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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 169
ANO DE 1945
7 DE JUNHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 166, EM 6 DE JUNHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
José Luiz da Silva Dias
SUMÁRIO: — 0 Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 40 minutos.
Ordem do dia. — Prosseguiu o debate sôbre a proposta de lei de coordenação dos transportes terrestres, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Mendes do Amaral, Querubim Guimarãis e José Nosolini.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 5 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 30 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António de Almeida.
António Cortês Lobão.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Carlos Moura de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco da Silva Telo da Gama.
Henrique Linhares de Lima.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luiz Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pires Andrade.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Alberto dos Reis.
José Clemente Fernandes.
José Dias de Araújo Correia.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Júlio César de Andrade Freire.
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Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário de Figueiredo.
Querubim do Vale Guimarãis.
Rui Pereira da Cunha.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 56 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Em virtude de o Diário ainda não ter chegado à Assemblea, não o posso pôr à votação.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Como não está nenhum Sr. Deputado inscrito para usar da palavra antes da ordem do dia, vai passar-se imediatamente à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Mendes do Amaral.
O Sr. Mendes do Amaral: — Sr. Presidente: durante as demoradas sessões de estudo de que foi objecto a presente proposta governamental de coordenação dos transportes terrestres e no meio dos debates tam animados a que ela deu origem, aliás sempre dominados por um alto espírito de patriotismo, muitas vezes me acudiram ao espírito as judiciosas reflexões que se contêm na introdução do parecer sôbre as Contas Gerais do Estado de 1942, quanto à evolução que as condições da vida moderna têm imposto ao funcionamento concomitante dos dois poderes do Estado, tradicionalmente designados por Legislativo e Executivo.
Afirma-se nessa introdução que a crescente complexidade dos problemas das sociedades modernas torna cada vez mais difícil e melindroso o exercício da função legislativa pelo órgão da representação nacional e tende a reservar cada vez mais aos órgãos executivos do Poder a iniciativa das próprias leis, de que, teòricamente, êles deveriam ser apenas meros executores.
Com efeito, Sr. Presidente, os problemas da administração pública na vida moderna tornam-se cada vez mais complicados pelo emmaranhado das recíprocas interferências de interêsses e revestem-se cada vez mais de aspectos de tecnicidade intrínseca, têm cada vez maiores repercussões de carácter social, e projecções internas e externas; umas actuando dentro da economia privada de cada país, outras indo colidir com interêsses externos e perturbar, embora involuntàriamente, o normal funcionamento da vida de relações internacionais e da reciprocidade dos acordos, convenções e tratados de comércio.
Esta proposta de lei sôbre a coordenação dos transportes terrestres pode bem classificar-se como paradigma da dificuldade e do melindre de certas questões da administração pública na actualidade, mas esta é daquelas cuja dificuldade de solução é particularmente aguda na ordem interna pela magnitude dos interêsses com que colide e porque o perigo de qualquer solução de compromisso entre êles reside precisamente na incerteza da projecção dos seus efeitos num futuro que o ritmo vertiginoso do progresso não permite que seja muito distante.
Eis por que, Sr. Presidente, para muitos de nós se ofereceria, como questão prévia a discutir, a própria oportunidade desta proposta de lei. Para êsses a tese é a seguinte: será êste o momento oportuno de assentar medidas sôbre reorganização ferroviária, sôbre concorrência ou cooperação entre o combóio e o automóvel, se o não fizemos, como quási todos os países da Europa, a seguir à Grande Guerra, logo que o problema se esboçou, precisamente por causa do desenvolvimento que essa guerra trouxe aos novos meios de transporte: o avião e o automóvel?
Vamos nós agora fazer em Portugal aquilo que devíamos ter começado a fazer há vinte e tantos anos e ficar amanhã surpreendidos e aturdidos com as soluções que vão aparecer no resto do mundo, determinadas pelas lições, pelos ensinamentos e progressos que o novo post-guerra vai revelar?
Alguém mais autorizado do que eu que se atreva a responder que não, porque a mim confesso que me falta a decisão para tanto. Admito perfeitamente a possibilidade da superveniência de soluções novas e desconcertantes para a questão dos transportes em geral, mas, como ainda não as conheço, decido-me antes pela oportunidade, direi mesmo pela urgente necessidade, de tentarmos fazer desde já aquilo que realmente devíamos ter começado a fazer há mais de vinte anos, isto é, definir com a maior precisão e com a melhor justiça possível os direitos e deveres de cada um dos dois sistemas de transporte terrestre como serviços de utilidade pública e impor a cada um dêles o rigoroso cumprimento de uma estreita e proveitosa colaboração.
E nestas despretensiosas considerações resumo, Sr. Presidente, a minha adesão ao escopo fundamental da proposta de lei.
Mas porque se não pensou há mais tempo, em Portugal, neste importantíssimo problema da perigosa concorrência que o transporte automóvel pode fazer ao transporte ferroviário?
A resposta a esta pregunta, Sr. Presidente, é a mesma que há a dar a tantas outras que a cada passo acodem ao nosso espírito acêrca de quási todos os problemas basilares da nossa economia. É a mesma que se encontra para responder às interrogações sôbre a causa do nosso atraso em matéria de aproveitamento das nossas fontes de energia hidroeléctrica, do desenvolvimento das nossas colónias, do povoamento florestal das nossas extensas charnecas e baldios montanhosos, da nossa instrução primária, da nossa higiene pública, da nossa previdência social.
Estava na nossa índole andarmos com o passo trocado na marcha da civilização e caminharmos sempre com um atraso de, pelo menos, um quarto de século, e só agora, nos últimos vinte anos, graças à Revolução Nacional, começámos a tentar recuperar, com grande esfôrço, mas ainda não com verdadeiro entusiasmo, o tempo e o caminho que deixámos perder.
Discutimos e aprovámos há pouco a lei de electrificação nacional. Não me permitiu a saúde a minha intervenção nesse debate, como era meu propósito, porque, se nêle tivesse tido intervenção, não podia deixar de chamar a atenção desta Assemblea para a desoladora circunstância de termos desde 1920 uma lei de águas, de se ter promulgado em 1927 uma outra lei chamada
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de aproveitamentos hidráulicos, de ao abrigo de ambas ter sido requerida a concessão do aproveitamento do rio Zêzere, de ter sido aprovada e aceite a respectiva proposta e de a celebração do respectivo contrato ter ficado apenas dependente do traçado da linha de transporte da energia entre a central e Lisboa, de ter sido nomeada uma grande comissão para dar o seu parecer no prazo de sessenta dias sôbre êsse traçado, de essa comissão nunca mais ter dado êsse parecer e de, em conseqüência, o rio Zêzere continuar até hoje a correr improdutivamente para o Tejo. O que teríamos ganho, a quantas aflições não teriam sido poupados os poderes públicos durante os últimos seis anos, se não tivesse havido essa imperdoável falta de entusiasmo oficial pelo grande empreendimento?
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Depois da outra guerra começou naturalmente a desenvolver-se a viação automóvel no País. A França, e depois a América do Norte, inundaram-nos de automóveis ligeiros e de camionetas para transporte de passageiros e de carga. Multiplicaram-se os pedidos e foram dadas muitas concessões para a exploração de carneiras de automóveis; o público, ao principio um tanto ou quanto receoso do novo meio de transporte por causa dos desastres um pouco freqüentes, não tardou a afeiçoar-se-lhe e a acentuar a sua predilecção por aquilo a que Baudry de Saunier chamou «o caminho de ferro à porta de cada um».
Paralelamente, as carruagens dos combóios começaram a transitar cada vez mais despovoadas e as suas estações a acusar cada vez menor afluência de mercadorias. Todavia a opinião dominante, olímpica e assente definitivamente nas reüniões dos conselhos de administração das emprêsas ferroviárias era esta: o automobilismo não poderá nunca ombrear com o combóio; a sua exploração, feitas bem as contas, é muito mais cara, a duração do seu material incomparàvelmente mais curta e, como as emprêsas exploradoras da camionagem não sabem fazer contas, em breve estarão falidas, porque no momento em que começarem a ter de substituir o seu material verificarão que, não tendo constituído as necessárias reservas, terão de ir para a falência e liquidação.
O prognóstico poderia ter muitas e bem fundadas razões, mas a verdade é que não se verificou, pelo menos com a rigorosa exactidão com que fôra formulado. E por isso, ao começar o conflito mundial de 1939, não eram as emprêsas de camionagem que mordiam o pó da falência, mas eram as emprêsas ferroviárias que caíam de joelhos diante do Govêrno, pedindo instantes providências contra a terrível concorrência da camionagem.
A guerra veio modificar um pouco a posição relativa dos dois sistemas em luta e, faltando a ambos com o combustível e os rodados, não há dúvida que revelou até certo ponto a superioridade real do caminho de ferro e veio demonstrar a necessidade de lhe reconhecerem o seu autêntico valor como instrumento económico indispensável, que portanto é mester conservar e amparar. Certo é, porém, que já foi dentro dêste critério protector e de necessidade pública que se lhe consentiu, para que não parasse de todo, que substituísse o seu combustível normal, que é o carvão de pedra, pelas preciosas reservas do património nacional, que são as nossas matas, sacrificadas aliás a um preço indefensável, quer sob o ponto de vista puramente económico, quer sob o ponto de vista técnico do seu valor calorífico.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Mas agora, com os novos combustíveis líquidos de alto rendimento térmico, com os novos motores de explosão de diagramas muito melhorados, com os progressos realizados na indústria da borracha, com os aperfeiçoamentos portentosos das novas ligais metálicas, em que a resistência específica parece ter crescido na razão inversa do pêso, as perspectivas da futura concorrência do automóvel ao caminho de ferro aumentam, assustadoramente para êste e por isso mesmo é que se impõe indiscutìvelmente o delineamento das normas em que deve assentar a estreita colaboração, e não a concorrência, entre um e outro.
A proposta de lei visa exactamente isso e, quanto a mim, apenas isso: definir a cada um dos sistemas a sua esfera de acção, impor-lhe as respectivas normas de actividade e levá-los o mais possível à colaboração, o menos possível à concorrência. Não me assusta que esta desapareça de todo quando aquela apareça perfeita, porque nessa altura teremos assegurado o objectivo económico de interêsse colectivo: a garantia do transporte do passageiro e da mercadoria em condições simultâneamente de barateza, de segurança, de comodidade e de pontualidade. Mas poderá haver tudo isto sem a concorrência?
Aqui há muitos anos, Raymond Poincaré, ao encerrar uma conferência de Charles Gide sôbre concorrência ou cooperação e depois de citar uma das muitas contradições do velho Proudhon «tomai partido pela concorrência e não tereis razão, tomai partido contra a concorrência e também não tereis razão, donde podereis concluir que tereis sempre razão», fez sôbre o conceito que se deve ter da concorrência umas judiciosas considerações, que se resumem no seguinte: a concorrência nem merece os excessos de honra com a que têm cumulado os economistas liberais, nem as indignidades de que a têm responsabilizado os socialistas. E Poincaré terminava por arriscar, para o conceito de concorrência, a definição seguinte: a concorrência é a própria liberdade em movimento. Na verdade, embora um pouco retórica na sua expressão formal, esta definição não deixa de ter o seu conteúdo substancial: é que para haver liberdade no movimento é indispensável que não sobrevenha o entrechoque, porque, se êle se dá, há fatalmente paragem e, portanto, cessação do movimento.
Aplicado o conceito à concorrência entre o sistema ferroviário e o sistema rodoviário, poderemos também concluir que se não forem definidas com precisão as trajectórias que se reservam a cada um dêles, não digo no espaço geográfico, mas no espaço económico, haverá choque e com êle a subseqüente paralisação, mais tarde ou mais cedo, senão de ambos os sistemas, pelo menos daquele que estiver animado de menor fôrça viva. E creio que não é isso o que desejam nem os que julgam que a proposta se destina a subordinar o automóvel ao caminho de ferro, nem aqueles que desejam não lhes venha a faltar a possibilidade de irem de Lisboa ao Pôrto, còmodamente, em três ou quatro horas.
Ora a coordenação de transportes que se pretende obter com a proposta de lei em discussão estabelece precisamente o princípio da existência de uma concorrência regrada, quer do transporte ferroviário com o transporte automóvel, quer das várias carreiras de automóveis e da indústria do automóvel de aluguer entre si.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Eu estou plenamente de acôrdo com o intuito da proposta, o que não quere dizer que o esteja com todos os métodos e processos que se contêm no seu articulado, mas, quaisquer que venham a ser êsses métodos e processos, o que desde já faço é o voto mais ardente por que êsse intuito seja perfeitamente compreendido pelo País e que dele se compenetrem com
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sentido prático, dinâmico, com patriótico entusiasmo, todos aqueles que hajam de ser amanhã os executores do que é hoje aqui apenas pensamento e aspiração do Govêrno e da Assemblea Nacional.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Agora, Sr. Presidente, algumas palavras sôbre o método delineado na proposta para a execução da coordenação. Êsse método consiste essencialmente no seguinte:
a) Unificação de toda a rêde ferroviária do País como base da completa reorganização da sua exploração e da melhoria da sua eficiência económica;
b) Organização disciplinada do sistema circulatório do transporte automóvel em todo o País, de forma a abranger com ela todo o corpo continental, desde os centros mais populosos até às regiões mais remotas e despovoadas;
c) Instituição de medidas tendentes a obter a mais perfeita cooperação entre os dois sistemas, baseadas no princípio genérico de se reservar ao caminho de ferro os grandes percursos e o transporte maciço de mercadorias e ao automóvel as menores distâncias e a pluralidade da grande distribuïção.
Fundamentalmente foram estes os princípios que informaram as medidas de coordenação de transportes em todos os países que atacaram êsse problema, divergindo naturalmente os processos, de país para país, consoante as circunstâncias económicas, sociais e demográficas de cada um e sobretudo conforme o índice de valor económico que cada um dos sistemas representa no acervo da riqueza nacional.
E, assim, quando entre nós se propõe a redução a uma única das quatro ou cinco explorações ferroviárias distintas e autónomas que se exercem sôbre os 3:500 quilómetros de via férrea que possuímos, nem fazemos maior concentração nem enfrentaremos problema mais difícil do que o que enfrentou a Inglaterra em 1921 decretando a redução das cento e dezanove emprêsas que exploravam os 31:000 quilómetros da rêde total dêsse país a quatro grandes emprêsas.
Em França, como todos sabem, fez-se a unificação da exploração de todas as grandes linhas, quer do Estado, quer concedidas, concentrando-a na mão de uma única emprêsa exploradora, embora deixando subsistir todas as concessionárias como sociedades financeiras, gestoras, mediante certas normas, do capital com que haviam ficado dentro da emprêsa única exploradora. A Alemanha, que é talvez com a Bélgica o país de maior densidade ferroviária por unidade de superfície, essa simplificou à sua maneira êste problema da coordenação dos transportes terrestres e fluviais, enquadrando todos dentro de um regime de subordinação ao caminho de ferro, comandado por êste.
Como vai fazer-se entre nós a concentração das emprêsas ferroviárias?, preguntava há dias o jornal O Século, com uma certa inquietação.
A proposta governamental é bastante clara a tal respeito, quando prevê, e quanto a mim deseja, a fusão por acôrdo de todas elas, para dar lugar a uma única e nova emprêsa, em cuja composição, presumo eu, o Estado Português, neste momento possuidor, em propriedade perfeita e livre, de mais de 50 por cento de toda a rêde ferroviária, não poderá deixar de entrar numa situação de relêvo e de domínio. Mas já a proposta não é para mim tam clara quando dá a entender que, para facilitar a fusão, poderá prorrogar os prazos das concessões. Porque uma de duas: ou as emprêsas actuais se fundem numa única e desaparecem individualmente, elidindo-se com elas os contratos de concessão que tinham com o Estado, ou não desaparecem, e nesse caso a prorrogação das concessões que houver de fazer-se não poderá ter lugar nas condições originais, isto é, naquelas condições que representavam a compensação do esfôrço que as emprêsas iam fazer, construindo as linhas e comprando o material circulante.
