O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 601

REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 174
ANO DE 1945
14 DE JUNHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 171, EM 13 DE JUNHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
José Luiz da Silva Dias
SUMÁRIO: — O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 41 minutos.
Antes da ordem do dia. — Deu-se conta do expediente. Foi autorizado o Sr. Deputado Juvenal de Araújo a depor, como testemunha, numa das varas cíveis de Lisboa.
Ordem do dia. — Prosseguiu o debate, na especialidade, da proposta de lei de coordenação dos transportes terrestres.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Duarte Marques, Águedo de Oliveira, Araújo Correia, Antunes Guimarãis e Mário de Figueiredo.
Nas votações que se seguiram foram rejeitadas as emendas do Sr. Deputado Antunes Guimarãis e aprovadas as dos Srs. Deputados Mário de Figueiredo e Águedo de Oliveira, ficando prejudicadas as do Sr. Deputado Araújo Correia, todas respeitantes às bases I e II.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 53 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 31 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alberto Cruz.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco da Silva Telo da Gama.
Henrique Linhares de Lima.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Garcia Nunes Mexia.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Viterbo Ferreira.

Página 602

602
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 174
José Alberto dos Reis.
José Alçada Guimarãis.
José Clemente Fernandes.
José Dias de Araújo Correia.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Ranito Baltasar.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário de Figueiredo.
Pedro Inácio Álvares Ribeiro.
Rui Pereira da Cunha.
Salvador Nunes Teixeira.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 59 Srs. Deputados. Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 41 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Como os Diários das duas últimas sessões ainda não chegaram à Assemblea, não os posso pôr à votação.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Exposição
Associação Comercial do Pôrto. - Ex.mo Sr. Presidente da Assemblea Nacional. — Desnecessário será encarecer a importância que para a vida económica e para o progresso nacional tem a proposta de lei n.º 96, de 30 de Janeiro de 1945, apresentada pelo Sr. Ministro das Obras Públicas e Comunicações e sôbre a qual a Câmara Corporativa já emitiu o seu parecer e a Assemblea Nacional concluiu a discussão na generalidade.
Tratando-se de uma questão de carácter nacional, que deve ser orientada no sentido do bem público, não poderia a Associação Comercial do Pôrto eximir-se a dar o seu contributo para êsse desideratum, no cumprimento de um dever que na sua actividade mais que secular nunca preteriu.
Supérfluas e extemporâneas seriam, neste momento, quaisquer considerações preliminares. E, assim, a Associação Comercial do Pôrto limita-se a apontar, no texto da proposta, aquelas disposições que julga não se conciliarem com os superiores interêsses colectivos e, dentro de um espírito construtivo, a enunciar as soluções que se lhe afiguram mais equitativas e proveitosas para a comunidade.
Não deixou de chamar a sua atenção o facto de o robustecimento das emprêsas ferroviárias ser o objectivo principal indicado no relatório da proposta para a fusão dessas mesmas emprêsas numa emprêsa única.
É evidente que o que se reveste de nítida importância é o melhoramento das condições técnicas da exploração dos caminhos de ferro, a redução das tarifas e o abreviamento dos prazos de entrega das mercadorias. Isso o que deveria ser mencionado como o objectivo principal a atingir.
Já no I Congresso Nacional de Transportes, realizado nesta cidade em 1939, o delegado da Associação teve oportunidade de focar o assunto, citando como exemplo a seguir no nosso País o da organização dos serviços dos caminhos de ferro belgas.
O pagamento das operações de trasbôrdo de mercadorias a efectuar quando o percurso destas abranger troços de bitolas diferentes impede a unificação de tarifas, um dos maiores benefícios que se poderia conseguir com a projectada fusão.
Para facilitar o agrupamento em grau conveniente das emprêsas exploradoras de carreiras automóveis estabelece a proposta a divisão do País em zonas. Tendo em atenção a pequena superfície e as características geo-económicas e populacionais de Portugal, êste sistema não deixará de prejudicar a rapidez, facilidade e economia dos transportes inter-regionais, obrigando pessoas e mercadorias a inúteis trasbordos, pois só excepcionalmente o Govêrno autorizará carreiras ligando uma zona à outra.
O capital das emprêsas que se constituam em resultado de um agrupamento deve ser fixado pelo Govêrno em relação com o valor das carreiras a explorar, a sua subscrição feita pelas emprêsas concessionárias e, na hipótese de a subscrição não absorver integralmente o capital, por emissão pública.
Como os caminhos de ferro só dentro de alguns anos poderão desempenhar a missão que lhes é atribuída na proposta e a plena execução desta será evidentemente morosa, esta Associação julga ser de eliminar a disposição que proíbe a concessão de novas carreiras.
Altamente lesiva da economia nacional e do interêsse público é a base da proposta que estabelece a regulamentação dos transportes em regime de aluguer e dos transportes particulares, com excepção dos efectuados em carros ligeiros de passageiros, e que determina ainda que os transportes de aluguer para mercadorias só sejam, em regra, autorizados dentro de um raio de acção de 50 quilómetros em volta da localidade da respectiva sede.
Os transportes particulares de mercadorias não devem ser entravados por qualquer regulamentação restritiva, e para os transportes de aluguer de mercadorias impõe-se a possibilidade de circulação em todo o País, embora essa circulação seja condicionada pelo pagamento de taxas, a fixar, proporcionais às distâncias a percorrer. A adoptar-se o critério estabelecido pela proposta, uma mercadoria carregada no Pôrto com destino a Viseu, por exemplo, que em transporte directo por camioneta teria de percorrer a distância de 138 quilómetros, em caminho de ferro necessita de ser transportada por camioneta do domicilio à estação de partida, levada pelo caminho de ferro até Espinho, aí trasbordada para um vagão da linha do Vale do Vouga, que a leva até à estação de Viseu, onde uma camioneta a recebe de novo para a deixar no seu destino, depois de ter percorrido o mínimo de 167 quilómetros. E quantos exemplos se poderiam oferecer semelhantes a êste, alguns em que a distância por caminho de ferro seria dupla ou até tripla do percurso por estrada, com as correlativas demoras, que em muitos casos não podem ser permitidas pela natureza da mercadoria.
As representações das actividades agrícolas, industriais e comerciais junto do proposto Conselho Superior dos Transportes Terrestres devem competir a associações que representem interêsses gerais, e não a orga-

