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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 187
ANO DE 1945
4 DE JULHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.º 184, EM 3 DE JULHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
José Luiz da Silva Dias
António Rodrigues Cavalheiro
SUMÁRIO: — O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 44 minutos.
Antes da ordem do dia. — Deu-se conta do expediente.
Ordem do dia. — Prosseguiu a discussão da proposta de lei de alterações à Constituïção e ao Acto Colonial, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Antunes Guimarãis, Oliveira Ramos e Joaquim Saldanha.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 53 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada. Eram 15 horas e 32 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur de Oliveira Ramos.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Fernando Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique Linhares de Lima.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luiz Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pires Andrade.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alberto dos Reis.
José Alçada Guimarãis.
José Clemente Fernandes.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
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Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Rui Pereira da Cunha.
Salvador Nunes Teixeira.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 55 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 44 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Em virtude de o Diário da última sessão ainda não ter chegado à Assemblea, não o posso pôr à votação.
Deu-se conta do seguinte:
Expediente
Exposição
Companhia das Lezírias do Tejo e Sado. — Lisboa, 2 de Julho de 1945. — Sr. Presidente da Assemblea Nacional — Excelência. — Com natural estranheza soube a Companhia das Lezírias do Tejo e Sado do uso que da palavra fez na Assemblea Nacional o ilustre Deputado Sr. capitão Duarte Marques.
Em primeiro lugar, porque S. Ex.ª fez afirmações inexactas, certamente induzido em êrro por alguém que, no propósito de servir seu exclusivo interêsse, abusou da sua confiança e dos extremos da sua sensibilidade.
Em segundo lugar, porque tendo a Companhia em Lisboa a sua sede, em sítio central e acessível, ninguém procurou esclarecer-se junto dela antes de formular opinião judicativa e pejorativa sôbre os seus actos, motivos e intenções.
Em terceiro lugar, porque a Companhia é um proprietário como qualquer outro, sem qualquer especial interferência do Estado nem qualquer modalidade do exercício dos seus direitos patrimoniais que não derive exclusivamente da sua constituïção, que é a de uma sociedade civil de proprietários sob a forma de sociedade anónima.
Actualmente, e porque desde 1910 tem alienado grandes massas de propriedade, nem sequer pode constituir uma singularidade no nosso País, visto haver outros proprietários, singulares e colectivos, com extensos e valiosos terrenos.
O seu caso é, portanto, inteiramente do âmbito do direito privado, reguladas como são as suas relações pela mesma liberdade de acção, apenas submetida às restrições das normas gerais do inquilinato que tem qualquer outro possuidor de terras.
Com efeito, a Companhia adquiriu por compra, «em hasta pública e a dinheiro de contado em metal sonante», há mais de um século, bens que foram da antiga Casa do Infantado, tal como outros depois, adquiriram a plena propriedade de bens dos conventos suprimidos, e é verdade sabida que tem realizado uma persistente obra de valorização dessas propriedades, com custosas obras de defesa e desbravamento, em que tem investido avultadíssimos capitais, mercê dos baixos dividendos arrecadados pelos seus accionistas.
E, se é certo que directamente procede à exploração de consideráveis áreas de campo e de charneca, não deixa de facultar a fruïção de muitas parcelas a rendeiros, que constituem uma tradição herdada do tempo em que a Coroa por êles distribuía a exploração de suas terras, havendo ainda famílias que, sempre nas melhores relações com a Companhia, continuam de pais para filhos essa tradição.
Por esta forma, como já foi dito num dos relatórios da direcção da Companhia, vai esta cumprindo o dever social de facultar meios de actividade e de vida aos que da cultura da terra fazem profissão.
As terras que ficam vagas são dadas de arrendamento, segundo a tradição, isto é, em praça, sem pagamento adiantado e sem outra garantia além da de fiadores — não havendo, porém, memória de execução judicial contra qualquer dêstes, não obstante a Companhia se ter visto na contingência de levar à conta de perdas e danos não só centenas, mas milhares de contos de rendas incobráveis — durante a sua longa existência.
Tal é o senhorio que todos procuram e de que quási todos murmuram — segundo o velho sestro nacional!
Ora, no caso particular para que foi chamada a atenção do ilustre Deputado, acontece que abrangeu apenas quarenta e sete rendeiros nos termos de Vila Franca de Xira e de Benavente, cujos contratos caducam em 15 de Agosto próximo. Avisados em 1 de Junho do projecto de alteração de rendas, para efeito da renovação dos arrendamentos, vieram logo dezasseis dêles declarar que aceitavam as novas condições, sinal evidente de quanto elas são equitativas; outros vieram representar sôbre as suas situações particulares, que a Companhia examina uma por uma, atendendo ao que é razoável; outros nada disseram ainda, e serão talvez êsses poucos os que, no desejo de se eximirem a uma justa actualização das suas rendas, mal informaram o Sr. capitão Duarte Marques, sem atentarem, sequer, em que se trata de estabelecer rendas para os próximos anos agrícolas, que nada autoriza a supor que sejam calamitosos como o actual, com a liberdade, porém, para os rendeiros de prorrogarem o cultivo das terras que actualmente amanham, por um ou por três anos, não sofrendo outras conseqüências, no caso de não aceitarem, senão as de os arrendamentos serem postos em praça, a que não são impedidos de concorrer.
Se se arriscam a não terem onde empregar seus gados e trem de lavoura, não é seguramente por culpa da Companhia, mas porque outros rendeiros podem surgir a cobrir as próprias condições que lhes foram leal e generosamente oferecidas.
É que, com efeito, se trata de rendas estabelecidas há, pelo menos, quinze anos, sem que até hoje tenham sofrido qualquer revisão.
Não é preciso dizer mais a quem atentamente tem acompanhado a evolução do valor da moeda, dos preços dos géneros e dos próprios impostos, senão que, contràriamente à informação levianamente prestada ao ilustre Deputado, apenas numa emposta (que é a melhor da lezíria) foi proposto ao rendeiro um aumento que atingiu 66 por cento da renda actual, tendo êle feito a contraproposta de 58 por cento — o que só por si mostra a procedência da alteração da renda —, oscilando todos os outros aumentos entre 20 e 50 por cento.
Quam longe estamos dos 200 por cento em que falaram ao ilustre Deputado como percentagem do aumento de nossas rendas em terras de cultivo ou de pas-
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tagem nas nossas terras chãs das lezírias de Vila Franca ou de Samora!
Não queremos referir-nos ao que têm feito outros proprietários nossos vizinhos, nem mesmo para estabelecermos comparações, que nos seriam favoráveis — se é que para nós é lisonjeiro sermos menos exigentes em defesa de nossos legítimos interêsses do que êles o são em defesa dos seus.
E sabemos mesmo que não precisamos mais do que qualquer outro proprietário de vir perante a Assemblea Nacional, a que V. Ex.ª tam dignamente preside, dar esclarecimentos sôbre a nossa actuação, se não estivéssemos habituados a dar conta pública dos actos da nossa administração e a facultar a todos os interessados os meios de se esclarecerem e de connosco realizarem razoáveis acordos.
A bem da Nação. — Pela Companhia dás Lezírias do Tejo e Sado, os Directores: Afonso de Melo — Júlio Vieira.
O Sr. Presidente: — Comunico à Assemblea que, em resposta a um requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Duarte Marques, o Sr. Ministro do Interior informa que o processo de inquérito à Câmara Municipal de Abrantes pode ser consultado na Repartição do Gabinete do mesmo Ministério, não só pelo Sr. Deputado que o requereu, mas por qualquer outro Sr. Deputado que nas mesmas circunstâncias o pretenda.
Como não se encontra inscrito nenhum Sr. Deputado para usar da palavra no período de antes da ordem do dia, vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Continua em discussão, na generalidade, a proposta de lei relativa a alterações à Constituïção Politica e ao Acto Colonial.
Tem a palavra o Sr. Deputado Antunes Guimarãis.
O Sr. Antunes Guimarãis: — Sr. Presidente: sempre que subo a esta tribuna faço-o num confrangimento proporcional às graves responsabilidades que assumo ao pronunciar-me sôbre as bases das propostas de lei e ao votar os preceitos que hão-de condicionar os grandes problemas da vida nacional.
Mas aquela emoção atenua-se, até certo ponto, porque a lei votada pode ser rectificada em curto prazo se porventura vier a verificar-se não corresponder aos altos interêsses atingidos.
Ao rever a Constituïção Política da República Portuguesa, assoberba-me o pensamento de que só volvido um período relativamente longo seria possível corrigir o que, por infelicidade, carecesse de rectificação imediata.
Sr. Presidente: de acôrdo com o que foi dito ontem nesta tribuna, afigura-se-me que os princípios que informam a nossa Constituïção, de uma maneira geral, são de manter, mesmo tendo-se em consideração a crise que o mundo atravessa.
E, ao ler a proposta do Govêrno sôbre a sua revisão, verifico ser também esta a sua maneira de pensar, porquanto as alterações sugeridas incidem tam sòmente sôbre 18 dos 143 artigos da actual Constituïção e limitam-se à parte relativa à organização política do Estado.
Conclue-se que o Govêrno entende que problemas da maior envergadura compreendidos nos restantes capítulos do nosso Estatuto Constitucional, alguns dos quais de manifesta urgência, podem ser solucionados mercê de boas leis, na continuação de outras em vigor, e de sábia administração.
A tantos sobreleva o problema social, mas todos confiam em que do esfôrço combinado do Govêrno, desta
Assemblea e de quantos por qualquer forma possam contribuir para o resolver não deixará de resultar uma fórmula eficaz e equilibrada para o bem de toda a comunidade.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — A faculdade de associação e do reünião, bom como o indispensável respeito pela opinião pública e pela expressão do pensamento como factores fundamentais da política e da administração do País, não deixarão também de ser tidos, assim o esperamos ansiosa e confiadamente, na alta consideração que por todos os títulos lhes é devida.
Há também que defender o direito de propriedade e estimular as iniciativas privadas, defendendo o primeiro de expropriações que têm chegado a provocar protestos gerais e as segundas de entraves ao seu desenvolvimento, ou do encerramento de unidades fabris que conduzam a concentrações, quási sempre fonte de monopólios capitalistas, que importa evitar.
E cumpre também providenciar por que, se alguns monopólios vierem a ser administrados pelo Estado, não sejam orientados por fins lucrativos, em prejuízo do bem público, mas visem exclusivamente o fomento geral da Nação, em cujas actividades, assim estimuladas, o Estado não deixaria de encontrar depois larga e legítima compensação fiscal.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Da mesma forma, indispensável se torna que a recente política de fortalecimento do poder de compra, para a tam desejada elevação geral do nivel de vida, mercê de actividades remuneradas a todos facultadas dignamente, não só se mantenha, mas se intensifique de harmonia com as condições económicas do País.
E que prossiga o fomento rural para melhoria das condições de vida e valorização do trabalho em todos os sectores e aproveitamento das múltiplas fontes nacionais de riqueza.
Mas, como disse, estes e outros problemas da maior importância e de manifesta urgência não carecem de alterações constitucionais para continuarem a ser devidamente considerados e resolvidos pelo Govêrno. O que importa é andar para a frente!
Sr. Presidente: como venho de dizer, as modificações propostas referem-se à organização política do Estado.
Nada tenho que objectar à alteração do artigo 82.°, que respeita à referenda pelo Presidente do Conselho, como nada tenho a dizer sôbre a elevação do número de Deputados para 120, duração dos trabalhos legislativos e outras alterações relativas ao artigo 85.°; o mesmo direi acêrca do n.º 2.° do artigo 90.°.
Vou, contudo, referir-me, com a demora precisa, às propostas de alteração relativas aos n.ºs 2.° e 13.° do artigo 91.º.
O n.º 2.°, que na actual Constituïção estabelece ser da competência da Assemblea Nacional «Vigiar pelo cumprimento da Constituïção e das leis», seria, conforme propõe o Govêrno, acrescentado com as palavras «e apreciar os actos do Govêrno ou da administração pública»; e o n.º 13, que diz: «Conferir ao Govêrno autorizações legislativas», seria eliminado.
No seu valioso parecer, a Câmara Corporativa, ao chegar a êste ponto, encima a série de considerações ali feitas pelo título «Reforço do poder de fiscalização».
É bem de ver que li com a maior atenção os argumentos ali expostos, mas não vejo que as citadas palavras «e apreciar os actos do Govêrno ou da administração pública» aumentem a latíssima faculdade que a Consti-
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tuïção já nos concede ao estabelecer como sendo da nossa competência «vigiar pelo cumprimento da Constituïção e das leis».
Nestas simples mas eloqüentes palavras já está compreendido o que agora se pretende juntar-lhes e o mais que a imaginação, porventura, quisesse ainda acrescentar.
Tanto assim que nos onze anos de trabalhos desta Assemblea as suas funções fiscalizadoras têm sido exercidas com a maior latitude, através de avisos prévios, em intervenções antes da ordem do dia e mercê de considerações durante os debates que o Diário das Sessões vai arquivando.
Não se limita, porém, a proposta de lei a êste pretenso refôrço do poder de fiscalização da Assemblea Nacional.
Assim, o artigo 96.° da Constituïção diz: «Os membros da Assemblea Nacional podem ouvir, consultar ou solicitar informações de qualquer corporação ou estação oficial acêrca de assuntos de administração pública; as estações oficiais, porém, não podem responder sem prévia autorização do respectivo Ministro, ao qual só é licito recusá-la com fundamento em segrêdo de Estado».
Ora o Govêrno propõe agora se acrescente que aquelas prerrogativas se poderão exercer «independentemente do funcionamento efectivo» da Assemblea Nacional,
Na minha opinião, o texto constitucional, que não admite quaisquer restrições àquelas fundamentais faculdades dos membros da Assemblea Nacional, a não ser o caso de segredo de Estado, nada melhoraria com o aditamento citado, no sentido do se reforçarem os poderes de fiscalização dos Deputados. Preferível é que permaneça como está.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Propõe também o Govêrno que os Deputados se organizem em «comissões permanentes»; acrescentando a Câmara Corporativa, era seu esclarecedor parecer, «polìticamente especializadas conforme a natureza dos assuntos».
Mas, decerto para as distinguir das secções especializadas da Câmara Corporativa, vai condenando que as projectadas comissões permanentes especializadas, da Assemblea Nacional elaborem pareceres, tal como se verifica com as secções especializadas daquela Câmara Corporativa, e, neste caso, com muita razão.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Esta precaução seria, de facto, conveniente, a ser aprovada tam estranha doutrina, não vão considerar a Assemblea Nacional, que devo ser exclusivamente política, e, como tal, insusceptível de especializações, como duplicação da Câmara Corporativa a qual, nos termos da Constituïção, além de delegados das autarquias, é composta de representantes dos ramos fundamentais, dos diversos interêsses sociais e, assim, devidamente especializada e dividida nas correspondentes Secções.
No douto parecer que acompanha a proposta de revisão constitucional em discussão fazem-se desenvolvidas considerações sôbre êste tema singularíssimo de uma assemblea política ser dividida em comissões especializadas, para chegar à conclusão inadmissível de que elas constituem mais um refôrço da função fiscalizadora da Assemblea Nacional, afirmando-se também que as referidas comissões permanentes a poderão exercer mais efectivamente que as sessões de estudo que o Govêrno pretende agora extinguir, mas nas quais, de facto, nunca houvera a preocupação de exercer quaisquer funções fiscalizadoras, pois todo o tempo era consagrado ao estudo das propostas de lei e de outros diplomas ali apreciados.
Alvitra-se também a constituïção de comissões eventuais para inquéritos.
Ora os poderes de fiscalização ou de inquérito, bem como a obrigação de estudar todos os assuntos para conscientemente os votar, já cabem indiscriminadamente a todos os Deputados, os quais, se nisso virem vantagem, não estão inibidos de se juntar com alguns colegas para qualquer daqueles fins.
Da atribuïção permanente daqueles mandatos, como agora se propõe, a comissões especializadas, além de resultar a desvirtuação da função política dos Deputados, desobriga-os, dentro de certos limites, de se preocuparem insistentemente, como aliás lhes cumpre, com o estudo dos problemas cujo estudo fora taxativamente confiado às projectadas comissões permanentes.
Nem seria elegante um Deputado intervir no que competir taxativamente às comissões, o que deminuïria os poderes dos mesmos Deputados.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Argumenta-se que as comissões existem no estrangeiro.
Mas não seriam precisas em Portugal, porque, muito acertadamente, a nossa Constituïção criou a Câmara Corporativa, onde secções competentes estudam os assuntos, para serem depois presentes à Assemblea Nacional.
Desta forma os trabalhos têm todas as probabilidades de resultar mais completos, por serem elaborados por técnicos especializados.
E não poderão verificar-se os graves inconvenientes do contacto permanente de comissões politicas com a administração pública, o que poderia traduzir-se em burocratização dos Deputados, ou possível mas inconvenientíssima ingerência dêstes em funções de ordem administrativa, da competência exclusiva do Poder Executivo.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Para que seja possível côlher todas as vantagens da acertada fórmula portuguesa — uma assemblea política com a garantia da colaboração competente e especializada de uma câmara técnica —, importa que a primeira se confine nas suas importantíssimas funções legislativas e de fiscalização e que a segunda se limite a representar com elevação, de que tom dado provas suficientes nos onze anos de sua vigência, os vastíssimos interêsses sociais ali presentes, nos termos da Constituïção.
Se à Assemblea Nacional fôssem deminuídas as suas funções legislativas, sob o pretexto da compensação de problemático refôrço do seu poder de fiscalização e das projectadas comissões permanentes especializadas, afigura-se-me que precário viria a ser o seu funcionamento como assemblea política, uma vez que, na síntese feliz da Câmara Corporativa em seu elucidativo parecer, tudo se resume na proposta do Govêrno ao «refôrço do poder de fiscalização da Assemblea, por um lado, e refôrço do poder legislativo do Govêrno, por outro».
Ora isto não deveria admitir-se, por não corresponder à vontade da Nação, manifestada em plebiscito.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — De facto, o n.º 2.º do artigo 109.° da Constituïção, em que se define a competência do Govêrno e cuja redacção actual é: «Fazer decretos-leis, no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública, e aprovar, nas mesmas
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circunstâncias, as convenções e tratados internacionais», passaria a ter a redacção seguinte:
«Fazer decretos-leis e, em casos de urgência, aprovar as convenções e tratados internacionais».. Quere dizer: o Govêrno passaria a dispensar por completo as autorizações legislativas da Assemblea Nacional e, além disso e em face da projectada eliminação do § 3.° do referido artigo 1.09.°, que diz: «Quando o Govêrno publicar decretos-leis, nos casos de urgência e necessidade pública, durante o funcionamento efectivo da Assemblea Nacional, deverá propor à ratificação desta os respectivos decretos-leis numa das primeiras cinco sessões que se seguirem à sua publicação», não precisaria das ratificações da Assemblea Nacional que a Constituïção actualmente exige.
Em defesa daquela orientação cita-se no parecer da Câmara Corporativa uma tese apresentada ao II Congresso da União Nacional e faz-se o seguinte comentário: «Afinal, mais não se faz, já o dissemos, do que dar foros de indiscutível constitucionalidade às realidades políticas dos últimos tempos: a Assemblea Nacional tem sido, de facto, um órgão legislativo excepcional e o Govêrno o órgão legislativo normal».
E já anteriormente afirmara no mesmo parecer que «de facto a iniciativa legislativa dos Deputados a bem pouco se reduziu nas duas últimas legislaturas».
Mas, com manifesta oportunidade, transcreve também o que num parecer da mesma Câmara Corporativa, emitido em 15 de Fevereiro de 1935, se dissera sôbre a inconveniência de «o poder legislativo pertencer ao mesmo tempo e no mesmo grau à Assemblea Nacional e ao Governo».
E afirma-se que o «aspecto cada vez mais técnico que as normas legais vão tomando aconselha a instauração de um sistema que atribua ao Govêrno o exercício da função legislativa», devendo provocar-se a intervenção das assembleas políticas apenas quando se trate de definir grandes orientações ou de assunto ou matéria adstritos a altos interêsses nacionais, assim reconhecidos pelo Governo».
Esta última frase, se a sugestão nela formulada viesse a ser aprovada, representaria grave restrição ao disposto no artigo 97.° da Constituïção, que estatue pertencer a iniciativa da lei indistintamente ao Govêrno ou a qualquer dos membros da Assemblea Nacional.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sôbre o resto, já o artigo 92.° da Constituïção preceitua que as leis votadas pela Assemblea Nacional devem restringir-se à aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos, não podendo, porém, ser contestada, com fundamento na violação dêste princípio, a legitimidade constitucional de quaisquer preceitos nelas contidos.
Bom seria que as propostas de lei se limitassem tanto quanto possível às bases gerais dos regimes jurídicos, e não viessem pejadas de preceitos regulamentares, que são mais pròpriamente da competência do Govêrno, por êle trabalhar em contacto com as repartições técnicas, conhecedoras dos pormenores que deverão figurar nos regulamentos.
Sr. Presidente: o argumento aduzido pela Câmara Corporativa de que «afinal, o reforço agora proposto dó poder legislativo do Govêrno, mais não é do que dar foros de constitucionalidade às realidades políticas dos últimos tempos» não é de aceitar, porque importa ter presente o período anormal em que a vida portuguesa, como, aliás, a de todo o mundo, tem decorrido, não sendo de admitir que os processos então impostos pelos acontecimentos devam ser mantidos no futuro, uma vez que nos bafeja a esperança de melhores dias.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — A lição que se aprende ria análise da obra legislativa do Govêrno nos últimos anos é a de que os seus diplomas têm sido, por vezes, o espelho dá sua composição, em que predominam técnicos, sem dúvida do maior valor, mas, sobretudo, técnicos.
Bastará o exame dos diplomas presentes à Assemblea Nacional nos últimos seis meses de trabalho legislativo — propostas de lei sôbre electrificação, reorganização industrial, casas de renda económica, assistência psiquiátrica e, recentemente, sôbre coordenação dos transportes terrestres — para demonstração do que venho de afirmar. Quem ler no Diário das Sessões o relato dos respectivos debates notará quanto o critério político da Assemblea Nacional discordou das soluções propostas pelo Govêrno, que diríamos então orientado por critério técnico, e não deixará de verificar que os textos votados podem, porventura, fugir aqui e ali aos cânones da tecnicidade, mas amoldam-se melhor às realidades e exigências da vida nacional.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: os quatro pilares da Constituïção Política da República Portuguesa são constituídos pelos respectivos órgãos de soberania — Chefe do Estado, Assemblea Nacional, Govêrno e tribunais—, cujos poderes são claramente definidos em capítulos daquele estatuto fundamental.
Assim, ao Govêrno, que depende exclusivamente do Presidente da República, compete «superintender no conjunto da administração pública, fazendo executar as leis e resoluções da Assemblea Nacional».
As suas funções legislativas são assim definidas:
«Fazer decretos-leis, no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública, e aprovar, nas mesmas circunstâncias, as convenções e tratados internacionais.
Elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das leis».
As atribuïções legislativas da Assemblea Nacional são assim definidas na Constituïção Política da República Portuguesa:
«Fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las.
Conferir ao Govêrno autorizações legislativas».
Além disso estabelece a Constituïção que «as leis votadas pela Assemblea Nacional devem restringir-se à aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos, não podendo, porém, ser contestada, com fundamento na violação dêste princípio, a legitimidade constitucional de quaisquer preceitos nelas contidos.
E diz-se também na Constituïção: «Quando o Govêrno publicar decretos-leis, nos casos de urgência e necessidade pública, durante o funcionamento efectivo da Assemblea Nacional, deverá propor à ratificação desta os respectivos decretos-leis numa das primeiras cinco sessões que se seguirem à sua publicação».
Em meu entender a ratificação obrigatória deveria limitar-se aos decretos-leis que incluíssem bases gerais dos regimes jurídicos, mas abrangendo, não só os publicados durante o funcionamento da Assemblea Nacional, como os restantes.
Contudo à Assemblea, nos termos do n.º 1.° do artigo 91.° da Constituïção, compete a faculdade latíssima de suspender e revogar as leis.
Da mesma forma que todos queremos um Govêrno forte, também não desejamos uma Assemblea Nacional com a sua função legislativa deminuída.
Vozes: — Muito bem!
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O Orador: — Sr. Presidenta: se fosso o caso de os interêsses superiores da Nação indicarem a oportunidade de se alterar a função legislativa, na minha opinião o que estaria indicado era o preceituado no n.º 2.° do artigo 135.° da Constituïção:
«Submeter a plebiscito nacional as alterações da Constituïção que se refiram à função legislativa ou seus órgãos, vigorando as alterações aprovadas logo que o apuramento definitivo do plebiscito seja publicado no Diário do Governo».
Sr. Presidente: se em 1933, ao votar a Constituïção Política da República Portuguesa, aplaudi a criação de uma Assemblea Nacional de natureza essencialmente política e, como tal, com poderes de fiscalização, mas constituindo o órgão de soberania por excelência para fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, hoje, após a experiência de onze anos do seu funcionamento, entendo que aquelas funções, a não serem reforçadas, carecem absolutamente de ser integralmente mantidas, para que se valorize a sua colaboração com o Govêrno, a bem dos altos interêsses nacionais.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Portanto, se, apesar da disposição constitucional que acabo de invocar, o assunto fôr submetido à votação, eu não aprovarei quaisquer restrições ou alterações à função legislativa.
Sr. Presidente: discordo da constituïção de comissões permanentes especializadas e conseqüente extinção das sessões de estudo.
Entendo que o trabalho destas poderia ser muito mais rendoso se os pareceres da Câmara Corporativa fôssem distribuídos aos Deputados com a antecipação precisa para, ao iniciarem-se as sessões de estudo, já estarem senhores do assunto, e se fôssem acompanhados de todos os elementos indispensáveis ao perfeito conhecimento da matéria abrangida nas propostas de lei. Porque nunca concordei com a chamada «comissão-filtro», tenciono propor não sòmente a eliminação da nova redacção sugerida na proposta de lei, mas o próprio artigo 97.° da Constituïção.
Sr. Presidente: permita V. Ex.ª ainda algumas palavras sôbre as alterações propostas ao artigo 116.° da Constituïção, respeitantes aos tribunais.
Nenhuma dúvida terei em votar a nova redacção proposta pelo Govêrno.
Mas nesta matéria gravíssima, coerentemente com atitudes por mim assumidas nesta Assemblea na defesa do Poder Judicial, destacadamente quando pugnei pela faculdade de recurso que então era negada em casos de transgressão do Código da Estrada e nas leis de expropriação, marcadamente a dos Centenários, em que aos proprietários era e continua deploràvelmente a ser negado aquele fundamental recurso para o órgão de soberania que a Constituïção criou ao lado do Chefe do Estado, da Assemblea Nacional e do Govêrno —os tribunais — para garantia de todos os direitos que aquele diploma fundamental assegura aos cidadãos, o que desejo é que em todos os casos o recurso ao Poder Judicial seja, não só assegurado, mas facilitado. Impõe-se o maior respeito por êste órgão da soberania!
E sôbre o Acto Colonial os meus votos são pela perfeita unidade de todo o território português - metropolitano, insular e ultramarino —, para que todos possamos com verdade dizer em qualquer parte da terra portuguesa, aquém e além-mar, como o venerando Chefe do Estado quando desembarcou numa das nossas ilhas atlânticas: Aqui é Portugal!
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: na conformidade do que venho de expor, tenho a honra de enviar para a Mesa as seguintes propostas:
Proponho:
1.° Que seja mantido o artigo 95.° da Constituïção;
2.° A eliminação do artigo 95.° e seus §§ 1.° e 2.° da proposta de lei;
3.° Que seja mantido o § 3.° do artigo 95.° da proposta de lei, mas escrevendo-se «Sessões de estudo» onde se diz «Sessões de comissões permanentes»;
4.° A eliminação do § 2.° do artigo 97.° da proposta de lei, bem como do artigo 97.° da Constituïção;
5.° A eliminação do artigo 109.º da proposta de lei.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: — V. Ex.ª acaba de fazer uma observação a respeito da qual julgo conveniente dizer algumas palavras.
Pretendeu V. Ex.ª, ao que parece, sustentar a tese de que, na parte da proposta relativa às alterações introduzidas no exercício da função legislativa, o mais próprio para a revisão seria o indicado no n.º 2.° do artigo 135.° da Constituïção: o plebiscito nacional.
Julgo não ser exacto êste ponto de vista. Chamo a atenção de V. Ex.ª para o comêço do artigo 135.° Diz-se aí: «...independentemente do preceituado no artigo anterior...».
Destas palavras se depreende que há dois processos de revisão da Constituïção: um, o processo normal — revisão feita pela Assemblea Nacional nos prazos e termos fixados no artigo 134.°; outro, o processo excepcional — revisão feita ou pela Assemblea ou por plebiscito nacional, fora dos prazos regulares, mediante iniciativa do Presidente da República, nos termos do artigo 135.°
No caso presente estamos diante do processo normal. Julgo, pois, rigorosamente constitucional a proposta em discussão, mesmo na parte que se refere à modificação da função legislativa.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Antunes Guimarãis: — Agradeço as palavras de V. Ex.ª, que respeito, não só pelo lugar que tam dignamente assume nesta Assemblea, mas também pelas suas altas faculdades de distinto professor de direito. Contudo, apesar das considerações que V. Ex.ª fez, parece-me que, numa matéria de tanta gravidade e de tanta importância como é esta, de alterar a função legislativa, que é de todas a mais importante desta Assemblea, não deveríamos ser nós a pronunciar-nos.
Era altura de o Sr. Presidente da República consultar a Nação, que em 1933 entendeu serem prerrogativas da Assemblea Nacional fazer as leis, interpretá-las, alterá-las ou revogá-las, sôbre se haveria agora oportunidade de as deminuir.
O Sr. Presidente: — Êsse é o aspecto político do caso.
O Orador: — Nós não somos mais do que uma assemblea política, embora se pretenda transformá-la em assemblea especializada, e portanto correndo o risco de se transformar numa assemblea técnica, de que, felizmente, já temos em Portugal um órgão à altura, que é a Câmara Corporativa.
As minhas palavras são ditadas por êsse espírito político que informa e condiciona o que acabo de dizer,
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como aliás tem sido o inflexível norteador da minha actuação como Deputado.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Oliveira Ramos: — Sr. Presidente: o labor da Assemblea Nacional é hoje solicitado para apreciar e discutir a proposta do Govêrno sôbre a revisão da Constituïção Política e do Acto Colonial.
As ligeiras considerações que me proponho produzir dizem respeito apenas à revisão da Constituïção, e, quanto a esta, limito-me ainda a encarar a economia da proposta no plano social.
O Sr. Deputado Mário de Figueiredo, que ontem abriu esta discussão com o vigor da sua privilegiadíssima inteligência, abriu também o caminho da minha, intervenção, permitindo-me falar precisamente do que a revisão não abraçou.
Faz-se a revisão da nossa lei fundamental sob o signo de duas ideas neste momento dominantes na história dos povos e das nações de todo o mundo:
Segurança geral contra os riscos da guerra, na vida internacional;
Segurança social contra os riscos da paz, na vida nacional.
Aquela, a segurança geral, condição essencial para a realização desta; esta, a segurança social, condição necessária para que àquela se torne efectiva e duradoura. E tanto uma como outra assentam num conceito comum, de inspiração essencialmente cristã: o da solidariedade dos Estados na comunidade internacional e dos indivíduos entre si e para com o Estado na comunidade nacional.
Aquela, a segurança geral, quando queira tornar-se realidade, há-de ter por fundamento o inteiro respeito pela soberania de cada Estado e sua forma de govêrno; esta, a segurança social, há-de respeitar integralmente a dignidade da pessoa humana e servir o seu desenvolvimento, se quiser ser mais alguma cousa do que uma aliciante figura de retórica.
Uma e outra dessas ideas dominantes da nossa época acabam de ter solene consagração nalguns capítulos da Carta das Nações Unidas, que os homens de boa vontade de todos os cantos da terra ambicionam que seja a Nova Carta do Mundo.
Nenhuma revisão constitucional séria nesta ocasião possível ou aconselhável sem ter em conta a temperatura dêste Mundo Novo, em que havemos de continuar a viver a nossa vida.
E assim é legítimo preguntar: Em que medida a revisão da nossa Constituïção Política resiste a essa temperatura ou que estranho poder de aclimatação ela oferece, quando o texto da proposta de lei parece mostrar-se alheio àqueles grandes problemas que interessam ao destino da humanidade?
Sr. Presidente: não vem a proposta do Govêrno acompanhada de qualquer relatório que a justifique, como é de uso acontecer.
Melhor relatório não podia precedê-la do que o discurso do Sr. Presidente do Conselho proferido nesta Casa em 19 de Maio, por ocasião da entrega a V. Ex.ª da proposta de lei de revisão constitucional.
Quem, como Portugal, por imperativo da sua Constituïção e da tradição da sua política externa, preconiza a, arbitragem como meio de dirimir os litígios internacionais, e entende que lhe cumpre cooperar com outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da humanidade, tem de considerar-se apto a servir a cada instante a idea de segurança geral ou outra que melhor se acomoda à manutenção da paz no mundo, na medida em que a
dignidade nacional, tam ciosamente guardada e mantida, o consinta.
Êste aspecto do problema não tinha, assim, que ser encarado na revisão constitucional, agora em discussão nesta Assemblea Nacional.
Mas, Sr. Presidente, poderá dizer-se outro tanto no que toca à idea de segurança social, tomada, na definição da Comissão Jurídica Inter-Americana como constituindo um sistema de providências destinadas a elevar o nivel de vida dos cidadãos e a garantir a cada indivíduo, através dos mais leves, graves ou gravíssimos riscos que a própria vida, porque é vida, necessàriamente comporta, um grau de suficiência e tranqüilidade económicas que lhe permitam manter-se, e à sua família, livre do inquietante receio da necessidade e tornar-se capaz de desenvolver a sua personalidade e de aproveitar os benefícios de todo o progresso material e espiritual a que todo o homem, só porque é homem, tem direito?
Também a êste aspecto do problema dá resposta o Sr. Presidente do Conselho quando afirma que o Govêrno não viu, da sua parte, mesmo no que diz respeito a realizações sociais, necessidade de introduzir na Constituïção profundas alterações, uma vez que por via das leis ordinárias se poderá caminhar no sentido que mais e melhor se afeiçoe às conveniências do País.
É êste também o parecer da Câmara Corporativa.
Sr. Presidente: mas por muito temerário que me julguem, atrevo-me a discordar, tam sòmente, do método adoptado, com aquela independência de espírito que não fica mal nesta Casa e a ninguém.
Lê-se num passo do discurso do Sr. Presidente do Conselho:
A época que estamos vivendo — e o conflito mundial terá mais fortemente vincado — decorrerá sob o tríplice signo da autoridade, do trabalho e da preocupação social.
Por toda a parte em que se possa dizer que estamos em terra civilizada e cristã, as instituições... se basearão em princípios morais idênticos. Nenhuma nação se poderá eximir à autoridade forte; nenhum homem ao dever do trabalho; nenhuma actividade ou riqueza ao critério da sua utilidade social.
E o risco da falta de trabalho, a que corresponde a obrigação de facultá-lo e o recíproco direito de exigi-lo, e a preocupação social na satisfação do mínimo de necessidades de cada um, que o sistema de segurança social procura prover de remédio.
Diz-se com inteira verdade, para me servir da própria expressão do parecer da Câmara Corporativa, que a nossa Constituïção Política é programática, isto é, formula os princípios orientadores da futura actuação legislativa no domínio familiar, no económico e social, no moral e religioso, no militar, no financeiro, no administrativo.
Sendo assim, como é, para que deixar para as leis ordinárias aqueles princípios de política social que desde logo melhor ficariam, no texto da própria Constituïção?
Se assim é, para que desvalorizar, neste particular e neste momento, a estrutura social da nossa Constituïção de 1933, e não procurar integrá-la na tendência marcadamente social das modernas Constituições e das revisões em curso e em estudo?
Sr. Presidente: quem se der à tarefa de compulsar o interessante e recentíssimo trabalho de compilação que o eminente jurisconsulto Jenks preparou para a Organização Internacional do Trabalho, intitulado Providências constitucionais relativas a política social e económica; no qual se coligem textos legislativos de
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450 países e unidades governamentais, terá o duplo contentamento de verificar que Portugal e o seu Império ocupam nessa obra um lugar de extensíssimo relêvo e que pelo estudo comparativo dos textos constitucionais vigentes, no que toca a matéria social e económica, a nossa Constituïção pode colocar-se a par das mais notáveis.
A infiltração de princípios de política social e económica nos textos constitucionais tomou particular expressão, em Constituïções anteriores à nossa, na Constituïção de Weimar, de 1919, nas Constituïções da Polónia e da Jugoslávia de 1921 e da Roménia de 1923, e entre as Constituïções posteriores merecem destacar-se apenas a Constituïção do Brasil de 1937, com suas revisões posteriores, uma das quais de recente data, e a Constituïção da Irlanda de 1937 também.
Nas revisões constitucionais em curso, desde 1937 a 1942, designadamente as da China, Polónia, Canadá, Suíça e Austrália, é acentuada a tendência para formular vastos princípios de conteúdo social e económico.
Sr. Presidente: todos os mestres de direito público, de Chavegrim a Guetzevitch, de Jenks a Gurvitch, são unânimes em assinalar o fenómeno da transformação dos velhos moldes de Constituïções de natureza puramente política, em Constituïções de estrutura eminentemente económica e social, nas quais avulta a declaração dos chamados direitos sociais.
Sr. Presidente: para evitar inquietações injustificadas naqueles que desamam a democracia devo dizer desde já que estes direitos são, muitos dêles, alimentados à custa de severas restrições dos próprios direitos e garantias individuais.
O pendor do meu espírito não vai ao ponto de perfilhar o pensamento de Proudhon, que ao lado da Constituïção Política pretendia a existência paralela de uma Constituïção Social; mas não posso negar o valor educativo das declarações dos direitos sociais, como é assinalado por Gurvitch, mesmo quando representassem apenas, na afirmação dêste notável professor, um aspecto geral da renovação dos símbolos fatigados.
Na obra de Jenks insiste-se também na função sociológica e educativa das declarações constitucionais de política social e económica, função que e servida quer pelo teor solene da forma, quer pela impressibilidade do seu conteúdo na opinião pública e sua coesão, quer ainda pela garantia de unidade e sentido de acção do próprio Estado.
Mas na obra de Jenks pode ler-se também:
Uma declaração constitucional de política económica e social deve educar, deve unir e deve promover, por largo tampo, o fortalecimento da acção política. Se não consegue realizar estes objectivos,
é inútil, senão perigosa. Tornasse um foco de dissensão nacional, em vez de um facho de unidade nacional.
E acrescenta-se nessa obra:
A moderação é a essência da sabedoria e uma boa declaração constitucional de política económica e social deve representar um justo compromisso entre a aspiração e a sua realização prática.
Também para o Prof. Dicey, de Oxford, no seu livro Law and opinion in England, o valor da lei reside mais na relação directa do princípio que formula para com a sua imediata realização do que no maior ou menor efeito sôbre o sentimento do povo e opinião pública.
Sr. Presidente: decerto por uma questão de método, e fundado porventura em razões semelhantes às apontadas por Jenks e Dicey, é que o Govêrno, consciente dos empreendimentos sociais que já levou a bom têrmo e dos muito mais e mais profundos, que está em via de transformar em realidades, se dispensou de imprimir num texto constitucional princípios que, no seu entender, a própria Constituïção já consagrou com suficiente maleabilidade e as leis ordinárias se encarregaram de fixar minuciosamente, emquanto a actividade do Govêrno tem procurado construir.
Mas, Sr. Presidente, apesar de tudo, e no meu despretensioso entendimento, a inscrição no texto constitucional de certos princípios que vão tomando vulto e forma na consciência de todo o mundo, longe de entorpecer a acção do Govêrno, mais o fortaleceria, dando-lhe um sentido de sistematização que lhe tem faltado.
É que, Sr. Presidente, eu sou ainda daqueles que acreditam que as Constituïções devem ser consideradas como um poderoso instrumento de orientação política e de educação cívica, dirigido à inteligência dos govêrnos e ao sentimento e cultura dos povos.
A experiência histórica do século passado, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e a experiência do nosso século, com a Declaração dos Direitos da Criança, se nos ensinam o valor actuante dessas declarações de direitos, ensinam-nos também como a época do direito puramente individualista foi cedendo o passo ao império do direito social.
Sr. Presidente: em nome desta última experiência, que tam bons frutos já produziu e para a qual o nosso País tantos esforços empregou e continua a empregar, não me parecia, de todo em todo, desaconselhado que o texto da nossa Constituïção fôsse ennobrecido com o princípio de segurança social, que certamente corresponde nem mais nem menos do que àquela preocupação social de que nos fala o Sr. Presidente do Conselho, e que tem dominado toda a sua obra e o seu altíssimo espírito.
Proclamou também êsse princípio o Presidente Roosevelt, que o fez inscrever na Carta do Atlântico.
Proclamaram-no todas as resoluções e conferências internacionais, e, assim, aparece-nos consagrado na resolução da Conferência Internacional do Trabalho de 1941 relativa a medidas de emergência e de reconstrução post-guerra; na resolução da Conferência Internacional do Trabalho de 1941 que ratificou a Caria do Atlântico; na declaração das Nações Unidas de 1942; na recomendação preliminar sôbre os problemas do post-guerra formulada pela Comissão Jurídica Inter-Americana, de 1942; na declaração de Santiago do Chile de 1942; no relatório da delegação da Sociedade das Nações sôbre depressões económicas, de 1943; no acto final da conferência das Nações Unidas sôbre alimentação e agricultura, de 1943; na declaração de Filadélfia de 1944 e recomendações da Conferência Internacional do Trabalho dêsse mesmo ano, e finalmente na Carta das Nações Unidas, de 1945.
O plano Beveridge, de 1942, e o plano americano apresentado ao Congresso em 1943 pelo Presidente Roosevelt não são mais do que planos de segurança social.
Sr. Presidente: os objectivos fundamentais do plano de segurança social, desde a Proclamação das Liberdades, do Presidente Roosevelt, com passagem pela Carta do Atlântico, até à Carta das Nações Unidas, consistem concretamente em:
Alcançar um nivel de vida mais elevado;
Melhorar as condições do progresso económico e social;
Elevar a um nivel óptimo os serviços de saúde pública;
Garantir trabalho a todos, na medida da capacidade de cada um;
Tornar acessível a todos a instrução nos seus vários ramos e graus, e designadamente o ensino profissional, de conformidade com as aptidões de cada qual.
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Todos estes objectivos conduzem a garantir a cada um os meios mais apropriados de existência, para que cada um se liberte do receio que as necessidades da vida fazem dolorosamente nascer.
Essa garantia, Sr. Presidente, deve ser prestada a todos os trabalhadores e suas famílias, compreendendo-se neles os trabalhadores por conta própria e os trabalhadores rurais.
O mínimo a que essa garantia deve corresponder só pode ser eficazmente obtido através do seguro social obrigatório; o que essa garantia não cobrir para além dêsse mínimo pode ser obtido por meio de seguros facultativos; para aquém daquele mínimo, que ao seguro social já não cabe garantir, deve a assistência social prover; e ficam ainda as obras de misericórdia a socorrer a miséria, e a exercer, em função da riqueza material e espiritual que cada um detém, a utilidade social que desta se exige.
É isto, Sr. Presidente, o sistema de segurança social. E para essa segurança contribue, mais do que ninguém, na relatividade das cousas, com a sua bôlsa minguada, com o esfôrço dos seus braços e o valor da sua inteligência, com o poder de recuperação de que dispõe e com o seu próprio espírito, o trabalhador.
E isto, Sr. Presidente, é serviço social ao serviço daquela segurança,
Mas vale a pena que tantos homens de Estado, responsáveis pelos destinos do mundo, se hajam debruçado longamente sôbre a magia de, duas simples palavras — segurança social — e se resolvam a mobilizar, para servir o sistema que elas exprimem, todas as energias nacionais que podem dispensar?
Porque vale a pena tam árdua tarefa, também teria valido a pena definir na nossa lei fundamental o conceito de segurança social, deixando embora para as leis ordinárias a disposição minuciosa sôbre a maneira de torná-la, um dia, em realidade.
Mas, Sr. Presidente, quere isto significar que a nossa Constituïção de 1933 não comporte que a política social do Govêrno se encaminhe naquela direcção, uma vez considerada a mais aconselhável?
Quere isto dizer que os aspectos em que se desdobra o problema, da segurança social têm sido estranhos aos cuidados e preocupações do Govêrno?
Resposta afirmativa seria, além do mais, uma reprovável mentira.
Respondem pela política social do Govêrno os princípios orientadores contidos, aqui e acolá, na Constituïção de 3933 e generosamente interpretados pelo Deputado Sr. Mário de Figueiredo.
Ò Sr. Mário de Figueiredo: — Com verdade!
O Orador: — Respondem por essa política o Estatuto do Trabalho Nacional e as leis que estabeleceram os novos regimes jurídicos dos contratos de trabalho, dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, do horário de trabalho e descanso semanal; respondem por essa política os diplomas que vieram regular os ordenados e salários mínimos, que criaram a magistratura do trabalho e que enfrentaram o problema do desemprêgo, e tantíssimos outros.
Respondem ainda pela política social do Govêrno, mais do que as leis ou vãs promessas, as próprias realizações, bem na memória de todos nós para que seja necessário enumerá-las.
Mas àquela dispersão de preceitos legislativos, a que corresponde uma multiplicidade de serviços e uma variedade de orientações, por vezes discordantes, se procuraria obviar, definindo na Constituïção um conceito de segurança social por forma a subordinar a um pensamento comum a acção daqueles que houvessem de realizá-la.
Só assim, Sr. Presidente, pela unidade e continuïdade da acção do Govêrno, fortalecida num preceito constitucional, seria possível construir um sistema de segurança social afeiçoado à índole do nosso povo e para o qual nos não faltam os materiais necessários.
Mas nem por tal se não julgar oportuno na, presente revisão constitucional deixo de confiar em que o Govêrno, pelos métodos que entender mais ajustados, procure integrar toda a sua acção, neste campo, num sistema definido de segurança social, como condição que parece indispensável para que a nossa paz interna se mantenha e perduro.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Joaquim Saldanha: — Sr. Presidente: a proposta de alterações à Constituïção de 1933 provocou um movimento de natural interêsse e curiosidade, sobretudo pelo momento histórico em que foi apresentada.
Houve quem pensasse e bem desejasse que essas alterações viessem modificar os princípios fundamentais da Constituïção aprovados no plebiscito de Março de 1933. Os que assim pensaram partiram do pressuposto de que se ia estabelecer em Portugal uma dessas «ordens novas» que foram anunciadas logo após a eclosão da guerra e durante ela por ambos os grupos beligerantes.
E como no fim da guerra se verificou serem as nações aliadas que venceram, logo foi calculado que as Constituïções vigentes no mundo civilizado dariam uma guinada de alteração no sentido do pelo oposto ao dos países totalitários.
Efectivamente, observamos que depois de terminada a guerra e mesmo durante ela, nalguns países se implantaram no seu regime interno instituïções largamente democráticas.
Mas verificou-se que êste facto abrangeu principalmente os países ocupados pelas potências totalitárias, e notou-se ainda que isto ocorreu no momento em que foram libertadas pelas nações aliadas, isto é, nos países em crise. Veremos, com o andar do tempo, o resultado dessas mudanças.
Mas o mesmo facto já se não verificou, tanto no regime interno das potências vencedoras, como no dos países neutros, porque em qualquer dêsses países se não deu até agora alteração digna de registo.
A verificação dêste último facto foi para os saudosistas do liberalismo uma desilusão. E desilusão, porquê?
Porque houve muita gente convencida de que a última guerra era uma guerra de ideologias — ideologias totalitárias e nacional-socialistas de um lado e de ideologias liberais e democráticas do outro. Sôbre êsse logro se formaram partidos por toda a parte.
Quem penetrasse bem no fundo e na raiz da última conflagração europeia, e até na lição da história, devia convencer-se logo e chegar à conclusão de que não se tratava de uma guerra de ideologias, mas sim de uma guerra de hegemonias.
Apoiados.
Ainda há poucos dias assisti, na Sociedade de Geografia, a uma conferência do Sr. tenente-coronel Lelo Portela, que é um dos mais ilustres críticos militares do nosso País, em que êle defendeu exaustivamente a idea de que a última conflagração europeia teve origem simplesmente nas hegemonias, como já a tivera a de 1914.
E acrescentou que os nazismos, os fascismos — e eu acrescento, na mesma ordem de ideas, os comunismos e
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os liberalismos— não eram senão instrumentos, meios de propaganda, artifícios hàbilmente preparados, a mascarar e a iludir os verdadeiros objectivos da última guerra.
De facto, assim é, pois de outro modo se não compreenderia que, tendo vencido os aliados e entre êles a grande potência que é a Rússia, portadora de uma doutrina que se diz oposta ao totalitarismo, ela e a Alemanha estivessem aliadas e unidas, de princípio, tendo ambas invadido a Polónia, facto que deu origem à eclosão da mesma guerra.
Portanto, acentuemos que as causas da conflagração tinham em vista o domínio económico, social e político, expansão territorial, emfim, numa palavra, a hegemonia e não a ideologia.
Mas ao verificar-se que foram as nações aliadas as vencedoras, já não era lícito a ninguém convencer-se de que essa vitória podia alterar as Constituições, tanto do nosso País como dos outros povos da Europa. E porquê? Porque, como todos sabem, as doutrinas dos aliados logo bem cedo foram projectadas na chamada Carta do Atlântico, e assentavam no respeito da soberania e independência dos povos e na escolha do regime que mais lhes convém. Consequentemente, não podiam ser os aliados que viriam impor às nações livres alterações às suas Constituïções, votadas pela sua própria vontade.
Apoiados.
A nossa Constituïção de 1933 foi inspirada não só nas lições do passado e do presente, dentro e fora do País, mas também nas tradições, no sentimento e nas ideas integradas no povo português. E porque já tínhamos uma doutrina bem identificada com o sentimento popular, e porque já tínhamos uma fôrça bem vincada na alma nacional, nós felizmente não passámos a vida tormentosa que passaram quási todos os países da Europa, precisamente porque nesses países não havia uma doutrina assente nem uma fôrça consciente e unânime dos respectivos povos. Havia, pelo contrário, correntes entrechocantes em que os partidos se digladiavam, lançando as nações numa crise permanente.
Felizmente que, a tempo e horas, em 1933 — portanto, alguns anos antes desta guerra, durante a qual se anunciaram tantas «ordens novas» —, nós já tínhamos a nossa ordem! E felizmente que a tínhamos, porque, se assim não fôsse, se por desgraça nossa a actual guerra tivesse apanhado o nosso País na situação em que se encontrava em 1926, antes do 28 de Maio, certamente que nos acharíamos num estado semelhante àquele que verificamos nos outros países da Europa e que todos deploramos.
Apoiados.
Por isso, quando ouvíamos anunciar essas «ordens novas», um vago espírito de dúvida levou-nos a rever e a conferir os princípios fundamentais da nossa Constituïção para verificar se alguma cousa haveria que alterar a fim de nos pôr em actualização com os tempos novos que se anunciavam. Então, percorrendo uma a uma todas as disposições essenciais da nossa Constituïção, verificámos não só que tudo estava certo, que nada havia a alterar, mas que ainda era preciso reforçar, prestigiar, aquilo que estava consignado na Constituïção Portuguesa.
Apoiados.
Foi à sombra desta nossa ordem, a ordem portuguesa, estabelecida por nós tam pacìficamente, tem conscientemente, que nunca maia nos preocupámos com as outras, que nós ganhámos prestígio, consideração e respeito por parte dos outros povos, e, mais do que isso, fomos apontados como exemplo de um país pacífico, de um país em progresso, de um Govêrno sério, leal e compreensivo, que prestou toda a cooperação internacional que era possível, sobretudo à nossa aliada Inglaterra, à qual fizemos tudo quanto podíamos para lhe ser útil. Apoiados.
Portanto, Sr. Presidente, a nossa Constituïção, apesar de não ser saída da actual guerra, apesar de se não inspirar nas lições provocadas pela actual guerra, é uma Constituïção que corresponde ainda e corresponderá por muito tempo às conveniências da cooperação internacional, aos objectivos do interêsse nacional, às suas tradições e, em suma, ao bem-estar do povo português.
Porque ela contém os princípios adoptados por todos os povos civilizados em que imperam os princípios da civilização cristã e consigna todos os direitos e todas as garantias essenciais ao homem, protegendo o respeito pela dignidade humana, pela instituïção da família, pela opinião pública, ordem económica e social, pela educação, ensino e cultura, o que não era previsto nas Constituïções anteriores.
É certo, Sr. Presidente, que da actual guerra resultaram talvez mais prementes e mais candentes as questões económicas e as questões sôbre as classes trabalhadoras, a que já se referiu hoje aqui o nosso ilustre colega Sr. Dr. Oliveira Ramos no seu brilhante discurso; mas, até mesmo isso, como o Sr. Dr. Mário de Figueiredo ontem aqui demonstrou de uma forma eloqüentíssima e a meu ver irrespondível, não só consta dos textos constitucionais apontados por êle, mas ainda se projecta com uma progressão profunda na legislação ordinária, o que, podemos dizer, não foi pôsto em dúvida por ninguém, e avançamos mais, afirmando que a nossa legislação sôbre as questões económicas e sôbre as questões sociais se encontram num ponto difìcilmente mais avançado noutros países, em que essas questões mais ruìdosamente se agitam.
E para mim seria muito mais desagradável que houvesse na Constituïção princípios consignados como fachada e que não tivessem observância prática na vida da Nação, do que princípios, muito embora formulados em termos menos precisos e menos sonoros sôbre questões, como a do trabalho e da segurança social, que têm no entanto uma execução e um funcionamento admiráveis em todos os seus numerosos sectores, como podem verificar todos aqueles que examinarem os respectivos diplomas e a sua realização, tanto na vida económica como na vida social dos trabalhadores.
O Sr. Dr. Oliveira Ramos foi o primeiro, no final do seu substancioso discurso, a reconhecer o cuidado que esta questão tem merecido ao Govêrno e por isso congratulo-me mais pela conclusão das suas considerações do que pelos reparos, de que discordo, às deficiências que julgou encontrar.
Eis, Sr. Presidente, em traços largos, as razões que me levaram a não reclamar da proposta de lei em discussão outras disposições além daquelas que vêm à apreciação desta Assemblea.
Das alterações dignas de relêvo para mim são, pela ordem que vêm articuladas, as seguintes: a que eleva o número de Deputados de 90 para 120; a de a Assemblea poder apreciar os actos do Govêrno e da administração pública; a que fixa o prazo para o Govêrno regulamentar os decretos ou leis que necessitem de regulamentação, e a disposição do Acto Colonial que exige a intervenção de todos os membros do Govêrno para aqueles diplomas que pela disposição anterior cabia apenas ao Ministro das Colónias.
Basta a enunciação destas alterações para se deduzir a importância delas.
A primeira dá evidentemente mais larga representação da Nação nesta Assemblea e porventura facultará a criação de minorias na futura eleição. A segunda dá maiores poderes de fiscalização sôbre os actos do Govêrno, e isto é para mim de uma importância enorme.
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Nisto estou de acôrdo com o Sr. Dr. Mário de Figueiredo: a principal função hoje das assembleias desta natureza é a função fiscalizadora.
Não estou de acôrdo porém com as opiniões aqui expendidas por alguns Srs. Deputados quanto à função do poder legislativo desta Assemblea. Não foi, a meu ver, deminuída, antes pelo contrário, no seu poder de legislar.
Nós continuamos a poder legislar como até aqui. Mas, de facto, a maior eficiência desta Câmara revelou-se sempre na discussão e aprovação de leis da maior complexidade e transcendência para os altos interêsses da Nação, deixando ao Govêrno as leis de administração pública e dos assuntos correntes que surgem dia a dia e cuja necessidade ou urgência se não compadece com as delongas e formalidades dá nossa actuação. É o que sucede em todos os países mais adiantados e nesses com menos possibilidades para a acção dos Parlamentos, como demonstrou aqui ontem o Sr. Dr. Mário de Figueiredo.
A meu ver, a função de fiscalização tem muito maior interêsse e mais eficiência para a Nação e para o próprio Govêrno do que a função de fazer leis de natureza daquelas em que não temos tido intervenção.
Isto, sobretudo, corresponde a uma realidade que já há muitos anos as necessidades e a prática impuseram e a qual não é possível iludir, por mais que incompreensíveis e obstinados pruridos de sensibilidade teimem em reagir.
Apoiados.
Quanto à terceira alteração — fixação de um prazo para regulamentar os decretos que precisam de regulamentação — ela vem obviar aos reparos que geralmente se faziam de se terem publicado leis, e algumas delas aprovadas nesta Assemblea, que não passaram do Diário do Govêrno, por falta de regulamentação.
Isto era deplorável e de certo modo deprimente, mas estou absolutamente convencido de que, aprovada esta alteração, o facto se não tornará a repetir.
Quanto à última alteração, a que me referi e que reputo importante — a competência dada ao Govêrno para publicar decretos-leis destinados às colónias, quando tratem de assuntos de alta importância — congratulo-me com ela e faço votos por que tal disposição, que revela uma tendência, se alargue a outros diplomas e aos próprios actos da administração ultramarina, de forma a ligar e a irmanar, tanto quanto possível, os territórios de além-mar à nossa vida política, social e económica, no sentido de elevar o interêsse, pelo menos igual, ao que sentimos pelas províncias da metrópole.
E, nesta ordem de sentir, permita-me, Sr. Presidente, que eu me insurja contra a terminologia «colónia» e «coloniais», de que está eivada não só a legislação, mas também a linguagem vulgar, entre nós, de que eu próprio, sem querer, sou também vítima.
O têrmo «colónia» considero-o inconveniente e até internacionalmente perigoso. E porquê? Porque os ensinamentos da observação e da história nos mostram que se tem pretendido criar a idea de que as colónias, separadas, como são, da mãi-pátria, não constituem bem um elemento integrante, no sentido político, da nação a que pertencem. É por isso que todos vêem que, a pretexto de tutela e protectorado, as conferências internacionais e os empreendimentos audaciosos e violentos lançam mão das colónias que mais lhes convêm para o seu espaço vital, não sucedendo isso tam fàcilmente às metrópoles pela instintiva e maior repugnância que provoca no mundo internacional.
Êste conceito, ou por outra, a tendência que se pretende estabelecer é profundamente iníqua e revoltante. E — perdoem-me a comparação — dá a impressão do conceito que os ladrões têm ao assaltar a propriedade alheia que está longe e isolada da moradia dos seus donos, porque julgam que isso é um delito menos grave e menos arriscado.
Ora, Sr. Presidente, é preciso reagir contra esta tendência, começando por substituir a terminologia «colónia» e «coloniais», já hoje tam desacreditada, apesar de tais termos serem relativamente novos.
Mesmo no tempo das descobertas dos mares que abrimos ao mundo, não tenho idea de se designarem os territórios de além-mar por «colónias». Êsse têrmo apareceu não sei bem quando, mas ainda há pouco tempo, relativamente.
Eu sou do tempo em que na instrução primária se aprendia a dizer que Portugal era constituído por Portugal continental, insular e ultramarino.
Então, o Ministro que tratava dos respectivos negócios designava-se por «Ministro do Ultramar». Depois, mais tarde, e sem razão nenhuma, passaram a chamar-lhe «Ministro das Colónias». E o têrmo generalizou-se inteiramente.
Ora, esta designação de «colónias» ainda se poderia compreender no tempo em que êsses territórios estavam a ser colonizados; mas, hoje, que os nossos territórios de além-mar estão todos ocupados, não vejo a mínima razão para que se lhes chame «colónias».
Se neles há porventura terrenos baldios e ainda incultos, também há nos países da Europa muitos territórios nas mesmas condições, incluindo a metrópole, e todavia ninguém chama colónias a êsses domínios.
Todos sabem que os territórios ultramarinos, especialmente depois do 28 de Maio, como o nosso querido colega Sr. Dr. Manuel Múrias aqui salientou ontem, têm passado por uma transformação fecunda de desenvolvimento e de progresso, e de tal forma que é hoje completamente descabida a designação de «colónias», que para mais não corresponde à realidade do seu estado, que desde há muito ultrapassou a fase de colonização.
O artigo 5.° do Acto Colonial — expressão sem tradição portuguesa — estabelece que o Império Colonial Português é solidário nas suas partes componentes com a metrópole. É preciso que esta solidariedade, já viva entre nós, se intensifique e se prolongue em todos os sentidos e em todos os aspectos, por forma a fundir-se, a identificar-se e integrar-se, até onde fôr possível, ao espírito e nas obras e nos interesseis, como se êsses territórios fôssem o prolongamento ininterrupto do território metropolitano.
Apoiados.
Nós precisamos de multiplicar e intensificar as relações não só políticas, económicas e sociais, mas afectivas, morais e familiares com as populações que residem e vivem nos territórios de além-mar. Já hoje por avião se chega mais depressa, ao nosso ultramar do que me século passado se vinha de algumas províncias metropolitanas a Lisboa.
A ciência, a industria e a técnica facilitam hoje, e hão-de facilitar mais, a satisfação desta necessidade, não só por meio de aumento, nunca demasiado, da marinha mercante, como pela criação de carreiras diárias, tanto por barcos como por aviões, para os nossos domínios ultramarinos, com o custo mínimo, para que elas vivam a nossa vida no intenso e diário convívio que os portugueses residentes na metrópole gozam entre si.
Trabalhemos por que as publicações, a imprensa diária e periódica, as notícias e informações, tanto de lá como de cá, circulem (reciprocamente por todo o Império, como circulam na metrópole, por meio da aviação, da rádio e do telefone, a preços mínimos, porque o aumento prodigioso dos serviços compensará o rendimento do respectivo capital.
Nós, digamo-lo com franqueza, não temos sabido corresponder à brasa sempre acesa de patriotismo e de
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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 187
afecto que crepita no coração das populações das terras de além-mar.
Estive lá, Sr. Presidente, em Moçambique, cêrca de seis anos e tive ocasião de observai a alegria, a ansiedade e o alvorôço que vibravam nas populações residentes nos portos de mar quando se tinha conhecimento de que estava a chegar um barco da Mãi-Pátria. Nesse dia era um dia de festa para a população e todos corriam ao cais a ver e a receber a gente que chegava da metrópole; não eram só os portugueses que daqui tinham ido para lá, mas os brancos que lá nasceram e os próprios indígenas. Os jornais diários eram lidos com avidez de fio a pavio e todos saboreavam as cousas e as novidades chegadas da Mãi-Pátria, de que todos se orgulhavam. E correspondemos nós a estes anseios das populações portuguesas de além-mar, a êste amor espontâneo o vivo pela Mãi-Pátria? Não, infelizmente. Sr. Presidente, essa política, no sentido de que dei uma vaga idea, tem de fazer-se para satisfazer a nossa consciência, para prestígio e grandeza da nossa Pátria e até da nossa segurança nacional.
As viagens ministeriais e do Chefe do Estado obedecem, evidentemente, a êsse objectivo. Mas é preciso ir muito mais além, com ardor, com devoção, até onde as nossas fôrças e as condições no-lo permitirem!
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — A ordem do dia da sessão de amanhã será a continuação da discussão, na generalidade, da proposta de lei relativa a alterações à Constituïção Política e ao Acto Colonial. Está encerrada a sessão.
Eram 17 horas e 62 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Alberto Cruz.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pereira dos Santos Cabral.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Sebastião Garcia Ramires.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
Ângelo César Machado.
António Cristo.
Artur Proença Duarte.
Francisco da Silva Telo da Gama.
João Xavier Camarate de Campos.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Dias de Araújo Correia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Ranito Baltasar.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Pedro Inácio Álvares Ribeiro.
Querubim do Vale Guimarãis.
O Redactor — Leopoldo Nunes.
Imprensa Nacional de Lisboa