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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 89
ANO DE 1940 27 DE MAIO
II LEGISLATURA
(INTERVALO DAS SESSÕES)
ASSEMBLEA NACIONAL
SESSÃO EXTRAORDINÁRIA Em 2S de Maio
Presidente o Exmo. Sr. José Alberto dos Reis
Secretários os Exmos. Srs.Manuel Lopes de Almeida.
Carlos Moura de Carvalho
SUMÁRIO:- O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 16 minutos.
Antes da ordem do dia. - foi aprovado o Diário da última sessão.
Leu-se o expediente.
Ordem do dia. - Foi votada uma proposta de resolução que aprova a Concordata e o Acôrdo Missionário realizados entre a Santa Sé e o Estado Português.
Usaram da palavra o Sr. Presidente do Conselho, Dr. António de Oliveira Salazar, e os Srs. Deputados Mário de Figueiredo, general Schiappa de Azevedo, Diniz da Fonseca, Álvaro Morna, Ulisses Cortês, Braga da Cruz o Abel Varzim.
Por último foi votada uma moção, apresentada e justificada pelo Sr. Deputado Ulisses Cortês, no sentido de que o edifício do antigo Seminário de Viseu seja restituído à Igreja.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 30 minutos.
CÂMARA CORPORATIVA. - Rectificação ao parecer sôbre o projecto de decreto relativo à acção colonizadora do Estado.
Srs. Deputados presentes à chamada, 70.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão, 5.
Srs. Deputados que faltaram à sessão, 6.
Srs. Deputados que responderam à chamada:
Abel Varzim da Cunha e Silva.
Alberto Cruz.
Alberto Eduardo Valado Navarro.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Alfredo Delesque dos Santos Sintra.
Álvaro de Freitas Morna.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
Álvaro Salvação Barreto.
André Francisco Navarro.
Ângelo Casar Machado.
António de Almeida.
António de Almeida Pinto da Mota.
António Augusto Correia de Aguiar.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Hintze Ribeiro.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Proença Duarte.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto Cancela de Abreu.
Augusto Faustino dos Santos Crespo.
Augusto Pedrosa Pires de Lima.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Moura die Carvalho.
Clotário Luiz Supico Ribeiro Pinto.
D. Domitila Hormizinda Miranda de Carvalho.
Fernando Tavares de Carvalho.
Francisco Cardoso de Melo.
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Guilhermino Alves Nunes.
Henrique Linhares de Lima.
João Antunes Guimarãis.
João Botto de Carvalho.
João Garcia Nunes Mexia.
João Garcia Pereira.
João Luiz Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Diniz da Fonseca.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim Rodrigues de Almeida.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Alberto dos Beis.
José Alçada Guimarãis.
Jusé Dias de Araújo Correia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria Dias Ferrão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Júlio Alberto de Sousa Schiappa de Azevedo.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Figueira.
Luiz José de Pina Guimarãis.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Pestana dos Reis.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Luíza de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Pedro Augusto Pinto da Fonseca Botelho Neves.
Sílvio Duarte de Belfort Cerqueira.
Vasco Borges.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
António Rodrigues dos Santos Pedroso.
Francisco de Paula Leite Pinto.
João Maria Teles de Sampaio Rio.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
António Augusto Aires.
Francisco José Nobre Guedes.
Gabriel Maurício Teixeira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Juvenal Henriques de Araújo.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 3 minutos. Fez-se a chamada.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 70 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 16 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário da última sessão.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Visto que nenhum Sr. Deputado pede a palavra, considera-se aprovado. Vai ler-se o
Expediente Telegrama
Ex.mo Sr., Presidente da Assembleia Nacional-Lisboa.
Impossibilitados motivo força maior comparecer sessão cumprimentamos V. Ex.ª sendo-nos grato declarar que se estivéssemos presentes daríamos nossos votos de plena calorosa aprovação Concordata nos termos justos e alevantados em que a vemos celebrada. - Deputados Juvenal Araújo e Gastão Figueira.
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Interrompo A sessão por alguns minutos.
Eram 15 horas e 23 minutos.
O Sr. Previdente sai da sala, regressando pouco depois acompanhado de S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho, tomou lugar, a seu lado, na mesa. A assistência manifestou-se com uma efusiva prolongada salva de palmas.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Eram 15 liaras e 26 minutos.
O Sr. Presidente: - Esta sessão extraordinária da Assembleia Nacional fui convocada, nos termos do decreto n.º 30:458, pura apreciar a Concordata e o Acordo Missionário celebrados com a Santa Sé.
Vai usar da palavra, como é seu direito, o Sr. Presidente do Conselho.
Tendo ocupado a tribuna, S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho, novamente muito aplaudido pela numerosa assistência e proferiu o seguinte discurso:
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE:
SENHORES DEPUTADOS:
Hoje serei breve, mas entendi que não devia faltar. Se, não obstante o momento impor preferência a preocupações de ordem bem diversa, nos reunimos para
ocupar-nos dos recentes acordos com Roma, isso quere dizer não termos cedido à hipnose da tragédia e não haver em os acontecimentos interrompido nem o esforço de reconstituição nem os trabalhos da paz. Mas eu serei breve e, deixando de lado o mundo de cousas que poderiam dizer-se referir-me-ei apenas, por mais consentâneo com a minha posição, aos princípios fundamentais da Concordai ti em relação com a política nacional.
I
A primeira realidade que o Estado tem diante de si é a formação católica do povo português; a segunda é que a essência desta formação se traduz numa constante da história.
Nasçamos já como nação independente no seio do catolicismo acolher-se à protecção da Igreja foi sem duvida acto de alcance político, mas alicerçado no sentimento popular. Tem havido através da história incidentes e lutas entre os reis e os bispos, os governos e o clero, o Estado eu diria nunca, entre a Nação e a Igreja; quere dizer: lutas de interessas temporais ou de influências e paixões políticas, nunca rebelião da consciência contra a fé. Não há em toda a história apostasia colectiva da Nação nem conflitos religiosos que dividissem espiritualmente os portugueses. Com maior ou menor fervor, cul-
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mais ou menos vasta e profunda, maior ou menor esplendor do culto, podemos apresentar perante o mundo, ao lado da identidade de fronteiras históricas, o exemplo raro da identidade de consciência religiosa: benefício extraordinário em cuja consecução se empenhou uma política previdente.
Da forma como despertámos para a independência, mito de religiosidade e de sentido político na luta contra o sarraceno, e da vocação apostólica e universal do catolicismo que nos estará no sangue nasceu, com o expansionismo das navegações, o ideal missionário. Pouco importa que alto pensamento de política comercial e marítima determinasse o escol dos dirigentes a buscar notas rotas e descobrir outras terras; o constante apêlo a evangelização dos povos, a par e passo das descobertas a da colonização, marcaria, senão a consciência religiosa do poder, ao menos a mobilização do sentimento público para facilitar a
empresa e tornar suportáveis, através do reconhecimento de alta missão espiritual, os sacrifícios que custara. Assim se compreende essa arrancada para a evangelização que multiplicava as forças das ordens religiosas e gerava novas cristandades; assim se compreende o espirito da nossa dominação e das relações com os indígenas, muito antes que se invocassem pela Europa as exigências do humanitarismo assim se compreende o afecto, a filiação espiritual de muitos povos e raças que não domina-mos já politicamente. Povo descobridor, povo colonizador, povo missionário - tudo é revelação do mesmo ser colectivo, demonstração ou desdobramento da menina política, nacional.
Quere dizer: não pode pôr-se entre nós o problema de qualquer incompatibilidade. entre a política da Nação e a Liberdade evangelizadora; pelo contrário, uma fez sempre parte essencial da outra.
Para quê a verificação deste princípio? Para saber se uma Concordata pode ser em Portugal apenas a conciliação precária de duas forças inimigas, a condescendência do Estado perante uma actividade indiferente à realização dos seus fins nacionais, ou a conjugação confiante de esforços para uma obra que, mesmo no sentido puramente humano, corresponde à vocação da Portugal no mundo e à sua principal directriz histórica.
II
Parece-me averiguado este ponto, e não teríamos pois daí dificuldades, se outras não pudessem, surgir da posição da Igreja ante as características, as necessidades, os interesses de um Estado moderno.
Roma não muda no dogma nem na moral evolociona lentíssimamente no culto; bastante pouco na organização interna e na disciplina. O Estado, por sua vez, quási desligado de princípios absolutos, adapta-se à variabilidade das circunstâncias, cede ás exigências dos tempos, alarga ou restringe os seus
fins, multiplica ou diversifica a sua acção, reforça ou relaxa a autoridade, e, se muito da sua actividade de hoje e passageira imposição da moda, muito corresponde também a necessidades reais da vida em sociedade, a aspirações irresistíveis do corpo social. Onde se poderá chocar esta expansão e volubilidade do Estado com a permanência do dogma e as posições tradicionais da Igreja.
O Estado tem-se visto forçado a condicionar cada vez mais a liberdade, dos indivíduos a necessidade e escopos colectivos; marca a cada passo mais e mais o carácter puramente civil da sua actividade; estende as suas exigências à formação do agregado familiar: reivindica a instrução e educação da mocidade; vigia ou dirige actividade intelectual: limita a propriedade redistribue as terras, requisita os frutos do trabalho: dá directrizes, normas, limites à economia da nação: regula o esforço, o descanso, o divertimento; por vezes
chama a si o homem, no complexo da sua personalidade; em corpo e alma, ideas e sentimentos, com exclusão da alguém, mais, como roda de máquina de que cie não pode libertar-se ou fugir; engrandece-se e diviniza-se: a sem nada que a limite pode apresentar-se como a mesma consciência, a força, a riqueza da nação. Há nestas concepções realidades e necessidades novas e há também, meras criações do espírito que a experiência costuma condenar e a história - grande coveira - vai enterrando em seu largo cemitério. Mas por vezes há mais do que isso - há o ataque a alguma cousa de superior: a verdade que resplandece sobre as contingências, à consciência humana que resiste a despojar-se de si própria, isto é, de inauferíveis direitos que derivam da natureza do espírito humano.
E certo que estes últimos pontos nada têm que ver, ou muito pouco, com a política e a organização do Estudo determinadas por muitas outras condições e circunstâncias que não só princípios abstractos; mas o conceito do homem e da sociedade, da vida e dos seus fins está no âmago da questão.
Quanto a nós, que nos afirmamos por um lado anti-comunistas e por outro
anti-democratas e anti-liberais, anti-liberais e intervencionistas, tom rasgadamente sociais quanto de nós exige o princípio da igualdade - de todos perante os benefícios da civilização; quanto a nós, três únicas questões podiam a meu ver tornar impossível o acordo, por tocarem em pontos essenciais da doutrina: o reconhecimento de uma norma moral preexistente e superior ao próprio Estado; a constituição da família a educação. A Constituição de 1933, com a clarividência que hoje podemos apreciar, arrancou o Estado português à tentação da omnipotência e da irresponsabilidade moral e permitiu atribuir à Igreja, na constituição dos lares e na formação da juventude, aquela parcela de mistério e de infinito exigida péla consciência cristã, e que só por arremedos vis poderíamos substituir. Ir além, abrindo mão de tudo mais, seria fechar os olhos a vivas realidades do nosso tempo; não ir até ali seria igualmente ter em menos conta o que f exigência de justa liberdade e necessidade da estrutura cristã da Nação portuguesa. (Vozes: - Muito bem, muito bem!). (Palmas dos Srs. Deputados e das galerias).