Página 603

14 DE JUNHO DE 1945
603
nismos que superintendam num determinado ramo de cada um dêsses três grandes sectores económicos. E assim, devem êsses três representantes ser designados respectivamente pela Associação Central da Agricultura Portuguesa, pelas Associações Industriais Portuguesa e Portuense e pelas Associações Comerciais de Lisboa e do Pôrto.
As carreiras de transportes automóveis classificados como concorrentes, que pela proposta só excepcionalmente serão autorizadas, devem ser mantidas a bem das necessidades públicas. As mais importantes estradas nacionais acompanham mais ou menos, no seu traçado, a via férrea. Suprimir as carreiras automóveis que por elas se efectuam causaria uma perturbação grave à vida comercial, industrial e agrícola do País. Os caminhos de ferro não estão actualmente, nem estarão em tempos próximos, em condições de suportar a afluência que a aprovação de tal medida provocaria. E, mesmo que outras razões não existissem, a economia de tempo e a distância das estações ferroviárias a certas localidades eram factores em seu desfavor.
Nas resumidas considerações expendidas a Associação Comercial do Pôrto não pretendeu mais do que levar ao conhecimento de V. Ex.ª, Sr. Presidente da Assemblea Nacional, os principais reparos que lhe mereceu a proposta apresentada pelo Sr. Ministro das Obras Públicas e Comunicações. O profundo interêsse que ao estudo da mesma têm dispensado a Câmara Corporativa e essa Assemblea dá ao País fundadas esperanças de que o diploma que há-de estabelecer a coordenação dos transportes terrestres será, sob todos os pontos de vista, justo e prático e obedecerá a directrizes que o orientem no interêsse nacional.
A V. Ex.ª temos a honra de apresentar os protestos da mais elevada consideração.
A bem da Nação. — Associação Comercial do Pôrto, 11 de Junho de 1945. — O Presidente, António Calem.
Pausa.
O Sr. Presidente: — O juiz do 9.° tribunal cível da comarca de Lisboa pede, em ofício, que seja autorizado a depor no dia 15 próximo o Sr. Deputado Juvenal de Araújo.
Proponho lhe seja concedida autorização.
Consultada a Assemblea, foi concedida autorização.
O Sr. Presidente: — Visto nenhum Sr. Deputado estar inscrito para o período de antes da ordem do dia, vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Continuam em discussão as bases I e II da proposta de lei sôbre coordenação dos transportes terrestres.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Duarte Marques.
O Sr. Duarte Marques: — Sr. Presidente: estamos defrontando o ponto mais discutido da proposta e para a solução do qual os alvitres da nacionalização ou concessão se debatem no mesmo anseio de bem servir.
Mantendo o mesmo ponto de vista exposto quando da discussão na generalidade, vou concretizar os receios quanto à forma como se pretende realizar a coordenação.
Podem estes receios não ter a grandeza apaixonada de uma questão de direito nem interessar ao labirinto jurídico que a solução em causa requere.
Mas o que acontecerá à construção de um edifício se lhe faltar o pormenor da argamassa, com o qual o arquitecto se não preocupou?
Vamos ao assunto.
Sôbre a situação difícil do sistema de transportes ferroviários diz o preâmbulo da proposta que «elas (as dificuldades) resultam também de causas que lhe são próprias e que se traduziram na impossibilidade de conseguir um aumento de receitas paralelo ao aumento de despesas...».
Tratasse, portanto, de uma insuficiência de administração, porque para fazer face às despesas imprevistas ou impostas pelas circunstâncias não se procuraram, por uma exploração de melhores meios, as receitas necessárias.
Esta insuficiência administrativa é a expressão fiel e real do meio em que se verifica — morosidade de acção, que nos tempos de hoje é dos mais condenados predicados de quem administra sistemas de tráfego -, obedecendo ao princípio, neste caso deslocado, de que a maior receita se obterá com a menor despesa; evidentemente que assim o interêsse público, fonte principal de receita, terá sempre de ser considerado em segundo, plano.
Ora, esta insuficiência perdurará através de toda e qualquer forma que se dê à fusão nos moldes em que se pretende e pela lógica simples de que se manterá o mesmo espírito orientador, de onde se conclue que o interêsse da emprêsa há-de sobrepor-se a qualquer outro.
É raciocínio errado? Paciência; é o que dita o meu discorrer.
Eu desejo ressalvar, Sr. Presidente, antes de continuar as minhas considerações, pondo fora da crítica e da questão a honorabilidade e a indiscutível competência técnica individual dos directores das emprêsas ferroviárias, a quem individualmente presto as melhores homenagens.
Refiro-me exclusivamente à administração organismo de vida das emprêsas, à orientação tomada por elas como a melhor, como frutos natos das mesmas emprêsas, da sua especialidade orgânica, e cujos processos de administrar já são discutíveis.
Historiemos:
No congresso de caminhos de ferro realizado em Londres por alturas de 1925 ou 1926 foi largamente debatido e problema de possíveis concorrências de outros sistemas de transporte, salientando-se de entre êles o automóvel.
Preconizou-se então uma série de medidas que, além de fortalecer o prestígio ferroviário, realçasse as suas vantagens, protegesse o interêsse das emprêsas e sobretudo criasse, por melhoria do tráfego, a simpatia do público, tudo, afinal, em favor do interêsse colectivo.
Neste sentido, optou-se não só pela melhoria do material circulante, mas sobretudo pela utilização de outros meios de transporte diferentes que, integralmente adstritos e colaborantes, permitissem a fácil utilização do sistema ferroviário, para assim lhe obter um melhor e mais próspero desenvolvimento.
E o que se passou então?
Nos países da Europa onde as conclusões do congresso mereceram a consideração devida o serviço de transportes atingiu o máximo da perfeição, quer na sua própria orgânica fundamental, concentrando-se ou nacionalizando-se as emprêsas respectivas, quer na exploração objectiva de bem servir o público, melhorando o material circulante e horários e ainda organizando, como exploração complementar, privativa e adstrita ao sistema, um modelar serviço de autóbus, lentos mas de grande capacidade e comodidade, que completava itine-

Página 604

604
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 174
rários, facilitava o acesso às estações, servia ramais deficitários, fechava e completava circuitos, do que resultou um perfeitíssimo diagrama de comunicações, sem receio de qualquer concorrência, apesar de esta se fazer e de se manter crescente por várias emprêsas de transporte, quer automóvel, quer aéreo, e sem entrechoque de interêsses.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — E em Portugal?
Com excepção do Vale do Vouga, que em boa verdade tentou desenvolver a orientação congressista que se expôs, as restantes emprêsas quedaram-se, optando pelo comodismo da exploração da concessão que lhe fôra feita, exclusivo êste que lhe garantia a vida industrial do organismo; taparam-se os ouvidos, por deleite sonolento de uma administração calma, aos conselhos do congresso e fecharam-se céptica e languidamente os olhos às realidades e sobretudo à ânsia de desenvolvimento das actividades económicas nacionais, que no seu espraiar crescente procuraram melhores meios para viver e frutificar utilizando a camionagem.
As emprêsas administravam ao sabor da sua lentidão própria, e não ao sabor das exigências nacionais.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — As próprias zonas turísticas arcaram com a iniciativa arrojada de um arrendamento para poderem satisfazer as necessidades objectivas e para fugir ao marasmo estagnante de uma administração adormecida.
As resoluções tardias afugentavam a simpatia do público, que, apesar de tudo, reconhece as vantagens do sistema ferroviário.
Não me metem dó nem me comovem lamentos que hoje se ouvem, porque, na verdade, uma das causas principais do desequilíbrio foi a insuficiência de administração das emprêsas, manifestada, numa falta imperdoável de visão, por comodismo próprio.
Eis em síntese uma verdade cruel, é certo, mas para mim elucidativa bastante para a considerar como causa primeira do regime deficitário dos caminhos de ferro.
Por isso, Sr. Presidente, fundamentado é o meu receio, justificada é a minha desconfiança sôbre se a concentração prevista por fusão das actuais emprêsas não traduzirá um somatório de várias insuficiências que nos conduza para breve a situação mais difícil ainda do que a que se discute hoje.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Mas ainda há mais!
Quando os caminhos de ferro do Estado foram arrendados à actual emprêsa arrendatária estavam êles em plena pujança de desenvolvimento.
Parecia que a emprêsa arrendatária melhoraria a situação por aumentar o seu poder de exploração em virtude da fusão obtida, e, como tal, o desenvolvimento do tráfego seria um facto, pelo aumento considerável das possibilidades.
E que resultou afinal?
Pràticamente, nada.
Sr. Presidente: os meus receios de que a fusão das emprêsas, prevista na base I, não corresponda à concepção governamental, por supor que essa fusão se traduza em fusão de crises das crises de administração que enfermam as mesmas emprêsas, sem dinamismo, sem iniciativa, avolumam-se e negam o meu voto para tal fusão.
Como resolver, pois, o problema de acôrdo com os desejos fundamentais da proposta?
Em minha opinião nacionalizando quanto possível a exploração do sistema; e de resto é êsse, em parte, e segundo a minha interpretação, o espírito do período final do corpo da base I.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Mas não com aquela nacionalização estagnada como o ilustre Deputado Sr. Silva Dias a classificou — e agora perdoe-me S. Ex.ª que lhe diga, sem espírito de ofensas mas só crítico, que estagnado me parece estar o conceito mantido em sua esclarecida opinião quanto aos efeitos futuros sôbre a fusão da decantada e demonstrada eficiência administrativa das actuais empresas —, mas sim como uma nacionalização activante, coordenadora e orientadora, provocando uma dinâmica exploração, como é prevista na proposta de emenda apresentada pelo ilustre Deputado Sr. Dr. Antunes Guimarãis, proposta esta que tem inteiramente o meu apoio e à qual no momento oportuno darei o meu voto, devendo, no entanto, declarar ainda que concordo com as restantes propostas de emenda apresentadas, porque na verdade todas elas encerram na sua essência princípios que defendem a concepção governamental dos perigos que os meus receios apontaram. Sr. Presidente: exposto o meu pensamento, não me impressionam situações de desagrado que êle possa provocar, nem receio a crítica dos que possam dar a esta atitude —aliás sempre a mesma mantida nesta Câmara —, uma interpretação diferente daquela que a caracteriza: lealdade máxima de pensamento e actuação, porque é tudo quanto a pequenez da minha personalidade pode dar a quem a Nação tudo deve — Salazar.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — De resto, é êste o espírito que felizmente norteia os destinos desta Assemblea, a que V. Ex.ª tam douta e brilhantemente preside.
Saio desta tribuna, Sr. Presidente, seguramente confiado em que a concepção governamental, depois de apreciada por esta Câmara, será mais um testemunho, a juntar a tantos outros, de confiança por parte da Nação ao Govêrno e de prestígio do mesmo Govêrno perante o estranho.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Águedo de Oliveira: — Sr. Presidente: entrando o processo parlamentar no articulado, a minha intervenção há-de focar os aspectos jurídicos e administrativos. Algumas considerações que, desde o princípio, sinto necessidade de trazer à tribuna, sôbre economia dos transportes, hei-de deixá-las para outra altura, ainda que quási tudo tenha sido dito.
No nosso tempo, o caminho de ferro deixou de ser uma exploração capitalista e passou a ser um verdadeiro serviço público, organizado sôbre essa forma.
As intervenções constantes do Estado, as suas ajudas, os favores e desagravos de tarifas, bilhetes colectivos, os transportes de combustíveis e de exportações, as reduções substituíram o velho princípio económico da lucratividade pela idea moderna de serviço nacional, expresso numa política económica.
Estas ideas são firmes, explicam muita cousa e delas podem espraiar-se lògicamente várias perspectivas.
Sr. Presidente: como foi preparado o debate?

Página 605

14 DE JUNHO DE 1945
605
Poderão um dia discutir-se as posições relativas ocupadas neste problema, continuará embora a competência das diversas soluções, postas em conflito, sôbre as questões de fundo; porém, uma cousa parece segura, desde já: a Assemblea Nacional cercou-se de elementos de estudo, não houve monografia que não lesse atentamente, relatório que não consultasse, estatística que não sofresse o seu exame, leis e contratos que não se analisassem, artigo a artigo, elementos de trabalho que não fôssem reflectidos, ponto por ponto.
Diga-se, em abono da verdade, apesar de a proposta e relatório representarem notável tarefa e o parecer da Câmara Corporativa revelar a mais alta tecnicidade, que foi aqui que surgiram alguns ângulos novos, vistas novas, aspectos insuspeitados, e tudo isso pôde ser dissecado e aproveitado para chegar-se a uma solução.
Quando as reacções lá fora descortinavam uma saliência mais aguda ou um aspecto mais palpitante, já nas sessões de trabalho preparatórias se tinha voltado, de todos os lados, a complexidade do problema.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Não tomo acta disto para louvar os meus companheiros de trabalho, mas para significar que nunca deixaram de estar bem patentes os interêsses nacionais da «coordenação» - entendida esta como a entende hoje Locklin, Bertrand Nogaro, Johson, os grandes responsáveis da economia dos transportes, como a entende toda a gente — um sentido amplo que abrange todos os desenvolvimentos e possibilidades singulares dos transportes, dentro de uma ordenação geral.
Em poucas palavras — deitou-se a livraria abaixo e nada ficou para folhear.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Por isso, a despeito mesmo da nossa tradição administrativa e dos imperativos de ordem constitucional, que forçavam ao abandono da solução régie, êste problema foi cuidadosamente estudado pelo lado das suas características económicas.
Creio que poucas, dentro das nações ocidentais, se baterão a estas horas, pela sua sustentação, na forma tradicional — a régie à moda antiga, pois que os espíritos se voltam agora para outra cousa, assaz diversa — a «régie interessada», que contém já em si o tempêro, o travão e até o estímulo das novas formas de economia mixta.
Como não vou embrenhar-me na espessa floresta das suas dificuldades, limitar-me-ei a duas afirmações: primeira, a régie continua a ter uma servidão orçamental. Inscreve-se uma verba para fazer frente às despesas. Estabelece-se um fundo, vai-se abonando todos os anos um subsídio.
O orçamento do Estado parece bastante poderoso e rasgado para suportar tudo. Há a impressão de que o orçamento sustentará o pêso até ao extremo limite. Mas o contribuinte, que é quem o alimenta, pensa de outra forma e reclama.
Segunda, a régie continua a ter uma burocracia económica que degenera na socialização, pelo pessoal empregado.
Não há aqui livre jogo de interêsses contrários, nem de fiscalização — tudo concorre para um fim institucional que afirmam ser o do País.
Explorar resulta difícil.
Em dado momento, uma tendência domina no sentido de desviar os custos do material para despesas do pessoal.
Mesmo na régie interessada estão de pé algumas das demonstrações clássicas que o velho Leroy—Beaulieu, duas gerações atrás, formulou aos caminhos de ferro do Estado.
O agravamento das posições de monopólio de direito ou de facto e de quási monopólio.
A reclamação geral de gratuitidade, pela Administração, pelos políticos, pelas classes em geral.
A intromissão da política na linha e da linha na política.
A falta de plasticidade e de decisão na vida administrativa da emprêsa nacionalizada.
Mas nalgumas cousas se enganam os defensores da régie.
É em supor que na nossa forma de concentração disciplinada e controlada o Estado renuncia, perde ou abandona os seus direitos, ou chega à sua efectivação por caminho mais longo e áspero, por caminho mais custoso.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: passo agora à solução preconizada na base I do Dr. Mário de Figueiredo.
Algumas palavras em seu louvor.
A proposta mantém-se dentro do terreno de interpretação das tendências mais genéricas da sessão de estudo.
Esquematiza a doutrina e a prática que os repetidos estudos e discussões evidenciaram. Realizou-a um notável comercialista. Desde os bancos dos gerais — e eu já não direi à Câmara quando isso foi — que o Dr. Mário de Figueiredo está admiràvelmente afeito aos segredos jurídicos da mecânica das emprêsas. Porque nem sempre era fácil encontrar expressão legislativa para todas as ansiedades, desenhos, ideas de realização dos princípios de economia transportadora — o trabalho venceu obstáculos que não poderiam esperar-se ultrapassados breve.
A proposta é uma fórmula encontrada por uma pessoa de galhardia indesmentida; de feitio indomável no combate do interêsse nacional, o que nos dá a maior segurança.
A proposta do Dr. Mário de Figueiredo obedece a uma concepção moderna, perfeitamente rigorosa.
O empreendimento ferroviário é um serviço destinado ao público. A sua melhor forma de organização consiste na sua concessão. Se existe uma rêde ferroviária num pequeno país, se ela funciona dispersivamente, se não rende nem económica nem socialmente, há-de tentar-se a unificação do empreendimento da exploração.
Porquê serviço público?
Pela extensão espantosa das necessidades de deslocação das classes mais numerosas do País e o aumento formidável das trocas a grande distância. Necessidades tam poderosas de trabalho e consumo nacional que mais se elevam a imperativos categóricos, no sentido de se organizar um verdadeiro serviço nacional.
Consideradas dêste lado as cousas, a concessão, além de uma certeza de vida administrativa, de segurança contratual, parece ser a que melhor se adapta às mais valias do serviço e aos interêsses do público — não faltando a previsão necessária, nem desprezada a técnica apropriada.
A unificação do empreendimento é outro ponto da proposta.
Há a favor da unificação quatro argumentos bastante convincentes:
1.° A necessidade de uma massa desconforme de capitais para reorganização e obras complementares que, singular ou fragmentàriamente, não poderiam ser obtidas;

Página 606

606
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 174
2.º A tendência natural de domínio e absorpção pelas grandes linhas das linhas vizinhas e complementares;
3.° A importância das despesas gerais em frente das despesas específicas;
4.° A possibilidade de mais larga eficácia industrial com menores custos.
Sr. Presidente: passo agora ao exame da proposta Araújo Correia.
Julgo difícil encontrar estudioso que, em aplicação, suplante o engenheiro Araújo Correia.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Através dos cuidados administrativos duma das nossas maiores organizações bancárias êle está iniciado nos segredos íntimos da vida industrial. Conhece as crises, as faltas, as dificuldades do empreendimento industrial; mas também não é alheio ao arranque, à largada das iniciativas, ao auxílio da sua marcha, à sua prosperidade vitoriosa, quando ela se coroa de êxito industrial.
A proposta do engenheiro Araújo Correia contrapõe-se à régie e contrapõe-se à concessão única.
Vamos examiná-la apenas uns instantes, por ser desacerto tentar fazer uma nota à brilhante análise formulada aqui ontem.
Como é que o engenheiro Araújo Correia sintetiza a sua proposta?
Um plano concreto, minucioso e largo de realizações ferroviárias. Financiamento dêsse plano, «depois de reunidas todas as emprêsas numa única exploração», na qual o Estado irá ocupar o seu lugar, progressivamente, à medida que forem expirando as concessões.
Parece que a proposta apresenta as seguintes virtudes:
1.ª A sua aparente simplicidade deixa de pé as actuais concessões. Estabelece uma única emprêsa de exploração com base em acôrdo.
O Govêrno fica com as mãos livres na hipótese de falhanço das negociações.
2.ª Toma especial cuidado em determinar que as partes respectivas do capital passem para o Estado quando da reversão, no final das concessões.
Não tenho que tirar um ponto, mas pôr uma vírgula, à lição magistral de ontem.
Acrescentarei apenas o ligeiro ensinamento da prática económica estrangeira em casos semelhantes.
Eis agora o reverso da medalha.
Uma reorganização assim contém um germe de antagonismo — as situações anteriores pesam para além da exploração nova.
São improváveis do acôrdo ou encontraram-se muitas dificuldades nos ajuntamentos das antigas e novas emprêsas: quanto a encargos, financiamentos, responsabilidades e até direcção última.
Nem sempre foi fácil caracterizar as relações entre elas. Arrendamento? Delegacia? Traspasse de exploração em sentido largo? Subconcessão?
Por outro lado, torna-se característica a transitoriedade da solução — régie ou concessão espreitam já no horizonte.
Volto ao exame da posição do citado proprietário e interessado no caminho de ferro.
Não é hoje um grande negócio o de uma linha de caminho de ferro.
Talvez nenhum de nós o quisesse para si. É um negócio que não rende, e poucas esperanças há de vir a render, tirante as artérias principais de um país, na hipótese de tarifa elevada.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — O socialismo das linhas, o subvencionismo constante, a certeza de que a pele do contribuinte pagará tudo, nem agrada ao povo português, nem está no critério dos seus dirigentes.
Portanto negócio precário, que não seduz o Estado-Fazenda Pública.
Mas num país que está tentando electrificar-se e industrializar-se, em que a população aumenta enormemente, subindo o volume do tráfego, o caso pode mudar de figura. E agora é preciso distinguir entre fortuna pública, que é a da Nação, indistintamente, e domínio privado do Estado.
A primeira é uma noção estatística, uma apreciação da soma das fortunas privadas dos habitantes de um país.
O domínio privado do Estado é a sua propriedade própria, que êle administra e disfruta e até faz render como a propriedade de um particular qualquer.
Neste aspecto o Estado parece-se com o meu vizinho.
Ora o Estado ocupa uma posição avultada nos empreendimentos ferroviários, e essa posição é relevante para a Fazenda Nacional.
Primeiro, possue créditos sôbre as emprêsas, porque as financiou ou lhes emprestou meios e valores.
Terá, mesmo, lotes de obrigações.
Depois, tem uma posição avultada, porque dispõe de enorme volume de valores das diferentes emprêsas, que fazem dele um grande accionista e comparticipante.
Depois, finalmente, possue, através do jogo das concessões actuais, as expectativas seguras de pleno domínio, como, por exemplo, a do norte e leste, a mais próxima e rendosa.
Claro que, insisto, para não haver confusões, o Estado, assim, pode ser proprietário, usufruir mesmo uma renda, um dividendo, descartar um valor, sem com isto se meter a explorar ou a fazer andar o caminho de ferro.
Uma cousa é, pois, a propriedade e outra cousa é a exploração, como geralmente se sabe.
Uma cousa vem a ser o dono da terra, da quinta ou da herdade, e outra vem a ser o empresário agrícola, que cultiva ou explora a mesma terra, quinta ou herdade.
Pois bem: eu estou considerando a posição do Estado como o dono de uma parte dos valores ferroviários.
Simplesmente não desejo que a sua posição seja tam forte que absorva o empreendimento e tudo se passe a fazer pela sua direcção, conta e risco; portanto, que o Estado se entregue à exploração directa.
O que eu digo é que me parece indispensável, em qualquer alteração que se faça do regime legal ferroviário, contar com os valores do Estado e os seus direitos futuros.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — No que eu insisto é em que não se pode reformar sem contar com o Govêrno, que executa a reforma, e com a Fazenda Pública, que administra o património privado.
O que suponho necessário consignar é que em qualquer acção administrativa, qualquer negociação, hão-de ter-se bem patentes não só os interêsses da Nação, como os interêsses particulares do Estado Português.
Não devo ocupar muito tempo a tribuna para poder desenvolver êste meu ponto de vista. Mas acho que o regime de concessão, separando os capitais, os interêsses do poder concedente e os interêsses e deveres do concessionário, também permite destacar, apreciar, louvar e tomar em devida conta os interêsses particulares

Página 607

14 DE JUNHO DE 1945
607
presentes e futuros do Estado. Parece fácil organizar assim, destacadamente, a concessão.
Como se poderá acautelar ou reservar o domínio privado do Estado no caminho de ferro?
Há que fazer uma estimativa. Isso já não é connosco. Mas acho logo várias fórmulas melhores ou piores: reversibilidade gratuita, das linhas, dependências e material ao fim de um certo número de anos; reserva de um conjunto de valores e direitos, para, na altura própria, serem integrados na Fazenda Nacional; constituïção de lotes de acções traspassáveis, de tipo particular ou mixto, representando os valores afectos ou a afectar.
Admito que a concessão única não seja longa, mas faltam-me elementos decisivos para me pronunciar com segurança. Admito até que no dia em que a electrificação seja total o Estado queira e possa tomar conta do caminho de ferro, passando do domínio público para o domínio fiscal.
Os custos hão-de baixar, desaparecerá a importação maciça de combustíveis; em grande parte do ano as locomotivas rolarão impelidas pela energia das torrentes; o negócio tornar-se-á francamente rentável. Portanto, o Estado não renuncia aos seus próprios interêsses. Há-de pugnar por obter o máximo de utilidades nacionais e particulares.
Enganam-se os que supõem que um caderno de encargos, em mãos tam cautelosas, possa despir-se da maior defesa e severidade. Porém, parece legítimo deixar consignado um ponto de vista firme.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Araújo Correia: — Sr. Presidente: ao encarar o problema doa transportes ferroviários em Portugal podem considerar-se diversas soluções, entre as quais as seguintes:
1) Nacionalização directa ou indirecta;
2) Prorrogação das concessões;
3) Constituïção de uma única concessão;
4) Sociedade exploradora de todo o sistema ferroviário.
Sr. Presidente: não perfilho agora a nacionalização dos caminhos de ferro. Ela implicaria o resgate e, por conseqüência, a imobilização de somas muito avultadas e que devem avizinhar-se de 2.000:000 de contos.
E, no momento em que se prevê o dispêndio de grandes capitais no reequipamento da linha, o desvio, para despesas de resgate, de quantias elevadas não se justificaria, nem creio ser possível. Contudo o quadro seguinte mostra ser excepção, na Europa, a exploração de caminhos de ferro por particulares. Os três únicos países em que a exploração é inteiramente particular são Portugal, Inglaterra e Luxemburgo.
[Ver diário original]
Julgo não haver diferença substancial entre a solução da proposta de lei e a de concessão única na parte relativa à ampliação, dos prazos das concessões. Constitue-se, na verdade, uma nova concessão por prazo de tempo largo - e essa concessão é entregue às emprêsas ferroviárias actuais. Com o devido respeito pela opinião de cada um, isto equivale a ampliar os prazos das concessões.
Ora o Estado, dentro de catorze anos, tem direito à concessão mais valiosa — a linha norte e leste — e duas alternativas se podem dar: ou o Estado abdica, do valor real dêsse direito a troco de vantagens que a êle correspondem, ou, juntamente com o das suas linhas, com êle entra na nova sociedade concessionária, e, neste último caso, dada a grande importância da concessão, julgo que irá até ao domínio em sociedade mixta.
Em qualquer dos casos a proposta tem para mim graves inconvenientes. O primeiro assiná-la-o a Câmara Corporativa a pp. 416-423. É o «melindre», a delicadeza na fusão, que é baseada, em caderno de encargos da responsabilidade do Estado.
Outro inconveniente da formação de uma única concessão é o do pêso dos encargos financeiros do passivo de todas as companhias ferroviárias — e não apenas êsse passivo, mas até ónus de qualquer natureza que porventura recaiam sôbre o seu activo.

Página 608

608
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 174
Sabe-se que uma parte do capital obrigacionista e accionista de algumas das actuais emprêsas não é português e que houve no passado questões em tribunais estrangeiros. Há certamente desvantagem em transmitir para a nova sociedade os restos de um passado que não é brilhante, justamente quando é mester organizar financeira a tècnicamente o sistema de transportes em bases sólidas.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Há ainda, neste momento, outras razões que não aconselham uma concessão única, por largo espaço de tempo. Leiam-se, por exemplo, dois recentes artigos de fundo no Times, onde um especialista, a propósito de idêntico problema, analisa as circunstâncias do momento que passa.
Claramente ali afirma, em acôrdo com outros técnicos, que «The present is probably not the time for a gigantic leap in the dark such as a huge transport merger would be».
Não é, na verdade, êste o momento para saltos no desconhecido, sobretudo em matéria de transporte. Ora a concessão única enleia ou prende a acção do Govêrno por largo espaço do tempo.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Postas de parte estas soluções, pelos motivos que acabo de expor, a que se poderiam juntar outros da diversa natureza, resta o tipo de sociedade exploradora, que a Câmara Corporativa considera mais fácil, mas que, segundo ela, «não poderia atingir o relêvo de uma emprêsa única, senhora de todas as linhas férreas do País, nem podia aspirar a iguais facilidades de crédito».
Ora, exactamente em Portugal, as facilidades de crédito, em qualquer caso, serão dadas pelo Estado, que, além do mais, participará na nova sociedade com as suas linhas.
Mas podem ser-lhe feitos diversos reparos:
1) A manutenção de conselhos de administração que, sem nada terem que administrar, podem absorver receitas importantes;
2) O pagamento das despesas de 1.° estabelecimento;
3) A distribuïção do material circulante pelas concessões;
4) A liquidação dos encargos das actuais emprêsas;
5) As dificuldades opostas para aceitar fórmula que não envolva prorrogação das concessões.
Vejamos o caso em termos simples:
1) A manutenção de conselhos de administração em emprêsas que não exercem actividade directa na gerência dos caminhos de ferro.
Só a suspeita de que êsses conselhos de administração possam ganhar somas elevadas sem nada produzir mostra a tragédia dos nossos hábitos administrativos e a necessidade de os remodelar, uma vez por todas. Mas tudo pode acontecer.
E para obviar a isso, porque não há-de o Govêrno, no pleno uso de um direito, fazer incluir no acôrdo que levará à constituïção da sociedade exploradora uma cláusula que limite ao justo a remuneração de corpos gerentes de tam deminuta actividade? Ou porque se não há-de até incluir na actual proposta uma disposição que dê poderes ao Govêrno para limitar êsses honorários, se as assembleas gerais das respectivas emprêsas entenderem não exercer elas essa prerrogativa?
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — A segunda objecção refere-se ao pagamento das despesas de 1.° estabelecimento. Não vale a pena agora definir com grandes pormenores o que são despesas de 1.° estabelecimento e em que elas consistem. Há um tipo dessas despesas que é inerente às concessões e da responsabilidade dos concessionários, e ninguém tem dúvidas de que são êles os responsáveis pelo seu pagamento.
As despesas de 1.° estabelecimento têm o objectivo de aperfeiçoar a exploração — e a primeira grande conseqüência que delas resultará há-de naturalmente ser a redução nos custos (ou aumento no tráfego), e, por conseguinte, a melhoria nas receitas líquidas. Quem beneficia com essa melhoria são naturalmente os concessionários das linhas onde ela se dá.
Mas poderá sustentar-se isto: os benefícios das obras não se repercutem no período em que elas se realizam, nem, em toda a sua fôrça, nos anos que se seguirem. Isto tanto acontece no caso de uma emprêsa exploradora, como no caso de uma emprêsa concessionária que lambem é exploradora. E num e noutro caso os encargos terão de ser pagos pelo produto das receitas líquidas que resultam da exploração.
O que na prática acontece, em matéria de caminhos de ferro, para obras de maior vulto é o estudo de tabela de encargos de modo que êles possam vir a ser liquidados quando se produzem os efeitos das obras em que foi gasto o capital.
Qualquer máquina ou obra de engenharia tem vida mais ou menos longa, conforme a sua natureza.
A amortização do custo é repartida, naturalmente, pelos anos dessa vida, de modo que, quando ela se extingue, a máquina encontra-se amortizada e é substituída por outra. O mesmo critério se aplica a qualquer obra económica. Uma vez terminada a obra, ou instalada a máquina, uma tabela de anuïdades, que podem ser uniformes, crescentes ou decrescentes, estabelece a forma do seu pagamento, que cabe naturalmente à emprêsa que usufrue os resultados da exploração.
Mas as anuïdades relativas a obras de 1.° estabelecimento, feitas no sentido de modificar a economia da rêde ferroviária, como no caso da electrificação, terão de ser liquidadas pela concessionária só durante o período em que delas tira resultados, e saem naturalmente dêsses resultados — das receitas líquidas.
As principais obras de 1.º estabelecimento a realizar no sistema ferroviário nacional terão lugar na linha norte e leste e consistem principalmente na electrificação de diversos troços. E só poderão realizar-se depois de trabalhos de conservação e reparação a que alude um relatório de que aqui se falou.
Por outro lado, ainda se não iniciaram as obras hidráulicas que hão-de produzir a energia para os combóios. Tudo isto leva tempo. Pode dizer-se que o início da exploração, na parte electrificada, estará muito perto do têrmo da concessão e que, por conseqüência, quando esta reverter para o Estado, ainda talvez os antigos concessionários não tenham pago qualquer anuïdade.
Os seus direitos ou interêsses não serão atingidos, e antes, em contrário, só ganharão com os trabalhos efectuados, porque irão compartilhar dos resultados das obras de 1.° estabelecimento como societários da emprêsa exploradora.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: o caso concreto da actual unificação é simplificado pela passagem para o Estado da linha norte e leste, que viu as suas receitas líquidas subirem de menos de 30:500 contos em 1938 para 69:300 em 1943, mais de duas vezes aquela importância.
Argumentando sôbre o caso do pagamento das anuïdades relativas a obras de 1.° estabelecimento, pode

Página 609

14 DE JUNHO DE 1945
609
chegar-se à conclusão de que quem as pagará depois de a concessão ter revertido para o Estado será o Estado, exactamente como antes era a concessionária.
Mas eu pregunto: não são as anuïdades, num e noutro caso, liquidadas por fôrça das receitas líquidas? E, se a sociedade exploradora continua a exploração nas condições anteriores, com a única mudança no detentor da concessão, não receberá o Estado o que lhe é devido das receitas líquidas para pagamento da anuïdade relativa a obras de 1.° estabelecimento? O Estado pagará essas anuïdades exactamente nas condições em que anteriormente eram liquidadas pela concessionária. A não ser que houvesse de admitir-se a idea de que, pelo simples facto de haver transferência de uma cota numa sociedade para o Estado, êste ficasse apenas com as obrigações e lhe fôssem negados os benefícios que cabia a quem o precedera.
Há-de naturalmente ser a linha norte e leste, com as suas receitas, e não o Estado, que virá a liquidar os encargos do capital. É êste instrumento de progresso, de tam prometedor futuro, que o Estado deve utilizar no aperfeiçoamento da rêde ferroviária.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Outro argumento diz respeito ao material circulante que cabe a cada concessão. Quem ler os contratos sabe que cada emprêsa é obrigada a manter o material circulante necessário à exploração. E disso é juiz o Govêrno, por intermédio dos seus órgãos técnicos, que em qualquer altura podem intervir no sentido de manter adstrito à concessão êsse material.
Mas o assunto está previsto em uma das concessões, onde explìcitamente se diz que o material circulante deverá ser proporcional à exploração.
Parece não haver dúvidas a êste respeito — nem nos técnicos das emprêsas ferroviárias nem nos do Estado.
Sr. Presidente: nem o passivo das actuais emprêsas, nem por conseqüência os seus encargos passam para a sociedade exploradora, e isso representa uma grande vantagem. Outro tanto já não acontece com o caso da sociedade de concessão única, embora o passivo possa vir a ser reduzido por acôrdo ou medidas tomadas pelas emprêsas.
As receitas e despesas brutas, nos dois casos da sociedade exploradora e de concessão única, são as mesmas, porque o mesmo é o tráfego. De modo que o total das receitas líquidas e os coeficientes da exploração também são idênticos. Como se distribuem essas receitas líquidas?
Na sociedade exploradora a parte que sobrar depois de pagos os encargos há-de necessàriamente ir para os respectivos associados — as actuais emprêsas ferroviárias —, que utilizarão o que receberem da sociedade exploradora no pagamento dos seus próprios encargos.
Não há qualquer diferença nos dois casos porque as receitas e despesas totais, as receitas líquidas, os coeficientes de exploração, os encargos por obras novas são sempre, os mesmos. O que sobrar, num caso, vai para os sócios da sociedade exploradora, que o utilizará no pagamento dos encargos do seu passivo — e no outro, na sociedade concessionária, vai também para os encargos dêsse passivo.
Deste modo, tanto num como noutro caso se pagam os débitos das actuais emprêsas, incluindo os devidos ao Estado, na medida em que fôr possível, pelo volume dos resultados, que é sempre o mesmo, tanto na sociedade exploradora como na concessionária.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Diversos argumentos se têm pôsto em favor da prorrogação dos prazos das concessões. Os mais importantes são:
1.° A prorrogação facilita arranjos financeiros entre o Estado e as emprêsas.
Parece que as matérias pendentes, ou que se podem levantar, são:
a) Deficits acumulados dos caminhos de ferro do Estado desde 1937;
b) Pagamento do material circulante a que é obrigado o Estado no fim do prazo das concessões.
Quanto ao pagamento dos deficits dos caminhos de ferro do Estado nada há definido, por parte do Estado, relativamente ao seu quantitativo. É evidente que êsse quantitativo, sôbre o qual há opiniões muito divergentes, nunca pode equivaler a uma parcela que de longo se assemelhe ao valor das concessões agora ampliadas — e não será quantia que não possa ser solvida de outro modo.
Quanto ao valor do material circulante e abastecimentos no fim da concessão norte e leste êle nunca será, de facto, desembolsado pelo Estado, no caso de ser aprovada a modalidade da sociedade exploradora.
Com efeito, o Estado no fim do prazo da norte e leste é obrigado a pagar o material circulante e os abastecimentos que recebe em troca. Vende-os logo em seguida à emprêsa exploradora pelo preço por que os comprou. Se esta não tiver dinheiro, tudo se passa como se fôsse meramente a abertura de um crédito. O material circulante e abastecimentos são transferidos de uma emprêsa para outra, e se a detentora das concessões norte e leste dever ao Estado quantias, como agora acontece, ela pode pagar-lhe em material circulante e abastecimentos, devidamente avaliados, que, traduzidos em dinheiro, o Estado empresta à sociedade exploradora. Houve apenas uma transferência de débitos e créditos. Nada mais.
De modo que pode finalmente dizer-se que não há arranjos financeiros de importância que justifiquem as prorrogações das concessões.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — 2.° Outro argumento parece bastante convincente à primeira vista. É êste: para que as emprêsas actuais dêem o seu acôrdo a qualquer proposta de unificação é necessário conceder-lhes vantagens. E essas vantagens resultam da prorrogação das concessões.
Salvo melhor opinião, parece que o facilitar meios financeiros e outros benefícios, tais como tarifas mais adequadas, restrições no tráfego da camionagem e até, possìvelmente, redução de impostos, (representa, tudo somado, um valor grande, traduzido em economias de juros, melhor exploração, mais tráfego e ainda alívio nos encargos fiscais. Há-de ainda juntar-se mais a prorrogação de uma valiosíssima concessão?
Mas, se apesar dêstes benefícios, que são grandes, as emprêsas ainda recusam acôrdo? Como há-de o Govêrno cumprir a lei aqui votada? Como?
Só quem desconhece a situação das companhias no ponto de vista financeiro e as dificuldades no cumprimento dos seus contratos de concessão pode ter dúvidas sôbre isso. Basta fazer cumprir êsses contratos no que diz respeito a obras na via, nas pontes, conservação, etc.
Em resumo: a proposta que enviei para a Mesa, com outros ilustres Deputados, tem a defendê-la:
1) Completa maleabilidade. Não tolhe os movimentos do Govêrno no futuro, sobretudo numa época em que em todos os países o bom senso ordena cautela em matéria de organização ferroviária;

Página 610

610
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 174
2) Defende o interêsse do Estado, parque manda reverter para êle o que lhe pertence de direito, e quando êsse direito se manifesta em curto prazo de tempo numa concessão tam valiosa, é certamente de vantagem não o invalidar;
3) Permite a formação de uma sociedade exploradora saneada, sem passivo desde o seu início, além do que resulta de materiais úteis para a exploração, e não dá a capitais particulares estrangeiros benefícios que não sejam aqueles a que têm direito;
4) Respeita os direitos e obrigações de todos: do Estado, das emprêsas e, conseqüentemente, dos seus accionistas e obrigacionistas;
5) Torna possível, com o auxílio do Estado, a remodelação do sistema ferroviário nacional numa sociedade mixta;
6) Não nacionaliza a rêde ferroviária; a sociedade exploradora poderá durar até ao fim da última concessão, ou seja até ao ano de 2017; e
7) Permite o gasto de avultadas somas, mediante prévio estudo pelo Govêrno, em cousas que o Govêrno aprova e em valiosas concessões, que reverterão para o Estado dentro de prazo relativamente curto.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Antunes Guimarãis: — Sr. Presidente: só a circunstância de, ao usar da palavra na especialidade para apreciar as bases I e a da proposta de lei, não ter ainda conhecimento exacto das propostas de substituïção apresentadas pelo Sr. engenheiro Araújo Correia e pelo Sr. Dr. Mário de Figueiredo, bem como do complemento a esta última apresentado pelo Sr. Dr. Águedo de Oliveira, é que me determina a subir, uma vez mais, à tribuna para confrontar aqueles alvitres com a solução por mim proposta à matéria das bases I e II do Govêrno, agora em discussão.
Nesta altura do debate a votação terá de incidir sôbre quatro textos:
1.° O do Govêrno.
Peço licença para mais uma vez fazer a sua leitura, atendendo à enorme importância da decisão que a Assemblea Nacional vai tomar:
Base I
O Govêrno promoverá a fusão das emprêsas ferroviárias, por acôrdo entre elas, numa só emprêsa exploradora de toda a rêde geral de via larga e via estreita. No caso de o acôrdo se não verificar, deverá o Govêrno tomar as medidas necessárias para a satisfação dêsse objectivo.
§ 1.° Para facilitar a fusão o Govêrno poderá prorrogar o prazo das concessões das linhas existentes e unificá-las quanto às suas condições e duração.
§ 2.° Da exploração em comum poderão ficar excluídos, mediante contratos de arrendamento em que o Estado intervirá, pequenas linhas ou ramais que possuam características especiais e condições próprias que justifiquem ou aconselhem a excepção.
Base II
O Govêrno promoverá a entrega das linhas férreas do Estado, em regime de concessão integrada no conjunto a que se refere a base anterior, à emprêsa que actualmente as tem de arrendamento ou à que vier a resultar da fusão que a mesma base determina.
Sr. Presidente: destas duas bases do Govêrno só a parte relativa à fusão das emprêsas ferroviárias, a julgar pelo que se disse nesta tribuna, logrou a aceitação da Assemblea.
A prorrogação do prazo das actuais concessões, a exclusão de pequenas linhas e ramais e a entrega, em regime de concessão, das linhas férreas do Estado à emprêsa que actualmente as tem de arrendamento ou à que vier a resultar da fusão de todas as concessões não encontraram, a julgar pelo que aqui se disse, ambiente favorável à sua aprovação.
2.° É assim redigida a proposta do Sr. engenheiro Araújo Correia:
A fim de conseguir maior eficiência económica e melhor comodidade do público em matéria de transportes, o Govêrno, mantendo os actuais prazos das concessões, promoverá, por acôrdo das entidades interessadas, a constituïção de uma única emprêsa exploradora de toda a rêde de via larga e via estreita. À medida que forem expirando os prazos das actuais concessões reverterão para o Estado, na nova emprêsa exploradora, as partes de capital que corresponderem a cada uma delas, sem prejuízo dos direitos e obrigações que para o Estado e para as emprêsas resultem dos respectivos contratos no fim das concessões. No caso de o acôrdo se não verificar, deverá o Govêrno tomar as medidas necessárias para a satisfação dêsse objectivo.
Sôbre esta proposta de substituïção do Sr. engenheiro Araújo Correia já incidiu uma apreciação demorada e inteligente do Sr. Dr. Mário de Figueiredo, e não tomarei tempo à Assemblea Nacional a reeditá-la.
Direi apenas que, analisadas as cousas, se trata de uma nacionalização à la longue (que iria até 2017!) e com a qual não transige a minha formação médica.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Uma vez reconhecida a oportunidade de uma intervenção cirúrgica, há que realizá-la quanto antes e o mais ràpidamente possível, para benefício do doente.
Além disso, pela fórmula do ilustre Deputado Sr. Araújo Correia o Estado passaria a ser comparte de uma emprêsa capitalista, isto é, a sua frota, como possuidor dos Caminhos de Ferro do Minho e Douro e Sul e Sueste e sucessivamente o que viesse a pertencer-lhe mercê da terminação das diferentes concessões, passaria a ser administrada segundo normas capitalistas, visando o lucro, e portanto sem que da exploração daqueles caminhos de ferro resultassem para o público todas as vantagens a que legìtimamente tem direito por se tratar do património nacional.
Entendo, Sr. Presidente, que, pelas razões expostas e pelos argumentos contra já inteligentemente aduzidos pelo Sr. Dr. Mário de Figueiredo, essa proposta, na qual não deixo de reconhecer grande soma de esfôrço patriótico do Sr. engenheiro Araújo Correia, não corresponde ao que a Nação espera da lei que vier a resultar da votação da Assemblea Nacional.
3.° A proposta do Sr. Dr. Mário de Figueiredo, também resultante de demorado estudo, em que S. Ex.ª se esforçou por conciliar a redacção do Govêrno com o pensamento de alguns Srs. Deputados, é assim concebida:
Base I
A fim de conseguir a maior eficiência económica dos transportes ferroviários, o Govêrno estabelecerá o plano de substituïção de todas as concessões de linhas férreas de via larga e via estreita por uma

Página 611

14 DE JUNHO DE 1945
611
concessão única, que abrangerá as próprias linhas do Estado.
Esta concessão será feita à emprêsa que resultar da fusão das actuais, por acôrdo entre elas. O Govêrno promoverá êste acôrdo e deve em qualquer caso fornecer as medidas necessárias à satisfação do objectivo previsto na base anterior.
Sr. Presidente: esta fórmula, a exemplo do que se verifica na do Govêrno, não está eivada de capitalismo do Estado. E, também, como se dá com a do Govêrno, foge das incontestáveis vantagens que resultariam para a comunidade da administração de todo o sistema ferroviário por um organismo do Estado, mas desburocratizado, única forma de não transformar o património nacional em fonte inadmissível de lucros, que tornariam mais caros os transportes ferroviários.
Além disso, diz-se ali taxativamente que, depois de fundidos, por acôrdo ou mercê das medidas que o Govêrno entender, o Govêrno entregá-los-á numa só concessão, e, portanto, com novos prazos, à emprêsa que suceder às actuais mercê da referida fusão.
Sr. Presidente: salvo o devido aprêço pelo ilustre Deputado que a redigiu e pelos distintos colegas que também a subscreveram, entendo não ser de admitir esta proposta de substituïção.
O Sr. Presidente: — V. Ex.ª tem dois minutos para, concluir. V. Ex.ª já fez a apreciação e a análise da proposta.
O Orador: — Muito obrigado pelo aviso de V. Ex.ª Eu termino já.
4.° Finalmente vou ler a V. Ex.as as minhas três propostas de substituïção às bases em discussão:
Base I
O Govêrno decretará oportunamente a fusão do sistema ferroviário — via larga e via estreita — para a sua integração no património nacional e maior eficiência dos respectivos serviços, podendo para isso usar da faculdade de resgate.
Base II
Realizada a fusão, será confiada a um organismo autónomo, com normas comerciais, a respectiva administração.
Base III
Não obstante, fica o Govêrno autorizado a promover, por concurso público, a adjudicação daquele sistema ferroviário a uma emprêsa, se circunstâncias supervenientes assim o indicarem, a bem da economia nacional e para defesa do Estado.
Sr. Presidente: já desta tribuna expus desenvolvidamente os argumentos sôbre que se baseiam aquelas propostas de substituïção.
Contudo, agora que vão ser submetidas à votação, permita V. Ex.ª que sucintamente volte a enunciá-los.
Visam elas, como as bases do Govêrno, a rápida melhoria do nosso sistema ferroviário, para corresponder às necessidades da Nação.
Contudo, a fórmula por mim proposta é de efeito imediato e de resultados plenamente úteis para a comunidade.
Se o acôrdo fôr inviável, o recurso previsto no contrato, livremente aceite pelos concessionários, será aplicado, e mercê do resgate todas as concessões entrariam no património nacional, para serem administradas por um organismo do Estado.
É que não se compreenderia que o Estado se julgasse incompetente para administrar o que lhe pertence. Nem a tradição injustamente citada o justificaria; nem vinte anos de boa administração pública, com exemplos prestigiosos dessa mesma administração em domínios da feição dos caminhos de ferro, permitiriam uma tam inexplicável e perniciosa orientação.
A administração do Estado, sem fins estritamente lucrativos, serviria o interêsse nacional em todos os seus aspectos legítimos, fomentaria as actividades e criaria novas fontes de riqueza, sem que para isso precisasse de ser restringida a concorrência de outros sistemas de transporte.
A coordenação que esta proposta de lei procura seria assim consideràvelmente facilitada.
Mercê da simplicidade da minha fórmula, tudo se resolveria ràpidamente, sem ferir interêsses legítimos, mas assegurando-se a indispensável defesa do nosso património e dos dinheiros públicos, e a administração do sistema dos caminhos de ferro poderia ter por lema exclusivo: servir a Nação!
Além disso, em época de profunda transformação como a presente não ficaríamos enfeudados por muito largo período à emprêsa prevista nas fórmulas do Govêrno e do Sr. Dr. Mário de Figueiredo; e, repito, evitaríamos os inconvenientes já apontados da proposta do Sr. engenheiro Araújo Correia.
Disse.
Vozes! — Muito bem, muito bem!
O Sr. Mário de Figueiredo: — Sr. Presidente: não ouvi no desenvolvimento da discussão em sessão pública que fôsse produzido qualquer argumento que infirmasse aqueles que eu mesmo produzi contra soluções diferentes das minhas ou a favor da própria solução que apresentei.
Ouvi pôr problemas que pretendiam tocar a construção que fiz como constituindo o pensamento essencial informador da minha proposta, mas não ouvi produzir qualquer argumento que efectivamente tocasse aquela construção.
Vou, portanto, ver se consigo tomar os pontos que pretendiam tocá-la, mas que eu creio ficaram ao lado, pedindo desde já que, se eu lhes não tiver apreendido o conteúdo ou não recordar completamente o pensamento das afirmações que contra a minha proposta quiseram produzir-se, seja imediatamente corrigido aqui mesmo.
Disse-se não haver diferença essencial entre o princípio da prorrogação previsto na proposta do Govêrno e a forma de prorrogação implícita admitida na minha proposta de substituïção.
Quanto a isto nada tenho a observar senão que o problema está perfeitamente esclarecido no Diário das Sessões, e quem quer que queira ler o esclarecimento que ali ficou exarado poderá verificar que há, na verdade, uma diferença essencial entre a prorrogação como aparece na proposta do Govêrno e a prorrogação — falando sem propriedade de linguagem —, como, numa das hipóteses de solução, aparece implícita na minha proposta.
Falou-se da questão dos honorários dos conselhos de administração, em que eu não toquei e que na verdade me não preocupam.
Compreendo que num país como o nosso haja que considerar êsse aspecto, porque toca realmente a sensibilidade política de um povo cuja massa de funcionários é insuficientemente paga.
Por mim não ignoro que não são os honorários dos conselhos de administração que sobrecarregam fortemente a vida económica de emprêsas que mexem com

Página 612

612
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 174
um bom volume de capitais. Reconheço, torno a dizer, que é aspecto a considerar, dada a sensibilidade política do povo português; eu não julgo dever considerá-lo, porque não é através dele que há-de resolver-se o problema em debate.
Falou-se das despesas de 1.º estabelecimento. Quem as paga? Estamos esclarecidos agora: é sempre o Estado! E, portanto, o admitir-se esta ou aquela solução, é, para efeito de se determinar a quem incumbe pagar as despesas de 1.° estabelecimento, indiferente. Porquê? Porque, a respeito de despesas do 1.° estabelecimento, há que raciocinar como a propósito da reintegração do capital investido numa máquina de caminho de ferro.
Compra-se uma máquina; a máquina tem a sua vida, e é preciso no momento da sua morte ter à mão o capital indispensável para adquirir outra; para isso vai-se reintegrando o capital investido, conforme uma anuïdade que fàcilmente se estabelece e no fim têm-se as disponibilidades bastantes para adquirir a máquina nova.
O processo é o mesmo para as despesas de 1.° estabelecimento, apenas com esta diferença — e suponho não estar a afastar-me das ideas expressas nesta tribuna em defesa de um ponto de vista que não é o meu: é que a reintegração do capital necessário para obter a máquina figura entre as despesas de exploração, emquanto que para as despesas de 1.° estabelecimento hão-de sair dos lucros da exploração.
Para além das despesas de exploração o que há? É claro que se o rendimento bruto não é todo absorvido pelas necessidades próprias da exploração — isto é, se as emprêsas estão a trabalhar com o que se chama um coeficiente bom de exploração —, para além de toda a reintegração de capital que se impõe no sistema da exploração há um rendimento líquido. E então, como se pagam as despesas de 1.° estabelecimento? Precisamente como na máquina, com a diferença de, em vez de a reconstituïção do capital aparecer como elemento da exploração, aparecer como encargo do rendimento líquido.
Mas, de resto, é a mesma cousa. Organiza-se um programa de amortização do capital que foi preciso investir em toda a obra de 1.ª estabelecimento e o rendimento líquido aí está para ir solvendo os encargos financeiros que resultaram de toda a obra de 1.º estabelecimento.
Perfeito. Nada a observar senão isto: e há rendimento líquido que torne possível qualquer plano de amortização correspondente à massa de capital que importa investir na grande obra de 1.° estabelecimento a realizar? Não há.
Portanto, nenhuma emprêsa que neste momento seja incumbida de realizar essa obra encontrará — porque os banqueiros também sabem fazer contas — o capital que é indispensável para a realizar a não que atrás esteja o Estado que, através de tudo ainda no nosso País, é o melhor pagador, a prestar a sua garantia.
E, então, raciocina-se assim: mas, se atrás está o Estado, pode obter-se essa massa de capital? Na verdade, pode. E portanto é o Estado que paga? Não.
Assegurar, tornar possível a obtenção, em condições razoáveis, de uma certa massa de capitais indispensáveis para fazer uma grande obra de transformação não corresponde a tomar sôbre si imediatamente os encargos de pagar o capital cuja obtenção se assegurou. Êsses capitais que não puderam ser obtidos sem a intervenção do Estado, vão tornar possível a transformação indispensável da nossa rêde que não estará concluída antes de dez, quinze ou vinte anos e que há-de, por sua vez, tornar possível que a exploração se faça com bom coeficiente e que haja lucros líquidos que, no conjunto, hoje não existem, para custear os encargos dos capitais investidos.
Mas, sendo assim, é sempre o lucro líquido que vem a pagar. É sempre o rendimento líquido que vem a pagar, se o houver, e, se não fôr o rendimento líquido, são os capitais particulares ou o Estado que hão-de fazê-lo. Mas como o início da amortização dos capitais investidos não pode prever-se para antes de realizada a transformação, isto é, para antes de volvidos dez, quinze ou vinte anos, e nesta altura já a maior e a melhor posição na emprêsa é a do Estado, é afinal êle que virá a suportar todos os encargos: êle ou o rendimento líquido, se o houver; em todo o caso sempre êle. Acrescente-se a isto que uma emprêsa privada pode administrar bem quando defende os próprios capitais, mas a experiência demonstra que administra mal quando antecipadamente sabe que êles constituirão afinal um encargo do Estado — e o panorama ficará completo.
Êste um aspecto. Outro aspecto da solução que estou a criticar apresenta-se assim: como é que uma emprêsa que não tem diante de si senão a perspectiva de levar uma existência achincalhada dá o seu assentimento ao acôrdo indispensável para se construir a solução que a reduz aquela situação? Já sei! Ouvi dizer que há a possibilidade de o Estado baixar os impostos. Não é, no entanto, o processo em que se tem mais confiança para conduzir ao acôrdo.
É noutra cousa: se o Estado lhe disser (à emprêsa ou emprêsas) que não há mais possibilidades na caixa geral para satisfazer as suas dificuldades de tesouraria e outras, terão sem dúvida de ir para a falência porque não podem cumprir as obrigações do caderno de encargos. Mas como no contrato de concessão há uma cláusula que diz que, quando se não cumpram as obrigações do caderno de encargos, o contrato é rescindido, a solução é fácil, transparente: rescinde-se o contrato sem nenhuns encargos para o Estado... nem para os accionistas, que de há muito só sabem que o são para melancòlicamente ouvirem na assemblea geral que se não pode... distribuir dividendo!
Agora, na massa falida, sempre poderão receber alguma cousa, se ela chegar — e não chega! — para o serviço dos obrigacionistas e para solver compromissos para com o Estado, que é credor privilegiado!
O problema é, como V. Ex.as veêm, de uma facilidade de solução encantadora e perfeitamente harmónica com a concepção do «Estado pessoa de bem», que é a concepção animadora da vida política do Estado Português na situação que felizmente nos rege. Isto é simples, transparente!...
De resto, a solução que se propõe e que eu estou a discutir e a criticar é essencialmente a solução francesa de Agosto de 1937.
Eu não posso, naturalmente, pôr diante dos olhos de V. Ex.as todos os pormenores dessa solução; mas posso marcar as ideas essenciais que a informam. Um govêrno de feição socialista sente que não pode, contra as emprêsas, ir para o caminho aberto que os seus princípios lhe impunham: a socialização. Procurou então uma socialização diferida...
Uma sociedade exploradora, verdadeira concessionária, porque as concessionárias desapareciam como tais para se transformarem em sociedades financeiras, capitalistas com o Estado daquela sociedade exploradora. As acções atribuídas às sociedades assim transformadas seriam amortizadas creio que até ao ano de 1955, mas manter-se-iam, substituídas por outras, a partir dessa data, nas mãos das sociedades ou de quaisquer terceiros, como acções de gôzo que apenas permitiam a intervenção nas assembleas gerais até ao têrmo, em 1982, da sociedade exploradora.

Página 613

14 DE JUNHO DE 1945
613
A hipótese francesa era diferente da nossa. Em vez de quinze ou vinte concessões de dimensões diferentes, havia quatro, quási da mesma dimensão; em vez de o têrmo das concessões ser muito distanciado numas em relação às outras, como entre nós, era muito aproximado e todas acatavam num espaço que não ultrapassava vinte anos. Pois, não obstante isto, unificaram-se os prazos das concessões e a concessão única prolongou-se por mais de vinte anos além dêsses prazos, até 1982, com intervenção efectiva, através das acções de gôzo, das antigas sociedades transformadas ou de quaisquer terceiros.
Como se vê, uma solução muito mais mitigada do que a da proposta de substituïção que critico.
É a solução francesa de 1937, se não estou em êrro.
O Sr. Ulisses Cortês: — É, com certeza.
O Sr. Presidente: — Peço a V. Ex.ª, Sr. Deputado Mário de Figueiredo, que não demore a conclusão das suas considerações.
O Orador: — Eu termino já.
A solução francesa é muito menos radical do que a solução a que conduz a proposta que critico.
Na ordem de considerações que trazia, a unificação por acôrdo, na solução que critico, se não é impossível, é imprevisível. Terá, pois, de recorrer-se ao resgate e então a solução da proposta que estou a discutir é igual à da minha proposta, e esta não me cabe criticá-la: igual à minha proposta na falta de acôrdo — acôrdo que nela é de prever se consiga, e na que critico, não.
O Sr. Ulisses Cortês: — Peço a V. Ex.ª o favor de me prestar alguns esclarecimentos, indispensáveis para poder determinar a minha atitude na votação.
1°: a proposta de emenda de V. Ex.ª exclue ou não de modo iniludível o regime de excepção consignado no § 2.° da base I do Govêrno?
O Orador: — Sim, senhor. A minha proposta afasta clarìssimamente o § 2.° da base I e tam claramente que se V. Ex.ª ler a parte final da base III, por mim também apresentada, verifica que está aí estabelecido um regime por que se pretende precisamente responder ao argumento mais sério que podia produzir-se em defesa dêsse parágrafo da base do Govêrno.
O Sr. Ulisses Cortês: — É essa também a minha interpretação, mas como já ouvi defender uma opinião diversa, agradeço a V. Ex.ª o seu esclarecimento, que põe têrmo definitivo a quaisquer dúvidas.
E se V. Ex.ª me dá licença formularei outra pregunta: no caso de prorrogação, V. Ex.ª deseja, como toda a Assemblea, que ela se faça por forma a salvaguardar inteiramente todos os interêsses, direitos e simples expectativas que ao Estado caibam no fim das concessões em vigor?
Não tenho dúvidas de que a atitude de V. Ex.ª é inteiramente conforme com o despacho do Sr. Presidente do Conselho de 1938 e com a doutrina da proposta do Sr. Deputado Águedo de Oliveira.
Mas desejava ouvir formalmente essa opinião a V. Ex.ª.
O Orador: — Já o disse ontem e repito hoje. Desejo que seja feita a nova concessão com base num plano
que não é senão um caderno de encargos que se organiza como se organizaria quando todas as linhas estivessem na mão do Estado.
O Sr. Ulisses Cortês: — Muito obrigado a V. Ex.ª pelos seus esclarecimentos.
O Orador: — Nada, tem de me agradecer.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: — Não está mais ninguém inscrito. Vai passar-se à votação.
O Sr. Ulisses Cortês: — Sr. Presidente: a proposta de aditamento do Sr. Deputado Águedo de Oliveira constitue o necessário complemento da proposta do Sr. Deputado Mário de Figueiredo. Considerando-as ambas um todo indivisível, requeiro, por isso, que elas sejam postas simultâneamente a votação.
O Sr. Presidente: — Em harmonia com a prática seguida, tenho de submeter primeiro à votação da Assemblea as propostas do Sr. Deputado Antunes Guimarãis, porque foram as primeiras chegadas à Mesa. Na hipótese de essas propostas serem rejeitadas, em seguida far-se-á a votação sôbre a proposta do Sr. Deputado Mário de Figueiredo, com a de complemento apresentada pelo Sr. Deputado Águedo de Oliveira. Se essas propostas forem rejeitadas também, far-se-á por fim a votação das propostas do Sr. Deputado Araújo Correia.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Estou informado de que estão neste momento na sala 62 Srs. Deputados.
Vai fazer-se a votação das bases I, II e III, juntamente propostas pelo Sr. Deputado Antunes Guimarãis.
V. Ex.as têm conhecimento dessas bases, pois já foram publicadas no Diário.
Submetidas à votação, foram rejeitadas.
O Sr. Presidente: — Vai votar-se, em segundo lugar, a proposta apresentada pelo Sr. Deputado Mário de Figueiredo, juntamente com a proposta apresentada pelo Sr. Deputado Águedo de Oliveira, que a completa.
Submetida à votação, foi aprovada.
0 Sr. Presidente: — Portanto, estão prejudicadas as propostas do Sr. Deputado Araújo Correia. O debate continua na sessão de amanhã. Está encerrada a sessão. Eram 17 horas e 53 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Ângelo César Machado.
António de Almeida.
João Luiz Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Querubim do Vale Guimarãis.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
António Cristo.
Artur Proença Duarte.
Carlos Moura de Carvalho.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Pires Andrade.
João Xavier Camarate de Campos.
Sebastião Garcia Ramires.
0 Redactor — Leopoldo Nunes.
Imprensa Nacional de Lisboa

Página 614

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×