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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 168
ANO DE 1945
6 DE JUNHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 165, EM 5 DE JUNHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
José Luiz da Silva Dias
SUMÁRIO: — 0 Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 37 minutos.
Antes da ordem do dia. — Foi aprovado o Diário da última sessão. Deu-se conta do expediente.
Ordem do dia. — Prosseguiu a discussão, na generalidade, da proposta de lei de coordenação dos transportes terrestres.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Cortês Lobão e, Ulisses Cortês.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 10 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 29 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Ribeiro Lopes.
Carlos Moura de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco da Silva Telo da Gama.
Henrique Linhares de Lima.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pires Andrade.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Alberto dos Reis.
José Alçada Guimarãis.
José Clemente Fernandes.
José Dias de Araújo Correia.
José Luiz da Silva Dias.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
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Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 52 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 37 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Está em reclamação o Diário da última sessão.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Como nenhum Sr. Deputado deseja usar da palavra, considero-o aprovado.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegrama
Esta direcção sindical, em sessão de hoje, congratulou-se pelo facto Govêrno ter apresentado Assemblea Nacional proposta de lei referente coordenação transportes terrestres e confia que essa Assemblea defenderá os altos interêsses nacionais votando um diploma que garanta sòlidamente pão, trabalho e paz para todas as modalidades de transporte. — Pela direcção Sindicato Nacional Ferroviários Beira Alta, o Presidente, José Luiz Pereira.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Como ninguém se encontra inscrito para usar da palavra no período de antes da ordem do dia, vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Cortês Lobão.
O Sr. Cortês Lobão: — Sr. Presidente: foi apresentada à Assemblea Nacional a proposta de lei referente ao condicionamento dos transportes.
Vou, Sr. Presidente, fora dos meus hábitos, demorar um pouco a exposição que tenho a fazer sôbre êste assunto, pedindo a V. Ex.ª e à Câmara que tenham paciência para me aturar durante o tempo que aqui estiver.
Que o assunto é de grande transcendência provam-no as morosas e prolongadas sessões de estudo em que se apreciou esta proposta sob todos os aspectos. Nem outra cousa tínhamos a esperar de um assunto desta transcendência.
Antes de entrar na apreciação da proposta desejo prestar as minhas sinceras homenagens ao autor da proposta, o Sr. Ministro das Obras Públicas, nosso antigo e muito ilustre colega de trabalho nesta Assemblea, que sempre aqui marcou, pela sua inteligência e pelo seu aprumo, um lugar de destaque.
O que pretende o Govêrno com esta proposta? Julgo que será pôr em ordem e desenvolver o caminho de ferro, pôr em ordem e desenvolver a camionagem. Isto feito, coordenar os dois serviços sem sobrepor um ao outro, de forma tal que da sua coordenação se tire o maior proveito para o público e para a economia nacional, o mesmo é dizer para o País.
Será a proposta oportuna? Julgo que sim. Queixa-se o caminho de ferro da camionagem, queixa-se a camionagem do caminho de ferro, queixa-se o público do caminho do ferro e no fim nós preguntamos: qual dêles terá razão?!...
Terão todos? Proponho-me não provar mas emitir a minha opinião sôbre o assunto.
Vou fazer uma rápida análise dos dois serviços públicos para poder dessa análise tirar conclusões, mas desejo já afirmar que considero indispensável e necessária para a economia do País e para a sua defesa a existência dos dois serviços: caminhos de ferro e camionagem, com a obrigação que têm ambos de acompanhar a evolução da época, que, com certeza, será cada vez mais fértil em aperfeiçoamentos.
Principio entrando na análise dos caminhos de ferro; e a minha apreciação vai incidir directamente sôbre uma companhia que é detentora da quási totalidade dos caminhos de ferro do País — a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses —, visto que em 2:822 quilómetros, que tanto é a extensão total das linhas de via larga, ou seja com bitola de 1,67, estão entregues a essa Companhia 2:542 quilómetros, entrando neste número os caminhos de ferro do Estado, que estão sendo explorados por ela.
Portanto, pràticamente depende dela o bom ou mau funcionamento dos caminhos de ferro do País, e não me referirei por agora aos 760 quilómetros de via estreita, com bitola de 1 metro, mas aos quais possìvelmente farei mais tarde algumas referências.
Como viveram os caminhos de ferro em Portugal até ao ano de 1930? Pode dizer-se que viveram num regime sem concorrência, portanto, pràticamente, num regime de monopólio.
Digo até 1930 porque foi nessa data que as estradas do País começaram pràticamente a prestar serviços, aparecendo por êsse motivo o automóvel.
Foi nessa data que se operou a obra extraordinária da reparação das estradas do País, obra gigantesca, que se deve na totalidade ao Estado Novo, obra tam extraordinária quando nos lembramos do estado em que se encontravam as nossas estradas até 28 de Maio de 1926. Lembro-me de ter ouvido, a pessoas de competência e de responsabilidade, falando a propósito do estado a que tinham chegado as nossas estradas, dizer que consideravam o problema insolúvel.
Eu próprio senti, como todos V. Ex.as sentiram, o que representava de horrível viajar-se por estrada nessas épocas.
Recordo-me de que uma vez, em 1927, encontrando-me na província e tendo de vir a Lisboa, me vi obrigado a servir-me de um automóvel. Saí do Alentejo, onde estava, tive de atravessar de barca o Guadiana, dormir em Beja, e no dia seguinte parti às 5 horas da manhã, para chegar a Lisboa às 10 da noite, com os ossos feitos num feixe e coberto de pó.
Foi preciso criar as condições financeiras do País para a grande emprêsa e que depois tivesse aparecido aquela grande figura de engenheiro competente, que se chamou Teófilo da Trindade, rodeado de excelentes colaboradores, que hoje são os continuadores da sua obra, arcando sôbre os seus ombros com aquele pesado fardo, para se
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conseguir transformar numa realidade o que era considerado como insolúvel.
Hoje temos as estradas que todos V. Ex.as conhecem e que não nos envergonham em parte alguma.
