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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 188
ANO DE 1945
5 DE JULHO
ASSEMBLEA NACIONAL
III LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.° 185, EM 4 DE JULHO
Presidente: Ex.mo Sr. José Alberto dos Reis
Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
José Luiz da Silva Dias
SUMÁRIO: — O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia. — Foi aprovado o Diário das Sessões n.º 186.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Antunes Guimarãis, Duarte Marques e Camarate de Campos.
Ordem do dia. — Continuou a discussão, na generalidade, da proposta de lei de alterações à Constituïção Politica e ao Acto Colonial.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Marques Mano, Ulisses Cortês e João Ameal.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 5 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 33 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhãis.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Luiz Soares de Melo.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Cristo.
António Rodrigues Cavalheiro.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Proença Duarte.
Artur Ribeiro Lopes.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Fernando. Augusto Borges Júnior.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco da Silva Telo da Gama.
Henrique Linhares de Lima.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
Jaime Amador e Pinho.
João Ameal.
João Antunes Guimarãis.
João Duarte Marques.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luiz Augusto das Neves.
João Pires Andrade.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Mendes Arnaut Pombeiro.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alberto dos Reis.
José Clemente Fernandes.
José Luiz da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.

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José Rodrigues de Sá e Abreu.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Júlio César de Andrade Freire.
Juvenal Henriques de Araújo.
Luiz de Arriaga de Sá Linhares.
Luiz Cincinato Cabral da Costa.
Luiz da Cunha Gonçalves.
Luiz Lopes Vieira de Castro.
Luiz Maria Lopes da Fonseca.
Luiz Mendes de Matos.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Joaquim da Conceição e Silva.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário de Figueiredo.
Pedro Inácio Alvares Ribeiro.
Querubim do Vale Guimarãis.
Salvador Nunes Teixeira.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 55 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: — Está em reclamação o Diário da penúltima sessão. O da última ainda não chegou à Assemblea.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Como nenhum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra, considero-o aprovado.
Pausa.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra antes da ordem do dia, o Sr. Deputado Antunes Guimarãis.
O Sr. Antunes Guimarãis: — Sr. Presidente: como de costume, tendo passado o último fim da semana na cidade do Pôrto, notei que, de muitos problemas que preocupavam os meios económicos dali, tinha particular importância e actualidade o do escoamento obrigatório de vinhos classificados de consumo da região duriense.
Já numa sessão desta convocação extraordinária da Assemblea Nacional aludira eu à influência benéfica que nos preços dos vinhos das regiões abastecedoras do mercado portuense resultara da redução da percentagem daquele escoamento de 30 para 20 por cento, muito oportunamente deliberada pela comissão do abastecimento de vinhos à cidade do Pôrto. Isto a propósito da marcada tendência para a baixa então registada e que os organismos oficiais — Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, Junta Nacional do Vinho, Grémio dos Armazenistas do Vinhos, Grémios de Lavoura e, neste caso particular, a já aludida comissão do abastecimento de vinhos à cidade do Porto — se esforçavam muito acertadamente por entravar. A propósito aludi à oportuna orientação do Govêrno, que havia ordenado a destilação do 50:000 pipas de vinho verde, providência que, combinada com a referida redução do contingente obrigatório de vinho de consumo do Douro destinado à cidade do Pôrto, mercado por excelência dos vinhos verdes, em cuja região aquele importante burgo está situado, não deixaria de contribuir para sustar a injustificada baixa que já afectava gravemente a economia nortenha.
Sr. Presidente: pelas informações colhidas na minha última estada no Pôrto, parece tratar-se de «sol de pouca dura», porque se anunciam tentativas de nova alta do aludido contingente de 20 para 30 por cento.
A lavoura, mais directamente assim ameaçada, destacadamente a da região dos vinhos verdes e a da Bairrada, confiam na defesa dos organismos que a representam, na referida comissão do abastecimento e, acima de todos, na inteligência prudente e sabedora do estadista ilustre que sobraça a pasta da Economia.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: como sempre, pedi números e foram-me fornecidos; provoquei argumentos e logo foram apresentados.
Mas, antes de prosseguir, permita V. Ex.ª alguns dados, que diríamos históricos.
Nos tempos do Marquês, a quem o Douro muito deve, o consumo vinícola da cidade do Pôrto fôra enfeudado ao escoamento do vinho da região duriense, que, por não ter sido beneficiado em conseqüência de a colheita respectiva ter excedido a capacidade de exportação do famoso vinho do Pôrto, era destinado a vinho de consumo.
Em tam remota época explicava-se a imposição daquele encargo ao velho burgo tripeiro porque as economias duriense e portuense eram largamente interdependentes, e tanto, assim que a abundância na região do Douro traduzia-se em manancial de bons negócios na cidade do Pôrto e vice versa. Com os tempos as cousas foram mudando, porque as vinhas, perseguidas por várias pragas, precisaram de tratamentos com fungicidas e insecticidas, e a terra, cansada pelo esfôrço secular da produção do melhor vinho do mundo, deu mostras de cansaço e precisou de ser alimentada com determinados adubos.
Ora aquelas drogas, sistemàticamente de preço elevado, são em parte produzidas por emprêsas dependentes da praça de Lisboa, ou importadas na sua quási totalidade por firmas que aqui têm a respectiva sede.
Por outro lado, a aguardente precisa para beneficiar o mosto destinado a vinho do Pôrto, que noutras eras resultava da destilação de vinhos da região duriense, foi pouco a pouco substituída por aguardente do sul, isto é, de regiões que dependem exclusivamente da capital, sobretudo no importante capítulo financeiro.
Mas não é tudo: a organização corporativa, orientada pelo discutível critério da centralização, que eu tenho combatido nesta Assemblea, vem deslocando para a capital a sede de actividades que tradicionalmente pertenciam a outras regiões mercê de esforços inteligentes e perseverantes, o que não é justo nem conveniente, carecendo por isso de urgente rectificação.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Desta forma o abastecimento da região duriense em géneros de mercearia e outros artigos de grande e indispensável consumo vai deixando de ser exclusivo da praça portuense.
Sr. Presidente: com o decorrer dos tempos a cidade do Pôrto passou a constituir mercado vinícola de todas as regiões produtoras.
Mas em 11 de Agosto de 1934 surge no Diário do Govêrno o decreto n.º 24:349, estabelecendo que:
Emquanto não se decretar a nova área de produção (da região duriense) e se não estabelecer a organização necessária para defesa dos vinicultores que virão a constituir a conseqüente região dos vinhos virgens do Douro, há que procurar resolver o problema do escoamento dos vinhos classificados de consumo e que a Casa do Douro é obrigada a adquirir.

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E no artigo 1.° determina-se:
É criada na cidade do Pôrto a comissão do abastecimento de vinhos à cidade do Pôrto, à qual compete regular, até 31 de Dezembro de 1936, a entrada do vinhos do consumo na mesma cidade, fixando as respectivas quantidades...
Na mesma ocasião foi publicado o decreto n.º 24:340, estabelecendo:
O Instituto do Vinho do Pôrto procederá, para o efeito da classificação dos terrenos das actuais zonas demarcadas do Douro, à imediata organização do cadastro de todas as propriedades existentes.
Sr. Presidente: houve grande reacção manifestada através de reclamações, com abundância de argumentos.
A inoportuna reedição do critério pombalino vinha encontrar circunstâncias muito diferentes das verificadas naquela época distante.
Dizia-se então que, a ser julgado indispensável o estabelecimento de uma percentagem de vinho de consumo do Douro, que obrigatòriamente deveria ser adquirida pelos fornecedores da cidade do Pôrto, para ali poderem introduzir vinhos de outras regiões preferidas pelos respectivos habitantes, deveria, com toda a justiça, incidir idêntico encargo sôbre os fornecedores da cidade de Lisboa, uma vez que esta última praça beneficiaria, tanto ou mais que a do Pôrto, com a prosperidade da região duriense, à qual fornecia a quási totalidade da aguardente, adubos e diversos produtos químicos, bem como artigos de alimentação, vestuário e outros.
A distribuïção daquele contingente de vinhos de consumo do Douro pelas duas cidades de Lisboa e Pôrto, além de obedecer a princípios de boa equidade, permitiria obter as mesmas vantagens para o Douro, mas mediante percentagens inferiores e portanto menores encargos.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Contudo era geral a convicção de que o contingente obrigatório criado pelo diploma citado pouco ou nada concorreria para solucionar o momentoso problema da região duriense (a que não faltava a simpatia geral, pela convicção de se tratar de um dos mais valiosos factores de riqueza nacional) (Apoiados), mas poderia levar a conseqüências altamente prejudiciais para outras regiões vinícolas.
Na presente ocasião, segundo ouvi, o restabelecimento do contingente (que inteligentemente fora suprimido o ano passado), e agora o projecto do seu agravamento para 30 por cento, tem influído notòriamente na prejudicialíssima baixa de preços que se vem verificando, sobretudo nos vinhos verdes e da Bairrada, desequilibrando incomportàvelmente a economia das respectivas lavouras. Tam prejudicial situação carece de rápido remédio.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: a Casa do Douro fixara para os vinhos daquela região preços que, não excedendo as possibilidades dos consumidores, garantem aos produtores uma remuneração justa do seu enorme esfôrço, assumindo simultâneamente o encargo da sua aquisição, se o mercado os não absorver.
Infelizmente o desenvolvimento da organização corporativa tem enfermado de certo desparalelismo, direi mesmo de soluções unilaterais, que prejudica planos organizados com o devido estudo e nas melhores intenções.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Assim, na região dos vinhos verdes e noutras, embora já se registe louvàvelmente certa intervenção vantajosa dos respectivos organismos, ainda não vigora a fixação de preços com a indispensável garantia de compra e conveniente armazenamento.
O resultado é que, independentemente da influência que nos preços têm as inevitáveis oscilações de ordem geral, estão estes à mercê de especulações difíceis de combater, e do pânico, altamente prejudicial mas inadmissível numa época em que a lavoura já beneficia de certa organização, e, no que respeita a vinhos, além dos respectivos grémios concelhios, conta com á direcção do comissões de vinicultura constituídas por competentes.
Daquele desparalelismo resulta que, a preços relativamente elevados para os vinhos do Douro, mas, como disse, nada exagerados e apenas garantindo o indispensável aos respectivos produtores, correspondem noutras regiões, notòriamente no Minho e na Bairrada, preços de ruína, que estão muito longe de assegurar as elevadas despesas que a respectiva cultura demanda. Ora isto não pode continuar....
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Mas, como o comércio é obrigado a comprar na região duriense, e pelo preço fixado pela Casa do Douro, 30 por cento do vinho destinado ao abastecimento da cidade do Pôrto, rebaixa os preços dos vinhos das outras regiões para procurar compensação que o defenda da concorrência desigual dos vinhos que o consumidor poderia procurar nas cercanias daquela cidade a preços muito inferiores.
E assim vai contribuindo para a baixa dos vinhos verdes e outros, que o Govêrno, muito inteligentemente, tem procurado entravar, mercê de medidas acertadas, notòriamente a destilação.
Sr. Presidente: as vantagens, relativamente insignificantes, que resultariam para o Douro da elevação para 30 por cento do contingente obrigatório de vinhos, de consumo da região duriense custariam a outras regiões vinícolas sacrifícios incomportáveis, que é absolutamente necessário evitar.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Não terminarei sem expor à ilustre assemblea a fórmula que o inteligente critério do nosso distinto colega Sr. coronel Linhares de Lima expusera em conferência realizada em Tôrres Vedras, quando Ministro da Agricultura, para solucionar o eterno e sempre preocupante problema vinícola.
As preciosas massas vínicas da autêntica região duriense deveriam invariàvelmente ser beneficiadas, na sua totalidade, com aguardente de outras regiões, sobretudo do sul.
O vinho que não fôsse imediatamente absorvido pelo comércio seria adquirido e armazenado pela Casa do Douro, mercê de operação financiada pelas regiões interessadas, onde iria adquirindo as altas qualidades que só os anos garantem, para, na devida oportunidade, ser entregue às casas exportadoras, para abastecerem os mercados internacionais, onde o consumo do vinho do Pôrto tem perspectivas animadoras, sobretudo agora que o Instituto do Vinho do Pôrto, de colaboração com o Grémio representativo do antigo, importante e esclarecido comércio daquele precioso vinho, não deixará de eficazmente promover a sua propaganda e indispensável defesa.
Desta forma, cada pipa de vinho do Pôrto levaria cêrca de 350 litros de vinho do Douro e aguardente correspondente aproximadamente a pipa e meia de vinho do sul.

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Como a exportarão, salvo a redução; derivada da guerra, tem orçado por 80:000 pipas, é fácil calcular a quantidade do vinho do sul que, transformado em aguardente, seria desta forma exportado.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: os lavradores com quem falei recentemente no Pôrto estranham que, tendo sido o contingente de vinhos do Douro estabelecido apenas por dois anos, isto é, o tempo que a lei reputava suficiente para a rigorosa demarcação da autêntica zona onde se produzem as massas vínicas de alta qualidade, ainda vigore aquele complicativo e oneroso encargo, que tam nocivo se vem revelando para as restantes regiões vinícolas, depois de volvidos onze anos. Todos reconhecem as dificuldades de demarcação das manchas características, melhor dizendo, das quintas, muitas delas antigas e célebres, em que se divide aquela singular região.
Mas urge ultimar aquele trabalho, tanto mais que até lá continuam a ser abrangidos nos mesmos privilégios vinhos insusceptíveis de benefício e, portanto, incapazes de produzir o afamado Pôrto, o que não é econòmicamente aceitável.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Entre êsses vinhos de consumo, alguns existem de qualidades apreciáveis, que lhes garantem boa clientela, sendo de esperar que outros, devidamente tratados por enólogos competentes, tenham também mercado assegurado.
Importa, pois, que a anunciada demarcação de área e classificação das quintas se ultime quanto antes.
Sr. Presidente: êste problema dos vinhos é tam importante que é difícil deixá-lo, quando surge, como agora, ocasião propícia para o estudar.
Mas vou terminar, recordando que, ao passar pelo Ministério do Comércio e Comunicações, encarreguei uma comissão do estudo do carburante nacional.
Preocupava-me então, e ainda me assoberba, o destino a dar a todo o alcool, não só de origem vinícola, mas do produzido pela destilação de melaço, alfarrobas, figos e outros géneros agrícolas.
A cirurgia e a fabricação de licores e doutros produtos já vão absorvendo grandes quantidades de alcool, mas julgo que não deveremos pôr do parte a idea, que então me dominava, da sua utilização, mediante fórmula econòmicamente aceitável, como carburante.
Sr. Presidente: em face das considerações que a Assemblea teve a paciência de ouvir, parece-me sobejamente demonstrado não ser de aprovar o projectado contingente do consumo obrigatório de vinhos do Douro na cidade do Pôrto.
Mas importa que os organismos competentes, a exemplo da Casa do Douro, estudem a sua imediata intervenção, nas outras regiões, construindo adegas regionais que, de colaboração com o comércio, garantam o armazenamento de grandes quantidades de vinho, para regularização dos mercados, em face da manifesta irregularidade de colheitas.
E que se estude também a grande base dessa intervenção, que é o indispensável financiamento, para que aos produtores sejam assegurados os fundos precisos para prosseguirem nas suas lavouras e manter as suas casas. Só assim se poderá, mercê de uma obra rigorosamente sincrónica, garantir a defesa legítima de toda a produção vinícola nacional, sem esquecer, simultâneamente, os interêsses, também legítimos e, conseqüentemente, dignos de toda a defesa, dos consumidores.
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Duarte Marques: — Sr. Presidente: a prontidão com que a Companhia das Lezírias enviou a esta Assemblea uns esclarecimentos ao meu pedido feito na sessão da passada sexta feira e publicados nos jornais de hoje traduz uma gentileza que registo com prazer.
Há na verdade umas rectificações a fazer, mas torna-se necessário para o efeito relembrar a razão de ser do meu dito na referida sessão.
Pondo de parte o quantum de percentagem de aumento de renda por mim referido, por se supor inexacta a informação que me foi prestada, o que é certo é que o motivo principal dos clamores existe no pedido de aumento para futuras rendas.
Subsiste portanto a razão de ser da minha atitude, porquanto a crise vem-se avolumando, sem possibilidades de ser debelada tam depressa, e por isso tudo o que, embora com efeitos futuros, possa prolongá-la será dificultar a sua solução.
Por outro lado, as minhas palavras foram provocadas pelo exemplo que o Estado — caso raro e nunca visto — deu com a sua humana determinação de estabelecer facilidades e conceder moratórias no momento que passa, mas já com efeitos no futuro.
E, precisamente porque admitia o plano difícil e delicado da administração da Companhia, por ter de lutar com as dificuldades de momento e ainda pela responsabilidade da sua gerência perante os associados ou accionistas, propositadamente lhe enderecei o meu pedido, provocando uma atitude justificativa perante o capital e humana perante os rendeiros.
E agora vamos às rectificações, devendo primeiro notar o aroma acre do esclarecimento, próprio da crise por que se passa, apesar da calma delicada como a questão aqui foi posta.
Adiante.
O aumento a que me referi não é aumento, mas sim actualização de rendas; é uma questão simples de nomenclatura.
O não se tratar de uma emprêsa industrial agrícola, mas sim de uma entidade com domínio próprio de bens adquiridos com metal sonante, como qualquer proprietário — em que a numerosa família é toda accionista de seus bens —, é também uma simples forma de interpretação.
Defender-se a lógica de cada um ser senhor daquilo que é seu e ninguém ter nada com isso, também se justifica; no entanto, o conceito é um pouco arcaico, pelo egoísmo que encerra, e por isso está fora do ambiente de rectificação.
Sr. Presidente: apraz-me declarar ainda que, segundo informações particulares, a Companhia fez várias concessões aos seus rendeiros no pagamento das anuïdades em curso, facto que só nobilita a administração e me dá imenso prazer ao focá-lo, porque assim fico convencido de que o meu pedido não será perdido e tem a sua razão de ser.
Resta-me, Sr. Presidente, manifestar os meus agradecimentos à administração da Companhia das Lezírias, não só pelos esclarecimentos que prestou, como ainda pela amabilidade dispensada às minhas palavras.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Camarate de Campos: — Sr. Presidente e Srs. Deputados: a minha vida particular e profissional não tem permitido que eu tenha vindo às últimas sessões desta Assemblea.
Ainda agora acabo de chegar da Covilhã e neste momento mesmo tomei contacto com o Diário das Sessões e verifiquei, Sr. Presidente, que o presidente da Câmara de Estremoz, a propósito do assunto, que aqui foquei,

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da Santa Casa da Misericórdia da mesma cidade, tinha enviado a V. Ex.ª um ofício que V. Ex.ª, e muito bem, mandou publicar no Diário das Sessões.
Eu já esperava, Sr. Presidente e Srs. Deputados, a reacção de certos indivíduos a propósito do assunto que aqui levantei; dêste que mandou o ofício a V. Ex.ª e de outros, porque estas pessoas que inventam actos irregulares e — por que não dizê-lo? — imorais levam a vida depois a querer justificá-los e a querer manter êsses actos.
Já li no Diário das Sessões as conclusões do ofício que o presidente da Câmara Municipal de Estremoz enviou a V. Ex.ª, Sr. Presidente.
Se se tratasse, Sr. Presidente, de uma demanda judicial, eu requereria que o autor do articulado fôsse condenado em multa e indemnização, como litigante de má fé, visto que, Sr. Presidente, êle, na sua exposição, faltou conscientemente à verdade, no propósito de enganar a justiça. E nos tribunais é assim: quem falta conscienciosamente à verdade, no propósito de enganar a justiça, é condenado em multa e indemnização, como litigante de má fé. E estou convencido de que o meu requerimento seria deferido e a respectiva decisão transitaria em julgado.
