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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 150
ANO DE 1945
9 DE MAIO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 147, EM 3 DE MAIO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
José Luiz da Silva Dias
SUMÁRIO: — 0 Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 10 horas e 20 minutos.
Antes da ordem do dia. — Foi aprovado o Diário das Sessões.
Sôbre a vitória das Nações Unidas, a posição de Portugal perante a guerra, a política do Govêrno e a aliança anglo-lusa usaram da palavra os Ex.mos Srs. Presidente da Assemblea Nacional e Presidente do Conselho e os Srs. Deputados Mário de Figueiredo, Fernando Borges, Mendes de Matos, José Nosolini e Albino dos Reis.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada. Eram 16 horas e 10 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Cortês Lobão.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Ribeiro Lopes.
Carlos Moura de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique Linhares de Lima.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luiz Augusto das Neves.
João Pires Andrade.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Alberto dos Reis.
José Alçada Guimarãis.
José Dias de Araújo Correia.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches
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Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Maios.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Luíza de Saldanha da Gama vau Zeller.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Pedro Inácio Álvares Ribeiro.
Querubim do Vale Guimarãis.
Rui Pereira da Cunha.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 59 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 20 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Está em reclamação o Diário da última sessão.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Como ninguém deseja usar da palavra sôbre o Diário, considera-se aprovado.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Suspendo a sessão por uns momentos.
Eram 16 horas e 21 minutos.
O Sr. Presidente da Assemblea Nacional entrou na sala com o Sr. Presidente do Conselho. Toda a assistência se levantou e recebeu S. Ex.ª com uma estrondosa e demorada ovação.
O Sr. Presidente do Conselho ocupou lugar ao lado do Sr. Presidente da Assemblea.
O Sr. Presidente: — Está reaberta a sessão.
Eram 16 horas e 55 minutos.
O Sr. Presidente: — Findou a guerra na Europa. Depois de mais de cinco anos de horrores e devastações, terminou finalmente o incêndio que ameaçava subverter toda a civilização ocidental e cristã, laboriosamente erguida pelo sangue e pelo heroísmo de mártires e de apóstolos.
Ilumina o horizonte o facho consolador da paz. Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Estão em festa as Nações Unidas; acompanhamo-las no seu ruïdoso e legítimo entusiasmo. Seja-nos permitido destacar, de entre elas, a Inglaterra, a nossa velha e firme aliada, que nas horas mais sombrias da luta manteve sempre bem alto o espírito de resistência e tenacidade, dando ao mundo exemplo admirável de coragem, abnegação e sacrifício.
As alegrias da Inglaterra são as nossas próprias alegrias; vão para ela as nossas mais calorosas e efusivas saüdações. Rendemos as nossas homenagens, bem sinceras, ao valoroso exército britânico, à armada gloriosa, aos heróis do ar, a êsse magnífico e ousado corpo de aviadores que no momento mais grave da tormenta salvou a Nação do extermínio e da morte. Portugal rende igualmente o preito da sua admiração às altas virtudes cívicas do povo inglês, que não esmoreceu nem sucumbiu, mesmo quando a fé poderia parecer loucura e a confiança tocava as raias da utopia.
O Govêrno Português definiu, logo de início, a sua posição no conflito; e definiu-a nestes termos: neutralidade perfeita, sem prejuízo, porém, dos deveres que lhe impõe a aliança com a Inglaterra. Quem olhar com serenidade e imparcialidade para o desenrolar dos acontecimentos não pode deixar de reconhecer que se cumpriu fielmente o que fôra anunciado (Apoiados). Portugal observou sempre a mais escrupulosa e honrada neutralidade, excepto quando, em nome da aliança, lhe foram pedidas concessões ou serviços. Por isso é que a dignidade da sua atitude se impôs à consideração e ao respeito dos contendores.
Mercê da Providência, em primeiro lugar, e da linha impecável da nossa conduta, em segundo lugar, conduta superiormente inspirada pela visão patriótica de Carmona e Salazar (Palmas), pudemos disfrutar, numa Europa em chamas, os benefícios da paz; mas de uma paz que não nos deminuíu nem nos envileceu.
Vão começar os trabalhos da reconstituïção da Europa mutilada e ensanguentada. Estão já em marcha as negociações para a organização da segurança mundial; lançam-se em S. Francisco os fundamentos do novo regime internacional que há-de dirimir os conflitos entre os povos e eliminar a guerra como solução de litígios entre os Estados.
Se as cousas valem em função do preço por que foram adquiridas e do tempo que levaram a produzir, esta vitória das Nações Unidas, obtida à custa de tanto sangue, de tanto suor e de tantas lágrimas, ao cabo de cêrca do seis anos de esforços sobrehumanos, deve ser a inauguração de um período muito longo de paz e tranqüilidade sôbre a terra.
O nosso voto, fervoroso e ardente, é que os homens sôbre os quais pesa a tremenda responsabilidade de decisões gravíssimas, de actos de que depende o destino da Humanidade, se compenetrem verdadeiramente da grandeza da sua missão e saibam dar ao mundo uma lição edificante de prudência, tolerância e justiça.
Que a Providência inspire e ilumine os chefes responsáveis, a fim de que a uma guerra atroz não suceda uma paz injusta que traga no seio o germe de nova conflagração.
