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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 62
ANO DE 1944 17 DE MARÇO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
SESSÃO N.° 59, EM 16 DE MARÇO
Presidente: Exmo. Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Exmos. Srs.
José Manuel da Costa
Augusto Leite Mendes Moreira
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 5 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os dois últimos números do Diário das Sessões.
Foi lida uma representação da Câmara Municipal e das juntas de freguesia do concelho de Sever do Vouga.
Ordem do dia. - Prosseguiu o debate, na generalidade, acerca da proposta de lei que cria o Estatuto da Assistência Social, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Amândio de Figueiredo, Sá Linhares, Manuel Ribeiro Ferreira, Oliveira Ramos e Querubim Guimarãis.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 30 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 55 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alberto Cruz.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
Angelo César Machado.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Cristo.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Proença Duarte.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto Leite Mendes Moreira.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco da Silva Telo da Gama.
Henrique Linhares de Lima.
Herculano Amorim Ferreira.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João de Espregueira da Rocha Paris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luiz Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pires Andrade.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
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José Alberto dos Reis.
José Alçada Guimarãis.
José Clemente Fernandes.
José Dias de Araújo Correia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Luiz da Silva Dias.
José Manuel da Costa.
José Maria Braga da Cruz.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Luíza de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Pedro Inácio Álvares Ribeiro.
Querubim do Vale Guimarãis.
Quirino dos Santos Mealha.
Rui Pereira da Cunha.
Salvador Nunes Teixeira.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 72 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 5 minutos.
Leu-se o
Expediente
Representação da Câmara Municipal de Sever do Vouga e das juntas de freguesia do concelho no sentido de continuarem a pertencer à comarca de Águeda, de que agora foram desanexadas, para fazerem parte da comarca de Albergaria-a-Velha.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os Diários das duas últimas sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como ninguém quere usar da palavra, considero-os aprovados.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como ninguém está inscrito antes da ordem do dia, vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Amândio de Figueiredo.
O Sr. Amândio de Figueiredo: - Sr. Presidente: tenho a honra de pela primeira vez usar da palavra nesta Casa, e são para V. Ex.ª as minhas primeiras palavras, expressão de muita homenagem ao sábio jurisconsulto, mas muito especialmente neste momento e neste lugar ao Presidente da Assemblea Nacional, que desejo saudar pela dignidade e inteligência com que sempre tem conduzido os trabalhos parlamentares desta primeira sessão legislativa.
Para V. Ex.ªs, Srs. Deputados, os meus cumprimentos.
O problema da assistência social é, fundamentalmente, um problema de medicina social não só no seu aspecto higiénico, profilático e curativo, mas também no aspecto beneficente e pedagógico.
Ninguém melhor do que o médico, pela sua formação profissional, cultural e pelo contacto que mantém com o sofrimento e a miséria, tem um conhecimento mais perfeito, mais objectivo, dos males a corrigir e a assistir. O médico, no exercício da sua profissão, encontra, infelizmente, dificuldades enormes, provenientes da desarticulação em que se encontravam o encontram ainda, derivadas de erros do passado, os serviços da nossa máquina assistencial.
Julgo que a falência de certas tentativas no campo da assistência vem um pouco de ao médico ter sido dada apenas a missão de curar, ou seja a menos proveitosa no conceito actual da medicina, tendo sido sistematicamente arredado dos lugares onde a sua colaboração poderia ser proveitosa.
O diploma que se encontra em debate nesta Assemblea, notável pela sua oportunidade e pela projecção que, incontestavelmente, vai ter na vida da população portuguesa, pode sintetizar-se nesta frase modelar de Stuart Mill: «Centralização do saber e descentralização do poder».
Temos modelares serviços de assistência, é certo, mas trabalhando isoladamente, desconexos, e, portanto, com um rendimento social nulo.
O diploma visa essencialmente a coordenar os esforços de todos os elementos no mesmo sentido de orientação superior, através de um comando único, que deve produzir efeitos benéficos incontestáveis. Não se trata de absorpção pelo Estado, mas o seu enquadramento dentro dos princípios, direi, normativos das bases do diploma, sob orientação técnica e fiscalização do Govêrno através dos seus organismos centrais, o que está certo.
Há um conceito no diploma em discussão que é fundamental: é o de dar às iniciativas particulares o primeiro lugar na luta contra os males de que enferma a sociedade e que o plano se propõe debelar. Quere dizer: mantém-se o princípio do conceito cristão da solidariedade humana - a caridade.
Se tal não acontecesse, se nós abandonássemos êste princípio basilar de bem-fazer, negaríamos a nossa continuidade histórica.
As Misericórdias, florações magníficas desse sentimento, tiveram há cêrca de quinhentos anos uma vida próspera, retinindo já, nos seus compromissos, regras do moderno conceito da assistência nos seus mais variados aspectos, pois a elas cabia praticar todas as formas de caridade, o que equivale a dizer todas as formas de assistência.
De todos é sabido que o Hospital das Caldas da Rainha tinha nos seus compromissos uma disposição que não permitia o tratamento termal àqueles que fossem portadores de qualquer enfermidade da pele, o que constitue o primeiro passo dado no sentido da profilaxia.
A assistência termal, que hoje ensaia os primeiros passos nos grandiosos planos de assistência dos outros países, tem raízes fundas no nosso passado, como verificamos.
Foi aqui brilhantemente defendida a tese de que à caridade compete o primeiro lugar na reforma assisten-
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cial que se preconiza, e julgo, Sr. Presidente o Srs. Deputados, que isto é fundamental, que constitue a maior aspiração das almas bem formadas e votadas ao desejo de bem-fazer e o traço dominante dos nossos sentimentos de povo cristão. Há ainda a considerar as quantias avultadas que provém da iniciativa particular, e que não poderíamos ir buscar a outras fontes de receita sem o risco de cairmos num estatismo condenável.
Mas pode objectar-se: à onde não chegarem as iniciativas particulares deixa de fazer-se assistência?
O diploma esclarece: aonde não chegarem as iniciativas particulares cabe ao Estado a sua função supletiva. Quere dizer: não deixa de praticar-se o plano integralmente; estimula-se a iniciativa particular e realiza-se em íntima cooperação com o existente o plano de conjunto.
Integra também o diploma as nossas Misericórdias no plano geral, com funções de coordenação de todas as modalidades da assistência concelhia, restituindo-lhes assim a sua missão tradicional.
Êsses organismos, pela forma modelar e pelos princípios elevados que os orientam, têm cumprido e são a melhor garantia para que a iniciativa particular não esmoreça e os corações generosos não receiem que as suas dádivas deixem de ter a aplicação humanitária que lhes destinaram. Sabem que os seus óbolos vão enxugar muitas lágrimas, aliviar muito sofrimento, mitigar muita fome e agasalhar muita nudez.
No norte do País, região que eu conheço melhor, pratica-se a assistência quási exclusivamente à custa da iniciativa particular, o que constitue título de orgulho para as suas populações. A Misericórdia do Porto é um exemplo. Mantém variadíssimos serviços hospitalares, maternidades, creches e lactários, dispensários, hospícios e ainda avultados subsídios. Pratica-se, portanto, a verdadeira assistência, baseada no amor do próximo, expressão magnífica da solidariedade humana.
Há um assunto para o qual desejo chamar a atenção da Assemblea e sugerir ao Govêrno a necessidade imperiosa de sua imediata resolução. É o problema da lepra, que no diploma não traz referência especial, como merecia pela sua importância e gravidade.
Existem actualmente - números oficiais - três mil leprosos, mas pode afirmar-se sem receio que tal número está muito longe da verdade. São muitos mais e andam por êsse País fora, nos transportes, nos hotéis, nas pensões, nos cafés, nas tabernas, nas escolas, em toda a parte, em suma, a disseminar o terrível flagelo.
Esta modalidade de assistência não é das mais caras. O que se torna necessário é enfrentar o problema com vontade de o resolver. Para melhor salientar tal necessidade chamo a atenção de V. Ex.ª para esta frase do distinto higienista Froilano de Melo: «Hoje são 3:000 amanhã pode ser qualquer de nós».
Isto é uma verdade flagrante e cometemos um erro, digo mesmo, um crime, continuando nesta passividade em face de tal assunto.
Vem a propósito lembrar idêntica campanha levada a efeito no Estado da índia Portuguesa por êsse eminentíssimo cientista que exclusivamente da iniciativa particular conseguiu angariar fundos bastantes para resolver naquela longínqua parcela do nosso Império o problema da lepra, e hoje é grato verificar-se que a sua leprosaria é uma das mais belas do Oriente, onde o leproso encontra carinho, tratamento e conforto.
Pratica-se a luta com energia mas com humanidade.