Ora, Sr. Presidente, diz-se na alínea a):
Que por culpa do dito Deputado é que inteira justiça não foi feita.
É preciso ter um grande descaramento, ou então, Sr. Presidente, como diria o Eça, uma grande obtusidade craniana para se vir dizer que a culpa de não se fazer justiça a propósito dêste caso é minha.
O Sr. Presidente da Câmara de Estremoz entende, pelo visto, que o caso também carece de justiça.
Tenho, Sr. Presidente, desde o início desta questão, como presidente da comissão distrital da União Nacional, que o sou desde o dia em que surgiu a União Nacional, bem como os meus colegas dessa comissão, o critério de que a reparação a dar ao Sr. José de Matos Cortes é esta: entregarem-lhe a administração da Misericórdia e êle escolher os seus colaboradores.
Êste era o acto de justiça que entendia, Sr. Presidente, e entendo que deve ser feito ao Sr. Matos Cortes, visto que, como tive ocasião de garantir aqui a V. Ex.ª e conforme certidão extraída do processo, êle administrou com honestidade, com seriedade e até com grande espírito de benemerência. E então, se é essa a culpa que dizem eu ter para que justiça não seja feita, bem haja esta culpa, porque ela é a que todos os homens de carácter, de honra e de dignidade devem reclamar para casos desta natureza.
Diz-se que o presidente da comissão administrativa está preso na cadeia por ter roubado cêrca de 400.000$ na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.
Ora o presidente da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Estremoz não está, nem nunca podia estar, preso por ter praticado qualquer desfalque. Um vogal dessa comissão administrativa, que nada tem com a presidência nem com a vice-presidência dessa comissão, é que está pronunciado — e ainda não julgado — por ter cometido qualquer delito grave, mas isto é perfeitamente à margem dos assuntos e negócios da administração da Santa Casa da Misericórdia de Estremoz e posterior aos factos que interessam.
Vir para aqui com êste assunto do desfalque, que nada tem com êste caso, é de pouca elegância e de pouca delicadeza de sentimentos.
Que são absolutamente inexactas as afirmações, feitas pelo referido Sr. Deputado, de que o presidente, vice-presidente ou qualquer vogal estivesse a construir, à sua custa, qualquer balneário ou enfermaria.
O que eu disse, e repito, é que o Sr. José de Matos Cortes estava a tratar de construir uma enfermaria para tuberculosos e um balneário e que, com referência ao balneário, tinha já um projecto que havia pago à sua custa. Êsse projecto já eu o vi, assim como o próprio recibo do arquitecto que o elaborou.
E por fim diz, Sr. Presidente:
Que do benemérito a que o mesmo Sr. Deputado se quis referir não se conhecem quaisquer obras harmónicas com a sua grande fortuna, mas sabe-se, e é do domínio público, que não se quis associar ao cortejo de oferendas promovido pela Câmara Municipal, nem contribuíu para a Campanha do Socorro de Inverno, essa magnifica iniciativa de S. Ex.ª o Ministro do Interior.
Eu li aqui o resultado dos inquéritos feitos à Santa Casa da Misericórdia de Estremoz e li a V. Ex.ª um documento oficial. Por êsse documento e em face dos inquéritos feitos, quer pelo magistrado que era ao tempo delegado do Procurador da República da comarca de Vila Viçosa e actualmente desempenha idênticas funções num dos tribunais cíveis da comarca de Lisboa, com concurso para juiz de direito, quer pela Inspecção Geral de Finanças, vê-se que as palavras do Sr. presidente da Câmara não correspondem à verdade.
A certidão que tenho aqui diz assim:
A comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Estremoz, que tomou posse em 27 e que, com algumas alterações à sua composição inicial, serviu até 5 de Novembro do 1927, era constituída por pessoas dignas da melhor consideração, bem vistas pela opinião pública de Estremoz, e os seus membros muito deram e se interessaram pela vida da sua Misericórdia, destacando-se entre êles, pela sua generosidade, o vice-presidente, Sr. José de Matos Cortes.
Isto é um documento oficial: certidão passada pela Direcção Geral da Assistência a propósito do caso de Estremoz.
Eu não devia talvez, perante êste documento oficial, dizer mais nada a respeito do espírito de benemerência do Sr. José de Matos Cortes. Mas como o Sr. presidente da Câmara Municipal do Estremoz — e não sei o que é que êle tem com isto da Misericórdia de Estremoz para o vir expor a V. Ex.as — diz que ninguém sentiu ainda o espírito de benemerência do Sr. José de Matos Cortes, eu respondo: primeiro, com esta certidão; segundo, dizendo que o Sr. José do Matos Cortes, por virtude desta questão, quási que cortou as suas relações com a Santa Casa da Misericórdia de Estremoz. Mas como tem na freguesia em que vivo, que é Veiros, uma Misericórdia, o seu espírito de benemerência dedicou-se a essa Misericórdia.
Diz-se ainda que não contribuíu para a Campanha do Socorro de Inverno nem para o cortejo de oferendas.
É bom saber-se quem tratou no concelho de Estremoz do cortejo de oferendas e da Campanha do Socorro de Inverno. Naturalmente êsses senhores — um que mandou o ofício a V. Ex.ª e o outro que mandou a exposição que também vem publicada no Diário das Sessões de hoje — desejariam enfeitar-se com o dinheiro do Sr. José de Matos Cortes, para dizerem depois que toda a população de Estremoz estava com êles, exibindo os contos de réis do Sr. Cortes...

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E isto de benemerência e caridade é uma cousa puramente subjectiva, e não percebo mesmo o que quere dizer o Sr. presidente da Câmara Municipal de Estremoz quando diz que o Sr. José de Matos Cortes não dá segundo as suas posses. Cada um dá conforme entende e quere.
Na exposição que o Sr. André Tavares mandou a V. Ex.ª e vem também hoje publicada no Diário das Sessões, S. Ex.ª diz o seguinte: que êle, sindicante à Mesa da Santa Casa da Misericórdia de Estremoz, verificou lá irregularidades. Pois foi êste senhor, que é cunhado do presidente da Câmara Municipal daquela cidade — cá espero os primos e os sobrinhos a fazerem amanhã exposições à Assemblea —, quem foi administrar a Santa Casa da Misericórdia de Estremoz quando foi demitida a comissão que deu lugar a êste incidente! Foi êle de facto o encarregado do inquérito. E verificado que o inquérito que êle fizera não estava harmónico com os bons princípios, pois estava apaixonado, o Govêrno por isso mesmo ordenou um novo inquérito, feito então por um magistrado de carreira e pela Inspecção Geral de Finanças, que chegou às conclusões que todos V. Ex.as já conhecem e sabem.
Porém, o Sr. Dr. André Tavares, pelo visto, ainda se bate pela sua dama!
O Sr. Cincinato da Costa: — É o cunhado do presidente?!
O Orador: — É, sim senhor.
Sr. Presidente: parece-me ter explicado à Câmara esta questão até em pormenor.
Se o assunto não viesse — e muito bem, como já disse — no Diário das Sessões, eu a ele me não referiria, embora soubesse da sua existência, porque, Sr. Presidente, se os visse, não lhes ligava importância; passava à frente, como cousa de pouca ou nenhuma importância.
Sr. Presidente: vou terminar as minhas considerações; porém, para melhor conhecimento da Câmara, permito me apresentar a V. Ex.ª o seguinte requerimento:
«Requeiro que pelo Ministério do Interior me sejam fornecidas:
a) Cópia do ofício que o administrador do concelho de Estremoz enviou ao governador civil de Évora e que deu lugar à demissão da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Estremoz exonerada em 1939;
b) Cópia do alvará de demissão dessa comissão administrativa e da nomeação daquela que a foi substituir;
c) Cópia do relatório feito pela comissão administrativa a que presidiu o Sr. Dr. André Tavares;
d) Cópia do inquérito feito pelo Sr. Dr. Barata Santos;
e) Cópia da inspecção feita pela Inspecção Geral de Finanças à Santa Casa da Misericórdia de Estremoz».
E faço votos, Sr. Presidente, ao terminar, por que o meu requerimento seja deferido e atendido, porque o Sr. José de Matos Cortes já fez sete requerimentos e disseram-lhe que era inconveniente a sua publicação.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: — Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: — Prossegue a discussão, na generalidade, da proposta de lei relativa a alterações à Constituïção Política e ao Acto Colonial.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Mano.
O Sr. Marques Mano: — Sr. Presidente e meus senhores: apresenta-se à Assemblea um projecto de alteração ao Acto Colonial. É possível que se entendesse que essa revisão deveria ser mais profunda. Estou convencido de que uma revisão mais profunda supõe a paz. Mas é minha convicção de que a paz se encontra ainda muito longe de nós, não a paz militar do cessar fogo, dos armistícios e das conferências, mas a paz civil das relações universais, a paz social interna das nações, a paz na vida, nos interêsses e rias conveniências de cada homem. Emquanto dura apenas uma paz militar, os Estados têm de viver num regime rigorosamente disciplinado no económico, no social e no político, e organizado de tal forma que a experimentem sempre prontos para a mobilização imediata, tanto das suas forças armadas, como das suas forças económicas, como das suas forças espirituais. Julgo condição da paz civil a extinção progressiva das economias coercivas, causadas pela crise do liberalismo e por sua vez causa da guerra. Ora não só alguma parece muito convicta, segura e forte, mas dir-se-ia que nos países que sentem só agora ameaçado o seu nivel de vida se descobriu um movimento de novas reacções, que, perante uma resistência tenaz, pela necessidade, pelo poder e pelo número, e, por conseqüência, uma e outras, produza novas guerras. A paz, que julgávamos não atingida mas próxima, cada dia parece mais distante.
Quando a verdadeira paz estiver assegurada ou, pelo menos, a sua proximidade fôr evidente, compreende-se que as circunstâncias se tenham modificado de tal forma que seja prudente rever, em face delas, os diplomas fundamentais, com espírito definitivo. Emquanto assim não suceder, nós não podemos fazer mais do que ajustamentos às contingências da marcha do mundo, e as alterações que se oferecem parece-me acompanharem essas circunstâncias com a fidelidade necessária e serem, por isso, dignas de aprovação da Câmara.
Contudo, algumas observações sôbre êle foram feitas, quer na Câmara Corporativa, no seu relatório, quer nas sessões de estudo e até nesta Assemblea, que merecem atenção.
A Câmara Corporativa sugere a integração das normas que constituem o Acto Colonial na Constituïção. Quere dizer: sugere a supressão do Acto Colonial.
A sugestão, à primeira vista, parece de considerar. Efectivamente, se a Nação é una, constituída por todos os portugueses que residem nela ou fora dela, e as liberdades e garantias são as mesmas, a duplicidade seria de suprimir.
O Acto Colonial nasceu, porém, em circunstâncias especiais, e essas circunstâncias têm um significado que sobreleva aquela distinção. Lembram-se V. Ex.as de que êle surgiu como uma vigorosa reacção contra a negligência, o esbanjamento e o abandono a que então estavam sujeitos os nossos interêsses no ultramar. Representa uma nobre afirmação da nacionalidade, da propriedade e da gerência portuguesa de bens que nos são sagrados. Significa que o nosso País não abdica em África do seu brasão, do seu trabalho e da sua grandeza.
O Acto Colonial fixou assim o símbolo de hoje da nossa vontade imperial. A afirmação que contém ergue-se da Constituïção como um princípio tam enérgico que dela se destaca para dominar a nossa política do ultramar. Deve perdurar como tal e, dêsse modo, servir de marco, exemplo e lição para todos os que servem no ultramar o nosso País e o seu futuro.
Outra sugestão, que já tinha ouvido na sessão de estudo, foi aqui ontem feita pelo Sr. Deputado Joaquim

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Saldanha, acêrca da substituïção da palavra «colónias» pela palavra «províncias».
Sentimentalmente creio que é fácil resolver a dificuldade; se se chamarem círculos administrativos, ou qualquer outra cousa, às províncias, a palavra, «províncias» fica livre para substituir a palavra «colónias»; mas nós não resolveríamos assim dificuldade alguma de facto.
Em África o problema põe-se de uma forma mais concreta; afirma-se que é preciso fazer ressurgir os govêrnos de distrito.
Decerto, os colonos têm muito gosto em que a palavra «colónias» seja substituída pela expressão «províncias ultramarinas». Mas a África é um território de homens de acção, a quem as palavras não importam muito, se não se prejudicarem por isso as realidades e os sentimentos que lhes correspondem. A ressurreição dos govêrnos de distrito implica a supressão das províncias e, portanto, a palavra província fica igualmente livre para substituir a palavra colónia; isso porém é ali apenas uma conseqüência da resolução do verdadeiro problema.
Apesar de me dirigir a pessoas que não tomaram conhecimento directo da organização administrativa ultramarina, julgo fácil esboçar-lhes sumàriamente êste aspecto dela. Antes da divisão em províncias as colónias de govêrno geral eram divididas em distritos, com uma área que em média se pode dizer talvez semelhante à do nosso País, governados por governadores de distrito, cada um dêles cercado pelo respectivo colégio de chefes de serviço, que eram os funcionários ordinários da área da sede. Estes distritos só existem hoje pouco mais do que no nome. Reside em cada um dêles um intendente, que é administrador da circunscrição da sede e como intendente desempenha especialmente, e não pode desempenhar assim, a função de caixa do correio entre as administrações e o govêrno da província. Os distritos foram aglomerados em províncias, com um tamanho que em média pode talvez dizer-se corresponder a três vezes o tamanho do nosso País. Na capital da província reside agora um governador de província, cercado dos seus chefes de serviço especiais.
Com a supressão dos govêrnos de distritos naquelas das suas capitais que não são hoje a capital da respectiva província, e por outros motivos, não puderam sustentar econòmicamente a sua degradação, a vida cessou, por vezes até ao ponto de se deixarem por acabar os edifícios ou caírem em ruínas. Fortes recursos de ocupação que assim desapareceram.
Os distritos, demarcados por uma longa experiência, possuíam uma grande unidade geográfica e económica. Os dados dos seus problemas eram homogéneos no território e o responsável pela administração dele podia adquirir aquele grau de especialização indispensável às soluções duradouras. O contacto do governador do distrito com a sua pequena área era constante e a política a desenvolver, quer pela subordinação dele ao govêrno geral, quer pelo conhecimento dos seus funcionários e respectivo procedimento, podia ser fielmente promovida, executada e fiscalizada.
As faculdades pessoais eram proporcionadas ao grau de generalidade das realidades, cujo cuidado lhe incumbia e de que tinham de dar contas. Eles eram responsáveis pela administração de todos os elementos do território e com êles se perdeu, por isso mesmo que eram responsáveis por toda a administração do território, a nossa única escola de coloniais, falta que dentro de alguns anos o nosso País há-de sentir e por bastante tempo.
A aspiração do restauro dos govêrnos de distrito é, pois, justa e útil, mas difícil de satisfazer, pelo menos, sem um demorado trabalho prévio. Não pode satisfazer-se reduzindo a área das províncias à área dos distritos, porque a organização provincial é muito onerosa e complexa para que seja possível e útil repeti-la na área de cada distrito. Seria indispensável portanto substituir a organização actual, sòlidamente estabelecida na Carta Orgânica do Império e na Reforma Administrativa Ultramarina, por outra organização completamente diferente, embora em parte com bases tradicionais já experimentadas. A revolução seria muito profunda. De relação em relação haveriam por fim de discutir-se os princípios gerais que nos orientam na administração colonial e de fazer-se, afinal — o que não está feito, pelo menos sistemàticamente —, uma doutrina do ultramar. Ela é necessária.
Não seria, porém, a elaborar por esta Câmara, que apenas teria de julgar polìticamente os diplomas em que se expressasse, mas a elaborar por um colégio de todos os conhecimentos, interêsses e devoções africanos, e digo devoções porque para aqueles que viverem profundamente a África e aprenderem a amar nela o nosso País êste amor atinge por vezes uma intensidade quási dolorosa, ao imaginar a construção e as dificuldades que se lhe opõem.
De qualquer modo, também a aspiração de que se fez eco o Sr. Deputado Joaquim Saldanha, e que eu subscreveria com muito gôsto, não é de atender nesta oportunidade; e não o poderia ser de modo algum, dado o trabalho que expõe e o curto período que mediou entre a proposta de revisão e a apresentação da proposta da revisão constitucional.
Foram estas as observações feitas à proposta e a elas devo limitar as minhas considerações. Outras considerações só seriam oportunas se entendesse oportuna uma revisão fundamental, e já disse que o não entendia, por se não reünirem as circunstâncias que a justificassem.
Não termino, porém, sem emitir um voto: o de que, neste País, os homens que são responsáveis pela condução ideológica dos seus destinos façam um vigoroso esfôrço para os animar com um espírito mais vivo, empenhado e realizador, do que aquele que sinto à minha volta, na emprêsa nacional da construção do Império.
Decerto é difícil a construção. O território africano é imenso, sêco, insalubre, e a densidade da riqueza muito ténue sôbre a terra. A emprêsa é difícil e, contudo, é preciso que a levemos a cabo. Devemos recordar-nos de que depois da primeira dinastia, para sobreviver, tivemos de descobrir um mundo, e desde então vivemos do ultramar. Aquele acto de vontade nacional que produziu o Acto Colonial deveria repetir-se em cada um de todos para se enraïzar em nós a coragem de vencer as contrariedades, tanto mais irredutível quanto mais irredutíveis se revelarem. Para construir a África é preciso nesse caso, dir-se-á, que nos informemos de um grande espírito heróico.
Mas, se êle é o espírito de realização incondicional em cada um, segundo as suas disponibilidades, êste espírito é endémico em África. A África é uma terra de desenraïzações. Deixaram a metrópole, a casa, a família, e os anos extinguiram todas as possibilidades de sonho. Eles não podem por isso esquecer a morte senão realizando, realizando sempre. Não sei que renúncia nos tolhe aqui. O que nos resta de África manifesta a qualidade dos homens a cujo sangue pertencemos. Eles foram grandes na concepção, audazes na acção e humanos nas relações. Se não nos compararem com os outros povos, mas sim nos compararem com nós próprios, só encontraremos fontes de estímulo que são inexauríveis. Se todos fizerem um esfôrço por compreender a África, o caminho se iluminará, e saberemos pôr em acção uma mentalidade colonial diferente daquela que cultivamos, vigorosamente criadora.
Não devemos lembrar a história. Devemos ter a coragem de a fazer. Se não temos coragem de fazer história não temos razão de existir. Durante séculos talvez, e porque nações ciclópicas assambarcam o mundo, nós só

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teremos uma grande emprêsa para briosamente realizar — a emprêsa do nosso ultramar. Ela depende exclusivamente de nós. Basta substituirmos no nosso espírito êste automatismo de renúncia por um automatismo de acção. E construïremos um Império.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ulisses Cortês: — Sr. Presidente: impossibilitado de tratar no plano em que desejava fazê-lo alguns dos problemas que neste debate se suscitam, vou hoje limitar as minhas considerações a um aspecto restrito da proposta: o do modo de designação da Assemblea e o da sua composição, atribuïções e funcionamento.
O nosso estatuto constitucional proclama no artigo 71.° o princípio de que a soberania reside na Nação.
Não podendo exercê-la directamente, é à Nação que compete, pois, designar aqueles que, em seu nome, deverão deter o poder político.
Mas a Nação não é formada apenas pelos indivíduos que a compõem. Há ao lado dêles outras realidades sociais, de ordem administrativa, moral, cultural e económica, que representam também elementos estruturais da vida da Nação.
Se o corporativismo é, como pretende Renard, um esfôrço de sinceridade no sentido do ajustamento do político ao social, cumpre-lhe organizar o Estado por forma que êle constitua a imagem fiel do agregado nacional na realidade complexa dos elementos que e integram.
Como proceder, porém, para a realização dêsse objectivo?
Segundo alguns, tal desideratum só pode obter-se através de um parlamento corporativo, eleito pelas diferentes corporações económicas e morais, tendo em conta, as suas categorias e a sua distribuïção regional.
É o sistema preconizado pelos teóricos do corporativismo puro e, entre êles, por Manoilesco.
É também a tendência representada, entre nós, pelo Prof. Fezas Vital, e que se traduz de forma bem vincada no parecer da Câmara Corporativa.
Outros, porém, são mais moderados nas suas concepções.
Sem suprimirem a representação política, limitam-se a organizar, ao lado dela, a representação dos grupos e interêsses, quer através de uma Câmara de carácter económico e profissional — em regra a Câmara alta —, quer através de uma Assemblea mixta, onde à representação dos indivíduos se junta a fôrça social dos organismos e agrupamentos naturais. O primeiro sistema foi ensaiado, entre nós, pelo decreto n.º 3:977, de 30 de Março de 1918; o segundo é defendido pelos partidários do corporativismo mixto e por Duguit, num estudo notável que publicou na Revue Politique et Parlementaire.
Uma última tendência existe ainda: a do corporativismo subordinado.
Segundo ela, à representação dos interêsses não pertence qualquer poder de decisão, cabendo-lhe apenas emitir parecer sôbre os assuntos a sujeitar à Assemblea política, à qual compete exclusivamente resolver os grandes problemas nacionais, definir os princípios das leis e fiscalizar a Administração.
É êsse o sistema consagrado na nossa orgânica constitucional.
Entre estas diferentes formas de corporativismo é indiscutìvelmente a primeira que, em pura lógica, melhor parece corresponder à nossa concepção orgânica de sociedade e aos princípios anti-individualistas que professamos.
No entanto, ela não teve ainda realização legislativa, em nenhum país, nem mesmo em Itália, onde a Câmara Corporativa era designada pelos corpos políticos e plebiscitada por sufrágio universal.
Reconheço sem hesitações a necessidade de associar os grupos e interêsses ao exercício da autoridade pública, quer através da descentralização inerente ao sistema corporativo, quer através da sua representação adequada junto dos órgãos do poder político.
Mas julgo também que qualquer sistema que projecte êsses interêsses para além da sua esfera particular cria o risco de, sob o pretexto de organizar a representação profissional, conduzir apenas, na frase de Lambert, à organização dos interêsses particulares contra o interêsse geral da Nação.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — É êsse também o receio expresso por Prelot numa das conferências das Semanas Sociais da França (1937) e pelo abade Leclerc, no seu Traité de Droit Naturel.
Na verdade, ao Estado incumbe a realização do interêsse colectivo.
Êste representa uma forma do bem comum, que, na hierarquia dos interêsses, transcende o dos grupos sociais e que estes são incapazes de atingir pelo seu próprio esfôrço.
A função do Estado a êste respeito é a de estabelecer a harmonia e o equilíbrio entre os diferentes interêsses e a de superar o seu particularismo.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Ora, introduzir na direcção do Estado os próprios interêsses parciais e fragmentários que êle tem como missão ordenar e disciplinar equivale, como observa Dabin, a negar a própria noção de Estado e teòricamente, pelo menos, a fundá-lo sôbre a anarquia.
Desejo, como prescreve o artigo 5.º da Constituïção, que todos os elementos estruturais da Nação participem na vida política do Estado. Defendo igualmente o princípio de que entre a superstrutura constitucional e a vida social deve haver uma coincidência tanto quanto possível perfeita.
Mas parece-me que a realização de ambas estas ideas não carece de corporizar-se em formas extremas e que, embora susceptível de aperfeiçoamento, se encontra satisfatòriamente assegurada pela existência de uma Câmara Corporativa, de carácter consultivo, onde se encontram representadas todas as actividades que constituem a Nação organizada, ao lado de uma Assemblea Nacional, emanação dos interêsses gerais e por isso única detentora da soberania.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Estas conclusões, porém, não esgotam o problema.
Como deverá organizar-se a eleição do órgão legislativo?
Sôbre a base da representação orgânica ou sôbre o sistema do sufrágio universal individualista?
Sem embargo das reservas que suscita êste último sistema e entre elas as formuladas por Vasquez de Mella num dos seus discursos mais famosos, é êle o que se encontra instituído entre nós pelo decreto n.º 24:631, de 6 de Novembro de 1934.
Não ignoro que esta forma de eleição tem sido justificada com argumentos ponderosos.
Há, de facto, quem sustente que, embora não sejam de excluir certas modalidades de voto corporativo e plu-

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ral, o princípio dominante nesta matéria é o de que só o indivíduo, como homem e fora de qualquer outra especificação ou determinação, deve ter o direito de votar, pois só êle é susceptível de se elevar ao nivel do bem comum.
«O indivíduo considerado sob o ângulo da sua categoria será sempre o indivíduo dessa categoria e, portanto, o contrário do cidadão desinteressado, o único apto para o exercício do voto político».
A despeito do valor destas razões, julgo que a lógica dos nossos princípios nos impele no sentido da adopção progressiva de formas de sufrágio orgânico, semelhantes às que se encontram estabelecidas no Código Administrativo para a eleição das autarquias.
Só assim se evitará que a ordem colectiva, no seu aspecto político, se baseie exclusivamente sôbre um ser «irreal», isolado dos agrupamentos espontâneos que constituem os quadros naturais da sua vida e erigido, por uma concepção deformada da estrutura social, à posição de «centro de todos os direitos» e «titular de toda a soberania».
Vozes: — Muito bem!
O Orador.: — Somos chegados, Sr. Presidente, ao final da primeira parte dêste trabalho.
Examinemos agora, segundo a ordem que nos impusemos, o problema da composição da Assemblea.
Os escritores de direito político consideram a redução do número de Deputados como uma das reformas necessárias da instituïção parlamentar.
As assembleas numerosas têm-se na verdade revelado tumultuárias, demasiado susceptíveis de movimentos emocionais e, por isso, incompatíveis com a serenidade e a reflexão, indispensáveis a todo o trabalho útil.
Mas, se a redução do número de Deputados se pode hoje considerar como um axioma de direito constitucional, não deve também deixar de ter-se em conta que essa redução não pode, sem graves inconvenientes, ultrapassar determinados limites.
Uma redução excessiva despojaria o órgão parlamentar do seu carácter de Assemblea, privaria a Câmara de colaborações valiosas e restringiria a um âmbito demasiado estreito a participação na vida política.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Ora a nossa Constituïção fixou em 90 Deputados a composição da Assemblea.
Êste número é dos mais baixos, tanto em face do direito constitucional comparado como da própria evolução histórica nacional.
A mais numerosa de todas as assembleas políticas é a Câmara dos Comuns, que conta 670 Deputados.
Segue-se-lhe a Câmara dos Deputados francesa com 584.
A Convenção compunha-se de 778 membros e a Assemblea Legislativa da II República compreendia 900 Deputados.
O Reichstag era formado por 469 Deputados. Na Itália êsse número era de 400 (lei n.º 1:019, de 17 de Maio de 1928).
Na Monarquia espanhola e conforme o disposto no artigo 27.° da respectiva Constituïção, os Deputados eram cêrca de 400.
Nos Estados de população idêntica à nossa, o número de Deputados é de 300 na Checo-Eslováquia (artigo 8.º da Constituïção) e de 150 na Irlanda (artigo 26.°). Na Grécia o número de Deputados é proporcional à população, mas nunca pode ser inferior a 200 (artigo 36.° da Constituïção).
Os países que têm efectivos parlamentares mais reduzidos são o Uruguai, com 99 Deputados (artigo 78.°), e a Estónia, que, não obstante contar apenas a quarta parte da nossa população, elege 100 Deputados (artigo 36.°).
Entre nós, as Côrtes de 1820 foram constituídas por 181 Deputados, dos quais 116 correspondiam à metrópole, ilhas adjacentes e colónias e 65 ao Brasil.
Na II Legislatura o número de Deputados foi de 117.
Pela lei de 3 de Junho de 1834, artigo 34.°, o número de Deputados foi elevado, no total, para 141.
Entre esta data e 1899 foram publicadas quinze leis eleitorais. Segundo elas, o número máximo de Deputados foi de 170 (lei de 21 de Maio de 1884) e o mínimo de 107 (lei de 18 de Março de 1869).
O último Parlamento da Monarquia era constituído por 115 (lei de 8 de Agosto de 1901).
No novo regime a I Assemblea Constituinte era composta de 235 representantes da Nação (lei de 5 de Abril de 1911). Destes, transitaram 71 para o Senado, formando os restantes 164 a primeira Câmara dos Deputados (artigo 84.°, § 1.°, da Constituïção de 1911).
Pela lei eleitoral de 3 de Julho de 1913 o número de Deputados era de 163, o qual se manteve até à Revolução de 28 de Maio.
Estes elementos bastam, Sr. Presidente, para justificar a composição atribuída na proposta à Assemblea Nacional, da qual, de resto, há também a esperar um mais largo recrutamento político e, portanto, a elevação do nivel intelectual da Assemblea.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Examinemos agora um outro aspecto do problema: o das atribuïções parlamentares.
A proposta de lei de revisão constitucional usa de vários meios, directos e indirectos, para alargar a função da Assemblea.
Um dêles, o primeiro, segundo creio, no enunciado da proposta, é o da ampliação do período de duração da sessão legislativa.
Pela disposição em vigor essa duração era de três meses improrrogáveis.
Êste preceito tinha demasiada rigidez e impedia, em muitos casos, a Assemblea de exercer convenientemente algumas das suas atribuïções mais importantes. Basta citar o que tem sucedido com o debate sôbre as contas públicas, apreciadas e votadas precipitadamente no último dia da sessão legislativa.
Tornava-se, pois, necessário substituir a fórmula hirta do artigo 94.° por um preceito de maior flexibilidade e mais adaptado à latitude das prerrogativas parlamentares.
Segundo a Carta Constitucional, cada sessão anual duraria três meses (artigo 17.º), prorrogáveis por iniciativa do Poder moderador, sem prejuízo das sessões extraordinárias exigidas pelo bem público (artigo 74.°, §2.°).
Pela Constituïção de 1911 a duração da sessão anual era de quatro meses, que podiam ser prorrogados por deliberação própria, tomada em sessão conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado (artigo 11.°).
Na França revolucionária as assembleas parlamentares eram permanentes (artigo 1.°, capítulo I, título III, da Constituïção de 1891).
Actualmente, e segundo o disposto no artigo 2.° da lei de 16 de Julho de 1875, cada sessão deverá durar, pelo menos, cinco meses, não podendo o Govêrno encerrar as Câmaras antes de completado êsse período de funcionamento.

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Na Inglaterra o sistema é mais maleável: o Parlamento só reúne por convocação do Rei, ao qual é lícito encerrar as sessões ou usar do direito de dissolução.
Em alguns países é a própria assemblea parlamentar que fixa a data do encerramento da sessão legislativa e a da reabertura dos trabalhos, como na Alemanha e na Irlanda. A regra, no entanto, é a de limitar a um período determinado a duração da sessão e a de confiar a prorrogação ao Chefe do Estado.
Assim sucede também no Brasil, onde o Parlamento Nacional funciona durante quatro meses, prorrogáveis pelo Presidente da República (artigo 59.º da Constituïção).
A proposta mantém o período de três meses fixado anteriormente, mas permite a sua prorrogação por mais um mês, quando o Presidente da Assemblea o julgue conveniente.
Suponho que é esta a solução de equilíbrio e a mais aproximada da nossa evolução constitucional.
Uma sessão de três meses é, em regra, suficiente para permitir à Assemblea exercer a sua função com à necessária amplitude. Se, por qualquer circunstância, êsse período se revelar exíguo, há a possibilidade de prorrogação pelo Presidente, que é a pessoa mais qualificada para resolver sôbre a sua necessidade. No caso de urgência e interêsse público, a Assemblea poderá ainda ser convocada extraordinàriamente pelo tempo que se torne indispensável.
O sistema parece satisfatório e merece a nossa concordância.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Mas o alargamento das funções parlamentares não se efectiva na proposta apenas através do processo indirecto da elevação da duração anual dos trabalhos legislativos.
Traduz-se também na ampliação da competência material da Assemblea.
Efectivamente o artigo 91.°, n.° 2.º, procura dar maior relêvo à fiscalização parlamentar, atribuindo expressamente ao órgão legislativo a faculdade de apreciar os actos do Govêrno e da Administração.
Por outro lado, o § 1.°. do artigo 97.° amplia também a competência da Assemblea em matéria de receitas e de despesas públicas. Efectivamente, pelo corpo dêsse artigo, aos Deputados é vedado tomar a iniciativa de projectos de lei ou propostas de emenda de que resulte aumento de despesa ou deminuïção de receita.
Esta disposição era julgada aplicável a todos os casos de aumento de despesa e a todas as reduções de réditos do Estado, quer se tratasse de receitas novas a fixar, quer de receitas cuja cobrança já houvesse sido autorizada por lei anterior.
O sistema justificava-se pela natural prodigalidade das Assembleas e pela necessidade de acautelar devidamente a política de equilíbrio financeiro, que está na base do nosso ressurgimento.
Mas ainda aqui a proposta põe de parte as soluções rígidas e revela a preocupação de assegurar à Assemblea uma maior liberdade de movimentos.
E, assim, dispõe expressamente que a disposição em referência só se aplica aos projectos e propostas de alteração que importem por si mesmos um aumento de despesa ou uma deminuïção de receita, cuja cobrança já tenha sido autorizada pela Assemblea Nacional.
Quere dizer: quanto a despesas, é legítimo aos Deputados apresentar projectos ou propostas de alteração, embora delas resulte indirectamente um aumento de encargos públicos; quanto a receitas, podem elas ser deminuídas desde que não hajam sido fixadas em leis preexistentes.
Discordo da primeira parte, por contrária à disciplina financeira, que julgo indispensável e que é adoptada em quási todos os países e, em especial, na Inglaterra (Armindo Monteiro, Do Orçamento, t. II, p. 133), na França (Duguit, Traité, t. IV, p. 313), nos Estados Unidos e na Alemanha (artigo 85.° da Constituïção de Weimar).
Essa disciplina é, de resto, tradicional no nosso País, onde a lei de contabilidade de 20 de Março de 1907 e a lei travão de 1913 estabeleciam limitações aos poderes do Parlamento em matéria de despesas, em termos idênticos aos da Constituïção actual.
Quanto a receitas não vejo inconveniente em se adoptar o regime proposto pela Câmara Corporativa, o qual permite à Assemblea uma maior liberdade de decisão, facultando-lhe a redução de receitas não fixadas em lei anterior.
Ao apreciar, pois, a criação de novos tributos ou o agravamento dos existentes, a Assemblea não terá que os aprovar ou rejeitar in limine: ser-lhe-á lícito discutir com inteira amplitude os quantitativos propostos e reduzi-los, quando o julgue mais compatível com as exigências da justiça fiscal ou com a capacidade tributária do País.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Além das disposições a que fiz referência, noutras também se revela o propósito de desentorpecer a acção da Assemblea e de fortalecer o seu prestígio.
Refiro-me à nova redacção do artigo 95.°.
Segundo o texto publicado no Diário do Govêrno de 11 de Agosto de 1938, a Assemblea Nacional funciona em sessões plenas deliberativas ou em sessões de estudo.
Em conseqüência desta innovação a Assemblea passou a funcionar a maior parte da sessão legislativa em regime de sessões de estudo.
Os inconvenientes dêste regime eram manifestos e a experiência revelou-os exuberantemente. Não só se deminuíu o rendimento parlamentar, como se prejudicou de modo grave a própria projecção política da Assemblea.
O Diário das Sessões fala com persuasiva eloqüência.
No último biénio houve 75 sessões de estudo e apenas 63 sessões plenárias.
É evidente que o sistema não podia subsistir e que se tornava necessária a sua modificação, tanto mais que as sessões de estudo não tinham evidenciado sequer a vantagem de disciplinar os debates e de aperfeiçoar a qualidade do trabalho legislativo.
Mas em que sentido deveria ser feita a modificação?
Uma das soluções seria regressar ao regime de funcionamento inorgânico, que caracterizou a I Legislatura.
Outra seria a da constituïção de comissões permanentes e eventuais, encarregadas do estudo preparatório dos projectos e propostas de lei e a quem fôssem reconhecidos também certos direitos de fiscalização e de iniciativa.
A proposta adoptou a última solução.
Estabelece, em primeiro lugar, que a Assemblea funciona sempre em sessão plena. Afastou assim o sistema conhecido por Reforma Wilkinson, segundo o qual a Câmara deveria funcionar normalmente em regime de comissões, sendo as sessões plenárias publicas reservadas apenas para os debates sôbre os grandes problemas.
Tornou também independente o funcionamento da Assemblea do trabalho das comissões.

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Estas desempenharão, pois, a sua função fora das sessões plenárias ou paralelamente a elas e, portanto, sem prejuízo da acção pública da Assemblea.
É assim assegurada a esta a possibilidade do aproveitamento integral do período da sessão legislativa para o exercício efectivo das atribuïções parlamentares, ao mesmo tempo que se aumenta a sua eficiência e se lhe criam melhores condições de funcionamento.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Eis, Sr. Presidente, as considerações que me foram sugeridas pelo estudo da proposta no aspecto limitado que me propus versar.
Não eram elas as que, num debate desta transcendência, quereria e deveria fazer. Mas essas ficam para outro lugar e para melhor oportunidade.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. João Ameal: — Sr. Presidente: não tenho, de modo nenhum, o intuito de apreciar neste momento qualquer das alterações à Constituïção sugeridas pelo Govêrno, na sua proposta de lei. Outros, mais autorizados e mais competentes, o fizeram já nas sessões de estudo e o farão, decerto, quando se iniciar a discussão na especialidade. E poderá acontecer que, a propósito de um ou outro artigo, de uma ou outra disposição, se manifestem divergências ocasionais de critério — embora, segundo creio, a todos mova igual desejo de contribuir para manter o que deva ser mantido e para melhorar o que possa ser melhorado.
Subi a esta tribuna, não com a idea de sublinhar aquelas minúcias em que, porventura, o meu parecer não coincida em absoluto com o de algum dos meus ilustres colegas; antes para ser uma voz mais a pôr no devido relêvo um aspecto primordial, que apaga e suplanta os pormenores secundários da questão e em que o nosso acôrdo será, com certeza, unânime e completo. Na medida em que todos somos, substancialmente, portugueses — e portugueses irmanados pela sua formação, pela sua convicção e até já um pouco pela sua cota parte (grande ou pequena) de responsabilidade na obra da Revolução Nacional —, cumpre-nos celebrar o seguinte facto, tam extraordinário nos dias que correm e tam natural para nós: o Mundo inteiro atravessa - podemos dizer, há cêrca de três décadas — uma das maiores crises da História; essa crise produziu — além de incessantes lutas internas em quási todos os países, de fundas e teatrais mutações políticas, de choques apaixonados de teses e de grupos que puseram em causa os próprios fundamentos da ordem moral e social — duas imensas conflagrações, que alastraram por vários continentes e acumularam um sem-número de vítimas e de ruínas. Desde 1939, especialmente, viveu-se em guerra total; para muitos ela traria ou trará, como conseqüência, também uma revolução total. E, no entretanto, nós, portugueses, corremos o nosso tôrvo e amargo calvário; buscámos e encontrámos, por iniciativa própria, os remédios para os males que nos afligiam; levantámo-nos, graças a um impulso espontâneo e salvador, da decadência e do descrédito; reconquistámos estabilidade, prestígio e fôrça; impusemo-nos ao respeito dos outros povos; e, no meio das suas discórdias e convulsões, guardámo-nos, com dignidade indiscutida e indiscutível, dos perigos em que tantos se deixaram resvalar e em que alguns mesmo sucumbiram. Agora, quando a tormenta cessa na Europa — ou, pelo menos, se suspende —, encontramo-nos no primeiro plano daqueles que de nenhuma culpa podem ser verìdicamente argüidos e, pelo contrário, ganharam o direito de ser considerados, pela isenção da sua conduta, pela lealdade para com os aliados tradicionais, pela nobreza usada para com vencedores ou vencidos, pelo exemplo da sua ordem, do seu trabalho e da sua unidade, como um dos raros factores de paz numa época de guerra e, numa época de ódios sem freios, de extermínios sem conta, de tremendos atentados contra a moral, a justiça e o direito — um dos raros, raríssimos, factores de autêntica civilização.
Serenamente, com a tranqüila consciência que é uma das nossas maiores fôrças, pudemos assim prosseguir uma obra de vida quando a maioria das nações se absorvia nas tarefas da morte. Assistimos à tragédia universal, não com desinterêsse, que seria absurdo, ou com impassibilidade, que seria monstruosa; assistimos vigilantes, atentos ao que sabíamos ser os nossos direitos intangíveis e os nossos deveres indeclináveis. Mas, na medida em que éramos alheios à contenda, em que nela se jogavam ambições que não tínhamos e causas em que não participávamos — a nossa existência normal continuou, mais difícil, sujeita aos duros reflexos de um período duríssimo; no entanto, tal qual a escolhêramos e definíramos, pelo nosso caminho e pelos nossos métodos.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Eis o aspecto primordial que desejei celebrar aqui, certo de ser por todos acompanhado no júbilo legítimo com que o faço...
Decerto me perdoarão ter-me alongado nestas reflexões tam gerais e, na aparência, tam distanciadas da nossa ordem do dia. Suponho, no entanto, que elas dominam, fundamentalmente, todo o problema da revisão constitucional. E afigurou-se-me oportuno chamar — depois de tantos outros — a atenção da Assemblea para o que explica e justifica o sentido da proposta do Govêrno e o espírito com que deve ser por nós interpretada e acolhida.
Posso, resumir tudo numa fórmula simples, que exprime o meu inteiro ponto de vista neste debate: o que, acima de tudo, me interessa não são as emendas à Constituïção, que me parecem um simples acessório; o que, acima de tudo, me interessa é o que me parece o principal: aquilo que não precisou nem precisa de ser emendado.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: na magistral lição de coerência e de realismo que, neste mesmo lugar, o Sr. Presidente do Conselho nos deu, precisamente ao apresentar a proposta de que hoje nos ocupamos, acha-se, quanto a mim, o flagrante resumo da posição portuguesa diante da presente conjuntura política, quer interna quer externa.
Posição de calma expectativa, que se não deixa contagiar pelo nervosismo reinante por toda a parte; e de plena independência diante das mil inquietações e sugestões desencontradas que concorrem para o desconcerto geral e lançam a dúvida em muitos espíritos sem ainda marcarem um rumo definido e seguro.
Para bem se entender essa posição seria talvez útil olharmos um pouco para trás.
Nos princípios da era inaugurada pelo 28 de Maio, um dos estribilhos insistentes dos adversários exigia o regresso à chamada «normalidade constitucional». Queria isto dizer, na bôca dos que o empregavam, que a vida pública portuguesa se encontrava definitivamente regulada pela Constituïção de 1911 e só pelo seu restabelecimento se podia restabelecer a normalidade na vida pública portuguesa.

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Sucedia, porém, que as lições da experiência contrariaram em absoluto a sua tese. Emquanto vigorou a Constituïção de 1911, construída à sombra de uma ideologia tam anti-humana como anti-nacional, a vida pública portuguesa caracterizara-se pela instabilidade e pela irresponsabilidade do Poder, pelo choque permanente das facções desavindas, pela incompetência nos domínios da Administração e pelo crescente descrédito dentro e fora das fronteiras. O sistema estabelecido na Constituïção de 1911, como muito bem sintetiza o. Sr. Dr. Oliveira Salazar, «não garantiu eficazmente a segurança dos indivíduos nem as liberdades públicas: liberdade de associação, liberdade de reünião, liberdade de imprensa, estiveram sempre pràticamente subordinadas aos interêsses do grupo do Govêrno, com a agravante de que as leis eram umas e os factos outros e de que a competência para julgar da legalidade ou inconveniência doa actos não pertencia a qualquer tribunal ou jurisdição regular, mas à rua, a título de defensora das instituições».
E o Sr. Dr. Oliveira Salazar continua:
O Parlamento não assegurou a fiscalização da vida política ou da Administração nem satisfez convenientemente as necessidades da legislação nova. Interveio na governação de forma atrabiliária, substituindo-se ao Poder Executivo, deminuindo-o, subordinando-o, entorpecendo-o. Com a subalternização do Govêrno e do Presidente da República o Estado ficou sem cabeça e sem direcção — uma assemblea não poderia dá-la — ao mesmo tempo que desaparecia toda a responsabilidade efectiva e toda a possibilidade de mando.
Em suma: a Constituïção de 1911 nunca pôde ajustar-se à vida real dos portugueses, nunca pôde criar precisamente uma forma de normalidade. A normalidade constitucional reclamada pelos adversários do 28 de Maio durante os anos em que o exército, para «pôr a casa em ordem», instituíu uma transitória ditadura, equivalia, pois, no fim de contas, a anormalidade nacional. Os governantes da ditadura eram os primeiros a querer normalidade constitucional; mas com a condição de que fôsse também, e sobretudo, normalidade nacional.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Que é, de facto, uma Constituïção? Conheço, como todos nós, bastantes respostas a esta pregunta. Ainda mão encontrei nenhuma que mais me satisfizesse pela sua limpidez e simplicidade do que a consagrada passagem de Joseph de Maistre nas Considérations sur la France:
Uma Constituïção é a solução do seguinte problema: se nos forem dados a população, os costumes, a religião, a situação geográfica, as relações políticas, as riquezas, as boas e más qualidades de certa nação — encontrar as leis que lhe convenham.
Esta lufada de claro bom senso opunha-se ao racionalismo abstracto dos legisladores da escola combatida por de Maistre, antepassados dos autores do Estatuto de 1911, para os quais uma Constituïção era uma rígida arquitectura deduzida a priori de alguns axiomas preliminares em pleno reino da utopia. Exclamava irònicamente o escritor francês a propósito da última criação dêsses legisladores:
A Constituïção de 1795, como as suas antecessoras, é feita para o homem. Ora o homem não
existe no mundo. Tenho encontrado franceses, italianos, russos, etc.; o homem, como pura entidade desligada do real, nunca o encontrei...
Evidentemente. E repare-se como esta lúcida visão coincide com a do Chefe do Govêrno Português, pôsto diante do mesmo problema. O que o interessa, o que o preocupa, o que lhe serve de modêlo não é, por forma alguma, o homem ideal e irreal, mas o homem português, localizado quer no espaço, quer no tempo.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Já no célebre discurso basilar de 30 de Julho de 1930, depois de ter passado em revista a crise política geral, enunciara a solução que propunha: «tomar resolutamente nas mãos as tradições aproveitáveis do passado, as realidades do presente, os frutos da experiência própria e alheia, a antevisão do futuro, as justas aspirações dos povos, a ânsia de autoridade e disciplina que agita as gerações do nosso tempo e construir a nova ordem de cousas que, sem excluir aquelas verdades substanciais a todos os sistemas políticos, melhor se ajuste ao nosso temperamento e às nossas necessidades».
E ainda há mês é meio, no discurso de 18 de Maio, exprimiu igual orientação, sem se perturbar ou desviar pelas tempestades que sacodem o Mundo:
Cada país em que os dirigentes políticos têm plena noção das suas responsabilidades há-de ter as instituïções que melhor se adaptem ao seu modo de ser e dele façam elemento prestante da comunidade internacional e há-de conceder e garantir aquele grau de liberdade consentâneo com a eficiência das disciplinas interiores do homem e exteriores do meio social.
Eis o critério que presidiu à edificação da ordem social e política estruturada pela Constituïção de 1933. E vem a propósito reavivar na nossa memória a página em que Salazar sublinhava que as liberdades públicas, porventura «mais limitadas em tese», ficavam, todavia, «mais concretas, mais garantidas, mais verdadeiras» e a cada português se dava maior «possibilidade de expansão da sua personalidade». Dizia ainda: «A forte noção de hierarquia disciplina a sociedade, eleva o nivel social pela confessada superioridade do espírito, ao mesmo tempo que a justa compreensão do valor humano é garantia mais efectiva da igualdade jurídica dos cidadãos». Não são estas palavras tam actuais — ou mais ainda — que na hora em que foram escritas?
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — A nossa Constituïção foi — como se vê — produto de um exame sério das realidades profundas da vida portuguesa e do homem português — através dos ensinamentos da História (que não é apenas passado morto, mas presente vivo e incessante preparação do futuro) e daquelas adaptações e exigências que a marcha dos tempos aconselhava ou, mesmo, impunha. Três directrizes essenciais se podiam extrair do seu conjunto: o reforço do Poder, no sentido de maior independência, de maior estabilidade e de maior continuïdade (visto o primeiro direito dos povos consistir justamente — Salazar o acentuou, na esteira dos melhores mestres — em serem bem governados); o primado do bem comum sôbre os bens fragmentários e particulares — que não suprime nem atrofia, antes inclue, protege e sobreleva; a substituïção do velho mito da

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5 DE JULHO DE 1945
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liberdade indefinida e ilimitada pela concessão das liberdades positivas e concretas.
Eis, aliás, na essência, a Constituïção implícita da Nação Portuguesa nas horas maiores da sua História de oito séculos: foi grande, forte e criadora quando teve uma chefia resoluta e independente, apta a conceber e realizar grandes desígnios; quando a razão de unidade e solidariedade se sobrepôs às querelas e desavenças de correntes ou partidos; quando, graças a uma ordem consistente e duradoura, as liberdades necessárias à vida desafogada e habitual do povo puderam ser concedidas e exercidas sem atropelos, sem abusos e sem opressões.
A Constituïção. Portuguesa de 1933 assenta, dêste modo, em fundos alicerces espirituais e nacionais. Por isso, ao contrário da de 1911, os seus resultados foram aqueles que todos nós temos visto e garantiu ao País, em doze anos de restauração e de florescimento, a harmonia, o progresso e a paz. Regressámos, com ela, a uma normalidade, não apenas constitucional, mas nacional, porque se conseguiu reajustar o Estado à Nação.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: no ambiente de efervescência e de ansiedade que resulta da crise universal dos últimos amos, em que tantos sofrimentos flagelaram a humanidade e foram postas a nu, e mesmo agravadas tantas misérias e injustiças, agitam-se hoje numerosas reivindicações de ordem política e sobretudo de ordem social. Por uma lei bem conhecida, que se traduz no recurso ao ideal e ao perfeito quando o real é mais agreste e mais trágico, os homens, que decaíram novamente a estados de violência e de barbárie que imaginávamos ultrapassados há muito, sonham teimosamente com outras formas do paraíso na terra — depois de terem atravessado um inferno de dores, de angústias e de devastações. Daí a necessidade que certos condutores de povos sentem de lançar, nos seus discursos, nos seus manifestos ou até nos testos de determinados programas de reformas futuras, uma série de belas promessas, declarações de direitos, anúncios de regalias, listas aparatosas e abundantes de liberdades a restaurar ou a criar. Há nisto — e não dou à palavra o seu sentido pejorativo — um pendor compreensível para certa forma de demagogia, o que é sempre perigoso pelas excessivas esperanças que alimenta e pela fatal distância a que delas têm de ficar as realizações. Mas há também nisto uma tendência respeitável e simpática para dar aos homens, torturados e feridos por mil desgraças, alento e confôrto — para os persuadir de que não foram vãos as provações suportadas e os sacrifícios feitos.
Todas essas reivindicações, na medida em que sejam viáveis, todas as promessas oferecidas à ansiedade dás massas, na medida em que sejam formuladas de boa fé, podem ser nìtidamente inclusas nas disposições basilares da nossa Constituïção. Já o demonstrou, com excelente a-propósito, no seu discurso de anteontem o Sr. Dr. Mário de Figueiredo.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Direi mais: ninguém tem maior autoridade para se apresentar como paladino da melhoria do nivel da vida humana do que os servidores da doutrina que informa, na sua substância e em cada um dos seus artigos, a Constituïção de 1933. Porque são êles quem está ligado a um corpo de princípios que mereceu ser chamado o do humanismo integral e quem, por isso mesmo, se acha sempre na extrema vanguarda, porque olha de cima a natureza e o destino dos homens e a génese e o desenvolvimento das sociedades.
Jorge Viance, autor dêsse modelar estudo que intitulou Préface à une Reforme de l’État, ocupou-se noutro dos seus livros, Démocratie, Dictature et Corporatisme, do regime português. Acentuou, primeiro, que o velho liberalismo «está longe de erguer barreira sólida, capaz de evitar o individualismo socialista ou o individualismo totalitário; leva mais depressa a um e a outro». A seguir, para dar uma súmula do nosso Estado Novo, acrescentava:
Só se regressa ao bem humano desde que se tome o homem tal qual é, como pessoa, não erguida ao pedestal de superindividualismo, que só poderá gerar a anarquia, mas humildemente enquadrada no lar e na série de comunidades que, subindo até à sociedade civil, lhe permitem cumprir o seu destino.
Assim Jorge Viance definia Portugal como Estado personalista, isto é, firmado no conceito do homem total, mas do homem limitado por aquilo que o ultrapassa. Êste mesmo conceito domina algumas das mais recentes escolas da sociologia e do direito católico — nomeadamente a avançadíssima e luminosa Escola da Instituïção, de que Hauriou lançou os fundamentos, mas de que Jorge Renard foi o vibrante cristalizador e propagandista: a Escola da Instituïção, que mostra a sociedade constituída por hierarquias e organismos ordenados à legítima satisfação do homem-pessoa, para garantir a plenitude do bem comum, que é bem de cada um e bem de todos.
É nesta linha insuperàvelmente humana e inexcedìvelmente progressiva que se insere a concepção que determinou a arquitectura da Constituïção de 1933. E neste plano que deve ser colocado o problema agora pôsto diante de nós.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Compreende-se, portanto, que o Sr. Presidente dó Conselho nos tinha dito aqui em 18 de Maio: «O Govêrno não viu, da sua parte, necessidade de introduzir na Constituïção profundas alterações».
Significa isto que a Constituïção seja perfeita e imutável? De modo algum! por isso lhe são propostas diversas modificações, e outras, ainda nesta ou em revisões futuras, deverão ser-lhe feitas, para melhor a adaptar às circunstâncias variáveis da Vida nacional.
As palavras do Sr. Presidente do Conselho significam, ao que penso, que a Constituïção não necessita de ser alterada naquilo em que, por corresponder e atender às constantes da humana condição e da existência colectiva dos portugueses, nada tem de ressentir-se de fenómenos que a elas não dizem respeito.
Por exemplo: fala-se muito em elevar o nivel da vida humana. É forçoso distinguir. Pode tratar-se de uma aspiração, não apenas aceitável, mas louvável e justa, à qual aderimos sem reserva e para a qual estamos decididos a não descansar nos nossos esforços. E pode tratar-se de uma «elevação» concebida sob os signos de determinado ideal puramente materialista da mesma vida humana — o velho ideal epicurista ou hedonista que reaparece, ùnicamente alimentado pela soma de prazeres e apetites inferiores que satisfaz. Ora êste nunca será o de um povo que nasceu em plena cruzada peninsular e fez um Império nas cinco partes do Mundo para a todas levar a dilatação da fé de Cristo. Antes seria lógico temer que, em vez de elevar assim a vida dos homens, contribuíssemos acaso para lhes abaixar

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o nivel espiritual e moral — que é, para nós, o que em primeiro lugar importa.
Entre muitos equívocos desta espécie, e muitas quimeras bem ou mal intencionadas, e muitas ficções, e meras ambições legítimas, é possível — admito mesmo provável — que algumas reais conquistas venham melhorar a sorte dos homens e dar-lhes, no conjunto social, maior amplitude, maiores possibilidades e maiores compensações. Essas, serão com certeza aproveitadas, introduzidas na nossa orgânica constitucional — e entrarão no património do homem português. Mas sempre à nossa maneira, dentro do nosso quadro de valores e daquilo que seja viável para nós.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Reafirmemo-lo, uma vez ainda, perante o Mundo inquieto, que busca, na confusão e no tumulto, as suas estradas de amanhã. E submeto à meditação dos que se deixam enfeitiçar pelo sortilégio empolgante de vagas palavras mágicas ou de imprecisas fórmulas tentadoras, aquela passagem lucidíssima de um dos nossos melhores doutrinadores do último século, José da Gama e Castro:
É tempo de que os homens se persuadam que a bondade não está nos nomes, está nas cousas; que formas não são essências; e que, se a cousa é ou pode fazer-se boa, importa pouco ou nada o nome que se lhe dá...
Estas palavras escreveu-as o autor há mais de cem anos. Parecem de hoje. Como parece de hoje a sua sintese do século XIX que, por desgraça, se adapta ainda mais perfeitamente ao nosso: — «século presumido, que se gaba de ter resolvido o problema do optimismo político, sem que na realidade tenha feito mais do que aumentar a massa (já enorme) das calamidades humanas...».
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: receio ter sido demasiado longo; receio também que a maioria dos que generosamente quiseram ouvir-me se queixe de que não falei quási da proposta de revisão constitucional.
Quero esperar, no entanto, que alguns, pelo menos, tenham a bondade de reconhecer que, no fundo, através de tudo quanto disse — não falei, afinal, de outra cousa.
Receio, por fim, que me acusem de repetir apenas o que já todos perfeitamente sabiam e disseram muito melhor. Se assim foi, a razão já a dei atrás: interessam-me menos as emendas à Constituïção do que o que não precisou nem precisa de ser emendado. A minha tendência irresistível é mais para admirar o que dura do que para festejar o que muda — para me prender ao que significa permanência do que ao que significa novidade. E, aqui, o novo é muito pouco — e o permanente é quási tudo.
Aproveitei pois o ensejo para fazer, outra vez, uma afirmação de fé nos princípios e nos métodos que nos valeram poder ser como somos, e continuar a sê-lo, quando tantas coisas são abaladas ou destruídas no Mundo.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: — Está ainda inscrito para tomar parte na discussão na generalidade o Sr. Deputado Mendes de Matos, que falará na sessão de amanhã.
Com a sua intervenção ficará encerrado o debate na generalidade, seguindo-se imediatamente o debate na especialidade.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 5 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Alberto Cruz.
Alexandre de Quental Calheiros Veloso.
António de Almeida.
Artur de Oliveira Ramos.
João de Espregueira da Rocha Páris.
João Mendes da Costa Amaral.
José Alçada Guimarãis.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pereira dos Santos Cabral.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Rui Pereira da Cunha.
Sebastião Garcia Ramires.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Acácio Mendes de Magalhãis Ramalho.
Amândio Rebêlo de Figueiredo.
Ângelo César Machado.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Dias de Araújo Correia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Ranito Baltasar.
O Redactor — Luiz de Avillez.
Imfbbxia Nacional de Lisboa

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