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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 170
ANO DE 1945
8 DE JUNHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 167, EM 7 DE JUNHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
José Luiz da Silva Dias
SUMÁRIO: — 0 Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 38 minutos.
Antes da ordem do dia. — Foram aprovados os Diários das últimas sessões.
Usou da palavra o Sr. Deputado Antunes Guimarãis, que enviou para a Mesa um requerimento relacionado com a proposta de lei em discussão.
Ordem do dia. — Continuou a discussão, na generalidade, da proposta de lei de coordenação dos transportes terrestres.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Araújo Correia e Clemente Fernandes.
0 Sr. Presidente encerrou a sessão às 16 horas e 52 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 30 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
António Bartolomeu Gromicho.
António Cortês Lobão.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique Linhares de Lima.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pires Andrade.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Alberto dos Reis.
José Clemente Fernandes.
José Dias de Araújo Correia.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
Júlio César de Andrade Freire.
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Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário de Figueiredo.
Pedro Inácio Álvares Ribeiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 48 Srs. Deputados. Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 38 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Estão em reclamação os Diários das duas últimas sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Como nenhum Sr. Deputado deseja usar da palavra, considero-os aprovados.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Antunes Guimarãis.
O Sr. Antunes Guimarãis: — Sr. Presidente: pedi a palavra ùnicamente para enviar para a Mesa o seguinte requerimento:
«Requeiro que a Direcção Geral de Caminhos de Ferro me informe urgentemente sôbre os resultados da exploração dos caminhos de ferro do Estado — Minho e Douro e Sul e Sueste —, melhoramentos realizados naquelas linhas, aquisição de material circulante e outros elementos que possam contribuir para o conhecimento da respectiva situação à data do arrendamento, conforme deve constar dos relatórios de 1922 a 1926 elaborados pela comissão liquidatária dos caminhos de ferro do Estado.
Mais requeiro que me sejam também urgentemente fornecidos elementos idênticos relativos às mesmas linhas desde aquele arrendamento até esta data».
O Sr. Presidente: — Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Araújo Correia.
O Sr. Araújo Correia: — Sr. Presidente: embora divirja de alguns dos princípios que orientam a proposta, desejo, antes de tudo, agradecer ao Govêrno o ter pôsto diante do País, por intermédio desta Assemblea, um problema de tam grande importância e gravidade.
Êle envolve aspectos de diversa ordem, no campo financeiro e económico, no domínio técnico, agrícola, comercial e industrial — e constitue hoje, também, em quási todos os países europeus e americanos, uma delicada questão política.
Tentarei, no que vou expor à Câmara, ser tam objectivo quanto possível. É evidente que, tratando-se de assuntos com projecção em largo espaço de tempo e de obras e explorações a realizar em longos anos, o que se resolver e aprovar hoje não poderá, naturalmente, ser executado pelos homens que agora ocupam o Poder e têm interferência nos transportes. Razão de sobra, mais do que de sobra, para serem acautelados todos os interêsses nacionais, porque, porventura, pode acontecer haver num futuro, mais ou menos longínquo, Govêrnos que não mereçam ao País a confiança do actual.
A dificuldade na resolução do assunto, a sua magnitude, delicadeza e longa projecção no tempo exigem, por conseguinte, que todos aqueles que possam ter ideas sôbre transportes as exponham claramente. Êste é um dos problemas em que as gerações futuras podem pedir responsabilidades às do passado.
Sr. Presidente: qualquer lei sôbre transportes internos tem de encarar, no momento presente, o seguinte:
1) Caminho de ferro;
2) Carreiras de automóveis;
3) Transportes fluviais e de cabotagem;
4) Transportes aéreos.
Coloco em primeiro lugar o caminho de ferro porque, por emquanto, não apareceu qualquer outra modalidade que o possa substituir em alguns dos aspectos fundamentais da vida económica e da defesa nacional. E quem compulsar os elementos já conhecidos sôbre a sua influência no último conflito vê logo as vantagens de possuir uma rêde ferroviária eficaz e apta a servir a defesa do País em qualquer contingência grave. Bastaria isso para se adoptarem as medidas necessárias à reorganização de um instrumento de fomento que, além do mais é, no fundo, uma das sólidas bases em que assenta em grande parte, e ainda hoje, a economia nacional. É no aspecto de defesa e no de transporte de grandes quantidades de produtos, em todas as zonas e a grandes distâncias, que o caminho de ferro afirma a sua superioridade, apenas esmorecida, em certos casos, pela sombra ou concorrência que lhe pode vir a ser oposta pela navegação fluvial. Entre nós essa concorrência há-de ser um facto dentro de duas ou de três dezenas de anos no Douro e no Tejo, se houver um pouco de visão económica.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — As carreiras de automóveis, que tam profundamente afectaram o caminho de ferro desde a outra guerra, sobretudo em pequenos percursos, vieram para ficar. Estou convencido de que não há hoje qualquer possibilidade de as afastar ou até de deminuir a intensidade da sua utilização. Elas constituem um grande instrumento de progresso, sobretudo em distâncias curtas e no desenvolvimento de regiões atrasadas. E o nosso País, por sua configuração e área, adapta-se fàcilmente a êste meio de transporte. Êle é necessário à vida económica nacional e responde em muitos aspectos à comodidade do público. O caminho de ferro não o poderá destronar. Julgo, e o futuro o dirá, que os transportes por automóveis hão-de ainda desenvolver-se mais dentro do País, sobretudo se se materializarem os progressos já anunciados em motores de combustão interna.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Nos longos percursos, de 350 quilómetros para cima, para norte e sul, e até para nordeste do País, aparece nos céus um novo contendor, um novo inimigo do caminho de ferro, que é o avião. Se forem verdadeiras as notícias que até nós chegam, e dentro em breve tudo será esclarecido, parte do tráfego de passageiros será irremediàvelmente desviado para o transporte aéreo. E talvez que mercadorias ricas, que
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agora preenchem as cifras da grande velocidade, também sigam o seu destino por via aérea.
Temos assim, segundo todas as probabilidades, o caminho de ferro enfraquecido, no futuro, em certas regiões pela navegação fluvial e em todo o País pela tracção mecânica e pela aviação. Não há forças, por mais poderosas que sejam, capazes de destruir estas três realidades.
É em face delas, e com a nítida compreensão da sua grande importância, que deve ser encarada a resolução do problema ferroviário português — essencial para a vida económica e até para a defesa da nacionalidade.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — As soluções do problema dos transportes em Portugal, como em qualquer outro país, assentam sôbre a importância e repartição do tráfego: na quantidade de mercadorias e passageiros que é necessário transportar. E a repartição do tráfego pelos diversos sistemas de transporte deverá ter sempre o objectivo de alcançar o melhor rendimento económico, de defender os interêsses gerais do País e de salvaguardar a comodidade do público.
Se fôr possível assegurar estas condições fundamentais, sem sobrecarregar o orçamento do Estado com subsídios, garantias ou desembolsos de qualquer espécie, ter-se-á obtido a solução mais razoável.
Não é possível avaliar, no momento presente, a totalidade do tráfego, por se desconhecerem as mercadorias transportadas pela camionagem de aluguer e particular.
Excluindo-as, os números para 1938 e 1943 são os seguintes:
[Ver diário original]
Estes números revelam a pequeníssima densidade do tráfego nacional e quem examinar as distâncias percorridas verifica também que elas estão abaixo da média, dos países europeus. Somos um país de baixa circulação económica e de pequenos percursos — e ambas estas características enfraquecem os coeficientes de exploração.
Em regime de monopólio, quando outros transportes, por sua insuficiência ou morosidade, não podiam ensombrar o caminho de ferro, ainda êste sistema, embora com dificuldade, se defendia da pobreza do tráfego — que em sua grande parte a êle acorria trazido pela própria necessidade.
Porém, logo que se desenhou no horizonte a ameaça séria do automóvel, estavam contados os dias felizes do caminho de ferro se êste se não adaptasse, em utensilagem, organização e espírito progressivo, às circunstâncias que, de outro modo, irremediàvelmente o levariam à ruína.
Para mal dos nossos pecados foi o que aconteceu em Portugal — como, poderia ter acontecido em outros países se há dez ou quinze anos êles não começassem a aplicar medidas de diversa ordem, incluindo financeiras, que atenuassem o desastre.
Em meu entender não há hoje possibilidades de impedir ainda maior desprestígio dos caminhos de ferro nacionais se não forem adoptadas medidas urgentes que tendam a modificar profundamente a política ferroviária seguida até agora e a repartir melhor o tráfego, de modo a impedir a anarquia e a ineficiência dos transportes.
Torna-se, por isso, necessário encontrar fórmula que possa levar ao seguinte:
1) Melhor rendimento económico;
2) Maiores comodidades para o público;
3) O mínimo possível de sacrifícios para o contribuinte.
Por melhor rendimento económico entende-se melhor aproveitamento de capacidade de transporte, tanto na camionagem como no caminho de ferro.
Por maior comodidade do público querem-se exprimir as vantagens usufruídas pelo transporte rápido e cómodo de mercadorias e passageiros em todas as zonas do País e a preços razoáveis.
Finalmente, as baixas receitas públicas não permitem que o Estado possa desviar somas apreciáveis para uma actividade que, estou convencido, pode ser organizada em condições de se bastar a si própria.
É baseado no que acabo de expor que deve ser procurada uma solução para o problema dos transportes: nas condições do tráfego actual e sua progressiva ascensão, no bom rendimento dos sistemas de transportes, de modo a bem aproveitar o material e a via, na comodidade do público — que é factor de fomento de primeira grandeza — e, finalmente, no mínimo de sacrifícios financeiros para o contribuinte.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: a proposta de lei só considera os transportes ferroviários e os dos automóveis. Não alude, sequer ao de leve, nem à navegação fluvial, que será conseqüência da regularização dos rios, já aqui largamente tratada e que, a despeito de todos os erros que, parece, vão ser consentidos, há-de ter um dia sua lógica solução, nem ainda à dos transportes aéreos. O cepticismo de muita gente quando, claramente, se desenhou o progresso dos automóveis levou em parte à situação actual do caminho de ferro; o cepticismo e incompreensão de muita gente, agora, perante a influência da navegação fluvial em certas zonas e dos transportes aéreos, pode levar a situação idêntica ou pior os caminhos de ferro daqui a trinta anos, até no caso de serem tomadas medidas drásticas no sentido de reduzir o transporte por automóveis.
Haveria assim conveniência em considerar os diversos problemas de transportes em conjunto: o problema dos caminhos de ferro está ligado ao dos rios, na parte relativa ao fornecimento de energia para a sua electrificação e na parte relativa ao próprio transporte pelos rios, e está também ligado à navegação aérea, porque esta lhe irá roubar, dentro dos próximos anos, uma parte valiosa do seu tráfego. Não admira, por isso, que interêsses ferroviários em países como a Inglaterra e os Estados Unidos — um de pequenos percursos, outro de grandes percursos — estejam envidando todos os esforços no sentido de obterem licenças para a exploração de linhas aéreas; e noutros, como em França, seja conhecida a sua influência na questão de centrais hidro e termo-eléctricas.
É agora o momento de aproveitar a experiência dos outros nesta matéria.
Tanto quanto se pode depreender do articulado da proposta e do parecer da Câmara Corporativa, na parte respeitante a caminhos de ferro, o problema põe-se assim:
A situação dos caminhos de ferro é precária. Para a melhorar, as emprêsas actuais, de via larga e estreita, devem fundir-se. A que resultar da fusão poderá receber do Govêrno as regalias seguintes: alargamento dos prazos das concessões até ao ano de 2017 (parecer da Câmara Corporativa) e auxílio do Govêrno no sentido de obter meios financeiros para aperfeiçoar a exploração.
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E isto é completado por uma série de medidas que tendem a desviar para o caminho de ferro parte do tráfego da concorrência de automóveis.
Em troca, o Govêrno promoverá, e espera, o aperfeiçoamento técnico e comercial dos transportes ferroviários.
Sr. Presidente: vejamos, em primeiro lugar, a posição do Estado.
Conhecem-se os prazos das actuais concessões. A mais valiosa — a do norte e leste — termina daqui a catorze anos, em Maio de 1959.
Qual é o valor desta concessão? Partindo da base das suas receitas líquidas, digamos nos últimos dez anos, e considerando que ela caduca e reverte para o Estado apenas com o pagamento do material circulante e que há-de haver aumento do tráfego por virtude da sua posição geográfica, além do natural desenvolvimento da vida económica que resultará de leis já aqui votadas e de outras, partindo de tudo isto, qualquer actuário pode calcular o valor da concessão durante o período a que aludi. Êle é muito grande, se traduzido em cifras.
Temos de considerar, porém, o sistema ferroviário em conjunto e sabemos haver outras concessões deficitárias no momento presente, tanto de via larga como de via estreita, que caducaram muito mais tarde do que aquela.
Duas cousas se podem dar: ou o País se não desenvolve e mantém a fraca, fraquíssima, circulação económica de agora e essas linhas poderão continuar a ser deficitárias, ou então, como tudo leva a crer, haverá sensível melhoria nas condições de vida económica, com aumento de tráfego, e essas linhas poderão vir a equilibrar-se e até dar lucro. E quem examinar o coeficiente de exploração, nos últimos anos, verifica logo que bastou um aumento de tráfego, relativamente pequeno em números absolutos, para, melhoria sensível no coeficiente de exploração, embora em certos casos haja necessidade de fazer correcções, no que diz respeito às despesas de manutenção, que podem ter sido insuficientes, mas que têm contrapartida em maiores despesas nos custos de materiais e outros por virtude da guerra.
Vê-se, pois, que o alargamento de prazos de concessões pode vir a dar-se nalgumas muito valiosas e noutras de muito menos importância, até agora francamente deficitárias. Mas pode também prever-se, neste último caso, a melhoria apreciável na exploração por virtude do desenvolvimento económico do País.
Essa melhoria será consideràvelmente acentuada se forem introduzidos os aperfeiçoamentos técnicos e outros há muito exigidos e que, com capitais obtidos por influência do Estado, podem agora ser realizados.
Assim, a primeira grande conclusão que se extrai do exame das condições em que vive o sistema ferroviário é que se torna indispensável, em qualquer projecto de remodelação, acautelar o interêsse do Estado, que é representado, em prazo de tempo curto, pelo valor da concessão norte e leste, que para êle reverte dentro de catorze amos, sem qualquer espécie de pagamento além do material circulante, e pelas suas próprias linhas, que hoje são exploradas em regime de arrendamento e, parece, com deficits avultados.
E a segunda grande conclusão é descobrir a fórmula que permita incluir em qualquer organismo ou sociedade exploradora do sistema ferroviário português, como comparticipação do Estado, o valor das concessões que lhe pertence, por virtude de contratos. O que equivale a transferir para o Estado, no fim dos prazos, os direitos e obrigações de linhas concessionadas.
Sr. Presidente: seguindo o caminho trilhado por outros países, a proposta aponta, como melhor meio de resolver o problema ferroviário, a concentração de todas as linhas e aconselha a fusão das actuais emprêsas. Admite, por isso, o princípio da unidade de exploração.
Parece ser idea de muita gente que esta unidade trará grandes economias. Em meu entender, e isso desejo acentuar, o que dela poderá advir não há-de corresponder às opiniões mais optimistas sôbre esta matéria. As economias que hão-de derivar da unificação, sem outras medidas, não resolveriam o problema. Êle é, como já disse, um problema de tráfego, de administração e organização e de finanças.
As próprias circunstâncias em que funciona o sistema ferroviário, a falta de ligação entre certos troços, a diferença de bitola de linhas independentes e outras razões reduzem os benefícios da concentração. Deve, porém, dizer-se que a rêde não é extensa — uns parcos três milhares e meio de quilómetros — e que é possível fazer economias na sua exploração depois de unificadas. Muitas ou poucas, elas ajudam a situação financeira. É, pois, de aprovar a unificação numa só emprêsa dotada dos meios financeiros indispensáveis ao reequipamento e a obras inadiáveis em muitos troços das linhas.
Mas isto leva-nos logo ao exame de outra disposição de alta importância contida na proposta de lei, que diz respeito ao financiamento das melhorias que é indispensável introduzir na exploração.
Não é fácil, Sr. Presidente, e pode até dizer-se ser impossível no momento presente, juntar os capitais indispensáveis à reconstrução e ao equipamento da rêde ferroviária sem auxílio do Estado.
As somas são vastas, podem alcançar cifras que se contam por milhões de contos a despender numa dezena de anos, e o regime das actuais emprêsas é deficitário na sua maior parte. Por outro lado, a mais valiosa das concessões deverá ser entregue ao Estado dentro de catorze anos. Se o principal e mais valioso instrumento de transporte passa para a posse do Estado em tam curto espaço de tempo e se os meios financeiros necessários para a melhoria da exploração são muito grandes e ultrapassam as possibilidades da iniciativa, particular, vê-se logo o papel de primeira grandeza e responsabilidade que compete ao Estado.
Êle deve entrar na nova aventura dentro de anos com o principal elemento de exploração — a linha norte e leste — e tem de entrar agora, directa ou indirectamente, com parte dos capitais necessários aos progressos exigidos, os quais se podem calcular em alguns milhões de contos, a despender em curto prazo de tempo. Há necessidade, por isso, de claramente acautelar o interêsse do Estado, tanto no que diz respeito ao método de transferência para a emprêsa exploradora unificada das concessões que venham a caducar como ao emprêgo dos dinheiros obtidos pela directa ou indirecta influência do Estado e sob sua, responsabilidade. Há vantagens, por isso, também em verificar qual o melhor meio de aplicar os capitais obtidos por interferência do Estado.
Em meu entender há um só — que é o delineamento de um plano minucioso, a executar em prazo de tempo largo, embora limitado, que estude e dê solução às questões de natureza económica, técnica e financeira suscitadas por um programa concreto de realizações.
E o financiamento dêsse plano só deverá ser uma realidade depois de reunidas todas as emprêsas numa única exploração, na qual o Estado irá ocupar o seu lugar, progressivamente, à medida que forem expirando as concessões.
Vozes: — Muito bem!
O Sr. Mário de Figueiredo (interrompendo): — Como?
0 Orador: — Isso vem apontado no parecer; portanto, se V. Ex.ª se quiser dar ao trabalho de o ler...
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O Sr. Mário de Figueiredo: — Eu conheço o parecer tam bem como V. Ex.ª...
O Orador: — Mas era questão de V. Ex.ª o consultar mais uma vez...
O Sr. Mário de Figueiredo: — Por que não toma V. Ex.ª a responsabilidade de responder agora?
O Orador: — Mas essa resposta está dada.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Não seria muito mais simples e fácil V. Ex.ª, em face das preguntas, ir esclarecendo?
O Orador: — Eu permito-me fazer a minha exposição, mas sobretudo prefiro uma cousa: é que V. Ex.ª amanhã, depois de tornar a ler o parecer, exponha o seu modo de ver.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Está bem, e tenha V. Ex.ª a certeza de que não o impedirei de fazer as preguntas que entender, tais como esta: como é que monta a concessão que está a imaginar? E eu responderei: é assim...
Agora estou eu a preguntar: como é que V. Ex.ª monta essa concessão? E V. Ex.ª responde-me: isso é para depois...
Não acho bem.
Eu li o parecer da Câmara Corporativa, mas V. Ex.ª recusa-se a responder à minha pregunta: como é que se monta o método apontado?
O Orador: — Em que sentido emprega V. Ex.ª a palavra «monta»?
O Sr. Mário de Figueiredo: — Quero dizer: como o organiza?!...
O Orador: — É muito simples. Faz-se uma sociedade constituída por todas as sociedades...
O Sr. Mário de Figueiredo: — E as diferentes emprêsas ficam ou desaparecem?
O Orador: — Podem ficar ou desaparecer. Suponho que ficam e que podem ficar...
O Sr. Mário de Figueiredo: — Com uma parte do capital da nova emprêsa? São apenas parte da nova sociedade? V. Ex.ª diz que há uma nova sociedade que tem a função de substituir todas as emprêsas. Eu pregunto: as concessionárias desaparecem?
O Orador: — Podem ficar ou desaparecer. Eu não tenho uma solução para êsse assunto. Há duas soluções: ou ficam ou desaparecem...
O Sr. Mário de Figueiredo: — Mas qual é a opinião de V. Ex.ª?
O Orador: — Assim não nos entendemos. Eu não chego a concluir a minha explicação, porque V. Ex.ª não me deixa falar. As sociedades ferroviárias podem unir-se numa única ou podem ficar suprimidas...
O Sr. Mário de Figueiredo: — Já estamos longe do princípio.
O Orador: — Se V. Ex.ª quiser ter cinco sociedades, podem ficar cinco sociedades cotistas; mas, se elas entenderem que não vale a pena ficarem cinco, podem fundir-se numa única.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Mas fica então essa única como concessionária?
O Orador: — Não.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Mas êste é que é o problema de crise.
O Orador: — Assim não nos entendemos.
Constitue-se uma sociedade exploradora, que é formada por partes de capitais pertencentes a cada uma das actuais emprêsas ferroviárias detentoras das concessões. Elas podem ficar nas condições actuais ou, se entenderem que são muitas, podem fundir-se, ficando exactamente nas mesmas condições relativamente à nova sociedade.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Não entendo.
Se a nova sociedade é a expressão da consolidação das anteriores, como é que se concebe uma sociedade nova constituída só por uma dessas?
O Orador: — Êste assunto não tem interêsse de qualquer espécie, pois não importa que elas se fundam ou não.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Eu volto à minha pregunta: eu tenho cinco sociedades que vão constituir, com o seu capital, uma nova sociedade, que pode ser de qualquer tipo, menos anónima, evidentemente, porque o nosso direito não o permite com menos de dez accionistas.
A nova sociedade é uma sociedade exploradora apenas. As sociedades que existem mantêm-se, ao mesmo tempo, cotistas da nova e concessionárias, ou só cotistas, passando a concessão para a nova?
O Orador: — Transmitem-lhe o direito de exploração.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Mas elas não têm só o direito de exploração, têm também o de concessão. Ficam então cinco, ou quantas são, sociedades concessionárias e cotistas da nova sociedade?
Posta esta pregunta, qual a função da nova sociedade e qual a função das antigas sociedades concessionárias? Toda a obra do 1.° estabelecimento...
O Orador: — Não, não!
O Sr. Mário de Figueiredo: — Então não entendo...
O Orador: — V. Ex.ª não entende porque não quere entender.
Temos de considerar a despesa do 1.° estabelecimento e da manutenção.
Como é que a nova sociedade exploradora vai organizar o problema das despesas do estabelecimento? No relatório do Fundo especial de caminhos de ferro apresenta-se um caso idêntico.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Já sabemos. É a Direcção Geral de Caminhos de Ferro, é o Fundo especial de caminhos de ferro, que faz as despesas do 1.° estabelecimento.
Na mesma ordem de ideas, quem faria as despesas do 1.° estabelecimento seriam as sociedades concessionárias que ficam. E quem faz as despesas de exploração é a nova emprêsa. V. Ex.ª, afinal, ao que chega é apenas a um sistema de manter os actuais conselhos de administração. Quere uma emprêsa exploradora que seja ao mesmo tempo concessionária?...
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O Orador: — V. Ex.ª está numa visão errada das cousas...
Vozes: — Apoiado, apoiado!
O Orador: — Quanto à função dos conselhos, temos de distinguir. O que tem a fazer o conselho de administração? Tem de considerar por um lado uma nova sociedade exploradora e de debitar por outro as sociedades antigas.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Quere dizer: continua o débito a correr por conta das sociedades concessionárias. Temos, portanto, que a quem cabem as despesas do 1.° estabelecimento é às sociedades concessionárias. Com que meios?
O Orador: — Mas há dois tipos de despesas do 1.° estabelecimento.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Não falei em dois tipos. Só falei num.
O Orador: — V. Ex.ª está a dizer que as despesas do 1.° estabelecimento pertencem integralmente à sociedade concessionária.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Evidentemente.
O Orador: — Há dois casos a resolver segundo esta sociedade.
Um, são as despesas do 1.° estabelecimento e que não dizem respeito às concessões.
Se amanhã se electrificar a linha de Sintra ou a linha de Vila Franca, isso não faz parte da concessão. A electrificação dessas linhas é uma cousa completamente diferente daquilo que a companhia concessionária tem de manter e fazer de novo.
O Sr. Mário de Figueiredo: — V. Ex.ª nisso está completamente equivocado.
O Sr. Presidente: — Peço a V. Ex.ª a fineza de evitar mais interrupções.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Faço-o, por obediência a V. Ex.ª
O Orador: — Mas, continuando, asseguram-se por êste modo o respeito pelos contratos, a defesa do interêsse legítimo do Estado e a aplicação dos fundos naquilo a que são destinados e impedem-se abusos ou especulações de qualquer natureza que porventura possam querer insinuar-se em negócios de tam grande vulto.
Estas são as minhas ideas sôbre a parte relativa à questão ferroviária. Elas alteram sensìvelmente a proposta de lei e por isso foram traduzidas em propostas de substituïção, que enviarei para a Mesa.
E quanto aos transportes por automóveis? Somos um país pequeno, insuficientemente desenvolvido, com leve densidade de tráfego. O exame das directrizes dêsse tráfego imediatamente nos conduz à consideração do aproveitamento económico da capacidade dos dois instrumentos actuais — o caminho de ferro e o automóvel — e a prever a influência daqueles que hão-de aparecer amanhã. Sendo um país de pequena circulação económica, e de baixa densidade de tráfego, também sofremos de desequilíbrios no comércio externo.
Ora tanto os caminhos de ferro como os automóveis vivem de materiais e combustíveis importados quási totalmente. O problema do equilíbrio de transporte entre um e outro sistema está indubitàvelmente ligado ao equilíbrio do nosso comércio externo. Quere dizer: é contraproducente para o interêsse nacional desperdiçar uma excessiva capacidade de transporte. Se fôr possível elevar o coeficiente de utilização da capacidade transportadora, ter-se-ão atingido três objectivos valiosos: maior rendimento para as emprêsas exploradoras e, conseqüentemente, mais possibilidades de melhorias no confôrto do público, menores importações de combustíveis e de materiais por haver melhor aproveitamento da capacidade de transporte e, finalmente, serviço mais eficiente por ser possível organizar os horários e os percursos de modo a satisfazer as necessidades do público.
O que acabo de dizer implica logo o estudo cuidadoso do problema, no sentido de aproveitar ao máximo a capacidade de transporte e a satisfazer o público e as exigências da economia nacional.
Obriga, por isso, a um plano de conjunto, bem estudado, que inclua o estabelecimento de horários e de carreiras que, com bom coeficiente de exploração, atendam a comodidade do público. Desloca o problema para um plano diferente daquele em que muitas vezes aparece na discussão, que é o plano do interêsse nacional e não o das emprêsas ferroviárias ou de camionagem.
O que se torna, por conseqüência, urgente e necessário é o delineamento de um plano de transportes que sirva convenientemente e a preços razoáveis o público, que aproveite todas as possibilidades do caminho de ferro e do automóvel, que permita uma concorrência regrada, mas não excessiva, e que tenha também como objectivo evitar o consumo improdutivo de combustíveis e outros materiais totalmente importados.
Vê-se logo que estas ideas estão em discordância com o estabelecimento de zonas que parece não poderem ser de interêsse em país pequeno e pouco desenvolvido, com economia profundamente entrelaçada e possuidor de rêde ferroviária insuficiente. E também do raciocínio se conclue que há necessidade de disciplinar todos os transportes, incluindo os de aluguer e outros, colocando-os dentro dos princípios gerais que orientam a economia interna.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Tudo, em meu entender, se pode alcançar pela simples modificação de algumas das bases da proposta de lei, no sentido de nivelar os encargos de cada um dos sistemas transportadores, com a aplicação de coeficientes progressivos, do que resultará virem a ser feitos, em grande parte, pelo caminho de ferro os transportes de mercadorias a grandes distâncias, como tudo aconselha que seja, e os de menores percursos caberem à camionagem, sem tolher a ninguém o exercício de qualquer transporte a qualquer distância, como é necessário, indispensável e justo, por haver mercadorias que isso exigem.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — Lembro a V. Ex.ª, Sr. Deputado Araújo Correia, a vantagem de enviar para a Mesa as propostas de substituïção a que aludiu no seu discurso, a fim de as mesmas serem publicadas no Diário das Sessões para serem conhecidas o mais depressa possível de toda a Assemblea.
O Sr. Araújo Correia: — Logo que termine de as redigir enviá-las-ei para a Mesa, o que espero seja breve.
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O Sr. Clemente Fernandes: — Sr. Presidente: a lei em discussão é sem dúvida das que mais interessam ao desenvolvimento do País.
Sem bons meios de comunicação não é possível desenvolvimento económico, o que justifica e explica o interêsse com que o País a aprecia.
A Câmara Política tem por obrigação traduzir as aspirações e necessidades dos povos, para, pesadas e medidas, discutir a forma de lhes dar realização.
Se a hora que passa, atenta a pobreza e penúria a que chegaram os meios de transporte, é, no dizer de alguns, o momento oportuno para definitivamente os orientar, eu, cheio de receio, talvez fôsse de opinião que melhor seria aguardar mais algum tempo, para, depois de conhecidos os progressos técnicos que a guerra nos proporcionou, melhor avaliarmos da solução do problema.
Como me falta a autoridade de técnico, não farei de tal modo de ver questão fechada o, concordando em princípio com a coordenação, direi ao de leve e sôbre alguns aspectos o que sôbre ela se me oferece.
Estão em causa o carril e o volante, e ao Estado, mesmo em matéria económica, não é indiferente a luta de classes ou emprêsas, pelo que lhe compete providenciar no sentido de conseguir o desenvolvimento de tudo quanto represente utilidade para a Nação.
É à luz dêste critério que o problema tem de ser visto, é em obediência a êle que a Câmara tem de se pronunciar.
Se o caminho de ferro representa uma massa de riqueza pública, que bem pode classificar-se das grandes valias do património nacional, a verdade é que essa riqueza e essa valia só para nós têm interêsse emquanto corresponderem às necessidades económicas do País, emquanto satisfizerem cabalmente o interêsse que o País tem de, por meio rápido, cómodo e económico, transportar pessoas e mercadorias.
No dia em que o progresso descobrir outro meio mais célere, no dia em que o progresso descobrir outro meio mais completo para neste capitulo satisfazer as necessidades da Nação, embora represente prejuízo sério abandonar uma grande riqueza, a realidade da vida impõe-nos a actualização, sob pena de cristalizarmos em situação que nos deprime, envergonha e depaupera.
Os defensores do carril, agarrados ao argumento de que foi com êle que nos encontrámos na guerra, pretendem valorizá-lo a ponto de lhe reclamarem situação de vantagem, que em meu modo de ver se não explica.
Isto não quere dizer que eu seja contra as medidas que tendam a conservá-lo e valorizá-lo, embora com sacrifício pecuniário da Nação, porque no momento que passa reconheço-o ainda necessário e útil, mas insurjo-me contra a idea de que essas medidas só serão eficazes se eliminarem a concorrência dos outros meios de transporte.
Ao carril compete o seu lugar e tem de lutar actualizando-se; à camionagem compete o seu lugar e tem de trabalhar desempenhando a função que a colectividade lhe reclama.
Sair dêste dilema e dar preferência legal a qualquer dêles significaria dar-lhe uma protecção que a Nação repudia, significaria comprometer o desenvolvimento da economia nacional.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — De facto, um olhar retrospectivo mostra-nos que não vai longe o tempo em que a maior aspiração local se traduzia em caminho de ferro à porta, e nesse sentido se orientaram a política, forças vivas e realidades económicas de então.
Hoje é outra a aspiração das gentes.
O progresso demonstrou que um outro meio de transporte, mais rápido, mais cómodo e até certo ponto tam eficaz, era capaz de substituir o velho mastodonte, a ponto de ao público proporcionar a vantagem de, com menor risco e mais celeridade, satisfazer as necessidades presentes.
E à aspiração do carril sucedeu-se a da boa estrada, porque ela, melhor do que aquele, lhe dava estímulo a que se desenvolvessem a agricultura, o comércio e a indústria.
O assunto é tam palpável e evidente que o próprio Estado abandonou algumas obras já iniciadas, muitas despesas já feitas.
Em raciocínio sereno, temos de reconhecer que muitos produtos só podem convenientemente circular desde que, mesmo em concorrência com o caminho de ferro, se permita e ampare a livre circulação da camionagem. Estão nestas condições o peixe, as frutas, as hortaliças e todos os géneros que fàcilmente se deteriorem. Continuam nestas condições todos os objectos que, não podendo transportar-se pelo caminho de ferro sem grave risco, vêem êsse risco muito atenuado ou eliminado fazendo-se o transporte com o cuidado, interêsse e carinho que no automóvel se lhes pode dispensar, já reduzindo ao mínimo os trasbordos, já caminhando de harmonia com as circunstâncias que cada caso especial aconselhe.
Contrariar estes princípios parece-me contrariar a ordem natural das cousas, pelo que não posso aceitá-los.
Se estes e idênticos argumentos servem para demonstrar a necessidade da camionagem, mesmo em concorrência com o caminho de ferro, em relação às regiões mal servidas por êste e onde êle não é capaz de satisfazer as necessidades actuais, o argumento colhe por maioria de razão.
De facto, só há concorrência onde dois ou mais elementos sejam capazes de, cada um por si só, satisfazerem as necessidades da região.
Por isso, embora em certa e determinada região haja caminho de ferro, se êste fôr insuficiente não podemos dizer que a camionagem lhe faz concorrência, pois ambos são precisos como elementos essenciais ao progresso o ao desenvolvimento económico da Nação.
Como, sabendo nós que no País há regiões em franco progresso e insuficientemente servidas do caminho de ferro, podemos admitir que venha a ser fixada uma regra imutável, um princípio que necessàriamente tem de levar à ruína quem quere trabalhar em benefício próprio e da colectividade?
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Trás-os-Montes, região afastada dos grandes centros de consumo, está presentemente servida por linhas de via reduzida, absolutamente incapazes de darem escoante às necessidades actuais, quanto mais às que o futuro lhe oferece.
De facto, antes e durante a guerra, no período da safra intensa, a linha do Corgo foi sempre insuficiente para, na época normal, exportar a batata da região, o que ocasionava grandes apreensões e maiores prejuízos.
No período da economia liberal, em que o preço se formava através da lei da oferta e da procura, a região nortenha, atentos os encargos com que a mercadoria chegava ao consumo, só podia ir buscar compensação para o seu produto — a batata — desde que com paciência esperasse que se esgotassem ou deteriorassem os stocks da beira-mar e conseqüentemente se pudesse verificar uma alta no preço que lhe pagasse o transporte e a perda em peso que é normal verificar-se.
Até então era antieconómico vendê-la.
Como, no geral, esta circunstância só se verificava de Dezembro em diante, necessário se tornava exigir ao
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caminho de ferro um esfôrço com que não podia, um esfôrço que todos os anos punha em crise a lavoura da região.
Devo acrescentar que o caminho de ferro era nesta safra coadjuvado pela camionagem, então no seu apogeu de desenvolvimento, e nem ambos eram capazes de convenientemente satisfazerem as necessidades.
Tal estado de cousas levou-me a, ponderando o assunto, apresentar ao último Congresso Transmontano uma tese em que preconizava, como meio para atenuar a crise, lançar mão in loco da indústria transformadora para o aproveitamento de amidos.
A guerra, com todas as suas conseqüências, veio alterar a ordem natural das cousas, e a crise, que até então se apresentava como de superprodução, passou a deficitária, o que fez suspender ou excluir o remédio anteriormente previsto.
De facto, com a guerra o produto rareou e o tabelamento, fixando um preço que, contra a ordem natural, quási se mantém uniforme para toda a campanha, inverteu o problema, compreendendo-se fàcilmente que quem mais tarde vender mais perde, pelo que a todos veio o desejo e a aspiração de vender quanto antes.
Como o mercado por sua vez recebe desde logo o produto, as condições de transporte melhoraram porque, em vez de ao caminho de ferro se exigir todo o esfôrço entre Dezembro e Abril, como era tradicional, passou a exigir-se-lhe êsse esfôrço num período muito mais largo, êste ano entre Julho e Maio, o que conseqüentemente lhe devia dar possibilidade de melhor suportar o encargo.
Além disso, Montalegre, centro produtor por excelência, que até aqui fazia o transporte pela linha do Corgo, de onde dista cêrca de 40 quilómetros, reconhecendo esta incapaz de satisfazer as suas necessidades, desviou-o para Braga, de onde dista 112 quilómetros.
Chaves, por sua vez, para descongestionar, já êste ano se viu na necessidade de desviar parte do seu movimento para Mirandela e Vila Pouca de Aguiar, com pesado encargo de camionagem.
Pois nem assim o caminho de ferro foi capaz de suportar o esfôrço que se lhe exigia, o que se reflectiu em enormes prejuízos, verificando-se o contra-senso de quási no fim da época, isto é, no período da maior escassez, o preço se aviltar na origem.
Quere dizer: olhado o problema através dos factos, deparamos com êste dilema: antes da guerra, como era curto o período para o transporte, o caminho de ferro não lhe dava vazão; durante a guerra, e apesar de muito alongado e aliviado o período de transporte, o caminho de ferro continua a não lhe dar vazão.
Mais algumas explicações acabarão de pôr o quadro no seu verdadeiro lugar.
A região está em franco e entusiasta desenvolvimento agrícola, o que fàcilmente se alcança pondo em destaque os dados já esboçados e outros que ainda é conveniente evidenciar.
Não obstante a linha do Corgo ter sido aliviada em relação ao escoamento da batata de Montalegre, região que normalmente devia servir, visto dela distar apenas 40 quilómetros, emquanto que Braga dista 112; não obstante Chaves ter desviado algum movimento para Mirandela e Vila Pouca de Aguiar; não obstante, para esgotar os produtos colhidos, se ter gasto na safra finda mais do dôbro do tempo que normalmente se gastava (antes da guerra Dezembro-Abril, na safra finda Julho-Maio), a linha continua insuficiente, o que equivale a dizer que foi nítido o progresso agrícola da região, a qual se debate apenas com uma pavorosa crise de transportes.
Se, por outro lado, ponderarmos que na região que tem por centro Chaves em 1943 se colheram 400:000 quilogramas de batata-semente, em 1944 cêrca de 2.000:000 e para o ano presente se presumem 4.000:000; se ponderarmos ainda que a área reservada às restantes culturas foi também largamente aumentada, ficamos de sobreaviso e a conjecturar larguíssimas dificuldades para o escoamento dêstes produtos.
Se, finalmente, ponderarmos que na província está previsto um largo plano de colonização, pelo aproveitamento de baldios, e em estudo no distrito de Bragança um largo plano de aproveitamentos mineiros, completa-se o quadro da dificuldade de transportes, o qual, para ficar perfeito, deve ainda elucidar-se com os números que a seguir se publicam.
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Plano de aproveitamento de baldios reservados pela Junta de Colonização Interna nos distritos de Vila Real e Bragança
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Analisando-os, vemos que na província de Trás-os-Montes está estudado o aproveitamento de 125:944 hectares de baldio, dos quais 10:553 seriam aplicados à cultura intensiva, 3:610 à formação de casais agrícolas, 33:763,5 continuariam no logradouro comum, 3:407 passariam a logradouro comum cultivado, 8:298,5 destinar-se-iam a glebas florestais e, finalmente, 71:605,5 passariam ao povoamento florestal.
Com êste vasto plano seriam beneficiadas 14:326 famílias, das quais 13:849 receberiam glebas e 477 casais agrícolas com a área aproximada a 6 hectares cada uma.
Está ainda calculado que pela passagem dêstes terrenos ao domínio particular o Estado receberia anualmente a contribuïção de 876.356$.
Para a grandeza dêste empreendimento ficar completa deve ainda analisar-se o quadro referente às presumíveis colheitas e seu valor, do qual nìtidamente se conclue que pelo seu aproveitamento a economia nacional seria anualmente beneficiada com a produção de 7.615:500 quilogramas de batata (a suficiente para alimentar a cidade do Pôrto durante três a quatro meses), 5.722:355 quilogramas de centeio, 382:525 quilogramas de milho, etc., tudo na estimativa de um aumento de rendimento anual de 10:463.180$80.
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Mapa elucidativo das colheitas previstas e seu valor pelo aproveitamento de baldios colonizáveis nos distritos de Vila Real e Bragança
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Podia ainda rectificar que, como se vê dos quadros transcritos, os rendimentos foram calculados à base de $50 por quilograma de batata e $70 por quilograma de centeio e milho, preços que as condições actuais elevaram para mais do dobro, pelo que, actualizando-os, poderíamos sem rebuço afirmar que o rendimento ultrapassaria em muito a casa dos 20:000 contos anuais.
A grandeza desta obra serviria para beneficiar 14:326 famílias pobres da região e colocar excessos demográficos que noutras se verificam.
Mas como é possível executar tal plano sem que um regular e normal serviço de transportes o auxilie e facilite?
Se além dêste plano exclusivamente agrícola salientar que, no aspecto mineiro, há em estudo no distrito de Bragança um outro que, pelos cálculos mais favoráveis, precisa para se desenvolver de meios mais favoráveis do que os que hoje lhe fornece a via larga, como posso admitir restrições que dificultem os transportes, quando todos são poucos para o engrandecimento da prosperidade da economia nacional?
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Ante tam duras realidades, pregunto:
Deverá a Câmara votar um princípio de coordenação que, restringindo a camionagem de aluguer a um raio de 50 quilómetros, asfixiará o progresso e franco desenvolvimento de regiões longínquas até hoje desprezadas?
Consentir em tal, parece-me, seria desconhecer as realidades da vida e as necessidades do País, pois a província de Trás-os-Montes, região longínqua, está pèssimamente servida de vias férreas e só tem condições de progresso se se facilitar e amparar a camionagem de aluguer e restantes meios de transporte.
Para concluir, mais algumas breves considerações:
Especialmente em Trás-os-Montes e Alentejo, regiões de fraca densidade de população, os concelhos, embora limítrofes, distam por vezes mais de 50 quilómetros, sendo por isso impossível manter entre êles por camionagem de aluguer, a circulação de mercadorias.
Dois exemplos vão evidenciar o contra-senso.
Entre Vinhais e Chaves, concelhos limítrofes, distam 68 quilómetros.
Como à face da proposta não era possível transitar entre êles a camionagem de aluguer, segue-se que, a quem interessasse, teria de despachar a mercadoria pelo caminho de ferro e então teria de percorrer cêrca de 100 quilómetros até à Régua, cêrca de 30 da Régua a Tua, cêrca de 135 de Tua a Bragança e por fim mais 30, 40 ou 50 de camioneta, conforme o ponto do concelho aonde se dirigisse.
Quere dizer, por não poder andar 68 quilómetros de camioneta, iam percorrer-se 280 de caminho de ferro, com quatro trasbordos e mais 30, 40 ou 50 de camioneta, isto é, ao todo 300 a 330 quilómetros.
É isto aceitável?
O Sr. Viterbo Ferreira: — É uma hipótese que V. Ex.ª põe, mas eu suponho que o bom senso a exclue. Não cabe na cabeça de ninguém que na lei possa ficar uma cousa dessas. V. Ex.ª deve fazer justiça a quem vai regulamentar a lei, e a própria base diz que, em regra, o raio de acção será de 50 quilómetros. É, pois, apenas como regra, que neste caso teria de ser necessàriamente exceptuada.
O Orador: — Como está aí um número, é em relação a êle que me refiro, mas se eu tivesse a certeza de que não se converteria em lei não exporia aqui a minha preocupação.
O Sr. Viterbo Ferreira: — É a renovação de um argumento já pôsto na exposição da Associação Comercial de Lisboa, distribuída pelos Deputados.
O Orador: — Conheço argumentos semelhantes, mas êste suponho que ao conhecimento da Assemblea só eu o trouxe.
O Sr. Viterbo Ferreira: — É uma hipótese regional.
O Orador: — Quanto a Montalegre o caso é ainda mais nítido.
O Sr. Viterbo Ferreira: — V. Ex.ª concebe que da aplicação da lei resultem conseqüências como a que V. Ex.ª refere?
Eu quero fazer justiça a quem vai regulamentar a lei. Desculpe V. Ex.ª a interrupção.
O Orador: — Também eu.
O Sr. Ângelo César: — É melhor prevenir do que lastimar.
Aquilo que se concebe, muitas vezes não é o que se faz, e aquilo que se faz, muitas vezes não é aquilo que se concebe... São as chamadas cousas inconcebíveis.
O Sr. Cincinato da Costa: — É o tal Frei Tomaz!
O Orador: — Mas, como ia dizendo, Montalegre, isolada no Barroso, tem muitas povoações que distam de Chaves muito mais de 50 quilómetros e distam de Braga, centros de caminhos de ferro mais próximos, também muito mais de 50 quilómetros.
Se ponderarmos que êste concelho é hoje um dos maiores produtores de batata do País, pregunto:
Como seria possível a essas povoações venderem os seus produtos e para lá transportarem os que precisam?
Positivamente que pelas razões expostas me parece suficientemente demonstrado não poder manter-se esta doutrina e que em contrapartida necessário se torna alargar o raio de acção da camionagem a todo o País e até, o que é mais, que se impõem medidas de protecção, carinho e amparo à que exercer a sua actividade em regiões desfavorecidas.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — A discussão continua e deve concluir na generalidade na sessão de amanhã. Está encerrada a sessão.
Eram 16 horas e 52 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Ângelo César Machado.
António de Almeida.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Luiz Augusto das Neves.
Joaquim Saldanha.
José Alçada Guimarãis.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
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Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Querubim do Vale Guimarãis.
Rui Pereira da Cunha.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alberto Cruz.
António Carlos Borges.
António Cristo.
Artur Proença Duarte.
Carlos Moura de Carvalho.
Francisco da Silva Telo da Gama.
João Garcia Nunes Mexia.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Ranito Baltasar.
O Redactor — Luiz de Avillez.
Imprensa Nacional de Lisboa