Mais uma vez se mostra exacto o conceito de Pascal: se é necessário que a Justiça seja forte, é igualmente necessário que a Fôrça seja justa.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Grande e calorosa salva de palmas.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Presidente do Conselho.
O Sr. Presidente do Conselho sobe então à tribuna.
O Sr. Presidente do Conselho: — Sr. Presidente e Srs. Deputados:
Conhecedor das intenções da Câmara, o Govêrno desejou estar presente às manifestações da representação nacional pelo fim das hostilidades na Europa. Não é
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êste o momento para a revisão que me proponho fazer em breves dias perante a Câmara dos problemas directa ou indirectamente ligados aos acontecimentos actuais. O meu intento hoje é outro e as minhas palavras serão breves.
Caiu finalmente o pano sôbre a tragédia que a Europa representou e viveu na sua carne, e no seu espírito durante os últimos seis anos. Nenhuma dor, nenhuma angústia, nenhum mal de quantos a pobre humanidade em séculos de desvario ou de expiação inventou e sofreu lhe foram poupados, a esta mártir, mãi de civilizações: nem conflitos trágicos de conceitos fundamentais da vida dos homens e das sociedades, nem divisões intestinas e lutas fratricidas, nem as maiores aberrações da inteligência e do sentimento, nem destruições ciclópicas de vidas e haveres, de economias e culturas, de cidades e de nações. Tam extensa e profunda foi a tragédia que nem mesmo todos os vencedores — e lembro piedosamente o Presidente Roosevelt — puderam sorrir ao claro sol da sua vitória. A terra está ensopada de sangue e de lágrimas; sofreu-se e sofre-se demais para que nos entreguemos a ruidosas manifestações de alegria. Contudo, e embora com os olhos embaciados de lágrimas, um íntimo contentamento de alma é justo e devido. Apontarei, resumidamente, os três motivos seguintes.
*
Em primeiro lugar cessar a luta e findarem os horrores que a guerra traz consigo é já de si inestimável bem. A libertação de países tam duramente, experimentados e tam dignos na sua provação, a recuperação da sua independência e liberdade de vida, poder-se trabalhar para o bem-estar dos povos e não para o seu aniquilamento, dará, por toda a parte a doce sensação de um quebrar de algemas, acordar de pesadelos e renascer para a vida e a felicidade possível. E, embora o futuro se ensombre de grandes preocupações e a obra de reconstrução material e moral se antolhe mais difícil que os trabalhos da mesma guerra, há-de ver-se que a tarefa a realizar em paz e na esperança, só por si bastantes para desoprimir o espírito, aligeirar os corações, tornar mais leve o esfôrço comum. Bemdigamos a Paz!
*
Depois a Providencia dispôs em seus altos desígnios que pudéssemos atravessar o conflito sem sermos directa e activamente envolvidos nêle e sem nêle sacrificarmos mais que dinheiro, esforços, cuidados, algumas privações, o que, sendo muito em si, tudo se deve ter por pouco, em face do que outros houverem de sofrer. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Palmas). Atravessámos incólumes a guerra e, podemos dizê-lo, sem sacrificar nem a dignidade da Nação nem os seus interêsses e amizades. (Vozes: Muito bem, muito bem!). Sempre que foi necessário marear posições pela palavra ou pelo acto em favor de amigos ou aliados, e fôsse qual fôsse a sua situação de momento, ou o fizemos espontâneamente ou acorremos de boamente ao seu apêlo. (Vozes: — Muito bem, muito bem!). Decerto houve que ter plena consciência das conseqüências possíveis, mas não exagerámos os riscos para nos desviarmos do dever (Vozes: — Muito bem, muito bem!): aceitámos serenamente e em todas as circunstâncias a parte de sacrifício que pudesse caber-nos. E não temos de medir ou recordar os serviços prestados, porque não são nem depreciados nem esquecidos.
Não lembro neste momento dificuldades vencidas; registo que pôde manter-se a posição sem subserviência para com os poderosos e sem desinterêsse, antes com fraternal carinho pelos fracos e pelos oprimidos em demanda de auxílio ou refúgio. E, tendo ficado à margem das grandes paixões que dividiram os povos, pudemos, com o coração isento, debruçar-nos piedosamente sôbre todos os sofrimentos, admirar todos os heroísmos, ser compreensivos para todos os êrros, sem deixar de ser severos para com todos os crimes. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Calorosos aplausos).
Mais felizes do que aqueles que para perdoar muito terão de esquecer, a nossa missão está simplificada, no mundo que se pretende edificar sôbre o respeito do homem, a amigável colaboração das nações, o bem comum da humanidade.
— Bemdigamos a Paz! (Vozes: — Muito bem, muito bem!)(Aclamação).
*
O terceiro motivo do nosso contentamento está em que a Inglaterra se encontra entre e no primeiro plano das nações vitoriosas. Muitos se ufanarão de o ter lido no livro do futuro com clareza meridiana; eu confesso humildemente que a esperança só se me converteu em certeza ao contemplar um esfôrço de guerra que, embora dentro das extraordinárias possibilidades do povo britânico, se duvidará de alguma vez ter sido atingido na história da humanidade.
Ninguém entre nós deixou de considerar o interêsse nacional solidário da posição da Inglaterra (e até da Comunidade Britânica) tal como resultasse da solução do conflito. Todos podiam notar que a uma visão porventura demasiado continental da Europa estava contraposta a concepção històricamente mais exacta da sua universalidade, e era a todos evidente que a vitória inglesa e dos Estados Unidos da América, (em que o Brasil colaborava activamente) teria como resultado arrastar para o Atlântico o centro de gravidade da política internacional, no que importava ao ocidente. E numa e noutra cousa nós somos interessados. Ora eis que, embora sangrando de inúmeras feridas, a Inglaterra se ergue, de entre grandes ruínas, não só vitoriosa mas invencível; e, tendo consolidado os laços das diversas partes do Império, se pode apresentar no mundo e entre os maiores, como verdadeira educadora de povos, mãi e condutora de nações. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Entusiásticos aplausos).
— Bemdigamos a Vitória!
*
E calo-me. A verdade, é que em hora tam alta e quási sagrada não descubro, não sinto em mim senão um vivo impulso de graças à Providência pela sua misericórdia e de preces por que a sua luz ilumine os homens responsáveis pelos destinos do mundo. (Vozes: — Muito bem, muito bem!).
(Toda a assistência, de pé, ovacionou, largo tempo, o Sr. Presidente do Conselho).
O Sr. Mário de Figueiredo: — Sr. Presidente da Assemblea Nacional e Sr. Presidente do Conselho: acabou a guerra na Europa. É motivo para nos regozijarmos com o facto, para saüdarmos a vitória, um dos grandes campeões da qual foi a nossa velha aliada — a Inglaterra. O campeão que com as suas espantosas condições de resistência moral a tornou possível, permanecendo só, quando tudo se desmoronava, a aguentar o embate, indo buscar vigor ao próprio sofrimento e à consciência esplêndida das suas energias seculares ou de que não estava terminada a sua missão imperial no mundo.
Ao saüdar a vitória, não ficará mal uma palavra de piedade para com os vencidos.
Nós pudemos conservar-nos neutrais no trágico conflito. No modo como se desenvolveu na Europa, só a aliança com a Inglaterra podia obrigar-nos a uma atitude diferente. Mantivemos honradamente a posição que toma-
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mos, na medida em que os deveres resultantes da aliança, no-lo permitiram. E mantivemo-nos escrupulosamente fiéis ao pensamento da aliança, carregando de conteúdo a sua letra e não hesitando em consentir em todas as formas de colaboração que, em nome dela, nos foram pedidas. Fomos mais longe: chegámos a organizar os pressupostos da colaboração, na previsão de que poderiam vir a ser utilizados! Creio estarmos em condições de demonstrar que a própria atitude de neutralidade se apresentou como uma forma de colaboração e como tal foi interpretada.
Colaborámos na vitória. Está agora a procurar-se o sistema da organização da paz. Não fomos chamados, apesar disso, a colaborar na preparação dêste sistema.
Nem por isso deixaremos de colaborar na paz!
Saüdemos a vitória, Sr. Presidente; e Deus queira que amanhã possamos saüdar a organização da paz como sempre saüdámos e saüdaremos a própria paz se ela tiver a animá-la e a engrandecê-la o sopro de cristianismo que a derrama no peito da humanidade!
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Grande salva de palmas.
O Sr. Fernando Borges: — Sr. Presidente, Sr. Presidente do Conselho, Srs. Ministros, Srs. Sub-Secretários de Estado, Srs. Deputados: data memorável é esta que estamos a celebrar e que — seria redundância dizê-lo — fica assinalada nos factos da História.
Porque, na verdade, acaba de ter o seu têrmo a maior conflagração em que o mundo foi ainda envolvido.
Nunca o poder das armas se apresentou com tantos meios de destruição; nunca o potencial dos beligerantes em qualquer guerra ou conflito se apresentou em tam vastas proporções. Meios de destruição que iam, mesmo, em apavorante crescendo, com o emprêgo e anúncio de armas novas, que ameaçavam destruir toda a civilização. Por isso os anseios desta hora solene são por um sistema de segurança que nos garanta uma paz, senão perene, pelo menos duradoura.
Uma nova conflagração seria a destruïção completa da civilização, como o previu o ilustre Ministro dos Negócios Estrangeiros da Inglaterra ao abrir a Conferência de S. Francisco, fazendo um apêlo pela paz, porque êste era o momento solene de a garantir duradouramente. Ou agora ou nunca.
Sôbre êste anseio do ilustre Ministro dos Estrangeiros inglês cumpre-nos congratular com ela, no momento em que surge, como um grande alívio e uma fagueira esperança, muito embora deva ser dura e ingente a sua tarefa, tantas foram as devastações e ruínas da grande fogueira que incendiou a Europa. Continua ainda a guerra no Oriente, mas sôbre si não deixará de reflectir-se o têrmo da luta na Europa, onde se digladiaram os mais poderosos beligerantes.
E não é em Portugal êste momento menos apreciado, pois até nós chegaram também, por diferentes modos, os malefícios da guerra, embora nós tenhamos, por uma política sábia e previdente, ficado fora do conflito. Não deixaram ainda assim de vir até nós angústias, angústias e sacrifícios, mas essa política sábia e previdente afastou-nos, porém, dos maiores malefícios que ensangüentaram todos os outros povos.
Mas, Sr. Presidente, nem por nós termos adoptado de início uma política de neutralidade, ressalvando sempre os nossos deveres para com a nossa histórica e velha aliada, deixámos de estar presentes onde o aconselhava o interêsse nacional ou onde o indicava o pensamento da nossa política externa.
É de salientar, Sr. Presidente, especialmente a cooperação que em dado momento tivemos de dar ao nosso
aliado na importante posição dos Açores. Depois, no evoluir da guerra, outros actos e resoluções tomámos, todos no sentido de uma cooperação tendo em vista os altos interêsses nacionais e os compromissos da nossa aliança.
Toda essa política clarividente nem sempre foi devidamente apreciada. Fica para o balanço da História nas horas serenas da paz e então se verá o alcance de toda a nossa preparação, de toda a nossa acção e de todos os nossos sacrifícios. Entre êles figuram avultadas despesas militares com o nosso rearmamento, algumas já bem conhecidas da Assemblea pelo exame das contas de gerência dos anos económicos findos.
Além, Sr. Presidente, de nos conservarmos fiéis aos compromissos da velha aliança sempre que nos fôra pedido, por nossa parte não deixámos de realizar um importante esfôrço militar, mobilizando forças para guarnecer as nossas ilhas e colónias quando se julgou necessária a sua presença para assegurar o interêsse nacional e afirmar a nossa soberania em próximas e remotas paragens.
Agora, que se entra em período de paz, será possível tornar mais explícito êsse nosso esfôrço de guerra, apesar da nossa neutralidade, e que o fragor das pelejas e os segredos de guerra, com as suas naturais restrições de publicidade, não deixaram pôr até agora em mais completa evidência. Seja como fôr, esta hora é do júbilo e congratulamo-nos com ela, porque com ela passa a grande tormenta e aproxima-nos numa Nova Era nimbada pela paz, embora envolta ainda na névoa das suas ingentes tarefas e inevitáveis complicações.
Portugal, que viveu, apesar de tudo, os duros anos da guerra, continua a viver e viverá.
Nesta hora, Sr. Presidente, que bem podemos dizer de júbilo nacional, como Deputado e como militar creio não ser demais saüdar daqui, do seio da representação nacional, as forças militares que foram mobilizadas para ocupar os diferentes pontos dos nossos territórios das ilhas e ultramar, umas que já regressaram, depois de ali cumprirem disciplinadamente a sua missão, outras que ainda por lá permanecem — algumas em remotas e longínquas paragens.
Tenho dito.
Aplausos vibrantes.
O Sr. Mendes de Matos: — Sr. Presidente: tomei a palavra, nesta hora solene da história e nesta Assemblea política da Nação, para me associar ao regozijo alvoroçado que enche e sacode o mundo, àquele «contentamento de alma, devido e justo» a que há pouco se referiu, tam sentidamente, o Sr. Presidente do Conselho.
E faço-o, efusivamente, na dupla qualidade de sacerdote e de português.
Os bispos norte-americanos disseram há dias, em documento notável, que esta guerra foi o fruto de monstruosas ideologias que, encorporadas em sistemas políticos e sociais, primeiro incendiaram o mundo de ódios vermelhos, depois o cobriram com um mar de sangue e de fogo.
Desse mar de sangue e de fogo emergiram dois cimos claros e luminosos que, pela beleza dos seus contornos e pelas afinidades históricas que os ligam, nos merecem particular interêsse: a Rocha do Vaticano e o Promontório de Sagres.
A Rocha do Vaticano, que tem sido através dos séculos a muralha de aço contra a qual se têm quebrado todas as vagas do êrro e da violência, tornou-se, desde a primeira hora da tormenta, a heróica cidadela dos valores e direitos do espírito, dos princípios eternos da civilização.
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Sôbre ela se ergueu a toda a altura da sua grandeza a figura majestosa do Papa para pregar a Verdade, defender o Direito, proclamar a Justiça. E fê-lo numa acção constante e infatigável, que se desdobra em três manifestações, cheias de grandeza e de benemerência: o Papa combateu quanto pôde contra a eclosão da guerra; trabalhou quanto pôde pela humanização da guerra, sacrificou quanto pôde pelas vítimas da guerra.
Lutou contra a guerra pela luz da sua palavra apostólica, procurando esmagá-la no próprio germe doutrinal que a engendrava; lutou contra a guerra, pondo em movimento contra ela todo o complexo e autorizado organismo da diplomacia da Santa Sé; lutou contra a guerra, diligenciando fazer vingar todo o valimento do seu prestígio e influência pessoal junto das chancelarias interessadas.
Malogrou-se essa luta gigantesca e heróica e a guerra estalou, brava e indómita, com fereza de uma tempestade que traz no seu seio a desolação e a morte, que tudo abate, tudo destrói, tudo tritura.
Na sua marcha destruïdora só um direito reconhecia — o direito da fôrça —, uma só lei respeitava — a lei do resultado imediato das armas.
As vagas da violência que quebrantavam as normas da civilização e ao desafôro de deshumanidades que fez retroceder os homens do século XX às maiores baixezas da barbárie opôs o Papa os princípios indefectíveis do respeito pela dignidade, pela sorte dos vencidos, pela verdade e pela justiça, que êle pôs como base fundamental da ordem e da paz.
As mensagens natalícias, que contêm os deveres da guerra e os direitos da paz, padrão imorredouro do direito das gentes, ficarão na memória agradecida da história. Os instantes e renovados apelos à colaboração e à concórdia, são mais que gritos de alma e brados de coração, porque são tesouro de doutrina jurídica que os séculos hão-de seguir e louvar.
Apesar de tudo, as ruínas amontoavam-se, cresciam as vítimas em número e sofrimento. E o Papa inclina-se para elas, para corrigir umas e guarnecer as outras, criando um complexo de obras assistenciais que acudiam a todas as necessidades emergentes e constituem a afirmação da caridade organizada mais vasta e mais perfeita que têm conhecido os séculos.
Êle mesmo em pessoa foi visto, mais de uma vez, no meio das ruínas ainda fumegantes, para consolar os que entre elas choravam e gemiam. Homens de princípios, pioneiros de uma ordem nova que crie um mundo melhor, fica-nos bem saüdar, nesta hora e desta tribuna, o homem branco, que nas horas mais trágicas e afligidas do mundo soube ser mais que o cônsul caritatis, o intrépido defensor e bemfeitor insigne da humanidade sofredora.
O outro cimo que emergiu do mar de fogo e sangue foi o Promontório de Sagres, a zona da paz do nosso País. E chamo-lhe Promontório de Sagres porque foi o espírito que criou, animou e glorificou a escola de Sagres, que deu ânimo à nossa posição na guerra e sentido à nossa neutralidade.
Salazar disse, na primeira hora, que a nossa neutralidade não era cómoda nem barata. Bem sabemos nós hoje que assim foi na verdade. Não foi isenta de sacrifícios, porque não a determinaram egoísmos nacionais, mas altos sentimentos humanitários.
A nossa neutralidade foi, afinal, quer pela acção, quer pelo pensamento, um capítulo ou um episódio da nossa missão histórica, universalista e cristã, tam altamente afirmada em Sagres.
Vozes: — Muito bem! Muito bem!
O Orador: — Ela foi, com efeito, o refúgio de homens de todos os povos, acossados pela fúria da tormenta, e derradeiro reduto dos princípios da concórdia internacional. Servindo Portugal, servimos o mundo, e mais de um povo nos mandou público agradecimento dos nossos serviços.
Defendendo o nosso prestígio com honra, defendemos a causa da humanidade com proveito.
Esta posição de grandeza patriótica e de prestígio internacional não foi simples acidente geográfico ou mera coincidência histórica.
Foi obra laboriosa e difícil dos dois grandes chefes que a Providência pôs à frente dos destinos do nosso País nesta hora tam conturbada.
Quando as chancelarias puderem abrir para a história os segredos dos seus arquivos, ver-se-á com clareza que a nossa neutralidade, com todos os benefícios que nos trouxe e ao mundo que serviu, foi o resultado feliz da superior clarividência com que foi dirigida a nossa política internacional.
Muitos apoiados.
Palmas.
O que Portugal fica devendo a essa política não é possível saber-se com exactidão, mas pode avaliar-se imaginando-se os horrores a que foi poupado. Ao olhar para as desgraças que pesam sôbre as nações que foram arrastadas no vórtice da tormenta, ingente, não podemos deixar de experimentar um profundo sentimento de reconhecimento pela obra dos dois chefes, que souberam, à custa de sacrifícios e de cuidados, servidos pela clara visão da nossa missão histórica, conservar-nos com dignidade à margem do conflito armado e indemnes dos horrores que êle semeou pelo mundo.
Deve-lhes o País reconhecimento eterno; saüdá-los, nesta hora solene, é dever patriótico da mais elementar justiça.
Eu os saúdo desta tribuna, com a minha voz apagada e humilde, certo de que interpreto, não apenas o sentir profundo das mãis portuguesas, mas o sentir unânime da Nação, e seguro de que a história há-de repercutir e confirmar êste aplauso, que é tam ferveroso como merecido.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Palmas.
O Sr. José Nosolini: — Sr. Presidente, Sr. Presidente do Conselho, Srs. Ministros, Dignos Membros da Câmara Corporativa e Srs. Deputados: depois da palavra do Sr. Presidente do Conselho, expressão perfeita da alma nacional, todas as outras seriam dispensáveis; mas nós somos nesta Assemblea a projecção viva do pensamento, dos interêsses e dos ideais da nossa terra; temos, por isso, de esquecer, por dever, a pequenez, a modéstia das nossas possibilidades.
Sr. Presidente: ao espalhar-se a boa nova do que esta guerra, que tem atormentado o mundo, acabara na Europa, a gente portuguesa, vibrando do entusiasmo, mostrou compreender e sentir que a vitória tinha para Portugal um alto e extraordinário significado.
Emocionou-nos saber que cessaram os combates; que parou a destruição de riquezas e de valores materiais irrecuperáveis; que terminou neste velho continente um gigantesco ceifar de vidas.
Aplausos gerais.
Compartilhamos da alegria daqueles vencedores que nos são mais, queridos — a Inglaterra, nossa secular aliada, império admirável, que tam sàbiamente mantém e defende a sua brilhante missão histórica; o Brasil, nação que criámos e onde corre o nosso próprio sangue; a França, representante ilustre do génio e do espírito latinos.
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Admiramos o valor e o esfôrço ciclópico dos Estados Unidos da América e, desviando os olhos da acção dos povos para a acção dos homens, destacamos êsse homem de ferro, essa figura extraordinária, verdadeiro Ministro da Vitória, que, antes de entregar a vitória ao seu país, a forjou no fogo da sua alma, com a sua vontade inquebrantável — maravilha da sua raça —, quando ainda à sua roda tudo eram incertezas, sombras e perigos.
No entanto, a satisfação que vivemos tem profundas razões no sentimento e no orgulho nacional. É que nesta hora acordou na nossa consciência a certeza que há muito nela se radicara de que a vitória marcaria para Portugal dois triunfos magníficos: o triunfo da sua lealdade de sempre e o triunfo do seu valor de amanhã na vida internacional.
Assim, o povo português sentiu a consoladora satisfação de ver confirmado uma vez mais que, sem necessidade de suportar as feridas horríveis dos campos de batalha, tinha cumprido com dignidade e lealdade os seus deveres para com a sua aliada e para com o mundo, conservando neste canto da Europa um abençoado lugar de paz!
O povo português neste momento lembra também as virtudes e os sacrifícios inigualáveis do venerando e respeitável Chefe do Estado; lembra êsse homem calmo e sereno, profundamente português e profundamente cristão, que, vivendo durante cinco longos anos, no silêncio do seu gabinete, as tragédias do mundo, o sentido do interêsse nacional e as exigências da honra portuguesa e que, pensando friamente, sem paixões, a não ser a paixão de servir a Pátria, a que se deu numa entrega total...
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Estrepitosos aplausos.
O Orador: — ...guiou, conduziu e salvou Portugal!
Muitos apoiados e palmas.
Sr. Presidente: mas no entusiasmo do povo português há ainda o reconhecimento de uma utilidade, direi melhor, de uma missão a cumprir.
Quando o Sr. Presidente do Conselho fez a esta Assemblea a comunicação das facilidades cedidas à Inglaterra nos Açores disse que a paz não seria o fim da guerra, mas sim o começo da batalha da reorganização do mundo.
Pois bem, nós, que, como êle disse então, encontrámos para os nossos males remédios próprios que nos têm servido, nós, que vivemos sabendo limitar-nos pelo direito e pela moral, nós, que prestigiamos a autoridade como garantia das liberdades individuais, nós, que, neste extremo da Europa, representamos a guarda vigilante de princípios fundamentais que ainda guiam o mundo — o Direito, a Justiça, a dignificação da pessoa humana, o respeito pela liberdade e soberania dos povos, o ideal cristão —, temos de contribuir, embora com a modéstia da nossa pequenez, para que os sofrimentos horríveis desta guerra tenham um sentido e representem verdadeiramente um preço de resgate.
E ainda, por um imperativo geográfico, com o nosso império do ocidente e com parte dos vencedores desta guerra, a Inglaterra, os Estados Unidos, o Brasil, a França e com a irmã Espanha, constituindo as fronteiras do Atlântico, temos de manter e salvar uma civilização que ajudámos a criar o que espalhámos pelo mundo.
Muitos apoiados e palmas.
Sr. Presidente: todas estas razões e todos estes sentimentos dão sentido e grandeza ao entusiasmo do povo português.
Tenho dito.
Entusiásticos aplausos.
O Sr. Albino dos Reis: — Sr. Presidente: a Câmara, pela voz dos oradores que me precederam, pelos aplausos calorosos com que sublinhou as mais vivas afirmações de regozijo, manifestou com veemência, mas com dignidade, quanto a notícia do têrmo das hostilidades na Europa a alvoroçou de alegria e de contentamento, quanto êsse histórico acontecimento comoveu a sua compreensão e a sua simpatia pelos inarráveis sofrimentos de todas as vítimas da guerra.
Bemdita seja a paz! Maldita seja a guerra!
A Câmara interpretou como lhe cumpria os sentimentos profundos do País, os sentimentos generosos desta gente de Portugal, tam digna, na modéstia do seu viver, mas tam rica de dons no seu coração, que no meio das dificuldades e tribulações que a guerra lhe trouxe ainda lhe sobrou, para as tribulações e misérias maiores dos povos que o vendaval da guerra assolou, uma amplíssima compreensão e humana piedade!
Maldita seja a guerra! Bemdita seja a paz!
Malditas sejam a destruição e a morte! Bemditas sejam a edificação e a vida! Milhões de lares em todo o mundo reacenderão hoje a sua chama votiva e em milhões de almas atormentadas reflorirão a esperança e a vida!
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas não foi para entoar hosanas à paz que me atrevi a usar da palavra. Não foi para avolumar o côro que acompanha sempre o cortejo triunfal dos vencedores. Nem o povo português nem esta Câmara, no sentido exacto da sua compostura e correcção, desculpariam atitudes sem elegância nem grandeza. Não foi, não, para tornar mais dura e mais amarga a derrota dos vencidos.