Se pois, com seriedade e boa fé, foi possível encontrar uma fórmula de respeito e colaboração entre um, Estado moderno equilibrado e a Igreja católica, devemos regozijar-nos - por nós, em primeiro lugar, depois também por contribuirmos para a solução de problemas postos com acuidade num mundo que se desagrega pela forca dos erros ou das armas e é preciso refazer «em espírito verdade» (vozes: - Muito bem, muito bem!): (Palmas dos Srs. Depurados e das galerias).
III
Toda a matéria, dos acordos sujeitos à apreciação da Assembleia se reduz, pode dizer-se, a três questões fundamentais: liberdade religiosa; organização missionária do ultramar português; garantia do Padroado do Oriente.
A que luz fui cisto e em que plano foi posto o problema de liberdade religiosa? A quem ler atentamente as disposições que se lhe referem, aparecerá com evidência ficar em liberdade condicionada apenas por exigências superioras de interesse o ordem, publica, pela escolha da formação patriótica do clero e pela escolha das mais altas autoridades eclesiásticas em condições de boa colaboração com o Estado. Nada mais se considerou preciso - nem certas incursões conhecidas do poder na vida da Igreja e das associações ou institutos
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religiosos, nem mesmo alguns privilégios, alias insustentáveis em regime de separação e noutros tempos conferidos no Estado Português. Nós tiramos da experiência esta dupla lição: melhor se rege a Igreja a si própria, em harmonia com as suas necessidades e fins, do que pode dirigi-la o Estado através da sua burocracia (Vozes: - Muito bem, muito bem!). (Palmas dos Srs. Deputados e das galerias); melhor se defende e robustece o Estado a, definir e realizar o
interesse nacional nos domínios que lhe são próprios do que pedindo emprestada à Igreja força política que lhe falte. (Vozes: - Muito bem, muito bem!). Digamos -por outras palavras: o Estado vai alistar-se de fazer política com a Igreja, na certeza de que a Igreja se abstém de fazer política com o Estado. (vozes: - Muito bem, muito bem!): (Palmas dos Srs. Deputados e das galerias).
Isto pode ser e deve ser assim: pode ser, primeiro, em virtude de todas aquelas razões derivadas da formação espiritual dêste povo e da sua vocação histórica e, depois, pelo facto de termos enfim um Estado Nacional, ou seja termos chegado à integração da Nação nu Estado Novo Português. (Vozes: - Muito bem, muito bem!). Deve ser assim, porque a política corrompe a Igreja, quer quando a faz, quer quando a sofre, e para todos é útil que as cousas e pessoas sagradas as toquem, o menos possível mãos profanas e o menos possível também as agitem sentimentos, interesses ou paixões terrenas. Considero perigoso que o Estado adquira a consciência de tal poder que lhe permita violentar o céu, e igualmente fora da razão que a Igreja, partindo da superioridade do interesse espiritual, busque alargar a sua acção até influir no que o próprio Evangelizo pretendeu confiar a «César». ( Vozes: - Muito bem, muito bem!). (Palmas dos Srs. Deputados e das galerias). Nada teríamos aprendido, uns e outras, se não víssemos como o privilégio pode corromper, a protecção transmudar-se em cerceamento de liberdades essenciais e a política religiosa desviar-se da defesa dos interesses da igreja, para outras finalidades perturbadoras da acção legítima do Estado, e que portanto este não podo consentir. (Vozes: - Muito bem, muito bem!).
O outro problema que teve de ser resolvido e versado com, especial desenvolvimento no Acordo Missionário é o da organização religiosa do ultramar português. De que se tratar Simplesmente de completar a obra política - do Acto Colonial com a sanção da posse espiritual conferida pela Santa Sé e com a nacionalização da obra missionária, que se integra definitivamente na acção colonizadora portuguesa. (Vozes: - Muito bem, muito bem!).(Palmas dos Srs. Deputados e das galerias).
Não farei o estudo das causas da desorganização religiosa do nosso ultramar, nem de como as deficiências portuguesa» foram supridas por outras actividades fora da nossa tradição e sentido nacional, à sombra do Acto de Berlim e do Tratado de Saint-Germain; nem de como a falta de entendimento com Roma foi não só libertando as missões da sua subordinação às autoridades eclesiásticas portuguesas, como reduzindo a acção destas e mantendo o número e categoria das circunscrições eclesiásticas em nível desproporcionado com as necessidades da assistência religiosa e o desenvolvimento e importância, dos nossos domínios ultramarinos.
Deve fazer-se justiça a todos quantos, mesmo no fragor das lutas partidárias e arrostando a incompreensão de muitos, procuraram, compenetrados da importância nacional da obra missionária portuguesa, remediar os muitos males que a Lei de Separação causara. (Vozes: - Muito bem, muito bem!). Se os resultados não corresponderem às intenções, isso se deve ao fatal destino daquelas tarefas que procuram deter os efeitos sem estancar-lhes ns causas.
Nós porém hoje a consciência de- haver podido estudar o problema, em inteira liberdade intelectual e política apenas com os olhos postos no engrandecimento e consolidação do Império; e consideramo-nos felizes por nos ser possível elevar espiritualmente os domínios reforçar com novas condições de trabalho missionário a unidade moral de Portugal de Aquém e de Além-Mar. (Vozes: - Muito bem, muito bem!).
O Padroado do Oriente, que os acordos de 28 e 29 não conseguiram arrancar, da precária situação em que o colocou a Lei de Separação de 1911, foi finalmente salvo e consolidado como era aliás de justiça, devida ao esforço português, mas não era talvez de direito estrito, no qual a Igreja se estribava. Embora, reduzido de extensão e de importância pelas muitas contingências dos tempos pastados, o Padroado do Estado Português em territórios estranhos à sua soberania é o público reconhecimento da nossa evangelização e marca através dos tempos o prestígio espiritual dum povo que, alargando pelo mundo as fronteiras da pátria, ainda estendeu mais a fé do que o Império. (Vozes: - Muito bem, muito bem!). (Palmas dos Srs. Deputados e das galerias).
IV
Concluída esta breve referência - tam breve quanto me foi possível- aos três problemas centrais da Concordata e do Acordo Missionário, julgo dispensável qualquer luz que outras palavras minhas pudessem lançar sobre cada um dos -muitos problemas versados e resolvidos. Além da competência dos Srs. Deputados e do elucidativo parecer da Câmara Corporativa, dá-se ainda a circunstância de pertencer a esta Assembleia alguém que deixou o seu nome e muito do teu talento
ligado a estes textos (Vozes: - Muito bem!), alguém que durante mais de três anos me ajudou, ou melhor falando, eu ajudei no estudo, na discussão e em difíceis e delicadas negociações. (Vozes: - Muito bem, muito bem!).(Palmas dos Srs. Deputados e das galerias).
Não farei igualmente alusão ao alcance internacional destes actos: revela-se no reconhecimento solene da soberania espiritual de Roma, na garantia dos direitos da Igreja, na afirmação da necessidade de normas superiores de moral, de justiça, de bondada nas relações entre os homens e entre os povos.
Mas volto à primeira idea deste discurso e só para dizer o seguinte: não tivemos a intenção de reparar os últimos trinta anos da nossa história, mas de ir mais longe, e, no regresso â melhor tradição, reintegrar, sob este aspecto, Portugal na directriz tradicional dos seus destinos. Regressamos, com a força e pujança de um Estado renascido, a uma das grandes fontes da vida nacional, e, sem deixarmos- de ser do nosso tempo por todo o progresso material e por todas as conquistas Ha civilização, somos nos altos domínios da espiritualidade os mesmos de há oito séculos. (Vozes: - Muito bem, muito bem !). (Palmas dos Srs. Deputados e das galerias). Marcá-lo por tal maneira é certamente um triunfo
político é um grande acto da história.
A Assembleia e as galerias, particularmente concorridas, aplaudiram com uma vibrante e prolongada salva de palmas a o discurso de S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho.
O Sr. Presidente: - Interrompo a Sessão por alguns minutos.
Eram 10 horas e 50 minutou.
O Sr. Presidente saiu da sala, a fim de acompanhar S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho, a quem a assistência continuou, aplaudindo com entusiasmo.
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O Sr. Presidente: — Está reaberta a sessão.
Eram 15 horas e 55 minutos.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Dr. Mário de Figueiredo.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Sr. Presidente: usar da palavra depois do ambiente que se criou no seio desta Assemblea com o discurso do Sr. Presidente do Conselho e tarefa particularmente difícil — ia a dizer ingrata —, mas não é na verdade tarefa ingrata o falar desta matéria.
Para restituir a verdade toda a algumas palavras mais do que amáveis que a Assemblea acabou de ouvir, vou começar por pôr diante dos olhos de V. Ex.as como se trabalhou.
Já lá vão mais de três anos, fui convidado pelo Sr. Presidente do Conselho para estudar um projecto de Concordata com a Santa Sé. Comigo foram convidados também o Sr. Ministro da Justiça, o Sr. Embaixador Teixeira de Sampaio e o Sr. Dr. Fezas Vital.
Começámos o trabalho deparando com um projecto e, ao lado dele, com um largo estudo do Sr. Presidente do Conselho, em que aparecia toda a problemática das questões tratadas, as dificuldades do sentido das soluções que às questões podiam ser dadas e ainda a orientação que no momento, parecia convir ao interesse nacional. Isto foi o que encontrámos, com esta declaração complementar do Sr. Presidente do Conselho: a de que há mais de dois, anos trabalhava na matéria.
Isto restitue a verdade àquilo que a Assemblea acabou de ouvir ao Sr. Presidente do Conselho.
A comissão trabalhou e o texto assinado da Concordatas essencialmente o que saiu do trabalho da comissão.
Feita» estas breves referências aos antecedentes dos Acordos assinados em 7 do corrente e propostos para aprovação a esta Assemblea, direi que, depois do discurso que ouvimos, depois do modo como o problema tem sido tratado em Portugal pela imprensa, depois do trabalho da Câmara Corporativa, que parece milagre (porque parece realmente milagre que em quatro dias fosse possível realizar-se o que se realizou) podia quási dispensar-lhe de quaisquer outras considerações para elucidar esta Assemblea, porque ela já está elucidada.
Não quero, *no entanto, deixar de focar, deixar de marcar a importância dos Acordos, tanto na ordem interna, como na ordem internacional.
Tem-se dito, e é verdade, que a generalidade das questões resolvidas na Concordata já estavam solucionadas em sentido idêntico pelo nosso direito interno.
E, se assim é, pode preguntar-se: ?a que vem falar-se da importância dos Acordos na ordem interna? Pois se aquilo que está contido na Concordata existe de um medo geral já no direito interno, ?a que vem falar-se da importância política, da importância sob o ponto de vista da paz religiosa, do' equilíbrio que se buscava e que não existia, e que se encontrou, se a verdade é que o que se tem é, afinal, o que já existia?