Mas, dizia eu, até 1930 o caminho de ferro viveu sem concorrência.
Em 1930 aparece o automóvel e com êle surge a concorrência, a luta entre a estrada e o carril.
Iniciaram-se então as críticas, que incidiram especialmente no facto de o caminho de ferro não ter evolucionado, quando podia e devia, no sentido de melhorar a sua exploração, dando ao passageiro o necessário confôrto, de forma a atraí-lo para o carril e a suportar em melhores condições a concorrência que a camionagem lhe fazia.
Se o passageiro tivesse bons horários, bom material, bom serviço de combóios, estou certo de que preferiria o caminho de ferro. Digo mais: julgo que foi uma errada visão das emprêsas dos caminhos de ferro em Portugal terem considerado a camionagem como uma novidade passageira, sem segurança, e só muito tarde se terem apercebido do perigo dessa concorrência, quando ela fez sentir todo o seu pêso.
Mas vejamos o que nos diz a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, acêrca dos esforços despendidos durante êste longo período, através do relatório que passo a ler:
Procurou o caminho de ferro até 1929 progredir de forma a não merecer censuras justas. Para conseguir isto destinou, para melhoramentos nas linhas o no material circulante, uma verba entre 7 por cento e 10 por cento das receitas brutas anuais da exploração.
Permitam-me V. Ex.as que apresente números, porque dêles necessito para tirar conclusões.
Será possìvelmente maçador, mas, como não tenho o dom da palavra e não me posso esclarecer de outra forma, é nos números que vou apresentar que baseio a razão das minhas declarações. Continuando a leitura do relatório:
De 1924 a 1929 as verbas que foram destinadas aos melhoramentos nas linhas e material circulante orçavam por 12 por cento da receita bruta dos caminhos de ferro. Conseguiu-se, porém, pôr as linhas em condições de regularidade e ter a via em condições de se poder circular à velocidade comercial de 63 quilómetros, combóios rápidos de Lisboa ao Pôrto no número de três diários, serviços de Lisboa ao Pôrto com viagem sem perda de noite.
E tudo isso diz o relatório, dos caminhos de ferro que foi conseguido até 1929.
A partir de 1930 tudo mudou. As receitas baixaram e essa queda verificou-se, de 1929 a 1938, à razão de 48:000 contos por ano. As despesas de exploração descem de 10 por cento para 4 por cento das receitas.
Fizeram-se, contudo, durante êsse período de crise, tentativas para melhorar a situação dos caminhos de ferro, de forma a poder dar maior confôrto e maior comodidade ao passageiro.
Diz o relatório que em 1930 se preparou o estudo da electrificação das linhas entre Lisboa e Sintra e Lisboa e Vila Franca de Xira, estando tal empreendimento orçamentado, em 1931, em 50:000 contos. Porém, a crise de 1930 levou a Companhia a desistir, por receio de não poder suportar o encargo.
Dão-se ainda outros esclarecimentos sôbre a compra de vinte automotoras em 1938. A encomenda foi feita em 1939, sendo uma à casa alemã M.A.N. de vinte automotoras e outra de doze tractores com motores Diesel.
A guerra, em 1939, impediu as fábricas de fornecerem o material.
Vem a seguir a aquisição de oitocentos vagões, que foram comprados na Alemanha e que custaram 50:000 contos. Estes ainda chegaram a tempo, apesar da guerra.
Foram encomendadas vinte e duas locomotivas na América, que começaram agora a entrar em Portugal,
sendo dez para a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, dez para o Estado e duas para a Companhia dos Caminhos de Ferro da Beira Alta.
Diz mais a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses para terminar o seu relatório: «que para se melhorar convenientemente o serviço ferroviário julga-se necessário coordenar os transportes, para evitar a concorrência, reverem-se as tarifas e proceder-se à revisão das condições contratuais das linhas do Estado».
Portanto, segundo a opinião da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, alguma cousa tem sido feita em benefício do público.
Mas qual será agora a posição em que essa companhia se encontra perante o Estado, visto na última parte dêsse relatório se fazer referência à situação entre o Estado e a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses?
Eu vou esclarecer; eu não, mas sim a própria Companhia esclarece V. Ex.as, pondo o problema da seguinte forma:
Num relatório feito em 1944 diz-se:
O deficit das linhas do Estado em todo o período do arrendamento subiu para 140:747 contos.
Devo dizer que dêstes elevados números é discutível se a totalidade é devida pelo Estado ou se há uma parte — e essa parte julgo que será 30 por cento — que deve ser a cargo da Companhia, ficando para o Estado os 70 por cento restantes.
O Sr. Mário de Figueiredo: — V. Ex.ª dá-me licença?
Os 30 por cento referem-se à massa de 46:000 contos ou à massa de 140:000 contos?
O Orador: — Referem-se à massa de 140:000 contos.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Mas essa já não é a opinião da Companhia.
O Orador: — Perdão! Eu estou a dar a V. Ex.ª os elementos fornecidos pelo relatório da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses.
O Sr. Mário de Figueiredo: — É que eu tinha a impressão de que na opinião da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses o deficit podia ser da responsabilidade da Companhia e do Estado até uma determinada altura e só da responsabilidade do Estado a partir dessa altura.
Portanto os 30 por cento incidiriam sôbre os 46:000 contos.
O Orador: — Se V. Ex.ª e a Câmara me dão licença, eu leio o relatório, para que possa melhor elucidar:
... É claro que, a ser-lhe concedida, a C.P. só aceitaria continuar a exploração das linhas no caso de o Estado se responsabilizar pelos deficits futuros.
Daqui resulta que a C. P. só deve em boa razão responder por 30 por cento do deficit existente à data em que a revisão deverá ser feita :..
O Sr. Mário de Figueiredo: — Tinha eu razão.
O Orador: — Parecia-me que havia no relatório realmente a explicação.
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Mas, continuando, independentemente dêste deficit, qual é a posição do Estado perante a Companhia? Diz o mesmo relatório: na renda fixa que o Estado recebeu durante o período do arrendamento monta a 94:143 contos».