Todos os que tombam com honra no pôsto que a Pátria lhes atribuiu merecem a continência e o respeito das almas elevadas. Não para lisonjear os vencedores. Nós não somos, como uma vez disse o Presidente do Conselho, exprimindo a atitude de Portugal nos dias sombrios que a Inglaterra viveu em 1940, nós não somos dos que voltam a cara aos amigos nas horas da adversidade; mas também não somos, pelo nosso feitio moral, dos que aparecem a fazer-se lembrados nas horas da boa fortuna dos amigos.
Bemdita seja a paz, sim, porque ela representa já para uma grande parte da humanidade a libertação dos sofrimentos, das misérias, dos terrores e da servidão da guerra, ou, ao menos, uma rajada consoladora de esperança em dias de menos provação e desgraça.
É a esta luz e com esta esperança que o meu espírito se volve hoje para essa velha Europa ensanguentada e martirizada, para saüdar os povos libertados: em primeiro lugar êsses pequenos e pacíficos povos que a vitória das Nações Unidas libertou e restituiu à sua independência e autodeterminação: a Bélgica, a heróica nação mártir, duas vezes num quarto de século violada na sua independência, invadida e talada pelos exércitos inimigos, sem outro motivo que não seja o da fatalidade da sua situação estratégica e da falta de respeito alheio pelo seu direito e pela sua liberdade; a Noruega, um povo altivo e digníssimo, que com tanta valentia sustentou quási seis anos de ocupação. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Palmas); a Holanda, a pacífica e laboriosa Holanda, que Ramalho tanto insinuou na simpatia, dos portugueses, êsse povo admirável em cujo trono se senta uma rainha expressão da unidade de um império, que foi um exemplo edificante de constância na adversidade e de inquebrantável fidelidade aos seus deveres de rainha, e aos compromissos do seu país; a Polónia, essa nação infinitamente simpática no seu heroísmo e no seu imerecido destino, que até pelas suas
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9 DE MAIO DE 1945
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fraquezas e pelas suas virtudes parece um pouco da alma latina esparso nos céus frios do norte, para além da Alemanha e para cá da Rússia, vibrando o seu incorrigível idealismo nas páginas cristianíssimas de Sienkiewicz ou nas notas dolentes de Chopin. A Grécia, a pátria antiga do alto pensamento e das nobres artes e cuja incomparável bravura na defesa do seu solo sagrado assombrou o mundo.
Mas, meus senhores, de entre as nações que a guerra submergiu e que voltaram à luz eu quero saüdar de todo o meu coração a França, imortal, a França que num momento inexplicável sucumbiu e cujo eclipse trágico envolveu de sombras funestas as mais altas esperanças dos povos.
Somos latinos, formámo-nos nas letras e na cultura francesa, amamos desinteressadamente a França. Sentimos que o seu espírito é indispensável à defesa dos altos Valores espirituais da humanidade, sabemos que a sua fôrça é indispensável no equilíbrio político da Europa, o seu império ao equilíbrio político do mundo.
Saüdemos a França renascente que voltou a ocupar na cena do mundo o lugar que lhe compete. Confiemos nela. Quatro longos anos de cativeiro não lhe quebrantaram a fé nos seus destinos. Dobrada sôbre si mesma, a França sofreu, chorou, retemperou-se no sofrimento e nas lágrimas. Acreditemos que o seu espírito e a sua sensibilidade se depuraram nas privações e na dor. Esperemos que retomem o seu vôo em curvas ainda mais amplas e mais altas.
Alas. Sr. Presidente, se não pedi a palavra para entoar hosanas aos vencedores, não quere isto dizer que o sentido da decisão da guerra me fôsse indiferente, e sobretudo fôsse indiferente aos interêsses e às simpatias do País. Liga-nos à Inglaterra uma aliança secular. Somos velhos companheiros de viagem pela história.
Há seiscentos anos que as gerações vêm passando, as tempestades cavando de abismos aqui e além os mares por onde vogamos, as revoluções alterando as instituïções fundamentais dos dois povos, mas sempre a aliança tem permanecido constante. Pelo mundo fora, em quási todos os continentes mantemos há muito longa e boa vizinhança.
É um facto. E os factos, na frase de Malebranche, que o nosso colega Ângelo César se compraz em repetir, nem Deus os revoga. Não nos podia ser, pois, indiferente a sorte da Inglaterra na guerra. E não o foi: nem o é neste momento. A Inglaterra sai no conflito com sinais evidentes de fundas cicatrizes na sua armadura, mas com imenso prestígio moral: o da bravura dos seus soldados e marinheiros... O da sua fidelidade aos compromissos internacionais. A comunidade britânica mantém-se. Ela é a expressão mais alta do prestígio europeu no mundo.
Prestar justiça às qualidades e virtudes que a Inglaterra exibiu durante a guerra, e, sobretudo, naqueles tempos em que, na frase de Churchill, lhe foi preciso deitar a cabeça de fora para não se afogar, é um elementar dever de homenagem à verdade, não chega a ser um cumprimento de amigos.
Afirmar-lhe a confiança na sua experiência política é para mim apenas a repetição de um pensamento que já em 1943, numa entrevista ao Daily Express, exprimi: na sua experiência política, na sua sensibilidade aos problemas europeus e no seu espírito de justiça.
Não nos podia ser indiferente o desfecho de uma guerra à qual estava ligado o Brasil, quere dizer, a nossa pátria de além Atlântico, o nosso maior orgulho no mundo.
Não nos podia ser indiferente o desfecho da guerra: de solo tam nosso como êste que agora pisamos se levantaram aviões aliados para cobrirem as rotas do Atlântico contra os ataques submarinos.
Somos uma nação atlântica. Se temos o nosso solar neste recanto da Europa, deixámos, através da história, «a nossa vida», «pelo mundo em pedaços repartida». E êsses pedaços dispersos pelo mundo são ainda hoje a mais sólida razão da nossa independência nacional. O mar que os rodeia e banha ou a êles nos conduz estabelece entre os povos que êle une especiais e preciosas relações. A prudente e patriótica política do Presidente do Conselho reconheceu-o: e, graças a ela, laços estreitos de amizade nos unem à grande República Norte-Americana, uma das grandes forças do mundo, o grande polo e refrigério de tantas inquietações...
Não nos podia, ser indiferente: somos portadores de um conceito de civilização e de vida fundamentalmente dominado pelo valor infinito do homem, em quem Deus acendeu uma inextinguível chama espiritual. A existência, fora deste ambiente não nos interessa. A guerra pôs em causa esta concepção da civilização e da vida. A sua sorte não podia ser-nos indiferente... Nem a sorte da guerra, nem, portanto, a da paz... Mas há efectivamente paz? Houve a rendição das forças armadas alemãs.
Neste momento milhões de soldados que se bateram como bravos pela sua pátria marcham pelas estradas do seu país, vencido, sob a humilhação da derrota; e, com êles, um povo inteiro sente que desce sôbre o seu destino uma das noites mais sombrias da sua história. E eu, Sr. Presidente, que nunca perdoei aos êrros e à violência de uma política de factos consumados que é responsável pela guerra, sentir-me-ia comovido perante a imensa tragédia dêsse povo, a quem a cultura europeia deve inegáveis serviços, se o espectáculo degradante de brutalidades inomináveis, engendradas numa filosofia sem balizas de ordem moral, não paralisasse inteiramente o sentimento... Mas há efectivamente paz? Apenas se pode afirmar que cessou na Europa a forma espectacular da guerra. Não há tiros, não há bombas, não há explosões de metralha, nem o ruído sinistro dos aviões de bombardeamento, nem o fragor dos desmoronamentos. Há um alívio nos corações palpitantes das desgraçadas populações flageladas pela guerra. Infelizmente não há ainda uma segura e inteira confiança entre as nações; e sem ela não há confiança na paz, nem pode haver a verdadeira paz, a dos espíritos.
A guerra vai redobrar de intensidade no Pacífico, e nela estão empenhadas as nações nossas aliadas e amigas: cruzam-se de vez em quando nos céus do mundo sinais pouco tranquilizadores; êles não nos deixam entoar em pleno júbilo um cântico à paz.
Mas há uma cousa que devemos fazer: acompanhar com os nossos votos os esforços generosos das nações que trabalham afincadamente para organizar a convivência internacional em bases de segurança e de justiça.
Não fazemos nisso o menor esfôrço: cumprimos apenas um dever de cristãos e um preceito do estatuto fundamental da Nação que proclama há doze anos que Portugal é uma nação pacífica. Que Deus abençoe êsse esfôrço. Que não tenham sido vãos para a paz do mundo tanto sofrimento, tanta miséria, tantas ruínas, tanta vida ceifada e em flor e tanto sangue derramado.
Formulemos estes votos, que são fecundos; cultivemos esta esperança, que Deus há-de permitir não seja vã.
E, se nos é permitido um pouco de egoísmo no meio da alegria geral, voltemo-nos para dentro da nossa casa lusitana: evoquem todos os portugueses o quadro trágico da desolação das batalhas e pensem que chegaram ao fim de quási seis anos de guerra em paz, com os seus lares, ricos ou pobres, intactos e que a política que conseguiu tais resultados merece o reconhecimento da Nação; merece a união de todos os portugueses de boa vontade, para que Portugal, que conservou o seu pres-
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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 150
ígio e a sua paz durante a guerra, conserve o seu prestígio e a sua paz na paz.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
Grande salva de palmas.
O Sr. Presidente: — Vou encerrar a sessão.
A ordem do dia de amanhã é a continuação da sessão de estudo da proposta sôbre a coordenação dos transportes terrestres.
Está encerrada, a sessão.
Eram 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente do Conselho saiu da sala acompanhado pelo Sr. Presidente da Assemblea Nacional, sendo novamente muito aclamado pela assistência.
Sr. Deputado que entrou durante a sessão:
António Carlos Borges.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alberto Cruz.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
Ângelo César Machado.
António Cristo.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Francisco da Silva Telo da Gama.
João Duarte Marques.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
José Clemente Fernandes.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Ranito Baltasar.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
O Redactor — Leopoldo Nunes.
Imprensa Nacional de Lisboa