Fusão, no sentido rigoroso da palavra, significa desaparecimento da personalidade jurídica de cada um dos elementos que se fundem no todo, para dar lugar a uma nova entidade que surge. Se esta forma é viável, como julgo que é, e se, em conseqüência, amanhã aparece em Portugal uma nova emprêsa cuja composição e cuja administração não podem deixar de se verificar num regime de economia mixta, isto é, de associação de capitais privados com capitais do Estado, desde já declaro que a fórmula me satisfaz plenamente e julgo que satisfará à grande maioria da Nação, sem esquecer o nosso querido e ilustre colega Dr. Antunes Guimarãis, a quem, se porventura pode repugnar um monopólio ferroviário nas mãos de uma emprêsa, exclusivamente privada, não pode deixar de agradar tal monopólio em poder de um consórcio em que o Estado terá, além dos seus direitos majestáticos, os direitos de maior accionista ou parceiro.
O Sr. Antunes Guimarãis: — V. Ex.ª dá-me licença?
Devo dizer que não deixarei de expor várias considerações em oposição a êsse ponto de vista quando se tratar da discussão na especialidade. Mas quero dizer desde já que divirjo da opinião de V. Ex.ª, como, aliás, afirmei quando se tratou das propostas de lei sôbre electrificação e fomento industrial. Isto é, não concordo com o Estado capitalista associado a emprêsas privadas.
O Orador: — É uma opinião.
O Sr. Mário de Figueiredo: — S. Ex.ª prefere o Estado empresário...
O Sr. Antunes Guimarãis: — Prefiro o Estado a administrar aquilo que é nosso, o património nacional.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Isso é um Estado empresário.
O Sr. Antunes Guimarãis: — V. Ex.ª chama-lhe um Estado empresário e eu chamo-lhe Estado bom administrador.
O Orador: — Sr. Presidente: os organismos ferroviários de direito privado que nasceram em Portugal na época quási gloriosa da nossa história que se chamou a Regeneração, e se situa no terceiro quartel do século passado, tiveram uma infância atribulada e suportaram vicissitudes nos primeiros anos de vida que lhes imprimiram fundo carácter pela existência fora. Em Portugal, como aliás em França, de onde nos veio a inspiração para os primeiros empreendimentos ferroviários, êles não surgiram pròpriamente como medidas de fomento partindo da iniciativa dos govêrnos, concebidas dentro de um plano de conjunto maduramente estudado para ser criteriosamente executado. Nasceram antes como miragem de vastas operações financeiras, igualmente sedutora para a grande banca estrangeira e sobretudo para a francesa e para as aflições financeiras da administração pública de então, a qual, sempre a braços com apertos de tesouraria, nelas viu um providencial recurso para alargamento do nosso crédito externo, ao tempo tam enfraquecido. Foi isto que fez escrever a Oliveira Martins, ao historiar a época: «É necessário hipotecar o futuro para liquidar o passado? Faça-se, faça-se tudo, aceite-se tudo, mas haja dinheiro e caminhos de ferro». A própria história das
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vicissitudes por que passou a construção das nossas principais linhas férreas e dos primeiros anos da sua explorarão é um longo rosário de acordos e combinações feitas e desfeitas, de convénios entre accionistas e obrigacionistas, de processos judiciais, pairando sôbre tudo isso a asa protectora do Anjo da Guarda do Estado. Daí a mentalidade especial que se criou ao serviço público do caminho de ferro, que o levou a convencer-se de que fôssem quais fôssem as contingências do futuro estaria sempre indemne e assegurada a sua condição de filho dilecto e protegido do Estado.
Um dia surgiu o automóvel dotado com o motor de explosão, que é incontestàvelmente um instrumento de transformação da energia calorífica em energia cinética, muito superior à máquina de vapor, e a ancilosada mentalidade ferroviária parece não ter compreendido o que isso continha de futuras e perigosas possibilidades de concorrência. O resultado foi o que se está vendo.
Sejam pois quais forem as futuras condições a estabelecer para a exploração ferroviária, o que eu reputo indispensável é que tal mentalidade seja radicalmente transformada desde o carregador da estação até aos mais altos postos de direcção. Será isso possível? Será porventura difícil? É pelo menos muito desejável, e eu não o reputo impossível se da fusão das emprêsas que se prevê, e, repito, creio que se deseja, na proposta do Govêrno, resultar uma emprêsa nova, mas totalmente nova, nos métodos administrativos e nos métodos de exploração, servida por gente nova e desempoeirada e já formada na escola magnífica das realizações do Estado Novo.
Para o conseguir o Govêrno nem sequer precisava ser dentro da actividade ferroviária o representante de um Estado que é proprietário, em propriedade livre, de mais de metade das vias férreas, senhorio directo e prestes a ser senhorio útil das mais importantes concessões e que é ainda o possuidor da maioria absoluta do capital da maior organização ferroviária do País. Bastar-lhe-ia, se tanto não houvesse, o uso criterioso de qualquer fórmula de jure cunstituendo, inspirada nas modernas ideas sôbre o direito do Estado, para obter a solução mais consentânea com o interêsse público, sem, por um lado, se prender demasiadamente com as românticas cláusulas das condições do resgate das concessões, nem por outro lado ter de abusar da precária situação económica actual das emprêsas, que os inventários do seu material e os balanços das suas contas claramente deixam transparecer.
Confiamos, pois, em que o Govêrno encontrará essa fórmula justa e desejável.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — O outro dos tópicos da proposta de lei é a organização disciplinada do transporte colectivo em automóvel e do transporte de aluguer, e essa é certamente a parte mais discutida da proposta.
Para muitos, os intuitos desta, quanto a essa parte, são os de uma completa subordinação do transporte automóvel ao transporte ferroviário. Não adiro totalmente a esta tese, porque de facto não é lícito fazer tal dedução do que se contém na proposta. Tudo dependerá, é claro, da maneira como ficar elaborada a lei emanada desta Assemblea, mas, sobretudo, daquilo que vier a ser estabelecido nos diplomas regulamentares da mesma lei. Mas, quanto a mim, o princípio essencial da proposta nesta matéria é o da concentração gradual das emprêsas que actualmente exploram o transporte automóvel e não tenho a menor relutância em dar a minha conformidade a êste modo de ver, fazendo-o sem necessidade de forçar o meu espírito crítico nem o meu raciocínio, antes podendo apoiar-me directa e francamente sôbre um e outro. Dou essa minha concordância até colocando-me simplesmente dentro da lógica dos factos, visto o último relatório publicado pela Direcção Geral dos Serviços de Viação nos mostrar ter baixado o número de emprêsas concessionárias de carreiras automóveis de cêrca de 400, que existiam em 1934, para 230, em 1943, sendo aliás certo que o número de carreiras concedidas e o número de quilómetros de estrada por elas servidos subiram, no mesmo período, respectivamente cêrca de 20 por cento e de 33 por cento, o que quere dizer que a concentração dessas emprêsas se tem vindo a fazer espontâneamente e com proveito para o público.
Não sei se com isso o serviço de transportes colectivos em automóvel foi melhorado, porque tenho pouca experiência pessoal dêsses serviços. Imagino, porém, que se porventura piorou não foi em conseqüência dessa concentração, mas tam sòmente por efeito das dificuldades criadas pela guerra.
O Sr. Melo Machado: — V. Ex.ª sabe se para essa concentração não terá concorrido a acção preponderante das dificuldades do momento?
O Orador: — É possível. Não me admiro que assim seja. No entanto, isso em nada modifica a minha tese. Penso mais que agora, na paz, êsse serviço pode e deve melhorar muito, mas que para isso se torna indispensável a constituïção de emprêsas cada vez mais robustas, sob o ponto de vista financeiro, cada vez mais experimentadas e apetrechadas, sob o ponto de vista técnico, e cada vez mais bem organizadas, sob o ponto de vista da administração.
A impressão que tenho hoje dos serviços de transporte colectivo de passageiros não é a de uma absoluta perfeição. Suponho não susceptibilizar ninguém afirmando que poderão ainda aperfeiçoar-se muito quanto a asseio, segurança e comodidade do passageiro e pontualidade do serviço. Mas isso só poderá exigir-se a emprêsas dotadas de recursos adequados a êsse mínimo de exigências. Dir-me-ão que, como o óptimo é inimigo do bom, nunca poderão conciliar-se serviços perfeitos, sob o meu ponto de vista, com serviços baratos. Mas, dentro da relatividade de todas as cousas, a mim satisfar-me-á o absoluto asseio, a absoluta comodidade e segurança, dentro da possível barateza. As três primeiras características do serviço serão intrínsecas, digamos, subjectivas do próprio serviço; a última será uma característica objectiva, conseqüente, e, portanto, variável, consoante as circunstâncias. Se o viajar pode considerar-se em certa medida uma necessidade económica, não está demonstrado que seja uma vantagem social o exacerbar a mania deambulatória pela aliciação do preço da viagem, conseguida muitas vezes à custa de injustos sacrifícios impostos a outros sectores da economia e sem qualquer proveito para a economia do conjunto, como está sucedendo neste momento, em que as tarifas de passageiros, quer na camionagem, quer, sobretudo, nos caminhos de ferro, se conservam inexplicàvelmente desactualizadas em relação ao índice do custo geral da vida.
Por isso, Sr. Presidente, nenhuma relutância tenho em aprovar a orientação económica que se desenha na proposta de lei, no que respeita ao transporte colectivo em automóvel e à indústria do aluguer, encaminhando ambas, suasòriamente, para uma concentração em grau conveniente, da qual possam decorrer para o público as seguintes vantagens:
1.° Extensão a todo o País, mesmo aos pontos mais remotos, de um serviço regular de camionagem;
2.º Que êsse serviço seja irrepreensível sob o ponto de vista de asseio, comodidade, segurança e pontualidade.
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Não me assusta, que onde tem havido até hoje duas ou três emprêsas concorrentes passe a haver um exclusivo de facto, porque ao detentor dêsse exclusivo poder-se-á exigir tudo o que fôr materialmente exigível, graduar-lhe convenientemente a remuneração do serviço óptimo que fica obrigado a prestar e aplicar-lhe, sem sombra de preocupação, as sanções em que incorrer por falta de cumprimento daquilo a que se tiver comprometido.
E então, uma vez reorganizada e remodelada a exploração ferroviária, dotada de material moderno, cómodo e rápido, organizada e disciplinada a exploração rodoviária em termos civilizados e incutida em ambos os sistemas de transporte uma, mentalidade de sincera colaboração, uma mentalidade corporativa, estou convencido, Sr. Presidente, de que a coordenação dos transportes virá por si, naturalmente, sem necessidade de coacções violentas nem prejuízos insanáveis para qualquer dos dois sistemas.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Querubim Guimarãis: — Sr. Presidente: subo à tribuna para roubar pouco tempo aos trabalhos da Assemblea, pois não me parece que sôbre a generalidade da proposta em discussão haja muito que dizer.
O problema, em tese, não oferece campo para larga divagação nem envolve matéria controvertível.
O que pretende o Govêrno com a proposta? Regularizar e sistematizar, os transportes terrestres, coordenando-os, de modo a coexistirem, oferecendo ao público as vantagens próprias do sistema transportador que adopta, sem se atropelarem um ao outro, numa tarefa de sobreposição que implica competições perigosas para a comunidade e pára a própria vida das emprêsas transportadoras.
«Coexistência não quere dizer sobreposição», diz-se no relatório que precede a proposta. É assim mesmo.
Todos concordamos com êste enunciado, tam evidente êle se apresenta ao nosso espírito.
Justifica-se o conceito com estas palavras do relatório da proposta, a que damos inteiro aplauso:
No conjunto da riqueza nacional os caminhos de ferro representam, sem dúvida, uma parcela de alto valor, da qual, por múltiplas razões, o Estado não pode desinteressar-se. Por seu lado, a indústria da camionagem tem de ser amparada, não só pelos interêsses que a ela estão ligados, mas sobretudo pelo factor de fomento que constitue e que, bem orientado, está destinado a ser, em futuro próximo, de vasto e profundo alcance.
Acrescentando mais adiante:
Ambos os meios de transporte possuem indiscutìvelmente as suas vantagens.
O caminho de ferro tem a seu favor a grande capacidade, a velocidade, a segurança e o confôrto; só êle pode assegurar a deslocação de grandes massas de passageiros ou de mercadorias em momentos de afluência, a qualquer distância, e satisfazer certas exigências da própria defesa nacional.
O automóvel tem a extrema maleabilidade da sua utilização, a maior aproximação dos lugares próprios, a facilidade de penetrar em todos os centros de população.
E conclue:
É preciso tirar dessas aptidões peculiares o máximo proveito, atribuindo e reservando a cada um a função que lhe compete.
Esta doutrina, que é a única aceitável, reforça-a o parecer da Câmara Corporativa nesta passagem, com que sublinha e justifica o princípio «da necessidade de manter as duas formas de transporte», ao referir a opinião do Ministro belga Forthomme sôbre o assunto:
Nem se pode consentir na ruína dos caminhos de ferro nem dar ensejo a que êles tenham, para se manter, de elevar as tarifas das mercadorias volumosas e desvaliosas ou de recusar o seu transporte, soluções ambas insuportáveis para a economia nacional. Tampouco se podem condenar os transportes em automóveis, já auxiliares preciosos do comércio e da indústria.
Entre nós o Estado não pode deixar de ter isto em atenção e de encarar com profunda simpatia o desenvolvimento da viação automóvel, reconhecendo os grandes serviços que ela presta ao público e a sua incontroversa utilidade para a economia nacional.
E acrescenta o parecer:
A prova de que os automóveis correspondem a uma necessidade real está na sua grande expansão, como a prova da utilidade dos caminhos de ferro está na sua capacidade de transportar grandes massas a grandes distâncias, a tarifas baixas e em quaisquer condições de tempo.
A propósito da expansão da viação automóvel, que o parecer da Câmara Corporativa reconhece ter-se desenvolvido ràpidamente no nosso País, tendo hoje incontestável importância, elucida-nos com números que bem comprovam a afirmação.
Assim se verifica que o número de carreiras era:
Em 1933..................................... 596
e passou a ser em 1944, onze anos depois.... 811
ou seja um aumento de....................... 215
Nota-se que o seu desenvolvimento foi desigual entre as carreiras de passageiros (de 575 para 694 = 129), de mercadorias (de 3 para 45 = 42) e mixtas (de 18 para 72=54).
É curioso o que se passa também, segundo êsses dados numéricos fornecidos pelo parecer, entre as várias espécies de carreiras, acentuando-se a deminuïção das concorrentes, que passaram de 212 em 1933 para 151 em 1944 (menos 61), assim como as concorrentes e afluentes, que de 62 em 1933 passaram para 44 em 1944, ou seja menos 18.
Aumentaram acentuadamente as carreiras independentes, de 118 para 364 (mais 246), e as afluentes, que passaram de 185 para 215 (mais 30).
Êste facto, que o parecer anota com elucidativos números, demonstra-nos uma visível tendência para a redução das carreiras concorrentes e para o aumento das afluentes, o que pressupõe uma circunstância que de certo modo contraria o que se alega nos dois relatórios — o da proposta e do parecer da Câmara Corporativa — quando atribuem à concorrência do automóvel a deminuïção de receitas dos caminhos de ferro.
Ao mesmo tempo conduz-nos a outra conclusão: de que o entendimento entre os dois sistemas de transporte se impõe pelas próprias conveniências de ambos.
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Se olharmos aos percursos quilométricos das duas espécies de carreiras, à mesma conclusão chegamos.
Emquanto as carreiras concorrentes percorrem apenas 9:893 quilómetros, as não concorrentes percorrem 12:073, ou seja uma diferença de 2:180 para mais nas não concorrentes.
Evidente sinal de que à camionagem não convém tal concorrência.
Todavia, o caminho de ferro queixa se dela.
É certo que os percursos quilométricos da via férrea; no total (via larga e via reduzida), pouco vão além de 4:000 quilómetros, o que bem mostra a pobreza da nossa rêde ferroviária, que começou logo, ao estabelecer-se, em fixar a coluna vertebral do sistema junto do litoral, com a visível preocupação de ligar os dois maiores centros populosos do País, pondo de parte a zona central, onde a indústria agrícola e outras indústrias que o subsolo e a posição geográfica aconselhassem a criar-se e a expandir-se determinariam um afluxo de mercadorias aos caminhos de ferro e um aumento da riqueza do País de incontestável relêvo.
O interior do País, êsse rico hinterland, rico já no presente e rico de possibilidades no futuro, encontra-se inexplorado pelos transportes em via férrea, limitado a curtos percursos de via estreita, que, segundo os números do relatório do parecer, não chegam a 800 quilómetros.
O facto é evidente e de flagrante realidade.
Aí, nesse êrro inicial — creio ter sido um erro —, se filia uma grande parte, a meu ver, das razões que levaram à deminuïção de tráfego pela via férrea e à expansão da camionagem para essas regiões abandonadas pelos transportes ferroviários.
Em vários congressos regionais e da especialidade, em anos decorridos, antes da expansão automobilística, o problema era pôsto pelos interessados na região, por economistas e por técnicos dos caminhos de ferro, e tantas vezes se preconizou a construção dessa linha de via larga, que atravessasse o centro do País, feitas as ligações para o litoral e até à fronteira por meio de linhas complementares de via estreita.
Não sei o que será possível, ou aconselhável, hoje perante o desenvolvimento da camionagem.
Mas afigura-se-me propício o ensejo da preconizada coordenação dos transportes para uma revisão geral do nosso sistema ferroviário, tornando-o não só mais eficiente, cómodo, rápido e acessível, tanto na qualidade do material como nos preços das tarifas para as mercadorias e dos bilhetes para os passageiros, como estudando o problema duma maior expansão ferroviária pela transformação e actualização da rode existente.
O nosso País, embora de pequena superfície continental, bem maior é que a Bélgica, e não há comparação possível entre as rêdes ferroviárias dos dois países.
Basta olhar para o mapa respectivo dum e doutro.
O nosso atraso é, a tal respeito, lamentável, pouco ou nenhum interêsse tendo merecido ao Estado o problema ferroviário, que é preciso realmente enfrentar com ânimo decidido e bom espírito de servir o interêsse nacional.
Pôde dizer-se que depois das tentativas (assim pode chamar-se) dos últimos tempos da monarquia para melhorar e actualizar o sistema de transporte em caminhos de ferro nada mais se fez.
Os grandes percursos de via larga ou estavam entregues a uma ruinosa e desordenada administração do Estado, que ia chegando ao caos da indisciplina — ambiente propício para fermentos revolucionários por vezes eclodindo em perigosas sublevações e sabotagens —, ou se achavam a cargo duma emprêsa dentro de uma larga concessão e fruindo um exclusivo que, em vez de servir de estímulo para a grande e desejada beneficiação e melhoramento dessa espécie de transportes, permitiu um adormecimento reprovável, aquele — dulce far niente — de que veio agora acordá-la a concorrência do automóvel, a que atribue todas as culpas, como se de culpas não pudesse também sentir-se ré.
Lamenta-se essa emprêsa do pesado encargo que lhe trouxe o arrendamento em 1927 das linhas do Estado, de exploração deficitária, cujas perdas têm de ser cobertas pelos apreciáveis lucros da exploração da linha de norte e leste, de que é concessionária, que lhe permitiram saldos em média de 30:000 contos anuais até 1942, passando neste ano e no de 1943, segundo os mapas esclarecedores fornecidos à Assemblea a requerimento do ilustre Deputado Sr. Dr. Antunes Guimarãis, aperto de 70:000 contos.
Mas dêsse mapa também se vê que, apesar dos deficits dessas linhas que estão sob a sua exploração, nunca deixou de ter no balanço geral saldos importantes de dezenas de milhares de contos.
Seria caso para preguntar em que se aplicaram êsses saldos e se seria possível dentro dêles conseguir uma melhoria de situação, quanto ao material transportador e às facilidades de transporte de mercadorias e comodidade dos passageiros, que não se verifica.
Do que se expõe nos relatórios, tanto da proposta como do parecer, ambos elaborados — o que se diz sem desprimor — por ilustres ferroviários, vendo o problema através do prisma de uma primazia para o caminho de ferro, por vezes contraditòriamente talvez com o que se afirma a favor dos transportes em automóveis, parece tudo fazer-se depender da coordenação preconizada e da concentração que se propõe.
Só assim — uma mais larga concessão, a constituïção de uma forte emprêsa, a que o Estado daria as maiores probabilidades de êxito, todas as garantias em matéria de unificação de tarifas e eliminação da concorrência — poderá conseguir-se a melhoria dessa espécie de transportes, a renovação do material e seu aperfeiçoamento, a realização, emfim, de todas as condições necessárias para assegurar ao caminho de ferro a sua eficiência como serviço público que presta e o rendimento desejado da sua exploração.
Só assim, numa palavra, podem melhorar os caminhos de ferro e, pela coordenação, bater a concorrência da camionagem, de que tanto se queixa.
Mas não será lícito preguntar: se as emprêsas exploradoras tivessem aplicado de preferência os seus saldos nas possíveis melhorias dos transportes, não se teria evitado em grande parte a concorrência do automóvel?
Êsse esfôrço, evidenciado em palpáveis realizações, embora insuficientes, dariam aos caminhos de ferro e às emprêsas exploradoras situação de indiscutível autoridade para se apresentarem a solicitar o que no articulado da proposta se procura estabelecer.
Queixam-se igualmente os caminhos de ferro, e disso se faz eco largamente o parecer da Câmara Corporativa, da situação desigual em que se encontram os dois sistemas de transporte em matéria de tributos e impostos, agravados ainda os caminhos de ferro com o encargo de construir, conservar, manter e renovar o seu material fixo, ao passo que a camionagem tem a via pública — as estradas — à sua disposição, não tendo a tal respeito encargos.
Ora não é assim. Por uma nota referente ao ano de 1938, publicada pelo Automóvel Clube de Portugal, vê-se que o automobilismo pagou ao Estado nada menos que isto:
Taxas cobradas pela Direcção Geral dos Serviços de Viação... 3:941.408$00
Receita nos termos do Código da Estrada..................... 2:471.809$00
Imposto de camionagem....................................... 4:209.819$00
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Contribuïção industrial sôbre os proprietários de automóveis... 7:566.433$00
Direitos de gasolina (73:747 toneladas, deduzidos de 3 por cento,
conforme o decreto n.º 17:813)................................. 143:069.000$00
Câmaras de ar e protectores (1.130:454 quilogramas)............ 16:956.000$00
Total..... 178:214.469$00
Isto fora o que a mesma nota aponta relativo aos direitos pagos sôbre os carros de carga e passageiros, leves e pesados, carroçados e não carroçados, motocicletas, peças separadas de veículos, etc., que sobem a uns 30:406 contos.
Explica a nota que êste total — de 208:619.926$ — incide sôbre 54:257 veículos automóveis existentes no País (continente e ilhas).
Cada veículo, pois, pagou ao Estado 3.845$.
No mesmo ano os 244:483 veículos não automóveis e animais de carga pagaram ao Estado, de impostos de transportes, 4:084.394$83.
Quere dizer, os encargos fiscais sôbre a viação automóvel são duzentas e cinqüenta vezes superiores aos que pesam sôbre velocípedes e tracção animal.
Não controlei estes números, mas, dadas as responsabilidades do organismo que os fez publicar, devem corresponder à verdade.
Sr. Presidente: dados estes elementos de estudo e a situação em que se encontram os caminhos de ferro em relação aos transportes automóveis, o que há a fazer?
Êste o ponto mais grave do problema, o que representa o articulado da proposta.
A solução do problema, num espírito superior de equilíbrio entre os interêsses legítimos dos dois sistemas de transporte, de modo a garantir-se a sua necessária coexistência que o relatório da proposta, como vimos, preconiza e que se impõe ao nosso espírito, é difícil e complexa. Qual a melhor?
A que propõe o Govêrno quanto aos caminhos de ferro — fusão por acôrdo, ou até imposta possìvelmente, transformadas as companhias existentes numa grande companhia, onde aquelas entrassem com as suas concessões e todo o seu apetrechamento em material fixo e circulante?
A administração pelo Estado, nacionalizando assim os sistemas de transportes, como preconiza o nosso ilustre colega Sr. Dr. Antunes Guimarãis, citando-se para isso, como exemplo, o que se passa com os C.T.T. com a Administração do Pôrto de Lisboa e outros organismos do Estado de administração autónoma?
Êste ponto de vista do ilustre Deputado, embora tal não seja o seu pensamento, é um ponto de vista que se aproxima de um verdadeiro socialismo do Estado, sistema que o após guerra parece querer enraïzar na nova organização económica, mas contra o qual ainda agora reagiu, em discurso de combate político, Churchill, por o considerar meio caminho andado para os totalitarismos.
Sabemos que Churchill é um democrata liberal, e, dentro do sistema individualista da ordem económica no regime que defende, ao Estado fica vedado o sobrepor-se às actividades e iniciativas particulares, das quais tudo faz depender como do jogo livre da concorrência.
O Estado Novo não é um Estado socialista, mas, em matéria económica, não é também individualista, pois não admite a livre concorrência, mas sim uma concorrência ordenada, que êle disciplina e orienta.
O nosso regime afasta-se dos dois extremos, ocupando um justo meio têrmo, cuja utilidade é manifesta.
Mas, embora se não trate, no caso do Sr. Dr. Antunes Guimarãis, de uma nacionalização de carácter socialista, certo é que a tradição administrativa do Estado, embora na actualidade assim não aconteça absolutamente, não nos autoriza a ter perspectivas risonhas.
Os homens mesmo, que são sempre homens e portanto com os defeitos da sua própria natureza, podem também ser outros amanhã e tudo se modificar em prejuízo do interêsse da Nação.
Parece-me, na verdade, que o sistema mixto seria o mais aconselhável, ou seja o da organização duma emprêsa em que o Estado entrasse também.
O Sr. Antunes Guimarãis: — V. Ex.ª dá-me licença? O sistema mixto iria desvirtuar as funções do Estado. Desde que o Estado se associasse como capitalista a um empreendimento privado, transformar-se-ia em Estado capitalista. V. Ex.ª admite o Estado capitalista? Não se compreenderia capitalista sem ter como alvo o lucro legítimo, como não compreendo o Estado que, na qualidade de capitalista, procurasse o lucro, quando a sua missão é servir o bem comum. Foi por isso que há instantes, quando respondi ao Sr. Dr. Mário de Figueiredo, eu dissera, quando S. Ex.ª aludiu ao Estado empresário, que só o admitia como Estado bom administrador do nosso património, mas sem mira nos lucros. Repito: só admito a administração desde que se limite a garantir o bem comum, fornecendo-lhe nas melhores condições elementos para a prosperidade dos empreendimentos privados.
Em suma: não admito o Estado capitalista associado a emprêsas privadas.
O Orador: — Emfim, é uma opinião absolutamente respeitável a de V. Ex.ª, mas a verdade é que a administração entregue a organismos autónomos, como, por exemplo, os C.T.T. a Caixa Geral de Depósitos, etc., representa para o Estado uma boa soma de lucros.
O Sr. Antunes Guimarãis: — Mas eu não entendo assim. O Estado tem outra via para cobrar a receita de que carece: é a via fiscal. Não pode cobrar receitas administrando o património nacional. De outra forma desvirtuaria suas altas funções.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Então a solução não é uma solução de organismos autónomos que funcionam na base de emprêsas comerciais. A solução é a solução de um serviço puro do Estado, como por exemplo a justiça.
O Sr. Antunes Guimarãis: — Ao enunciar uma nova base para esta proposta de lei aludi a normas comerciais de que deveria ser dotado o organismo autónomo do Estado ao qual seria confiada a administração do sistema ferroviário; nunca pensei na obtenção de lucros, mas ùnicamente em dotar êsse organismo autónomo com as necessárias facilidades e elasticidade indispensáveis à eficaz administração de um sistema daquela natureza, isto é, o caminho de ferro, expurgando-o das complicações e peias inerentes à burocracia.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Não é como fundo de lucro. É como fundo de equilíbrio económico.
O Sr. Antunes Guimarãis: — Esforcei-me por ser claro. Contudo repito: não admito o Estado administrando o património nacional com mira em lucros.
A associação que vários ilustres oradores têm defendido seria perigosíssima desvirtuação do Estado. Contra tal orientação pronuncio-me absolutamente!
O Sr. Mário de Figueiredo: — Então V. Ex.ª deve pronunciar-se contra o organismo autónomo.
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O Sr. Antunes Guimarãis: — Por agora não direi mais nada, pois não desejo abusar da condescendência do ilustre orador que me permitiu interrompê-lo. Quando se tratar êste ponto na discussão na especialidade acrescentarei, então, mais desenvolvidamente as razões em que apoio esta minha opinião, mas pelo pouco que acabo de dizer e que V. Ex.as tiveram a paciência de escutar parece-me indiscutível que a fórmula mixta transformaria o nosso Estado Novo em Estado capitalista, com todos os inconvenientes de que, infelizmente, existem exemplos...
O Orador: — Assim, ficamos todos esclarecidos e convencidos de que o Sr. Deputado Antunes Guimarãis não é um socialista do Estado nem admite o Estado capitalista. Compreendo bem a idea do Sr. Deputado Antunes Guimarãis, mas na prática parece-me difícil de realizar.
Mas não há dúvida, Sr. Presidente, de que quando se trata das soluções práticas a adoptar o problema é na verdade complexo. Todos temos o mesmo pensamento. Todos consideramos indispensável a preconizada coordenação dos transportes.
É um pensamento comum. Mas, ao reduzi-lo a um articulado em bases concretas, claras, positivas, surgem as dificuldades. Não desejo, porém, ir mais para diante sem me referir novamente a outro ponto que aborda o parecer da Câmara Corporativa. É a desigualdade em que se encontram os transportes automóveis para com os caminhos de ferro, ali destacada com flagrante relêvo.
Já demonstrámos que sôbre a camionagem pesam igualmente grandes encargos tributários. Os números são elucidativos. Mas há mais — há também uma desigualdade manifesta quanto ao regime de fiscalização de horários, de lotações e outros a que a camionagem está sujeita e em que é inflexível a polícia de trânsito. Os autos de transgressão levantam-se a cada passo e as multas são grandes. Com os caminhos de ferro tal não acontece.
Preconiza a proposta a concentração. Quando se fala em concentrações sente-se logo chocada a sensibilidade da Assemblea.
Todos nos lembramos o que ainda se deu há pouco tempo quando se discutiu a proposta de lei sôbre a reorganização industrial.
Concentração voluntária, absolutamente aceitável. Concentração imposta, remédio extremo, só quando os altos interêsses nacionais o aconselhem, e, mesmo nesse caso, remédio perigoso.
Mas a concentração em matéria de transportes parece-me de aconselhar, tudo dependendo da maneira como se efectivar.
A concentração proposta é representada pela fusão das companhias, transformadas numa companhia forte, com várias regalias e direitos que o Estado passa a conceder, maior largueza nas concessões, emfim, todas as possibilidades de êxito. Há neste aspecto do problema, que é matéria da especialidade, muito a considerar, pela sua extrema delicadeza. Será preferível o resgate? manter-se o prazo das concessões? a sua caducidade sucessiva?
Para a camionagem uma outra espécie de fusão se propõe, com divisões regionais, espécie de compartimentos estanques, zonas exploradas por emprêsas em regime de concessão, só admitindo os casos excepcionais em que ela pode transpor os limites dessas regiões.
Perigosa a solução proposta e contra tais perigos é preciso acautelarmo-nos. O perigo sente-o sobretudo quem vive para o interior e goza o benefício público que presta a camionagem às populações dessas localidades, servindo também a economia regional.
Creio bem que êsse ponto merecerá, na discussão na especialidade, a maior atenção da Assemblea.
Há pouco o Sr. engenheiro Mendes do Amaral disse, e muito bem, que tudo dependia na proposta de uma boa administração e de uma efectiva e conveniente regulamentação.
O que é necessário é não asfixiar um dos sistemas em benefício dos outros.
Não há na proposta asfixia nos propósitos, mas pode haver nos processos.
Vou terminar, Sr. Presidente, dizendo o que penso sôbre o assunto. Redigiria o articulado da proposta em três ou quatro bases, sòmente o bastante para fixar directrizes.
Os resultados dependeriam, principalmente, de se estabelecer um plano de sistemas de transportes que compreendessem os caminhos de ferro e os transportes em camião.
Êsse plano geral de organização dos transportes compreenderia a sua coordenação baseada na coexistência dos dois sistemas, que se completariam, nas suas actividades, em benefício da colectividade, sem sobreposição de um sistema sôbre o outro, como está em princípio no enunciado da proposta, tal como o relatório apresenta o problema, mas a que o dispositivo das bases, no meu entender, não corresponde.
Sr. Presidente: termino, reservando-me para na especialidade tratar dêstes vários aspectos da questão.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. José Nosolini: — Sr. Presidente: farei ligeiras considerações à proposta de lei em discussão. Na verdade, os ilustres Deputados que me precederam já estudaram problemas de ordem teórica, já estudaram as conseqüências de ordem prática, desta proposta de lei.
As minhas considerações destinam-se apenas a marcar a minha orientação na especialidade e a posição na votação das bases definitivas.
Esta proposta de lei, pelo seu alto interêsse nacional e pela preocupação séria que a determina, honra o Ministro que a subscreve e merece a nossa atenção cuidadosa, apesar do interêsse que ela já despertou à Câmara Corporativa e ao espírito brilhante que elaborou o parecer.
A primeira pregunta que se poderia fazer nesta quadra, em que as exigências da guerra e os novos inventos aplicados urgentemente originaram uma revolução de transportes, seria a da oportunidade da apresentação desta proposta.
No entanto, a urgência da reorganização dos nossos caminhos de ferro dá resposta perfeita e fácil a esta pregunta.
Todavia as razões de prudência aconselham que se caminhe devagar, se caminhe de maneira a não afectar profundamente os sistemas de transporte que o futuro nos aponta. É talvez por isso que esta proposta, tratando da reorganização de transportes, de uma coordenação de transportes, cuida sobretudo da melhor eficiência dos transportes terrestres, omitindo por exemplo a interferência dos transportes de navegação costeira, dos transportes fluviais e a interferência certa, fatal e próxima dos transportes aéreos.
Como procura a proposta de lei realizar a reorganização de transportes?
Quanto ao espírito que a informa, esta proposta — pelo menos é esta a sua ânsia; veremos se a realidade lhe corresponde — pretende um equilíbrio de justiça, sem sobreposição de um meio de transporte a outro. Quanto à forma, a proposta adopta a concentração das emprêsas ferroviárias e das emprêsas de viação automóvel do serviço colectivo.
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Ora, à luz destas ideas, vamos ver o que são estes meios de transporte no nosso País e como a Administração os tem tratado e como os trata a proposta de lei.
Os caminhos de ferro, com situação financeira difícil, tendo passado, é certo, as horas difíceis da primeira guerra, têm, sob o ponto de vista técnico, uma posição que também não é agradável.
Os caminhos de ferro, com uma penetração restrita no País, têm uma insuficiência manifesta. Há muito que não têm modificado os seus serviços nem o sistema de exploração, nem quanto a rapidez, nem a confôrto, nem a facilidades para o público.
Há de quando em quando uma tentativa, e podemos mencionar a organização do combóio denominado «flecha», cuja realização foi eficiente pelo que diz respeito a resultados técnicos, a velocidade, mas cuja realização, sob o aspecto económico, é talvez já bastante discutível, visto que se comprou material circulante por muito mais de 30 mil contos, quando na altura já havia outras soluções que diversos países europeus tinham adoptado.
Numa palavra: o País, a agricultura, o comércio, a indústria e a população sentem que os caminhos de ferro não satisfazem.
Pelo que respeita à viação automóvel, não podemos dizer que o serviço se mostre perfeito, mas é indiscutível a sua salutar expansão em profundidade e a sua razoável regularidade.
A camionagem tem assim prestado altos e inestimáveis serviços ao País.
Pode citar-se, por exemplo, o desenvolvimento das carreiras independentes, que subiram de 150 para 350, o número total das carreiras, que foi em 1943 de 811, e o total de quilómetros servidos, que ultrapassou, em 1943 também, 12:000.
Isto é o que se verifica em relação aos dois meios de transporte; mas não é o que pensam de si próprios êsses meios de transporte.
E como se tem comportado para com êles a Administração?
A Administração tem seguido a política de defesa dos caminhos de ferro.
Não sei até que ponto será defensável neste período da electricidade e do motor de explosão, que facilitam as descentralizações e a libertação do homem da leva humana para o agregado familiar; não sei até que ponto será defensável entravar estes benefícios sociais; e não sei até que ponto será possível defender o gás contra a electricidade, a mala-posta contra o combóio e o combóio contra o automóvel.
Mas, Sr. Presidente, se ponho a pregunta, não me alargo nesta discussão e aceito o princípio de defesa dos caminhos de ferro.
Vamos então a ver até que medida e como a Administração tem seguido a defesa dos caminhos de ferro.
A Administração tem reagido sôbre os caminhos de ferro no sentido de lhes impor aperfeiçoamentos, no sentido de lhes impor modificações nos sistemas de tracção, no sentido de os obrigar a modernização de processos, a maior rapidez, maior confôrto, emfim, a um serviço prestante e útil? Não.
A Administração tem preferido reagir sôbre a viação automóvel. Reage sôbre a camionagem. E então a Administração impõe à camionagem uma tarifa que não concorra com o caminho de ferro; impõe à camionagem um itinerário que não concorra com o caminho de ferro; impõe à camionagem um conjunto de obrigações que o caminho de ferro se julga autorizado a não respeitar, como se dá, por exemplo, com a lotação e os horários.
Mas dentro desta política se tem vivido menos mal, tendo sido possível uma certa expansão da viação automóvel. Vejamos agora como a proposta de lei quere desenvolver a política de defesa dos caminhos de ferro.
Quererá manter a política seguida até agora? Quererá aumentar as restrições?
A leitura da proposta, a base IV, a constituïção de zonas, criando fronteiras impeditivas de uma circulação una e útil, a limitação de percursos contra os carros de aluguer, a criação e a concessão de facilidades aos caminhos de ferro no caso de percursos deficitários, sem correspondente contrapartida a favor da camionagem, e, direi até — isto não é argumento mas sintoma —, a reacção pública quanto à proposta, agradável e benévola por parte dos caminhos de ferro e alarmada por parte da camionagem e das povoações que ela serve, mostram que o sentido dessa proposta de lei na política de defesa dos caminhos de ferro promete ser de subordinação do transporte por estrada ao transporte ferroviário.
Visto êste aspecto da proposta, analisemos agora quais os métodos que ela adoptou para obter uma melhor coordenação dos transportes em causa.
O princípio fundamental é o da concentração — concentração das emprêsas ferroviárias e concentração das emprêsas automóveis de serviço colectivo.
Devo dizer que, como é pensamento já bem claro desta Câmara, manifestado quando se discutiu a reorganização das indústrias, não acho defensável, não acho aceitável, o princípio das concentrações e, sobretudo, das concentrações violentas.
Mas, pelo que respeita ao caminho de ferro, se pode haver excepções, entendo que a excepção se justifica.
E porquê?
Em toda a parte se tem mostrado útil unificá-los.
Ora a maneira de fazer essa unificação é nas mãos particulares, pela concentração; nas mãos do Estado, pela nacionalização. É no primeiro caso a hipótese francesa; no segundo é a hipótese alemã. E eu não sei se em relação a pequenos países não será de defender uma unificação de maior profundidade, de sorte que se pudesse criar nas explorações um sistema de vasos comunicantes de meios deficitários e remuneradores, mantendo um equilíbrio vantajoso para a exploração única.
Êste sistema seria a ampliação do que se deu, embora para uma cidade, mas servindo milhões de pessoas, em Londres, através do London Passenger Transport Act, de 13 de Abril de 1933.
Mas devo acrescentar que a unificação da rêde ferroviária através da nacionalização não me parecia inconveniente e até a compreenderia tam bem como a de outros meios de comunicação, como os telégrafos e telefones, se, no caso presente, a nacionalização não fôsse altamente dispendiosa.
O resgate era, na ocasião em que se fizeram os contratos, uma obrigação imposta às companhias; mas, mercê das circunstâncias, transformou-se numa regalia. O resgate, hoje, constituïria um prémio interessante que o Estado não está em condições de distribuir.
E a nacionalização importava resgates, bastando dizer que sòmente o do norte e leste poderia custar à roda de um milhão de contos.
O Sr. Mário de Figueiredo: — É melhor não nos responsabilizarmos por quantitativos...
O Orador: — Eu digo a V. Ex.ª que é à roda de um milhão. Mas V. Ex.ª tem outros números a opor-me?
O Sr. Mário de Figueiredo: — Eu continuo a dizer a V. Ex.ª que é melhor não nos responsabilizarmos por quantitativos. Não tenho números que falem só por si e o cálculo não pode fazer-se com base num determinado sistema de rendimento inicial multiplicado por um tanto...
O Orador: — Perfeitamente de acôrdo.
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O Sr. Mário de Figueiredo: — Mais uma vez digo a V. Ex.ª que é melhor não nos responsabilizarmos por quantitativos, tanto mais quanto é certo que a proposta não exclue a possibilidade de ter de recorrer ao resgate para se chegar aos objectivos em vista.
O Orador: — V. Ex.ª dá-me licença? Eu não tenho responsabilidades de Govêrno que dêm interêsse à fixação de quantitativos.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Também eu as não tenho já, mas tenho, assim como V. Ex.ª, responsabilidades como Deputado.
O Orador: — Transijo, mas mantendo o princípio de que é altamente dispendioso o resgate. E continuo as minhas considerações reafirmando que me parece realmente aconselhável que se ponha de parte, até por isso, o sistema da nacionalização.
Temos então o quê? A unificação pela concentração.
E como é que a proposta prevê essa concentração? Prevê-a através duma emprêsa com uma concessão única e com a possível prorrogação das concessões actuais.
Acontece porém que a algumas dessas concessões, estando próximas do seu têrmo e representando de modo geral a base da comparticipação das emprêsas no capital da nova emprêsa, só é possível aproveitar a vantagem da caducidade próxima da concessão e, ao mesmo tempo, o justo aumento da posição do Estado nessa nova emprêsa se a concentração não determinar a extinção das emprêsas actuais, e fazendo reverter a favor dele, à medida que as concessões findarem, as partes de capital que lhes respeitem.
O Sr. Carlos Borges: — Mas isso não é princípio da nacionalização!
O Orador: — O Estado intervém como entidade de direito privado.
Há, portanto, já um princípio de nacionalização...
Mas V. Ex.ª nesse primeiro problema que me põe obriga-me a fazer-lhe esta pregunta: a propriedade de quê?
O Sr. Carlos Borges: — A propriedade da rêde ferroviária, do 1.° estabelecimento, pelo menos. Eu pregunto: as estações, material circulante e tudo mais a quem pertencem? Não ficam a pertencer ao Estado? Não percebo...
O Orador: — V. Ex.ª dá-me licença? É muito fácil de perceber e V. Ex.ª percebe, com certeza. O que eu disse é que, constituída uma emprêsa nova em que entrem diversas com as suas concessões, desde o momento em que se dê a caducidade das concessões...
O Sr. Carlos Borges: — E qual é o resultado da caducidade?
Isso é que V. Ex.ª podia dizer e ficava já tudo esclarecido.
O Orador: — O resultado da caducidade é a cessação da concessão e a reversão de todos os direitos para o Estado.
O Sr. Carlos Borges: — E não são de propriedade?
O Sr. Alçada Guimarãis: — Podem ser ou podem não ser.
O Sr. Carlos Borges: — Mas, perdão. Suponhamos que o Estado deu, por exemplo, a concessão da exploração dos caminhos do ferro da Beira Alta a uma companhia. Essa companhia fez estações, túneis e outras obras. Terminado o prazo da concessão tudo isso reverte para a posse do Estado. Suponho que seja assim, estou a falar por hipótese. Se termina a concessão, se aquilo que pertencia à companhia reverteu para o Estado, em que posição fica o Estado? Não é na de proprietário?
O Sr. Ângelo César: — Se V. Ex.as me dão licença, eu acho que se devia deixar completar o àparte do Sr. Dr. José Nosolini...
Risos.
O Orador: — As considerações do Sr. Deputado Carlos Borges e o àparte...
O Sr. Mário de Figueiredo: — Que V. Ex.ª lhe fez!
O Orador: — ...impediram que eu lhe fizesse a seguinte pregunta: se dada a hipótese da administração de uma sociedade exploradora única, com uma concessão única e com prorrogações das concessões...
O Sr. Mário de Figueiredo: — Se é uma concessão única, como há prorrogação de concessões?
O Orador: — Parece-me que a concessão única pode envolver prorrogação...
O Sr. Mário de Figueiredo: — Se há uma concessão única não há prorrogações.
O Orador: — Então V. Ex.ª pode dizer-me porque é que na proposta se prevê a prorrogação?
O Sr. Mário de Figueiredo: — Mas eu não estou a discutir agora o problema na base da proposta de lei. Estou a discutir a questão como V. Ex.ª a pôs.
O Orador: — Dizia, pois, que achava posição preferível aquela em que se pudesse salvaguardar esta dupla vantagem: não haver prorrogações de concessão e ser possível aumentar a comparticipação do Estado na emprêsa exploradora.
Êste o meu ponto de vista em relação ao problema ferroviário. Vejamos agora o que se passa com os transportes automóveis.
Êste sistema de viação está no nosso País dividido em diversas categorias de carreiras, em transportes de aluguer e transportes particulares.
Os números da Direcção Geral dos Serviços de Viação, os números de 1943, e a sua comparação com os números anteriores mostram que a orientação que preside a estes serviços se pode desdobrar em dois princípios. O primeiro é êste: defesa do tráfego ferroviário; e o segundo a expansão da viação automóvel. Quere dizer que o segundo princípio se desenvolve contìnuamente sem perder de vista a observância do primeiro.
E assim se vê, por exemplo, que as carreiras independentes sobem francamente, vencendo a própria depressão da guerra; verifica-se também que as carreiras afluentes, embora em ritmo mais lento, têm, até 1939, determinada ascensão; as carreiras concorrentes continuam em baixa e as outras mantêm-se no mesmo nivel, mas a sua importância não conta muito.
E pelo que respeita aos transportes de aluguer e aos transportes particulares, se bem que o número se mantenha estável, é difícil uma conclusão, é difícil assentar num princípio, mas o problema da sua concorrência, que está pôsto nos relatórios da Direcção Geral dos Serviços de Viação, esperava apenas uma disposição legal, disciplinadora da concorrência.
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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 169
E quanto aos transportes colectivos, devemos dizer ainda — os números foram recentemente apresentados aqui pelo nosso colega Sr. Querubim Guimarãis — que desde 1934 se operou uma concentração certamente conveniente, mas, sem sombra de dúvida, voluntária e indolor.
Dentro dêstes factos, não se vê bem por que se há-de tomar uma posição violenta, levando ao exagero a política de defesa dos caminhos de ferro. Qual a razão indiscutível que impõe uma concentração violenta? Qual a razão que aconselha que as emprêsas que até hoje têm cumprido e prestado serviços inestimáveis à economia nacional, representando uma notável expansão de iniciativas individuais, sejam compelidas a fundir-se, a perder-se como valores insignificantes em emprêsas de maiores dimensões?
Eu não sei porquê.
O Sr. Carlos Borges: — É a defesa da família, porque na camionagem toda a família trabalha.
O Orador: — Tem V. Ex.ª razão.
É evidente que os transportes automóveis não podem libertar-se das obrigações que uma coordenação de transportes naturalmente impõe. Mas o desenvolvimento da política seguida até agora, com eficiência como se viu, através da Direcção Geral dos Serviços de Viação, o estabelecimento de normas que regulem a prioridade na concessão de novas carreiras, a imposição de alterações de percursos, conforme as necessidades das regiões, a disciplina na concorrência através de tarifas, em função da carga e dos raios de acção dos veículos de aluguer e também dos veículos de carga particulares, constituem elementos suficientes, parece-me, para se obter uma justa coordenação sem entravar o desenvolvimento de um meio de transporte útil e necessário ao País.
Sr. Presidente: esta proposta tem um alto mérito e dela poderão advir altos benefícios para o País; mas não lhe retira o mérito a correcção de alguns exageros que contém e que, resultando, como resultam, da preocupação de realizar o óptimo, têm, no entanto, o inconveniente e o mal próprios de todos os exageros.
Evitar tais exageros é defender a proposta.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — A discussão continua na sessão de amanhã. Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 5 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
Ângelo César Machado.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
Artur Proença Duarte.
José Alçada Guimarãis.
José Pereira dos Santos Cabral.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Pedro Inácio Álvares Ribeiro.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alberto Cruz.
António Cristo.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Ranito Baltasar.
O Redactor — Leopoldo Nunes.
Imprensa Nacional de Lisboa