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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124

ANO DE 1937 13 DE ABRIL

SESSÃO N.º 122 DA ASSEMBLEA NACIONAL

Em 12 do Abril

Presidente o Exmo. Sr. José Alberto dos Reis

Secretários os Exmos. Srs.Álvaro Henrlques Perestrelo de Favlla Vieira.
Pedro Augusto Pinto da Fonseca Botelho Neves.

SUMÁRIO: - Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 15 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi aprovado, com emendas, o último número do Diário das Sessões.
Leu-se o expediente.
O Sr. Deputado Schiappa de Azevedo enviou para a Mesa um requerimento.
Foi negada autorização para a Sr.ª Deputada D. Maria Guardiola depor numa sindicância.
O Sr. Presidente comunicou que foram enviadas à Mesa as Contas Gerais do Estado referentes aos anos de 1932-1933 e 1933-1934.

Ordem do dia. - Prosseguiu o debate, na generalidade, sobre a proposta de organização corporativa da agricultura, tendo usado da palacra os Srs. Deputados Mário de Figueiredo, Correia Pinto e Garcia Pereira.

O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 2 minutos.

GAMARA CORPORATIVA. - Parecer acerca do decreto-lei n.º 27:490, que modifica a constituição do Conselho Superior de Viação.

Srs. Deputados presentes à chamada, 50.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão, 5.
Srs. Deputados que faltaram à sessão, 18.

Srs. Deputados que responderam a chamada:

Abílio Augusto Valdez de Passos e Sousa.
Alberto Eduardo Valado Navarro.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Alfredo Delesque dos Santos Sintra.
Álvaro Freitas Morna.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Augusto Aires.
António Augusto Correia de Aguiar.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Pedro Pinto de Mesquita Carvalho Magalhãis.
António Rodrigues dos Santos Pedroso.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Leal Lobo da Costa.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto Cancela de Abreu.
Augusto Faustino dos Santos Crespo.
D. Domitila Hormizinda Miranda de Carvalho.
Eduardo Aguiar Bragança.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Correia Pinto.
Francisco José Nobre Guedes.
Francisco Manuel Henriques Pereira Cirne de Castro.
Francisco Xavier de Almeida Garfëtt.
Henrique Linhares de Lima.
João Garcia Pereira.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Diniz da Fonseca.
Joaquim dos Prazeres Lança.
Joaquim Rodrigues de Almeida.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Alberto dos Reis.
José Dias de Araújo Correia.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
Júlio Alberto de Sousa Schiappa de Azevedo.
Luiz Augusto de Campos Metrass Moreira de Almeida.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Pestana dos Reis.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário de Figueiredo.
Pedro Augusto Pinto da Fonseca Botelho Neves.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Vasco Borges.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

António Hintze Ribeiro.
José Luiz Supico.

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José Saudade e Silva.
Juvenal Henriques de Araújo.
Querubim do Vale Guimarãis.

Srs. Deputados que f aliaram à sessão:

Alberto Cruz.
Alberto Pinheiro Torres.
Angelo César Machado.
António de Almeida Finto da Mota.
Diogo Pacheco de Amorim.
Domingos Garcia Pulido.
Fernando Teixeira de Abreu.
João Antunes Guimarãis.
João Augusto das Neves.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Moura Relvas.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Queiroz e Lencastre.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Manuel Fratel.
D. Maria Cândida Parreira.
Miguel Costa Braga.
Sebastião Garcia Ramires.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada. Eram 16 horas e 8 minutos. Fez-se a chamada.

O Sr. Presidente:-Estão presentes 50 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 15 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário. Se algum Sr. Deputado deseja fazer qualquer rectificação, pode pedir a palavra.
Pausa.

O Sr. Presidente: - No Sumário há um erro tipográfico que é necessário corrigir. Onde diz «O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 6 horas e 14 minutos», deve ser «O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas o 14 minutos».
Como nenhum Sr. Deputado pede a palavra sobre o Diário, considero-o aprovado com esta alteração.

Telegramas

A direcção do Automóvel Clube de Portugal, interpretando o sentir unânime dos automobilistas portugueses, endereça a V. Exa, com os mais respeitosos cumprimentos, a expressão do maior reconhecimento pela aprovação da proposta de lei n.º 142.
Sindicato Agrícola do Mirandela, em nome lavoura região, perfilha inteiramente exposição V. Ex.ª dirigida Liga Agrária Norte.
Presidente, Doutel Andrade.

Dos comerciantes do concelho de Anadia, pedindo que seja suspensa a deliberação da Câmara Municipal que fixa já para o próximo domingo o encerramento do comércio daquele concelho, emquanto tal medida não for extensiva aos concelhos vizinhos de Mealhada e Oliveira do Bairro.
Assina, pelos comerciantes do concelho de Anadia, Gemeniano de Sá.

O Sr. Presidente: - Comunico agora à Assemblea que foram enviadas à Mesa as Contas Gerais do Estudo referentes aos anos de 1932-1933 e 1933-1934. Vou enviá-las à comissão respectiva.

Está na Mesa um podido do autorização para que a Sr.ª D. Maria Baptista Guardiola seja ouvida num processo do sindicância, como testemunha.
A Sr.ª D. Maria Guardiola informa-me de que não tem conhecimento de factos que possam relacionar-se com este processo, e, por isso, proponho que seja negada a autorização.
Foi aprovado.

O Sr. Schiappa de Azevedo: - Peço a palavra!

O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.

O Sr. Schiappa de Azevedo: - Sr. Presidente: pedia palavra para mandar para a Mesa o seguinte requerimento :

«Roqueiro me sejam fornecidos os seguintes elementos, relativamente a cada um dos contingentes de 1934 e 1935:
a) Número de contribuintes da taxa militar de cada D. R. R.;
b) Número de contribuintes que deixaram de satisfazer a 1.ª anuidade da taxa militar respectiva;
c) Número dos contribuintes que, tendo sido relaxados, satisfizeram a referida anuidade;
d) Número dos contribuintes que, tendo sido relaxados, foram julgados insolventes;
e) Número do autos levantados em cada D. R. R. até à presente data por transgressão do decreto n.º 21:247, de 17 de Maio de 1932;
f) Número dos mancebos que apresentaram o selo da Liga dos Combatentes da Grande Guerra a que o mesmo decreto se refere;
g) Número de mancebos que cumpriram a prisão por não terem apresentado o referido selo;
h) Qual o número de dias de prisão que, em média, cada transgressor tem de cumprir para pagamento do selo, imposto de justiça e mais quaisquer outras disposições legais;
i) Qual o gasto diário, médio, que o Estado despende com a alimentação de cada preso.

Sala das Sessões da Assemblea Nacional, 12 de Abril de 1937.-O Deputado Júlio Alberto de Sousa Schiappa de Azevedo».

O Sr. Presidente: - Se mais algum Sr. Deputado deseja fazer uso da palavra antes da ordem do dia, pode pedi-la.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Como mais nenhum Sr. Deputado pede a palavra, vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Estava inscrito na sessão passada sobre a ordem do dia o Sr. Deputado Mário de Figueiredo.

O Sr. Diniz da Fonseca: - Peço a palavra para mandar para a Mesa uma proposta de alteração às bases em discussão.

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É a seguinte:
Proponho a alteração das bases da proposta em discussão por forma a delas ficarem constando os seguintes princípios:

I

Os Grémios da Lavoura são núcleos regionais de produtores residentes numa ou mais freguesias do mesmo ou de diversos concelhos, agrupados de harmonia com as suas afinidades de vizinhança e mais fácil comunicação e com a homogeneidade de interesses nascidos do cultivo, colocação e consumo dos mesmos produtos.

II

Em cada freguesia haverá uma secção local do respectivo grémio j anexa à Casa do Povo, já fundada ou a constituir.

III

Os grémios poderão agrupar-se em uniões regionais ou em federações concelhias, distritais ou provinciais.

IV

Os grémios coordenarão toda a actividade agrícola dos associados, inclusive os ofícios ou mesteres complementares dessas actividades quando exercidas pelos mesmos associados.
Sala das Sessões da Assemblea Nacional, 12 de Abril de 1937. — Joaquim Diniz da Fonseca.
Também foi enviada para a Mesa durante esta sessão a seguinte proposta:
Base VII-A) ou aditamento à base VII
As federações provinciais podem, exclusivamente para os fins gerais indicados na base m, agrupar-se numa confederação unitária.
Francisco Cardoso de Melo Machado — José Penalva Franco frazão.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Mário de Figueiredo.

O Sr. Mário de Figueiredo:—Sr. Presidente: depois dos brilhantes discursos que sobro a proposta em discussão aqui foram pronunciados, vou usar da palavra para considerar, em primeiro lugar, o esquema dentro do qual creio que há-de ser desenvolvida a execução desta proposta de lei. E digo vou considerar em primeiro lugar o esquema dentro do qual suponho que virá a ser executada esta proposta, porque creio que algumas críticas que a essa proposta foram feitas, justificadas desde que o esquema da sua execução fosse um, o não são desde que o e.squema, dentro do qual a proposta em discussão venha a ser executada, seja outro.
Também, depois, me referirei aos grandes princípios básicos, fundamentos da ideologia do Estado Novo, que são agitados no notável relatório que precede a proposta e no notável parecer da Câmara Corporativa, parecer no qual, como sempre sucedo aos trabalhos que saem da mão do relator dessa proposta, a questão é apresentada com uma elegância, com um arranjo que logo desperta, em quem lê os pareceres, sentimento do natural sedução por eles.

Vozes: — Muito bem!

O Orador: — Claro que me refiro às linhas gerais do parecer, porque com certas partes desse parecer, e de-
certo das mais interessantes, eu não posso estar de acordo.
Postas estas considerações, que marcam a orientação daquelas que vou fazer, eu começarei então por pôr diante dos olhos da Assemblea o esquema dentro do qual suponho que virá a ser executada a proposta em discussão.
Ouvi, ao conversar sobre a proposta, a alguns dos Srs. Deputados, esta afirmação: trata-se da organização corporativa da lavoura; mas o problema é posto em termos tais que a organização corporativa da lavoura, como está esboçada, terá pernas e tronco, mas não tem cabeça.
Queria-se aludir ao seguinte: é que na organização corporativa, como está esboçada na proposta, aparecem organismos primários, com base no concelho, aparecem organismos secundários, com base na província, e ainda organismos secundários também, as uniões, com base na região agrícola, funcionando estas — as uniões — independentemente da província e do concelho.
É claro que eu não vou pôr diante dos olhos da Assemblea —porque é matéria que conhece, naturalmente, tam bem como eu— o esquema geral da organização corporativa, porque a Assemblea sabe que em baixo estão os grémios, com certas irradiações que não vale a pena considerar, depois, sobre os grémios, as federações ou uniões, e sobre as federações ou uniões estarão, quando começarem a constituir-se, as corporações. Provisoriamente, sObre as federações, aparecem, naturalmente, os organismos de coordenação, ou, se não aparecem os organismos de coordenação, aparece, precisamente a desempenhar as funções que hão-de ser atribuídas às corporações, o Governo, pela pasta competente.
É claro que o Governo também é um elemento futuro do esquema total da organização corporativa, porque é o Governo que há-de ser, atinai, o árbitro dos conflitos.
Bom. Este é o esquema geral da organização corporativa; e, ao ler-se a proposta, verifica-se que nela se encontram designados os grémios como elementos de organização corporativa—os grémios e as federações ou uniões.
Porque não se pôs mais nada?
Na proposta trata-se de organização corporativa; portanto, na proposta, efectivamente, o que cabia era a constituição, o modo do constituição e funcionamento dos organismos corporativos.
Na proposta, como em nenhum ramo da actividade económica ou social portuguesa, ainda não aparecem as corporações.
Elas, então, não está certa a critica que se faz à proposta do que ela se apresenta com membros e com tronco, porém som cabeça?
Em determinado sentido, está certa; no sentido de que ela não considera os organismos superiores do coordenação. Mas creio que a consideração desses organismos
que ainda não são corporativos, mas pre-corporati-vos— não é para a proposta, é para futuros decretos-
leis, nos quais essa constituição de organismos pre-corporativos seja feita.
Portanto, segundo creio, e nada há na proposta que se oponha a que seja este o esquema —e eu suponho poder afirmar que o pensamento do Governo sobre a matéria é esto—, o que está na proposta é a indicação dos organismos corporativos: grémios, federações e uniões.
O que funciona, emquanto se não constituem as corporações, sobre estes organismos corporativos? Funcionam, naturalmente, organismos do coordenação, organismos de coordenação dos que já estão constituídos, ou organismos do coordenação dos que venham a constituir-se.

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Como V. Ex.ª sabem —o ao facto são feitas referências no parecer da Câmara Corporativa — nós já temos organizados vários produtos da nossa actividade agrícola.
E, como V. Ex.ªs também não ignoram — isso resulta de uma das alíneas da base I, poderão excepcionalmente continuar organizados diferenciadamente certos produtos; o excepcionalmente» não significa que seja mantida, ao lado da geral, a organização, como existe, dos produtos já organizados diferenciadamente.
Eu vou esclarecer: existe em Portugal, por exemplo, a Federação dos Vinhos do Centro e Sul de Portugal. f; Pretende-se manter fora da organização corporativa da lavoura, tal como ostá desenhada na proposta, esta outra organização diferenciada, de maneira a que, ao lado de uma organização geral da lavoura, possam funcionar várias organizações pre-corporativas, especializadas como esta?
Não se pretende isto. De um modo geral, todos os produtos que estão organizados diferenciadamente passarão a estar organizados dentro daquilo que nesta proposta se apresenta, como organização geral da lavoura, e só em casos muito excepcionais —eu já ouvi falar nos vinhos do Porto e nos lacticínios—, só em casos muito excepcionais é que, ao lado da organização geral corporativa da lavoura, aparecerão organizações diferenciadas, que viverão, não dentro da organização geral, mas à parte. ,.;() que irá suceder, portanto? E que, constituídos os grémios, organizações unitárias da lavoura, constituídas as federações, o correspondente na província a estas organizações unitárias da lavoura, dentro dos grémios e dentro das federações se constituem
secções nas quais a organização se faz diferenciadamente. Estas secções têm no cimo um organismo diferenciado, para fazer a política do produto respectivo. De sorte que a organização, como está desenhada, funcionará assim: grémio, constituído pelos directores das várias secções, para tratar dos interesses que são comuns a todas as formas de lavoura na região em que desenvolve a sua actividade; dentro do grémio, a secção, a quem cabe fazer a política diferenciada de um produto. Por sobre a secção do grémio a secção da federação, por sobre a secção da federação o organismo pre-corpo-.rativo de coordenação económica, que é quem está a
dirigir a política do produto.
Aqui está, segundo creio, o esquema dentro do qual há-de mover-se a execução da proposta, e no qual a
organização indicada na proposta aparece, ao contrário
do que já ouvi dizer, com unia cabeça.
Julgo ter posto claramente o esquema, a que se
adapta perfeitamente a economia da proposta e dentro
do qual ela virá a ser executada.
Posto isto, vou então agitar e discutir alguns dos princípios contidos tanto no relatório da proposta como no parecer da Câmara Corporativa.
Trata-se da organização corporativa da lavoura, e, naturalmente, ao espírito do Ministro que subscreve a
proposta apareceu este problema: organização corporativa da lavoura corresponde, tal como aparece desenhada, a um sentido de economia liberal ou corresponde ji um sentido de economia socialista?
No relatório diz-se que os princípios .da proposta se afastam igualmente dos princípios da economia liberal e dos princípios da economia comunista. Daqui há que concluir que, se esses princípios se afastam igualmente da economia liberal e da economia socialista, é. que são a expressão de uma economia nova, de uma economia independente. Mas eu creio que, ao desenvolver-
se este pensamento, na afirmação concisa dos princípios animadores dessa economia nova, deixa de se fixar um que, no meu modo de ver, era senão essencial, pelo menos interessante ter-se fixado.
E é essencial, quando se não afirme, pressupor-se.
Diz-se no relatório que um desses princípios é o de que o homem é sujeito da actividade económica. Ô homem também é sujeito da actividade económica na economia liberal, e é objecto dessa actividade na economia socialista. Não se diferenciava com esta afirmação o sistema da economia nova do sistema da economia liberal. Para o diferenciar afirma-se, então, que o homem que aqui se considera é o homem no grupo e não o homem abstracto de que fala a economia liberal; e porque é o primeiro e não o segundo, não se trata da economia liberal, mas trata-se de um sistema de economia diferente. Q O que faltou acrescentar para que o princípio forte de uma economia diferente ficasse suficientemente marcado? Creio que foi isto: o Estado é sujeito da actividade económica.
O homem, na - economia corporativa, é sujeito da actividade económica, e, ao lado do homem, o Estado é também sujeito da actividade económica — e quem diz o Estado diz os grupos diferenciados, menores do que o Estado.
Ou se aceita a afirmação de que o Estado é um ente sujeito da actividade económica, ou dificilmente se pode compreender que é o homem, no seio do grupo, o sujeito dessa actividade e não o homem isolado da economia liberal.
Para esclarecer vou apresentar o mesmo problema num outro aspecto: no aspecto em que ele é posto pela Câmara Corporativa.
Pela Câmara Corporativa, sem que deixe de sentir-se — reconheço-o com prazer — o espírito, o sentido da economia corporativa contra a economia individualista, contra a economia socialista, a verdade é que se põe a questão em termos tais que, na lógica desses termos, está a idea da economia individualista. E ao estabelecerem-se os princípios filosóficos que animam certas conclusões, o problema aparece, contra a vontade seguramente de quem escreveu o parecer, como informado por princípios individualistas e não corporativistas.
Vou dizer porque agito a questão nesta tribuna, uma questão que parece não ter senão interesse de ordem académica. Eu agito-a porque creio que no princípio e no fim está .ª filosofia ; eu agito-a porque creio que no princípio e no fim estão os princípios basilares por que o espírito há-de dirigir-se ; e, neste período de transição, numa Assemblea como aquela em que nos encontramos, é indispensável que os verdadeiros princípios sejam focados, para evitar possíveis desvios e variações.
Certamente que estamos de acordo com a Câmara Corporativa no pensamento que animou o seu parecer; mas, V. Ex.ª, Sr. Presidente, há-de recordar-se do que se e?x:reveu no parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta ultimamente aqui discutida, relativa ao condicionamento das indústrias. Nesse parecer escreveu-se , qualquer cousa como isto: que a economia dirigida, agora e sempre, aparece como um remédio que se utiliza quando os princípios da economia liberal, por qualquer motivo de crise, se encontram doentes. A saúde é o funcionamento normal da economia liberal; quando esta adoece remedeia-se transitoriamente com a intervenção do Estado da economia dirigida.
É evidente que, sem querer discutir se esta é a boa ou a má doutrina, isto exprime um pensamento que contraria o pensamento do Estado Xovo.
O problema não é posto, neste parecer, nos mesmos termos.
E sente-se, através do parecer, que realmente o pensamento -da Câmara Corporativa é outro ; é o mesmo pensamento que a nós nos anima: é que o Estado corporativo não é um remédio do Estado liberal, é uma doutrina independente, não é uma doutrina ecléctica ou

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um termo médio entre a economia socialista e. a economia liberal. E uma doutrina independente, não uma doutrina ecléctica, porque se baseia num princípio diferente daquele que inspira a economia liberal e a economia socialista.
Mas, dizia eu, o pensamento é um; o princípio, porém, que serve de base ao pensamento da Câmara Corporativa é outro, e é este que creio não pode passar em julgado.
Eu peço desculpa se vou fazer alusão a uma velha querela medieval. Todos V. Ex.ª a conhecem, e certa» mente se lembram de que, por causa dela, se converteram as Universidades medievais, como diz um autor, em verdadeiros campos de batalha.
Eu só aludo a ela, sem fazer dela desenvolvimentos que são desnecessários numa Assemblea da categoria desta. Refiro-me à querela dos «cnominalistas» e dos «realistas». E eis os termos da querela: ^os universais são simples nomes ou são tam reais como os particulares? Noutros termos: £&ó o indivíduo é uma realidade ou há mais alguma cousa real sem ser o indivíduo? jjOs universais são reais ou são simples nomes?
Era bem. A posição do problema, no parecer da Câmara Corporativa, é esta:
Os universais são simples nomes. A sociedade, diz-se no parecer, o Estado, não é um ser; é um modo de ser. E como não podem conceber-se como formas de realidade senão o ser e o dever ser, e é evidente que o Estado não pertence à categoria do dever ser, também é evidente que, se não pertence à categoria do ser, não é uma forma de realidade. E um simples nome colectivo para designar uma soma de indivíduos, como rebanho designa uma soma de ovelhas. Realidade têm-na só os indivíduos. Se assim é, tudo se resolve pela soma algébrica, e, assim, é a maioria dos indivíduos que deve decidir. Estamos em pleno regime democrático. Se assim é, o equilíbrio deve resultar automaticamente dos movimentos livres de cada um. Estamos em pleno regime liberal.
Por isso, eu dizia que no parecer da Câmara Corporativa está enunciada uma afirmação que não pode ser perfilhada, porque conduz, contra a vontade de quem a escreveu, estou seguro, ao individualismo puro.
Estava naturalmente agora indicado que eu demonstrasse filosoficamente, se é permitido falar assim, que nem só o indivíduo é real; o Estado também o é.
Não vou fazê-lo.
Uma longa tradição mostra que as duas posições do problema são possíveis. Numa Assemblea que representa um princípio anti-individualista parece-me que a inclinação deve ser no sentido de aceitar aquela posição da questão, que não tem na sua sequência lógica individualismo puro.
Mas há uma cousa que se pode exigir: é que se lhe dêem indicações capazes de mostrar que o Estado, a
sociedade, é unia categoria do ser.
O Sr. João Amaral (interrompendo): — Eu não sói se V. Ex.ª identifica o Estado com a sociedade. No parecer da Câmara Corporativa cita-se, realmente, que todo o Estado é um estado de cousas, e não uma cousa.
V. Ex.ª levantou a questão em volta da idea de que
o Estado fosse um estado de cousas e não uma cousa?

O Orador: — Eu, como não creio que possa haver uma sociedade sem organização, seja ela qual for, quando digo sociedade digo Estado, num sentido muito lato, para abranger tanto o Estado moderno, como as formas primitivas ou menores.
Quando digo sociedade quero, pois, significar Estado.

(j Porque caminhou o parecer da Câmara Corporativa nesta orientação? Porque, oferecendo-lhe o conspecto do
mundo organizações em que o indivíduo é totalmente sacrificado ao Estado,, em que, no polo oposto -ao do parecer, a única realidade é a raça ou o Esindo, quis mostrar que a doutrina portuguesa não esmaga o homem e antes o nobilita, considerando-o como línico centro de erupção dos valores morais e como intangível nesse domínio que é o da consciência, embora noutros aspectos deva sacrificar-se ao bem comum.
Foi isto que, certamente, conduziu a Câmara Corporativa a pôr o problema nos termos em que o pôs. E cita a propósito a Câmara Corporativa uma qualquer passagem do Sr. Presidente do Conselho que, como sempre, não é uma passagem qualquer. Simplesmente a Câmara Corporativa foi muito além, nas suas afirmações, daquilo que escreveu o Sr. Presidente do Conselho, e o que eu leio na passagem do Sr. Presidente do Conselho é uma justa homenagem prestada ao indivíduo, ao homem, ao ser singular, e, embora isso se exprima menos ostensivamente, uma justa homenagem prestada ao Estado como ser.
Não escravização do indivíduo ao Estado. Diz-se nessa frase: nós não devemos ter empenho em transformar a sociedade num formigueiro de pessoas. Mas também não sujeição do Estado, que é um ente autónomo e com fins próprios.
a Pela sua alma, pela sua espiritualidade e destino, o homem é superior à Nação».
Restringe, portanto, a autonomia do homem àquilo que nele se apresenta como superior ao Estado, como superior à Nação e que não pode ser esmagado, ser calcado, pelo Estado.
Isso é o que respeita à sua alma, à sua espiritualidade e destino, e eu traduzo assim: é o que respeita ao mundo do dev&r ser, aos valores morais cujo ponto de erupção é precisamente a consciência individual.
Nesse ponto, o homem é superior à Nação e não se deve, como nos regimes totalitários, escravizá-lo ao Estado. Mas há outro domínio, dentro do qual a Nação, o Estado, é e não pode deixar de ser superior ao homem: é aquele em que se prossegue o bem comum.
O bem comum não é a soma dos interesses individuais, nem se confunde com eles. E um interesse diferenciado e autónomo, que, por isso mesmo, há-de ser realizado por um ente diferente dos indivíduos.
Se o bem comum se confundisse com o bem de cada um, era impossível o conflito de interesses, e a gente assiste ao conflito permanente. Cada um sente necessidade de constantemente se sacrificar à família, ao grupo, à Nação. A dificuldade está em saber quando é que o Estado, detentor da força, num caso de conflito, há-de sacrificar o interesse individual ao bem comum ou este àquele. Só a afirmação de que a moral é superior ao Estado poderá ajudar a resolver com justiça o conflito.

O Sr. Presidente: — V. Ex.ª está no uso da palavra há quarenta e cinco minutos; concedo-lhe mais vinte minutos para poder terminar as suas considerações.

Vozes: — Muito bem!

O Orador: — Muito obrigado a V. Ex.ª
Portanto, quando a intervenção do Estado está dentro do domínio próprio, não é supletiva, como não é supletiva a actuação do indivíduo.
Suo duas actividades igualmente legítimas. Neni é supletiva a acção económica do homem, nem é supletiva a acção económica do Estado. São duas actividades que se desenvolvem legitimamente, cada uma no seu campo próprio.
Eis o que me parece dever observar nesta parte, relativamente ao parecer da Câmara Corporativa, e eis o

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que me parece ser o sentido da solução da economia dirigida, da economia corporativa. Esse sentido deve ser este: não só o homem é sujeito da actividade económica; o Estado é também sujeito da actividade económica. A intervenção do Estado, como sujeito da actividade económica, não é excepcional, não é como um remédio ao mau desenvolvimento da actividade individual; é uma intervenção, direi, funcional. ^Mas, então como distingo a economia corporativa da economia socialista? Assim: é que, emquanto na economia socialista ou comunista o verdadeiro sujeito da actividade económica é o Estado, na economia dirigida ou corporativa é tanto sujeito o Estado como o indivíduo, pois considero a intervenção de um e de outro perfeitamente legítimas.
Mas, então, é uma economia ecléctica, que por um lado admite a concorrência, mas por outro admite a intervenção do Estado? <é com='com' de='de' aproxima-se='aproxima-se' alguma='alguma' sistema='sistema' num='num' individualista='individualista' bem='bem' do='do' sentido='sentido' contraditórios='contraditórios' sucede='sucede' também='também' lïão='lïão' aceita='aceita' tem='tem' princípio='princípio' como='como' progresso='progresso' concorrência='concorrência' interesse='interesse' colaboração='colaboração' forte='forte' organização='organização' aproximação='aproximação' cousa='cousa' na='na' está='está' desenvolvida='desenvolvida' aceita-se='aceita-se' independente='independente' espírito='espírito' que='que' direi='direi' deixar='deixar' socialista.='socialista.' individual.br='individual.br' uma='uma' dos='dos' privada='privada' se='se' socialista='socialista' então='então' essencial='essencial' dominam='dominam' realização='realização' ânsia='ânsia' não='não' mas='mas' primeiro='primeiro' ser='ser' a='a' necessário='necessário' porquê='porquê' emquanto='emquanto' e='e' xá='xá' é='é' propriedade='propriedade' admite.='admite.' o='o' superior='superior' elemento='elemento' aproxima.='aproxima.' pode='pode' mesquinho='mesquinho' egoísmo='egoísmo' cooperação.='cooperação.' economia='economia' humano='humano' defende='defende' corporativa='corporativa' da='da' princípios='princípios' comum='comum' porque='porque' base='base' liberal='liberal'> Economia corporativa não é, assim, um remédio à economia liberal, porque o seu princípio animador é essencialmente diferente. A economia corporativa não é um aspecto da economia socialista, porque admite e protege a propriedade privada. É um sistema independente que há-de triunfar definitivamente para bem de todos.
Tenho dito.

Vozes: —Muito bem!

O Sr. Correia Pinto: — Sr. Presidente: não tenho passado bem do saúde. Começo a sentir a ferrugem da velhice. Mas tinha uma grande vontade de tomar a palavra nesta discussão. Vou dizer-lhes porquê.
Aprecio imenso a convivência dos lavradores da minha terra. Gosto de falar com eles. Faz-me bem pôr a minha alma em contacto com a sua franqueza, com a sua sinceridade. Demais a mais tom sobro mim a vantagem de falarem por tentença*; ainda hoje, com efeito, os lavradores da minha torra falam a linguagem que falava Frei Luiz de Sousa.
Quero mostrar-lhes, pois, o interesse que tenho por elos, trazer ato esta tribuna o eco das suas queixas, das suas lamentações, prolongar até aqui o sou triste estado de alma.
Quando eu mo retirava da aldeia, nestes últimos dias de férias, VI ainda os trabalhadores entregues à sua faina do campo, o a alguém fiz esto comentário: que eles continuavam a sagrar um ritmo misterioso, dando realce à fecundidade o prosperidade da Pátria.
a proposta sobre o regime corporativo da lavoura interessa-me profundamente, o, devo dizê-lo sinceramente, essa proposta honra o Ministro que a subscreve, porque revela espírito corporativo, mentalidade corporativa, porque tem largueza, porque tem elasticidade e porque essa proposta vai de encontro a uma grande necessidade
do País. Ela tende a intensificar e a modernizar a agricultura em Portugal.
Desejaria até, se tanto fosse possível, fazer o que se tem feito na América: standardizá-la.
E, a propósito, não resisto à tentação de contar aqui o que li um dia na obra dum notável engenheiro americano.
Esse homem descreve, num livro muito interessante, a cultura da fruta na Califórnia.
É o caso do corporativismo português. Havia ali um terreno por onde passou um rio que mudou de curso, terreno que, pelas condições geológicas e climatéricas, servia extraordinariamente para a cultura da fruta. Imediatamente, por uma forma do corporativismo, alguns lavradores sindicais prepararam o terreno na extensão de alguns quilómetros, fizeram as plantações e depois esperaram que viessem as águas.
Mas, como V. Ex.ªs sabem, uma colheita de fruta pode perder-se dum momento para o outro: um arrefecimento de temperatura é o bastante. 4 E então o que fizeram eles? Estenderam uma rede de telefones por todo o terreno e disseminaram pelo pomar fogões de grande poder irradiante. Se acontecia haver uma baixa de temperatura em qualquer ponto do pomar, funcionava imediatamente a rede dos telefones e os lavradores acorriam logo com os fogões para contrabalançar o efeito do arrefecimento do ar.
Fez-se depois a colheita e o transporte pelos processos mais modernos. O transporte, sobretudo, fez-se de tal sorte que a fruta chegava a Nova York como se nesse dia tivesse sido colhida do pomar—fresca e agradável.
Meus senhores: como disse, a proposta merece todo o meu elogio e é conveniente que se olhe para a agricultura, porque ela tem hoje em todos os países do mundo uma importância essencial; tem importância nos países que são tradicionalmente agrícolas e tem ainda importância noutros países, porque esses, atendendo à evolução económica o às surpresas que nos dá a vida económica moderna, começam a lançar as suas atenções para a agricultura e a procurar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da indústria agrícola.
Como a proposta, li naturalmente o parecer, e esse parecer recomenda-se singularmente ao meu espirito.
O parecer recomenda-so efectivamente por atribuir ao valor económico o verdadeiro lugar que ele deve ter nas escalas dos valores, como ainda há pouco aqui disse, em brilhantes palavras, o Sr. Dr. Mário de Figueiredo. Recomenda-se ainda o parecer por dar o relevo merecido à pessoa humana, que tem fins a realizar que transcendem os próprios fins do Estado.
Recomenda-se o parecer também pelo conceito que tem do Estado, que não pode ser totalitário, pois o Estado, quando se sobrenaturaliza, desnatura-se.
E chega ao ponto de disputar-se aos pais a posse dos filhos, e chega a ponto de disputar-se à Igreja o domínio das consciências.
O parecer recomenda-so ainda por fazer ver que a sociedade, como condição necessária da existência humana, tem direito a fazer ao indivíduo exigências impostas pelo bem comum.
Qual é o juiz num conflito entre o indivíduo e o chamado bem comum ou bem do Estado?
Eu li, há pouco, um livro de Balzac que faz um re-trato muitíssimo parecido com o Sr. Dr. Oliveira Salazar, nosso Presidente do Conselho, onde descreve o que deve ser um homem político.
Diz Balzac: «o homem político deve ter lá dentro um outro homem, frio, imparcial e sereno, que em todas as conjunturas lhe aponte e mostre a regra da moral».
O juiz deve ter moral, deve ter a moral cristã, sobretudo no Estado Novo.

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Meus senhores: é preciso dizê-lo, e o parecer da Câmara Corporativa atírma-o: r—O homem, como diz o Evangelho, não vive só de pão. Se tudo se resumisse ao pão, à lata pelo pfto, não valia a pena viver.
Se o homem vivesse só de pão seriam permitidas todas as brutalidades, todas as violências, para adquirir esse pão.
Se o homem vivesse só de pfto não seriam precisas igrejas, não seriam precisas academias, não seriam precisas escolas, não seriam precisos monumentos, não seriam precisas a fé, a arte e a ciência.
O homem não é apenas um animal que come. Vejam o que acontece em Espanha: dum lado está o pão, que é a chacina; do outro lado está mais alguma cousa—está a cruzada. Aí vive alguma cousa de mais belo, que é a simplicidade, a alma da civilização ocidental, da civilização cristã.
A igreja não pode deixar de abençoar o corporativismo.
Nós, dentro da igreja, rezamos juntos; dentro da igreja adoramos juntos; dentro da igreja caminhamos juntos para o mesmo destino. Nós fazemos parte de um grande corpo, o corpo místico de Cristo; andamos irmanados pelos mistérios da criação e juntos caminhamos. É por isto que as corporações são uma florescência espontânea da cristandade.
Voltamos agora a ela, e o Estado começa a fazer renovar o seu belo acto de fé, e quere voltar a ser cristão.
Meus senhores: costumamos fazer o elogio da lavoura e dos lavradores conforme as palavras modernas; vamos agora fazê-lo com palavras antigas. Reuni uma colecção de leis extravagantes, algumas do século xvii e outras do século XVHI.
No século XVIII diz-se isto: o Estado dos lavradores é o mais importante do País, porque dele resulta não só a abundância dos frutos, mas também a maior parte dos produtos. E a outra lei é legítima, a característica é recente: deve conceder-se aos lavradores todos os favores e todos os privilégios possíveis. É verdade que uma lei diz que a agricultara não dá nobreza. Mas dá a nobreza moral, que é a primeira de todas as nobrezas. O lavrador é ainda em Portugal um homem cheio de virtudes, tem virtudes admiráveis, virtudes de trabalho, de economia, perseverança e de honradez; tem um grande amor à terra e à sua profissão.
4 Que seria do País e de nós todos se os lavradores não fossem —digamos assim— um grupo profissional como é?
- O lavrador tem grandes virtudes. Depois do espólio que o Estado fez da propriedade da Igreja, o lavrador que lavra por essas terras ainda hoje sustenta o púlpito, mantém a alegria dignificante e, ao mesmo tempo, calmante da romaria.
O lavrador reparte o seu pão com os pequenos, com os órfãos, com os pássaros e com os peregrinos; ele tem em sua casa o agasalho.
Na minha aldeia verifiquei agora que andam todos os dias a esmolar pelas portas quarenta o duas crianças, filhos de trabalhadores, e o pequeno lavrador, que não tem pão para todo o ano, dá todos os dias pão a estas crianças, o que é comovedor. Por isso, repito, o lavrador tem grandes e preciosas virtudes.
Dizem contra o lavrador: o lavrador é rotineiro; e há até quem olhe para ele com indiferença e desdém.
é E porque é o lavrador rotineiro? O lavrador cultiva a terra como a viu cultivar, cultiva-a com o amor do seu esforço, como quem cultiva o seu pão; cultiva a terra como a viu cultivar pelos seus pais e avós.
Praticamente o técnico poucas vezes tem chegado ao pé dele, e não tem recursos para ensaiar culturas novas, para adquirir a utensilagem moderna, para adquirir adubos químicos, para se lançar numa aventura.
É isto doutrina velha? Parece-me que ele, até. certo ponto, tem razão. V. Ex.ªs sabem bem que Garrett, num dos seus famosos livros, diz que a cultura moderna e intensiva altera a constituição dos frutos da produção. E nós hoje não somos alimentados como eram os nossos maiores. Isso tem uma influência enorme na nossa fisiologia.
E eu pregunto então: a rotina considerada sob este aspecto não será um instinto da conservação e da energia da raça?
Mas está bem. E bom que o lavrador encontre auxilio e amparo no corporativismo, e encontre assistência moral, e encontre assistência financeira, e encontre assistência técnica; é bom que ele encontre dentro da corporação, do grémio, o auxilio de que necessita e que neles se vá libertar de três encargos para ele dolorosos; que ali se vá libertar da baixa e da alta dos preços, dos impostos, e dos juros exagerados que lhe pede ordinariamente a usura.
Mas quero lembrar o seguinte: é que procurem não dar à organização corporativa um aspecto excessivamente burocrático, porque esse aspecto desagrada profundamente ao lavrador.
O lavrador não pode sofrer que o afrontem ou o enredem e o ilaqueiem com impostos, licenças, escritos, fiscalizações e multas. Isto desgosta-o imenso.
O lavrador tem um grande amor à terra, pela qual é capaz até de se deixar matar, assim como um grande amor à ordem e à paz social, e desgosta-se muito quando porventura promulguem leis que traduzam para si um encargo.
Eu sei, meus senhores, a dificuldade com que essa gente vive, porque, não sendo rico, já lhe tenho emprestado pequenas quantias para fazer faço à sua situação.
Por isso torno a repetir: peço que não seja dado um aspecto excessivamente burocrático à organização corporativa.
Eu, meus senhores, tenho ouvido por esse País fora prestar homenagem ao Sr. Dr. Oliveira Salazar quando a ele se referem, mas a que mais me comoveu é aquela que o pequeno lavrador .presta a S. Ex.º quando, porventura, tem qualquer razão de queixa sobre a aplicação duma lei, em que diz: «Salazar com.certeza não sabe disto; se ele soubesse, por certo que não o permitiria». Esta frase é para mim a homenagem mais bela que se pode prestar a Salazar.
É preciso ainda, meus senhores, que o lavrador não seja onerado com mais impostos, porque, sobretudo o pequeno lavrador, não pode nem deve pagar mais. Disse-se isto em tempos e é bom que se torne a dizer.
Eu estou em contacto com o pequeno lavrador e sei quam difícil e dolorosa é a sua vida e até onde vai o seu sacrifício para pagar as contribuições ao Estado.
E sei até onde vão os sacrifícios que ele faz para pagar as suas contribuições.
O Sr. Carlos Borges: compreende isso.
Mas há muita gente que não

O Orador: — Há uma cousa que peço também a quem estiver lá no alto e, tenha de superintender nestas cousas: é que tenham mais contemplações com o pequeno lavrador.
Não se deve chamar o lavrador para aqui e para ali, a qualquer hora, porque o seu tempo é singularmente precioso. Uma hora, um determinado dia podem decidir duma colheita, se o lavrador se descuidar.
É preciso, pois, ter contemplações com ele, e fazer-se como os antigos iaziam, mandando que as câmaras municipais andassem pelas aldeias colhendo o voto e o parecer da gente do campa, quando -esse voto e esse parecer eram exigidos por. lei.

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Era isto o que eu tinha a dizer. Pesava-me na consciência; era uma promessa que tinha tomado para comigo e uma promessa que tinha feito aos pequenos lavradores da minha terra.
Termino declarando que aprovo a proposta na generalidade, e que desejo muito que dentro dela possam conciliar-se inteiramente o interesse dos indivíduos e o grande interesse nacional do Estado.
Tenho dito.
O orador não reviu.

Vozes: — Muito bem.

O Sr. Garcia Pereira: —Sr. Presidente: longe estava eu de usar da palavra neste momento. Todavia, circunstâncias um pouco ligadas ao que se tem passado nesta Sala obrigam-me a subir à tribuna para fazer algumas considerações.
Devido a circunstâncias particulares não tive ocasião de fazer um estudo aprofundado desta proposta de lei. Só ontem a li com alguma atenção, durante a viagem que fiz da minha terra adoptiva até Lisboa.
Não trago, por isso, um discurso estudado. Apenas pretendo fazer algumas considerações que o momento me oferece.
Ouvi as palavras do ilustre Deputado e distinto professor Sr. Mário de Figueiredo, e. as suas considerações, que poderemos considerar filosóficas e doutrinais, calaram no meu espírito.
De facto, essas considerações têm o seu reflexo na economia que nós defendemos. Quere dizer, as considerações que S. Ex.ª sob o ponto de vista doutrinal fez aplicam-se à economia, e, segundo elas, nós poderíamos fazer uma classificação; assim, teríamos que nos Estados liberais a economia seria propriamente uma economia individual, uma economia em que o Estado não intervém, uma economia sofrendo daquilo a que se chama o hedonismo individual.
Teríamos, ao mesmo tempo, a economia dos Estados totalitários, que sofrem de outro hedonismo, que é chamado o hedonismo da massa, e é propriamente a economia dirigida.
O Sr. Dr. Mário de Figueiredo creio não ter abordado perfeitamente este aspecto particular, porquanto a nossa economia não é uma economia dirigida, mas sim auto-
-dirigida.
As noções modernas do tempo e do espaço, os novos conhecimentos científicos em que as doutrinas socialistas se querem basear transportam-nos àquilo que é a igualdade dos homens e a igualdade das funções. Essa igualdade dos homens e das funções não a admite o nosso Estado Corporativo. Em contraposição, opõe a personalidade e a hierarquia a essas duas igualdades.
São conhecidos também os conceitos que essas doutrinas têm de Deus, da Pátria e da Família. E é curioso registar que neste último aspecto apresentam com verdade os defeitos da organização da Família, mas não indicam as soluções ou o remédio para que a Família seja, na sua organização, melhorada ou modificada. Pelo contrário, o remédio que apresentam é a destruição da Família, afinal.
Num outro aspecto em que essas doutrinas também se querem basear, que é na ciência, alguns dos seus prosélitos consideram a ciência como um órgão do reino das classes e a arte como uma arma dessas mesmas classes contra o proletariado.
Não se compreendem bem e são verdadeiras confusões as bases em que essas doutrinas se querem alimentar. Mas, propriamente, no aspecto que maior barulho faz no universo, que é no aspecto das regalias o vantagens concedidas ao trabalho, o socialismo não nos dá novidades e não nos apresenta soluções que tenham o cunho
mais prático e mais viável adentro da ordem e da tranquilidade das sociedades.
Estou Intimamente convencido de que o problema, girando sob este aspecto material da destruição da riqueza do mundo, poderá ter solução melhor dentro do Estado Corporativo. E baseio-me nisso, até nas próprias realidades, na própria constatação dos factos e dos casos que nós dentro de um espaço de poucos anos temos visto suceder nos diferentes países.
Temos o caso da Espanha, onde, por meio duma socialização atrabiliàriamente feita e muito mal conduzida, se chegou ao resultado que agora registamos.
Temos a própria Inglaterra, em que a acção socialista deu tam ruinosa administração que foi preciso acudir-lhe com urgência, substituindo o governo socialista por um governo conservador, que conseguiu dar melhor situação financeira àquele país.
E, se olharmos para a actuação do comunismo, verificamos que, além de muitos casos que eu não quero agora aqui citar, verificamos, repito, que existe um quadro compungente, que é o das crianças abandonadas nas diferentes povoações mais importantes da "Rússia, sem que o Estado, sendo totalitário, lhes valha e as tome a seu cargo, em vez de elas continuarem vagueando por essas cidades. E temos ainda outro quadro compungente, que é o da própria remuneração do trabalhador. Segundo eu li num livro, há poucos meses, essa remuneração chega a atingir a quantia ridícula de 3$ diários, na nossa moeda.
Feitas estas ligeiras referências às doutrinas que agora se digladiam no mundo, devo dizer a V. Ex.ªs que não foi este o objectivo que aqui me trouxe.
Deverei procurar saber se a proposta de lei que está em discussão corresponde a uma necessidade e se é oportuna, e, ao mesmo tempo, se ela está informada dos princípios que a nossa doutrina contém.
A meu ver ela corresponde a uma necessidade e a uma necessidade urgente.
Estou convencido de que, se amanhã a lavoura estiver organizada e se possa com mais cuidado dedicar ao estudo dos problemas económicos que constituem a sua actividade, certos factos se poderão esclarecer e certos males se poderão remediar.
Lembro-me de que talvez não seja difícil à lavoura provar que em certas regiões do País não é económico criar equídeos, e muito menos para serem vendidos pelos preços por que o Ministério da Guerra os adquire.
Estou também convencido de que não será difícil à lavoura provar que em certas regiões do País a indústria do gado bovino leiteiro é, realmente, ruïnosa e que dentro de poucos anos o capital que se emprega nessa indústria está muito reduzido, pois inquéritos já realizados provam-no bem.
Estou convencido de que em relação ao trigo, com um inquérito e provas bem certas do estado da sua produção, se pode chegar a isto, que será confrangedor: que a cultura e exploração do trigo que se está produzindo nalguns pontos do País constituem uma má experiência, uma indústria de rendimento inferior ou insuficiente, quere dizer: uma indústria deficitária.
Se atendermos, portanto, a este quadro que eu agora apenas esbocei com três exemplos, prova-se que há realmente necessidade de que a lavoura se organize, e se organize para que, pelo estudo a que ela possa proceder —e procede a esse estudo e realiza-o com certeza com mais facilidade estando organizada do que não o estando —, se prove às estações oficiais, a quem dirige estes assuntos, que certos males da lavoura lhe poderão ser deminuídos, que certas culturas, que ora são ruinosas, poderão, por quaisquer soluções arranjadas —e só o Estado deverá indicá-las—, transformar-se em culturas proveitosas.

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Num relatório de S. Ex.ª o Sr. Ministro da Agricultura (deve ter sido por S. Ex.ª feito, ou, pelo menos, é S. Ex.ª quem o assina) foca-se um aspecto muito interessante: o de que o agricultor produz através de tudo e contra tudo. É hábito cultivar. O lavrador perde dinheiro, mas continua cultivando sempre, continua aumentando a sua exploração, e aumentando, por consequência, a sua ruína. É, com efeito, um facto de observação muito certa, mas que terá, talvez, esta explicação: ele não sabe outra vida senão a de lavrador, não tem outras vistas, outras possibilidades, e vai cultivando sempre, cavando sucessivamente a sua ruína, sem se importar que isso seja o desastre e a desolação do seu lar.
Concluo, portanto, dêste pequeno esboço que aqui fiz que a organização da lavoura é absolutamente necessária, e creio que nisto todos estaremos de acordo.
É oportuno? Evidentemente, porque, estando organizadas já outras actividades, se guardou para o fim - e o relatório também o diz - o mais difícil, mas lá chegou a, sua altura, que é esta.
Resta, para completar, procurar saber se esta proposta, quer no relatório, quer no seu articulado, está dentro dos princípios quo informam ou devem informar uma organização da lavoura. E nesse ponto terei de distinguir uma parte económica e uma parte social, visto que são funções ligadas a essa organização.
Na parte económica parece-me que, segundo a nossa doutrina, um dos princípios basilares é a auto-direcção.
Verifico, ao examinar esta proposta, que esse princípio está estabelecido no sen articulado pela eleição dos membros que hão-de constituir as direcções dos grémios da lavoura.
Não se indicam finalidades que pertencem ao Estado, como seja a auto, suficiência compatível com o equilíbrio do salário, etc. E um papel que já não compete verdadeiramente a esses grémios da lavoura, mas sim ao Estado.
Na parte social, um princípio basilar é a colaboração entre o capital e o trabalho, e encontram-se aqui, também, no relatório, referências perfeitas a esse assunto. O Governo pretende atacar o aspecto económico e social, na parto agrícola, por meio destes grémios da lavoura. Evidentemente que não era possível atacar o problema social nos campos sem que essa organização se tivesse feito. Era uma absoluta utopia, porque não havia forma de realizar este objectivo sem que a organização da lavoura fosse um facto. O combate ao desemprego. o salário mínimo, a assistência e a previdência são problemas que só podem resolver-se no local e têm de ser leitos de comum acordo entre os grémios da lavoura e as Casas do Povo.
Termino, verificando que esta proposta pode perfeitamente ser aprovada na generalidade, porque ela está, a meu ver, dentro dos verdadeiros princípios corporativos, aos quais obedece e de que está completamente informada.
Haverá, na especialidade, quaisquer alterações de pequena monta a fazer, e oportunamente talvez eu mande para a Mesa umas pequenas propostas de alteração e de aditamento a bases que me parece estarem incompletamente redigidas.
Tenho dito.

O orador não reviu.

O Sr. Presidente: - Não havendo mais ninguém-inscrito, continuará, na sessão de amanha, o debate sobre a generalidade desta proposta de lei.
Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 2 minutos.

O REDACTOR - Costa Brochado.

CAMARA CORPORATIVA

Parecer acêrca do decreto-lei n.º 27:490, que modifica a constituição do Conselho Superior de Viação

A Câmara Corporativa, ouvida acerca do decreto-lei n.º 27:490, de 16 de Janeiro de 1937, convertido em proposta de lei nos termos da alínea c) do artigo 34.º do Regimento da Assemblea Nacional, emite, pelas suas 10.º, 14.º e 16.º secções, o seguinte parecer:

Tendo vencido com emendas a ratificação do referido decreto-lei, à Câmara Corporativa compete pronunciar-se, quer sobre a doutrina deste diploma legal, quer quanto à matéria do aditamento proposto. O decreto-lei n.º 27:490 modifica a constituição do Conselho Superior de Viação, criado pelo decreto-lei n.º 23:948, de 1 de Junho de 1934; o aditamento, proposto em sessão da Assemblea Nacional de 11 de Fevereiro último, limita-se à inclusão, no artigo 1.º do diploma em exame, de uma nova alínea, nos termos da qual seria dada representação, no mesmo Conselho, ao Automóvel Clube Médico Português.
Importa considerar, em primeiro lugar, a matéria do decreto n.º 27:490, automaticamente convertido em proposta de lei; e, em segundo lugar, a matéria do aditamento.
O decreto-lei n.º 27:490 introduz na orgânica do Conselho Superior de Viação as seguintes alterações: a presidência deste organismo, que o decreto-lei n.º 23:948 atribuía ainda ao presidente da Junta Autónoma de Estradas, passa a ser exercida pelo Ministro das Obras Públicas e Comunicações; cria-se a vice-presidência, atribuída ao director geral dos serviços de viação; o engenheiro director dos serviços de construção da Junta Autónoma é substituído, com mais rigorosa propriedade de função, pelo engenheiro director dos serviços de conservação da mesma Junta; passam a fazer parte do Conselho os engenheiros chefes da Repartição Técnica e dos serviços de exploração da Repartição Técnica da Direcção Geral dos Serviços de Viação, o primeiro como vogal, o segundo como secretário sem voto. Semelhantes alterações justificam-se, não só pela conveniência de dar a este corpo consultivo uma constituição homóloga à dos outros Conselhos Superiores daquela Secretaria de Estado, mas ainda pela necessidade de estabelecer uma articulação mais perfeita e, portanto, uma cooperação. mais efectiva, entre o Conselho e a Direcção Geral dos Serviços de Viação.

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Quanto à presidência deste organismo, não se compreenderia, na verdade, que ela continuasse afecta ao presidente da Junta Autónoma de Estradas, desde que os serviços, de viação, primitivamente integrados na orgânica dos serviços da Direcção Geral das Estradas (decreto n.º 14:988) e da Junta Autónoma (decreto n.º 18:406), passaram a constituir, pela promulgação do decreto-lei n.º 22:604, um organismo independente. Verifica apenas a Câmara que na constituição do Conselho Superior de Viação se omite a representação de uma actividade interessada. Com efeito, encontrando-se representadas neste corpo técnico as empresas ferroviárias, os concessionários de carreiras e o automobilismo, não o estão as empresas sub-urbanas de tracção eléctrica. Conviria que estas últimas tivessem no Conselho o seu representante, eleito em lista tríplice e nomeado pelo Ministro das Obras Públicas e Comunicações. Nenhuma outra objecção a doutrina do decreto-lei n.º 27 :490 sugere a esta Câmara.
Não sucede, porém, o mesmo respectivamente ao aditamento proposto pelo ilustre Deputado Sr. Dr. Moura Relvas, que suscita legítimas dúvidas. Propôs S. Ex.ª que do Conselho Superior de Viação fizesse parte um representante do Automóvel Clube Médico Português. Ocorre desde logo preguntar se esse representante ficaria pertencendo ao Conselho na qualidade de automobilista ou na qualidade de médico. Se é na qualidade de automobilista, semelhante aquisição afigura-se-nos superabundante: já fazem parte deste organismo, em harmonia com o preceituado nas alíneas h) e i) do artigo 1.º do diploma em exame, dois engenheiros mecânicos especializados em automobilismo e um representante do Automóvel Clube de Portugal. Se é na qualidade de médico, parece a esta Câmara que o facto de possuir automóvel não atribue a qualquer profissional da medicina competência especial na matéria complexa que, como veremos adiante, o médico pode e deve ser chamado a versar no Conselho Superior de Viação. Além disso, se a presença de um médico neste organismo técnico se justifica, não é como representante dos interesses científicos ou profissionais da medicina (para o que, entretanto, se encontrariam mais qualificadas, quanto ao direito de representação, no primeiro caso a Sociedade de Ciências Médicas, no segundo a Associação dos Médicos Portugueses); mas em obediência a razões que transcendem os interesses de classe, porque respeitam ao bem comum. Não estando, pois, indicado que o Automóvel Clube Médico Português - digno, aliás, de toda a consideração - eleja representante ao Conselho, parece-nos carecer de justificação a proposta de aditamento que determinou a conversão do decreto n.º 27:490 em proposta de lei, nos termos da alínea c) do artigo 34.º do Regimento da Assemblea Nacional.
Se considerarmos, porém, a iniciativa do ilustre Deputado apenas como afirmação do princípio de que no quadro dos organismos superiores dos serviços de viação devem existir técnicos de medicina, semelhante afirmação - cumpre-nos acentuá-lo desde já - está em perfeita harmonia com o pensamento desta Câmara. A colaboração efectiva do médico é, não apenas necessária, mas indispensável nesses organismos. Colaboração no Conselho? Colaboração na Direcção Geral? O decreto-lei n.º 23:948, de 1 de Junho de 1934, previu, no § 2.º do seu artigo 6.º, o desempenho de funções médicas junto da Direcção Geral dos Serviços de Viação, funções de inspecção simples e, naturalmente, se bem que o texto legal o não distinga, funções técnicas na organização das estatísticas de acidentes; mas, embora previsto na lei orgânica, o serviço médico anexo à Direcção Geral nunca existiu de facto, porquanto a categoria de médico inspector, a prover mediante contrato anual renovável, em conformidade com o disposto no
§ 2.º do artigo 12.º do decreto-lei n.º 23:948, não foi especificada nas tabelas que fazem parte integrante dos decretos-leis n.ºs 26:115 e 26:175, motivo por que a não incluiu a reorganização do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, promulgada com fundamento no artigo 45.º do primeiro destes dois diplomas. Isto quanto à Direcção Geral dos Serviços de Viação. Quanto ao Conselho, porém, em nenhuma das constituições sucessivas deste organismo se previu a cooperação de peritos médicos - nem sequer por hipótese. Porque as atribuições do mesmo Conselho, expressas no artigo 7.º do decreto-lei n.º 23:948, não comportam ou não justificam essa cooperação? Não é isso que se depreende da leitura das alíneas ou números em que essas atribuições são definidas. O simples enunciado da 1.ª, 5.ª e 7.ª, que reconhecem a este organismo competência para julgar todos os recursos, consultar sobre todos os assuntos respectivos a trânsito e propor todas as medidas úteis e oportunas atinentes ao estudo dos problemas de viação e suas soluções - basta para que se considere indicada a presença do médico, não apenas na Direcção Geral dos Serviços de Viação, mas também no Conselho (o que, aliás, constituiria um lugar comum nos países de técnicas actualizadas); e não só a presença de qualquer médico, clínico geral ou neurologista, mas a de um médico especializado no conhecimento e na prática da psicologia aplicada - isto é, da psicotécnica. Efectivamente, desde as primeiras experiências de Mansterberg respectivas à aptidão psicofísica dos condutores, até às investigações mais profundas de Moede e de Piorkowski sobre a psicotécnica do automobilismo; desde a criação do primeiro laboratório de psicotécnica ferroviária em Dresde (1916), até à notável fundação Tramm, de Berlim, onde, além do exame psicofísico, sistemático e periódico, dos condutores do toda a espécie de veículos públicos, se faz o estudo médico-psicotécnico dos complexos problemas do movimento e do trânsito - a psicologia aplicada, tanto como a medicina, tem representado um papel importante na acção dos organismos orientadores dos serviços de viação. Assim devia ser, na hora em que os imperativos económicos e o desenvolvimento universal dos maquinismos instituíram a velocidade como exigência fundamental na política do tráfego, e em que, consequentemente, teve de organizar-se um sistema científico de defesas, com base, quer na psicotécnica do indivíduo (exame e selecção médico-psicológica de condutores, métodos de automatização humana, psicotécnica da prevenção de acidentes, psicologia da circulação, propaganda das regras de trânsito), quer no estudo psicotécnico do material, a abjektspsychotechnik dos mestres alemãis (estradas, iluminação, sinalização, material circulante). Os inquéritos estatísticos e tipológicos dos acidentes, de Lipmann, mostram-nos que em todos os países em que os problemas da viação têm sido resolvidos segundo os critérios técnicos da psicologia aplicada, a percentagem de desastres baixou consideràvelmente. Entre nós, nem os métodos psicotécnicos foram adoptados nestes serviços, nem o simples exame médico dos condutores, feito quási sempre de maneira sumária nas Inspecções de Saúde do País, pode constituir garantia bastante da segurança e da vida das populações. Não é fácil compreender, neste momento, que especialmente se caracteriza pelo progresso das técnicas, a existência de um Conselho Superior de Viação sem a cooperação de um médico psicotécnico orientador; assim como é difícil admitir hoje que uma Direcção Geral dos Serviços de Viação possa exercer cabalmente a função que lhe incumbe sem que o respectivo quadro inclua um grupo de médicos inspectores, tendo à sua disposição um laboratório psicotécnico devidamente equipado.

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Em vista do exposto, não considerando de aceitar o aditamento do ilustre Deputado nos termos em que ele foi proposto, mas concordando com o princípio, no mesmo aditamento implícito, de que é necessária a presença de um médico especializado no Conselho Superior de Viação; e, outrossim, tendo em atenção a conveniência de dar representação no mesmo Conselho às empresas sub-urbanas de tracção eléctrica, - a Câmara Corporativa sugere os seguintes aditamentos e emendas ao decreto n.º 27:490, convertido em proposta de lei e sujeito ao seu exame:
I. - Aditamento de duas novas alíneas no artigo 1.º, que serão as seguintes, passando a actual alínea j) a ser designada pela letra l):
j) Um delegado das empresas sub-urbanas de tracção eléctrica;
k) Um médico, especializado em psicotécnica, nomeado pelo Ministro.
II. - Emendas introduzidas nos §§ 1.º, 2.º e 3.º do artigo 1.º, como consequência destes aditamentos:
§ 1.º Os delegados das empresas ferroviárias, das empresas sub-urbanas de tracção eléctrica e dos concessionários de carreiras serão eleitos em lista tríplice e nomeados pelo Ministro das Obras Públicas e Comunicações.
§ 2.º Os vogais a que se referem as alíneas c), d), f), i), j) e K) exercem o seu mandato por três anos, podendo ser reconduzidos.
§ 3.º Quando as entidades mencionadas nas alíneas f), g), i) e j) não acordarem na indicação dos seus delegados, o Ministro das Obras Públicas e Comunicações nomeará pessoas idóneas para as representar.
Abstém-se esta Câmara de sugerir qualquer aditamento respectivo à cooperação das actividades médico-psicotécnicas no quadro da Direcção Geral dos Serviços de Viação (aliás já em parte prevista, quanto ao contrato de um médico inspector, no § 2.º do artigo 6.º do decreto-lei n.º 23:948), porque a matéria do decreto-lei n.º 27:490, que motivou este parecer, é restrita à orgânica do Conselho Superior.

Palácio de S. Bento, 10 de Abril de 1937.

Gustavo Cordeiro Ramos (assessor).
João Duarte de Oliveira.
António de Vasconcelos Correia.
Fausto de Figueiredo.
Geraldo Braamcamp Mancelos.
Alexandre de Almeida.
José da Glória.
José Gago da Câmara de Medeiros.
Restituto José Coelho.
Júlio Dantas (relator).

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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