Quere dizer: o deficit discutível de 140:747 contos está fora dos cofres da Companhia.
A posição do Estado perante a Companhia, longe do deficit de 1927, passou a ter como renda fixa 94:143 contos.
Termina o relatório dizendo:
Seja porém dêste ou doutro modo, o que se torna necessária é a reünião do tribunal arbitral para resolver o assunto do deficit e a revisão ou, antes, a rescisão do contrato.
É esta a posição, segundo a C.P. em que ela se encontra perante o Estado.
Agora, se me permitem, passarei a pôr um outro problema, que julgo igualmente de importância, e êsse problema é o seguinte: 0 que será preciso para satisfazer as necessidades do caminho de ferro, para dar ao País o confôrto que todos nós pedimos e lhe exigimos? E também a C.P. que me dá êsses elementos através de um relatório apresentado pela direcção.
Êste relatório, que é de 1943 e foi publicado em 1944, refere-se, entre outros assuntos, à conservação da via, para que são precisos 404:000 contos, e à reparação de pontes, para que são precisos 240:000 contos.
E continua o relatório:
Os serviços de sinalização, actualmente deficientes para um serviço perfeito, necessitam de 18:600 contos, a fim de que se possa obter o serviço que dê o rendimento para o maior número possível do combóios em condições de segurança.
Para material circulante, em que se prevê a compra de vinte automotoras e de cento e cinqüenta carruagens, são necessários 170:500 contos.
Para compra de locomotivas e tractores para exploração serão precisos 364:500 contos.
No total, serão necessários, para pôr o caminho de ferro em condição de melhoria, 1.275:000 contos, para os quais o Estado contribuïria com 580:000 contos. É uma verba elevada, mesmo muito elevada, e no meu entender não pode ser apenas conseguida à custa de aumento de tarifas.
Estes números são susceptíveis de rectificação, porque se aproximam do óptimo, e o óptimo, como V. Ex.as sabem, é inimigo do bom. Eis aí a minha dúvida!
Contudo, não seja 1.275:000 contos, mas reduza-se mesmo esta verba a metade, e assim temos ainda 600:000 contos, o que e na verdade uma verba ainda elevada.
A conclusão a que chego é esta: só com um grande auxílio do Estado se podem tirar os caminhos de ferro da situação difícil em que se encontram, não bastando apenas fazer uma revisão de tarifas — que aliás se impõe, — visto as tarifas ferroviárias em Portugal serem, sem dúvida, das mais baixas da Europa.
O Sr. Águedo de Oliveira: — V. Ex.ª considera-as das mais baixas da Europa em relação ao nivel de vida dêste País?
O Orador: — Não as considero em relação ao nivel de vida do nosso País, mas em relação às tarifas dos outros países.
Para que o Estado possa facilitar a operação necessária é preciso um auxílio financeiro de grande importância.
Mas, para que o Estado possa facilitar essa operação, necessita saber concretamente o que se vai fazer, e por isso ou defendo o estudo de um plano geral de reorganização de todo o sistema ferroviário para então podermos, sôbre essa base, apoiar o financiamento ou auxilio que se possa dar aos caminhos de ferro.
Perfilho a idea, que não é minha, mas de um nosso ilustre colega que tem estudado êste assunto, e que apresentará possìvelmente essa solução, que, como acabo de dizer, perfilho.
Quanto aos caminhos de ferro, termino por agora as minhas considerações com esta opinião: o caminho de ferro precisa de um auxílio financeiro de grande monta. Para isso concordo absolutamente com o ponto de vista de ser necessária a sua unificação quanto à exploração e concordo com a modificação do sistema de exploração da rêde, electrificando onde fôr possível, adoptando as carruagens automotoras em grande número, com bom material, dando ao País o confôrto que êle exige nos transportes.
Se isto fôr conseguido, não tenho dúvida em afirmar que o problema se vai pôr ao contrário, isto é, que é preciso olhar para a camionagem, pelo perigo da concorrência que o caminho de ferro lhe poderá fazer.
Nessa altura entrará cada um no seu lugar, o caminho de ferro para as grandes distâncias e a camionagem para as pequenas distâncias, completando-se, sem atropelos e sem lutas.
Antes de terminar a exposição sôbre os caminhos do ferro desejaria fazer ligeiras referências à via estreita, ou via de 1 metro. Desejaria que com ela se criasse uma exploração à parte.
Essa exploração é hoje deficitária.
Estou convencido, porém, de que da sua exploração à parte melhores dias lhe advirão.
Solução para a via do 1 metro: ou completar a rêde da via, se é ainda possível completá-la, ou então adoptar-se a modalidade que ouvi há tempos indicar a um Ministro dos mais competentes que têm passado pelas cadeiras do Poder e que admitia a hipótese de, visto que as linhas de via estreita convergiam em grande parte à linha do Douro, modificar-se a bitola dessas linhas, de forma a que todas elas ficassem ligadas do norte e do sul do Douro.
Acho difícil a solução do problema e limito a minha apreciação à aspiração de se conseguir que a via estreita pudesse trabalhar isolada da via larga, porque estou convencido de que lucravam as linhas e o público.
E passo adiante. Posta a situação dos caminhos de ferro, vejamos a da camionagem.
Tem-se dito que a camionagem tem vivido absolutamente à vontade, isto é, sem restrições, num regime absolutamente livre.
É exagero, não penso assim, Sr. Presidente, porque, em abono da verdade, para se fazer a devida justiça, tem de dizer-se que a concessão de uma carreira de camionetas não se faz tam fàcilmente como à primeira vista poderá parecer.
Para o interessado obter uma determinada carreira tem de fazer primeiramente um requerimento e juntar-lhe a informação das carreiras que pretende realizar e outros documentos elucidativos. Formado o processo é publicado no Diário do Govêrno e, pôsto durante trinta dias à reclamação, publicam-se editais nas povoações que são servidas pelas carreiras; depois, havendo reclamações, juntam-se ao processo e tudo isso vai à apreciação do Conselho Superior de Viação, onde há dois delegados dos caminhos de ferro e dois da camionagem. A seguir é lavrado um parecer pela Direcção Geral e só depois vai a despacho do Ministro das Obras Públicas. Se a carreira é autorizada, volta à Direcção Geral para se estabelecerem os horários.
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Não é, pois, de ânimo leve que se obtém a concessão de uma carreira.
(Nesta altura o Sr. Presidente é substituído na Mesa pelo Vice-Presidente, Sr. Deputado Albino dos Reis Júnior).
O imposto sôbre a camionagem de carreira, em face do decreto que regulamentou esta matéria, é fixado pouco mais ou menos dentro da mesma base em que é estabelecido o imposto ferroviário. O imposto de camionagem é aproximadamente igual ao imposto ferroviário.
Os preços dos bilhetes da camionagem orçam pela tarifa da 3.ª classe dos caminhos de ferro, e desta forma não existe pròpriamente uma protecção da camionagem aos caminhos de ferro.
Sr. Presidente: há uma reclamação que ouvi apresentar por parte dos caminhos de ferro, e que respeita a horários; essa reclamação diz que os horários da camionagem concorrente, que têm a aprovação da Direcção Geral dos Serviços de Viação, são muitas vezes alterados no sentido de concorrerem com os horários dos caminhos de ferro.
Trata-se de uma reclamação que poderá ter fundamento, mas que me parece de fácil resolução, bastando que fique estabelecido que os horários da camionagem concorrente não podem ser modificados de forma a sobreporem-se aos horários dos caminhos de ferro.
Sr. Presidente: diz-se também que é necessário reduzir o número de concessionários de camionagem.
Existiam, em 1933, 596 carreiras na totalidade, e em 1944 subiu êsse número para 811.
Quere dizer: aumentou o número de carreiras de serviço público, como convém hoje.
Em compensação, em 1933 existiam 406 concessionários e em 1944 êsse número ficou reduzido a 230.
Isto quere dizer que houve uma redução de concessionários, sem prejuízo do aumento das carreiras.
Esta política é, de facto, sensata e está dentro do nosso ponto de vista.
Vemos, portanto, que, sem dificuldade de maior, a orientação tem sido seguida no sentido de ir concentrando e reduzindo o número de concessionários, fazendo com que as emprêsas que ficam se vão fortalecendo com capitais capazes, por forma a poderem dar maiores garantias de serviço ao público.
Quanto aos transportes de aluguer, êsses é que têm andado num regime perfeitamente à vontade, porque não têm itinerários, porque não têm horários e porque não têm preços, podendo portanto levar tudo que quiserem, onde quiserem e como quiserem.
Êste regime prejudica a camionagem de carreiras e prejudica o caminho de ferro, sem benefício para ninguém.
Êste é que eu entendo — e muito bem a proposta — que deve ser regulamentado.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — É claro que me poderão dizer: mas, apesar de tudo isso, a camionagem de aluguer faz serviço e ganha dinheiro.
Evidentemente que a única explicação que posso dar a isso é esta: ela vai buscar a mercadoria rica, que pode ser paga por qualquer preço, e transportando ùnicamente esta é compensada.
Mas isso, como digo, prejudica a camionagem de carreira e o caminho de ferro. Portanto, regulamente-se a camionagem de aluguer, permitindo concorrência limitada, para evitar a luta, sempre prejudicial, entre o caminho de ferro e a camionagem.
Do desenvolvimento dos dois serviços só resultarão benefícios para a economia do País e para a sua defesa.
O caminho de ferro não quis ou não pôde interessar-se pela camionagem, e digo «ou não pôde» porque, se são certos os números que li a V. Ex.as, é possível que de facto se não possa dizer abertamente «não quis»; portanto digo não quis ou não pôde interessar-se pela camionagem e, por conseqüência, digo também que só tem agora um caminho: melhorar ao máximo as comodidades do passageiro e as comodidades do serviço em geral.
Estão investidos avultados capitais na camionagem e muitos são os que para a camionagem trabalham. Muitos braços vivem hoje dêsses serviços; ampará-los deve ser o nosso dever.
Também sei que muitos e ainda maiores capitais estão investidos em caminhos de ferro, que muitas famílias vivem também do caminho de ferro e que aqui há uma posição especial do Estado que nunca deveremos esquecer.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Da forma prudente como fôr feita a coordenação dos dois serviços dependerá o seu futuro.
Pôsto isto, e entrando pròpriamente na análise da proposta, eu limito na generalidade as minhas considerações a desejar que a proposta traduza o que acabo de expor e, mais concretamente, a desejar a unificação da exploração dos caminhos de ferro para se conseguir maior eficiência económica, ficando bem assegurados os direitos do Estado, o que irá facilitar o desenvolvimento dos serviços ferroviários, e os direitos dos particulares que nas emprêsas de caminhos de ferro tenham investido os seus capitais.
Desejo a unificação das tarifas, desejo a concentração, por acordos, das emprêsas de camionagem, a repartição do tráfego entre os dois sistemas de transportes, de forma a servirem convenientemente os serviços do público, regulamentação dos transportes de aluguer e a actualização dos já regulamentados, a criação dum organismo superior que coordene êstes dois transportes.
Como espero que estes pontos de vista serão traduzidos em propostas que sei estão a ser preparadas, limitarei a minha acção talvez a subscrever as respectivas propostas que sejam apresentadas dentro dêstes pontos de vista que acabo de expor, porque tenho por norma simplificar os assuntos; se assim não fizesse, a minha atitude representaria redundância e só se traduziria em maiores discussões e demoras escusadas.
Estas são as considerações que na generalidade tinha a fazer à proposta do Govêrno, reservando-me para na especialidade fazer algumas considerações mais ou até, como disse, limitar-me a subscrever as propostas que se apresentem e contenham os princípios a que já me referi.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ulisses Cortês: — Sr. Presidente: é grave a situação dos transportes no nosso País e urgente a necessidade de lhes acudir, através de soluções adequadas.
Os caminhos de ferro estão em crise.
Esta crise, aliás de carácter universal, constitue, sem dúvida, reflexo da crise económica, mas tem outras determinantes que importa averiguar.
Dominado, menos por intuitos especulativos, do que pelo móbil mais elevado do serviço de interêsse geral, o caminho de ferro teve de realizar, ao lado de iniciativas remuneradoras, empreendimentos sem viabilidade económica e cujos encargos pesam onerosamente na sua vida.
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Por outro lado, a rigidez do seu funcionamento e a falta de permeabilidade à evolução dos progressos científicos, que é defeito insanável de todos os monopólios, impediram-no de acompanhar as transformações económicas e de aperfeiçoar, como era mester, o seu equipamento técnico e os seus métodos de exploração.
As causas apontadas, a que veio acrescer a deslocação das actividades produtoras para os centros de grande consumo, criaram ao caminho de ferro uma nova situação.
Entretanto, os transportes automóveis, indiscutìvelmente mais flexíveis e, em certos casos, mais cómodos e mais económicos, tomaram em larga escala o seu lugar.
Essa concorrência dos dois meios de transporte veio agravar a situação, já precária, dos caminhos de ferro.
Os elementos estatísticos relativos ao período decorrido entre 1929 e 1935, que a Direcção Geral de Caminhos de Ferro publicou, ilustram de modo frisante a afirmação feita.
O número de passageiros baixou nesse período de 25.849:156 para 24.748:804. A receita correspondente sofreu também uma redução substancial.
De 136:476 contos ela desceu no mesmo período para 108:644.
Igual fenómeno se verifica na tonelagem transportada, que caiu do total de 4.393:520 toneladas para 4.075:709, com uma quebra na respectiva receita de quási 12:000 contos.
No conjunto a receita total baixou de 326:361 contos para 287:645 e os saldos de exploração de 42:669 contos para 35:376.
Os anos decorridos até à guerra confirmam a continuação da crise descrita e em nada alteram as conclusões que dos números citados podem extrair-se.
Mas, ao mesmo tempo que isto sucedia, os transportes automóveis atingiam um vertiginoso desenvolvimento.
Entre 1933 e 1944 o número de carreiras passou de 596 para 801 e os quilómetros de estrada servidos de 9:865 para 12:058.
Em 1939, isto é, no ano da eclosão da guerra, havia no País 798 carreiras de passageiros, de mercadorias e mixtas.
Estas carreiras utilizavam 1:300 veículos e serviam 11:606 quilómetros de estrada,
O número de passageiros, que em 1935 fora de 11.000:000, com a receita correspondente de 59:800 contos, elevou-se em 1939 a 21.479:931 e atingiu em 1943 o seu ponto mais alto, com 22.961:282, ou seja um número quási igual ao do caminho de ferro.
Apesar do seu valor como índices, estes números perderiam parte do seu significado se correspondessem, ao menos, a uma partilha racional do tráfego e traduzissem uma cooperação harmoniosa das duas actividades ao serviço do bem geral. A verdade, porém, é muito diversa.
Aproveitando-se da estagnação em que caíram os transportes ferroviários, do excessivo formalismo dos seus serviços e da rotina que presidia à sua exploração, o automóvel lançou-se numa concorrência desordenada ao caminho de ferro, disputando-lhe o próprio terreno que constituía zona reservada à sua aptidão específica.
Não é esta, como acentuei, a única causa da crise dos caminhos de ferro, mas constitue, sem dúvida, um dos factores que estão na base das suas dificuldades actuais.
A situação que descrevi basta, Sr. Presidente, para comprovar que, apesar dos esforços feitos, não se obteve ainda a necessária coordenação dos dois meios de transporte e que a relativa desorganização em que temos vivido reclama providências urgentes no sentido de se pôr têrmo a um estado de cousas que a ninguém aproveita e que só pode traduzir-se em prejuízo colectivo e em desgaste injustificável de elementos valiosos do activo nacional.
Mas se a concorrência deve ser substituída pela cooperação e se a desordem das actividades deve ceder lugar à uma coordenação salutar, parece-nos que a acção a desenvolver em tal matéria não deve ser de molde a proteger um dos sistemas, em detrimento de outro, ou a criar a qualquer das duas formas de actividade situações de favor ou de privilégio, condenáveis não apenas em face da pura ética, mas sem justificação suficiente no plano superior do interêsse nacional.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Tem-se invocado, como razão justificativa de uma protecção especial ao caminho de ferro, o facto de êle constituir uma das parcelas importantes da riqueza nacional e de contribuir, pelos impostos que o oneram, com uma cota considerável para o conjunto das receitas públicas.
Não se contesta o facto, mas importa acentuar, em abono da verdade, que êle é igualmente exacto no que se refere à camionagem.
Numa interessante tese que elaborou e que oxalá seja dada à publicidade, pois constitue uma útil contribuïção para o estudo do problema dos transportes no nosso País, o Sr. Dr. Manuel Fernandes, funcionário superior da Direcção Geral dos Serviços de Viação, produz a êste respeito números que parece elucidativo divulgar.
Anteriormente à guerra o valor da rêde ferroviária portuguesa era avaliado em 2.500:000 contos e o material circulante, compreendendo os veículos de tracção e de rodagem, atingia o total de 11:638 unidades.
Por seu lado circulavam no País 47:000 veículos, cujo custo era computado em 1.410:000 contos.
A esta importância acresce o valor das instalações fixas e os capitais investidos no comércio da gasolina e outros produtos, cujo total foi recentemente calculado em cêrca de 2.000:000 de contos.
No que respeita ao pagamento de impostos, o argumento aduzido em favor dos caminhos de ferro não possue maior consistência.
O imposto ferroviário rendeu, é certo, no triénio anterior à guerra a média anual de 26:804 contos, mas as receitas arrecadadas pelo Estado no mesmo triénio e por motivo da circulação nas vias de comunicação terrestres atingiram por seu lado a média anual de 106:005 contos.
Se acrescentarmos agora que, devido à fraca densidade da nossa rêde ferroviária, apenas 2/5 do território nacional são servidos por comunicações directas por combóio e que os restantes 3/5, ou seja a maior parte do solo português, apenas dispõem de transportes por estrada, teremos completado o quadro, habilitando quem nos ouve a formar um juízo aproximado da posição relativa dos dois meios de transporte no conjunto da economia nacional.
Estes dados do problema não podem deixar de estar presentes no espírito do legislador ao procurar estabelecer, um sistema de coordenação.
Na verdade, coordenar transportes não é apenas evitar a sua sobreposição, através da demarcação de zonas económicas, reservadas a cada uma das actividades em presença de harmonia com as suas características técnicas e as suas especiais aptidões.
Coordenar transportes é mais alguma cousa.
Vozes: — Muito bem!
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O Orador: — É conjugar esforços num plano superior de colaboração e de harmonia, é ordenar actividades, aperfeiçoando-as tècnicamente para o melhor desempenho da sua função, é sobretudo estabelecer uma disciplina de acção norteada pelo pensamento predominante de criar uma organização nacional de comunicações que sirva com o máximo de eficiência a economia geral e os interêsses da população.
Ora, por melhores que tenham sido as intenções que presidiram à elaboração da proposta — e eu reconheço-as com muito aprazimento —, a verdade é que o legislador nem sempre se conformou inteiramente com os princípios que ficam expostos.
Com efeito, emquanto que ao caminho de ferro se dispensam generosamente largos favores, como os regimes económicos e a cessação definitiva ou temporária das explorações deficitárias (base XII), a revisão de tarifas (base III), a atenuação de encargos e as facilidades de crédito e de obtenção de capitais (base XIII), a atitude é diversa no que respeita aos transportes por estrada.
O disposto nas bases VIII, XIV, XV e XVI documenta exuberantemente estas afirmações.
Não se considerou o legislador apenas dispensado de assumir qualquer encargo relativamente à formação e desenvolvimento de um bom sistema de transportes por estrada.
Limita, onera e dificulta por tal forma o exercício dessa indústria que eu receio justificadamente a sua decapitação ou, pelo menos, a sua subalternização completa aos transportes ferroviários, cuja hegemonia, no estado actual da técnica, está longe de constituir para mim, e creio que para o público em geral, uma verdade incontroversa.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador! — Não é esta manifestamente a atitude que imporia o justo respeito por todos os interêsses em causa nem a forma mais indicada de servir a colectividade num País de rêde ferroviária, reduzida e cujos caminhos de ferro, insuficientemente apetrechados, não podem corresponder, como seria de desejar, ao aumento de tráfego que lhes é atribuído, em prejuízo da camionagem — actividade igualmente legítima e que lautos serviços tem prestado à economia da Nação.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Mas não são estas as únicas observações a que me conduziu a análise da proposta.
Outros reparos tenho a fazer e que julgo igualmente pertinentes.
Na base I determina-se que o Govêrno promova, impondo-a, se tanto fôr necessário, a fusão de todas as emprêsas ferroviárias numa só emprêsa concessionária e exploradora de toda a rêde nacional.
Esta providência é inteiramente justificada pela experiência económica e tem a aboná-la o exemplo de vários países.
Na verdade, a concentração dos meios de transporte, como a dos instrumentos de produção, permite às emprêsas atingir a dimensão económica óptima e obter, através de uma melhor racionalização dos serviços, o máximo rendimento com o mínimo de encargos.
Facilita a unificação da acção directiva, com todas as suas vantagens, incluindo o aperfeiçoamento comercial das emprêsas e a redução dos encargos gerais da exploração; torna possível a integração ou concentração vertical de certas actividades conexas; habilita finalmente à constituïção de uma grande e única emprêsa, cuja solidez financeira e facilidades de crédito permitam lançar ombros, com a urgência necessária, à tarefa imperiosa da modernização e reapetrechamento dos nossos caminhos de ferro.
Da concentração há, pois, a esperar melhor eficiência da exploração, maior perfeição técnica do equipamento e, através de um rendimento acrescido, mais justa retribuïção do capital e do trabalho e melhoria de serviço para o público.
São êsses essencialmente os seus títulos de legitimidade.
Reconhecendo, como reconheço, a utilidade da concentração, não posso deixar de a aplaudir no pleno convencimento em que estou dos benefícios que de tal facto resultarão.
Mas, para que a plenitude dêsses benefícios possa ser obtida, parece-nos evidente a necessidade de uma só entidade concessionária e exploradora, que sujeite o tráfego a uma direcção unitária e que evite a complicação de serviços e a multiplicidade de encargos resultantes da existência de várias emprêsas.
Não é êsse o ponto de vista da Câmara Corporativa, que expressamente admite a solução da pluralidade de emprêsas concessionárias coexistindo ao lado da única emprêsa exploradora, como pode ver-se a p. 416 do seu parecer.
Essa solução é, porém, expressamente excluída pela proposta.
Invalida-a efectivamente a própria letra da base I.
Mas, ainda que o texto dessa base pudesse dar lugar a dúvidas, o relatório do Govêrno dissipá-las-ia, de modo definitivo.
Efectivamente, na justificação da referida base e ao admitir-se a excepção ao sistema da exploração única, expressamente se ressalva o princípio da unidade da concessão.
Neste aspecto comungamos inteiramente no ponto de vista do Govêrno.
A admitir-se outra solução perder-se-iam muitas das vantagens da concentração proposta.
Nem os serviços poderiam ser reduzidos como convém, nem conseqüentemente os encargos gerais sofreriam a necessária compressão.
Por outro lado, permitir-se-ia que entre o concedente e o explorador se inserisse um intermediário, cuja única função seria usufruir uma renda capitalista, exercendo assim uma forma de parasitismo económico, sem qualquer espécie de justificação.
Estas razões, em que se fundamenta o meu aplauso à doutrina do corpo da base I, determinam-me lògicamente a rejeição do preceito consignado no § 2.º da mesma base, onde se permite que da exploração em comum possam ser excluídas pequenas linhas ou ramais que possuam características especiais e condições próprias que aconselhem a excepção.
Tal preceito, que é contrário a toda a economia da proposta e que prejudicaria irreparàvelmente a consecução dos seus objectivos essenciais, não é de resto fundamentado em qualquer razão suficiente.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — A proposta não se dá sequer ao trabalho de esboçar uma justificação e a Câmara Corporativa, ao tentá-lo, usa de argumentos contraproducentes, apenas conseguindo demonstrar o contrário do que pretendia.
Diz-se no parecer:
Podem, por isso, os interessados no serviço dessas linhas querer proceder à sua electrificação e reünir para isso os capitais necessários.
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Todavia a emprêsa concessionária recusar-se-á porventura a essa transformação na linha por não a considerar vantajosa, mas poderá conceder a exploração ao referido grupo.
Assim se dará satisfação a todos.
Êste argumento, além de outros vícios manifestos, tem o de parecer admitir que o magno problema da electrificação dos nossos caminhos de ferro possa ser resolvido por iniciativas fragmentárias, quando é certo que a sua solução só poderá ter lugar em obediência a um pensamento de conjunto no plano nacional.
Importávamos, anteriormente à guerra, com destino ao caminho de ferro, cêrca de 300:000 toneladas de carvão, no valor de 57:000 contos.
Êste facto onera pesadamente a nossa balança comercial e constitue um dos elementos passivos de que carecemos de libertar-nos.
Eliminaremos, assim, as dificuldades de abastecimento que sentimos dolorosamente durante a guerra e que porventura perdurarão no futuro, por virtude das múltiplas aplicações que a técnica moderna está dando ao carvão. Do mesmo passo conseguir-se-á uma economia, sensível no custo da fôrça motriz, melhorando-se assim consideràvelmente as condições económicas na exploração ferroviária.
A electrificação dos caminhos de ferro impõe-se, pois, como uma necessidade nacional, a cuja solução próxima abriu largas perspectivas a recente lei de electrificação.
Prevê-se nesta uma produção anual de 1:500 milhões de kW na primeira fase da realização do plano.
Ora, uma electrificação razoável dos caminhos de feiro apenas exigirá um consumo de 50 milhões de kW anuais e a electrificação total nunca excederá a um dispêndio de 150 milhões, segundo os números aduzidos pelo engenheiro Rebêlo Pinto num excelente trabalho que publicou numa das nossas revistas da especialidade.
A grandeza dêste empreendimento, aliás já realizado com tanto sucesso na Itália e na Suíça, impõe por
si só a elaboração de um plano em que se enquadrem todas as iniciativas sob a disciplina de um pensamento comum.
Não são, pois, de admitir nesta matéria esforços isolados e caprichosos incompatíveis com a unidade de realização, que é a garantia de todo o êxito.
Mas a multiplicidade de emprêsas exploradoras, que o $ 2.° da base I permite, além de eliminar as vantagens da concentração, oferece ainda o perigo de uma generalização, de que pode resultar a breve prazo o regresso à situação de dispersão industrial, a que a presente proposta procura obviar.
Não tem ela também fácil justificação no plano económico, porque, ou as linhas são pobres e de exploração deficitária e ninguém pretenderá a sua exploração, ou têm um tráfego compensador, e, em tal caso convém não as desarticular da exploração em comum, a fim de que os seus saldos possam ser aplicados à amortização dos encargos das linhas de rendimento insuficiente mas cuja manutenção seja indispensável por imperativa exigência do interêsse colectivo.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Desejava agora, Sr. Presidente, estudar outros aspectos do problema e, designadamente, as bases do sistema de coordenação estabelecido, em comparação com os existentes noutros países e, entre êles, com o constante das leis francesas de 12 de Novembro de 1938 e 12 de Janeiro de 1939, cuja influência se revela de modo patente na proposta em discussão.
Mas o tempo que já ocupei à Assemblea obriga-me a abreviar as minhas considerações e a circunscrevê-las ao esclarecimento dos dois últimos aspectos, a que já agora dedicarei apenas algumas rápidas palavras.
Na base IV da proposta determina-se, paralelamente à concentração das emprêsas ferroviárias, o agrupamento das emprêsas exploradoras de carreiras automóveis.
A solução parece lógica.
Desde que na base I se estabelece o regime da grande emprêsa para a exploração dos caminhos de ferro, afigura-se à primeira vista de indiscutível coerência adoptar o mesmo regime para os transportes por estrada.
O problema, no entanto, não se põe da mesma forma em ambos os sectores e reveste-se, pelo contrário, de aspectos muito peculiares no que respeita à camionagem.
É certo que os sistemas de transporte obedecem à dupla lei da especialização e da concentração. As estatísticas publicadas entre nós pela Direcção Geral dos Serviços de Viação demonstram o bem fundado desta tese: entre 1933 e 1944 o número de carreiras elevou-se para o dobro, ao mesmo tempo que o número de emprêsas concessionárias sofreu uma deminuïção de cêrca de metade.
O quadro seguinte é elucidativo:
[Ver diário original]
Estes números carecem, porém, de alguns esclarecimentos.
Denunciam êles, sem dúvida, uma tendência pronunciada para a concentração, mas nada nos dizem sôbre os limites em que ela se verifica e sôbre o grau da sua intensidade.
Relativamente à produção industrial, dois princípios podem estabelecer-se: o de que a concentração é restrita ao sector da grande produção quantitativa e o de que ela é mais forte nas categorias que se situam no início do processo produtivo e menos acentuada naquelas que se aproximam do têrmo da produção e se destinam à satisfação directa das necessidades do consumo.
Por outro lado, as estatísticas revelam que, se é certo que a proporção das grandes explorações aumentou no conjunto da produção industrial, as pequenas actividades dispersas, longe de terem sofrido um recuo, registam, por sua vez, uma forte elevação.
Mesmo nos sectores onde a concentração é mais intensa, como no das indústrias extractivas, os números mostram que as grandes unidades económicas não eliminaram as pequenas e médias explorações, e que estas mantêm as suas posições, vivendo e prosperando ao lado das grandes emprêsas.
Estes factos correspondem à observação unânime dos estudiosos. Citarei, entre êles, o economista americano Kimball no seu livro Economia Industrial.
Os princípios que se enunciaram, relativamente ao sector produtivo, têm também aplicação ao domínio dos transportes.
Sombart, que estudou o problema em profundidade, fornece sôbre o assunto ensinamentos esclarecedores.
Na parte relativa ao caminho de ferro, o ilustre economista explica a formação de grandes explorações e a concentração por uma necessidade interna das emprê-
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sas, derivada da própria magnitude dos capitais investidos.
A magnitude da emprêsa é, pois, conseqüência da grandeza do empreendimento.
Pelo contrário, a camionagem, em virtude da sua especial natureza de transportadora a pequenas distâncias, exerce normalmente a sua actividade num domínio económico em que as iniciativas são de dimensões restritas e onde, portanto, as pequenas e médias explorações têm um campo de acção especialmente acessível às suas possibilidades.
As estatísticas que conheço e, entre elas, as referidas no volume Les Cadres de la Vie Economigue (título II), do Prof. Gaétau Pirou, corroboram inteiramente a verdade dêstes assertos.
A solução, que é normal para os caminhos de ferro, só excepcionalmente deve, pois, aplicar-se aos transportes por estrada, se bem que não possa contestar-se, em alguns casos, a vantagem da formação de grandes emprêsas automóveis como meio mais adequado de melhorar as condições técnicas e económicas de certas explorações e de prestar ao público o máximo de utilidades.
Estes princípios afiguram-se, aliás, os mais convenientes, não só porque as tendências do futuro são porventura no sentido de um regresso à dispersão industrial e ao primado das pequenas actividades, mas ainda porque o regime exclusivo de grande emprêsa, além de conduzir à rigidez do sistema económico e à estagnação, oferece ainda o inconveniente de eliminar os pequenos industriais autónomos, que constituem, entre nós como em toda a parte, um elemento de progresso económico e um factor de estabilidade social.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
(O Sr. Presidente volta a ocupar o seu lugar na Mesa).
O Orador: — Caberia agora, Sr. Presidente, a crítica do método adoptado para efectuar o agrupamento das emprêsas, mas é tempo de passar ao exame da última questão.
Se bem interpretámos a proposta, esta adopta, quanto ao problema fundamental do regime jurídico da exploração, o sistema da concessão a uma emprêsa puramente particular.
Afasta-se assim a proposta do sistema extremo da nacionalização dos transportes, que se encontra já efectivado na Rússia e que constituo ardente reivindicação dos movimentos socialistas.
Mas afasta-se também do regime intermédio, que corresponde a uma forma de colaboração entre o Estado e os particulares e a que a experiência tem dado uma feliz consagração.
Não se negará que o sistema da concessão a emprêsas económico-privadas oferece vantagens indubitáveis, que o professor e economista francês Emile James expõe persuasivamente no seu livro Les Formes d'Entreprises. Sem embargo, êste sistema parece hoje ultrapassado pelas realidades económicas e pelo movimento da doutrina.
Os factos demonstram que as emprêsas privadas, na colisão dos interêsses em causa, sacrificam em regra o interêsse público e que, dominadas excessivamente pelo espírito capitalista de lucro, tendem a guardar ciosamente para si todos os proveitos dos empreendimentos prósperos e a lançar sôbre o Estado todos os riscos e prejuízos no caso de adversidade.
Êste fenómeno, tam conhecido dos economistas, sob a fórmula expressiva de «individualização dos lucros e socialização dos prejuízos», constituiu uma das determinantes da evolução no sentido de uma nova forma económica mais adaptada às especiais exigências da exploração dos serviços públicos.
Surgiram assim as sociedades de economia mixta, cujo desenvolvimento é considerado por François Perroux uma das características fundamenteis do capitalismo moderno e a que Sombart atribue um largo papel na economia do futuro.
Esta modalidade associativa, utilizada especialmente na constituïção de emprêsas produtoras de energia hidroeléctrica, tem sido adoptada também na Inglaterra, na França e na Bélgica para a exploração dos transportes.
Ela permite na verdade que o Estado, sôbre quem recaem em última análise todos os prejuízos da exploração, possa também participar nos seus benefícios.
Assegura-lhe ao mesmo tempo uma posição de predomínio na vida da emprêsa, habilitando-o a controlar eficazmente a sua gestão e a impedir que elas desvirtuem a sua finalidade, sobrepondo às imposições do bem público o estreito particularismo dos seus interêsses egoístas.
Entre nós foi esta espécie de sociedades adoptada na proposta de lei de electrificação (base IV) e na de reorganização industrial (base III).
Porque suponho não se justificar a dualidade de uma política de fomento económico e de transportes baseada em princípios opostos e porque as soluções a adoptar nesta matéria não podem ignorar a lição dos factos e a evolução do pensamento jurídico, parece-me indispensável esclarecer a proposta, no sentido de se admitir expressamente a participação do Estado no capital das emprêsas ferroviárias.
Eis, Sr. Presidente, as considerações que o estudo da proposta me suscitou.
Ao terminá-las diz-me a consciência que não me afastei dos princípios de uma serena objectividade e que apenas me guiou o propósito de cumprir com isenção o meu dever.
Saio, pois, tranqüilo desta tribuna, tanto mais que pude cumular esta atitude com o desejo, para mim particularmente grato, de prestar ao Govêrno a minha colaboração, procurando melhorar a proposta, sem contrariar a sua economia e os seus princípios fundamentais.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — Não está hoje mais ninguém inscrito.
A discussão continua na sessão de amanhã. Está encerrada a sessão.
Eram 17 horas e 10 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
Artur Proença Duarte.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luiz Augusto das Neves.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Querubim do Vale Guimarãis.
Rui Pereira da Cunha.
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Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alberto Cruz.
Ângelo César Machado.
António Cristo.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Maria Braga da Cruz.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Ranito Baltasar.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
Luiz Mendes de Matos.
Pedro Inácio Alvares Ribeiro.
0 Redactor — M. Ortigão Burnay.
Imprensa Nacional de Lisboa