Guerra à lepra, paz ao leproso.
Não é possível isolar os 3:000 leprosos existentes, mas seria possível isolar os mais contagiosos e tratar os gestantes fornecendo-lhes, além de remédios, disciplina higiénica necessária, a fim de evitar o contágio dos sãos, que a maior parte das vezes são as pessoas das suas próprias famílias.
A lepra é hoje uma doença curável, quando no seu início, e é com certa emoção que eu relembro as palavras ainda deste mesmo cientista ao referir-me a um congresso realizado em Calcutá, em que foi apresentado o primeiro caso de cura.
Tratava-se de uma criança de 13 anos de nome Sybiil.
Diz êle: «Sybiil está curada! Está curada até quando? Deus o sabe».
Mas a verdade é que essa criança ia regressar ao ambiente da família, ia brincar com os irmãozinhos. Quanta satisfação não representa êste regresso à vida para aqueles que com paciência, com fé e com saber realizaram o milagre.
Conheço uma aldeia onde a mulher de um leproso era padeira e onde leprosos convivem numa promiscuidade criminosa com crianças e adultos e lavam as suas roupas infectas nos lavadouros públicos. Situação apavorante que é preciso remediar, porque, volto a repetir, aos 3:000 leprosos de hoje Deus sabe se se juntará amanhã qualquer de nós.
Nós encontramo-nos neste assunto atrasados sôbre nós mesmos cerca de sete séculos, como muito bem refere Rocha Brito, pois nos primórdios da nacionalidade tivemos modelares estabelecimentos de luta contra a lepra.
Temos serviços de assistência modelares, mas falla-lhes coordenação. A êsse fim visa a proposta governamental.
No entanto quero destacar de entre alguns generosos esforços que por êsse País se têm feito sentir os realizados no distrito de Vila Real, onde a assistência está integrada num vastíssimo plano bem delineado, já em grande parte funcionando eficientemente. Criaram-se creches, dispensários, jardins-escolas, escolas de artes e ofícios e escolas de donas de casa, hospitais e casas de anciãos, tudo em intima ligação. Falta apenas dar-lhes a assistência social no domicílio, com um corpo de enfermeiras-visitadoras e assistentes sociais, essas preciosas colaboradoras que constituem a base de toda a assistência bem orientada, no sentido da família.
Da apreciação do parecer verifica-se que há certas divergências na maneira de encarar a solução deste momentoso problema.
É um estudo notável, que não deixará de merecer do Govêrno a justa atenção quando for regulamentada a presente proposta de lei. Aqui deixo a minha homenagem aos seus autores.
O diploma, dentro dos princípios da doutrina corporativa e nos princípios cristãos da caridade, prevê a solução ampla do problema da assistência. O diploma traduz longa meditação, estudo e experiência.
Confio nas virtudes desta tentativa governamental e nos princípios que a orientam. Como Deputado e no uso de um direito, dou o meu voto ao diploma na generalidade e confio plenamente no êxito da sua realização. As obras valem pelo que valerem os seus executores. E eu tenho confiança absoluta no poder realizador do Govêrno, na actuação inteligente do Sub-Secretário da Assistência.
Existem, no entanto, dentro deste problema assistencial alguns aspectos, previstos no diploma, é certo, que me feriram especialmente a atenção, e são os que se referem à prestação da assistência por diferentes organismos, corporativos, particulares e públicos, dependentes de Ministérios diferentes e de cuja eficiente colaboração é lícito duvidar.
Parece-me, por isso, louvável a sugestão da Câmara Corporativa quanto à criação de um Ministério do qual dependessem todas as entidades que prestem assistência.
Seria de aceitar a criação do Ministério das Corpora-
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ções, Previdência e Assistência Social, do qual dependeriam todos os organismos cujos objectivos, como refere a proposta, visam a assegurar os fins biológicos, económicos e indispensáveis ao aperfeiçoamento das pessoas humanas.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Sá Linhares: - Sr. Presidente: sendo a primeira vez que uso da palavra nesta Assemblea Nacional, cumpre-me em primeiro lugar apresentar a V. Ex.ª as minhas mais altas homenagens.
Aos Srs. Deputados, ao mesmo tempo que lhes apresento os meus cumprimentos, peço me relevem os poucos minutos que os vou obrigar a escutar as minhas modestas palavras, pois elas afastam-se bastante da habitual eloquência dos discursos aqui proferidos. De comum com elas apenas sinceridade e desejo de bem servir. E isso permitiu-me a ousadia de tomar parte na apreciação da proposta de lei relativa a um dos problemas do maior interesse nacional - o problema da assistência social.
Julgo que não haverá nesta Assemblea um único Deputado que não desejasse vê-lo resolvido.
Julgo também que poucos serão aqueles que não desejariam dar o seu voto a um plano de realizações imediatas.
A resolução do problema é urgente, porque dela ficam dependentes:
1) O cumprimento de um dever social;
2) A realização dos sentimentos de caridade cristã.
Em breves palavras principiarei por analisar a realização dos sentimentos de caridade cristã.
Uma esmola dispersa, uma iniciativa isolada, uma obra mal orientada, conduz-nos fatalmente ao desperdício.
Por outro lado, uma orientação inteligente, coordenação fecunda e fiscalização rigorosa conduzem-nos a um melhor e mais eficiente resultado.
Neste ponto, os meus mais sinceros e vivos aplausos à proposta de lei.
Ela contém as indispensáveis regras de disciplina. Satisfaz, portanto, todos aqueles que, possuídos, de sentimentos de caridade cristã, queiram ou pretendam praticá-los.
Examinemos agora o cumprimento do dever social.
Se todos os que podem cumprirem o seu dever de caridade, se a sua contribuição for coordenada e orientada e chegar para valer aos males e deficiências dos indivíduos, o dever social ficaria cumprido e teríamos resolvido o problema a contento de todos.
Mas, Sr. Presidente e Srs. Deputados, eu pregunto a V. Ex.ªs se o nosso optimismo deve ir ao ponto de supormos que todos os que podem cumprirão o seu dever e se aquela contribuição seria suficiente.
Um rápido exame aos tristes números da nossa estatística demográfica e uma rápida substituição dos seus insensíveis e frios algarismos por casos do meu conhecimento pessoal, casos que todos os dias me absorvem a inteligência e o coração, levam-me a concluir e a dizer a V. Ex.ª não.
Nestas condições, o problema fica sem resolução, e não será possível cumprir o dever social de prestar o auxílio moral e material a todo aquele que o mereça.
Nesta Assemblea o ilustre Deputado Sr. Marques Mano disse um dia, e nunca será demais repeti-lo:
«Adensam-se prenúncios de paz, de paz que decerto traz às populações do mundo uma esperança de desopressão grande, mas não uma esperança de desopressão absoluta».
Na verdade, a guerra é uma seleccionadora de realidades, das quais umas desaparecem, porque delas restava só uma existência por inércia, outras se revelam, porque existiam latentes; e a paz é a reorganização do mundo em face das realidades que se demonstrarem como realidades vivas depois da guerra.
Não ouvi, mas suponho e acredito que alguém teria dito também um dia:
«A sociedade que ai vem é eminentemente social e tem por base o trabalho como fonte de riqueza. Os que já trabalham passarão a dar mais e melhor rendimento e os que não trabalham passarão a trabalhar».
Como poderemos nós acompanhar esta evolução se não proporcionarmos ao povo português os meios necessários para êle trabalhar mais e melhor?
Teremos para isso necessidade de importar a doutrina para o conseguir?
Não. Nós temos uma doutrina e com ela podemos resolver orgulhosamente todos os nossos problemas.
Estabelecido o equilíbrio do capital e do trabalho previsto na nossa legislação, teremos o problema da assistência quási resolvido, desde que seja dado o necessário impulso à previdência corporativa, por intermédio:
a) Das Caixas Sindicais de Previdência;
b) Das Casas do Povo;
c) Das Casas dos Pescadores.
O que hoje já se encontra feito, especialmente nestas últimas, é segura garantia de que poderemos depositar confiança no futuro da previdência corporativa.
Completado êste sistema, o número dos que necessitarão de assistência ficará reduzido ao mínimo e abrangerá quási exclusivamente os imprevidentes e os desempregados voluntários, e êstes só poderão esperar o auxilio da caridade cristã.
Chega-se desta forma à conclusão de que necessitamos, para resolver o problema da assistência social, de uma organização de previdência corporativa e de uma organização de caridade cristã.
Quanto à primeira, já a temos.
Quanto à segunda, ela também existe nas nossas tradicionais e bem portuguesas Misericórdias.
O que é preciso então fazer?
A nossa organização corporativa é muito nova e as nossas Misericórdias são muito velhas...