E no entanto, Sr. Presidente, é verdade que a Concordata é um diploma da mais alta importância, de uma Importância de que porventura ainda o País se não possuiu completamente no ponto de vista da política interna.
E que uma cousa, Sr. Presidente, é o que se contém no direito interno e está sujeito às flutuações a que o direito interno está sujeito, outra cousa é o que se condensa num acordo internacional que por definição constitue um processo de limitação da actividade legislativa interna.
Atingiu-se nos factos uma situação de estabilidade tal que foi possível cristalizar em fórmulas estáveis a estabilidade que nos factos já se revelara.
Mas não é só esta a razão, não é só isto que marca a importância da Concordata; é que em situação, como direi, em situação de conflito, nunca chega o que se dá, nunca chega desde que não tenha a selá-lo a autoridade de quem tem prestígio para o receber.
Não traduzi como queria, com suficiente clareza — eu mesmo estou a notá-lo —, o pensamento que queria traduzir. Vou, pois, ver se consigo traduzi-lo com clareza e precisão suficientes.
Pode dar-se muito à Igreja em Portugal. Mas são muitos os representantes da Igreja em Portugal, as autoridades eclesiásticas portuguesas;
Cada um deles, por muito que se dê, sentirá sempre que o que se deu ainda não é o que era devido; e, portanto, por muito que se dê através do direito interno, a impaciência não se destrói, não se inutiliza.
Mas, se o que se deu tem a selá-lo a autoridade do mais alto representante da Igreja, e só êle tem o poder de reduzir todos ao silêncio — então conquista-se a paz; então modifica-se necessariamente a atitude dos que pedem e que julgam sempre que têm direito a mais.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Neste aspecto a Concordata é, atento o prestígio que a Igreja tem em Portugal, sem dúvida", elemento forte, marcado, de paz interna; a Concordata é um elemento de alta importância no ponto de vista de política interna; além disto, a Concordata torna possível a resolução de muitas questões práticas, de muitas questões de consciência.
Sr. Presidente: não se ignora que -a Igreja aplica as sanções que lhe são próprias àqueles que adquirem, contra a sua vontade, os seus bens — os bens eclesiásticos.
A venda e aquisição dos bens da Igreja tem criado em Portugal inúmeros problemas de consciência, de que é possível que nem todos se apercebam.
Pois bem. A Concordata vem liquidar todas essas questões de consciência. E vem liquidá-las tornando legítima a situação de pessoas que antes considerava ilegítima.
No ponto de vista interno o acordo tem a maior importância e tem-na, também, no ponto de vista internacional.
Quero chamar a atenção da Assemblea para o facto de ser a Concordata portuguesa o primeiro documento desta natureza em que outorga o Pontífice reinante.
Chamo a atenção da Assemblea para este facto e, ao mesmo tempo, para este outro, que eu recordo por memória, de que hoje o mais forte poder espiritual do mundo é, sem dúvida, o da Igreja Católica.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Palmas da Assemblea, a que as galerias se associam.
O Orador: — Sendo assim, a nossa Concordata marca uma orientação; na nossa Concordata toma-se uma atitude relativamente a problemas que hão-de apresentar-se, naturalmente, na vida internacional como um precedente a considerar e, porventura, a seguir.
Mas, ainda noutro aspecto — e agora é o do Acordo Missionário — eu quero fixar a alta importância internacional deste trabalho.
Todos conhecem, creio bem, a situação a que, por unia política contrária ao interesse nacional, foi reduzido o trabalho missionário no ultramar português. Naturalmente, todos sabem que no ultramar português se instalaram missões da mais vária nacionalidade.
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Naturalmente ninguém ignora que a Congregação da Propaganda Fide, vista a sua missão evangelizadora, constituíra no ultramar português organizações missionárias independentes, organizações missionárias que prescindiam de qualquer contacto com o Estado Português. E, para marcar a importância de ordem internacional do Acordo Missionário, eu chamo para este último facto a atenção da Assemblea.
À Congregação da Propaganda Fide, que instalara em alguns pontos do ultramar português missões independentes que subvencionava e dirigia, missões independentes cujos missionários eram, cm geral, estrangeiros, porque' infelizmente não os havia portugueses (acabou--se com as casas de formação missionária em Portugal durante muito tempo), a Propaganda Fide, repito, representa, como direi, um dos dicastérios da Santa Sé.
Pois, não obstante, segundo o Acordo Missionário, no ultramar português só haverá, daqui por diante, missões católicas dentro da organização missionária portuguesa.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Palmas da Assemblea, a que as galerias se associam.
O Orador: — Isto quere dizer que a Santa Sé de boa vontade cedeu ao Estado Português uma competência que é de uma das congregações em que está dividida a organização do Vaticano. Isto quere dizer que a Santa Sé, cujo espírito de evangelização todos hão-de reconhecer, . . .
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — . . . reconheceu por sua vez que eram tais as qualidades missionárias do povo português que entregou a este toda a organização missionária católica.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Palmas da Assemblea, a que as galerias se associam.
O Orador: — Todos, Sr. Presidente, depois destas considerações, reconhecerão a importância que pode ter para Portugal a afirmação oficial feita pela Santa Sé, através do Acordo, da vocação missionária do Estado Português.
Quero acrescentar, além disto, que o Acordo Missionário é — como direi — uma peça original na vida de relação da Santa Sé com os Estados. E não resisto à tentação de, desde já, fazer uma alusão fugidia ao modo como se organizou o Acordo Missionário.
Aqui, foi o Sr. Ministro das Colónias quem, depois de ter conversado, com o interesse particular que a obra das missões lhe despertava na alma, depois de ter conversado com os nossos bispos no ultramar, conseguiu organizar a série de disposições que constituíram a base da qual saíu o Acordo assinado em 7 do corrente mês.
Sr. Presidente: quero agora referir os princípios essenciais que dominam a (Concordata, e alguns deles ainda podiam ser aproveitados para marcar a sua importância.
A Concordata tem, por definição, em vista resolver questões de limites, limites entre dois poderes — que ambos se afirmam soberanos e têm um objecto idêntico, pelo menos o objecto mediato: o homem — o poder espiritual da Igreja, o poder temporal do Estado. Ambos têm por objecto, pelo menos mediato, repito, o homem.
Se os dois poderes têm o mesmo objecto, é natural que se encontrem no desenvolvimento da sua actuação. E, encontrando-se, é natural que entrem em conflito.
Todos sabem, Sr. Presidente, que o conflito não é de hoje nem de ontem: é de todos os tempos; o conflito é eterno, e para êle se têm procurado, histórica e actualmente, diversas soluções.
Há a solução da absorpção do Estado pela Igreja. O conflito resolve-se reduzindo os dois poderes a um único: o da Igreja.
O conflito resolveu-se assim historicamente, mas a tendência para o resolver actualmente é da absorpção da Igreja pelo Estado.
Nesta orientação deixa de haver dois poderes, e é', assim, impossível o conflito. Não se resolve um problema: elimina-se, estrangula-se.
É claro que nenhuma destas duas soluções é solução para a Igreja Católica; especialmente a última, a da absorpção da Igreja pelo Estado, nunca foi - solução pira a Igreja Católica.
Portanto, quanto a esta, há-de haver sempre um problema de limites, um importa resolver.
Como? São possíveis várias soluções. Uma delas será esta: a de resolver o conflito unilateralmente, instituindo através do direito interno um regime gravoso para a Igreja; e esta foi a solução de 1910.
As consequências da solução de 1910 conhecem-nas V. Ex.as para eu poder perfeitamente dispensar-me de lhes fazer mais do que a' referência que acabo de fazer.
Outra solução será esta: a solução da liberdade.
Mas a liberdade não é um processo de solução de conflitos. A liberdade não é um elemento de organização, e eu aqui por sistema de liberdade entendo sistema de sujeição ao direito comum.
Não há direito excepcional gravoso para a Igreja. A Igreja é uma instituição que surge no seio da sociedade como qualquer outra instituição e submete-se como qualquer outra instituição ao regime de direito comum.
Esta é a solução que eu chamo solução de liberdade.
Esta solução pode bastar nos países novos que estão a ser conquistados para a fé, nos países novos onde a Igreja, ainda se não apresenta como uma força bastante marcada para poder solicitar a atenção dos governantes.
Mas desde que não se trata de um povo que começa a ser conquistado para a fé, mas de um povo como o nosso, que nasceu já preso à Igreja e à fé, esta solução não parece admissível, e isto porque a Igreja tem uma posição muito marcada, porque tem uma autoridade muito grande no domínio das consciências, e naturalmente há a tendência ou para lha reduzir ou para lhe criar uma situação de privilégio. Há a tendência para a tornar inofensiva como força, reduzindo-a, ou para a converter em aliada, enchendo-a de privilégios.
Esta solução conduz ou ao esmagamento da Igreja ou, em certo modo, ao ingresso da Igreja na política.
Não parece que seja solução para o ponto de vista português.
Só nos fica então outra solução: é a solução em que o problema se resolve por acordo; e ainda aqui são possíveis duas orientações: ou se faz um acordo de associação ou se faz um acordo de separação.
No acordo de associação o Estado afirma uma religião sua; há uma religião oficial.
Nós tivemos este sistema no nosso Pais durante muitos séculos, e a verdade é que êle parece não ter deixado saudades nem à Igreja nem ao Estado.
O acordo de associações era inconstitucional.
Ponho o problema prescindindo da questão da constitucionalidade.
Não deixou — dizia eu — saudades nem à Igreja nem ao Estado. Não digo que não seja um sistema aceitável, mas a verdade, repito, é que não deixou saudades nem à Igreja nem ao Estado.
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A Igreja dentro desse sistema tinha subvencionado o culto e o clero. Suponho que não faço injúria u ninguém dizendo que se burocratizou um pouco a Igreja, e perdeu, em consequência, aquele fogo que agita as almas, para entrar no domínio de uma rotina melancólica capaz de as arrefecer em vez de as aquecer.
Apoiados.
Ficava-nos então como solução a adoptar esta: concordata de separação. Não há culto subsidiado, não é subsidiado o clero.
Mas repare V. Ex.ª, Sr. Presidente, que concordata de separação não significa Estado agnóstico. Há vestígios marcantes 110 direito interno português e nas disposições da Concordata e, mais que vestígios, há disposições que denunciam evidentemente que, não obstante estarmos em presença de concordata de separação, não estamos em presença de um Estado agnóstico. Ao contrário, o Estado denuncia claramente na Concordata e no direito interno a aspiração de que a sua mocidade seja educada na concepção cristã da vida, que ela seja educada dentro dos princípios da doutrina e moral católica. Não é, portanto, um Estado agnóstico; tem uma doutrina. Uma doutrina que não impõe, mas propõe.
Respeita a consciência de cada um, permitindo-lhe que siga outra; mas propõe a sua. Portanto, concordata e separação não significa Estado agnóstico.
O Sr. Presidente: - A hora está quási a expirar. Pedia, pois, a V. Ex.ª o favor de abreviar as suas considerações.
O Orador: - Que remédio tenho eu...
Ia eu a dizer, Sr. Presidente, se se trata de uma concordata de separação sem subvenção do culto, sem subvenção dos ministros do culto, é evidente que não podia nela manter-se o Estado padroeiro; fazer a apresentação dos bispos ou a colação dos párocos.
Feita esta nota, passo adiante, dado o imperativo do 1 tempo, que o Sr. Presidente me lembrou.
O principio do reconhecimento da hierarquia está em várias disposições da Concordata. Reconhecimento da hierarquia e, em certo modo, assistência a hierarquia; a Igreja pode organizar-se segundo as normas do direito canónico; o Estado assegura essa organização.
A Igreja é uma sociedade perfeita e com os seus meios próprios de coacção; mas a coacção da Igreja dirige-se hoje essencialmente à consciência, e, por isso, pode ser ineficaz. Pode tornar-se-lhe necessária u assistência do Estado. E este convém em dar-lha.
Como? Assegurando a constituição, modificação e extinção das associações e organizações da Igreja, garantindo o respeito pelo habito eclesiástico pôr maneira que não possa ser usurpado por quem não puder usá-lo e garantindo aos ministros do culto no exercício das suas funções a mesma protecção quê têm os funcionários no exercício das suas. Não só reconhecimento da hierarquia, mas, de certo modo, assistência própria hierarquia.
Quem tiver lido a Concordata há-de verificar que foi num espírito de muito grande conciliação, numa atitude da melhor boa fé, que se procurou realizar o que nela ficou condensado. Quero referir-me, neste momento, a dois casos. Este espírito foi sempre o que animou o Governo ao negociar a Concordata. Se do lado da Santa Sé aparecia uma razão de princípio sobre a qual a Santa Sé não podia passar, o Governo logo procurava uma fórmula que deixasse salvo o princípio sem prejudicar o que julgava ser o interesse nacional.
Isso se denúncia em várias matérias e designadamente a do casamento e do divórcio.
O casamento, porque é um sacramento constitue uma matéria na qual a Santa Sé julga ter exclusiva competência. Esta é uma questão de princípio.
Por outro lado o Estado Português, o Estado moderno, em geral, tem também como questão do princípio que não pode desinteressar-se do estado civil da sua população.
Como sair desta questão? Princípio da Igreja: exclusiva competência em matéria de casamento; princípio do Estudo: não pode desinteresse doestado civil da sua população.
Reconheceu-se explicitamente á Igreja que ela, têm competência exclusiva quando se trata de casamentos católicos, quando se trata da disciplina sacramentaria.
Como se havia de salvaguardar para o Estado a princípio de que também não podia prescindir?,
Sem duvido ao Estudo compete fixar o estado civil da sua população.
Ir-se-ia então para a completa independência dos dois casamentos, religioso e civil, de modo que o primeiro, só por si, não produziria efeitos?
A experiência demonstra que esta solução não era solução, e por isso adoptou-se então esta: atribuir efeitos civis no casamento religioso. Mas surgia outra dificuldade: a questão dos impedimentos. E ao Estado ou a Igreja que cabe estabelecê-los.
Para o casamento religioso é a Igreja para o casamento civil é o Estado.
o proceder, se se atribuem efeitos civis ao casamento religioso?
Estabeleceu-se que, em geral, o casamento religioso se não celebrasse sem que as publicações prévias se fizessem tanto na Igreja, como na competente repartição do registo civil.
E é claro que se correm perante a autoridade civil antes, do casamento religioso é porque, em princípio, este se não se celebrará emqnanto a autoridade civil competente não disser que não há impedimento civil que a isso se oponha.
de quando um caso urgente de consciência não consentir que se espere pelas publicações?
Não foi a Santa Sé que pôs este problema: foi o Governo Português. Digamos: foi o Governo Português que, respeitador da consciência individual, o criou.
Pode, na verdade; haver casos de consciência em que não e possível esperar por que corra o processo preliminar das publicações, como seja o perigo de morte e iminência de parto. Há uma situação de consciência a regularizar urgentemente, e então não se pode esperar pelo processo preliminar das publicações.
Neste caso a Igreja celebrará, independentemente desse processo, o casamento, sendo este transcrito, c produzindo, portanto, efeitos civis, salvo em dois casos.
Só em dois casos deixará de ser transcrito. Um deles é n existência do casamento civil anterior e o outro não me demoro a referi-lo.
Consideremos o divórcio. Todos reconhecerão que é aspiração do Estado Português acabar, algum dia - perto? Longe? - , para a defesa da família, com o divórcio em Portugal.
Mas o Governo Português não está seguro de que no ponto do vista exclusivamente social essa solução, como solução geral, seja neste momento oportuna.
Mais de um século de individualismo desorganizou a família. A desorganização tem a sua lógica, e porventura a lógica da desorganização pode conduzir a que em certo momento se mão considere oportuna a eliminação do divórcio como solução geral.
Há que tentar tuna experiência; e não é só com experiência que o problema aparece resolvido na Concordata.
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Há que tentar uma experiência, e, ainda prestando em certo modo homenagem à tal lógica da desorganização individualista, deixou-se aos próprios nubentes a liberdade de optarem pelo divórcio ou contra o divórcio. Se casam religiosamente, optaram pela solução contra o «divórcio; se optarem pela solução-divórcio, não casam religiosamente.
É claro que a solução da Concordata é esta: quem depois da sua vigência casar catòlicamente não pode divorciar-se.
A disposição da Concordata que se refere à matéria foi propositadamente mal redigida - sou o primeiro a reconhecê-lo - para não deixar lugar a dúvidas.
Mas, Sr. Presidente e Srs. Deputados, V. Ex.ª sabem todos que realmente não se atingiu o intento que se desejava.
Foi propositadamente mal redigida essa disposição, porque há lá um renunciarão onde a redacção pedia - renunciam.
Foi para que não se duvidasse de que só se aplicava aos casamentos católicos celebrados depois da Concordata que a disposição foi assim redigida.
Eu entendia, e entendo ainda, que para isso era suficiente renunciam; escreveu-se renunciarão e não obstante não se atingiu o intento que se desejava.
Não há dúvida, porém, de que só aos casamentos celebrados depois da Concordata a disposição se refere. Porque o fundamento da inclusão do divórcio é a renúncia e esse fundamento não existe quando nem sequer se podia renunciar. É indiscutível.
É indiscutível que foi isto que se quis e que é isto que está na disposição. Reconheço, porém, de boa vontade que a doutrina é o mais discutível possível.
Uma cousa é o que é, outra o que devia ser.
O Sr. Carlos Borges: - Então está bem redigida ...
O Orador:- Não. Está mau português. Se estivesse renunciam, que é o que eu entendo devia estar, a solução era a mesma, sem dúvida. Para evitar toda a possibilidade de dúvida redigiu-se mal.
Estou chegado ao fim das minhas considerações. Fico-me por aqui, Sr. Presidente, não sem referir à Assemblea um facto. E por êle concluirei.
Há dez anos um certo Ministro da Justiça, fazendo exclusivo trabalho de interpretação do direito vigente, publicou uma portaria na qual se considerava o toque dos sinos como um acto do culto público que não estava sujeito a determinada regulamentação. Isto foi há dez anos.
Correu pelo País, relativamente a êsse Ministro, um vento de ridículo que quási o chegou a asfixiar.
Não apoiados.
A cousa não tinha importância; mas foi bastante - repare V. Ex.ª, Sr. Presidente - para derrubar um Govêrno. Não foi só um Ministro, foi um Govêrno.
Há dez anos, depois de constituído êsse novo Govêrno, foi consultada a Procuradoria Geral da República sôbre se realmente a portaria consagrava o direito existente ou, ultrapassando a competência do Ministro, criava direito novo.
Eu, com a responsabilidade que quero assumir de professor de direito que estudou a questão, asseguro a V. Ex.ª que não podia haver dúvida nenhuma de que a portaria era pura interpretação do direito existente.
Pois há dez anos a Procuradoria Geral da República não pôde dizer isto.
Passados dez anos - vejam V. Ex.ªs como isto tudo está tam mudado - já não é uma portaria, é uma Concordata e um Acôrdo Missionário. É um trabalho em que aparece direito interno velho e direito interno novo, e na portaria não aparecia senão direito velho.
Não sei se os sinos deixaram de tocar; o autor da portaria é que não ouviu, de qualquer lado, nem da direita nem da esquerda, quaisquer palavras que significassem que os sinos deviam continuar a tocar ...
Tenho dito.
Palmas prolongadas da Assemblea e das galerias.
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Schiappa de Azevedo:- Sr. Presidente: serei muito breve. Não me proponho vir demonstrar o grande alcance político-social e, quero mesmo dizer, renovador da Concordata recentemente concluída entre a Santa Sé e o Govêrno Português.
Que contribuição poderia eu dar, após as notabilíssimas palavras do Sr. Presidente do Conselho, que ainda ecoam nesta sala, ao notável, direi mesmo, formoso parecer da Câmara Corporativa e ao brilhante discurso que acabamos de ouvir do nosso ilustre colega Dr. Mário de Figueiredo, bem mais qualificado do que eu para versar êste assunto?
Sr. Presidente: vim a esta tribuna tam sòmente para exprimir o meu voto e seus essenciais fundamentos, como sempre sincero, como sempre ditado pela minha consciência.
Também me senti obrigado a vir saudar daqui o Govêrno da Nação e exprimir-lhe as minhas felicitações pelo magnífico resultado obtido.
Englobo na mesma saudação os ilustres portugueses que tiveram a suprema alegria de ligar os seus nomes ao histórico e transcendente instrumento diplomático.
Mas de entre êles seja-me permitido especializar o general Eduardo Marques, ilustre Presidente da Câmara Corporativa, como tal nosso precioso colaborador, e que naquela qualidade tem prestado à Nação mais de uma vez relevantes serviços, como igualmente lhos prestou nas sinas funções militares, onde se revelou sempre um bravo e distinto oficial, e bem assim o nosso querido e distinto colega o Dr. Mário de Figueiredo, a quem todos nós tributamos uma grande admiração pelos seus dotes de carácter, pela sua brilhante inteligência e pelos seus dotes oratórios e cuja persuasiva eloquência cheia de lógica tanto tem contribuído para esclarecer espinhosos problemas com que bastas vezes temos de nos defrontar.
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O Orador:- Resta-me proferir umas breves palavras de justificação, quero dizer, de esclarecimento do meu voto.
Antes disso, porém, quero declarar que essas considerações não significam de maneira alguma uma profissão de fé religiosa. Creio que seria descabida neste lugar.
Uma das causas principais da impopularidade do partido detentor do poder quando se proclamou a República e de nunca ter conseguido criar raízes na alma popular foi, sem dúvida, e intolerante perseguição religiosa (em nome da liberdade!), que teve a sua expressão máxima na lei da separação, promulgada a breve prazo, após a sua subida ao poder.
Além das intoleráveis violências que a lei continha havia a perseguição directa a todos aqueles que patenteassem sentimentos religiosos.
Grave êrro psicológico, em que aliás têm caído outros estadistas de outras nações.
E chamo-lhe êrro porque é impossível esmagar a consciência humana, onde predomina sempre com mais ou menos intensidade um sentimento religioso - isto em todos os tempos e seja qual fôr a raça.
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Podem reduzir-se as manifestações externas pelo terror, o que por vezes dá aos demolidores das religiões a ilusão de que caminham para a sua almejada extinção.
É precisamente quando mais se afervora o sentimento religioso - é quando ele se vê confinado na própria consciência e por isso mais perto de Deus.
Ou mais cedo ou mais tarde não tardam êsses estadistas a aperceberem-se de que êsse ataque às consciências vem a ser a causa primordial da falência dos seus planos políticos, tam enérgica é a fôrça espiritual que irradia das almas opressas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A lei da separação tal como foi concebida primitivamente não podia viver, sobretudo num país cuja história chegou quási a atingir os limites do inverosímil, precisamente porque a sua epopeia foi realizada com duas grandes forças espirituais intimamente enlaçadas - o sentimento religioso e o amor da Pátria.
Progressivamente foram-se demolindo todas as arestas.
Foi, sobretudo, a legislação do Estado Novo que veio colocar a lei quási no mesmo pé da actual Concordata, no dizer do douto parecer da Câmara Corporativa, que muito judiciosamente faz notar que a principal virtude da Concordata foi ampliar extremamente o seu alcance, transformando a lei, de diploma jurídico interno, em instrumento jurídico internacional e, acima de tudo, sob a égide do chefe espiritual da cristandade.
Sr. Presidente: devo confessar que por vezes tenho preguntado a mim próprio se a obra feita no campo moral não estará profundamente distanciada da colossal transformação material realizada pelo Estado Novo.
Hoje já tenho uma resposta, e bem consoladora - dá-a a Concordata.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Pela minha, parte, pelo que a Concordata deve realizar em benefícios para a nossa instituição fundamental - a família -, pelos frutos que não deixarão de se produzir na educação da gente portuguesa, no robustecimento do prestígio do Império Colonial, etc., pela minha parte, digo, considero a Concordata uma poderosíssima alavanca para o progresso e grandeza de Portugal.
Ainda há um outro aspecto no Acôrdo, e não é dos que menos me impressionou. Uma simples leitura dos textos deixa-nos imediatamente uma impressão nítida de que as duas Altas Partes Contratantes são de facto entidades de bem.
Vê-se o espírito de lealdade que presidiu às negociações, observa-se a nobre isenção da Santa Sé e o seu espírito de conciliação com relação às questões de ordem material.
Por todos êstes fundamentos é com o mais vivo prazer que eu dou o meu caloroso voto no sentido da ratificação da Concordata e do Acôrdo Missionário, assinados na cidade do Vaticano em 7 de Maio.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Palmas nas galerias.
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Diniz da Fonseca: - Sr. Presidente: depois das autorizadas palavras que foram proferidas pelo Sr. Presidente ao Conselho e pelos oradores que me antecederam eu teria desistido de vir, neste momento, a esta tribuna se, porventura, se tratasse de esclarecer uma Assemblea já suficientemente esclarecida.
Creio, porém, que a minha missão neste momento pode ser bem diferente. Não se trata de esclarecer a Assemblea, mas traduzir o sentir da própria Nação, que oficialmente representamos.
Só por isso vim a esta tribuna dizer algumas breves palavras.
Suponho que a expressão do sentimento da Nação em face da Concordata sujeita à apreciação da Assemblea não é indiferente ao valor do próprio documento.
A Constituição prevê esta manifestação através da Assemblea.
Reclama-a o objecto da Concordata, que toca nas mais profundas raízes da alma nacional; exige-a em certo modo o próprio sentir da Igreja, respeitadora da consciência pública das nações; e creio ainda que a exigem as nossas melhores tradições representativas.
Esta Assemblea recorda-me uma outra reunida na cidade de Lisboa há seis séculos e meio. Quero-me referir às Côrtes Gerais mandadas reunir por El-Rei D. Diniz para aprovar uma outra concordata, a chamada Concordata dos 4O artigos, que eu suponho, Sr. Presidente, ter sido um dos documentos mais notáveis das relações de Portugalcom a Santa Sé até ao momento em que foi assinada aquela que está agora sujeita à nossa apreciação.
Concordata notável essa pela solenidade de que foram revestidas as negociações. Foi negociada em Roma entre um grupo de prelados portugueses representantes dos interesses da Igreja e os procuradores de D. Diniz, presidindo como juízes três cardiais nomeados pelo Papa.
O acôrdo foi assinado no palácio do Bispo de Ostia em 7 de Fevereiro de 1286 e solenemente confirmado pela bula de 7 de Março do mesmo ano.
Pela cláusula 8.ª do acôrdo, a Concordata e a bula seriam aprovadas e recebidas em Côrtes Gerais convocadas especialmente para êsse fim. As Côrtes reuniram para aprovar.
Notável essa Concordata pelo seu objecto, as liberdades e imunidades essenciais da Igreja; mas notável sobretudo porque ela constituiu um instrumento de conciliação, que preparou a colaboração entre a Igreja e a Nação Portuguesa durante o largo período de cinco séculos, que foram dos de maior valor na nossa nacionalidade.
Podemos dizer que a paz e concórdia que trouxe aos dois poderes a famosa Concordata celebrada entre o Papa Nicolau IV e El-Rei D. Diniz apenas foi virtualmente quebrada pelo absolutismo césaro-papista do século XVIII, que entendia poder governar a consciência dos fiéis mesmo contra o soberano Pontífice; e mais tarde pelo regalismo político da Carta Constitucional de 1826.
Apesar de nesta a religião católica ser declarada como religião do Estado e da aparente concórdia e união legal entre os serviços públicos e os serviços religiosos, não era no entanto difícil descobrir na realidade uma desunião moral, uma verdadeira separação.
O regalismo político permitia-se impugnar as decisões dos concílios e fiscalizar a pureza da doutrina!
Esta suspeição preparou o sistema separatista que veio a ser imposto em 1911 à Nação Portuguesa. E aqui poderemos distinguir três períodos: o período de separação perseguidora, de 1911 a 1918; o período de acalmia oficial, de 1918 a 1926; o período de preparação da paz e a proclamação da paz entre os dois poderes, realizada pela Concordata que está neste momento à apreciação da Assemblea.
Como afirmou há pouco nesta tribuna o Sr. Presidente do Conselho, por esta Concordata se regressa de facto à mais lídima tradição da nacionalidade portuguesa em matéria das relações entre os dois poderes.
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Mas pensará também assim a Nação Português?
Aqueles que lessem a Concordata e pretendessem apreciá-la simplesmente pelo valor da restituição do interesses materiais ou das regalias e privilégios de que outrora gozaram as pessoas da Igreja poderão ser tentados a considerá-la em certo modo como uma abdicação, uma consolidação dos atropelos cometidos pelos poderes civis há dois séculos a esta parte. Mas aqui terão ocasião de ver como se enganavam os que supõem a Igreja ambiciosa de benesses materiais ou privilégios. No material não receia fazer figura de vencida.
Se porém consideramos na Concordata e no Acordo Missionário o reconhecimento das liberdades, essenciais à existência e missão apostólica da Igreja, o reconhecimento da independência da sua autoridade na esfera própria, a lealdade em que são abertos os horizontes espirituais da sua missão, teremos de reconhecer que pela Concordata foram varridos preconceitos e prejuízos mentais que tinham mais de dois séculos de existência tenebrosa.
Creio poder afirmar que ela representa o sentir da Nação Portuguesa e que inclusivamente os adversários da fé sinceros da Igreja, farão justiça à intenção, à rectidão, à honestidade e lealdade com que o documento foi negociado, à liberdade concedida às pessoas dentro das normas que nela ficam estatuídas, ao respeito que aos próprios descrentes fica consignado. Cabe aqui uma recordação de ordem pessoal.
Há dezoito anos estava eu nesta Assembleia na oposição do velho Parlamento e tive a honra de apresentar um projecto de lei, subscrito por mais dois ilustres Deputados, que visava ao reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja e da sua capacidade para adquirir os bens indispensáveis para as suas funções.
Esse projecto foi às três comissões que no velho Parlamento tinham por missão dar o respectivo parecer. Tenho comigo esse parecer, onde se lê a seguinte afirmação, aceite por unanimidade:
«O papel do Estado deve ser o de assegurar a todos inteira liberdade de consciência, de forma a poder, quem é crente, utilizar-se dos benefícios morais da sua religião».
E num contraprojecto elaborado por essas comissões finou reconhecida a necessidade de traduzir em lei estes dois princípios fundamentais: o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja e a possibilidade de ela adquirir e administrar os bens indispensáveis para o exercício da sua função.
E no mesmo ano e publicava o decreto n.º 8:351, contendo as primeiras pedras do Acordo Missionário agora levado a efeito.
Por isso, Sr. Presidente, eu digo que os princípios essenciais do documento que agora converte um benéfica realidade a que há dezoito anos por a simples aspiração são tanto de aceitar que até já naquele momento entre os próprios adversários se reconhecia a necessidade de eles virem a ser traduzidos e estabilizados em normas jurídicas, por forma a garantir a paz e a tranquilidade entre os dois poderes.
E só consequências políticas benéficas são de esperar da Concordata; da sua realização adveio para a consciência católica um maior incentivo para o cumprimentei dos deveres de respeito e cooperação, fautores de maior coesão social, tam indispensável a todas as sociedades nesta hora em que ondas de anarquia intelectual e moral se espraiam por toda a Europa.
Finalmente do robustecimento da autoridade espiritual mi terra portuguesa é de -esperar se siga o aumento dos valores espirituais, desses valores espirituais de que em todos os sectores da sociedade se vai sentindo hoje uma profunda nostalgia.
E não admira que assim aconteça. Sr. Presidente quando tudo se torna instável já se aprecia um centro de unidade colocado acima das contingências humanas. Quando tudo fraqueja já se aprecia a intransigência de uma autoridade espiritual capaz de guardar com firmeza e proclamar com desassombro os princípios da verdade e da justiça.
Quando tudo parece precipitar-se em derrocada já se aprecia, Sr. Presidente, e já se olha com esperança um poder que conta vinte séculos de tormentosa existência e tem consigo promessas de vida eterna.
Pois é com este poder que Portugal acaba de concluir esta Concordata.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Palmas nas galerias.
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Álvaro Morna: - Sr. Presidente: se há factos que pela sua culminância ou projecção na vida da nacionalidade se destaquem esplendorosamente entre os trabalhos da Assembleia Nacional - a nova Concordata que vem de ser assinada entre a Santa Sé e Portugal e cuja ratificação aqui nos reúne é bem um deles.
E como português, como católico, como Deputado, que subo à tribuna para juntar ao meu voto palavras de verdadeiro júbilo, sentimentos de aplauso pelo
notabilíssimo documento que ora se discute.
Não errarei, Sr. Presidente, nem tampouco irei exagerar, se a definir de acto de maior grandeza da nossa política externa nos últimos séculos.
Não exagero, nem erro contando-o como facto da mais transcendente repercussão na nossa política interna, acto de justiça e de fé, verdadeira expressão da consciência colectiva da Nação.
Assim é, Sr. Presidente!
São passadas precisamente três décadas depois que, sob o influxo dos ideas negativistas do século passado e por errada visão dos homens, os obreiros da maior transformação política operada neste País, tendo feito arvorar cm bandeira de programa o problema religioso em Portugal, decretavam, após a República, a lei de separação da Igreja do Estado.
Lei de opressão lhe chamou um grande espírito - o alto dignitário príncipe da Igreja - em Portugal.
E com razão, Sr. Presidente!
Porque o foi o diploma que separou a Igreja do Estado em Portugal - alheio a todos os princípios de equidade e de justiça, adverso à irradiação civilizadora do mais antigo país colonial, em desrespeito do mais alto poder espiritual do mundo, que pela doutrina e pela moral e pela tradição dos séculos tam fortemente impera na alma nacional.
Apoiados.
Diploma de resgate é êste, Sr. Presidente, que, assentando nos laços espirituais que ligam à Igreja a grande nação católica que é Portugal - à Igreja em que íni-lita a quási totalidade dos portugueses, e cujos princípios morais são bem os que regulam a nossa vida social e política - diploma de resgate, Sr. Presidente, que redime os erros e injustiças de um passado que nem por ser efémero deixou de assimilar grandes estragos, fortes abalos na consciência nacional.
Diploma de resgate, Sr. Presidente, que fixa cm bases de direito o verdadeiro sentimento nacional, que regula com alto espírito de justiça e de verdade as relações da Igreja e do Estado em Portugal, postos um e outro em pé de igualdade, de paz e de concórdia, sem colisões nem interferência de influências e de funções - porque se respeita e reconhece à Igreja o poder espiritual que
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(Continuação)
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por direito divino lhe compete. porque se reserva ao Estado o poder temporal de que por essência e por direito político é livre senhor e soberano detentor.
«Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César».
Jamais, Sr. Presidente, poderia a grande máxima do Evangelho ter encontrado mais fiel e mais honesta e mais perfeita realização.
Nem clericalismo, nem estatismo, nem a Igreja a intervir nos negócios do Estado, com ofensa, da consciência política da Nação, nem o Estado oprimindo, cerceando as justas regalias e liberdade da Igreja, com grave ofensa dos seus direitos e da consciência católica do País.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Esta, Sr. Presidente. a essência dos princípios consignados na Concordata.
Bem haja o Govêrno que, com tanto acêrto e tanta . hombridade e tanta justiça, soube interpretar e realizar por tam notável acôrdo o sentimento nacional.
Bem haja Portugal, novo, forte, redimido, que, pelo seu civismo, pela consciência das suas tradições, pela segurança do seu destino eterno, sabe dar ao mundo - nesta hora conturbada e de angústia que, a humanidade atravessa, em que a honra e a justiça e a liberdade e o direito e todas as conquistas espirituais e morais de uma civilização se podem afogar em sangue- tam alto exemplo de serenidade, de justiça e de paz, de concórdia e de respeito pelo mais alto poder espiritual do mundo - aquele poder que vem de Deus e cuja doutrina e preceitos morais os povos esquecem ao digladiarem-se como feras; com inteiro desprezo da dignidade humana.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: a Concordata, de tam larga projecção na vida interna e externa da Nação, é assinada precisamente neste momento cruciante da história da humanidade em que correm rios de sangue numa Europa em armas, em que o próprio mundo e a civilização parecem ruir sob a ameaça do paganismo e de domínios de fôrça e de raça que se pretendem vinizar elevando sacrìlegamente a idolatria a culto religioso.
E é o Chefe Supremo da Igreja, com quem Portugal estabelece Concordata - o Sumo Pontífice, a nobilíssima figura de Pio XII, digno sucessor de Leão XIII, de Bento XY, de Pio X, de Pio XI - quem toma, com toda a autoridade da sua fôrça espiritual, a magnífica posição de honra e de bondade, e de inteligência e de clarividência em face da grande tragédia - - condenando a violência dos opressores, abençoando os fracos vítimas do despotismo escravizante..
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Por felicidade do destino, nós não sofremos ainda as agruras e calamidades da guerra.
Praza a Deus que não venhamos a senti-las.
Mas a verdade é que nenhum povo se pode hoje sentir seguro de não vir a ser envolvido pelas labaredas da fogueira que alastra.
Em qualquer hipótese, Sr. Presidente, que as palavras e sentimentos tam nobremente ditados pelo Chefe da Igreja a toda a humanidade caiam bem fundo na alma de todos os portugueses.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Nutridas palmas da Assembleia e das galerias. O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ulisses Cortês: - Sr. Presidente: realiza-se hoje a sessão extraordinária destinada a ratificar, nos termos do artigo 91.º, n.º 7.°, da Constituição, a concordata negociada entre a Santa Sé e o Estado Português - facto que em quaisquer circunstâncias se revestiria da maior magnitude, mas que no momento presente assume verdadeira transcendência nacional.
No seu aspecto diplomático, representa êsse acto o feliz complemento de uma obra de pacificação religiosa que vem dos primeiros tempos da Revolução e constitue um novo triunfo a acrescentar a tantos outros, reveladores da segurança e da clarividência com que tem sido orientada ùltimamente a nossa política externa.
Mas não é êste o sen único significado, nem talvez seja o mais importante.
Portugal foi sempre um país profundamente católico e a sua história é, em grande parte, a história da fé.
Desde a fundação da nacionalidade, a que a Igreja presidiu, até à expansão territorial e à epopeia ultramarina, realizadas sob o signo da cruz de Cristo, todo o esfôrço colectivo português no longo dos séculos representou simultaneamente uma emprêsa de engrandecimento nacional e uma obra de evangelização cristã.
A despeito de conflitos de equívocos em que tantas vezes se chocam o poder espiritual e temporál, não raro os reis portugueses - expoentes da vontade nacional, indomável nos seus instintos de independência - reivindicaram como seu melhor título de nobreza o de defensores da fé, traduzido nos epítetos de piedoso e de fidelissimo, que algumas vezes encontramos em seguida nos seus nomes na ampla sucessão dos tempos.
Uma revolução demolidora, inspirada por uma ideologia estranha e constituindo um puro fenómeno de mimetismo, político, abstraíu destas realidades sagradas pelos séculos e instaurou entre nós, agravando a idea do Estado laico, um Estado ateu, que contrariava profundamente a linha estável da nossa tradição histórica.
O acto para que hoje é solicitada a nossa ratificação representa o reatamento dessa tradição e a solução definitiva de um litígio; cuja perduração se traduzia numa injustiça e que magoava profundamente a sensibilidade da maioria dos portugueses.
Foi Leroy Beaulieu, segundo creio, quem afirmou que uma sociedade onde o Estado e a religião se encontram em luta não pode ser senão uma sociedade profundamente perturbada; e que aquela onde ambos pretendem viver numa ignorância mútua é quási uma sociedade impossível.
O Estado não pode, efectivamente, desconhecer o fenómeno religioso, e êsse facto tem de ter a sua projecção jurídica, que Barthélemy exprimiu assim: «se duas pessoas são obrigadas por inevitáveis circunstâncias a cohabitar sôbre um determinado país as suas soberanias, embora de natureza diversa, podem encontrar-se em conflito, torna-se indispensável fixar por uma convenção lealmente observada o seu regime de relações e os direitos que o cada um pertencem».
E então ou o Estado legisla por via unilateral impondo o seu direito interno às diferentes confissões religiosas ou procede por via de convenção.
Neste último caso, tratando-se da Igreja Católica, a sociedade internacional, fortemente hierarquizada e centralizada, exercendo a sua acção espiritual sobre centenas de milhões de pessoa espalhadas por todo o mundo», a convenção tem o carácter de um tratado e é, portanto, um instrumento diplomático, concluído entre duas pessoas de direito das gentes e submetido às regras do direito internacional.
Negociando com a Santa Sé, o Estado Novo enveredou avisadamente por êste último caminho e fê-lo, não para restaurar o antigo regime concordatário, inspirado pelos princípios regalistas, mas para celebrar, em har-
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monia com os preceitos da sua Constituição Política, uma concordata de separação que mantém integros os princípios que estão na base do regime separatista - a liberdade religiosa, a igualdade de todos os cultos perante a lei e a submissão da vida das confissões religiosas ao regime geral do direito comum.
Examinando o documento em discussão, nas diversas disposições que o constituem, verifica-se que êle se afasta igualmente do sistema que estabelecia a subordinação da Igreja ao Estado e do que subalternizava o Estado à Igreja e que, bem ao contrário, o espírito que o informa é o de estabelecer as relações entre ambos numa base de independência e de harmonia que, conciliando os seus interêsses e direitos recíprocos, delimite de modo tanto quanto possível preciso as fronteiras das respectivas soberanias.
De todas essas disposições avultam sem dúvida as referentes ao Padroado, que confirma direitos adquiridos pelos nossos serviços seculares à civilização e ao apostolado religioso e o Acôrdo Missionário que, revigorando a nossa soberania colonial e abrindo largo campo à nossa actividade civilizadora e universalista, é, nesta hora particularmente grave, de um oportuno e expressivo significado.
Mas outros e importantes preceitos se consignam na Concordata e entre êles importa destacar os respeitantes à liberdade da Igreja e à sua personalidade jurídica, à aquisição e regime de bens, à prévia comunicação ao Govêrno do nome das pessoas escolhidas para as dignidades episcopais, ao ensino e assistência religiosa, aos efeitos civis do casamento canónico e à sua indissolubilidade.
A excelência e a oportunidade dêstes princípios não podem sofrer contestação e se alguns reparos há a fazer êles apenas podem consistir na prudência revelada relativamente às restituições à Igreja e no facto de se não ter adoptado com referência ao divórcio, em vez de uma fórmula de compromisso, a solução integral que o problema demanda.
Quanto ao primeiro aspecto, embora a Concordata reconheça à Igreja a propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam e que se encontram na posse e sob a administração do Estado, certo é que foram exceptuados os que se encontram afectos a serviços públicos, ficando assim salvaguardado especialmente o património destinado à obra nobilíssima de protecção a menores.
Quanto ao divórcio, embora reconheça o melindre da questão e compreenda as razões de oportunidade política que determinaram a solução adoptada, só tenho a lamentar, quando mais não seja por coerência com ideas por mim defendidas pùblicamente, que a Concordata não tenha operado o regresso ao princípio rígido da indissolubilidade conjuga], vigente nos países com quem temos as mais estreitas afinidades: o Brasil, a Espanha, a Itália, para não falar em grande parte dos países da América latina, nossos irmãos pela raça e pelo espírito.
Produto de concepções filosóficas repudiadas pela nossa formação cristã ou de princípios individualistas incompatíveis com a proeminência do bem comum, o divórcio. pela liberalidade com que é admitido entre nós, constitue um agente perigoso de desagregação social, no mesmo tempo que dissolve a unidade e a estabilidade da família, fundamento irredutível de toda a sociedade organizada.
Entre nós, como em toda a parte, os perniciosos efeitos do divórcio revelam-se na aplicação da lei sociológica que Augusto Comte enunciou e segundo a qual o divórcio, uma vez instituído, tende, por um dinamismo incompreensível, a subir numa curva ascendente, que nenhuma fôrça consegue deter.
Mas, no meio do quadro sombrio que as estatísticas do divórcio nos traçam, ressalta um facto profundamente consolador: é o de que, em contraste com os grandes meios urbanos, onde a descristianização atinge a plenitude e que, contudo menos da sexta parte da população, contribue com mais de metade do total dos divórcios, as populações rurais só em deminuta medida sofreram os efeitos do contágio e conservam ainda, em toda a sua pureza, o culto das virtudes domésticas.
Seja-me, por isso, lícito, ao concluir, sem embargo do aplauso que é devido ao Govêrno pelo acto de largo alcance nacional que hoje se ratifica, formular-lhe daqui o meu apêlo, para que, pela total supressão do divórcio, salve na alma portuguesa os valores espirituais que nela existem em pujante virtualidade e sem o primado dos quais o homem regressa ao domínio cego dos instintos e a vida perde tudo o que a nobilita e lhe dá sentido.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Palmas das galeria».
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Braga da Cruz: - Sr. Presidente: em sessão de 26 de Abril de -1938, como não houvesse sido pôsto em ordem do dia, até então, um projecto de lei que eu havia tido a honra de apresentar à Assemblea Nacional, e ao pedir a Y. Ex.ª se dignasse informar-me sôbre a possibilidade da sua discussão, eu pedi a atenção do Govêrno para a necessidade de um entendimento e acôrdo entre os poderes temporal e espiritual por forma que, mantendo-se, no entanto, bem nítida a sua diferenciação, êles não se entrechocassem e assim se deminuíssem.
Tais palavras obtiveram geral apoio da Assemblea, e Y. Ex.ª, reconhecendo a importância e gravidade do problema, declarou estar convencido que essa importância e essa gravidade não passariam despercebidas ao Govêrno e de que êle providenciaria sôbre o assunto na primeira oportunidade. •
Aquele pedido que eu formulei, e que era bem um pedido da Nação, logo também assim expresso pela atitude de aplauso geral da Assemblea Nacional, acaba de ter sido atendido.
E foi-o por-forma tam elevada, e tam notável, que eu, ao dar o meu voto de aprovação, não quero deixar de felicitar o Govêrno pela obtenção de um acôrdo que considero um triunfo e um êxito diplomático de primeira ordem para Portugal.
A Concordata e o Acôrdo Missionário são actos de altíssimo alcance e de larga e profunda visão política demonstrativos do patriotismo mais puro.
Visam as concordatas a temperar, no terreno da prática, o absoluto dos princípios teóricos, mas, apesar disso, nem sempre se há seguido tal caminho, e até, para mal nosso, ao ser preparada e discutida a Concordata de 1857, as teorias e os romantismos de certos políticos portugueses vendaram-lhes de tal forma os olhos que êles foram levados a fazer tais exigências que acarretaram a Portugal danos gravíssimos e não pequenos vexames.
Por decreto de 3 de Junho de 1851 foi nomeado Almeida Garrett Ministro Plenipotenciário para tratar com o internúncio extraordinário e delegado apostólico em Lisboa, mas em Agosto de 1852 Garrett foi substituído por Rodrigo da Fonseca, só em 21 de Fevereiro de 1857 se ultimando a Concordata.
Longa e acalorada discussão houve eu tão no Parlamento, tendo sido deliberado que a ratificação ficasse dependente de se obterem da Santa Sé explicações acêrca de vários pontos.
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Das novas negociações se chegou às notas reversuis de 10 de Setembro de 1859, mas apesar disso dificuldades enormes se levantaram na execução da Concordata, todas devidas ao espírito jacobino de muitos políticos, que não admitiam a existência de congregações religiosas, nem mesmo no ultramar, e antes promoveram lá a criação de um clero sui generis, praticando todas as irregularidades e impelindo com os seus desmandos os povos de várias regiões a passar ao protestantismo estrangeiro.
Mas não foi essa apenas a triste conseqüência das paixões políticas da época, as quais, em devastador incêndio das inteligências e dos nobres sentimentos patrióticos, declaravam preferir perder o Padroado Português a ter de mandar para lá clero secular e regular que lhe desse vida, e o mantivesse como glória legítima de Portugal.
Assim se tratava o Padroado, que é ainda hoje, como disse há dias o ilustre director de um importante jornal de Lisboa, uma das forças e uma das glórias da «universalidade» portuguesa, sendo a história do Padroado do Oriente a história da nossa epopeia na Ásia.
É certo que já vinha a sua crise da escassez do clero missionário após a expulsão dos jesuítas, e, mais tarde, do encerramento dos conventos, mas foram os políticos inflamados do século XIX que lhe vibraram o último golpe.
Cabe agora ao Govêrno a honra de reatar a nossa tradição e de procurar rehaver o terreno tam loucamente perdido, perda essa que tam altamente lesou os interesses de Portugal.
A Concordata e o Acôrdo Missionário são pois actos do mais puro patriotismo.
Frisa-se no notável parecer da Câmara Corporativa a nossa tradição concordatária, e eu quero afirmar até que não há em todo o mundo país algum que possa igualar-nos nessas realizações de paz e concórdia.
Cedo começámos a realizá-las, e numerosas elas se nos apresentam.
Em geral é tida como primeira Concordata celebrada pela Igreja a de Worms, de 23 de Setembro de 1122, se bem que como tal já possa considerar-se a expressa na bula de Urbano II, de 1098, que concedeu ao Conde da Sicília a Legação Apostólica.
Pois bem: logo D. Afonso II de Portugal celebra duas Concordatas, constantes do livro antigo das leis, a fls. 45 e 48, embora de pouca importância. .
A 3.ª Concordata foi celebrada com D. Sancho II, em 1223; a 4.ª, também com êle, por bula de Gregório IX.
D. Afonso III celebra a 5.ª e 6.ª Concordatas, sendo a 5.ª pela provisão e capítulos de acatamento à bula de Gregório IX, ainda em latim, e a 6.ª já em linguagem vulgar.
D. Dinis celebra a 7.ª Concordata, com 40 artigos, confirmada pela bula de Nicolau IV de 7 de Março de 1289, bem como a 8.ª, chamada dos 11 artigos, a 9.ª, realizada no Pôrto em 1328, e a 1O.ª, realizada em Lisboa em 1347.
A 11.ª Concordata é feita por D. Pedro I. em Elvas, em 1360.
D. João I celebra a 12.ª Concordata antes de 1427 e a 13.ª, muito importante, em Santarém, nesse ano.
. D. Afonso V realiza em Lisboa, em 14 de Outubro de 1455, a 14.ª 'Concordata e a 15.ª em Almeirim, a 9 de Janeiro de 1458.
A 16.ª Concordata é celebrada por D. Manuel I, em 11 de Janeiro de 1516, e confirmada pela bula de Leão X de 25 de Julho de 1516.
E surge depois a discutida 17.ª Concordata, que se diz realizada por D. Sebastião, em 18 de Março de 1578, mas cuja autenticidade Francisco Soares ataca.
A 18.ª Concordata é realizada por D. João IV, em 12 de Setembro de 1642, e a 19ª por D. Maria I. em 20 de Julho de 1778, às quais se seguem a 20.ª. de 2l de Outubro de 1848, assinada pelo Conde de Tomar, a 21.ª, de 21 de Fevereiro de 1857, e a 22.ª. de 23 de Junho de 1886.
Estavam estas duas últimas em pleno vigor e tudo levava a pensar na sua revisão, quer por parte da Igreja, quer por parte do Estado, quando êste, em 1911, em vez de enveredar pelo patriótico caminho da defesa dos interêsses de Portugal no mundo, os pretere uma vez mais e se lança isoladamente no caminho de acintosa separação, que leva Junqueiro a afirmar que tem garras e colmilhos, e que, em vez de ser preparada e redigida com asas de anjo, como era mester, foi imposta com tamancos de almocreve.
E só um cego poderia negar as tristes e desastradas conseqüências dêsse acto, tam perniciosamente impolítico e antipatriótico. •
Beata a Concordata e o Acordo Missionário o nosso velho caminho de paz, e, como os tempos são outros, fá-]o adentro dos novos preceitos do direito concordatário, cuja exacta, prefiguração se pode ver na Concordata com a Sérvia assinada em 24 de Junho e ratificada em 25 de Agosto de 1914.
Assim foram as Concordatas dos três países bálticos: Letónia, Polónia e Lituânia.
Assim foram as Concordatas dos três Estados da Pequena Entente: Roménia, Checo-Eslováquia e Jugo-Eslávia.
Assim foi a peça mestra do direito concordatário italiano que é a Concordata italiana de Latrão.
Assim foram as Concordatas germânicas da Baviera, Prússia, Baden, Império Alemão e Áustria.
Assim o foram também vários pactos e acordos que com outros povos há celebrado a Santa Sé.
E é com justificado júbilo que eu vejo que a tudo se procurou atender e, livre de qualquer idea reservada, repito aqui as palavras de Henry Bordeaux: «Na nossa noite de tempestade o homem branco do Vaticano traz a luz».
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Palmas nas galenas.
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Abel Varzim: - Sr. Presidente: depois da brilhante exposição histórica feita à imprensa por S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho, entendo não me ser necessário ocupar esta Assemblea com datas e factos que prepararam a Concordata.
Em todo o caso, Sr. Presidente, uma vista de relance sôbre a posição histórica do problema não será de todo, descabida, sabendo-se que as incompreensões do presente se filiam muitas vezes no desconhecimento do passado.
A questão dos dois poderes - civil e eclesiástico - salvo no povo judeu, nunca foi posta antes de Cristo. Quem retinha o poder sôbre os indivíduos retinha-o totalitàriamente.
Com a fundação da sociedade religiosa cristã para governar os indivíduos nos domínios da consciência pôs-se, pela primeira vez, o problema em toda a sua agudeza.
O império romano pagão decreta leis de excepção contra a Igreja porque acusa os cristãos de crime de lesa-majestade, por não obedecerem estes à autoridade religiosa do imperador.
O édito de Milão, no ano de 303, publicado pelo imperador Constantino, concede já à Igreja autoridade
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religiosa, reconhecendo assim a distinção entre os dois poderes.
Nos últimos tempos, do império romano a situação modifica-se algum tanto. No Império do Oriente, o imperador, embora reconheça a autoridade da Igreja, entende que a sua autoridade v superior e não consente que a Igreja publique medidas sem o seu consentimento: é o regime do césaro-papismo. No Império do Ocidente é reconhecida n autonomia cios dois poderes, mas o Papa declara o seu superioridade, pois diante de Deus é responsável pela própria pessoa do imperador.
No reino dos francos, os merovíngios manifestam a tendência de tomar para ai unia parte das atribuições da Igreja e Carlos Magno consegue submeter ao Estado a Igreja, a qual aceita esta submissão porque o imperador a defende por toda a parte. Os seus sucessores, porém, abusam destas concessões e querei u sobre a Igreja exercer rigorosa tutela. O princípio da liberdade da Igreja tomará, por isso, a dianteira das preocupações religiosas. A tese de Santo Agostinho, que defende a unidade de poderes, vai dominar durante a Idade Media. Mas como esta unidade só era possível pelo domínio de um poder sobre o outro a Igreja reclama a superioridade e obtém-na, no século XIII com Inocêncio III. A época esplendorosa desta autoridade política do Soberano Pontífice é marcada pela luta entre Bonifácio VIII e Filipe O Belo, e a história está cheia das benemerências desta situação jurídica, reclamada aliás pelo condicionalismo da época.
Vem depois o declínio do poder político da Igreja, poder que ainda exerce na divisão das possessões portuguesas e espanholas. Mas a destituição de Henrique VIII e os protestos contra os tratados de Westfália já não produzem efeito.
Os príncipes esforçar-se-ão por se libertar do poder da Igreja e marcar sobre o poder espiritual a sua superioridade.
O protestantismo provoca a rotura da unidade do mundo cristão. Mas embora Lutero defendesse arduamente o princípio do dualismo fie poderes, os príncipes protestantes apoderam-se, de farto da autoridade religiosa e negam praticamente a distinção entre a Igreja e o Estado.
O liberalismo político nascido do racionalismo - defendendo a soberania popular, nega a existência de qualquer outro poder superior e pretende submeter a Igreja ao Estado e aniquilá-la, para finar apenas o povo, único soberano, embora, em nome dos princípios da liberdade, reconheça aos indivíduos o direito de terem uma religião.
Como a tendência para a submissão da Igreja encontrou fortes reacções, caminharam os Estados para o regime de separação hostil, como termo intermédio paru a supressão da autoridade religiosa.
O socialismo, partindo do materialismo histórico, não reconhece na Igreja senão uma manifestação da infra-estrutura económica - manifestação que tende a desaparecer com a evolução da técnica da produção.
Foi neste ambiente geral de ideas que o Estado Português de 1910 decretou a separação hostil, com o firmo propósito de suprimir a autoridade da Igreja.
Mas o movimento de supremacia do poder civil pelo aniquilamento do «poder religioso tinha feito a sua época nos países não dominados pelo marxismo; e os Estados, depois da guerra de 1914-1918. reagem e realizam concordatas com a Santa Sé para delimitarem as esferas de acção de cada um dos poderes.
Sendo uma realidade incontestável mesmo para os não crentes - a existência da Igreja e o aumento sempre crescente do número de fiéis por todo o mundo, a única atitude razoável e o único regime sensato sem o do acordo mútuo entre os dois poderes para que se completem, se auxiliem e deixadas de parte lutas prejudiciais, sobretudo ao Estado, realizem obra de paz e de progresso.
Bastaria esta simples consideração para que déssemos ao Governo Português os nossos aplausos mais calorosas, não só por ter realizado este entendimento prestigioso para si próprio, mas também por ter tido a inteligência suficiente para se enquadrar no movimento são das ideas que dominam as nações civilizadas no momento actual, tendente a reconhecer os direitos das consciências e dos princípios morais em crise e que, só a Igreja tem força suficiente para defender e fazer finalmente respeitar.
Mas a Concordata. Sr. Presidente, não e uma inovação nas situações internas que vem criar. Tudo o que ela fixou, ou quási tudo já estava, determinado ou esboçado mi nossa legislação, e estava-o já certamente nos nossos costumes. O próprio reconhecimento da indissolubilidade do
matrimónio católico, que a tantos pareceu arrojada temeridade, mais não é do que o reconhecimento jurídico de um facto real: um católico não se divorcia. No dia em que o tenha feito por culpa própria repudiou uma das verdades fundamentais da sua fé e já não pode ser enumerado entre os católicos fiéis. Ao receber voluntariamente o sacramento do matrimónio repudia publicamente o divórcio e reclama por esse mesmo facto que o Estado lhe reconheça este repúdio e respeite os direitos da sua consciência.
A situação existente até agora era socialmente perigosa porque desacreditava o Estado e indisciplinava os indivíduos. O Estado afirmava que o único casamento legítimo era o casamento realizado perante o oficial do registo civil. Mas quási 80 por cento dos casamentos é feito perante a Igreja, e estes 80 por cento de portugueses não reconhecem validade ao casamento civil, considerando-o ilegítimo. E sendo certo, segundo confessa o Anuário Demográfico, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística c referente ao ano de 1937, «o aumento progressivo do número cie casamentos, religiosos», verificasse que um número sempre crescente de portugueses descria da tese do Estado, provocando assim o seu desprestigio:
Reconhecendo a validade do casamento religioso e a sua indissolubilidade, acabou o Estado com uma situação desprimorosa para ele próprio, satisfez a consciência católica da Nação «entrou, mais uma vez, na política de verdade, mais tio que nunca necessária hoje, num mundo que começa a prestar culto à força da mentira.
Não quem demorar a Assembleia com considerações desnecessárias. O País deve alegrar-se com a realização da Concordata e a Assembleia Nacional deve dar-lhe todo o seu apoio.
Por mim, como português e como sacerdote, alegro-me sinceramente. E minha alegria sobe de ponto ao lembrar-me que a Igreja foi generosa e grande renunciando aos bens que legitimamente lhe pertenciam e violentamente lhe foram arrancados, ao ver com que nobreza de ânimo não pediu nem um ceitil no Estado para realizar a sua obra de pacificação - dos espíritos e das consciências e bem da Nação.
Eu sinto-me orgulhoso, Sr. Presidente, ao afirmar nesta tribuna n glória dos milhares dos meus irmãos no sacerdócio que por esse Portugal além, nas mais remotas aldeias, servem a Pátria com dedicação e heroísmo, multando « fome dos corpos e a fome das almas, criando, com o seu esforço cotidiano e obscuro, a estabilidade da Pátria pela estabilidade das famílias e da disciplina, sem pedirem ao Estado nada daquilo que paru muitos deles seria necessário para não passarem fome.
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O clero português, pela Concordata agora assinada renuncia também a qualquer -paga individual do seu sacrifício a bem da Nação.
Tendo renunciado ã favor do Estado a tudo o que possa significar bem-estar paga material, a Igreja tem o direito de reclamar que lhe reconheçam, ao menos, a grandeza da sua obra. E o melhor reconhecimento é a compreensão da Concordata, jia qual o Estado lhe - garante a liberdade de continuar, a exemplo do seu chefe espalhando o bom sôbre a terra.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Palmas nas galerias.
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa uma proposta de resolução.
O Sr. Presidente: - A proposta de resolução que o Sr. Deparado Mário de Figueiredo enviou para a Mesa é a seguinte:
Proposta de resolução
A Assembleia Nacional, tendo tomado conhecimento dos textos da, Concordata o Acordo Missionário, celebrados entro a Santa Sé o Estado Português;
Ouvidos o discurso do Sr. Presidente do Conselho e o debate que sôbre essas convenções só produziu;
Reconhecendo que cias regulam as relações entre a Igreja, e o Estado numa base de justiça, e equilíbrio entro os legítimos direitos do Estado e a liberdade da Igreja, fixando assim em Portugal um período fecundo de paz e de renascimento espiritual;
Considerando que, como acto de política externa, a, assinatura, dos referidos diplomas, no momento actual, é da mais alta importância para o prestígio moral da Nação Portuguesa no mundo;
Considerando especialmente o Acôrdo Missionário na sua decisiva projecção sôbre o desenvolvimento da nossa missão civilizadora e cristã no ultramar português e nos domínios do Padroado:
Certa do interpretar a consciência nacional:
Dá a sua aprovação à Concordata e Acordo Missionário assinados na Cidade do Vaticano em 7 de Maio corrente petos plenipotenciários de Sua Santidade Pio XII e de S. Ex.ª o Presidente da República Portuguesa.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional; 25 de Maio de 1940. - O Deputado Mário de Figueiredo.
O Sr. Presidente: - Vou submeter à votação da Assembleia a proposta de resolução assinada pelo Sr. Deputado Mário de Figueiredo.
Submetida à votação, foi aprovada por unanimidade.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Ulisses Cortês.
O Sr. Ulisses Cortes: - Sr. Presidente: pedi a palavra para justificar, em breves palavras, uma moção que vou ter a honra de mandar para a Mesa.
Existe em Viseu um seminário onde só encontram actualmente instalados serviços dependentes do Ministério da Guerra e que, nos termos da lei da personalidade jurídica, podia ser entregue, quando terminasse tal afectação a respectiva corporação encarregada do culto.
A sombra dessa disposição legal fizeram-se numerosas entregas nos últimos tempos, mas isso não será possível de futuro, porque a Concordata hoje ratificada altera profundamente o regime jurídico desses bens.
Ora, naquele seminário fez o Sr. Presidente do Conselho uma parte da sua educação e a êle está certamente ligado por vínculos do bem justificada ternura.
Lembrei me de sugerir à Comissão Jurisdicional dos bens Cultuais, a que mo honro de presidir, que antes da entrada em vigor da Concordata propusesse a S. Ex.ª o Ministro da Justiça que quando cessasse o sou actual destino fosso êsse estabelecimento educativo restituído à Igreja, para ser reintegrado na sua primitiva função.
Mas entendi que essa iniciativa devia pertencer a esta Assembleia, legitima representante da Nação, que tam relevantes o devotados serviços devo ao Sr. Presidente do Conselho.
Por isso, resolvi trazer aqui a meu alvitre - homenagem do carinhosa justiça que apenas vale pela intenção que a inspira e que a Assembleia Nacional certamente aprovará com emoção.
Passo a ler:
Moção
No momento da aprovação da Concordata esta arrendado ao Ministério da Guerra o antigo Seminário de Viseu, com sua igreja e cêrca. Encontram-se assim os edifícios o a cerca - aplicados a serviços públicos. Por força da Concordata ficariam definitivamente propriedade do Estado.
A Assembleia Nacional, lembrando-se do que foi naquela casa que o Sr. Presidenta do Conselho iniciou a sua formação o do que devo ser querido ao seu coração que,- com respectivos anexos, seja restituída ao fim a que se destinava, em sinal de congratulação por só ter celebrado a Concordata, exprime o voto do que, apenas desocupada, seja entregue a Diocese de Viseu.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 25 do Maio de 1940 - O Deputado Ulisses Cortês.
O Sr. Presidente: - Vai votar-se a inócuo acabada de ouvir para a Mesa pelo Sr. Deputado Ulisses Cortês.
Submetida à votação, foi aprovada.
O Sr. Presidente: - Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 30.
O REDACTOR - M. Ortigão Burnay.
CÂMARA CORPORATIVA
Rectificação ao parecer sobre o projecto de decreto relativo à acção colonizadora do Estado
No Diário das Sessões n.° 86, de 23 de Abril último a p. 47, no começo da declaração do voto do digno Procurador Francisco Gonçalves Velhinho Correia, onde se lê: «A despeito das emendas sugeridas pela Câmara Corporativa, não há parecer - separado do Procurador ou ra-se me que êste não é o que devia ser para se atingir o fim em vista:... », deve ler-se: «A despeito das emendas sugeridas pela Câmara Corporativa, que melhoraram o projecto do Governo, afigura-se-me que isto não é o que devia ser para se atingir o fim em vista:. »
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA