Página 569
REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 171
ANO DE 1945
9 DE JUNHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 168, EM 8 DE JUNHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
José Luiz da Silva Dias
SUMÁRIO: — O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia. — Deu-se conta do expediente. Usou da palavra o Sr. Deputado Proença Duarte, que se referiu à situação difícil em que se encontra a lavoura.
Ordem do dia. — Prosseguiu a discussão, na generalidade, da proposta de lei de coordenação dos transportes terrestres.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Silva Dias e Mário de Figueiredo.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 42 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 31 minutos, Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Proença Duarte.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco da Silva Telo da Gama.
Henrique Linhares de Lima.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Alberto dos Reis.
José Alçada Guimarãis.
José Clemente Fernandes.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Ranito Baltasar.
Página 570
570
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 171
José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário de Figueiredo.
Pedro Inácio Álvares Ribeiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 53 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Como ainda não chegou à Assemblea o Diário da última sessão, não o posso pôr à votação.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Exposições
Ex.mo Sr. Presidente da Assemblea Nacional. — Lisboa. — Camionagem Ribatejana, Limitada, com sede em Santarém, e João Clara & C.ª (Irmãos), Limitada, com sede em Tôrres Novas, emprêsas concessionárias de carreiras de serviço público, tendo lido no Diário das Sessões n.º 160, de 24 de Maio passado, uma exposição subscrita pelo Sr. Luciano Soares Franco em que estão consignadas afirmações que carecem de fundamento, por inexactas, e em que a verdade dos factos é freqüentemente deturpada de maneira acintosa, vêm respeitosamente expor a V. Ex.ª o que, sendo do domínio público, é do inteiro conhecimento do organismo que superintende nos serviços de viação.
A douta Assemblea a que V. Ex.ª proficientemente preside sabe que, por fôrça do conflito que tem assolado o mundo, faltaram todos os elementos essenciais à indústria de camionagem. Essa falta foi particularmente grave no que respeita às necessidades de pneumáticos, que, não obstante os esforços estrénuos do Govêrno da Nação, têm chegado até nós em quantidades exíguas, o que obrigou à imobilização de muitas viaturas e conseqüente suspensão de carreiras ou redução temporária de horários.
Foi êste motivo, e só êste, que levou as emprêsas signatárias a acordarem na efectivação das carreiras Abrã-Santarém e Alqueidão do Mato-Santarém em dias alternados, para se não ter de lançar mão do recurso, bastante mais deletério, da suspensão total que a emprêsa João Clara & C.ª (Irmãos), Limitada, foi constrangida a pôr em prática no passado dia 14, por se ter agravado a carência de pneumáticos.
Foi aquele motivo, e só aquele, que tem levado as emprêsas signatárias a suspender muitas outras carreiras, logo restabelecidas quando o fornecimento de pneumáticos o permita.
Contràriamente ao que assevera o Sr. Soares Franco, não é de estranhar que as signatárias suspendam carreiras independentes ou afluentes ao caminho de ferro e não adoptem igual procedimento em relação às que lhe são concorrentes (só por definição); e não é de estranhar, porque as chamadas carreiras concorrentes (por definição, insiste-se) são as únicas que permitem, pelo seu rendimento, suportar o pesado encargo da manutenção de mais de 400 empregados que estas emprêsas têm ao seu serviço. Trata-se, portanto, de uma solução que significa, não o propósito de prejudicar a povoação de Malhou, mas sim o de evitar o despedimento de algumas centenas de empregados, que de modo nenhum poderiam ser mantidos sem a receita das chamadas carreiras concorrentes.
É certo que se prejudicaram os interêsses do Sr. Soares Franco, mas salvaguardaram-se os de algumas centenas de famílias, que têm sido mantidas à custa de esforços sòmente possíveis mercê de uma apertada e bem orientada administração.
É oportuno salientar que o Sr. Soares Franco, mostrando-se ressentido contra os desmandos da camionagem, não assinala que a C.P. em determinado período do conflito mundial suspendeu 80 por cento dos combóios que serviam a linha do norte. Claro que a C.P. e os industriais de camionagem não adoptaram idênticas medidas para ferir interêsses de quem quer que seja, mas sob necessidade premente, como é simples compreender.
Quanto aos seis projectos de carreiras que o Sr. Soares Franco preconiza, têm na sua maioria a virtude de servir o Malhou, mas isso não é bastante, visto que muitas das estradas designadas são absolutamente incapazes para o tráfego automóvel, além de que não há afluência que justifique a manutenção de tantas carreiras para servir essencialmente o Malhou e os interêsses ferroviários.
E para terminar, salienta-se que é inteiramente falsa a afirmação de que só se têm suspendido carreiras afluentes ao caminho de ferro, como se infere da circunstância de a emprêsa João Clara & C.ª (Irmãos), Limitada, ter mantido sem qualquer alteração a carreira Tôrres Novas-Entroncamento, quando poderia suspendê-la para beneficiar as carreiras que explora entre Tôrres Novas e Lisboa. Menos exacta é também a afirmação de que sejam afluentes ao caminho de ferro as carreiras Amiais de Baixo-Tôrres Novas, Cardigos-Chão de Lopes e Abrantes-Carvoeiro.
As emprêsas signatárias, como toda a indústria de camionagem, anseiam por restabelecer integralmente os seus serviços em prol dos interêsses do Sr. Soares Franco e muito especialmente da Nação, mas é evidente que não está nas suas possibilidades remediar o que tem sido irremediável.
Os signatários pedem respeitosamente a V. Ex.ª que esta exposição seja publicada no Diário das Sessões, a fim de pùblicamente se poder tomar conhecimento do que nela se diz.
A bem da Nação. — João Clara & C.ª (Irmãos), Limitada; pela Camionagem Ribatejana, Limitada, Miguel de Almeida Melo.
Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses — Administração. — N.° 136/45-A. — Lisboa, 7 de Junho de 1945. — Sr. Presidente da Assemblea Nacional — Excelência. — Tenho a honra de submeter à esclarecida atenção de V. Ex.ª, em nome da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, a seguinte exposição, à qual V. Ex.ª se dignará dar o destino que julgar conveniente:
1. A proposta de lei de coordenação de transportes, agora em discussão na Assemblea Nacional, tem suscitado várias críticas à gestão das emprêsas ferroviárias,
Página 571
9 DE JUNHO DE 1945
571
acoimadas de terem descurado o necessário apetrechamento e de se encontrarem agora, mercê dessa incúria, em sérios embaraços para obviar às exigências do tráfego: Vamos demonstrar a sem razão destas críticas.
2. Referindo-nos apenas aos tempos modernos da Companhia, isto é, depois dos anos da primeira guerra e daqueles em que ainda se sentiram os efeitos dela, verificamos que a C.P. sempre distraíu, para melhoramentos nas instalações fixas e no material circulante, uma quantia avultada. Assim, despendeu com êsse propósito:
De 1920 a 1923 — 7,30 por cento da receita bruta de exploração;
De 1924 a 1929 — 12,60 por cento da receita bruta de exploração.
Isto é, quando os saldos líquidos lho permitiram, nunca deixou de empregar uma parte dêles, e não pequena, em benefício da sua rêde. E isto com sacrifício dos seus accionistas, aos quais, nesse mesmo período, que poderemos chamar florescente, se não deu o mais pequeno dividendo.
3. Conseguiu assim a C.P. pôr as linhas em condições de poderem circular nelas rápidos com velocidades similares às dos estrangeiros e em condições de segurança não inferiores. Uma das maiores autoridades em matéria ferroviária, Mr. Dautry, viajando no Sud-Express, exprimiu a sua admiração pela excelência da linha Pampilhosa-Lisboa e pela maneira como o serviço era feito, em nada inferior ao que se via lá fora.
Faziam-se três rápidos por dia entre Lisboa e Pôrto; um rápido diário para Madrid; dois rápidos por semana para a Beira Baixa; outro, também semanal, para a Figueira, pela linha de oeste; ainda outro por semana para o sul e sueste, e, finalmente, um rápido para Sevilha, via Badajoz, duas vezes por semana. O Sud-Express chegou a circular na rêde da C.P. com a velocidade comercial de 80km,64 por hora; no rápido do Pôrto essa velocidade também atingiu 63km,40. Mas em certos troços da linha, com perfis convenientes, a velocidade dos rápidos era, por vezes, de 110 quilómetros.
4. Para se fazer êste serviço, e com tais velocidades, era necessário que a linha estivesse em magnífico estado de conservação e as locomotivas e mais material circulante, mas especialmente aquelas, cuidadosamente reparados. Por isso se pode afoitamente afirmar que até 1929 a Companhia aperfeiçoou contìnuamente os seus serviços, como aliás era verificado por todos, quer nacionais, quer estrangeiros, que nas suas linhas viajavam.
5. A partir de 1929 — último ano de boas receitas — o quadro pinta-se com outras cores. Três factores concorreram para a mudança de situação:
1.° A crise que nessa altura começou por toda a parte a tomar maior incremento;
2.º O arrendamento das linhas do Estado;
3.° O desenvolvimento da camionagem.
6. Não podíamos nós furtar-nos aos efeitos da crise, nem a ela se furtaram emprêsas ferroviárias muito mais poderosas do que a C.P. Em vários países tomaram-se medidas excepcionais para a atenuar. Em Inglaterra fez-se a concentração das emprêsas em quatro grandes companhias; em França criou-se a Société Nationale, etc.
A C.P. estava nesse momento preparando, como seguimento de realizações anteriores, um melhoramento importantíssimo: a electrificação das zonas de tranvias dos arredores da capital — Lisboa-Sintra e Lisboa-Vila Franca de Xira. O projecto estava completo. A despesa com esta obra seria de 50:000 contos e traria para a Companhia um encargo anual, durante oito anos, de 1.250:000 francos suíços, fàcilmente suportável se as receitas continuassem a ser como anteriormente. A queda das receitas, que já andava à roda de 40:000 contos, fez com que a Companhia receasse tomar o compromisso de realizar êsse grande melhoramento. Não estava na sua mão criar receitas, pois não se pode inventar tráfego onde o não há, nem aumentar tarifas sem o acôrdo do Govêrno. Mas com estes importantes trabalhos a C. P. respondeu antecipadamente, sem o ter previsto, às críticas que ora lhe são feitas por não ter cuidado a tempo do aperfeiçoamento dos seus serviços.
7. O arrendamento das linhas do Estado, que a C.P. tomou mais por brio profissional do que na mira de lucros, foi outro desengano para a Companhia. Após quatro anos de saldos positivos — dos quais a C.P. não recebeu um centavo, pois a parte que lhe competia a entregou ao Estado — entrou no regime de deficit, de que até agora só saiu uma vez, em 1942. Como o Estado não permitiu o tribunal arbitral, nem a modificação do contrato, apesar de lhe ter sido solicitado, nos termos do mesmo contrato, a C.P. tem ainda por liquidar todos êsses deficits, que montam agora à cifra de 140:000 contos. A falta de tam avultada importância na sua tesouraria obrigou-a a contrair, empréstimos, cujos encargos lhe absorvem grande parte das receitas.
8. Mas o factor que mais prejudicou as emprêsas ferroviárias foi o aparecimento da camionagem. Não pròpriamente pela concorrência de um novo meio de transporte, que não pode nem deve ser contrariado, porque representa manifesta comodidade do público; mas pela forma como irrompeu, sem disciplina e sem método, parecendo que o seu fim era mais pròpriamente arruïnar-se a si própria e indirectamente os caminhos de ferro do que bem servir a economia nacional. Ninguém pareceu convencer-se de que a melhor maneira de servir o público é conseguir-se uma boa colaboração entre os caminhos de ferro e a camionagem.
Com as estradas modelarmente reparadas, a camionagem expandiu-se à larga; escolhia para si a mercadoria mais remuneradora e deixava para os caminhos de ferro os transportes das grandes massas de mercadorias, feitos a tarifas reduzidas, sangrando assim, numa larga medida, as receitas ferroviárias. Ninguém sabe a que ponto chegariam estas se a guerra, dificultando o abastecimento de pneus e gasolina, não fizesse paralisar, em grande parte, o transporte por estrada.
Muita gente ignora que as tarifas ferroviárias são estabelecidas tendo em conta vários elementos, entre êles o valor da própria mercadoria. Por esta razão a mercadoria pobre paga muito menos por quilómetro do que a mercadoria rica. A camionagem, que conhece, porque estão publicadas, as tarifas do caminho de ferro, só procura, em regra, os transportes da mercadoria rica, nos quais concede um pequeno benefício sôbre os preços do transporte ferroviário. Desta forma, se a camionagem não fôr submetida a uma regulamentação adequada, em futuro mais ou menos próximo será impossível ao caminho de ferro manter as tarifas da mercadoria pobre, por não ter a compensação que o transporte da rica lhe proporcionava. É por isto que na Bélgica, país altamente industrial, o director dos caminhos de ferro belgas, Mr. Rulot, disse numa conferência que o desenvolvimento excessivo da camionagem é um luxo que só podem permitir-se os países notàvelmente ricos.
Página 572
572
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 171
9. A Companhia, porém, não obstante a crise em que se via envolvida desde 1930, pretendeu adquirir automotoras das melhores que no estrangeiro se fabricavam. Êste problema das automotoras seduziu-a desde o seu início, e por isso mandou lá fora, por mais de uma vez, estudar o assunto in loco. Foi assim que, em 1939, com o acôrdo do Govêrno, lançou duas encomendas, uma de 20 automotoras, à casa alemã Mann, e outra de 12 tractores para manobras com motores Diesel, à casa inglesa English Electric. E fê-lo só nesta data, porque, após longos anos de estudos, experiências e tentativas várias, se chegou então a tipos satisfatórios. Antes disso seria imprudente comprometer capitais em veículos de resultados incertos.
Se tivessem vindo essas automotoras, poder-se-iam fazer marchas com velocidades de 130 quilómetros à hora, pois tínhamos a certeza de que a linha, pelas suas condições de segurança, suportaria perfeitamente essas velocidades. Nenhuma destas encomendas pôde ser satisfeita, por ter rebentado a guerra em Setembro de 1939. Foi uma cousa que a C.P. não pôde prever: que a guerra rebentaria nesta data!
Por essa altura encomendaram-se 28 carruagens metálicas à casa americana Budd, do que havia de mais moderno nessa ocasião. Essas carruagens chegaram a tempo de ser utilizadas em transporte de passageiros para a Exposição do Mundo Português e prestam excelentes serviços, que o público muito tem apreciado.
10. Já depois da eclosão da guerra foram encomendados, em acôrdo com o Govêrno, vagões de vários tipos à casa Otto Wolff, de Colónia. Receberam-se mais de 800 vagões novos, que custaram 50:000 contos aproximadamente. Sem estes vagões não teria sido fácil dar escoamento a todo o tráfego excepcional que a guerra trouxe. É evidente que a Companhia não podia prever a guerra, e muito menos que a falta de pneus e gasolina faria regressar ao caminho de ferro o tráfego que dele tinha sido desviado para a camionagem. Mas teve a felicidade de conseguir preencher a falta de material com essa encomenda, e mais vagões receberia se as contingências da guerra não impedissem a casa fornecedora de concluir a nova encomenda que lhe fôra feita.
Além do material recebido de fora, como acima foi dito, a Companhia construiu automotoras, vagões frigoríficos e até uma locomotiva, saída há pouco das suas oficinas e já em serviço.
11. Quanto a locomotivas, foram encomendadas no ano findo vinte na América — dez destinadas ao parque da C.P. e dez ao da rêde do Estado — e, também para a rêde do Estado, foram encomendadas seis a uma fábrica espanhola. Das primeiras já foram recebidas duas, outras estão a caminho e devem ser recebidas todas até ao fim de Agosto; as espanholas estão ainda em fabricação atrasada, mas, em substituïção delas, receberam-se seis locomotivas reparadas, que nos foram cedidas por aluguer e que serão restituídas à fábrica quando vierem as novas. Todas as locomotivas acima indicadas ficaram por cêrca de 60:000 contos.
12. Ao passo que aumentava, de uma maneira sensível, o seu material circulante, não deixava a Companhia de melhorar as suas instalações fixas. Assim, prosseguiu-se com a duplicação da via entre Chão de Maçãs e Casarias; fizeram-se trabalhos para melhorar a sinalização das estações de Campolide e Lisboa-Rossio, de onde derivará a melhor e mais fácil circulação dos combóios entre estas duas estações; refizeram-se as curvas de concordância da linha do Setil com a linha do Norte, de modo a evitarem-se, de uma vez para sempre, os prejuízos periódicos resultantes das cheias; renovaram-se alguns quilómetros de via com carris de maior peso por metro; e, além de vários melhoramentos de estações, ampliação de cais, etc., iniciaram-se os trabalhos da gare de triagem de Sacavém, não só vantajosa para melhorar a exploração que actualmente se faz, mas indispensável para permitir o desenvolvimento dela.
13. Tudo isto fez a C.P. emquanto as suas receitas aumentavam, e prosseguiria neste caminho se, infelizmente, a situação não começasse a agravar-se em 1944. E fê-lo sem que lhe fôsse concedido, ao contrário do que sucedeu com os transportes por estrada, um aumento substancial de tarifas, ou um adicional sôbre as existentes, pois não podem ter-se em conta, para êste efeito, pequenos e legais retoques que algumas tarifas sofreram. E assim é lícito dizer que a mercadoria «transporte ferroviário» foi a única que não teve aumento depois de começada a guerra!
14. É certo que as dificuldades da Companhia provêm hoje não da deminuïção de receitas, mas pelo extraordinário aumento de despesa com a aquisição de combustíveis e outros artigos necessários à exploração e também dos novos encargos que lhe advieram dos aumentos de vencimentos ao seu pessoal. As despesas aumentaram mais do que as receitas.
Os seguintes números são bastante elucidativos:
Em 1939 gastaram-se em combustível 35:000 contos.
Em 1944, com menor número de combóios, 178:500 contos.
Considerando todas as despesas da Companhia, encontra-se que de 1939 para 1944 houve um aumento de 223:000 contos, ou seja 101 por cento.
Quanto ao pessoal, basta dizer que os sucessivos aumentos que lhe foram concedidos desde 1 de Janeiro de 1943 representam um encargo anual de cêrca de 63:000 contos. O que não admira, pois dado o número de agentes ferroviários, qualquer aumento de 10 por cento nos vencimentos atinge entre 15:000 e 16:000 contos.
15. Não tinha a Companhia disponibilidades para, quando rebentou a guerra, fazer larga provisão de materiais, especialmente carvão, para obviar a dificuldades futuras; nem lhe cabia a ela resolver o problema por esta forma. Além de que a guerra foi demasiado longa e não seria possível fazer provisões para todo o tempo dela. Por isso se vê agora a braços com falta de combustível, e o que pode conseguir obtém-no por preços inconcebíveis e muitas vezes de péssima qualidade.
Se isto é falta de previsão, estamos, porém, em boa companhia. Os detentores dos transportes por estrada tiveram, porventura, espírito mais previdente? Onde estão as provisões de pneumáticos, combustíveis e sobressalentes que assegurassem à camionagem uma exploração ininterrupta? Pouco tempo depois de rebentar a guerra as pequenas existências de material para a camionagem estavam esgotadas, o que fez com que muitas carreiras fôssem suspensas. Daqui veio para os caminhos de ferro um tráfego extraordinário. O que seria da economia do País se os caminhos de ferro, apesar da falta de previsão das respectivas administrações, não estivessem em condições de transportar êsse tráfego extraordinário, além daquele provocado pelo desenvolvimento de negócios derivado da guerra?
Basta dizer que os passageiros transportados em 1944 foram 25.685:489, ao passo que em 1939 foram
Página 573
9 DE JUNHO DE 1945
573
15.478:255. Quere dizer: houve matérial para transportar mais 10.207:234 passageiros do que antes da guerra. Quanto a mercadorias, foram transportadas em 1944 4.07l:527 toneladas e em 1939 3.488:802 toneladas.
Isto prova que, em todas as circunstâncias, o País pode contar com os caminhos de ferro, que respondem sempre à chamada quando se necessita dêles. Que isto é assim ainda recentemente se verificou quando das manobras militares de 1943, nas quais os serviços ferroviários mereceram os mais calorosos elogios das entidades oficiais.
16. Os dois meios de transporte têm de coexistir, cada um no desempenho das funções que lhe são próprias. O que é necessário é coordená-los.
Devem ser: não concorrentes, mas colaboradores. No País há lugar para ambos. Da luta entre êstes dois meios de transporte não pode vir benefício para nenhum; da sua colaboração, íntima, perfeita, de boa fé, só pode resultar bem para êles, para o público e para os interêsses superiores do País.
A bem da Nação. — O Presidente do Conselho de Administração, António de Almeida Vasconcelos Correia.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Proença Duarte.
O Sr. Proença Duarte: — Sr. Presidente: todos sentimos, mesmo aqueles que menos dependem da vida agrícola, a situação angustiosa que a lavoura portuguesa atravessa neste momento, mercê de um mau ano agrícola.
Não precisava de chamar daqui a atenção do Govêrno para essa situação de crise em que ela se encontra para ter a certeza de que o Govêrno, preocupado a todo o momento com os problemas da vida do País, não deixaria de considerar a situação de emergência da lavoura. Parece, porém, que não são descabidas algumas palavras a propósito dessa situação antes de ser publicado o regime cerealífero.
O ano cerealífero foi dos piores de que há memória, mas a economia agrícola não foi afectada só pela fraca produção de cereais; ela foi afectada em todas as modalidades da sua actividade, quer quanto aos cereais, quer quanto à sua pecuária, quer quanto às leguminosas, emfim, quer quanto a todas as suas fontes de riqueza.
Na verdade, a produção de trigo, embora em público se tenha dito o contrário, não deve atingir êste ano senão 50 por cento da do ano passado. E, de uma maneira geral, se o centro e o sul do País apresentam esta percentagem, já não sucede o mesmo com o norte no que respeita a milho e a centeio, em que a produção se aproxima de uma produção normal.
Ainda a lavoura portuguesa foi afectada na sua pecuária porque, Sr. Presidente, como é sabido de todos, por virtude da falta de chuvas se deu não só o emmagrecimento das espécies, e portanto a perda de pêso, como também uma mortandade nos rebanhos, que os lavradores viram reduzir-se assustadoramente.
E assim é que, Sr. Presidente, também esta fonte de receita da lavoura se encontra profundamente afectada.
Pode ainda referir-se que outras culturas, como a do arroz, que se estendia em grandes áreas, se encontram profundamente afectadas por virtude da falta de chuvas. As áreas de cultura no presente ano são muito menores que as dos anos anteriores e essa cultura torna-se assim mais difícil do que as culturas anteriores, resultando daí um acréscimo de despesa. Assim, a irrigação dos arrozais em pontos altos, para os quais é necessária a elevação de águas, torna-se mais dispendiosa por causa do custo dos combustíveis a empregar nessa elevação, aumento que infalìvelmente vai afectar o custo de produção da unidade de cultura.
Também, Sr. Presidente, se se lançar uma vista de olhos ao que sucede com o azeite e com o vinho, antevê-se ràpidamente o quadro que se nos vai apresentar.
A falta de umidade originou a queda de parte da azeitona dos olivais, que se apresentavam prometedores, e é provável que a que ficou não possa criar-se até ao fim.
A vinha, que é uma fonte de receita das mais importantes da agricultura nacional, também não poderá conseguir uma criação completa de uvas, porquanto os terrenos não têm a umidade suficiente. Acresce ainda, Sr. Presidente, que a colheita do ano anterior ainda se encontra, numa grande percentagem, nas adegas dos produtores. Os vinhos não têm tido escoamento para os mercados externos e a descida dos preços deu-se em grande escala, o que vai reflectir-se na economia da lavoura portuguesa.
É portanto apreensivo e desolador o aspecto da lavoura portuguesa, não só para o ano corrente, mas também para o ano futuro. Pelo que respeita à pecuária, a lavoura há-de sentir-se ainda mais no futuro ano, porque os gados não possuem as gorduras que poderiam constituir reservas para suportar um inverno rigoroso.
É, pois, de grande necessidade olhar com atenção e detidamente para a situação da lavoura. É um axioma dizer-se que a lavoura tem na economia portuguesa o mais alto relêvo e que é uma das mais importantes fontes de riqueza de Portugal. É então preciso, a despeito da guerra se ter declarado como terminada, colocar a lavoura ainda em situação de no futuro ano produzir o máximo que seja possível extrair da terra. Mas evidentemente que não pode levar a cabo essa missão se lhe não forem criadas condições especiais para manter a sua tarefa, para prosseguir na exploração da terra.
Quais os remédios que podem ser preconizados para se atender a uma situação destas? É muito difícil, Sr. Presidente, dizê-lo, sobretudo para quem não tem à mão os dados, os elementos de estudo necessários para preconizar soluções. No entanto, algumas podem desde já ser apontadas.
O processo directo de aumentar as receitas da lavoura pelo aumento dos preços dos géneros por ela produzidos parece-me inevitável, embora seja perigoso pela repercussão que isso pode ter na vida do consumidor.
Pelo que se tem observado, no decorrer do ano que está à porta parece também evidente que não poderá deixar de ser alteado o preço dos géneros agrícolas, embora por maneira a que essa elevação tenha a mínima repercussão sôbre o preço de consumo.
Há determinadas indústrias que são conexas da indústria agrícola; são aquelas que transformam os produtos da agricultura. Assim, poderíamos apontar a indústria da moagem, que transforma os cereais, a indústria dos lanifícios, a indústria dos curtumes, a indústria do descasque de arroz e algumas outras mais que só trabalham e só vivem dos produtos da lavoura.
No regime cerealífero que deve ser publicado, por certo em breve, hão-de fixar-se taxas de laboração, as taxas industriais. Não quero que essas taxas de indústria sejam reduzidas a ponto tal que deixem a indústria sem condições de vida; no entanto, quere-me parecer que deve haver uma grande harmonia entre a situação económica da lavoura e a das indústrias que trabalham e transformam os produtos agrícolas, porque se não compreende que, por virtude de um ano mau, a lavoura se veja empobrecer extraordinàriamente e que outras actividades complementares possam manter a mesma percentagem de lucros que lhes permita uma vida desafogada, à custa da actividade fundamental.
Se fôr possível rever as taxas industriais de maneira a que uma parte possa reverter em benefício da lavoura
Página 574
574.
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 171
sem prejuízo do consumo e da possibilidade de vida dessas indústrias, será talvez de aconselhar e de preconizar êsse processo de amenizar a vida da lavoura portuguesa.
Há outros elementos que podem ser eficientes para o fim que se tem em vista. Trata-se do problema do crédito da lavoura.
Êsse crédito tem de ser concedido em condições diferentes daquelas que actualmente estão em vigor.
É preciso alargar o crédito para a produção agrícola e alargar também os prazos de amortização dêsses empréstimos, com que a lavoura terá necessàriamente de se endividar para se manter e para continuar na sua tarefa.
Mas, se essa situação se tem de criar, não deve ela provocar a asfixia da actividade agrícola, quere dizer, é preciso que se lhe concedam prazos largos para que ela possa realmente suportar êsse encargo que dois maus anos agrícolas lhe trazem.
A lavoura trigueira têm sido concedidos todos os auxílios possíveis, quer aumentando o prémio de cultura, quer aumentando os bónus dos adubos. Pois é preciso, a meu ver, que se reveja ainda a possibilidade de aumentar os bónus dos adubos à cultura cerealífera. Parece-me também oportuno neste momento focar o aspecto de uma indústria complementar da indústria agrícola, que é a indústria de lagares de azeite, que, como V. Ex.as sabem, está de uma maneira geral nas mãos de gente iletrada, de gente de fraca cultura intelectual.
Houve necessidade de se lhe impor, para efeitos de racionamento, uma escrituração tam complicada que difìcilmente os lagareiros a podem cumprir. Daqui resultou que homens bons do nosso País proprietários de lagares de azeite que não possuem habilitações nem na sua indústria encontram possibilidades para contratar pessoas habilitadas para lhes fazerem uma escrita conforme a lei e as diferentes portarias publicadas, se viram envolvidos em processos de especulação, que os atiraram para o Tribunal Militar Especial, por transgressão das regras legais estabelecidas.
Acontece que êsses homens bons dêste País, entregues a uma tarefa árdua e honrada, sem intenção dolosa, e, pode dizer-se, sem culpa, têm-se visto envolvidos nesses processos, por virtude dos quais, e talvez por má compreensão das condições em que actuam por parte de quem os julga, têm sido condenados a penas de cadeia.
É talvez o momento também de atenuar a situação de alguns dêsses trabalhadores de Portugal, promulgando-se uma amnistia para essas transgressões.
Em resumo, eu, que comecei por dizer que não queria chamar a atenção do Govêrno para a situação económica da lavoura, porque o Govêrno está sempre atento a todas as situações difíceis da nossa vida pública e privada, concluo por dizer que me pareceu de justiça que se levantasse aqui uma voz na Assemblea para dizer à lavoura de Portugal, que tam bem tem cumprido os seus deveres através de todas as dificuldades que a guerra criou, que os Deputados estão de acôrdo em que se chame a atenção pública para as condições especiais e de ruína em que a lavoura se pode encontrar.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Presidente: — Vai passar-se à Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Continua a discussão, na generalidade, da proposta de lei relativa à coordenação dos transportes terrestres.
Tem a palavra o Sr. Deputado Silva Dias.
O Sr. Silva Dias: — Sr. Presidente e Srs. Deputados: os ilustres oradores que me precederam nesta tribuna disseram já o bastante acêrca da fundamental importância que a proposta de lei da coordenação dos transportes terrestres, agora em discussão, desempenha no plano da reconstituïção económica do País.
Depois da discussão e aprovação por esta Câmara da lei de electrificação do País e da lei de fomento e reorganização industrial, impunha-se lògicamente a apresentação, estudo, debate e aprovação de uma lei de coordenação dos transportes terrestres, como passo decisivo para uma futura coordenação de todos os transportes marítimos, terrestres e aéreos.
Sem improvisações precipitadas pela fúria dos acontecimentos ou planos megalómanos traçados para enlevo fugaz das imaginações exaltadas pela utopia socialista, o Estado Novo, apegado às realidades da vida portuguesa, executa com tranqüila segurança e clara seqüência a sua obra, sempre subordinada ao primitivo e já histórico escorço da seriação dos grandes problemas nacionais.
O enunciado dêsses problemas e a demonstração da sua interdependência dizem-nos que a elevação do nivel de vida dos portugueses se não pode alcançar sem a reconstituïção económica do País e que esta depende da exploração e utilização de novas fontes de energia; da intensificação da produção agrícola; do aproveitamento das riquezas do subsolo e de uma reorganização industrial orientada no sentido de produzir mais, melhor e a mais baixo preço.
Portanto: revolução económica com energia barata, maior volume e densidade de produção, mais alta retribuïção do trabalho, seguros mais eficazes contra todas as adversidades e uma melhor vida social, de forma a que cada homem possa atingir livremente a sua finalidade espiritual numa próspera e forte comunidade portuguesa.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Ora é evidente que os transportes constituem o aparelho circulatório da vida económica. Eles aproximam as distâncias, valorizam os produtos, facilitam as trocas, tornam acessíveis a todos as conquistas do progresso; aumentam o bem-estar colectivo e proporcionam uma vida social mais digna e humana. Quanto mais completa e perfeita fôr a rêde de transportes, mais rica e fecunda será a vida de cada célula e mais forte e coeso se tornará o conjunto de todo o corpo social e nacional nas suas relações com os outros povos.
Com inteira razão afirmou Carlos Gide que «todas as invenções que facilitem os meios de transporte facilitam na mesma proporção as trocas e, criando trocas, criarão a própria produção».
Basta comparar a situação da humanidade antes e depois da descoberta da máquina a vapor e da sua utilização nos navios e nos caminhos de ferro! Até então só resultava económico, e portanto possível, o transporte de mercadorias ricas e de grande valor específico, como as especiarias, os metais preciosos, etc. Muitos produtos necessários ao sustento da vida humana, mas com reduzido valor em relação ao volume, ficavam desaproveitados, e assim, devido a deficiências de culturas, grassavam pavorosas fomes periódicas em algumas regiões do mundo, quando noutras mais distantes sobravam os alimentos que remediariam aqueles inales.
A utilização da máquina a vapor nos navios e nos caminhos de ferro permitiu que fôssem transportadas econòmicamente, com segurança, rapidez e pontualidade, grande quantidade de mercadorias.
Página 575
9 DE JUNHO DE 1945
575
Dessa maneira, os dons de Deus puderam ser melhor repartidos e tornou-se assim mais perfeita no mundo a comunidade de todos os homens.
Em cada país valorizaram-se os produtos da terra, puderam ser mais bem aproveitados os diferentes minérios de baixo valor específico, facilitaram-se as trocas comerciais entre as diferentes regiões constitutivas da nação e também entre todos os povos.
As estatísticas referentes à circulação de passageiros e mercadorias e aos valores de importação e exportação mostram a vasta amplitude do progresso económico, que foi devida à espantosa revolução dos caminhos de ferro e dos navios a vapor.
Em plena aura da economia liberal, quando se consideravam, como um axioma, as vantagens da concorrência sem qualquer entrave e se impunha ao Estado a simples função de polícia perante as lutas económicas, tornou-se, apesar disso tudo, evidente, em muitos países, que a instalação dos caminhos de ferro, pelas avultadas despesas de 1.° estabelecimento que exigiam, não seria possível sem a concessão de um regime de privilégio.
A êste direito corresponderam inúmeros deveres entre os quais avultam o de manter combóios de passageiros com horários fixos, determinadas classes e ainda o de tornar o preço do custo do transporte tam baixo que o preço de venda dos produtos nas diferentes regiões não sofra uma alteração muito sensível do preço estabelecido na procedência.
Sr. Presidente: depois de frisar estes pontos, que julgo essenciais, não me proponho fazer a história do desenvolvimento dos caminhos de ferro nem tampouco inventariar todos os benefícios de ordem económica e social que prestaram ao progresso nacional ou as suas deficiências nos últimos decénios.
Mais tarde surgiu, com a invenção e aplicação dos motores de explosão a veículos rodoviários, ligeiros e pesados, a utilização de um novo meio de transporte para passageiros e mercadorias.
Sem deixar de reconhecer os magníficos serviços prestados à economia nacional por uma mais vasta, intensa e profunda valorização de muitas regiões do País até ai desprovidas de meios modernos de transporte e emparedadas na sua pobreza, não se pode também negar que a uma certa estagnação na marcha progressiva dos caminhos de ferro, no seu reequipamento técnico e adaptação às novas condições económicas, correspondeu uma concorrência, em que os deveres e obrigações dos empresários das novas carreiras de automóveis não se encontravam na mesma relação daqueles com os discricionários direitos e liberdades que usufruíram, pelo menos na 1.ª fase da sua actividade.
E porque estamos convencidos de que, com o aumento da população, com o progresso da técnica e reorganização industrial do País, o incremento da produção em todos os sectores da economia, a elevação do nivel de vida dos portugueses, que se traduzirá conseqüentemente num maior poder de compra e mais vasto desejo de necessidades a satisfazer, cada vez será maior em quantidade e qualidade o valor das mercadorias a transportar.
E, ainda, que o caminho de ferro reequipado segundo os novos processos técnicos e ajustado às necessidades de economia pela possibilidade de transportar passageiros e mercadorias com velocidade, segurança e pontualidade, a grandes distâncias e em avultadas quantidades, continuará a desempenhar, no conjunto dos meios de circulação, a função de relevante importância que lhe cabe como coluna vertebral do sistema de transportes terrestres.
E também que os transportes automóveis, pelas facilidades de movimento e penetração profunda em todos os recantos do País, são chamados a cumprir uma importante missão de completa autonomia nas regiões desprovidas de caminhos de ferro ou, então, uma função complementar de irradiação e distribuïção.
Parece-nos evidente a necessidade inadiável de fortalecer um e outro sistema de transportes e de coordenar as respectivas funções, de forma a que se não sobreponham na sua actividade nem se guerreiem com prejuízo mútuo, mas antes se completem em benefício do serviço público que, conjuntamente, devem servir.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: verificada a necessidade imperiosa e inadiável da coordenação dos transportes terrestres, sabe-se que só o Estado a poderá orientar, favorecer, propulsionar e até promover, porque da luta desregro d a dos vários interêsses não resultará, certamente, o apetecido equilíbrio e harmonia nem a prosperidade comum e colectiva, mas uma situação cada vez mais confusa, custosa e prejudicial à economia do País.
Só o Estado, pela posição que ocupa acima dos interêsses particulares e pela visão de conjunto que possue de todos os problemas em função do bem comum, poderá examinar com serena e límpida objectividade os dados da questão, elaborar, com o expresso propósito de respeitar dentro do possível as situações criadas, um plano de acção imediata e executá-lo, com espírito de justiça, sem preterir qualquer legítimo direito.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — A intervenção do Estado torna-se, portanto, necessária e legítima, quando se propõe levar as várias emprêsas a actualizar e valorizar, segundo as novas possibilidades técnicas, o seu material e processos de exploração e coordenar os transportes terrestres de forma a que a distribuïção do tráfego e limitações das respectivas actividades obedeçam exclusivamente ao objectivo primacial do serviço público.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Tais são os objectivos essenciais da proposta de lei agora em discussão, que constituem a sua verdadeira portada e que, a meu ver, deveriam ser destacados no corpo da base I.
Assentes, Sr. Presidente, os motivos que justificam a intervenção do Estado, não podemos deixar de reconhecer a grande complexidade da sua execução. Mas nós não podemos perder tempo nem deixar-nos enlear por dificuldades, adiando e iludindo a questão, porque neste aspecto nos encontramos em flagrante atraso relativamente a outros países que também tiveram de ultrapassar inúmeros obstáculos e de chegar a uma solução para tam momentoso problema.
Além disso, nós só encontramos motivos para confiar nas rectas intenções, espírito de justiça e exemplar dedicação ao serviço do bem comum que têm vinculado à História os homens do Govêrno do Estado Novo, entre os quais se deve destacar o actual Ministro das Obras Públicas, autor da presente proposta, a cujas qualidades de carácter, inteligência e patriotismo me apraz prestar nesta tribuna o testemunho da minha admiração.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: ao entrar pròpriamente na análise de alguns dos princípios orientadores e métodos de execução da proposta de lei da coordenação dos
Página 576
576
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 171
transportes terrestres, verifica-se que ela marra como meios de consecução dos seus fins de coordenação: a fusão das emprêsas ferroviárias; o agrupamento, em grau conveniente, das emprêsas exploradoras de carreiras de automóveis; a regulamentação dos transportes automóveis em regime de aluguer e transportes particulares.
Quanto à prevista fusão das emprêsas ferroviárias de toda a rêde geral de via larga e estreita, eu não tenho dúvidas acêrca das suas reais vantagens e dos eficientes resultados que de tal solução é justo esperar. Julgo mesmo que essa fusão é condição indispensável para a valorização dos caminhos de ferro portugueses.
E não é difícil fundamentar êste parecer, desde que se verifica o que em outros países se fez para remediar um mal semelhante.
Assim, em Inglaterra, após a primeira guerra mundial e perante os funestos resultados da concorrência e da inviabilidade de algumas tentativas de acôrdo, uma lei de caminhos de ferro, a Railways Act, determinou a fusão obrigatória de todas as companhias, com uma extensão total de 31:000 quilómetros, em quatro grandes emprêsas.
Nos Estados Unidos, onde actualmente as linhas de caminho de ferro excedem 400:000 quilómetros, isto é, uma extensão superior ao total de todas as linhas europeias, já nos começos dêste século se reconheceu a vantagem do agrupamento voluntário das várias emprêsas em dez poderosos sistemas de exploração. Mas depois da Grande Guerra de 1918 os caminhos de ferro americanos foram de novo organizados e agrupados em quatro grandes rêdes.
Em França, a unificação da exploração das suas cinco grandes rêdes, com um total de 43:540 quilómetros, fez-se depois de algumas tentativas frustradas, com o fim de atenuar o deficit crónico dos caminhos de ferro através da Société Nationale des Chemins de Fer, em 1938. No caso da solução francesa, as antigas companhias preexistem até à expiração normal das concessões, que deve verificar-se entre 1950 e 1960, mas desde 1938 deixaram de assegurar a exploração das linhas em favor da nova sociedade, que, conforme fora previsto, exercerá essa função até 1982.
Em outros países soluções semelhantes de concentração e de unificação foram encontradas para idênticos problemas.
Ora, se é necessário estabelecer um sistema de tarifas baseado em distâncias quilométricas, combinar os horários, organizar de maneira mais perfeita o tráfego, assegurar a exploração de linhas deficitárias pelo processo da compensação de receitas e, além disso, reequipar os caminhos de ferro, modernizá-los, vencendo o seu atraso, electrificar alguns troços — o que exije umas segundas despesas da grandeza das de 1.ª estabelecimento — não vejo outro meio para atingir aqueles fins senão o da unificação da nossa rêde numa única emprêsa exploradora — apenas uns escassos 3:582 quilómetros, quando a média por emprêsa na Inglaterra é de cêrca de 8:000 quilómetros, na América 100:000 e na França, caso da unificação total, é de 43:000 quilómetros. Se examinarmos a extensão da nossa rêde ferroviária em função da superfície do País e do número de habitantes, verifica-se, segundo as estatísticas publicadas por Waggemann, que a longitude das vias existentes é de 5,7 por 10:000 habitantes e 3,7 por 100 quilómetros quadrados, quando na Inglaterra os índices respectivos são 7,5 e 14,2; na América, 33 e 5,1, e em França, 12 e 9,7.
Qual a solução a adoptar? Não possuo os elementos necessários nem conheço tam vasta e profundamente as realidades da vida económica, como alguns dos meus ilustres colegas que me precederam nesta tribuna, para me pronunciar sem dúvidas a êsse respeito. No meu humilde entender parece-me contudo que não devemos fechar ou ratar ao Govêrno qualquer possibilidade de solução dêste magno problema.
O Sr. Ângelo César: — V. Ex.ª dá-me licença?... Mas é que, mesmo votando no sentido contrariado por V. Ex.ª, nunca impedimos o Govêrno de buscar outra solução, pois que êle tem a plenitude do Poder Legislativo.
O Orador: — Não conheço suficientemente os dados do problema para preferir ou eliminar qual quer solução, mas repito: o que me parece é que não devemos fechar ao Govêrno qualquer possibilidade justa e legítima de solução.
O Sr. Ângelo César: — Nós não proïbimos ao Govêrno que, mudadas as circunstâncias, mude também a solução.
O Orador: — Uma única solução me parece extremamente perigosa, embora a alguns se afigure, pelas falsas ideas claras que a esmaltam, pela sua rápida e fácil compreensão e pela ilusória perfeição que a romantiza, a mais fulgurante, espectaculosa e de miríficos resultados — é a da nacionalização.
Manifesto os meus receios por tudo o que pode levar-nos ao plano inclinado do socialismo.
E, embora pareça a alguns paradoxal, tomo esta atitude em defesa das mais legítimas, autênticas e possíveis liberdades do homem. Não só o exame das doutrinas e ideologias em voga, mas também a das realidades dêste mundo, nos mostram que à medida que o Estado se sobrecarrega com funções de gerência de emprêsas fabris' e comerciais, isto é, se hipertrofia, ou se cai numa estagnação da vida económica e se cria um vastíssimo parasitismo social, quando o Govêrno é fraco e talado pelos partidos, ou se torna cada vez mais coactivo, totalitário e tirânico, a fim de fazer cumprir com rendimento económico e benefício colectivo os seus gigantescos planos de produção.
O socialismo é impossível sem o totalitarismo e a tirania. Tal é a opinião de Elie Halevy, professor da Escola de Ciências Políticas de Paris, e sem dúvida um dos mais penetrantes historiadores do socialismo europeu, quando em 1936, numa exposição à Sociedade Francesa de Filosofia, depois de assinalar as contradições em que se debate o socialismo, afirmou que o mundo, em 1914, tinha entrado na era das tiranias com a tendência marcada para a nacionalização e estatização dos meios de produção, distribuïção e troca.
O que seria em Portugal, conhecida a forma de ser dos portugueses e a brandura dos nossos costumes, a nacionalização dos caminhos de ferro? Eu, Sr. Presidente, peço licença para manifestar o meu sincero pessimismo a tal respeito. E ainda bem que o Govêrno propõe que nos afastemos da possibilidade dessa solução.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: eu sou daqueles que acreditam no futuro dos caminhos de ferro. Julgo mesmo exagerada a tendência dos que já o amortalharam, enterraram e lavraram o seguinte epitáfio: Aqui jazem os restos do caminho de ferro. Parece-me que cometem um êrro semelhante ao daqueles que, no tempo da euforia dos caminhos de ferro, consideravam dispensáveis os canais, porque tudo seria mais fàcilmente transportado pelos carris do progresso. Mas nós vimos, Sr. Presidente, em plena era da concorrência dos transportes automóveis e com uma esplêndida rêde de 54:000 quilómetros de caminho de ferro, a Alemanha abrir e construir os seus grandes canais. É que o aumento da
Página 577
9 DE JUNHO DE 1945
577
população, o incremento da produção e a elevação do poder de compra exigem cada vez mais uma maior intensificação do transporte de mercadorias.
E o caminho de ferro continua a ser invencível como meio de transporte de grandes massas de mercadorias, a longas distâncias, com regularidade, velocidade e segurança.
Invencível no transporte de grandes massas de mercadorias, porque se pode actualmente transportar, como em França, a uma velocidade média de 80 quilómetros por hora, combóios com cargas de carvão de 1:600 e mesmo 2:000 toneladas, e na América do Norte combóios com 10:000 toneladas de minério. Le Besnerais, a propósito da concorrência do carril e da estrada, numa conferência pronunciada em 1930, afirmou que os caminhos de ferro do norte, em tempos normais, transportavam diàriamente 80:000 toneladas de carvão, 20:000 das quais se destinavam à região de Páris. Ora isso — acrescentou — representa a carga de 2:000 camiões de 10 toneladas, que deviam circular de dia e de noite, à razão de quatro viagens de ida e volta, seja 8:000 camiões e um pessoal de 16:000 homens, o que equivale a 22 por cento dos efectivos do caminho de ferro do norte, quando bastam 6 por cento dêsse pessoal efectivo para assegurar pela via férrea o transporte do combustível.
No que diz respeito à velocidade, devido à exclusiva utilização pelos veículos das linhas de caminho de ferro, sinalização e outras vantagens, alcança-se em percursos de 863 quilómetros uma velocidade média de 96 quilómetros por hora. Na América, o Twentieth Century faz o trajecto de Nova York a Chicago, isto é, 1:500 quilómetros, à velocidade média de 100 quilómetros por hora, e o Hiawatha, com uma carga de 600 toneladas, atinge por vezes 180 quilómetros.
O Sr. Melo Machado: — Infelizmente isso é só lá fora...
O Orador: — Quanto à segurança do transporte, segundo estatísticas publicadas, verifica-se que o número de pessoas mortas em acidentes de viação, por bilião de viajantes-quilómetro, é de 3,6 nos caminhos de ferro, ao passo que atinge 89,9 nos transportes automóveis.
Sr. Presidente: o caso dos caminhos de ferro não constitue em cada país apenas um problema de ordem económica e social, mas também de ordem política e nacional.
Nenhum Estado, pelo menos até hoje, que me conste, se desinteressou de possuir um eficiente serviço público de caminhos de ferro.
Quanto ao problema do agrupamento, em grau conveniente, das emprêsas exploradoras de carreiras automóveis e regulamentação dos transportes em regime de aluguer e dos transportes particulares, já muito foi dito nesta tribuna e não vou agora repetir as estatísticas citadas para salientar a importância dêstes meios de circulação de viajantes e mercadorias e os altos serviços já prestados à economia nacional na valorização de regiões que não são suficientemente servidas pelos caminhos de ferro.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Também me parece justo que, dentro do possível, sejam respeitados todos os interêsses criados e que o agrupamento das emprêsas existentes se faça após um plano de transportes elaborado para cada região, de preferência por acôrdo entre os concorrentes.
A necessária coordenação dos meios de transportes terrestres — o caminho de ferro e o automóvel — deve fazer-se depois de suficientemente reconhecidas, nos diferentes casos e regiões, as respectivas vantagens e de tal maneira repartidas as funções e áreas de actividades que não se digladiem nem prejudiquem o interêsse público mas antes se completem.
A solução dêste problema exige a mais perfeita objectividade, o mais rasgado espírito de justiça e uma prudente ordenação das realidades, conduzida de forma progressiva à medida que cada meio de transporte cumpra o serviço público que justifica a sua existência e possível protecção.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Para atingir plenamente os fins da proposta de lei parece-me que convém, além dos organismos especializados nos dois meios de transporte, a existência em actividade permanente, e não só episódica ou descontínua, de um organismo encarregado de estudar as particularidades da coordenação, elaborar o respectivo plano e orientar a sua aplicação progressiva. Doutra maneira ficaria truncada a proposta de lei e a falta cometida represento-a eu pela imagem de um edifício que, sem o telhado, se limitasse às paredes.
Em conclusão, Sr. Presidente, e pedindo desculpa do tempo que ocupei nesta tribuna, eu declaro o meu propósito de votar a proposta de lei apresentada pelo Govêrno com algumas emendas que não afectem a sua linha geral, nem deminuam os seus objectivos de ordem nacional ou cerceiem os meios legítimos para a executar.
E faço-o com a certeza e o entusiasmo de ter colaborado com o Govêrno numa das Leis de estrutura da vida económica, social e nacional do País.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Mário de Figueiredo: — É difícil, nesta altura da discussão na generalidade, encontrar alguma forma de considerar o problema que ocupa esta Assemblea que já não tenha sido posta.
É difícil bater na generalidade as questões que a proposta suscita, por uma luz pela qual ainda não tenham sido batidas, sobretudo para quem, como eu, deseja não sair do terreno da discussão na generalidade.
A proposta em discussão não é exclusivamente uma proposta de coordenação dos transportes; contém também um conjunto de disposições que não respeitam pròpriamente à coordenação, mas representam pressupostos dela que, no entretanto, podiam ter vida independente.
Efectivamente compreender-se-ia que, sem se pensar em coordenação, se procurasse apenas melhorar o nosso sistema de transportes. Já não se compreenderia muito bem a inversa, isto é, já não se compreenderia uma proposta, num sistema de transportes desorganizados, em que se pretendesse a coordenação sem, ao mesmo tempo, se pôr o problema da transformação dos transportes. Por isso se explica que a proposta, que se apresenta como de coordenação de transportes, vá mais além e seja também uma proposta que pretende tornar possível e facilitar a transformação dos transportes.
Feita esta nota preliminar, há que, já que estamos no domínio da discussão na generalidade, determinar apenas a vantagem e a oportunidade dos princípios que informam a proposta e de estudar a sua economia.
Quais são êsses princípios?
É claro que eu não ponho neste momento o problema das formas possíveis de organização dos princípios que dominam a proposta; ponho apenas êste problema: Quais são os princípios de orientação política geral que informam a proposta? Êsses princípios, independentemente da forma de organização que dêles vier a
Página 578
578
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 171
fixar-se, são aceitáveis ou não aceitáveis, são vantajosos ou não são vantajosos, são oportunos ou não são oportunos?
Com êste modo de pôr a questão, quero significar que a adesão aos princípios informadores da proposta não importa necessàriamente a adesão às formas de realização dêsses princípios que na proposta se contêm.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — A idea fundamental que domina a proposta é a de que os transportes colectivos são um serviço público.
Os transportes colectivos são um serviço público.
Desta idea fundamental decorre logo a formulação dêste princípio. Se são um serviço público, são um serviço cujo funcionamento há-de ser assegurado pelo Estado. Se sem encargos para êle, melhor; se com encargos, menos bem. Em todo o caso, um serviço cujo funcionamento há-de ser assegurado pelo Estado. Mas para assegurar o funcionamento de um serviço cuja exploração se faz ainda em regime de emprêsa — e é o raso — aparecem-nos, na vida actual e na passada, dois sistemas: o sistema da régie e o sistema da concessão.
Por qual destas formas há-de decidir-se o Estado?
Qual destas formas é a mais harmónica com o sistema político do Estado Português?
O sistema da régie é, como V. Ex.as sabem, o sistema dos socialistas; mas, nas formas políticas conservadoras, ou estas apareçam sob a modalidade corporativa ou sob a intervencionista, há sempre a tendência marcada para, nas explorações dos serviços públicos feitas em regime de emprêsa, o sistema da concessão.
Se assim é, se nas orientações políticas conservadoras, ou revistam uma forma corporativista ou revistam uma forma simplesmente intervencionista, há a tendência marcada para que tais explorações se façam sob o regime da concessão, é claro que o princípio consagrado na proposta, de que a exploração dos transportes colectivos deverá fazer-se em regime de concessão, é o que melhor se harmoniza com a doutrina política portuguesa.
Isto não quere significar que nos estados não socialistas não haja também exploração de actividades, erigidas em emprêsas, feita, em régie; quere significar apenas que o regime da concessão é o que melhor se harmoniza com o sistema político português, é o que melhor corresponde à nossa tradição ferroviária e é ainda o que domina na generalidade dos países.
Nesta ordem de ideas, parece ser de aceitar o princípio da exploração ferroviária ou da exploração dos transportes colectivos por concessão, e não em régie, o que o mesmo é dizer parece de afastar o sistema da nacionalização.
Mas, concessão não quere necessàriamente dizer concentração nem quere necessàriamente dizer exclusivo.
Compreende-se, na exploração de qualquer serviço público em regime de concessão, que esta se não apresente sob a forma de concentração e compreende-se também que se não apresente sob a forma de exclusivo.
Se assim é, põe-se naturalmente o problema: porque é que na proposta se vai para a solução da concentração completa num dos nossos sistemas de transporte e de concentração, se quiserem, mitigada, no outro?
Vai-se para a solução da concentração completa no sistema de transportes ferroviários por se entender, e eu creio que bem, que a concentração se impõe num serviço público cujo funcionamento o Estado tem o dever de assegurar e que está a ser explorado por vários concessionários — por uns em condições económicas e por outros não.
Pode acontecer que uns concessionários lucrem e que outros percam.
Se o sistema se deixa ficar no plano em que se encontra, o que se passa?
É que os que lucram arrecadam os lucros, o que não pode considerar-se ilegítimo; e, quanto aos que perdem, como o serviço não pode parar e o Estado tem o dever de lhe assegurar o funcionamento, só há, em última análise, a solução dos subsídios.
Portanto, digo eu: quando estamos em presença de um sistema de exploração de um serviço público em que uns concessionários lucram e outros concessionários perdem, há que pôr o problema: será possível organizar um sistema em que a exploração, no seu conjunto, se faça em condições económicas e, portanto, sem encargos para o Estado? Se há, é adoptá-lo. O sistema que logo acode é a concentração. E é também o aconselhado, desde que se trate de explorações dominadas por princípios técnicos e administrativos idênticos ou paralelos.
Mas creio que é precisamente êste o panorama da rêde ferroviária nacional. Se é — e suponho que ninguém o porá em dúvida — razão teve a proposta em pôr como um dos seus princípios fundamentais o da concentração.
Há-de pôr-se a dúvida de que deve adoptar-se a solução da concentração única ou em mais do que uma unidade.
Mas antes de se considerar êsse problema, quero arrumar uma questão que agora me ocorre. Vai-se então para uma solução de monopólio? Não trato agora de determinar o conceito de monopólio. Seja êle qual fôr, uma cousa é certa: é que, com a concentração, não se modifica, neste aspecto, em nada a situação anterior. Se há monopólio depois dela é porque já o existia antes.
0 Sr. Querubim Guimarãis: — Talvez não seja de aconselhar a concentração ou qualquer sistema de monopólio.
O Orador: — Insisto: se existe monopólio depois da concentração é porque êle já existia antes dessa concentração.
O Sr. Carlos Borges: — Mas, depois da concentração, não será possível criar uma nova carreira. Isso não equivale a um monopólio?
O Orador: — Mas não estou a tratar das carreiras de camionagem; estou a falar de caminhos de ferro.
0 Sr. Carlos Borges: — No que respeita aos caminhos de ferro, V. Ex.ª tem razão.
0 Orador: — Pois é só dêsses que estou a tratar, por ora.
O Sr. Cincinato da Costa: — Vem de um polipólio para um monopólio.
O Sr. Lopes da Fonseca: — 0 raciocínio do Sr. Deputado Mário de Figueiredo, dizendo que o facto de haver concessões lucrativas e outras concessões deficitárias leva lògicamente à concentração, é perfeito, se assentarmos em que as deficitárias o são por fatalidade. Porque se o são por má administração poderiam continuar, modificando-se essa administração.
O Orador: — É assim mesmo.
Dizia, então, que concessão não quere necessàriamente dizer concentração. Mas, no capítulo dos cami-
Página 579
9 DE JUNHO DE 1945
579
nhos de ferro, visto o panorama que acabo de pôr diante dos olhos de V. Ex.as, parece que a política a adoptar é a de concentração.
Eu ia a fazer, antes das considerações anteriores, esta outra nota que me acudiu mais do que uma vez no estudo do problema e que me fez hesitar por a questão a que se refere ser posta por um homem que tem em Portugal a reputação mais bem estabelecida em matéria de caminhos de ferro: é o Sr. engenheiro Vicente Ferreira.
Sustenta o Sr. engenheiro Vicente Ferreira, no seu voto apenso ao parecer da Câmara Corporativa, que acha bem a concentração da via larga, mas não acha bem uma concentração única da via larga e da via estreita.
Uma das razões em que se baseia é a de dever evitar-se que vias férreas que não têm condições económicas de exploração venham para a concentração perturbar o equilíbrio económico da emprêsa proposta à administração da via larga.
É o mesmo argumento em que me baseio para defender a concentração única, visto de outro ângulo. Parece-me que êle não infirma a posição que tomei. Se o serviço tem de funcionar em equilíbrio ou desequilíbrio económico, do que se trata é de saber, neste último caso, se constitue um encargo mais gravoso para o Estado no sistema da concentração única se no sistema da dupla concentração. Eu continuo convencido de que é no sistema da concentração dupla e por isso voto pela concentração única.
Não é, porém, sem estremecimento que o faço, dada a especial competência que reconheço, e todos neste País reconhecem, ao Sr. engenheiro Vicente Ferreira
Ao regime de concessão não é essencial a concentração. E também o não é, como disse, o exclusivo. Deve, no entanto, dizer-se que o exclusivo é o processo normal de explorar os serviços públicos.
É o processo normal, mas não é também essencial à concessão êsse regime de exploração.
Na proposta estabelecesse um regime de exclusivo mitigado para as emprêsas ferroviárias e um regime de exclusivo ainda mais mitigado para as emprêsas de camionagem.
Não entro, visto que me quero conservar no domínio dos princípios gerais informadores da proposta, como já tive ocasião de dizer, na discussão do modo como aparece organizado êste princípio do exclusivo. Quero apenas, quanto à camionagem, dizer que êle aparece na proposta como um processo de dar saúde às respectivas emprêsas e ainda como um processo de lhes atribuir uma faculdade, um privilégio para poder exigir-se-lhes, em compensação, uma prestação. Eu esclareço o meu pensamento. Todos nesta Casa estamos convencidos de que é preciso intensificar a vida das comunicações. Todos nesta Casa estamos convencidos de que é preciso intensificar a vida dos transportes.
As comunicações, os transportes são um meio enorme de desenvolvimento económico, e nós estamos longe de ter atingido o desenvolvimento económico que poderíamos atingir. Mas já que os transportes são um meio de se caminhar nesse caminho, é indispensável trabalhar-se no sentido da intensificação dos transportes.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — É preciso fazer isto para se criar riqueza, para multiplicar o valor da riqueza já criada.
Acontece, porém, Sr. Presidente, que há muitos pontos do País aos quais fazer chegar um meio de transporte é ainda hoje uma cousa que pode interpretar-se como fonte de prejuízos que a iniciativa particular, vendo o imediato e não o futuro, se não disporá a suportar. Há então que tornar possível que, mesmo essas carreiras de camionagem que ninguém quere, que ninguém pede, porque não têm actualmente condições económicas de exploração, venham a ser estabelecidas. É preciso fechar em malhas estreitas a rêde de transportes, de comunicações do País.
Nesta orientação, a proposta utiliza o exclusivo, dando-o como privilégio a certos, para poder impor-lhes, em contrapartida, a realização de carreiras que não tenham condições económicas de exploração.
O modo como o organiza é bom? É mau? Êsse é outro problema que será discutido e considerado na especialidade. Agora, na generalidade, o que se discute é isto: são ou não são de aceitar, são ou não são — para empregar as palavras do Regimento — oportunos e vantajosos os princípios informadores da proposta?
Basta pôr a pregunta para desde logo ficar dada a resposta.
Não é, dizia eu, essencial ao regime de concessão o exclusivo, muito embora êste seja o processo normal de exploração dos serviços públicos; mas é essencial a uma concessão de serviços públicos a regulação de concorrência.
Nós que colaboramos num sistema político que entende que a concorrência levada aos seus extremos limites é absolutamente de afastar em qualquer sector, não teremos necessàriamente dúvida nenhuma em aceitar que a concorrência tem de ser fortemente regulada quando se trate de exploração de serviços públicos, tanto mais quanto é certo que isso é admitido mesmo pelos Estados - se ainda os há — que assentam os seus sistemas políticos na pureza dos princípios liberais.
Na verdade, a concessão é feita por um contrato que cria direitos e obrigações e assenta na possibilidade de fazer a exploração do serviço em regime de equilíbrio económico; ora, muitas vezes, para se atingir êste regime de equilíbrio económico é indispensável travar fortemente a concorrência.
Mesmo nos Estados liberais, em matéria de serviços públicos, foi sempre adoptado êsse sistema.
Mas ainda há uma outra consideração, que é talvez o desenvolvimento da anterior e conduz à mesma solução: é que a livre concorrência é incompatível com regimes que vão além do de polícia ou, quando muito, fiscal, e é claro que êste regime de polícia ou fiscal não obriga naturalmente à prestação de um serviço com regularidade e permanência; e são caracteres essenciais do serviço público a sua exploração regular e permanente.
Portanto, não há dúvida nenhuma de que, se a concessão de um serviço público não obriga nem à concentração nem ao exclusivo, necessàriamente obriga à regulação da concorrência.
A proposta estabelece os princípios de regulação da concorrência entre os dois sistemas de transportes, o sistema rodoviário e o sistema ferroviário, e os princípios de regulação da concorrência dentro do próprio sistema rodoviário.
Não vou mais longe nesta matéria do que lembrar a V. Ex.as o que se contém creio que na base VI, referente a acordos de repartição de tráfego entre emprêsas de camionagem e o caminho de ferro, para mostrar que realmente houve a preocupação de estabelecer a regulação da concorrência entre o sistema rodoviário e o sistema ferroviário.
Houve também a preocupação de regular a concorrência só dentro do sistema rodoviário.
Dizia eu que a exploração de um serviço público em regime de concessão supõe um sistema de regulação da concorrência. Importava agora fixar os limites em que
Página 580
580
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 171
essa regulação da concorrência deve naturalmente mover-se. Para tanto, importava dar solução a várias questões que vou pôr.
Quer na discussão da Assemblea, quer fora da Assemblea, aparece freqüentemente, ia a dizer quási constantemente, esta idea: há uma inflação de meios de transporte.
O Sr. Águedo de Oliveira: — De passageiros há com toda a certeza.
O Sr. Carlos Borges: — E dos caminhos de ferro.
O Orador: — Há na verdade uma inflação de meios de transporte?
O Sr. Carlos Borges: — Há inflação de passageiros e de mercadorias.
O Orador: — Mas eu estou a pôr a interrogação e V. Ex.as estão já a dar a resposta.
O Sr. Carlos Borges: — Suponhamos que se tratava de uma afirmativa.
Há inflação de meios de transporte, diz-se por um lado; e tanto, continua-se, que a crise dos caminhos de ferro é, em grande parte, conseqüência da concorrência da camionagem.
Há inflação de meios de transporte, pode dizer-se por outro lado, porque é conhecida a massa de unidades transportadas pelos meios de transporte e é, bem ou mal, conhecida a capacidade transportável. Ora, como a capacidade transportável é muito maior que o volume transportado, diz-se: há inflação de meios de transporte. Eu não me atrevo a afirmar nem a negar com sabor definitivo ou com base num estudo irrefutável que não seja assim. Mas atrevo-me a afirmar que, apesar de tudo o que se diz, tenho o sentimento de que não há tal inflação de meios de transporte.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Pode haver, num troço reduzido, inflação de meios de transporte. Pode haver, num troço reduzido, concorrência perniciosa entre os dois sistemas de transporte. Êste é um problema.
Outro é o de saber se, considerada a questão no conjunto nacional, há ou não inflação de meios de transporte. Eu inclino-me a que não há.
O Sr. Águedo de Oliveira: — V. Ex.ª dá-me licença? Essa idea não é uma idea posta em 1938?
O Orador: — Eu estou a raciocinar em 1938.
O Sr. Ulisses Cortês: — Pode V. Ex.ª pôr igualmente a questão em 1929!
O Sr. Águedo de Oliveira: — Há, actualmente, deflação de meios de transporte.
O Orador: — Estou a raciocinar, se quiserem, em 1938. E tenho a inclinação apontada, apesar de pessoas da maior competência na matéria afirmarem que é indiscutível a inflação de meios de transporte.
O Sr. Ulisses Cortês: — Nalguns países existe.
O Orador: — O que eu disse há pouco é exacto: que é muito mais elevada, mesmo em 1943 e até em 1945, a capacidade transportável, pelo menos de passageiros, do que o volume transportado. Quere dizer: há um afastamento ainda grande entre o volume do transporte e a capacidade de transporte oferecida ao público.
O Sr. Marques de Carvalho: — Em 1945?!...
O Sr. Rui Pereira da Cunha: — V. Ex.ª dá-me licença? Não interessa que haja grandes capacidades de transporte, por exemplo, nos caminhos de ferro de via reduzida, quando a não haja nos de via larga. Creio que o que interessa é o conjunto das linhas férreas ou, melhor, tanto ferroviárias como rodoviárias.
O Sr. Carlos Borges: — V. Ex.ª dá-me licença? Isso é uma cousa que se vê pràticamente. V. Ex.ª vê passar as camionetas nas estradas e as bichas que se formam para se obterem bilhetes de caminho de ferro, e até a especulação que existe para se angariarem passagens.
O Orador: — Por isso eu estava a dizer que, apesar de os números poderem conduzir à idea de que há inflação dos meios de transporte, eu duvido e tenho o sentimento de que não há essa inflação.
V. Ex.as têm aqui o coeficiente de utilização dos lugares nas carreiras de camionagem de serviço público.
Leu.
Claro, sòmente por estes números e para quem olhar só para os números, a percentagem de ocupação de lugares demonstra uma inflação de meios de transportes de camionagem.
O Sr. Águedo de Oliveira: — Parece que há sobras!...
O Sr. Ângelo César: — Eu tenho a impressão de que se deve fazer um comentário a êsses números. Todas as estatísticas que podem constituir perigo fiscal costumam ser emmagrecidas...
O Orador: — Eu não me atrevo a dizer isso e até julguei que o Sr. Dr. Ângelo César ia dizer uma cousa diferente. Ia a dizer que o nosso velho professor Dr. Marnoco e Sousa (se não foi professor de V. Ex.ª foi meu professor de estatística) ensinava que os números falavam, mas que eram como a burra de Balaão, que também falava, porém só a entendia o profeta.
Eu julgava que o Sr. Dr. Ângelo César ia a dizer que não tinha culpa de eu não ser profeta!
O Sr. Ângelo César: — Mas é que eu não sou nem a burra nem o profeta.
O Orador: — Ora bem: a consideração geral que eu desejo fazer é no sentido de afastar o peso dêstes números. É evidente que nunca um meio de transporte atinge o óptimo, expresso por uma percentagem de ocupação de 100 por cento.
Não sei qual é a percentagem calculada para as emprêsas ferroviárias.
O Sr. Cortês Lobão (em àparte): — Um têrço.
O Orador: — Bem. Para as emprêsas de navegação eu sei que está calculado trabalharem em boas condições de exploração se transportarem 60 por cento da sua capacidade de transporte.
Para os caminhos de ferro é então, segundo diz o Sr. major Lobão, de 33 por cento a percentagem.
Os números dizem pouco. Mas que dissessem muito ainda não eram definitivos, porque se referem a todos os passageiros transportados e, mesmo nas carreiras concorrentes, não pode determinar-se, de entre êsses, os que representam uma forma de concorrência efectiva
Página 581
9 DE JUNHO DE 1945
581
aos caminhos de ferro: e são só, naturalmente, os que fazem percursos com pontos terminais em duas estações da linha.
Quanto às carreiras de mercadorias ou mixtas, além de poucas, não autoriza o direito vigente a sua concessão, quando concorrentes.
Estão, pois, fora de debate.
Nesta ordem de ideas, creio que não é muito de considerar a concorrência que fazem as carreiras regulares de camionagem ao caminho de ferro. E se se pensar que elas podem ser elementos preciosos de desenvolvimento económico, por um lado, e criar, por outro, o gosto nas populações de viajar, é de pôr a dúvida sôbre se, em vez de concorrência prejudicial, não estarão antes a desenvolver o condicionalismo que há-de multiplicar o tráfego do caminho de ferro.
Ligue-se isto com a nossa fraca capitação de tonelagem transportada — 0,6, a mais baixa que conhecemos — e com os planos de reconstituïção económica e ainda com a baixa capitação das viagens — quatro viagens por pessoa, igual à de Itália e também a mais baixa — e palpitar-se-ão as perspectivas que estão reservadas ao caminho de ferro ou aos dois sistemas de transporte.
Acreditemos que não serão más essas perspectivas!
Picam então os automóveis de aluguer e os automóveis particulares, em geral.
Quanto aos particulares que não sejam de aluguer, creio que ninguém pensará em intervir com medidas que ultrapassem um regime de polícia ou fiscal.
Quanto aos de aluguer, poderá intervir-se, mas não em nome dos princípios que informam a proposta; poderá intervir-se em nome dos princípios do condicionamento industrial.
Quero dizer que ainda aqui o regime da proposta é, para os automóveis particulares em geral, o correcto, porque faz pensar num regime apenas policial ou, quando muito, também fiscal.
Para os automóveis de aluguer é que, confesso, a solução não me parece da mesma maneira correcta quando restringe a 50 quilómetros o raio de acção dêstes veículos.
Não digo que não se possa estabelecer êste limite de raio de acção; pode, mas não em nome dos princípios que formam a estrutura fundamental da proposta, tratando-se, como se trata, de uma regulação de concorrência em actividades de serviço público.
Os automóveis de aluguer não realizam um serviço público. Era, por isso, preciso, procurar fora da proposta justificação para a limitação que se estabelece e só se encontraria na lei do condicionamento industrial.
Aqui têm V. Ex.as os princípios essenciais informadores da proposta e, se êles são lestas, poderá recusar-se-lhe o voto de aprovação na generalidade?
Eu creio que não e creio também que, quanto à organização, na especialidade, dêstes princípios, o problema não está nem podia estar fechado pelo Ministro ou pelo Govêrno, porque ambos o que desejam, como nós, é que se ponham em movimento e se convertam em lei os melhores fórmulas que forem encontradas de execução dêstes princípios.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — Continuará na próxima segunda-feira a discussão da proposta na generalidade. Está encerrada a sessão.
Eram 17 horas e 42 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
Ângelo César Machado.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luiz Augusto das Neves.
João Pires Andrade.
José Dias de Araújo Correia.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário Correia Teles de Araújo è Albuquerque.
Querubim do Vale Guimarãis.
Rui Pereira da Cunha.
Sebastião Garcia Ramires.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alberto Cruz.
António Cristo.
Carlos Moura de Carvalho.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
O Redactor — M. Ortigão Burnay.
Propostas enviadas para a Mesa, na sessão de hoje, pelo Sr. Deputado Mário de Figueiredo relativamente à proposta de lei sôbre coordenação de transportes terrestres:
Base I
A fim de conseguir a maior eficiência económica dos transportes ferroviários, o Govêrno estabelecerá o plano de substituïção de todas as concessões de linhas férreas de via larga e estreita por uma concessão única, que abrangerá as próprias linhas do Estado.
Esta concessão será feita à emprêsa que resultar da fusão das actuais, por acôrdo entre elas. O Govêrno promoverá êste acôrdo e deve, em qualquer caso, tomar as medidas necessárias à satisfação do objectivo previsto na alínea anterior.
Base II
Base II da proposta de lei (eliminada).
Base II
(Correspondente à base XIII da proposta de lei)
À nova emprêsa incumbe realizar, além da exploração de toda a rêde, conforme os progressos técnicos e comerciais, a transformação e reapetrechamento dessa rêde, conforme plano por ela proposto ou da iniciativa das estâncias oficiais, devidamente aprovado pelo Govêrno em Conselho de Ministros.
Êste plano deve prever tudo o que respeita à economia dos transportei ferroviários e, em especial, a electrificação das linhas julgada conveniente.
Para executar êsse plano pode o Govêrno facilitar à emprêsa a obtenção dos necessários meios financeiros e atenuar os encargos que actualmente oneram o exercício da indústria ferroviária.
Base III
Feita a nova concessão, instituir-se-á um sistema tarifário baseado em distâncias quilométricas corridas desde a estação de origem do transporte até à do destino,
Página 582
582
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 171
independentemente da bitola das vias percorridas, que apenas influïrá para o pagamento das operações efectivas e necessárias de trasbôrdo de mercadorias, e sem prejuízo do estabelecimento de sistemas especiais era pequenos percursos, linhas ou ramais com características particulares e condições próprias que os justifiquem ou aconselhem.
Base IV
0 Govêrno, paralelamente à concentração da exploração ferroviária, promoverá, quando o interêsse público o aconselhar, o agrupamento, por acôrdo das emprêsas exploradoras de carreiras automóveis, em grau conveniente, de modo a não se eliminar a possibilidade de uma competição regrada, e não fará novas concessões a emprêsas diferentes das existentes, a não ser que as exigências do tráfego o justifiquem.
Se às novas concessões concorrerem várias emprêsas, terá preferência a que se julgar mais idónea.
As emprêsas que operam em certa região poderão sempre pedir a concessão de novas carreiras nessa região. Mas, quando resulte concorrência, elas só serão concedidas se as necessidades públicas as justificarem, considerados os interêsses da coordenação dos transportes, devendo neste caso a exploração ser repartida pelas emprêsas concessionárias das carreiras afectadas.
O cancelamento de carreiras só poderá ser autorizado quando existam outras sobrepostas ou, em qualquer caso, se o interêsse público da coordenação o justificar.
Base V
O Govêrno pode, a todo o tempo, impor à emprêsa ou emprêsas que operem em determinada região a efectivação de carreiras de interêsse público cuja concessão elas não tomem a iniciativa de pedir, ou o prolongamento das concedidas, fixando a forma de compensação que fôr justa quando o novo serviço exigido não oferecer condições económicas de exploração.
Base VI
Entre as emprêsas exploradoras dos transportes por via férrea e por estrada interessadas deverão celebrar-se acordos para a repartição do tráfego entre um sistema e outro de forma a servir-se convenientemente o interêsse público em harmonia com as aptidões de cada um dêsses sistemas.
Êsses acordos carecem de aprovação pelo Govêrno.
§ 1.° Se os acordos referidos não puderem estabelecer-se voluntàriamente ou não merecerem a aprovação superior, a divisão do tráfego será definida pelo Govêrno, ouvido o Conselho a que se refere a base X.
§ 2.° Além dos acordos de divisão de tráfego serão celebradas entre as emprêsas interessadas contratos de serviço combinado que assegurem devidamente a ligação dos dois sistemas de transportes.
§ 3.° A emprêsa ferroviária poderá subsidiar as concessionárias para o estabelecimento de novas carreiras, ou ainda para a manutenção das existentes cujo cancelamento venha a ser superiormente autorizado, mas cuja circulação convenha, por razões especiais, à referida emprêsa ferroviária.
§ 4.° (O § 4.° do parecer da Câmara Corporativa).
Base VIII
Serão definidos com precisão os transportes de aluguer e os transportes particulares para efeito de se instituir o regime jurídico mais adequado a cada categoria dêsses transportes.
Os de aluguer para mercadorias, fora das zonas urbanas ou suburbanas, serão submetidos ainda a um regime mais especial que, não lhes limitando o espaço de deslocação, os impeça de perturbar a economia dos transportes. Esta disposição não prejudica a concessão de facilidades para o transporte de determinadas mercadorias, como peixe fresco e géneros de rápida deterioração.
Base IX
Quando a concentração da rêde ferroviária estiver efectivada, o Govêrno promoverá que a fiscalização de todos os transportes por via férrea e por estrada seja unificada, ficando sob a superintendência da Direcção Geral dos Transportes Terrestres, criada em substituïção das actuais Direcções Gerais de Caminhos de Ferro e dos Serviços de Viação.
Base X
Junto da Direcção Geral dos Transportes Terrestres, ou, transitòriamente, das Direcções Gerais de Caminhos de Ferro e dos Serviços de Viação, funcionará o Conselho Superior dos Transportes Terrestres, ao qual competirá a acção superior de coordenação dêsses transportes, além das outras atribuïções que lhe forem fixadas pelo Govêrno.
O Conselho terá como presidente nato o Ministro das Obras Públicas e Comunicações e como presidente efectivo, por sua delegação, um engenheiro inspector superior de obras públicas.
Além dos presidentes, constituirão o Conselho:
a) Um vice-presidente, que será o director geral dos transportes terrestres, ou, transitòriamente, dois vice-presidentes, que serão os directores gerais de caminhos de ferro e dos serviços de viação;
b) Dois vogais de livre escolha do Ministro das Obras Públicas e Comunicações;
c) Um delegado do Ministério da Guerra e outro do Ministério da Economia;
d) Um representante das emprêsas ferroviárias ou da que vier a resultar da fusão a que se refere a base I;
e) Um representante das emprêsas concessionárias de transportes automóveis;
f) Três representantes das actividades agrícolas, industriais e comerciais.
§ 1.° Por cada vogal efectivo haverá um suplente, que será escolhido ao mesmo tempo e pela mesma forma para aquele estabelecida.
§ 2.° O Conselho Superior dos Transportes Terrestres procederá à revisão do plano geral da rêde ferroviária do continente, aprovado pelo decreto n.º 18:190, de 10 de Abril de 1930, tendo em vista, para essa revisão, a evolução das circunstâncias que influem na escolha do sistema mais conveniente de transportes terrestres.
§ 3.° Ao Conselho Superior dos Transportes Terrestres caberá, em especial, pronunciar-se sôbre o plano da concentração a que se refere a base I, sôbre as concessões e o cancelamento de carreiras automóveis, sôbre os acordos de repartição de tráfego, sôbre as disposições incluídas na base VIII e sôbre as tarifas dos dois sistemas de transportes.
§ 4.° O Conselho Superior dos Transportes Terrestres substituïrá os actuais Conselhos Superiores de Caminhos de Perro e de Viação.
Base XII
O Govêrno poderá autorizar regimes especiais de exploração económica nas linhas férreas secundárias cujo rendimento não compense as despesas de uma exploração normal. Se, mesmo em exploração económica, não deixarem de ser deficitárias, poderá ser autorizada a cessação temporária ou definitiva, parcial ou total, da exploração nessas linhas, desde que, em vez dela, seja estabelecida, pela emprêsa ou emprêsas concessionárias de transportes automóveis interessadas, ou, na recusa destas, pela emprêsa ferroviária, uma carreira com
Página 583
9 DE JUNHO DE 1945
583
percurso equivalente, tudo condicionado, porém, à satisfação das necessidades públicas e às exigências do desenvolvimento dá região servida.
Base XIV
A todos os transportes automóveis colectivos ou de aluguer será aplicado um sistema tributário escalonado, que conduza ao equilíbrio económico em que deve assentar a coordenação dos transportes terrestres e que, conseqüentemente, deverá ser em maior ou menor grau:
a) Menos oneroso para os transportes de carreira do que para os de aluguer;
b) Menos oneroso para as carreiras afluentes e independentes do caminho de ferro do que para as concorrentes;
c) Especialmente reduzido para as carreiras a que se refere o § 3.° da base VI, assim como para os transportes rurais a pequena distância e para todos aqueles que se tornem necessários por deficiência dos transportes colectivos.
§ único. Será estabelecido um imposto de compensação, em certa medida, sôbre os transportes automóveis cujos veículos utilizem combustível de procedência estrangeira não sujeito, por motivos de protecção agrícola ou industrial, aos mesmos impostos que oneram a gasolina.
Base XV
Em compensação de melhoramentos a introduzir no sistema de transportes por estrada, tais como a construção de estações centrais de camionagem ou simples abrigos, que não devam competir às emprêsas concessionárias, estas cobrarão do público, por conta do Estado, uma quantia correspondente à que daquele é cobrada como imposto ferroviário pelas emprêsas exploradoras dos caminhos de ferro.
Imprensa Nacional de Lisboa