Impulsionando as primeiras e modernizando as segundas, teremos conseguido alguma cousa.
A tarefa parece simples e fácil, mas não é.
Para a conseguirmos com êxito é necessário empreender uma grande batalha, e para vencermos essa batalha é necessário:
1.° Um comando único, com o seu estado maior e com a sua formação de combate;
2.° Um plano de acção realizável com os recursos da Nação;
3.° Uma execução em que esteja sempre presente o pensamento do Chefe: «Emquanto houver um português sem trabalho e sem pão, a Revolução continua».
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Manuel Ribeiro Ferreira: - Sr. Presidente: o conceito de assistência social, que a proposta de lei consagra, substitue o conceito individualista, que fez a sua época.
Poderemos defini-la, com o Sr. Dr. Fernando Correia, como sendo a assistência prestada a um grupo de indivíduos ou a uma colectividade por uma ou mais
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pessoas, ou a prestada por várias pessoas ou várias colectividades a uma mesma pessoa.
O fim principal de toda a assistência não está no indivíduo, sem curar das causas das suas deficiências e do meio em que vive; reside na família e outros agrupamentos sociais, em ordem a valorizá-los, à sua protecção e defesa.
A família, segundo a Constituição, é tida como fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social, competindo ao Estado e às autarquias favorecer a formação de lares independentes e proteger a maternidade.
A Assistência Social serve justamente estes princípios e procura dar-lhes a máxima realização.
Auxiliar a família quando se torne necessário, beneficiá-la e cooperar com ela, assistir à maternidade, à primeira e segunda infância, eis alguns objectivos fundamentais que se procuram atingir.
Não é mais em razão do indivíduo, diz claramente a proposta de lei, mas sobretudo «em ordem à família e a outros agrupamentos sociais que toda a assistência deve orientar-se».
A Assistência Social não é desordenada e procura ser equitativa, eficiente e oportuna.
Para isso baseia-se em inquéritos às famílias e aos necessitados, com o fim de averiguar das suas maiores ou menores possibilidades, da consistência económica e até moral do agregado familiar, actuando seguidamente em ordem ao seu aperfeiçoamento e à resolução dos seus males.
A Assistência Social exerce também especial acção de defesa, como se diz na base VII da proposta, contra a tuberculose, o cancro, as doenças infecciosas e outras.
Convém precisar, todavia, que, embora efectivando-se segundo modalidades diferentes, ela tem acima de tudo uma natureza preventiva.
Deste modo, quando se melhoram as habitações, quando se aperfeiçoam as condições gerais de salubridade, quando se promovem melhoramentos de águas nas localidades, faz-se assistência social preventiva.
Ao construírem-se novos caminhos que facilitem a prestação de socorros, ao pugnar-se pela higiene rural, quando se criam partidos médicos em centros necessitados, faz-se também assistência social preventiva.
Ao acompanhar-se a vida familiar nas suas deficiências, ao robustecer-se a sua unidade, quando se dão conselhos e ensinamentos às mais e até quando se combatem desvios de ordem moral, que podem afectar o agregado familiar, faz-se ainda assistência social preventiva.
O facto, porém, de serem dominantes as actividades preventivas não exclue, como é forçoso, as meramente curativas.
Nesta modalidade a Assistência Social continua; contudo, a ter na família o seu principal elemento de colaboração e, longe de a ignorar, actua ainda por seu intermédio.
Assim, é no domicílio que procuram conceder-se, de preferência, os socorros às grávidas e às parturientes; é no ambiente familiar que o doente deve, quanto possível, ser tratado; é no lar próprio ou no lar vizinho, quando aquele falte, que a criança necessitada deve ser assistida.
Para tanto não deve abandonar-se, como é essencial, a política salutar até hoje seguida da construção de casas económicas, melhorando-se moral e economicamente as condições habitacionais.
O asilo, a maternidade e o hospital existem, sem dúvida, e querem-se modernos, segundo os melhores ensinamentos e conquistas da ciência, em condições de realizarem a sua função. Mas são chamados a intervir unicamente como excepção e não como regra, e só para o caso de a família não estar em condições de actuar com eficácia.
De resto, Sr. Presidente, em todos os tempos e em todos os países a maioria dos necessitados não está em condições de passar pelos hospitais e pelos asilos, sofrendo nos seus lares todas as necessidades e sendo a esses lares que lhes tem sido levado e auxílio necessário.
Estes e outros princípios informadores da Assistência Social define-os com superioridade a proposta de lei.
Segue assim a orientação já anteriormente traçada em vários diplomas publicados pelo Sub-Secretariado de Estado da Assistência, e nos quais se nota a mesma segura visão do problema.
E segue ainda a proposta o caminho que foi definido pelo actual Ministro do Interior na conferência proferida em Angra do Heroísmo sôbre Assistência Social, a-quando da visita do Chefe do Estado aos Açores no verão de 1941.
Disse então o Sr. Dr. Mário Pais de Sousa:
«Se a Assistência Social se preocupa apenas com a miséria individual, com o mendigo que passa, com o doente que cai, sem querer saber da família a que pertence, faremos assistência com critério individualista ou superficial. A assistência nesse caso vê apenas miséria que impressiona, e por isso não passa de cega filantropia.
Se a assistência não só ignora a família, mas pretende mesmo substituí-la nas suas funções, a título de que ela não tem meios ou lhe falta capacidade para as exercer, caímos no critério de estatismo socialista ou comunizante, que nega o valor da família e das suas funções.
Finalmente, se nos colocarmos dentro dos princípios definidos na Constituição, que consideram a assistência como uma forma de favorecer a constituição e existência da família, de robustecer e suprir as deficiências da sua economia, para que ela possa bem desempenhar-se das suas funções, em suma, de cooperar com ela, facilitando-lhe o cumprimento da sua missão, estaremos dentro do são critério da assistência social».
Ao fazer-se depois a reforma parcial dos serviços da assistência, com a publicação do decreto-lei n.° 31:666, de Novembro de 1941, também ali se escreveu que «o melhor critério orientador de assistência estava na sua prestação quanto possível no domicílio, e dentro deste, se o reclama ou permite a vida familiar que requere o benefício».
No que se refere à prestação da assistência conta a proposta em primeiro lugar com as iniciativas particulares, estabelecendo que, com excepção dos serviços de sanidade geral e de outros cuja complexidade ou superior interesse público aconselhem a manter em regime oficial, a função do Estado e das autarquias é, normalmente, supletiva daquelas iniciativas.
Afirmado o princípio, logo, porém, se dispõe na segunda parte da base III que, na falta ou insuficiência das iniciativas particulares, se dê a intervenção do Estado e das autarquias, assegurando a realização das obras de assistência que sejam necessárias e os particulares não promovam.
Aquela contribuição supletiva, que o Estado modestamente se atribue, deverá, de resto, como tudo indica, ser mais elevada ainda do que todas as que têm sido dadas em anteriores situações políticas, e isto, como aliás se torna necessário, sem que se atrofiem as iniciativas particulares.
Do que se irá fazer em matéria de assistência poderemos ter como fiador o que o Estado Novo já realizou precisamente num dos sectores da assistência social - o da salubridade -, pelo beneficiamento das águas e esgotos, em que os técnicos da saúde pública, a par dos da
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engenharia, têm feito uma obra-a todos os títulos notável.
E não deixa de ser também oportuno referir que somente as Casas do Povo e dos Pescadores existentes despenderam no ano findo em assistência médica e medicamentosa e em subsídios de doença e invalidez uma verba superior a 12:000 contos.
Confia-se, assim, preferentemente, das iniciativas particulares a actividade assistêncial, já que seria um erro ignorar aquelas iniciativas, que, através da nossa história, sempre se têm mostrado tam generosas e compreensivas.
«A obrigação de prestar assistência, já se tinha dito no relatório do decreto-lei n.° 32:255, de Setembro de 1942, é ao mesmo tempo dever cívico ou de justiça social e preceito religioso de caridade, sendo da justa harmonia e cumprimento dos dois deveres que pode resultar a melhor assistência social».
Conta-se com o espírito caritativo da nossa gente, mas não com o espírito caritativo de acaso, mal esclarecido, e sim com aquele que resulta do conselho de Sua Eminência o Cardeal Patriarca de se ensinarem as boas almas a fazerem «bem o bem».
Êsse espírito caritativo teve no passado a sua mais eloquente expressão nas nossas Misericórdias, instituições que a proposta de lei também acarinha de modo especial e às quais avisadamente atribue uma larga e importante função na assistência local.
Esta orientação, Sr. Presidente, é digna dos maiores louvores, tanto mais que as Misericórdias começaram, e muito bem, a ser restituídas ao seu espírito primitivo - o que lhes deu a Rainha D. Leonor - e que já correspondia em mais de um ponto ao moderno conceito da assistência social, no qual, podemos dizer, foi precursora.
Eram nêsse tempo confrarias de carácter religioso, dirigidas por irmãos de honesta vida, boa fama e sã consciência, destinadas à prática de todas as obras de caridade, e voltam agora a sê-lo pela proposta, que as declara fiéis à tradição dos velhos compromissos. Conforme o espírito definido mais de uma vez pelo Sub-Secretariado da Assistência, poderemos entendê-las como confrarias que deverão actuar tendo a colaboração de todas as pessoas generosas e que, embora não pertencentes à confraria, a respeitem como merecem.
A proposta de lei, dêste modo, a par de innovadora e conforme com as modernas tendências da assistência social, é ao mesmo tempo tradicionalista, no que a tradição tem de bom e eterno, e baseia-se, ao definir as directrizes para o futuro, nos ensinamentos do passado, que o legislador acertadamente invoca, como já o tinha feito nos anteriores diplomas publicados desde a criação do Sub-Secretariado da Assistência.
Depois de concretizar em diferentes bases o princípio já enunciado de que a Assistência Social deve ser preventiva e dirigida sobretudo à família e de que a sua prestação compete fundamentalmente às actividades particulares, sem excluir, repetimo-lo, o auxílio do Estado, que se antevê maior do que nunca em Portugal, a proposta refere-se especialmente à acção de defesa e combate que importa realizar contra os grandes flagelos sociais, entre os quais avulta a tuberculose.
Ampliam-se neste ponto os serviços existentes, aumentam-se os dispensários e actua-se em ordem a evitar o desenvolvimento da doença e a vencê-la quando declarada.
A êste propósito cabe também relembrar os valiosos serviços até aqui prestados pela Assistência Nacional aos Tuberculosos e o nome que lhe está ligado, da Senhora D. Amélia, sua desvelada protectora, que seguiu na benemerência as tradições de outras Rainhas de Portugal.
Bastará evocar D. Leonor de Lencastre e a Rainha Santa Isabel, que foi, como se sabe, quem criou um dos primeiros hospitais para crianças destinado a órfãos e enjeitados, sendo o primeiro criado por iniciativa da mãi do Rei D. Diniz.
Nesta discussão do Estatuto da Assistência, em que se faz apelo constante à iniciativa particular e ao seu espírito benemerente e caritativo, é justo recordar a Rainha D. Amélia, não esquecendo, como também ela o fez, a figura notabilíssima de Sousa Martins e de outras médicos portugueses que colaboraram valiosamente na luta contra a tuberculose.
A proposta de lei contém ainda uma reorganização dos serviços de assistência, que é a lógica consequência dos princípios expostos.
Cria-se a Inspecção Geral da Assistência, com o fim de orientar as instituições particulares na sua actividade assistencial e de lhes dar, queremos crer, unidade de vistas, sendo esta uma das importantes innovações do Estatuto em discussão.
Não se abandona aos seus impulsas a iniciativa particular; orientam-se, coordenam-se e favorecem-se essas iniciativas.
Há o propósito de acompanhar a actividade assistencial nas suas diferentes modalidades; e, obedecendo sempre ao princípio de que o Estado ou as autarquias não devem sobrepor-se às famílias nem substituí-las, salvo quando atinjam a desorganização, todas as medidas de sanidade, de protecção e de amparo são destinadas à sua unidade, à sua valorização e aperfeiçoamento, fazendo delas o fulcro de uma assistência eficaz.
Não inicia a proposta de lei, cabe aqui dizê-lo, em certos aspectos, um caminho novo e encontra já experiências realizadas entre nós dentro dos mesmos princípios orientadores, até com os mais lisonjeiros resultados.
Queremos referir-nos, por exemplo, à obra realizada na cidade de Leiria, de protecção e assistência à maternidade e infância, através de um centro municipal, que a respectiva Câmara criou há anos è continua a acarinhar com admirável persistência, o qual produziu de tal forma que mereceu a atenção e confiança do Sub-Secretariado da Assistência.
Essa obra de protecção e assistência foi precedida de um bem orientado inquérito pelo Dr. Duarte Gorjão Henriques e dele resultou a criação em 1938, por parte da Câmara Municipal, da instituição que aquele ilustre médico tem dirigido e orientado com o maior desvelo e proficiência.
Referindo-se ao problema da assistência no concelho de Leiria, chegou êsse inquérito a conclusões que podiam dar subsídios para estudos em outras regiões do País:
«Despendem-se, diz o inquérito, avultadas quantias em subsídios concedidos a uns e outros por filantropia burocrática. Não se solucionam por essa forma as necessidades de quem recebe a esmola e pulveriza-se o que poderia ter melhor e mais adequada aplicação».
Para combater êsse estado de cousas a Câmara Municipal de Leiria estabeleceu a coordenação dos seus serviços com as instituições de previdência e assistência do concelho e criou um organismo intitulado Dispensário, no qual centraliza os serviços técnicos de assistência social.
Êsse Dispensário, que hoje se denomina Centro de Assistência Social, mantém secções de higiene pre-natal, puericultura, pediatria e higiene escolar para as escolas primárias, com um centro de diagnósticos do cancro, que foi o primeiro do seu tipo criado no País em colaboração com o Instituto do Cancro, e em cinco anos de existência, ou seja até 1943, o número de con-
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sultas dadas no Dispensário ascendeu a cerca de 25:000, revelando-se também a sua utilíssima actuação pelo fornecimento de produtos lácteos e de medicamentos, bem como pela concessão de subsídios de alimentação a outras instituições, o que tudo representou no mesmo período de tempo uma considerável importância em dinheiro.
O Dispensário tem mantido também, ao seu serviço médicos e visitadoras, além de pessoal auxiliar, sendo até certa altura todas as suas despesas custeadas pela Câmara Municipal de Leiria, que só recebeu, até ao fim de 1941, do Sub-Secretariado da Assistência e da Liga de Profilaxia do Cancro dois subsídios de pouco mais de 10.000$ e 5.000$.
No ano seguinte o director do Dispensário, Dr. Gorjão Henriques, por incumbência honrosa do Sub-Secretariado da Assistência, lançou as bases de um Centro de Assistência Social, que amplia notavelmente os serviços do Dispensário e por meio de delegações e postos volantes servidos por uma equipe de médicos, enfermeira puericultora e visitadoras leva aos lugares mais isolados a intervenção médico-social de natureza preventiva e curativa.
Os resultados obtidos na obra de Leiria, cujos frutos são já bem patentes, assim como em outras experiências que, para darem continuidade à Jornada das Mãis, sabemos estarem em curso nos distritos da Guarda, Castelo Branco e Setúbal e em começo no distrito de Bragança, constituem mais uma garantia do êxito que deve ter a proposta de lei quando tiverem plena efectivação os princípios nela contidos.
Esta reforma não surge, de resto, sem cuidadosa preparação.
Alguns importantes diplomas do Sub-Secretariado da Assistência dispuseram já as condições indispensáveis à melhor execução da reforma profunda que é o Estatuto em causa.
O Instituto Maternal, a reorganização da Misericórdia e da Casa Pia, a coordenação das diferentes instituições que prestam assistência, a criação dos cursos estagiários de enfermeiras puericultoras e de estágios para aperfeiçoamento de médicos, a formação de sanitaristas, o Centro de Inquérito Assistencial, as escolas de enfermagem, os cursos de visitadoras, a formação técnica dos agentes de serviços médicos sociais, tudo vem constituindo sem dúvida uma avisada preparação da grande reforma que vai iniciar-se.
As intenções do Govêrno e à sua visão do problema não deixarão também, por certo, de corresponder as iniciativas particulares e o espírito de caridade cristão, que está na base tradicional da nossa assistência.
Dando o meu voto à proposta, confio em que ela traga na sua execução um motivo mais de gratidão do País para com a obra do Estado Novo e dos seus governantes.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Oliveira Ramos: - Sr. Presidente: segui com o mais vivo e pontual interesse, nas sessões de estudo, a apreciação da proposta de lei sôbre o Estatuto da Assistência Social. E porque nessa ocasião me foi dado intervir na discussão, por discordar, como ainda hoje discordo, de algumas das suas disposições, sempre me considerei moralmente obrigado a entrar no debate.
Só por esta razão aqui me encontro, com a sinceridade e desejo de bem servir iguais aos de todos aqueles que louvam, sem restrições, a proposta do Govêrno.
Sr. Presidente: parte a proposta do Govêrno do princípio de que uma organização perfeita da sociedade política supõe a inteira satisfação das necessidades da pessoa humana dentro da sua constituição e funcionamento normais. Mas como essa perfeição não é susceptível de atingir-se no reino dos homens, existem e existirão sempre anormalidades, males, insuficiências e imperfeições que exigem uma intervenção organizada, com vista a preveni-las ou remediá-las. Essa intervenção constitue o terreno próprio da assistência social, que é assim uma actividade supletiva em relação às actividades normais e fundamentais da estrutura social. Tende esta actividade a crescer na razão directa das deficiências da organização social e política e a deminuir na medida em que se opera a restauração e melhoria das condições normais da vida colectiva.
No terreno da assistência social, como actividade supletiva destinada a suprir as faltas ou deficiências das actividades normais e, com excepção dos serviços de sanidade geral e outros cuja complexidade ou superior interêsse público aconselhem a manter em regime oficial, as funções do Estado assumem também, normalmente, carácter supletivo em relação à iniciativa particular, à qual cabe, em primeiro lugar, dar remédio àquelas faltas e insuficiências.
Pode dizer-se, pois, Sr. Presidente, que pelo teor da proposta de lei e no que toca à iniciativa em matéria de assistência social ao Estado se reserva uma ténue e distanciada função supletiva.
A Câmara Corporativa, considerando, como aliás o próprio Govêrno já reconheceu em diplomas legais, que a obrigação de prestar assistência aos necessitados e um dever social, que se traduz nos correspondentes encargos para quem tenha de o cumprir, entende que em princípio ao Estado pertence êsse dever, sem excluir nem embaraçar a assistência privada. E, distinguindo por um lado a iniciativa em matéria de assistência social e por outro lado a sua realização prática, entende a Câmara Corporativa reservar aquela ao Estado, como sua função própria, confiando a segunda, sempre que possível, à assistência particular.
Sr. Presidente: o Govêrno e a Câmara Corporativa, ao tomarem a posição que deixo esboçada sôbre a função do Estado e a da iniciativa particular na esfera da assistência social, abonaram-se, para tanto, em textos constitucionais diferentes.
Estas divergências afiguram-se mais acentuadas ainda, mas sob outro aspecto, quando se presta atenção ao extenso inventário das principais necessidades do País em matéria de assistência social, arroladas e largamente documentadas no parecer da Câmara Corporativa, necessidades que essa Câmara entende deverem ser atacadas com a decisão, energia e unidade de acção de que só o Estado parece ser capaz.
Ao lado de uma razão doutrinária surge, assim, uma razão de ordem social e política.
Ainda quando não concordássemos inteiramente com a doutrina do parecer da Câmara, Corporativa, estaríamos a seu lado, quanto ao aspecto social e político que o problema, reveste, no actual momento.
Mas, Sr. Presidente, mesmo sob o ponto de vista doutrinário, e à margem de qual seja a melhor interpretação dos textos constitucionais, entendo, como assinala o professor Polligkeit, que o sentimento da responsabilidade colectiva exige do próprio Estado o remédio dos males sociais provenientes das deficiências da organização económica e social, por forma a fazer dele, e em primeira linha, o guarda e o curador do bem comum, desde que se não enfraqueça o sentimento da responsabilidade individual e consequente obrigação que a cada um cabe de se ajudar a si próprio, nem tampouco se
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atinja ou se desencoraje a resistência moral da população.
Isto está na corrente da melhor tradição e também na doutrina social da Igreja.
A propósito da acção da autoridade civil, permita-me V. Ex.ª, Sr. Presidente, a leitura destas palavras da Encíclica «Quadragésimo Anno»: «Deve sim deixar-se tanto aos particulares como às famílias a justa liberdade de acção, mas contanto que se salve o bem comum e não se faça injúria a ninguém. Aos governantes compete defender a nação e os membros que a constituam, tendo sempre cuidado especial dos fracos e desherdados da fortuna, ao proteger os direitos dos particulares». O cuidado do bem comum é ao mesmo tempo a razão de ser e a medida da intervenção do Estado, diz Rutten na sua obra La doctrine sociale de l'Eglise.
Sr. Presidente: por mim entendo, à luz de razões de ordem moral, económica, social e política, que ao Estado pertence, na verdade, o dever de prestar assistência, mormente quando está em jogo, e em risco, o bem comum. De ordem moral, porque ao Estado cabe a vigilante protecção dos fracos, dos pobres, dos enfermos e dos encarcerados, que nenhuns a merecem tanto e tam pronta; de ordem económica, porque ao Estado interessa recuperar a riqueza socialmente desperdiçada ou deminuída, e nenhuma há mais valiosa do que a energia humana; de ordem social e política, porque é um dever do Estado manter a paz, a segurança e a tranquilidade dos indivíduos, da família, da corporação e da comunidade, que outros bens, na terra, mais preciosos não existem.
A proposta do Govêrno e o parecer da Câmara Corporativa marcam duas tendências, mas só essencialmente contrárias no tempo.
É ponto assente que um regime perfeito de previdência integral há-de necessariamente reduzir o âmbito da assistência quanto a certos problemas transitoriamente a seu cargo; que alguns outros destes problemas hão-de também, necessariamente, ter adequada solução com o progresso e melhoria da nossa vida individual e colectiva, e nos seus quadros normais; e que, à medida que estes acontecimentos se forem produzindo, menos activa, por menos útil, se pode tornar a intervenção do Estado no campo da assistência social, então aberto, de par em par, à iniciativa particular.
Mas, Sr. Presidente, só o tempo fará, assim, vencer as distâncias que separam as tendências manifestadas na proposta de lei e no parecer da Câmara Corporativa, quanto à função do Estado e da iniciativa particular em matéria de assistência social.
E o tempo, infelizmente, não se deixará vencer apenas pelas nossas discussões.
E aqui tem razão a Câmara Corporativa quando, impressionada com o inventário das nossas variadas e imperiosas necessidades, chama para a iniciativa do Estado a solução urgente de um grande número de problemas, postos em foco por essas mesmas necessidades, sem que enjeite ou desperdice a colaboração da assistência particular. Mas uma vez adoptadas as soluções para esses problemas, vitais para o futuro da Nação, e aparelhados ou postos em marcha os meios indispensáveis para os resolver, aqui, terá razão o Govêrno, quando entende que à iniciativa particular deve caber a prestação da assistência, reservando-se normalmente ao Estado a função de a suprir, nas suas faltas ou insuficiências, além da tarefa permanente de orientação, coordenação e fiscalização superiores.
Não estão, frente a frente, duas concepções opostas; não podem ser substancialmente opostas duas concepções que têm como origem comum a própria Constituição. Por isso mesmo não há lugar nesta Assemblea Nacional, Sr. Presidente, para falar em concepção individualista ou estatista, a respeito da proposta do Govêrno e do parecer da Câmara Corporativa, tam certo é que, quer uma, quer outra, merecem inteira reprovação de todos, por contrárias à própria estrutura política da Nação.
A diferença está em que o Govêrno confere desde já à iniciativa privada no campo de assistência social um papel predominante, reservando-se para o Estado a função de gerir os serviços de sanidade geral e outros cuja complexidade ou superior interêsse público aconselhem a manter em regime oficial; ao passo que a Câmara Corporativa entende que é ao Estado que pertence a iniciativa em matéria de assistência social em tudo o que importe ao interêsse da Nação, sendo de admitir a estreita colaboração com a assistência particular, a quem podem ser confiadas a administração e direcção dos estabelecimentos fundados pelo próprio Estado. Neste sentido o parecer da Câmara Corporativa consagra a orientação do Govêrno definida no decreto-lei n.° 31:666, de 22 de Novembro de 1941, que autoriza a converter as instituições ou estabelecimentos de assistência oficiais ou oficializados em particulares.
E como importa ao interêsse da Nação a solução urgente dos grandes problemas que se encontram delineados no parecer da Câmara Corporativa, daí o pendor desta para confiar ao Estado uma acção que só ele pode ordenadamente empreender, pela soma de recursos, de toda a ordem, que é preciso mobilizar, e prontamente.
Mas, Sr. Presidente, não serão também esses os problemas cuja solução, dada a sua complexidade e superior interêsse público, a própria proposta de lei reserva igualmente para a iniciativa do Estado, embora a título excepcional?
Não creio que esteja no espírito da proposta de lei confiar, com tam exagerado optimismo, à iniciativa particular a solução de problemas vitais para a Nação, a ponto de exigir ou esperar dela uma actividade superior às suas forças e recursos.
Não creio que se não reconheça a necessidade imediata de enfrentar, metodicamente, os graves e complexos problemas no campo da assistência social ou que se procure aguardar que a iniciativa particular nada faça ou se mostre insuficiente, para só então o Estado se decidir a intervir.
Sr. Presidente: felizmente não está na tradição da política do Govêrno desconhecer as realidades ou descurar a solução dos problemas de interêsse nacional.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - O professor Berthelemy afirma ser, ao mesmo tempo, uma imprudência e uma injustiça contar exclusivamente com a iniciativa privada no combate aos males sociais: imprudência, porque não é com voluntários que se ganham as grandes batalhas; injustiça, porque é exonerar dos tributos a que obriga a assistência necessária a multidão daqueles que se não dispõem a pagar voluntariamente, nem com actividade, nem com dinheiro.
E noutro passo acrescenta:
«Uma nação é como um exército em campanha. O exército não pode, sem se deminuir, abandonar os seus trainards e deixar morrer os seus feridos. Devemos instituir em benefício dos feridos na luta pela vida o direito ao socorro, não como um direito subjectivo, que é tese indefensável, mas como um direito objectivo, que uma legislação previdente venha a assegurar, precisando a medida e regulando o seu exercício. A assistência assim compreendida já não é apenas uma boa obra colectiva. É uma instituição pública necessária».
Quanto a nós, Sr. Presidente, entendemos que o Estado deveria, no campo da assistência social, apetre-
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char e manter, por agora, sob a superintendência directa dos organismos oficiais, aqueles serviços e obras que, por dizerem respeito a necessidades urgentes ou permanentes de ordem nacional, tenham de ser ràpidamente assegurados com a continuidade, uniformidade e extensão indispensáveis, e ainda os que, exigindo avultados recursos financeiros ou de técnica, não podem, por isso mesmo, ser garantidos, no seu regular funcionamento, pela assistêneia privada.
Poderá o Estado suportar o aumento de encargos que esta orientação impõe?
Quando a Sir William Beveridge preguntaram, dado o aumento considerável de despesas que o seu plano exigia: Podemos nós fazer face a tal despesa?", o eminente economista respondeu, expressivamente, com esta outra pregunta: "Podemos nós dispensar-nos de a fazer?".
Sr. Presidente: agora e para terminar só duas palavras para focar um outro aspecto. É princípio basilar da proposta de lei que a iniciativa em matéria de assistência social deve pertencer, normalmente, aos particulares, cabendo ao Estado orientar, tutelar e favorecer as suas iniciativas.
Mas o favor que assim se concede à assistência particular impõe-lhe, por outro lado, pesadíssimos estorvos e encargos:
Não pode recusar-se a prestar socorro que se imponha como urgente ou como tal lhe seja indicado;
Os fundos ou receitas próprias da instituição respondem pelos encargos da assistêneia que prestar;
Não lhe pertence a tutela dos assistidos, que compete ao Sub-Secretariado da Assistência Social;
Não pode ser levado, a efeito qualquer obra nova destinada a serviço de assistêneia, sem prévia autorização ministerial, sob parecer do Conselho Superior de Higiene e Assistência Social;
Fica sujeita a orientação, tutela e inspecção do Ministro do Interior, a quem compete, pelo Sub-Secretariado da Assistência Social, dirigir a política da assistência.
Temo, no entanto, que a excessiva intervenção do Estado na vida das instituições de assistência privada, tam ciosas das suas próprias iniciativas e das suas particularidades, venha a impedir que elas possam desempenhar a função primordial que o Estatuto lhes assegura.
Sr. Presidente:
A discriminada imposição das diferentes modalidades da assistência a várias entidades;
A minuciosa descrição dos métodos e técnicas adoptados;
A atribuição de um domicílio de socorro a cada necessitado, que pressupõe a assistência obrigatória;
A instituição da tutela social dos assistidos, a cargo do Sub-Secretariado da Assistêneia Social;
A limitação das entidades e pessoas que podem promover e requisitar socorros;
A autorização dada às câmaras municipais para o lançamento de derramas, para o fim exclusivo de ocorrer às necessidades de assistência do próprio concelho;
A criação de novas taxas para efeitos de aumentar as dotações da assistência;
A criação da Inspecção Geral de Assistência Social;
A concentração no Ministro do Interior, pelo Sub-Secretariado da Assistência Social, da competência para dirigir a política da assistência e bem assim orientar, tutelar e inspeccionar os organismos, instituições ou serviços que se destinem a prestá-la:
Todo êste delineamento mais parece afeiçoar-se à orientação daqueles que reclamam para o Estado, em matéria de assistência social, uma intervenção efectiva, do que à daqueles outros que lhe atribuem uma função meramente supletiva.
Se aquela orientação se não vier a acentuar à sombra do próprio Estatuto que a condena, resta-me, então, confessar francamente o meu êrro de previsão.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Querubim Guimarãis: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: procurarei ser breve nas minhas considerações.
É essa pelo menos a minha intenção.
O assunto é de tal maneira grande, vasto e complexo, que daria para uma série enorme de discussões abordando os capítulos principais do problema e documentando-o com a doutrina e com a observação das realidades.
Quero, Sr. Presidente, começar; antes das minhas considerações, por apresentar as minhas homenagens muito sinceras, de aplauso caloroso, à iniciativa do Govêrno, homenagens que particularmente apresento ao ilustre Sub-Secretário da Assistência Social, nosso companheiro desta Casa e que com tanto brilho aqui exerceu o seu mandato.
Espirito equilibrado, cultura social vasta, homem que, ao contrário do que parece depreender-se de certos aspectos de opinião, não age no simples campo da abstracção, voando nos espaços infinitos...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... porque é um homem que encara, pelo seu estudo, pela sua observação e pelo seu trabalho de muitos anos, os problemas na sua realidade concreta.
Em toda a obra do Sr. Dr. Diniz da Fonseca, desde que foi escolhido para desempenhar as funções árduas, espinhosas e difíceis de Sub-Secretário da Assistência Social, vive o mesmo pensamento.
Toda ela marcha no sentido de melhorar a vida social e moral do País, ordenando-a numa orientação bem diversa daquela que até hoje tem sido observada e admitida.
Todo o seu trabalho, as instituições que ele tem fundado, a Obra Maternal, o Instituto Maternal, tudo isto traduz, sem dúvida, um pensamento firme, sólido, um conceito cristão da vida e das responsabilidades do Estado. Tem procurado melhorar tudo o que estava mal colocado, tem procurado fazer uma revolução, no bom sentido da palavra.
E é por isso, Sr. Presidente, creio eu, que quando S. Ex.ª apresenta à discussão da Assemblea Nacional uma proposta deste teor, informada em bases e princípios a que não estávamos habituados, há um certo reparo, há um certo temor, de que ela não realize, na sua execução, as aspirações que informaram a sua elaboração. E daí vêm certas criticas, e daí vêm certos receios, e daí vem uma ou outra nuance de não concordância, embora mais aparente que real.
Ouvi com muita atenção, e é possível que ocupe a esse propósito uma parte da minha modestíssima oração, o que aqui disse o Sr. Dr. Oliveira Ramos, que nos deu uma preciosa lição, sob o seu ponto de vista, é claro, lição, podemos dizer, de mestre, mas pareceu-me estar eivada, não digo de um preconceito - que S. Ex.ª não tem -, mas desse temor que vem detrás, devido à intervenção constante, em matéria de assistêneia, do Estado, temor de que a iniciativa particular fraqueje, até ao ponto de inutilizar por completo a instituição que se quere pôr em prática.
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O Sr. Oliveira Ramos: - O meu modo de ver é fruto de vinte anos de viver com a maior desgraça.
O Orador: - Mas V. Ex.ª tem vivido menos do que eu, que fiz ainda há dias 64 anos. Tenho, por isso, com certeza, um maior conhecimento da vida do que V. Ex.ª
O Sr. Oliveira Ramos: - Mas o que V. Ex.ª não tem - felizmente para a tranquilidade do seu espírito e do seu coração - é o cargo que eu tenho há vinte anos.
O Orador: - Não o conheço, mas é de respeitar absolutamente a preocupação de V. Ex.ª
Tenho eu vivido, sem dúvida, mais do que V. Ex.ª numa época em que tudo se projectava no Estado. Era o Estado-previdência, era o Estado-providência, ilaqueando quási os estímulos e as iniciativas individuais e particulares.
Era para o Estado que se apelava permanentemente, para dar vazão, para dar margem, ao egoísmo, que é próprio da natureza humana, evitando o cumprimento do dever de cada particular que está em boa situação social e com meios económicos capazes de contribuir com o máximo possível para o bem-estar do seu semelhante.
E é o reflexo dêsse velho espirito que se percebe nas observações e críticas acêrca desta proposta. É quási uma inconsciente sujeição ao espírito de rotina, de que não procuramos libertar-nos para encarar o problema, para o futuro dêste País, como êle deve ser encarado.
Não acho, Sr. Presidente, ao contrário do meu ilustre colega que me precedeu nesta tribuna, que haja uma divergência fundamental nos princípios que informam a proposta e naqueles em que se baseia o parecer da Câmara Corporativa.
Considero a proposta, digamos, um esquema, com uma disciplina, com directivas, com normas gerais que abrangem tudo o que está determinado pela Câmara Corporativa em bases concretas. Não me parece, repito, que haja divergências fundamentais. Divergências aparentes, mais na forma que no espírito, mas não nos seus fundamentos, porque, se nós analisarmos bem a proposta e analisarmos bem o parecer, as respectivas bases duma e doutro, encontramos como que um desenvolvimento de um programa nas apresentadas pela Câmara Corporativa, talvez, digamos assim, uma organização mais detalhada para o futuro, mas absolutamente dentro do ponto de vista e dos fundamentos da proposta. Assim entendo.
Não desconhece o meu ilustre colega, com certeza, porque ninguém o desconhece em Portugal, o que foi através da nossa história essa admirável instituição das Misericórdias, a que aqui se referiu já um ilustre orador que me precedeu.
As Misericórdias nasceram de um anseio de fazer o bem, de um desejo de caridade, do espírito belo, admirável, caritativo de uma rainha. E à volta das Misericórdias se fez uma revolução grande, enorme, na assistência aos pobres, a ponto de chamar a atenção dos outros países pela originalidade da instituição e pelos resultados práticos por ela conseguidos.
A Misericórdia assistia na dor, assistia na miséria, assistia na desgraça, assistia no bom conselho, assistia na comunhão moral dos verdadeiros sentimentos de fraternidade cristã.
Que interessante que era, por exemplo, o dote que em algumas Misericórdias se concedia aos pobres que contraíam matrimónio, base económica no início de um lar que se constituía!
Que interessante que era isso!
Um dia, estas instituições, que tinham raízes católicas, porque se quis investir com a Igreja, que era a sua criadora, sofreram um ataque formidável, sobretudo lançado pela mesma heresia que se lançou contra os mosteiros.
Nestes mosteiros fazia-se também assistência, tantas vezes ligada à obra das Misericórdias, num mútuo auxílio, supletivos uns das outras, e ambos viviam em Portugal e existiram durante largo tempo, fazendo uma obra de caridade verdadeiramente notável.
Recordo aqui uma passagem interessante de um monge, frei João Baptista, num trabalho publicado com esta sugestiva frase em título: Os Frades perante o Tribunal da Razão. Dizia êle o seguinte:
"Quando soube da ocupação dos mosteiros ingleses, Carlos V disse: "Meu irmão matou a pata que lhe punha todos os dias uma gema de ouro". De facto, comenta a seguir: "... debaixo do remado de sua filha Isabel foi obrigado o Parlamento britânico a pagar onze bílis para ocorrer à miséria dos pobres, recurso que foi desnecessário em quanto existiam os mosteiros".
E veja V. Ex.ª, Sr. Presidente, como através desta acção revolucionária contra o espírito da Igreja, pela heresia protestante a princípio, que depois se disseminou por vários países e foi a inspiradora do movimento revolucionário da França, se fez o ataque sistemático, lento, mas de seguros efeitos, a todas as instituições tradicionais da nossa acção cristã.
Com a desamortização dos bens das Misericórdias e com a expropriação dos bens dos conventos, toda essa obra de caridade, em que não era preciso o Estado intervir, nem lançar no seu orçamento verbas para tais despesas vem pondo-nos perante a dura realidade dos factos.
Hoje o Estado é que se sobrecarrega com toda esta despesa.
É êsse regresso à tradição, adaptada, claro, às circunstâncias actuais, que deseja o autor da proposta, dando de novo às iniciativas particulares, que aquele ataque à tradição fez aniquilar ou esmorecer, estímulo e vida.
Êle foi sempre um paladino, em todos os congressos das Misericórdias, da reconstituïção dessa instituição, dando-lhe alento, dando-lhe vida e dando-lhe todas as possibilidades de realizar as suas aspirações e os seus fins. Ele viveu a vida das Conferências de S. Vicente, visitando o tugúrio dos pobres e, assim, sabendo e reconhecendo que 90 por cento, pelo menos, do auxílio que essas admiráveis instituições de caridade prestam só ao esfôrço e à boa vontade dos particulares se deve.
O homem é um complexo paradoxal de sentimentos. Tem uma face em que só o egoísmo o move. Essa não o deixa olhar para seus semelhantes tanta e tanta vez; mas tem outra face, a do amor do próximo, em que o move o sentimento da compaixão e o coração, e quantas vezes se sacrifica ao máximo para valer aos que o cercam em pobreza.
Coordenem-se estas manifestações de caridade, disciplinem-se, oriente-se êste sentimento de amor do próximo, aproveitem-se êstes impulsos caritativos e estimulem-se, e convenço-me de que o Sr. Dr. Oliveira Ramos há-de ver no futuro, completamente modificada, a natalidade que criou a assistência oficial do Estado, e só ela, mentalidade que deve ser combatida para que não continue, num período de revolução como aquele que foi iniciado pelo Estado Novo e em bases cristãs, a permanecer no êrro de tudo esperar do Estado, de tudo relegar para o Estado em tal matéria.
É assim que eu entendo a proposta e a sinto no meu coração de cristão e de português; é assim que a vejo, dando-lhe inteiramente o meu aplauso.
Mas estas considerações, que foram sugeridas pela intervenção do nosso ilustre colega Dr. Oliveira Ramos, posição que nas sessões do estudo manteve sempre, desviaram-me do plano que havia traçado para a minha exposição.
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Não há dúvida de que V. Ex.ª não pretendeu desempenhar o papel de Cardeal Diabo, que aparece sempre quando se trata da canonização dos santos. Quis apenas apresentar aos olhos da Assemblea um ponto de vista que sente e defendeu com calor e entusiasmo, o que me deu lugar a fazer estas considerações, em obediência também à minha consciência de cristão e de português.
Sr. Presidente: louvores dirijo também, desta tribuna, aos ilustres signatários do parecer da Câmara Corporativa, personalidades em evidência no nosso meio intelectual, professores consagrados, representantes dos interêsses morais e espirituais da Nação, sacerdotes ilustres, e, ligando e ordenando todo êste trabalho num proficiente parecer, ao Sr. Dr. Marcelo Caetano, que é não só um professor distintíssimo, como também - e isso talvez mais notável ainda - um homem que possue um dinamismo de jovem, de moço, pela sua actuação permanente e constante na formação da juventude de hoje, os homens de amanhã, à frente de um excelente organismo que é a Mocidade Portuguesa, com uma clara visão das responsabilidades sociais que lhes cabem no futuro, educando-os moral e fisicamente, vivendo com êles e sendo, portanto, um obreiro do futuro da Nação, que merece a todos nós a maior consideração e simpatia.
Sr. Presidente: tem-se feito imenso no que respeita a legislação social. O século XIX foi, em abono da verdade se deve dizer, profuso nessa matéria.
Creio que coube à Suíça, em 1871, a idea de organizar o primeiro congresso para a uniformização internacional dessa legislação.
Essa iniciativa fracassou, e, passados anos, em 1889, a Suíça renovou-a, mas foi prejudicada a iniciativa pela interferência da Alemanha, quando o último Kaiser, o Imperador Guilherme II, ao iniciar o seu reinado, anunciou que se apoiaria nos trabalhadores e não na nobreza e na burguesia, como os seus antecessores, o que concitou a seu favor três milhões de votos dos sociais-democratas.
Surge mais tarde, em 1890, o Congresso de Berlim, em que se emitem vários votos de protecção ao trabalho - dos menores, dos adultos e das mulheres.
E em 1900 realiza-se o Congresso de Paris, donde saiu a Associação Internacional para a protecção legal dos trabalhadores, de que resultaram várias convenções internacionais, e prossegue a obra de protecção ao trabalho na legislação de vários países, como no nosso aconteceu também.
Nos nossos dias, porém, vimos encontrar em Portugal, criada pelo Estado Novo, uma organização do trabalho, eficiente e harmónica com o sistema corporativo por êle instituído.
E, tanto no que se refere à habitação como no que diz respeito à vida do trabalhador, ao desemprêgo, à velhice e doença, se tem realizado uma obra notável.
Quem ler o belo trabalho do digno Sub-Secretário das Corporações, Dr. Trigo de Negreiros, sôbre os dez anos de labor desta acção social corporativa fica, na verdade, encantado com o que se fez.
Não sei se está presente o Sr. comandante Sá Linhares, que há pouco ouvi com muita atenção. Queria daqui - visto que S. Exa., pelas funções que exerce, deve ser o presidente da Casa dos Pescadores de Setúbal - apresentar-lhe os meus respeitos pela cooperação que nessa qualidade deve ter dado a êsses organismos, tam prestantes e tam úteis.
É grande já a obra da Casa dos Pescadores em matéria de assistêneia social: essas de habitação boas, assoalhadas, higiénicas, com tudo que é necessário à vida do pescador, satisfazendo assim as condições a que devem obedecer as construções para essa classe.
A assistência como no diploma em estudo vem ordenada - assistência à grávida, à criança, nas doenças várias que aí se indicam - é realmente uma obra a realizar nalgumas décadas.
Mas, Sr. Presidente, isso não basta. Por exemplo a assistência aos tuberculosos.
A minha observação diz-me que os dispensários anti-tuberculosos, cuja obra é de louvar e eu aqui, igualmente como, e muito bem, já foi lembrado, rendo a minha homenagem à excelsa rainha que fundou a Assistência Nacional aos Tuberculosos, não produzirão obra útil emquanto no lar do assistido não houver pão e higiene - boa alimentação o boa habitação.
Podem os dispensários apetrechar-se para o combate com medicamentos, com toda a aparelhagem para a assistência necessária aos pre-tuberculosos e aos tuberculosos. Isto nada valerá, ou para pouco valerá, se na casa do assistido houver fome, frio e falta de higiene.
Sabemos, Sr. Presidente, já aqui se disse e é verdade, que o homem é a principal unidade económica, é o maior valor na economia social, e para êle se deve olhar portanto com especial carinho. Sem as indispensáveis condições de vida não pode produzir rendimento.
As privações que êle sofre têm de ser remediadas de qualquer maneira; daí a assistência. Mas há um mínimo, o mínimo fisiológico que se não satisfaz, provoca a perda irremediável - a morte.
Repito, Sr. Presidente: o problema só terá realmente uma realização completa quando fizermos a assistência a todos êsses que na verdade necessitam de tal auxílio, dêsse socorro no lar, na habitação e na alimentação.
E como, Sr. Presidente? Aumentando-lhes o poder de compra, dando-lhes possibilidades de enfrentarem, dentro da modéstia das suas necessidades, os problemas da vida mais urgentes, os problemas da família.
Sem dúvida que de outra maneira nada se conseguirá.
E então como é que êstes lares podem ter uma prole capaz de se transformar em agentes de trabalho e de valor no futuro?
A Constituição diz-nos, na verdade, cousas muito agradáveis e simpáticas quanto ao problema da família. No que diz respeito a bairros económicos, por exemplo, muito se tem feito realmente.
Mas o salário familiar? Mas o casal de família? A limitação dos impostos em harmonia com os respectivos encargos?
Lá se encontra tudo na Constituição... Porém nada disto se fez ainda.
E há, Sr. Presidente, uma outra classe esquecida e para a qual o Estado deve olhar: a classe média. Essa classe, em que há, por vezes, uma verdadeira luta torturante para equilibrar a sua posição social, o dever, quando funcionário, de se apresentar na respectiva repartição capazmente e, ao mesmo tempo, de assegurar à família a subsistência com os limitados recursos de que dispõe.
Para essa classe começa agora a olhar-se com a proposta das casas económicas.
Sr. Presidente: no decorrer desta discussão foi apresentada já a idea de obrigar o celibatário a concorrer para a assistência. Não perfilho a idea sem restrições. O celibatário que não queira voluntariamente cumprir o dever de constituir família, podendo-o fazer economicamente, deve contribuir com êsse imposto.
Mas àqueles que não têm um modesto rendimento sequer para garantir a sua subsistência, pagando renda de casa e muitas vezes a subsistência de pessoas da família, porque nem sempre os celibatários se podem considerar sós, pois têm a seu cargo, por vezes, irmãs a sustentar, pais velhos, incapazes de trabalhar, etc., a êsses seria duríssimo impor tal sacrifício.
Não, Sr. Presidente, de certos rendimentos para cima concordo, de certos rendimentos para baixo discordo.
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254 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 62
Sr. Presidente: há um outro problema que o parecer da Câmara Corporativa também foca, que é o problema do campo. No campo a vida é boa, mas só no que se relaciona com a própria natureza; ar puro é só o que não falta; de resto há imensas deficiências de toda a ordem.
Sobre êste assunto o parecer da Câmara Corporativa é elucidativo quando se refere ao inquérito rural realizado. Também o já falecido professor Dr. Lima Basto, em interessante trabalho, verificou que o nível de vida do povo português é o mais baixo ou um dos mais baixos de todo o mundo.
Mas não só o socorro às famílias necessitadas, a exemplo do que se faz em outros países, como na Alemanha, na própria Inglaterra e na França. Quanto a êste país, pode notar-se o que tem realizado em reformas sucessivas o Govêrno de Vichy e o interêsse que esta matéria lhe tem despertado.
Na Alemanha assiste-se às famílias numerosas por meio de empréstimos, que não podem ir a mais de 2:000 marcos, amortizáveis, com um pequeno juro de 1 por cento ao mês, num quarto correspondente a cada filho que nasce. Quere dizer: um casal fecundo pode em quatro anos ter remido por completo a dívida ao Estado.
Aqui não se tem feito nada, a não ser o abono de família aos trabalhadores, o abono de família aos funcionários, e isto é um esbôço apenas.
Calculo que o Govêrno pensa na possibilidade de cumprir o que está na Constituição, estudando o problema financeiro de modo a poder realizar essa aspiração ...
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª, Sr. Deputado Querubim Guimarãis, está no uso da palavra há já quarenta minutos; peço a V. Ex.ª para abreviar as suas considerações.
O Orador: - Vou terminar.
As considerações que precederam a minha exposição depois da intervenção do Sr. Dr. Oliveira Ramos, e provocadas por essa sua intervenção, desviaram-me do plano que desejava seguir, pois há realmente muitos pontos a focar neste problema.
Temos aqui na nossa frente o nosso ilustre colega Sr. cónego Mendes de Matos, que, a exemplo do que tem feito em outras sessões legislativas, êste ano também, quando se discutiu a lei de meios, com toda a correcção e brilho, lembrou ao Govêrno a necessidade de se suprimir o imposto sucessório.
Alguma coisa se tem feito, mas pouco.
Êle tem falado na necessidade de não destruir os casais, tanto na sua acção parlamentar na Assemblea Nacional como também na qualidade de director do jornal A Guarda, brilhante semanário.
Nada se tem feito.
Há ainda um problema que também deveria merecer uma maior atenção do Govêrno: o da prostituição.
Apresentarei na devida altura uma emenda que me foi sugerida pela representação dirigida a V. Ex.ª, Sr. Presidente, pelas senhoras que estão à frente dos organismos de protecção às mulheres.
Há ainda o problema da taberna, pois êstes estabelecimentos multiplicam-se em Portugal, por toda a parte, sendo uma fonte do crime e da desmoralização, pois ali se vão recrutar muitos alcoólicos e até mesmo alguns loucos.
Temos ainda o problema do baile, que se estadeia por essas aldeias fora, de tal modo desorganizando a vida social que dá um grande contingente para os tribunais e para toda a espécie de delitos.
Êste problema também merece bem a atenção do Govêrno.
Sr. Presidente: o problema de assistência é tam vasto que não é em poucos anos que êle consegue sequer pôr-se em equação.
E rematarei as minhas considerações, pondo de parte tudo o mais que eu fazia conta de dizer, com estas palavras:
Há supletivamente, como deseja a proposta, a necessidade de o Estado, na compreensão dos seus deveres, coordenar e dirigir as iniciativas particulares, estimulando-as, mas limitando-as também nos seus excessos.
E, a propósito, lembro-me do que fez na minha região o grande benemérito que foi o Visconde do Salreu. O Visconde de Salreu construiu um grande edifício para um hospital que pouco rende em utilidades assistenciais. E um dia, sob incógnito, em virtude das dificuldades que havia em dar uma aplicação capaz a essa obra, o Sr. Dr. Oliveira Salazar entrou nessa casa, examinou tudo e, verificando as demasiadas proporções dessa instituição, teve esta exclamação: "Não há dúvida de que o português não tem o sentido das proporções".
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - O debate continua na sessão de amanhã. Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 35 minutos.
Sr. Deputado que entrou durante a sessão:
Sebastião Garcia Ramires.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
António Hintze Ribeiro.
Cândido Pamplona Forjaz.
Carlos Moura de Carvalho.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Ranito Baltasar.
José Soares da Fonseca.
Luiz José de Pina Guimarãis.
O REDACTOR - M. Ortigão Burnay.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA