Era o gás, a água, os transportes e até os correios, e a debate foi tal, que chegaram à conclusão de que os serviços assim eram absolutamente nefastos.
Portanto, é meu parecer que, se a Assemblea adoptar esta base X sobre a municipalização, deve lembrar ou sugerir ao Governo, se for dada permissão às câmaras para municipalizar quaisquer serviços, que deve haver um fiscal permanente do Poder Central que verifique se realmente cumprem aquilo a que a lei as obriga e se não afastam dinheiros para outros fins.
Parece-me, Sr. Presidente, quo examinei os pontos capitais desta proposta de lei, e dou a minha concordância à maior parte desses pontos; e só no pormenor é que não concordo - em alguns pontos, reservando-me para na especialidade mais detalhadamente tratar deste caso. Votando esta proposta, eu espero também que a Assemblea Nacional a vote, pois que ela vai prestar mais um grande serviço à Nação pela publicação do Código Administrativo, absolutamente necessário para a reorganização da administração local.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa uma proposta de substituição da base XVII.
Essa proposta é a seguinte:
Proponho que a base XVII da proposta do Governo seja substituída pela seguinte:
Base XVII. - Em cada freguesia haverá um regedor, com um substituto, ambos nomeados pelo presidente da câmara municipal e por ele livremente demitidos, salvo nos concelhos urbanos de 1.ª ordem, em que a sua nomeação e demissão pertencem ao governador civil.
Sala das Sessões da Assemblea Nacional, 17 de Fevereiro de 1936. - O Deputado A. Cancela de Abreu.
O Sr. Presidente: - Não está mais ninguém inscrito.
O Sr. Carlos Borges: - Peço a palavra.
O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.
O Sr. Carlos Borges: - Sr. Presidente: confesso que não era meu propósito usar hoje da palavra na discussão da generalidade da proposta das bases do novo Código Administrativo, mas, à falta de outros Srs. Deputados, não tenho outro remédio senão fazer algumas considerações sobre este importantíssimo diploma. Faltam-me os conhecimentos gerais, falta-me o estudo completo e profundo do direito administrativo na sua parte teórica; tenho apenas em meu favor a larga experiência de muitos anos de exercício, primeiro de funções de administrador de concelho, depois de vereador de câmara municipal de 1.ª ordem, depois de auditor administrativo, e, finalmente, de advogado que nunca se desinteressou de assuntos desta natureza.
Claro que, para a discussão de um assunto na generalidade, são precisos conhecimentos de uma ordem mais vasta do que para a sua apreciação na especialidade.
Não posso nem quero fazer a história do desenvolvimento das instituições administrativas do nosso País, porque acaba de ser proficientemente exposta a esta Assemblea pelo ilustre orador que me precedeu.
Para o estudo, quer na generalidade, quer na especialidade, desta proposta de lei, muito auxílio nos trouxe o parecer da Câmara Corporativa elaborado pelo Sr. Dr. Fezas Vital, cuja autoridade neste ramo de direito é incontestavelmente enorme, pois S. Ex.ª é muito justamente considerado o maior de todos os tratadistas portugueses nesta especialidade. O Sr. Dr. Fezas Vital manteve na Universidade de Coimbra, onde sempre exerceu o sen cargo com muita elevação e proficiência, a tradição brilhantíssima do professor Dr. Magalhãis Colaço, e por isso não admira que nos tenha apresentado um trabalho tam brilhante.
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Assim, com um trabalho tam inteligentemente feito como é o da Câmara Corporativa, não há muito que dizer a respeito da generalidade da proposta que estamos apreciando. Há, porém, que discutir se a doutrina expressa nesse parecer, se harmoniza com as necessidades políticas e administrativas do momento e se as bases que o Governo propõe à Assemblea Nacional serão as mais oportunas para uma boa orgânica administrativa do País.
É, pois, sob este aspecto que eu vou considerar a proposta.
Começa a proposta pela classificação dos concelhos.
Evidentemente, Sr. Presidente, que, como aqui já foi frisado por vários oradores, a unidade administrativa de Portugal é o município, e podemos dizer também que é o factor quási imutável da administração local.
A junta de freguesia tinha um aspecto mais eclesiástico do que civil; a junta de freguesia do hoje é a junta de paróquia de há muitos anos. A junta geral de distrito não tem grandes tradições. As suas funções, ou, antes, parte das suas funções, passaram para os conselhos de distrito e destes para as comissões distritais. Simplesmente a junta geral de distrito deixou de ter uma função administrativa.
Em determinadas condições a comissão distrital julgava certos actos administrativos: tinha uma função tutelar e contenciosa. Os pequenos núcleos populacionais do País são agregados no município, que nesta proposta aparece urbano e rural e depois classificado em 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem.
Não conheço a necessidade da distinção entre o município urbano e rural. Só Lisboa e Porto têm uma feição caracteristicamente urbana; os outros concelhos não a têm.
Santarém tem, por exemplo, o núcleo urbano e a parte rural, e direi- que a maior parte do concelho é rural.
Esta distinção é absolutamente descabida, não está nas tradições da nossa legislação e não tem característica nenhuma especial, a não ser que a sugestão da classificação em municípios urbanos e rurais venha do Código de 1896, onde a Câmara Municipal de Lisboa era regulada por providências especiais, não por ser um grande aglomerado de população, mas porque os serviços da Câmara Municipal de Lisboa tinham uma complexidade maior do que nos outros municípios do País e ainda por ser a capital do reino.
Não vejo nenhuma razão, nem o parecer da Câmara Corporativa dá nenhum argumento seguro para esta classificação. Outro tanto não acontece com a classificação dos municípios em 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem. Esta, sim, é a verdadeira classificação.
Naturalmente os municípios urbanos pertencerão todos à categoria de 1.ª ordem e os restantes distribuir-se-ão, pela sua importância, nas outras categorias. Não vejo qual seja a vantagem desta dupla classificação -concelhos urbanos e rurais e concelhos de 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem sob o aspecto administrativo. É certo que o parecer da Câmara Corporativa procura justificá-la, mas não me parecem, como já disse, suficientemente seguros nesta parte os argumentos com que se pretende justificá-la. É, talvez, a preocupação do sinónimo, que até chega às bases do Código Administrativo. Se esta dupla classificação é como que um pleonasmo que não se compreende e se não justifica aqui, nem se justifica nas outras bases da proposta, por outro lado aparecem as freguesias também classificadas em de 1.ª, 2.ª e 2.ª ordem. Isto é novo, absolutamente inédito em Portugal, porque devo dizer a V. Ex.ª: em Portugal as freguesias eram todas... de 3.ª ordem...
E eram de 3.ª ordem, sem desprimor, sem com isto significar menos respeito por essas pequenas autarquias, porque a função administrativa da junta foi tudo quanto há de mais insignificante e menos eficaz.
A junta no que se ocupava era da fábrica da igreja no tempo em que não havia separação; tratava também da cobrança dum imposto de serviço braçal, que era mínimo, e dos caminhos vicinais, caminhos cuja determinação não é clara, porque ainda hoje não se sabe bem o que sejam. Pelo menos eu, que me tenho ocupado deste assunto e tenho procurado informar-me e fazer juízo seguro, confesso, ainda não encontrei, na prática, as características inconfundíveis desta via de comunicação.
Eram estas as funções da junta de freguesia.
Como vêem, para a administração local ó muitíssimo pouco, e, como disse a V. Ex.ªs, para mim as freguesias eram todas de 3.ª ordem.
A que vem esta distinção entre freguesias de 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem? Será para lhes dar maior importância nas eleições? Será para lhes dar papel de maior relevo do representação?
Pelas bases que aqui estão não descortino os motivos justificativos desta distinção, dada a escassez de atribuições.
Poderá parecer, Sr. Presidente, que eu subi aqui para tentar demolir sistematicamente esta proposta do lei, mas não me anima tal propósito; o que pretendo é que as bases apresentadas sejam aqui discutidas e apreciadas sobretudo com um critério de objectividade e de utilidade prática. O que pretendo é encarar esta proposta de lei, na sua aplicação, como o diploma que vai servir de base à orgânica administrativa e influir na vida e funcionamento dos organismos locais e, consequentemente, na marcha do Estado Novo.
E isso, Sr. Presidente, creio que é da máxima importância e merece bem que eu não esteja inteiramente de acordo com as bases apresentadas à apreciação da Assemblea Nacional.
Sr. Presidente: comecei por dizer que não era um teórico que subia à tribuna, era um prático, um casuísta, se quiserem, porque principalmente os advogados e os magistrados não são teóricos mas casuístas, e a teoria só excepcionalmente lhes serve para iluminar e facilitar a interpretação dos textos legais. É como homem que cultiva o direito positivo e vê os casos práticos que eu estou analisando esta proposta.
Vem na base III o conselho municipal e eu confesso a V. Ex.ª, Sr. Presidente, que também não percebi.
Procurei para o conselho municipal qualquer filiação histórica, qualquer origem jurídica, nas tradições da vida administrativa do nosso País, e nada encontrei, ou, por outra, encontrei alguma cousa parecida, mas muito longínqua, na lei n.° 88, de 7 de Agosto de 1913. Naquele período, posterior à revolução de 1910, não houve coragem, nem sabedoria, nem competência, nem amor à cousa pública para se publicar imediatamente um Código Administrativo completo. Os homens que fizeram o 5 de Outubro de 1910 não traziam na sua bagagem um simples projecto de Código Administrativo. Esse projecto era como que a parte mais banal do programa de todos os homens que ambicionavam a pasta de Ministro do Interior. Todos os partidos, ao subirem ao Poder, tinham pronto a servir o seu Código Administrativo.
Creio que depois de 1910 chegou a haver um projecto de Código Administrativo apresentado por uma figura eminente da República, por um grande homem de bem, o Dr. Jacinto Nunes, que, como todos os homens de bem, imbuídos de idealismo, julgava a vida administrativa do País através da vida administrativa do seu concelho de Grândola.
Imaginava que todas as pessoas administravam bem os seus concelhos, como ele administrava o seu. Por isso era nitidamente descentralizador. O Código não vingou, e ficámos então naquele regime admirável da lei n.º 88, com duas câmaras. A câmara municipal tinha duas câmaras. Havia o Senado e a comissão executiva, e
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daqui resultava este caso curioso: é que em alguns concelhos não havia gente para organizar o Senado, e aqueles que eram chamados paru o constituírem não sabiam absolutamente nada do quo iam fazer.
Havia depois a comissão executiva, que era o escol do Senado. É claro que, praticamente, quem governava era a comissão executiva. O Senado nunca teve uma função útil, nunca imprimiu uma directriz à administração municipal, nunca se impôs aos chefes políticos e aos directores espirituais e políticos dos respectivos municípios. A sua acção foi absolutamente negativa, com este gravíssimo inconveniente: ser um Senado constituído por pessoas absolutamente incompetentes.
O conselho municipal vai ter, por esse País fora, a sorte inglória do senado municipal, com quem se parece um poucochinho.
Sr. Presidente: em Portugal não há em muitos concelhos aquele número de pessoas suficientemente idóneas, intelectualmente, para desempenhar as funções administrativas. O conselho municipal é assim uma espécie de Senado, que, além das suas atribuições marcadas na base m, começa por eleger os vereadores da câmara municipal e respectivos substitutos.
Veja V. Ex.ª a importância que tem este conselho. Entre outros poderes tem o de «revogar os mandatos dos vereadores».
Leu.
De forma que o conselho municipal exerce uma função melindrosíssima, como é esta de revogar o mandato dos vereadores; este conselho municipal fica sendo um poder soberano do próprio município.
A câmara é delegação sua, porque não ó eleita: é nomeada por uma entidade que pode revogar-lhe o mandato dos vereadores. Isto é o que está na base III.
Leu.
Quere dizer que aquele vereador municipal que em determinado momento não esteja de acordo com os seus colegas e tenha de defender um princípio que possa ser mais equitativo e vantajoso para o interesse comum, mas que incorra no desagravo do presidente, é posto fora da câmara. Para isso basta que se recorra ao conselho municipal.
De forma que temos aqui a câmara municipal à mercê de outro organismo que a Constituição não previu e a que são atribuídos poderes quási discricionários. Quando outros defeitos não tivesse, bastava este para eu ter de me pronunciar contra tal conselho.
Preferia uma câmara municipal com reduzido número de vereadores, com atribuições bem certas, bem determinadas, com. responsabilidades correspondentes às suas atribuições e devidamente fiscalizadas.
Mas a fiscalização não pode ser exercida por um conselho que, além de outros poderes, tem ainda o de mandar embora os vereadores.
Há nesta proposta uma outra innovação que eu tenho de considerar sob dois aspectos, que é a de o presidente da câmara ser nomeado pelo Governo e a de ser remunerado.
A nomeação do presidente da câmara é uma violação do princípio da eleição.
Se o presidente é nomeado, evidentemente que não
é eleito.
Se um dos vogais da câmara, precisamente o que dirige os seus trabalhos « executa as suas deliberações, não é escolhido por eleição, parece-me que a pureza do princípio constitucional está um pouco comprometida.
Admito, por várias razões de oportunidade política, que o presidente da câmara municipal seja eleito pela própria câmara, devendo esta eleição ser homologada pelo Governo.
Quero transigir com a base, admitindo esta fórmula.
Mas o presidente da câmara deve ser um dos vereadores eleitos. O Governo pode discordar da escolha e recusar-lhe a sua homologação. Nesta hipótese a vereação teria de escolher outro presidente. E só no caso de nenhum dos vereadores ser idóneo se estabeleceria uni outro princípio, como seria o de uma nova eleição da câmara municipal.
Uma câmara que não tenha uma só pessoa com a idoneidade necessária para assumir a sua presidência não tem razão de existir.
Outro ponto importante é o da remuneração aos presidentes das câmaras municipais.
Concordo, em certa medida, com o parecer da Câmara Corporativa.
Há municípios cuja administração é tam complexa, que demandam tanta atenção e cuidado e actividade, que o presidente da câmara ou tem de se alhear inteiramente dos seus negócios particulares para se consagrar aos negócios municipais, ou tem de sacrificar os negócios municipais aos seus interesses particulares.
E justo, portanto, que os presidentes de municípios com estas responsabilidades, como, por exemplo, em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Viseu e Évora, recebam uma remuneração pelo seu trabalho, a título de indemnização pêlos prejuízos que sofrem na sua vida privada.
Quanto aos outros concelhos, reputo a remuneração perigosa, inconveniente e até contraproducente, porque o lugar de presidente da câmara vem a ser disputario principalmente pêlos desempregados, pêlos falhados e pêlos meninos bonitos, que porventura tenham boa protecção dos gros bonnets da política local, e isso, Sr. Presidente, é profundamente revoltante e imoral.
O presidente da câmara pago tem além disso outro defeito: é tirar positivamente ao cidadão que ama a sua terra, que se consagra dedicadamente ao seu serviço, o estímulo do prazer espiritual de bem servir, porque fica sempre marcado com a suspeita de que não serviu a sua terra, mas serviu pelo ordenado que recebe.
Isto, Sr. Presidente, também tem a sua influência moral.
Há na presidência da câmara, como a base pressupõe, quanto a mim, um defeito gravíssimo.
Diz-se no relatório da Câmara Corporativa: cada vez é mais complexa a vida dos municípios, cada vez são mais embrulhados os seus negócios, cada vez se torna mais necessário que um homem de capacidade è de boa vontade esteja atento aos vários ramos da sua administração.
Pois, é nesta altura, Sr. Presidente, quando se reconhece que a vida municipal se complica, se embaraça, pela multiplicidade de serviços que estão inerentes às câmaras, que às funções de presidente se ajuntam as atribuições de administrador do concelho.
Foi um erro gravíssimo, Sr. Presidente, suprimi] administrações de concelho ...
O Sr. Águedo de Oliveira (em aparte): - Não apoiado! . ...
O Orador: - Vou explicar a V. Ex.ª porque foi um erro grave, e um erro tanto mais grave que se pensou fazer com essa supressão ama grande economia, porque se suprimiram os lugares da administração, mas, passados poucos meses, não subsistia o administrador do concelho, mas subsistia uma secção administrativa da câmara por onde transitavam todos os funcionários das administrações de concelho.
A câmara municipal ganhou alguma cousa com isso?
Nada ganhou.
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A câmara municipal, que ficou com esses serviços, ficou também com os empregados, que faziam o serviço das administrações de concelho e da câmara. Ganhou, apenas, em confusão; mas utilidades práticas não havia nenhumas.
Os administradores de concelho deixaram de receber vencimentos; mas, para prover os lugares, foi necessário recorrer a funcionários reformados e a pessoas que só por favor e com sacrifício desempenhavam e desempenham a função.
Dir-me-ão: os administradores de concelho eram autênticos agentes eleitorais, eram caciques, eram delegados do Poder Central, que exerciam poderes violentos, discricionários, para preparar eleições e até muitas vezes falsificar resultados eleitorais. Realmente, eles tinham esses defeitos, mas para coagir um organismo não é preciso suprimi-lo, basta aperfeiçoá-lo.
O que o Governo pretende com os presidentes das câmaras municipais - diz - é uma ligação entre os municípios e o Poder Central, e ao mesmo tempo uma fiscalização mais activa e mais persistente na administração das autarquias locais. Ora eu lembro que talvez fosse muito mais útil e muito mais prático manter o administrador de concelho com a classificação de 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem, tendo um ordenado correspondente à ordem do município, tendo nomeação vitalícia e tendo acosso por antiguidade ou distinção, mas em todo o caso sendo um magistrado administrativo, licenciado em direito, que não estivesse à mercê dos Governos ou dos Ministros. Assim teríamos a moralidade na administração municipal, porque o administrador de concelho, se fosse um magistrado nomeado nas condições que apontei, não iria pactuar com o presidente da câmara e com os vereadores, nem deixaria que se praticassem ilegalidades ou arbitrariedades; ele seria o fiscal do presidente da câmara e dos actos do município! Como exerceria esta função? De uma maneira muito simples. A câmara municipal não podia funcionar som estar presente o administrador de concelho, que não tinha voto, mas quo ora obrigado a declarar no fim das actas das respectivas sessões se concordava ou não com as deliberações tomadas. No caso negativo o secretário da câmara enviaria logo ao tribunal administrativo cópia das deliberações contra as quais o administrador pusera o seu veto.
E, se o tribunal administrativo não julgasse a deliberação num determinado prazo, considerar-se-ia válida.
O Sr. Cancela de Abreu: - Quem seria nesse caso o delegado do Governo junto dos municípios?
O Orador: - O administrador do concelho.
município tem vida própria, tem funções estabelecidas na lei; simplesmente tem de ser fiscalizado e a ligação entre o Governo e o município é feita pelo administrador do concelho.
Uma voz: - Mas os presidentes das câmaras já foram de nomeação do Governo.
O Orador: - Quando eram presididas pelo juiz de fora ou pelo juiz ordinário. Mas isso era no tempo em que a função judicial e administrativa, em que a jurisdição e a competência não estavam ainda bem definidas e determinadas.
Quando essas funções se definiram e precisaram aqueles magistrados deixaram de intervir na vida municipal.
Esta é a lição dos factos, esta é a lição da história.
O Sr. Águedo de Oliveira (interrompendo): Pelo visto V. Ex.ª é contra todos os chefes responsáveis ...
O Orador: - Não, Sr. Doutor. O que eu entendo é que há poucas pessoas capazes de serem chefes responsáveis. E quando aparece alguma, com todas as qualidades de um verdadeiro chefe, sou-lhe absolutamente dedicado, com cegueira, com abdicação quási completa da minha liberdade de espírito e até da minha independência de cidadão.
Mas tenho das fraquezas humanas uma noção talvez um pouco diferente da de V. Ex.ª, porque disponho da experiência de uma idade um pouco avançada.
V. Ex.ª ainda não lidou de perto com a política local, porque, se a conhecesse a fundo, como eu, havia de notar que os homens têm uma tendência pronunciada para o personalismo, para a prepotência o para o abuso do poder.
E a maneira de evitar a prepotência está exactamente na diferenciação de funções.
O presidente da câmara tem por missão dirigir superiormente o município, ao passo que o administrador de concelho é um agente do Poder Central e tem a seu cargo inúmeros serviços do polícia, de estatística, de recenseamento, de fiscalização, etc.
O Sr. Águedo de Oliveira (interrompendo): - Sem querer, V. Ex.ª está a justificar a existência duma entidade de formação profissional à frente das câmaras . . .
O Orador: - A frente das administrações dos concelhos é que é. Eu quero uma magistratura com acesso aos lugares de secretários gorais, de auditores administrativos e até ao Supremo Tribunal Administrativo, por concurso, evidentemente. O que eu quero ó a formação de técnicos, quo vão acompanhando a vida administrativa nas suas várias modalidades, o isso só se pode fazer com uma magistratura administrativa, que não está aqui prevista nesta proposta de lei. Não sei se V. Ex.ªs repararam nisto ... A proposta não se refere ao contencioso administrativo.
O Sr. Mário de Figueiredo (interrompendo): - Isso é porque já está organizado, havendo até uma legislação especial a tal respeito. Desculpe-me V. Ex.ª esta interrupção . . .
O Orador: - Gosto imenso das interrupções de V. Ex.ª, porque esclarecem os assuntos e não atrapalham ninguém ...
O Sr. Mário de Figueiredo: - Deus me livre da idéa de atrapalhar . . .
O Orador: - Não atrapalham ninguém, e muito menos a mim.
O Sr. Mário de Figueiredo: - O contencioso administrativo foi organizado pela actual situação ainda recentemente e naturalmente não se pensa em modificar já o que foi determinado. Por isso mesmo nessas bases não se pensou sequer em pôr mais um problema que já está resolvido . . .
O Orador: - Ex.ª dá-me licença para uma pregunta?
O Sr. Mário de Figueiredo: - Perdão, eu é que pedi licença para interromper V. Ex.ª
O Orador: - Preguntar a um mostre é sempre um grande atrevimento. V. Ex.ª entende que o Código Administrativo fica completo se não contiver a orgânica do contencioso administrativo?
Peço a V. Ex.ª que me responda . . .
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O Sr. Presidente:- V. Ex.ª dá-me licença?... O Sr. Dr. Mário de Figueiredo já respondeu. Ele já disse que o que respeita ao contencioso administrativo não se altera neste diploma.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Se V. Ex.ª me pregunta se num código ao lado da organização do direito substantivo deve haver preceitos de direito com carácter adjectivo, e portanto se nesse diploma devem figurar disposições referentes ao contencioso administrativo, V. Ex.ª põe um problema de ordem académica e não política. Eu não discuto isso; discuto se realmente no novo Código Administrativo deve ou não figurar a organização do nosso contencioso administrativo, quando é certo que a actual situação ainda recentemente publicou um diploma referente a esta matéria. E por isso, quando V. Ex.ª me diz que não há uma base nesta proposta que se refira ao contencioso administrativo, eu dou-lhe esta explicação, que dei a mim próprio quando fiz a leitura desta proposta em discussão: ó porque o contencioso administrativo foi organizado ultimamente por esta situação e pensa-se naturalmente que está bem organizado. Ao publicar-se o Código Administrativo, não se tem mais do que transplantar deste modo, sistematizando e conservando aqui as respectivas disposições.
O Orador: - Mas isso não consta da proposta. E assim não sabemos se no Código serão insertos os preceitos vigentes sobre contencioso.
E a propósito direi que V. Ex.ª não ignora o que foi nos últimos dezasseis anos a vida atribulada do contencioso administrativo.
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª está falando há quarenta e cinco minutos. A hora vai adiantada. V. Ex.ª deseja terminar hoje as suas considerações ou ficar com a palavra reservada?
O Orador: - Tenciono ainda demorar uns quinze minutos. Se V. Ex.ª não visse inconveniente, ficaria com a palavra reservada para amanhã.
O Sr. Presidente: - Nesse caso, fica V. Ex.ª com a palavra reservada.
Amanhã haverá duas sessões: uma na parte da manhã, que começará às 10 horas, e outra na parte da tarde, se começará às 15 horas e 30 minutos. A ordem do ia será a continuação do debate de hoje.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas.
O REDACTOR - Costa Brochado.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA