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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 186
ANO DE 1945
3 DE JULHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 183, EM 2 DE JULHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
José Luiz da Silva Dias
José Rodrigues de Sá e Abreu
SUMÁRIO: — O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 39 minutos.
Antes da ordem do dia. — Foram aprovados os n.ºs 183 e 185 do Diário das Sessões. Deu-se conta do expediente.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Manuel Múrias e Formosinho Sanches, que se referiram, respectivamente, à inauguração do pôrto de Luanda e ao serviço de abastecimento de géneros a doentes.
Foi votada, por maioria, a perda de mandato do Sr. Deputado Moura de Carvalho.
Ordem do dia. — Iniciou-se a discussão, na generalidade, da proposta de lei de alterações à Constituïção Politica e ao Acto Colonial, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Mário de Figueiredo, Alçada Guimarãis e Juvenal de Araújo.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 30 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Alberto Cruz.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique Linhares de Lima.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Jaime Amador e Pinho.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Luiz Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pires Andrade.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alberto dos Reis.
José Alçada Guimarãis.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.

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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 186
Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel Maria Múrias Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário de Figueiredo.
Rui Pereira da Cunha.
Salvador Nunes Teixeira.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 48 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 39 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Estão em reclamação os n.ºs 183 e 185 do Diário das Sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Como nenhum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra sôbre estes Diários, considero-os aprovados.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Exposição
Ex.ma Sr. Presidente da Câmara dos Deputados. — Dirige-se a V. Ex.ª, Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, a pessoa que em 1937 foi presidir à comissão administrativa da Misericórdia de Estremoz nomeada pelo Sr. engenheiro Sílvio Belfort Cerqueira.
É que no dia 21 do corrente o Sr. Deputado Dr. Camarate de Campos apreciou no Parlamento o caso da demissão da comissão da Misericórdia de Estremoz e, como nessa apreciação faltaram certos pormenores da maior importância, venho, visando esclarecer a verdade, trazer ao conhecimento de V. Ex.ª o que me pareceu indispensável a êsse intuito.
No alvará que me nomeou impunha-se-me, além da obrigação da administração, um inquérito tam rigoroso quanto possível acêrca de uns boatos, tornados públicos, desfavoráveis para a comissão administrativa demitida e que atingiam a própria instituïção, e remodelar a Mesa por eleição.
No inquérito apurei que por várias vezes fora a Misericórdia desfalcada num montante de cêrca de 4.000$ e que, a serem verdadeiros os depoïmentos do pessoal ouvido, se suspeitava de um dos membros dessa comissão administrativa e que dessas suspeitas tivera conhecimento o então vice-presidente.
Apurei que a assistência prestada pela comissão administrativa à Misericórdia era muito precária, pois só o citado vice-presidente ali comparecia às sextas-feiras e aos sábados, raramente outro membro.
Apurei ainda que o tesoureiro não tratava dos haveres da Casa nem das contas, pois tudo estava entregue ao cartorário, que administrava também a dispensa e a rouparia, comprava os géneros e dirigia os restantes serviços, isto entre outras cousas que constam do inquérito apresentado às instâncias superiores.
Como se tivesse aberto um grave conflito entre o então governador civil, engenheiro Belfort Cerqueira, mais tarde também Deputado da Nação, e o ainda hoje presidente da comissão distrital da União Nacional de Évora, e também ainda Deputado, Dr. Camarate de Campos, a seguir à demissão do governador civil tinha de se desfazer tudo que fora feito por aquele ilustre chefe do distrito de Évora. Procedeu-se então ao tal estudo em profundidade.
E como em política tudo que parece é, como disse Salazar, fez-se correr que tudo o que se passara na Misericórdia de Estremoz era uma perseguição vil, que nada de irregular ali havia e que até os Srs. vice-presidente e tesoureiro generosamente prestavam o seu dinheiro.
Todos os factos apontados ou foram factos verificados por mim ou conclusões de depoïmentos ouvidos por mim, acreditando que nesses depoïmentos, e em especial nos do cartorário, falou a verdade sob juramento; tenho de os admitir como verdadeiros, pois.
Se o Sr. Deputado Dr. Camarate de Campos entende que êsses e outros factos não têm valor, e até fazem parte da maneira como êle entende dever-se administrar o património dos pobres, mostra um critério diferente do meu e do de todos os portugueses que tenham já atingido a maioridade dos cinqüenta anos, virgens de politiquices.
*
Há no discurso duas asserções menos verdadeiras, que o Parlamento ouviu: não é verdade que eu entregasse os membros da comissão administrativa demitida ao tribunal criminal, nem tal me competia; também não é verdade que a comissão administrativa demitida em 1937 estivesse construindo à custa do seu vice-presidente uma enfermaria para os tuberculosos da região e, além disso, a fazer um balneário, que dedicava à população de Estremoz; da enfermaria não encontrei vestígios, e do balneário havia vestígios, mas apenas nas... actas!
As afirmações finais do Sr. Dr. Camarate de Campos carecem de verdade.
A única obra que o citado vice-presidente da comissão administrativa fez na Misericórdia de Estremoz foi acabar uns quartos particulares que sectàriamente se fizeram por cima da igreja, monumento nacional, certamente para que não mais pudesse servir ao culto; e fez-lhe uma escada pela qual com dificuldade passa uma maca com um doente.
A uma outra passagem do citado discurso do Sr. Deputado desejo acrescentar umas palavras: refiro-me à comissão sintética, como o espírito subtil do Sr. Deputado Dr. Gromicho a rotulou; a tal comissão sintética está em exercício desde o dia em que o Sr. governador civil de Évora, Dr. Hipólito Alvarez, me deu a enorme alegria de me demitir da administração da Misericórdia de Estremoz e na minha presença declarou ir nomear o vice-presidente da Câmara Municipal de Estremoz (e não qualquer pessoa) para administrar a Misericórdia por um curto lapso de tempo, pois era sua intenção restaurar a irmandade e eleger a Mesa. Portanto, a tal comissão sintética é da responsabilidade dêste Sr. governador civil, que em largos anos que chefiou o distrito não modificou êste estado de cousas, sem eu saber porquê.
O Sr. Deputado pediu justiça ou reparação para essa comissão e eu pregunto se nessa reparação se inclue o vogal suspeito de desfalque e um outro vogal agora a

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ferros por ter desfalcado a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Estremoz era cêrca de 300.0001.
Esta vai mais longa que desejava, mas não podem reduzir-se factos.
Lisboa, 25 de Junho de 1945. — André de Brito Tavares, médico em Estremoz.
O Sr. Manuel Múrias: — Sr. Presidente: parece que não deve deixar de se registar neste momento e nesta Assemblea Nacional um acontecimento de tamanha importância como a inauguração do pôrto de Luanda, que fica sendo um dos maiores da costa ocidental da África, e nos dá, segundo ouvi dizer, se o juntarmos ao pôrto de Lobito, o primeiro lugar entre as nações estabelecidas ao longo daquela costa.
Esta obra magnífica corresponde precisamente àquele novo plano da política de fomento iniciada pelo Estado Novo, a que se encontra ligado, como todos sabem, o nome do Sr. Dr. Vieira Machado, antigo Ministro das Colónias e antigo colega nosso nesta Assemblea. Foi mesmo no plano de fomento da Angola de 1938 que, pela primeira vez, se inscreveu o pôrto de Luanda.
Estudado logo a seguir por técnicos portugueses em 1939, sob a direcção do Prof. Cid Perestrelo, que entregou o projecto em Março de 1940, abria-se concurso para a adjudicação já em Julho dêsse ano, adjudicava-se à emprêsa construtora em Março de 1941 e em Junho começavam as obras. Não fecharia o ano sem que se lançasse, com a presença do Dr. Vieira Machado, o primeiro grande bloco de cimento; e por admirável coincidência, mas também porque realmente assim devia ser, ao cais acostável, quatro anos decorridos, atracava o primeiro navio, inaugurando-se o novo pôrto pela descida nesse cais do actual Ministro das Colónias, o Prof. Marcelo Caetano — que, assim, por entre as aclamações do bom povo de Angola, podia iniciar a sua viagem de estudo às duas grandes províncias portuguesas de África.
Não há dúvida de que nos últimos quinze anos se fez mais em número e qualidade de construções nas colónias portuguesas de África do que nos cinqüenta anos anteriores. Também não há dúvida de que o pôrto de Luanda mantém e enriquece um lugar magnífico na obra de levantamento e restauração ultramarina iniciado com a política definida no Acto Colonial.
Sendo, como fica a ser, um dos maiores portos da costa ocidental de África, um dos maiores da nossa África com o pôrto de Lobito, em Angola, e com os da Beira e de Lourenço Marques, em Moçambique, constituírem um grupo de quatro portos a que está assegurado o maior e mais progressivo futuro, parece que a Assemblea não pode deixar de registar êste acto. Na realidade, Sr. Presidente, há muitos anos, desde 1886, segundo creio, se desejou e reclamou a construção de um grande pôrto em Luanda.
Fizeram-se depois várias tentativas — de 1910 a 1913, em 1915, em 1921, em 1927. Muitas vezes foi prometido aos interêsses do interland de Luanda, servido já por um caminho de ferro que soma cêrca de 600 quilómetros de via em exploração; muitas vezes se prometeu à capital de Angola o pôrto que desejava e merecia, mas não fora nunca, apesar do que se tem escrito, estudado e projectado antes de 1938...
Era uma aspiração que andava no ar, uma promessa que se renovava, mas se não realizava... E agora se realizaria quási silenciosamente — quási sem ter sido prometida! E assim a política do Estado Novo— política de verdade e construção, iniciada e definida na metrópole por Salazar, e que, alargando-se das finanças a todos os sectores do Estado, se tem vigorosamente prolongado, como não podia deixar de ser, a todo o Império.
E já que dentro de poucos momentos se iniciará nesta Casa a revisão da Constituïção Política, em que se encontra integrado, como texto constitucional, o Acto Colonial, não podemos esquecer que, pela aplicação dos princípios e doutrinas dêste diploma, foi possível realizar nas províncias ultramarinas a grande obra de rehabilitação financeira, de reorganização económica, de construção para o fomento e progresso do Império, de ressurgimento espiritual, que é no seu conjunto prodigioso um dos motivos de mais legítimo orgulho do Portugal do nosso tempo. Com que cuidado e prudência se lhe irá tocar!
Obra do Estado Novo e dos melhores e beneméritos obreiros do Estado Novo — não podem esquecer-se agora, nem podemos deixar de envolver na glória da acção desenvolvida além-mar os nomes que verdadeiramente a representaram ou a representam.
As minhas saüdações vão neste momento em primeiro lugar para a grande figura do Sr. general Carmona, que de maneira tam distinta e com tamanho espírito de sacrifício tem presidido aos destinos da Nação; para o Sr. Presidente do Conselho, a quem pertence, na sua fulgurante passagem pelo Ministério das Colónias, a iniciativa do Acto Colonial; para o Dr. Vieira Machado, antigo Ministro, que noutro sector, mas com o mesmo entusiasmo, continua a servir a Revolução e o seu destino e a quem coube a iniciativa do pôrto de Luanda; finalmente para o actual Ministro das Colónias, Prof. Marcelo Caetano, que teve a alegria de começar a sua viagem de estudo em Angola com a inauguração do grande pôrto, que será apontado ao futuro como uma das maiores realizações do Estado Novo.
Incidente apenas, como é provável, na auscultação que o Ministro vai fazer aos novos problemas, como aos problemas de sempre, de Angola e Moçambique, a inauguração do pôrto de Luanda aponta a grandeza da obra que se espera ao ímpeto renovador de Marcelo Caetano — que todos esperam e nós daqui seguimos com segurança na sua inteligência, na sua cultura e na acção vigorosa e decidida.
As palavras que se digam, porém, não se dirigem apenas aos chefes da Revolução, ao Ministro das Colónias e aos seus antecessores.
Angola e a sua gente ficarão sabendo que a Assemblea Nacional, como representação viva do País, a acompanha com entusiasmo nas horas de alegria, como a acompanhou sempre fraternalmente em todas as horas.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Formosinho Sanches: — Sr. Presidente: certo de que S. Ex.ª o Ministro da Economia apreciará ser informado de tudo o que necessita ser modificado ou melhorado adentro do seu campo de acção, julgo o momento oportuno para chamar a atenção de S. Ex.ª para o que passo a expor.
A Intendência Geral dos Abastecimentos acordou com a Ordem dos Médicos em que fôssem fornecidos aos doentes géneros alimentícios em quantidades superiores às normalmente estabelecidas, e a êsses mesmo houve que classificá-los conforme as suas doenças e, portanto, segundo as dietas a que estavam sujeitos. Isto só merece elogios da parte de todos.
Mas, ao fazer-se a distribuïção dos diferentes géneros alimentícios segundo as várias formas de doença, só foi atribuído sabão para as doenças agudas!
Então os tuberculosos não terão necessidade de se lavarem e, até melhor, a sua roupa?!

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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 186
Os doentes crónicos do aparelho digestivo não necessitam de maior quantidade de sabão para a sua higiene?!
Para os lactantes alimentados artificialmente houve o cuidado de lhes fornecer mensalmente dois mil e quinhentos gramas de açúcar, mas nessa idade não será também justo que seja fornecida maior quantidade de sabão?!
Esta é a minha primeira reclamação.
A segunda e última parece-me ser, não só humana, mas até obrigatória para um médico, que, como eu, ocupa um lugar nesta Assemblea.
É necessário que se providencie por forma a que os géneros que são distribuídos aos doentes sejam, em qualidade, próprios para êsses mesmos indivíduos.
As massas que lhes são fornecidas (e se V. Ex.as quiserem posso trazer uma amostra) são de 3.ª ou 4.ª classe, por não haver de 5.ª; o azeite é negro e turvo, tam turvo e tam negro como a sorte dêsses doentes assim alimentados.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: — Acabo de receber o seguinte telegrama:
Momento assumo direcção serviços economia desta colónia dirijo minhas rendidas homenagens V. Ex.ª calorosas saüdações meus colegas Assemblea. — Moura Carvalho.
O Sr. Deputado Moura de Carvalho tinha há muito tempo sido nomeado chefe dos serviços económicos da colónia de Angola, continuando no entanto a tomar assento nesta Câmara.
Não foi pôsto à Assemblea o problema da perda de mandato, porque êle não tinha praticado ainda nenhum acto de aceitação dêsse lugar.
Tratando-se de um emprêgo retribuído, parece que, em conseqüência dêsse facto, o Sr. Deputado Moura de Carvalho perdeu o mandato, nos termos do n.º 1.° do artigo 90.° da Constituïção.
Em todo o caso é a Assemblea que compete tomar conhecimento do assunto e definir as conseqüências jurídicas que dele resultam relativamente ao mandato.
Se V. Ex.as desejam reflectir sôbre o caso, eu não submeterei já à Assemblea a questão da perda de mandato do Sr. Deputado Moura de Carvalho; mas se entendem que o caso é nítido e não oferece dúvidas, mandarei proceder imediatamente a escrutínio secreto, para se deliberar sôbre se há ou não perda de mandato.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Interpreto o silêncio de V. Ex.as no sentido de que a Assemblea se julga habilitada a deliberar imediatamente sôbre o caso.
Vai fazer-se a votação por escrutínio secreto.
Os Srs. Deputados que lançarem na primeira urna a esfera preta querem significar que votam pela perda do mandato.
A outra esfera, a lançar na segunda urna, servirá para contraprova.
Procedeu-se à chamada.
O Sr. Presidente: — Convido para escrutinadores os Srs. Deputados Oliveira Ramos e Favila Vieira.
Procedeu-se ao respectivo escrutínio.
O Sr. Presidente: — Entraram na primeira urna 42 esferas pretas e 8 brancas e na segunda, de contraprova, entraram exactamente o contrário: 8 esferas pretas e 42 brancas.
Está, portanto, resolvido que o Sr. Deputado Moura d Carvalho perdeu o seu mandato.
Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Vai iniciar-se a discussão, na generalidade, da proposta de lei sôbre alterações a Constituïção Política e ao Acto Colonial.
Tem a palavra o Sr. Deputado Mário de Figueiredo.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Sr. Presidente: ao iniciar-se a discussão da proposta de alterações à Constituïção põe-se naturalmente êste problema: como à primeira vista pode parecer que se trata de alterações a disposições — direi — avulsas da Constituïção, justifica-se que sôbre a proposta se abra uma discussão na generalidade?
O Sr. Presidente da Assemblea Nacional entendeu que se justificava. E eu, acompanhando o pensamento de S. Ex.ª, entendo também que se justifica uma discussão na generalidade. E entendo isso ao considerar a proposta, quer no aspecto negativo, quer no aspecto positivo.
Quero dizer: entendo que se justifica a discussão na generalidade para encarar o problema de saber se na proposta deixou de considerar-se matéria que devia ter sido considerada — aspecto negativo —, e para procurar determinar se, através das alterações que na proposta se contêm, se descobre um fio, uma linha de orientação geral, que torne possível essa discussão.
Entendo, pois, que realmente é possível, a propósito da proposta, uma discussão na generalidade no aspecto negativo e também no aspecto positivo.
Era sempre possível discutir êste problema: toca a proposta todas as disposições constitucionais que contêm matéria que deva porventura ser modificada ou rectificada?
Nas matérias que tocou pode, como dizia há pouco, descobrir-se através das várias alterações um fio de unidade que justifique a discussão na generalidade? Creio que sim.
Não aparece na proposta qualquer alteração à primeira parte da Constituïção, que se intitula «Das garantias fundamentais». E então pregunta-se: pode justificar-se que neste momento se passe por sôbre o conjunto de disposições contidas nesta parte da Constituïção sem lhes tocar?
Isso só será de admitir se realmente a nossa Constituïção, que não é velha, não envelheceu efectivamente durante os dez ou doze anos da sua vigência.
Mas tantas cousas se passaram no mundo nestes dez anos que a gente tem de acreditar na enorme clarividência de quem organizou o texto constitucional, se na verdade puder demonstrar que nesta primeira parte êle ainda não precisa de retoques.
Eu vou, à vontade, considerar o problema nestes dois aspectos: o aspecto das chamadas liberdades públicas e o... aspecto — como hei-de dizer? — dos chamados direitos públicos, que se traduzem em encargos, em formas de prestação por parte do Estado.
Quero neste segundo aspecto referir-me ao direito ao trabalho, ao direito ao salário, ao direito à prestação correspondente a um salário quando o homem não pode trabalhar.
Mas comecemos pelo primeiro aspecto: comecemos pelas liberdades públicas. Há alguma cousa a retocar no texto actual da Constituïção em matéria de liber-

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dades públicas, para se afirmar que as liberdades fundamentais estão constitucionalmente asseguradas? Eu creio que não. É claro, suponho que, quando se põe o problema das liberdades públicas ou das liberdades fundamentais da pessoa, há que distinguir a sua enunciação, que é matéria constitucional, e o seu desenvolvimento, o regime do seu exercício, que é matéria da lei ordinária.
Ninguém discute que através da lei ordinária se há-de sempre fazer a organização do regime jurídico das «liberdades públicas» fixadas na Constituïção. Esclarece-se o problema se se pensar no regime repressivo para os abusos dessas liberdades.
Na verdade, todos admitem, ninguém discute e ninguém supõe atingidas as liberdades fundamentais desde que a lei ordinária organize, como processo de defesa dessas liberdades ou dos seus abusos, um processo repressivo. Êsse processo caracteriza-se assim: quando se infringe o regime que delimita o círculo em que pode mover-se a liberdade fundamental, mas só depois de o infringir, é que aparece a reacção social, a reacção do Estado, por intermédio dos seus órgãos judiciais.
Ninguém discute, todos admitem:
1.° Que as liberdades fundamentais consagradas nos textos constitucionais hão-de organizar-se através da lei ordinária;
2.º Que essa organização se faça através de um regime repressivo.
Na nossa Constituïção estão previstas as liberdades fundamentais, está prevista a sua organização através da lei ordinária e está admitida a possibilidade do regime repressivo.
E do regime preventivo? Pode organizar-se, através da lei ordinária, um regime que evite que seja ultrapassado o círculo dentro do qual é razoável que se movam as liberdades públicas? Não estamos já no regime repressivo, mas no preventivo. E neste aspecto? Neste aspecto direi: todos admitem, como elemento de ordem e de defesa do organismo social, a instituïção na lei ordinária de um regime preventivo, desde que êle se não traduza na inutilização do próprio princípio consignado no texto constitucional.
Podemos então assentar em que, de um modo geral, se aceita a instituïção de regimes repressivos e preventivos na organização jurídica das liberdades públicas, desde que com êles não venham a negar-se estas liberdades.
Ora bem. Mas no texto constitucional estão consagradas as liberdades essenciais. Fomos, nesse aspecto, tam longe como os que o foram mais. E está, a propósito dessas liberdades, prevista a possibilidade de, através da lei ordinária, se organizar o seu regime repressiva ou preventivamente.
Á nossa Constituïção, portanto, admite a possibilidade de se estabelecerem os limites dentro dos quais é lícito o movimento das liberdades públicas. E, porque enuncia os princípios em que se exprimem essas liberdades, não admite naturalmente que através da lei ordinária se inutilizem êsses princípios.
Não havia pois que tocar no texto constitucional em matéria de liberdades públicas. Está lá tudo: prevêem-se todas as possibilidades de organizar essas liberdades. Não se admite, já que se consagram essas liberdades e pelo simples facto de se consagrarem, que se inutilizem através da lei ordinária.
Não havia que tocar na Constituïção; pode haver que tocar nas leis ordinárias, mas não há que modificar, sôbre a matéria, a Constituïção. Portanto, nesta parte das liberdades públicas, não tinha a proposta que trazer a consideração da Assemblea qualquer princípio novo que não estivesse já contido na própria Constituïção.
Consideremos ainda nesta parte da Constituïção em que a proposta não tocou um segundo ponto. V. Ex.as sabem — e o excelente parecer da Câmara Corporativa di-lo — que a tendência moderna dos textos constitucionais é, não no sentido de se comporem de disposições que prendam por si mesmas, mas no de marcarem grandes orientações, através de disposições que aparecem como programas de realizações.
A Câmara Corporativa chama-lhes programáticas e é realmente o que são. As Constituïções modernas caminham nessa senda e quási todas batem no direito ao trabalho, no direito ao salário, no direito à assistência...
Preferia não falar de assistência, que nos põe muito perto da miséria e da dor e que nos faz pensar em actos que têm qualquer cousa de exclusivamente unilateral, e não bilateral. Quere dizer: em actos que não podem ser reclamados por quem precisa que sejam praticados, mas são deixados à livre espontaneidade de quem quere praticá-los.
É por isso que prefiro não falar de assistência, e então falarei do direito ao trabalho, do direito ao salário e agora, em vez de assistência, do direito correspondente ao salário quando a pessoa não pode, por qualquer motivo, trabalhar.
É, na verdade, tendência das Constituïções modernas consagrar estes direitos, e eu, para não estar a cansar V. Ex.as com a païsagem dessas Constituïções, vou ler-lhes uma fórmula que naturalmente, por ser a mais actual, traduz o pensamento profundo do momento que passa: é a fórmula contida no artigo 55.°, a), da Carta das Nações Unidas, que acaba de ser votada em S. Francisco. Diz assim: «As Nações Unidas promoverão mais altos estalões de vida, emprêgo para todos e condições de progresso e desenvolvimento económico e social».
A fórmula contém realmente tudo aquilo que nós podemos ver disseminado pela generalidade das Constituições modernas; é sugestiva: então porque não se consagra no texto da Constituïção? Avanço a afirmação: também não é preciso, nesta matéria, alterar a Constituïção Política Portuguesa. Já lá está o mesmo.
E, muito ràpidamente, se V. Ex.as me consentem, vou procurar fazer a demonstração.
Lê-se no n.º 3.° do artigo 6.° da Constituïção, na sua redacção infeliz: «Incumbe ao Estado zelar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas».
Até aqui está certo. Porém, o resto da redacção é muito infeliz, e está mesmo fora da orientação geral dos princípios que dominam o texto constitucional. No entanto, está cá o princípio: «zelar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas».
E para quem quisesse falar — e eu não quero — de assistência e informar-se de se no nosso texto constitucional há consignado um princípio que aponte a assistência como um dos direitos públicos dos cidadãos, poderá encontrá-lo consagrado, ainda que por forma indirecta, no § único do artigo 7.°, que diz assim: «Dos mesmos direitos e garantias gozam os estrangeiros residentes em Portugal, se a lei não determinar o contrário. Exceptuam-se os direitos políticos e os direitos públicos que, se traduzam num encargo para o Estado, observando-se, porém, quanto aos últimos, a reciprocidade de vantagens concedidas aos súbditos portugueses por outros Estados».
Entre os direitos públicos que se traduzem num encargo para o Estado está, logo em primeira linha, o direito à assistência.
Atribuírem-se aos estrangeiros em condições de reciprocidade os direitos públicos que se traduzem num encargo para o Estado corresponde a afirmar que dêles gozam — e, portanto, do direito à assistência — os portugueses. Mas eu contínuo.

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No artigo 14.°, n.º 3.°, diz-se: «regular os impostos de harmonia com os encargos legítimos da família e promover a adopção do salário familiar».
O artigo 31.°, § 3.°, diz: «O Estado tem o direito e a obrigação de ordenar a vida económica, de modo a conseguir o menor preço e o maior salário compatíveis com a justa remuneração, etc.».
Depois o artigo 41.° diz que o Estado promove e favorece as instituïções de solidariedade, previdência, cooperação e mutualidade.
Ainda o artigo 35.º diz «que a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação, etc.».
Li a V. Ex.as o texto da Carta das Nações Unidas e acabo de fazer passar diante dos olhos de V. Ex.as algumas disposições constitucionais. Agora pregunto se realmente na Constituïção Portuguesa não está já o bastante para se supor que é programa do Estado Português, resultante dos textos constitucionais, aquilo que aparece condensado na fórmula que li a V. Ex.as e que está contida na alínea a.) do artigo 55.º da Caria das Nações Unidas.
Quere dizer, Sr. Presidente, que ainda nesta matéria não há necessidade, apesar de nestes últimos dez anos muitas cousas se terem passado pelo mundo, de actualizar e, por conseguinte, de tocar no texto constitucional.
Nesta ordem de ideas, olhada a proposta por aquilo em que não toca, parece não haver dúvidas de que ela merece a aprovação na generalidade desta Assemblea.
Consideremos agora a proposta naquilo em que toca e que é a segunda parte da Constituïção: organização do Estado.
A exposição aqui é muito difícil para quem não quere de maneira nenhuma dar a impressão de que está a construir uma página de sebenta. Talvez esta preocupação faça com que ela, a exposição, seja menos clara. Mas também V. Ex.as não carecem naturalmente da clareza que têm de suportar os que estão realmente submetidos ao regime da sebenta.
O Sr. Albino dos Reis: — Mas isso é a rehabilitação da sebenta.
O Orador: — Em dos grandes princípios que dominara a nossa organização constitucional é o que está contido no artigo 112.° da Constituïção Política. Diz êle: «O Govêrno é da exclusiva confiança do Presidente da República e a sua conservação no Poder não depende do destino que tiverem as suas propostas de lei ou de quaisquer votações da Assemblea Nacional».
Portanto, irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea Nacional. V. Ex.as sabem que êste princípio da irresponsabilidade dos Govêrnos perante as assembleas políticas conduz: primeiro, à chamada separação de poderes; segundo, à não admissibilidade de fiscalização das actividades governamentais pelas assembleas políticas.
É claro que, na verdade, a irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea conduz naturalmente a que o Govêrno não possa ser fiscalizado pela Assemblea e a haver uma separação nítida de poderes, em que a esfera de um não pode ser invadida pelas actividades do outro.
É, a traços largos, o sistema dos Estados Unidos da América ou, melhor, o sistema da generalidade dos Estados americanos.
Eu não posso entrar em pormenores. Na nossa Constituïção Política fixa-se como princípio — li a V. Ex.ª o artigo 112.° — a irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea Política e no entanto não se estabelece o princípio da inadmissibilidade de fiscalização da actividade do Govêrno pela Assemblea Nacional nem o da separação de poderes, já que a função legislativa pode ser exercida por um e pela outra.
Parece assim que se não tiram as conseqüências lógicas do princípio que se pôs. Raciocinou-se assim: a separação dos poderes só é susceptível de funcionar se se eliminar a possibilidade de conflitos; mas esta não pode eliminar-se; logo, há que partir dêste facto para a organização constitucional.
E, partindo dêste facto, procuraram-se os meios de fazer desaparecer os estados de conflito. Quais são êsses meios? Um é o direito de dissolução. A simples instituïção do direito, atribuído ao Chefe de Estado, de dissolução da Assemblea aponta a possibilidade da existência de um estado de conflito entre os dois órgãos da soberania, que importa resolver. E então um dos meios de o resolver será a dissolução.
Mas a dissolução, seguida de nova eleição, pode mostrar-se insuficiente para fazer desaparecer o estado de conflito. Era preciso prever outro meio. Para o pôr em evidência preciso, primeiro, mostrar como na nossa Constituïção se concebe o Govêrno.
Aí o Govêrno é concebido, não como um Govêrno à maneira americana, à maneira — como se diz nos livros — presidencialista, mas como os chamados Govêrnos de gabinete, à maneira inglesa.
Na nossa Constituïção, o Govêrno, nas suas relações com a Assemblea, funciona como presidencialista; nas suas relações com o Chefe do Estado funciona como um Govêrno de gabinete, um Govêrno — direi — parlamentar. E como o Govêrno é o responsável efectivo pela actividade da Administração e o Chefe do Estado só é responsável por o manter ou não manter, nós encontramos nesta orgânica e nas possibilidades para o Chefe do Estado de nomear e demitir livremente o Govêrno outra forma de solução dos conflitos que porventura surjam entre a Assemblea e o Govêrno.
Como o Chefe do Estado é livre em o nomear e demitir, uma hipótese de conflito poderá resolver-se pela dissolução da Assemblea ou pela substituïção do Govêrno.
É preciso esclarecer que, quando se resolve pela substituïção do Govêrno, o Chefe do Estado não pode constitucionalmente estar a actuar directamente em conseqüência de uma votação da Assemblea, mas há-de tomar o estado de conflito existente entre esta e o Govêrno como um elemento, um índice a que há-de recorrer para afinal se decidir sôbre a demissão do Govêrno.
Temos, assim, o nosso sistema constitucional perfeitamente desenhado e nêle, dada a diferente posição do Govêrno em face da Assemblea e do Chefe do Estado, é difícil encontrar uma solução que não seja lógica com alguma das pontas daquela diferente posição.
O sistema é presidencialista num aspecto; é parlamentar, ou de gabinete, noutro aspecto.
De maneira que, em estado de conflito, tam lógica é a solução de dissolução como a demissão do Govêrno. É, na verdade, uma orgânica bem encontrada.
Tudo o que acabo de dizer mostra que não há ilogismo entre o princípio da irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea e o poder de fiscalização que a esta pertence sôbre a actividade do Govêrno.
Agora posso estabelecer esta proposição: é que o que caracteriza essencialmente a Assemblea no nosso regime constitucional é o poder de fiscalização, e não o poder legislativo.
Não cansarei V. Ex.as para lhes demonstrar que a Assemblea não pode prescindir do poder legislativo; mas não deve detê-lo exclusivamente. Se isso sucede ainda, em determinada medida, nos Estados presidencialistas, não acontece nem de direito, nem sobretudo de facto, nos Estados de govêrno de gabinete.

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A função fiscalizadora é a que, segundo a Constituïção, caracteriza essencialmente a Assemblea e é a que, no meu modo de ver, deve caracterizá-la.
É aquela que pode fazê-la viver e sem o exercício da qual difìcilmente poderia justificar-se a sua existência.
Que espécie de fiscalização? Compreendem-se perfeitamente estas duas formas de fiscalização: fiscalização feita num intuito de colaboração e fiscalização feita com espírito de partido.
São duas formas perfeitamente marcadas e diferenciadas, que basta enunciar para o espírito verificar, desde logo, que são diferentes.
A primeira é uma fiscalização em que se diverge da medida, mas pela qual se não procura pròpriamente atingir o Govêrno, autor dessa medida. Procura-se que a medida, seja substituída, sem contudo se entender que é necessário substituir o Govêrno. Pode, em certo momento, marcar-se a tendência para a substituïção do Govêrno ou de um Ministro, mas só quando êle, por actos repetidos, demonstrou não ter suficiente capacidade para governar, porque, de um modo geral, a fiscalização com o intuito de colaboração só quere afastar a medida ou uma certa orientação, sem nenhum empenho em substituir o autor da medida ou da orientação.
A fiscalização com espírito de partido é completamente outra. Então, de um modo geral, pode afirmar-se que todas as medidas são erradas, não por si mesmas, mas pela fonte de que provêm — e eu raciocino dentro da melhor filosofia dos partidos —, pois, por definição, se é o partido contrário ao meu que governa, não é capaz de realizar o interêsse nacional, já que êsse só o meu partido pode realizá-lo!
Mas se fiscalizar com espírito de colaboração é a função essencial da Assemblea, põe-se agora o problema de saber se o conjunto das alterações contidas na proposta tende a tornar eficiente aquela função.
Eu suponho que sim.
Não falo já do alargamento do número de Deputados, que tem sentido; não falo da possibilidade de prorrogar o tempo da duração da Assemblea, que tem sentido; mas falo do aditamento que se pretende ao artigo 91.°, que diz: «apreciar os actos do Govêrno e da Administração».
É evidente que neste aditamento ao texto constitucional só pode haver um sentido: é o de alargar os poderes de fiscalização da Assemblea.
E, Sr. Presidente, digo o mesmo a propósito da instituïção das comissões permanentes e das comissões eventuais. Ninguém dirá que quando a Constituïção prevê a possibilidade de comissões permanentes e eventuais isso não tem o sentido de uma fiscalização mais larga, ninguém dirá que não tem precisamente em vista alargar as suas funções como fiscalizadora da actividade do Govêrno.
Logo na disposição seguinte (artigo 96.°) se prevê a possibilidade de esta fiscalização ser feita por cada um e qualquer dos Deputados individualmente; essa faculdade não está em nada prejudicada. Está, ao contrário, esclarecido que a actividade individual de cada Deputado pode desenvolver-se, e, porventura, deve desenvolver-se, no sentido de uma intensa fiscalização parlamentar. A instituïção das comissões permanentes faz-se precisamente para tornar essa fiscalização mais ampla e consciente: para a tornar mais fácil e eficaz.
Numa proposta que estabelece que o Govêrno tem poder legislativo no mesmo plano em que o tem a Assemblea Nacional, a existência das comissões não tem em vista, é evidente, os pareceres dessas sôbre projectos ou propostas de lei.
Não se pode retirar à Assemblea o poder de fazer leis, porque, sem êle, comprometiam-se as suas faculdades fiscalizadoras. Deve ter êsse poder, mas raro poderá usá-lo, a não ser sôbre propostas do Govêrno, ou para definir as grandes orientações a adoptar por êste, porque a preparação da lei, no estado actual da vida dos povos, pressupõe um apetrechamento, uma aparelhagem técnica, de que as Assembleas não dispõem. Não pode a Assemblea organizar completamente a lei, mas pode definir os grandes princípios com base nos quais deve ser organizada, e a disposição da proposta que prevê a obrigação para o Govêrno de estabelecer, no prazo de seis meses, as condições necessárias à execução daqueles princípios é mais uma expressão de alargamento das funções da Assemblea ou, ao menos, um meio de tornar eficiente a sua actividade legislativa.
O mesmo princípio se exterioriza na alteração que alarga, em certas condições, a iniciativa da Assemblea às propostas e projectos que determinem aumento de despesa ou deminuïção de receita.
Parou-se em determinada altura. Parou-se — e eu respeito a opinião de quem entendeu dever parar — parou-se no desenvolvimento lógico do princípio da fiscalização. Os Ministros e Sub-Secretários de Estado podem comparecer perante as comissões, mas não podem vir à Assemblea assistir, intervir no movimento da actividade em que se desenvolve tal fiscalização. Parou-se; não se quis ir mais além. Respeito. Noto, no entanto, que a fiscalização há-de desenvolver-se num debate, e um debate sem intervenção de quem o provocou é naturalmente débil: perde em grandeza, o que é o menos, e perde também como fonte séria de esclarecimento público, o que é importante. Um bom debate parlamentar esclarece, desanuvia a opinião: limpa-a do boato insidioso, que morde, que amolece, que desmoraliza como as murmurações das pálidas soalheiras de inverno. Não se quis ir até aí. Respeito, mas tenho pena!
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Alçada Guimarãis: — Sr. Presidente: Napoleão, que foi não só um génio militar mas também um génio político, disse que as Constituïções são mais obra do tempo do que dos homens.
Queria assim significar que o homem, ser de um dia, não pode construir para a eternidade.
À exactidão do conceito é inegável; era-o ontem e é-o hoje.
Na verdade, se tomarmos a Constituïção, no seu sentido generalizado, como a expressão da forma de organização política do Estado, temos de reconhecer que ela não pode abstrair da evolução que se fôr operando nas condições sociais, mas, ao contrário, há-de sentir a sua influência e reflectir o seu progresso.
Desta evidente necessidade - de as Constituições se irem ajustando sempre aos movimentos ideológicos dos povos nasceu a revisão.
A revisão é, pois, o processo não só de actualizar a Constituïção mas de lhe imprimir autoridade, aceite que só a poderá ter aquela que traduzir os verdadeiros sentimentos da Nação.
Todavia, esta imprescindível mutabilidade não deve, por sua vez, tornar-se em exagero. Uma certa fixidez dos preceitos constitucionais é indispensável para a segurança colectiva e para a própria dignidade das instituïções.
Daqui se pode tirar desde já uma conclusão: a de que a revisão só deverá fazer-se quando fortes razões se apresentem a justificá-la. Há-de existir um motivo substancial que a aconselhe, uma necessidade viva e reconhecida.
Vozes: — Muito bem!

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O Orador: — A Constituïção não pode apresentar-se, no dizer de certo jurisconsulto, como um edifício nunca acabado, como uma casa permanentemente desarrumada.
Há, Sr. Presidente, um movimento sério e profundo de opinião pública que reclama a revisão? Há princípios da lei fundamental que estão envelhecidos ou inadaptáveis?
Tais são as questões que imperiosamente têm de colocar-se no limiar de uma tam delicada operação.
Em Portugal, à parte os agitados tempos das lutas liberais, pode dizer-se que não há grandes tradições revisionistas. Restaurada a Carta Constitucional com a abolição da Constituïção de 1838, só três actos adicionais se assinalam na nossa vida política: o de 1852, o de 1885 e o de 1896. Quere dizer: períodos de algumas dezenas de anos de perfeita tranqüilidade constitucional.
E neste regime se permaneceu até ao advento da República, que trouxe a Constituïção de 1911.
Na vigência do diploma de 1911 não se registaram também alterações constitucionais de relêvo.
Finalmente veio a Constituïção de 1933, plebiscitada, que neste momento constitue o objecto das nossas atenções.
A Constituïção de 1933 caracteriza-se por uma larga afirmação de princípios, não só de natureza jurídica e política mas de índole filosófica e sociológica.
A época em que foi feita, muito favorável à racionalização do poder, os anseios que traduzia, as legítimas aspirações que procurava, justificam, de algum modo, esta orientação. Demais, toda a organização política assenta, necessàriamente, sôbre um certo número de princípios.
Emfim, ela é, ao mesmo tempo, um programa e uma realização, na frase-síntese do Sr. Presidente do Conselho. Como programa, traça o ideal orientador da actividade política portuguesa; como realização, é, ou, mais precisamente, foi a realidade possível na nossa política de então.
O primeiro considero-o intangível. Nem se compreenderia que pudessem surgir dúvidas sôbre a autoridade da nossa concepção política ou sôbre o valor do nosso sistema jurídico, e num momento em que a fidelidade aos princípios tem uma indiscutível importância, tanto para a ordem, interna do País como para o seu prestígio na comunidade internacional.
Nada há, de resto, neles que possa reputar-se abalado: as ideas que se repudiaram continuam mortas ou desacreditadas; as que se consagraram permitiram uma obra visível e proveitosa.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Quanto à segunda, ela tem, até pela definição dada, um carácter transitório.
Por certo não foi, não podia ser, indiferente ao legislador de 1933 a lição de um parlamentarismo estéril, quando não deletério, de uma instabilidade ministerial nefasta, de uma desordem económica e financeira, de uma liberdade licenciosa, de uma dissolução de costumes e hábitos administrativos.
Mas talvez a reacção contra alguns dêstes males houvesse sido, pela lembrança ainda recente, um tanto eivada de rigorismo.
Anotarei apenas alguns pontos que mais ferem ia minha atenção e começarei, por exemplo, pela Assemblea, em cuja estrutura, me parece, importa fazer algumas correcções.
A Constituïção de 1933 foi elaborada sob um sentimento de desconfiança para com o Poder Legislativo. A cada passo se encontram nela disposições que o atestam: o reduzido número de Deputados, o curto período de funcionamento, as limitações às suas iniciativas e até, porque não dizê-lo, determinadas normas da sua disciplina interna.
Ao invés, o Govêrno foi delineado em traços fortes, com amplos poderes de vida e acção.
Govêrno forte, note-se, não como apanágio de ditadura, mas como necessidade das exigências da administração de hoje: com iniciativa pronta, competência técnica, autoridade, independência política.
E ao delineá-lo assim, a Constituïção não criou um instrumento de humilhação, mas de disciplina voluntária e consciente.
E um Govêrno forte, como a Constituïção estabelece e nós desejamos, não é incompatível com uma Assemblea prestigiada. Ao contrário, esta deve ser o seu complemento lógico. Órgãos da soberania ambos, à autoridade de um há-de corresponder a independência do outro.
Por isso, da escolha dos seus membros, das imunidades de que disfrutarem, do conteúdo das funções que lhes forem atribuídas, da independência dos votos que emitirem, onde terá de admitir-se uma possível discordância reflectida, de tudo dependerá a sua utilidade ou o seu descrédito.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Outro ponto é o relativo a certos aspectos dos direitos individuais, que carecem talvez de uma consignação mais expressa da sua garantia.
Não porque no conceito da doutrina constitucional o homem seja votado ao abandono de um individualismo perturbador ou diluído na massa amorfa do colectivismo. Mas, justamente porque assim não é e porque a actual Constituïção situou o homem na sua natural posição de dignidade, há que assegurar-lhe por uma maneira inequívoca os direitos essenciais.
Outro ponto ainda, Sr. Presidente: o da defesa, por forma mais nítida, das prerrogativas da actividade particular, protegendo-a e estimulando-a, deixando ao Estado só a função coordenadora e fiscalizadora.
Uma ingerência excessiva do poder central, só justificável em fase de transição que a guerra porventura obrigou a dilatar, tem de entender-se como desvirtuação do sistema e um perigo para a própria Administração.
De resto, se os organismos corporativos não se encontram em condições de tomar sôbre si a direcção das respectivas actividades, como poderão as repartições públicas, só com tradições políticas, supor-se à altura de desempenhar essa missão?
Em resumo: corporativismo de associação e não corporativismo de Estado.
Por fim, parece que seria defensável o critério de expurgar a Constituïção de algumas disposições que poderia chamar de ordem regulamentar, mais ligadas ao mecanismo do que à essência de certos institutos, de feição ainda hesitante ou susceptíveis de aperfeiçoamento, as quais, precisamente, em tentativas de melhoria, hão-de provocar e têm provocado sucessivas mutilações do seu texto.
E assim é que ao cabo de uma escassa dúzia de anos a Constituïção de 1933 sofreu as modificações resultantes das leis n.ºs 1:885, 1:910, 1:945, 1:963 e 1:966. E agora, perante a proposta em discussão, novas modificações estão iminentes.
Acresce que algumas daquelas alterações versaram casos de simples terminologia!
Já o conhecido comentador Mirkine-Guetzevitch se declara contrário a esta prática, a que chama «provincialismo», de introduzir na Constituïção preceitos que normalmente pertencem ao domínio da legislação ordinária.

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Procuremos, em suma, defender a lei das leis de retoques freqüentes, que afectam a sua eficiência e deminuem o respeito que lhe é decido.
Expostas sumàriamente estas ideas, vejamos em que medida lhes pode vir dar satisfação a proposta do Govêrno.
Em primeiro lugar, a proposta criou estes problemas: O exame da Assemblea tem de cingir-se às matérias nela ventiladas ou pode exceder êsses limites?
A circunstância de o parecer da Câmara Corporativa se haver pronunciado só sôbre os artigos tocados pela proposta e ainda a de nos encontrarmos em período de convocação extraordinária obriga, de certo modo, a restringir o debate exclusivamente a êsses artigos.
Mas semelhante orientação tem de considerar-se defeituosa.
A Constituïção é um diploma com unidade, em que há uma interdependência de disposições. O estudo de uma matéria tratada num dos artigos pendentes de revisão pode implicar a modificação de outro ou outros com êle relacionados, embora não compreendidos na proposta. E como proceder?
A própria Câmara Corporativa foi impulsionada pela fôrça desta razão, emitindo parecer sôbre um artigo — o 93.°—, ìntimamente ligado à questão da competência legislativa do Govêrno, mas não incluído na proposta, e fazendo-o aliás por uma forma de que me permito discordar fundamentalmente.
Por outro lado, os poderes constituintes da Assemblea estendem-se até à próxima sessão ordinária desta Legislatura, e duram por toda ela, em virtude da resolução aqui votada em 1 de Abril de 1944.
E será razoável que da Assemblea partam depois novas iniciativas de revisão quanto a pontos não abordados na proposta que agora se discute?
Isto é, ainda mais outras possíveis alterações da Constituïção?
E, no entanto, do facto de serem sancionadas pelo voto da Assemblea algumas das modificações propostas pode resultar a conveniência de alterar o regime legal de outras disposições.
Tudo isto me leva a supor que seria preferível uma análise mais ampla do texto constitucional, se é que se consideram oportunas ou indispensáveis quaisquer modificações.
Mas sê-lo-ão?
Estará a humanidade nas vésperas de uma nova fase da sua história política?
Os deveres de uma solidariedade, que nunca repelimos, levar-nos-ão a participar naquelas concepções morais e ideológicas que melhor pareçam contribuir para a civilização?
Todos nós compreendemos, diz Jacques Maritain, mais ou menos confusamente que a presente guerra é uma revolução mundial.
Quando da paz de 1918 muitas alterações se verificaram em numerosas Constituições: na da Roménia, da Jugo-Eslávia, da Grécia, da Alemanha, da Áustria, da Turquia, da Rússia, da Polónia, da Checo-Eslováquia.
Então, todas elas, num sopro de uniformidade, abraçaram um parlamentarismo omnipotente, que depois havia de provocar trágicas reacções.
Poderia, por isso, supor-se que os reflexos de uma paz recente, ainda que circunscrita à Europa, determinariam algumas intervenções nos pactos fundamentais.
Mas a verdade é que, além daquele grau de liberdade consentâneo com a eficiência das disciplinas interiores, a que sugestivamente aludiu no seu último discurso o Sr. Presidente do Conselho, e que nunca estará em causa, muitas das afirmações que se pretendem reivindicar para as cartilhas políticas das nações têm já assento perdurável na nossa legislação.
E outras parecem ainda muito vagas, para se poderem compreender.
Será então no domínio interno a crise constitucional?
Haverá motivos ligados à continuïdade do Estado que solicitem a revisão?
Nenhum de nós o acreditará, e a proposta também não consente tal interpretação.
À parte as poucas modificações que devem reputar-se substanciais (composição da Assemblea, reforço do seu poder de fiscalização, ampliação da competência legislativa do Govêrno), o conjunto de alterações preconizadas visa, uma vez mais, o aperfeiçoamento de certos preceitos da Constituïção.
Mas algumas delas, justo é dizê-lo, podem vir ao encontro de aspirações que formulámos, até pelas perspectivas que abrem a diplomas complementares, de larga projecção na nossa vida pública.
As anunciadas modificações obrigam a encarar dominantemente duas questões delicadas: a das relações entre a Assemblea e o Govêrno e a da futura competência da Assemblea.
Questões delicadas e não isentas de dificuldades.
Mas não se suponha que elas surgiram apenas entre nós.
Nos países onde existe parlamentarismo puro o divórcio entre as novas realidades sociais e os conceitos clássicos, entre a vida e a teoria, fora já observado. Em nenhuma parte se atribue hoje ao parlamento o seu conteúdo clássico pelo que toca ao primado do Legislativo.
Os factos desmentem as antigas definições.
A complexidade da vida moderna, a urgência das intervenções administrativas, a tecnicidade dos problemas, tudo concorreu para que a função legisladora se fôsse deslocando para o Govêrno.
O Govêrno é o órgão de deliberação e decisão por excelência.
E êste fenómeno de centralização é tam forte que se verifica até no seio do próprio Executivo. O Chefe do Govêrno detém todas as possibilidades.
Esta a realidade a que foi preciso dar solução jurídica. E a solução foi esta: constitucionalmente, usava-se da concessão de plenos poderes. Cito a Inglaterra, a França, a Bélgica.
Mas a nossa Constituïção de 1933 não levanta, por êste lado, qualquer obstáculo.
O Govêrno pode já legislar com relativa amplitude.
Tem, é certo de submeter à ratificação da Assemblea os diplomas que publicar, emquanto esta estiver em funcionamento.
Mas a ratificação, ainda que se considere simples formalidade, não é inútil nem prejudicial à autoridade do Estado.
É uma manifestação da acção fiscalizadora da Assemblea, como que um acto revelador da sua permanente vigilância.
Se, pois, a ratificação pode manter-se sem entravar a marcha da actividade governamental, dispensá-la representa uma abdicação.
Quanto à futura competência da Assemblea tudo se encaminha para que ela se torne cada vez mais em órgão de fiscalização.
Uma fiscalização sem conseqüências, visto que a conservação do Govêrno no Poder não depende das suas votações? Não!
O Govêrno não cai ante as votações da Assemblea, porque não sofre o efeito imediato da sua crítica. Mas a crítica pode ter repercussões decisivas na opinião pú-

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blica e esta constitue elemento fundamental da política e da administração do País.
Algumas das alterações submetidas agora à consideração da Assemblea são a prova evidente de que o Govêrno compreende a necessidade de uma fiscalização séria e organizada, porque ela é também factor do seu próprio equilíbrio.
Confio, portanto, em que da nova modalidade resultará a conveniente compreensão, o respeito mútuo indispensável, o perfeito entendimento entre os dois órgãos da soberania, por forma a manter a segurança e a contribuir para a prosperidade da vida nacional.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Juvenal de Araújo: — Sr. Presidente: como já foi notado, nesta tribuna, pelo Sr. Presidente do Conselho, no dia em que foi apresentada pelo Govêrno a proposta de lei em discussão, o Estado Português rege-se há doze anos por uma Constituïção que foi votada em plebiscito popular e que tem sido revista por uma Câmara eleita por sufrágio directo.
Há, como vemos, a caracterizar e a impor a actual Constituïção uma nítida consagração nacional, verificada — quanto à primitiva votação do texto — sob a forma plebiscitária e — quanto às alterações que, num ou noutro ponto, lhe foram subseqüentemente introduzidas— por intermédio da representação nacional, constituída por sufrágio directo.
Percorrendo a nossa história constitucional, no largo período de mais de um século, desde o aparecimento da primeira Constituïção que tivemos, promulgada como fruto do movimento liberal de 1820, até à Carta Constitucional e seus Actos Adicionais, à Constituïção de 1911 e suas leis complementares e, finalmente, à Constituïção de 1933, que pôs têrmo ao regime transitório da ditadura de 1926, difìcilmente encontramos uma Constituïção Política que tenha recebido uma mais directa, solene e expressiva aprovação da Nação do que esta última.
Outros Estados poderão porventura ter a sua lei fundamental igualmente conforme com a vontade expressa da Nação, à luz dos melhores princípios de direito público e consoante as normas que, com certas diferenças de pormenor ou de processo, variáveis de país para país, são de uso seguir-se; nenhum, porém, a terá, à luz das mesmas regras de ordem jurídica e política, em mais afirmada conformidade que o nosso.
Cheia, pois, de melindre e de delicadeza é, neste momento, a missão da Assemblea Nacional, que, embora no exercício pleno da sua função representativa e embora munida de todos os poderes constituintes, não pode deixar de reconhecer que se acha em frente de uma Constituïção cuja promulgação foi erguida sôbre o voto directo e soberano da Nação.
Por outro lado, a tradição constitucional ensina-nos que a lei fundamental do Estado carece de reajustar-se, quanto possível, no andar dos tempos, às aspirações, às tendências e às necessidades da Nação, para uma mais perfeita e eficiente satisfação do seu fim último de bem comum, e dêste reconhecimento resulta o princípio, introduzido na generalidade das Constituições, da possibilidade da sua revisão dentro de determinados períodos.
Ora, Sr. Presidente, eu conjugo estas duas ordens de razões que tenho diante de mim para concluir que, dada por um lado a origem da nossa Constituïção Política e reconhecida por outro a necessidade da revisão de algumas das suas disposições, todos os nossos cuidados e todos os nossos escrúpulos devem ser especialmente postos no acautelamento e defesa dos direitos indeclináveis que a Nação chamou a si, através do espírito e da letra do texto constitucional que directamente votou.
É matéria sôbre a qual temos, como mandatários da Nação, responsabilidades especiais e que, em meu entender, não pode nem deve sofrer restrições.
E, assim, pregunto: Está devidamente assegurada a fiscalização da representação nacional à actividade do Poder Executivo? Está garantido o direito de livre crítica, pelo órgão representativo da Nação, aos actos do Govêrno?
O que nos mostra, a êste respeito, a Constituïção actualmente vigente, analisada em conjunto com as alterações que nesta altura lhe são propostas?
Mostra-nos, antes do mais nada, pela sua letra expressa, que a Assemblea Nacional não só tem o poder de exercer a função legislativa, como tem o direito de vigiar pelo cumprimento da Constituïção e das leis e apreciar com toda a largueza os actos do Govêrno e da Administração, podendo para isso qualquer dos seus membros consultar e solicitar de qualquer corporação ou estação oficial as informações de que carecer.
Necessário é notar-se que estas faculdades, embora sintetizadas na seca brevidade de disposições legais, correspondem na prática ao maior, ao mais amplo, ao mais largo direito de representação e de fiscalização que a Assemblea Nacional pode exercer sôbre toda a actividade oficial, pois abrange não só as medidas gerais ou especiais tomadas pelo Govêrno no estabelecimento de qualquer regra de conduta ou na solução de qualquer problema, como as mais insignificantes decisões e providências adoptadas por qualquer órgão de administração para as situações concretas de cada dia.
Podiam ainda levantar-se algumas dúvidas sôbre o alcance desta faculdade, confinada pelo artigo 92.° à esfera alta da vigilância pelo cumprimento da Constituïção e das leis; mas desde que se lhe introduza a alteração que está proposta, já todas as dúvidas se desfazem, já todas as subtilezas da hermenêutica se dissipam, e esclarece-se definitivamente que toda a administração pública, desde a sua mais alta à sua mais modesta estância, fica sob o poder de fiscalização da Assemblea Nacional.
E, assim, munido dos elementos com que se tenha particularmente habilitado e, ainda, fortalecido pelos dados o informes oficiais que nenhuma repartição pode negar-lhe, a não ser por razão de segredo de Estado, o Deputado tom toda a possibilidade, quer no período de antes da ordem do dia, quer por intermédio de um aviso prévio, de livremente apreciar qualquer acto de administração pública e discutir a orientação dada a qualquer negócio de Estado, além do direito fundamental de ordenar e fazer converter as suas ideas no articulado de um projecto de lei, alterando ou substituindo o que está estabelecido.
Que largo campo se abre, neste particular, à iniciativa, à actividade e ao zêlo dos membros da Assemblea Nacional, geralmente pertencentes às mais diferentes regiões do País, em íntimo contacto, portanto, com as mais diversas esferas de interêsses económicos, sociais e morais, aqui se fazendo eco das queixas, das necessidades, dos anseios da população nacional sôbre os mais diferentes ramos da administração pública!
Se esta faculdade de apreciação, de estudo e de crítica sôbre os negócios do Estado não fôr exercida como deve ser, não se diga, Sr. Presidente, que o mal é da Constituïção...
Mas há, entre todas, uma faculdade fiscalizadora que assume tal magnitude que merece, aqui, uma referência especial: é a que incide sôbre as contas públicas do Estado. E, neste particular, não se pode deixar também de reconhecer, em face da Constituïção Política, que a Nação, por intermédio da sua assemblea representativa,

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tem todo o poder de controle tanto sôbre as receitas como sôbre as desposas públicas.
Com efeito, o que mostra a letra expressa da Constituïção?
É que, primeiro, não pode haver organização do orçamento sem a devida autorização da Assemblea Nacional e, depois, é ainda à Assemblea Nacional que pertence apreciar e julgar a forma como o orçamento foi executado.
A Nação exerce, pois, por intermédio da sua assemblea representativa, quanto à votação dos impostos e à aplicação das receitas — que é tudo quanto há de mais importante e basilar na vida do Estado —, uma dupla função: a de autorizar e a de julgar.
O Govêrno apenas organiza e executa. Mas só organiza nas directivas que os mandatários da Nação definem aqui, e executa, submetendo depois as contas ao exame da Assemblea.
Ao lado destas, as disposições novas que aumentam de noventa para cento e vinte o número de Deputados o permitem o alargamento do período do funcionamento normal da Assemblea dão a esta Câmara uma maior possibilidade de actuação, amplificam a sua capacidade de trabalho, tornam possível o recontro de maior número de pareceres e do ideas sôbre os problemas que se debatam, e de tudo só poderá resultar maior eficiência e proveito na acção da representação nacional.
Cito, Sr. Presidente, estes factos, acentuo estes preceitos, para demonstrar quanto está acautelada a acção política e fiscalizadora que é inerente, segundo a boa doutrina constitucional, a êste órgão de soberania da Nação. Podemos até afirmar, neste particular, que estamos em inteira conformidade com o que o mundo conhece de melhor o de mais adiantado nas modernas correntes do direito constitucional, como ainda há pouco provou aqui, com o brilho do seu espírito e com a alta competência que todos lhe reconhecem, o Sr. Dr. Mário de Figueiredo no magistral discurso com que honrou o início dêste debate.
Infelizmente no nosso País, na apreciação desta ordem de problemas não raro se vai atrás de meros rótulos e de opiniões preconcebidas, deixando-se para os outros a leitura serena dos textos, a sua interpretação séria e o seu confronto com os textos correspondentes nas outras legislações.
E, assim, há doutrina que se critica e se ataca apenas pelo prazer de criticar e de atacar, sem se procurar averiguar qual a sua razão de ser, qual o seu processo evolutivo e quais os inconvenientes e males que, com a sua adopção, se procura evitar.
A êste propósito recordo, por exemplo, a celeuma que em determinados sectores tem levantado o facto de os membros do Govêrno não comparecerem às sessões da Assemblea Nacional e apenas tomarem parte, segundo a proposta que está sôbre a Mesa, nas sessões das comissões permanentes da Assemblea. A verdade é que esta prática, diga-se de passagem, é, por um lado, perfeitamente harmónica com as tendências até certo ponto presidencialistas que informam a actual Constituïção e, por outro, é posta como necessária pelas lições da nossa história parlamentar.
O que, porém, é curioso lembrar é que, pouco depois do advento da República, na Assemblea Constituinte de 1911, quando aqui se tratava de lançar as bases do um regime verdadeiramente democrático, como então se dizia, organizou-se uma comissão de entre os mais puros e indefectíveis corifeus da idea liberal para apresentar ao Parlamento um projecto de Constituïção Política. Ficou essa comissão composta de José de Castro, Magalhãis Lima, José Barbosa, João de Meneses e Correia de Lemos, tendo na sessão de 3 de Julho de 1911 apresentado o seu projecto, que ficou na história política de
Portugal como o projecto primitivo da Constituïção de 1911.
É interessante ler-se o artigo 41.° dêsse projecto de Constituïção, pois nêle se estatuía precisamente que os Ministros não podiam assistir às sessões de qualquer das casas do Parlamento, devendo apenas enviar-lhe relatórios acêrca dos assuntos pendentes e comparecer, para prestar informações o esclarecimentos, perante as comissões.
Entretanto, hoje, o mesmo princípio, pôsto na Constituïção, é tido como simplesmente abominável... ferozmente antidemocrático... perigosamente contrário a todas as boas normas... na lógica admirável dos nossos censores!
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: a paixão política pode gerar destas cegueiras e destas incongruências. Pode ainda teimar em esquecer certas lições do nosso constitucionalismo, antigo e moderno, que, aliás, se acham escritas em caracteres que se não deformam nem apagam. Pode ainda ter a ilusão de que a Constituïção Política do Estado Português está redigida e é executada, não como realmente o está em toda a sua clareza e notoriedade, mas como desejariam os seus detractores que ela estivesse.
Mas o que a paixão política nunca conseguirá é fazer com que esqueçamos a fidelidade que devemos ao mandato recebido da comunidade nacional e impedir que tenhamos pela salvaguarda dos direitos imprescritíveis da Nação e dos seus mais puros interêsses o zêlo activo e permanente que está no fundo da consciência de nós todos. E, em boa verdade, podemos neste ponto reconhecer que, nos termos em que está redigida a Constituïção e em que, em última análise, ela ficará depois das alterações que vão ser-lhe introduzidas, os direitos da Nação sôbre a acção do seu govêrno e administração ficam bem rigorosamente salvaguardados.
«A nenhuma nação, por mais poderosa que seja, é lícito dominar o mundo» — proclamou há dias em S. Francisco da Califórnia o Presidente Truman. A nenhuma nação, por mais pequena que seja — acrescentarei —, é lícito renunciar a conduzir-se a si própria, só lhe competindo reconhecer como limites à sua soberania, na ordem interna, a moral e o direito e, na ordem internacional, os que derivem das convenções ou tratados livremente celebrados ou do direito consuetudinário livremente aceito.
Sr. Presidente: estas palavras, que neste momento soam aos nossos ouvidos como expressão oportuníssima e certa de uma grande norma de conduta universal, são ainda da Constituïção Política do Estado Português.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — O debate na generalidade sôbre a proposta de lei relativa às alterações à Constituïção Política e ao Acto Colonial continuará na ordem do dia da sessão de amanhã.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Artur Proença Duarte.
João Ameal.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.

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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 186
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pereira dos Santos Cabral.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
Ângelo César Machado.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Cristo.
Carlos Moura de Carvalho.
Francisco da Silva Telo da Gama.
João Garcia Nunes Mexia.
João Xavier Camarate de Campos.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Clemente Fernandes.
José Dias de Araújo Correia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Ranito Baltasar.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Pedro Inácio Alvares Ribeiro.
Querubim do Vale Guimarãis.
O Redactor — M. Ortigão Burnay.
Imprensa Nacional de Lisboa

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