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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 59
ANO DE 1946 29 DE NOVEMBRO
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.º 59 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 28 DE NOVEMBRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira
SUMÁRIO: - O Sr. presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o Diário da última sessão. Deu-se conta do expediente.
O Sr. Presidente anunciou que estava na Mesa uma exposição do Sr. Deputado Manuel Múrias, no sentido de ver esclarecida a sua situação parlamentar, em face do artigo 90.º da Constituição, e que também ali se achavam os elementos requisitados na sessão de 13 de Março deste ano pelo Sr. Deputado Figueiroa Rego do Ministério da Economia e ainda os que os Srs. Deputados José Dias de Araújo Correia e Águedo de Oliveira solicitaram de diversos Ministérios.
O Sr. Deputado Braga da Cruz enviou para a Mesa um requerimento.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Froilano de Melo e Quelhas de Lima, que se ocuparam dos acontecimentos da Índia Portuguesa. Acerca deste assunto, o Sr. Deputado Marques de Carvalho enviou para a Mesa uma moção, que foi aprovada por unanimidade.
Ordem do dia. - Realizou-se o aviso prévio do Sr. Deputado Nunes de Figueiredo, tendo o Sr. Deputado Ribeiro Cazaes pedido a generalização do debate a qual foi concedida.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 10 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 35 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Álvaro Eugênio Neves da Fontoura.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria Pinheiro Torres.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Belchior Cardoso da Costa.
Carlos de Azevedo Mendes.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Indalêncio Froilano de Melo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Ameal.
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João Carlos de Sá Alves.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarata de Campos.
Joaquim Saldanha.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquível.
José Luís da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
José Nunes de Figueiredo.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Mendes de Matos.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel Colares Pereira.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário de Figueiredo.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário das Sessões n.º 58.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Se nenhum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra sobre aquele Diário, considero-o aprovado.
Pausa.
Deu-se conta do seguinte:
Expediente
Telegramas
Da Câmara Municipal de Águeda, congratulando-se por não ter sido aceite o pedido de renúncia do Sr. Deputado Albano de Melo;
De protesto contra a tabela de preços - 36$ a tonelada - a que, como se se diz, é feita a requisição de lenhas para o consumo da C. P., em benefício dos intermediários e arruinando os lavradores, que vêem devastados os seus pinhais.
Exposições
Do operário Vítor Cardoso Duarte, da Figueira da Foz, acerca do trabalho nos centros industriais de indivíduos com mais de 50 anos de idade e da demora havida na resolução de uma queixa por ele apresentada na polícia judiciária;
De Artur Faria Borda, de Alcobaça, juntando cópias das representações feitas ao Sr. Presidente do Conselho e ao Sr. Ministro da Justiça, em que se pede uma amnistia para os marinheiros implicados na rebelião de 8 de Setembro de 1936, a bordo dos barcos de guerra Afonso de Albuquerque e Dão.
Petição
De alguns cantoneiros das estradas nacionais e guarda-rios da Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos, suplicando a revisão dos seus vencimentos e alegando que nas empresas particulares qualquer trabalhador ganha 25$ a 30$ diários, enquanto eles recebem apenas 10$, com que não podem viver.
O Sr. Presidente: - Está na Mesa uma exposição do Sr. Deputado Manuel Múrias, para ver esclarecida a sua situação parlamentar, em face do artigo 90.º da Constituição.
Vai baixar à respectiva Comissão.
Comunico à Câmara que estão na Mesa os elementos requisitados na sessão de 13 de Março deste ano pelo Sr. Deputado Figueiroa Rego e fornecidos pelo Ministério da Economia, que vão ser entregues ao Sr. Deputado requisitante.
Estão ainda na Mesa os elementos solicitados aos Ministérios das Finanças e do Interior pelo Sr. Deputado José Dias de Araújo Correia, que lhe vão ser entregues.
Igualmente se encontram na Mesa os elementos requisitados pelo Sr. Deputado Águedo de Oliveira aos Ministérios das Finanças, Guerra, Economia e Marinha, que também vão ser entregues ao mesmo Sr. Deputado.
O Sr. Braga da Cruz: - Sr. Presidente: envio para a Mesa o seguinte
Requerimento
«Requeiro, pelo Ministério das Colónias, a relação de todas as corporações missionárias reconhecidas pelo Governo, com indicação da data do despacho do seu reconhecimento e número e data do respectivo Diário do Governo onde foi publicado, e bem assim indicação dos nomes dos seus actuais superiores e datas de suas investiduras, suas casas de formação e repouso e nomes e domicílios dos representantes junto do Governo da metrópole, quer das dioceses e circunscrições missionárias, quer das corporações missionárias reconhecidas».
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Froilano de Melo.
O Sr. Froilano de Melo: - Sr. Presidente, Srs. dignos Deputados: deveria talvez ter falado no próprio dia da reabertura dos nossos trabalhos parlamentares. Porque, por uma singular coincidência, passou nesse dia o aniversário da reconquista de Goa, que representa na história de Portugal e da índia o símbolo da fusão de
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duas grandes culturas: a cultura espiritualista, de que a índia é tão ciosa, e o ideal da universalidade da Civilização Cristã, de que o Portugal das Descobertas e Conquistas foi o abençoado e nunca esquecido paladino.
Tive receio, porém, de que a minha palavra fosse a voz de Cassandra no festim de Príamo...
O dia 25 de Novembro era um dia de festa para as terras de Goa! Ressoavam nos nossos ouvidos os ecos das vozes que há quatro séculos e meio se trocaram nos mares da índia, por entre o marulho das ondas que na branca areia das nossas praias soluçam a sua canção eterna.
-Para onde vos fazeis rumo, Senhor, com uma frota tão poderosa ? -encetou a fala o bergantim de Timoja.
- A Suez, a combater os turcos - acenou em tom resoluto o galeão de Afonso de Albuquerque.
-Para que irdes tão longe, se os encontrais aqui, de alfange afiado, ao pé de nós?
E, após demorado e secreto conciliábulo em que tomaram parte hindus de Goa e portugueses de Portugal, os marinheiros de Albuquerque investiram em tropel contra a fortaleza de Pangim.
Foi acérrima a luta! As vozes de comando do Crescente foram sufocadas pela fumarada dos petardos de Portugal e pelas cargas de lança dos soldados de Timoja. E, tendo os dominantes debandado espavoridos para à cidade de Goa, oito nobres hindus entregaram a Albuquerque as chaves da fortaleza, pedindo-lhe que acolhesse com magnanimidade o povo que se apinhava sob a protecção do seu gládio de conquistador.
Sob sua honra o jurou o fidalgo português. E as tubas dos clarins repetiram a proclamação ditada pelo seu peito honrado: «Mando que ninguém, sob pena de morte, toque nos naturais ou nos seus bens. São súbditos do Rei de Portugal e como tal têm de ser respeitados!».
Assim reza a história; assim aprazia-nos repeti-lo, para o entendimento da posteridade!
E em solene cortejo, que da velha Sé ia à capela de Santa Catarina, se renovava cada ano essa cerimónia cívica, afervorando em peitos de homens, instilando em corações de crianças o culto por essa epopeia seiscentista, que teve a escorá-la o ideal da expansão universalista da Ética Cristã, em que se amalgamaram num mesmo sentimento de igualdade cívica os velhos portugueses de Portugal e os novos portugueses de além-mar!
Ter-se-á repetido em 25 de Novembro esse grandioso cortejo que, há ainda um ano, vi realizar-se em todo o seu esplendor e que ressurge ante os meus olhos como uma das mais belas imagens da história de Goa? E, a ter-se realizado, sob a iniciativa oficial, tê-la-á escudado o povo com o deslumbramento dessa chama interna que dantes o insuflava? Chi lo sa?!
Meus senhores: encontra-se a grande índia no caminho franco da sua independência. E como sucede em todas as mudanças de regimes, encontra-se também a braços com uma convulsão social das maiores na história do Mundo. O cântico de libertação, entoado por milhões de indianos que desfraldam a bandeira do Congresso Nacional, inflama as multidões, mesmo que se não abriguem à sombra daquela bandeira partidária. Porque, quaisquer que sejam as suas dissidências internas, acham-se todos unificados no brado unísono que varre a península como a lava que queima as vertentes da montanha: quid Índia!
E, por uma mutação psicológica, corrente em tal ordem de fenómenos, este anátema, que nessa grande índia visava primitivamente o sazão, não poupa os representantes dos demais povos do Ocidente, e o coração das massas incultas começa já a votar à mesma galera de condenação, de revolta e de ódio os próprios filhos da índia que, mercê da sua educação, sejam porventura os expoentes da cultura ocidental!
Às nossas pequeninas terras, de estrutura latina - a índia Francesa, a índia Portuguesa -, grãos de areia engolfados na imensidade do solo indiano, chegam já os ecos desse cântico de revolta que, há uns meses, tendo sido apenas a expressão esporádica de meros gritos individuais, se têm mais e mais avolumado desde o começo deste ano, numa torrente que ameaça subverter a paz dos nossos lares e é de molde a causar sérias apreensões.
O nosso camarada e digno Deputado Sr. Botelho Moniz, com a elegância que caracteriza a sua alma afectiva, teve a gentileza de dizer nesta sala que ouvira a minha primeira mensagem a esta casa com os olhos marejados de lágrimas. Hoje sou eu, com o coração mergulhado em dor, que chamo nesta Assembleia a atenção dos nossos estadistas para o perigo que corremos e ouso perguntar: qual o futuro que está reservado à nossa pequenina índia Portuguesa, perdida no seio desse enorme colosso, que, ostensivamente, sem metáforas nem eufemismos, pela boca dos seus leaders, declara que nos quer absorver?
É mais que tempo de encarar a situação com calma e com dignidade!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: acabo de passar seis meses na Índia, despojando a toga de quirite para reverter ao anonimato do meu gabinete de estudo. E na paz e no silêncio do meu retiro, que não permiti fosse invadido pela peçonha das paixões políticas, pude apreender com certa nitidez, no limite, evidentemente, dos apoucados recursos do meu espírito, a enormidade da anarquia que avassala neste momento as mentes indianas: ódios de seitas, Hindustans, Pakhistans, Dravidistans arreganhando-se os dentes como feras em circo romano!
De um lado, a doutrina da não violência pregada às massas ávidas de sorverem a palavra do mestre; do outro lado o dementado encorajamento da invasão da terra de outrem, o que para o meu intelecto, liberto da névoa das paixões humanas, constitui a pior das violências, porque é a violação do domicilio alheio.
Aqui, a resistência passiva; além, a acção directa! Por toda a parte um desequilíbrio desconcertante entre o ideal e a realidade, entre o pensamento e a acção, que os grandes leaders são, no entanto, impotentes para orientar e controlar e não podem evitar que descambe nessa orgia de extermínio e de sangue que tem vitimado inocentes viandantes nas belas e sumptuosas cidades do Hindustão!
E chego a desconhecer o meu pequenino e risonho país! Aquela linha de correcção e de elegância, que era o orgulhoso património dos filhos da minha terra, acha-se por momentos desviada pela onda de agitação que, invadindo as massas nessa grande índia, já começa a querer infiltrar-se na paz do nosso próprio solo!
As minhas palavras têm de ser ponderadas, porque são cheias de responsabilidade. Pois na verdade vos afirmo que dentro do nosso território, na nossa casa, por conseguinte, raras vezes terá havido, mesmo nos tempos mais revoltos da nossa história política, eventos que se pareçam com o que ultimamente se tem passado em algumas localidades de Goa, da nossa formosa e pacífica Goa! Não é uma revolução aberta, ostensiva, de braços que lutam; é uma revolta recalcada, subterrânea, de mentes que se envenenam!
Como se chegou a esse estado, que de um momento para outro ameaça subverter o nosso estatuto político e promover a desintegração de Goa da Comunidade Portuguesa, para a integrar na grande índia? Quais são as consequências que nos adviriam dessa integração? Eis os pontos que muito sobriamente tentarei expor à Nação do lugar que ocupo no seio desta Assembleia.
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Sr. Presidente: a agitação política indiana para a conquista da independência da índia data de uns sessenta anos. Limitada primitivamente a um grupo de patriotas austeros e idealistas, foi-se avolumando, com o andar dos tempos, por forma a recrutar os milhões que hoje conta no partido do Congresso Nacional Indiano.
Deus me livre de tentar sequer comentar, quanto menos interferir, com um conceito menos adequado, no que se passa na casa vizinha! Se tenho o máximo respeito pela liberdade alheia, exijo igual respeito pela minha própria liberdade. O que me interessa é o reflexo desse movimento na nossa gente.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A comunidade indo-portuguesa, temporária ou definitivamente estabelecida na Índia vizinha, bastante diferenciada da massa geral, merco da sua cultura ocidental e do seu Standard de vida mais elevado, fruindo, ademais, os direitos de cidadãos portugueses, que política e socialmente lhes eram reconhecidos pelas próprias autoridades britânicas - e eram naturalmente superiores e mais proveitosos que os direitos de súbditos que eram os seus naturais -, achava-se aí indiferente e, por assim dizer, à margem do movimento revolucionário. A população indo-portuguesa vivendo em Goa, essa então há ainda uns quinze anos desconhecia totalmente o movimento cada vez mais triunfante, e, por falta de afinidades culturais com os seus vizinhos, a nossa gente educada estava talvez mais em dia com o que se passava na Rússia de Tolstoi e Gorki do que na índia de Tilak e Gokale.
Mudam-se os tempos. A índia semeia de escolas e Universidades os seus vastos territórios. Milhares de graduados em Ciências e Letras fazem agora uma terrível concorrência aos indo-portugueses, que até aí, graças ao elevado grau da sua cultura ocidental, ocupavam as altas carreiras burocráticas e educativas.
E, como era natural, não faltam medidas proteccionistas aos súbditos britânicos, vedando o acesso a alguns postos elevados - Indian Medical Service e Indian Civil Service - a forasteiros domiciliados, medidas que são acolhidas pelos naturais com tanto mais gáudio quanto havia um recalcado ressentimento contra esses forasteiros indo-portugueses, por haverem sido os colaboradores dedicados da administração inglesa e na revolta dos cipaios terem bandeado ostensivamente ao lado dos ingleses ameaçados e massacrados.
Foi então que a comunidade indo-portuguesa estabelecida na grande índia teve de rever a sua situação política. Por força de circunstâncias de ordem económica e - para que ocultá-lo? - ultimamente por despeito perante erros nossos, a que uma vez me referi nesta sala, muitos se naturalizaram súbditos britânicos. Mas no seu coração, sobretudo da grande maioria dos seus intelectuais, nunca se extinguiu, pelo menos nas duas primeiras gerações, a ternura e o culto pela velha e tradicional terra e cultura portuguesa.
Vem a grande guerra actual. Os exércitos tentónicos marcham de conquista em conquista! Mas a altiva Inglaterra não quer deixar-se sucumbir e impõe-se a missão de ser o último reduto das liberdades humanas ameaçadas. Precisa, porém, da colaboração dos seus domínios. O povo indiano está cada vez mais cônscio da sua força e os exércitos indianos correm em defesa da Inglaterra e obram prodígios de valor nos diversos teatros da guerra. E os diplomatas indianos espantam o Mundo, batendo-se sabiamente, galhardamente, nos tablados das conferências internacionais.
Desde esse momento a independência da índia está virtualmente garantida!
Sr. Presidente: foi então que, relativamente à nossa terra, surdiram dois eventos que passarei a destrinçar.
Um evento de ordem interna, pois que diz respeito à nossa população indo-portuguesa, dentro e fora de fronteiras: no seio da comunidade indo-portuguesa estabelecida em Bombaim ,e já hoje integrada no movimento de emancipação da índia surge uma pequena fauna de quinta-colunistas. Quem são eles que propagandeiam a doutrina da absorção do nosso território na grande índia, fazendo tábua rasa do nosso passado, da nossa cultura, da nossa tradição, da nossa individualidade? São duas classes de propagandistas: a primeira constituída por meia dúzia - se tanto - de intelectuais, que, educados na Europa Central, nazistas por educação, alguns deles «Haw-Haws», locutores em marata e hindustani das emissoras nazis para a índia, indesejáveis que não sei mesmo se chegaram, alguns, a regressar à índia por benevolência do Governo Português, passaram todos a socialistas e comunistas e servem de elo de ligação com os políticos indianos obcecados pela paixão dessa absorção. Um livro recente do Prof. Friederick Hayek (The Road of Serfdom), com exemplos colhidos na História, explica bem estas mutações de nazistas para comunistas e vice-versa - não as podemos pois estranhar!
A segunda - dúzia e meia ou duas, se tanto- constituída na sua maior parte pelos fainéants, falidos na vida, ora maus estudantes que se arrastaram por longo tempo pelos bancos escolares ou mesmo não chegaram a concluir os cursos, ora profissionais que faliram nas suas empresas e que, infelizmente, em vez de se relegarem ao desprezo a que se devem votar os parasitas, são guindados à categoria de social workers (servidores do povo foi o título que se deu a si mesmo, em tradução portuguesa, um desses infelizes irresponsáveis), à sombra do qual esperam tirar o pé do lodo, em prémio da sua traição à Pátria dos seus avós.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Q Orador: - São esses os elementos mais perigosos que fomentam o ódio à Nação Portuguesa no seio da grande massa dos humildes emigrantes indo-portugueses e tentam mesmo abalar a ternura por coisas nossas nas famílias indo-portuguesas de há longo tempo estabelecidas na vizinha índia. Informações falsas, interpretações corrosivas, propagandas subversivas, que envenenam as mentes honestas e servem de esteio à campanha de descrédito que se move contra nós! No seio dessas famílias já hoje se pergunta em tom de sincero alarme: que horror de coisas se está passando na nossa terra de Goa?
E em face dessa propaganda não me é lícito perguntar que contrapropaganda houve da nossa parte para lhe opor o desmentido tão simples que é a explanação da Verdade? No Times of índia, à menor referência menos primorosa que apareça a qualquer governo estrangeiro -polaco, grego, norueguês-, vejo que não faltam explicações e desmentidos de fonte autorizada que reponham o seu governo no pedestal de respeito que a um estranho deva merecer esse governo, senão por simpatia, pelo menos por dever de elegância e cortesia com que os diversos mutuamente se devem tratar.
Da nossa parte limitamo-nos a descansar na inacção e na rotina, à sombra de uma soi-disant superioridade de um silêncio desprezador. Oxalá a reacção oficial em contrário que já hoje começa em Bombaim e em Goa chegue ainda a tempo de repor as coisas no seu devido pé!
Nos tempos que correm, é preciso batalhar para a conquista da Verdade, de que a aleivosia e a mentira tentam manchar a face augusta e luminosa.
Sr. Presidente: vejamos quais foram os resultados dessa propaganda.
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No meio intelectual indo-português estabelecido na Índia Inglesa, aos primeiros momentos de pasmo segue-se um desalentado desapego aos velhos laços que os prendiam à terra e à cultura dos seus avós. Hoje em dia, só uma minoria, constituída sobretudo pela geração velha, se mantém francamente, devotadamente, portuguesa.
No seio dos emigrantes, que constituem a grande massa dos mesteirais e de indivíduos de mediana cultura e que em larga escala haviam seguido para a índia Inglesa, atraídos pelos fabulosos salários do período da guerra, a acção foi mais dissolvente ainda. For exemplo: desvalorizou-se a rupia inglesa relativamente à rupia portuguesa? Quem foi explicar ao povo que era esse um fenómeno natural, inverso da desvalorização da nossa rupia anteguerra, e devido em primeiro lugar à inflação da moeda inglesa e em segundo lugar ao dumping com que as notas inglesas, abarrotando as bolsas dos emigrantes pela alta dos salários aí auferidos, inundaram a nossa terra, sem cobertura equivalente por parte do Banco Inglês? Quem lhes explicou que era essa desvalorização que dera lugar ao açambarcamento da nota portuguesa por parte dos especuladores «no mercado negro»?
Da nossa parte, a dementada superioridade do silêncio! Da parte adversa, insidiosamente e malèvolamente, só se lhes fez ver que 100 rupias mandadas da índia Inglesa para as famílias em Goa valiam 90 ou ainda menos; que, sendo as nossas importações mais essenciais - arroz, farinha, fazendas - pagas com o dinheiro inglês do nosso erário, depositado nos bancos ingleses, não se compreendia que se exigisse ao consumidor o pagamento desses géneros em moeda portuguesa, para adquirir a qual o pobre tinha, por falta de uma valência oficial afixada nos postos da fronteira, de recorrer ao «mercado negro», ao ágio, por vezes, de 14 por cento! E o pobre, faminto e revoltado, na sua filosofia simplista, não achou outra derivante que a de clamar, com gáudio dos quinta-colunistas: «Que espécie de Governo é o nosso?».
Houve momentos em Goa em que o povo sofreu fome, por falta de géneros e por má distribuição por parte dos encarregados do serviço, e os mais humildes resolveram o problema emigrando em massa para a presidência de Bombaim, onde o racionamento dos géneros era regular e bem sistematizado.
Quem lhes explicou que a nossa quota de arroz e de farinha dependia do governo vizinho, que, conquanto no-la não recusando - e é meu dever manifestar publicamente a nossa gratidão ao governo, da índia, que com a sua generosidade tanto nos valeu nos piores tempos de crise e espero continuará a valer-nos no futuro -, lutava com dificuldades de abastecimento e de transportes para a sua própria população ? Sou médico, e todos os médicos que me ouvem sabem que em casos reputados incuráveis uma palavra amiga de conforto é, pelo menos, meio caminho para a esperança que nunca abandona a alma humana!
Pois na nossa terra, numa falsa compreensão de prestígio da autoridade, tratou-se com desdenhosa rudeza as bichas dos pedintes, e esse tratamento serviu de base à insinuação dos propagandistas - insinuação já hoje arraigada no seio de famílias nossas em Bombaim, mesmo de cultura mais que mediana, de que, já, que para viverem era necessário ir buscar o pão à índia Inglesa, seria melhor ingressar nela de vez! E essa doutrina logrou jubiloso acesso nos altos meios nacionalistas indianos, a esse tempo em plena e triunfante propaganda revolucionária.
Aproveitou-se das mais pequeninas coisas para uma propaganda dissolvente. Ao abrigo do decreto para a protecção do livro português, taxava o empregado nas alfândegas em serviço nos correios 10 ou 12 tangas por um livro escolar que um estudante em férias em Goa esquecera no colégio e mandava vir pelo correio? Seguia o estribilho: que espécie de Governo é o nosso?
O mal, por exemplo, que nos causou a receita de 12 tangas pelas fórmulas impressas para a declaração das bagagens, em vigor em todo o território português! Porque na índia vizinha essas fórmulas são gratuitas.
Ouvi eu a massa do povo nas docas da Bombay Steam Navigation Company clamar: ora vejam, um papel que nem custa 3 réis! Isto é um roubo! Deveis saber que centenas de goeses regressam diariamente à terra, para um mês de férias! Muitas 12 tangas terão entrado nos nossos cofres, mas o mal que essas tangas nos causaram foi irremediável!
Essa propaganda venenosa infiltrou-se em Goa, invadiu algumas escolas inglesas e maratas que aí preparam os nossos filhos para a luta da vida na índia e África e em algumas das quais havia professores estrangeiros francamente nacionalistas, apossou-se de cérebros novos, sempre inflamáveis e explosivos na sua irresponsabilidade, e assistimos a esse espectáculo degradante de se convidarem para a nossa terra sagrada estrangeiros indesejáveis para pregarem às massas a indisciplina e a desobediência civil, por entre cortejos em que nem houve a coragem de saírem à frente indivíduos que se impusessem pela sua integridade moral e intelectual, mas acrobatas encapotados, mandando fazer paradas de crianças das escolas, em geral, raparigas hindus algumas de menos de oito anos de idade!
E não hei-de eu - cidadão, pai e educador - lamentar no meio de vós essa -perdoem-me!- indignidade de terem querido conspurcar com a baba da peçonha a alma em botão da infância do meu país! Que penitência, que peregrinações - Lourdes, Fátima, Benarés - são capazes de redimir esse horrendo crime que cometeram?!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas, Sr. Presidente, todos esses «eventos de ordem interna» são fenómenos intercorrentes sem importância, passíveis, quando muito, ocorrendo no nosso País, de uma acção policial inteligente mas resoluta. Muito mais graves são as consequências de que tratarei nesta segunda parte e que englobarei sob o título de «eventos de ordem externa».
Mais que nunca, as minhas palavras têm de ser calmas e ponderadas. Tenho de lhes refrear o ímpeto, mesmo para retorquir com dignidade ao ímpeto com que da outra banda nos investem.
E por isso, e para que ninguém me atribua exagero ou paixão, documentarei com textos transcritos ipsis verbis, e que peço sejam registados no Diário das Sessões, as afirmações que faço.
O povo na metrópole desconhece a força do movimento que domina as massas da grande índia. A nossa imprensa metropolitana tem-se ocupado muito pela rama da convulsão política e social que ameaça ruir a personalidade da índia Portuguesa por um simples e inglório fenómeno de absorção que a imprensa indo-britânica de todos os matizes preconiza pela boca dos seus leaders e que a imprensa vernácula, una você, exige para a soi-disant unificação da índia livre.
O momento é grave e seria para estimar que o Ministério das Colónias tomasse medidas para que o governo de Goa, pelo seu serviço de informações, enviasse ao Ministério, diariamente, por mala aérea, recortes de alguns jornais anglo-indianos - Times of índia, de Bombaim, Statesman, de Calacutá, Hindu, de Madrasta - e de um ou outro jornal extremista que pusesse a nossa imprensa da metrópole em contacto com o que se passa aí, seja no tocante a Goa, seja sobre a evolução da própria política indiana. Temos de lutar unidos em frente
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única - um por todos, todos por um - no momento que passa!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Chego a não compreender a psicologia actual do espírito indiano, que faz tábua rasa da largueza de vistas do velho hinduísmo, que foi sempre caracterizado por um sentimento de harmonia, de tolerância e de respeito pelas diversas culturas, dentro e fora do país, e cujos sábios pregaram sempre a assimilação pela tolerância, e não a supressão pela violência. E fico espantado de ver que os mais altos e austeros expoentes da cultura hindu, obcecados pela paixão, tendem a renegar a filosofia do Mahabarata, que num símile cheio de beleza proclama que, para se escapar à anarquia das absorções e atropelos de direitos alheios, os homens têm de ser superiores à lógica do peixe, quer dizer, do peixe graúdo que devora o miúdo.
Integração de Goa na grande índia?! Porventura mandam a nossa educação e a nossa cultura que não colaboremos com ela para a manutenção da paz e do progresso na península? Somos-lhe porventura hostis? Constituímos porventura o mínimo obstáculo para as suas aspirações? O governo de Goa está pronto a colaborar com todos para a harmonia e paz na península. Mas integração do nosso território pela absorção?! A que título? Com que direito? Foi para se incitar absorções que as democracias opuseram a barreira dos seus milhões de soldados contra a demência do Além-Reno? Foi para se encorajar essa perversão mental que os soldados indianos opuseram os seus peitos de aço na Etiópia, em Tobruk e em El-Alamein?
Tenho seguido a evolução dessa desorientação mental através da reportagem de um jornal de compostura séria, o Times of Índia, e é por ele que vos darei informes para a vossa orientação. Porque, devo confessá-lo, por um sentimento de dignidade e de elegância de educação, evitei do ler muitos outros da ala esquerda, que, dizem-me, vêm cheios de doestos e injúrias para nós, canalizando notícias tendenciosas, cimentadas com ditos de jogral, que, se servem para despertar a hilaridade dos leitores locais, destoam da linha de gentleman com que me habituara a olhar - já por cansa da sua hereditariedade, já pela sua alta cultura universitária - alguns desses guias espirituais do moderno pensamento indiano!
Srs. Deputados: eu sou pequeno demais para julgar os grandes homens! Mas sou também filho da Índia! E um indiano puro não se deixa fascinar pela grandeza dos homens e para afirmar as suas convicções não tem medo de as repetir ante o próprio espírito da verdade suprema, que é Deus!
Em nome dessa verdade, j'accuse!
Do meu modesto assento nesta sala e perante a consciência do mundo civilizado, acuso da mais criminosa das violências o incitamento à violação do nosso território e à infiltração nos nossos domicílios da desprezível fauna da 5.º coluna!
Do not bow before the Portuguese Government; remember that 40 crores of Indians are behind you. (Times of Índia, de ...).
Tradução. - Não vos curveis perante o Governo Português; lembrai-vos que 400 milhões de indianos estão por detrás de vós.
Acuso com mágoa a jogralidade de expressão com que se qualifica a nossa terra de uma pimple, uma borbulha que se rebenta esmagando-a entre dois dedos! Por mais poderoso que seja um país, não tem o direito de querer vexar um país pequeno, que vive tranquilo no meio da sua pequenez.
Acuso quem, devendo medir a sua responsabilidade de um antigo ministro do Estado, não tem pejo de se permitir criticar, num comício em Poona, a administração de Goa e por entre bênçãos aos revoltosos aconselha:
To defy all laws which interfere with the civil liberties and legitimate rights of citizens. (Free Press, 5 de Julho de 1946).
Tradução. - Desafiar todas as leis que interferem com as liberdades cívicas e os legítimos direitos dos cidadãos.
Não pode haver mais franco incitamento à revolta em casa alheia que vive em paz, à margem das orgias de apunhalamentos que essas revoltas têm gerado em algumas das suas grandes e sumptuosas cidades.
Acuso esses indivíduos novos e altamente responsáveis, pela sua categoria mental e pela posição máxima na política indiana, que, falando de territórios estrangeiros na Índia, dizem com uma sem-cerimónia que espanta em pessoas educadas:
In future, there was going to be no such islands of foreign authority in Índia, like Portuguese or French territories. They simply could not exist.
Tradução. - No futuro não haverá na índia tais ilhotas de autoridade estrangeira, como os territórios portugueses ou franceses. Sumariamente, eles não podem existir.
E com um desconhecimento lamentável da História, inconcebível em homens cultos, acrescenta:
Portuguese authorities had existed in Goa not because of Portuguese, but because of British Power in Índia. When British Power went, other powers would also go. (Times of Índia, 11 de Julho de 1946).
Tradução. - As autoridades portuguesas existiam em Goa, não por cansa dos portugueses, mas por cansa do poderio britânico na Índia. Quando este se for embora, os outros poderes ir-se-ão embora também.
De forma que, do alto de unia tribuna política na índia, se nos ensina que tantas feitorias de Portugal, que constituíram o orgulho de uma Nação, foram especadas pelas baionetas da Companhia Inglesa das índias e pelo poder dos soldados da Albion!
Sr. Presidente: Goa, como vedes, está cercada de uma atmosfera externa francamente hostil e absorcionista. E a população indo-portuguesa, pro-portuguesa de Goa, que, ciosa da sua cultura e das suas tradições, constitui ainda a grande maioria, vive acabrunhada e apavorada, não sabendo o futuro que a espera!
Houve um momento em que a declaração impressa nos jornais vizinhos de que Goa seria tomada without a shot (sem um tiro) foi entre nós traduzida como sendo uma questão de dias, rendendo Goa pela fome e pela sede!
De resto, esta teoria simplista não é uma mera apreensão de espíritos timoratos. Ela foi sugerida ainda recentemente ao Governo Provisório Central por um ministro de um governo provincial:
The application of economic pressure against Portuguese Índia as a retaliatory messure against the alleged ill-treatment of Indian Nationals in Goa. (Times of Índia, 8 de Outubro de 1946).
Tradução. - A aplicação da pressão económica como uma medida de revindicta contra o alegado mau tratamento dos nacionais indianos.
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A atitude correcta, sensata e firme do novo governador de Goa - honra lhe seja! - e as declarações que fez após a sua posse tiveram pelo menos o condão de fazer renascer a confiança de todo um povo acobardado ante a perspectiva de um mandado de despejo a quem não quisesse submeter-se à bandeira de Além-Gates.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Supunha eu que muitas das frases que vos citei, conquanto pronunciadas por bocas altamente responsáveis, conteriam talvez essa dose de irresponsabilidade que por vezes caracteriza os propagandistas e os visionários em plena obsessão oposicionista.
Não chegava a compreender, por Exemplo, que mentes de juristas se permitissem arguir o nosso executivo das decisões de um tribunal judicial, que em terras com cultura social diferenciada -e na própria índia!- é um poder soberano e independente.
E não chegava a compreender que, se ao governo de uma província vizinha era permitido prender um socialista revolucionário que ia turbar a paz do seu povo com um discurso inflamado, se estranhasse que esse mesmo homem fosse preso na nossa terra, onde vinha declaradamente fomentar a sedição, com pleno assentimento dos leaders indianos.
O último discurso que tenho à mão, pronunciado pela mais alta entidade responsável do governo provisório, define claramente as intenções absorcionistas da Índia vizinha. Ei-lo, na parte que nos interessa:
Foreign possessions - There is no difficulty about French índia, as far as I can see. There is at pre-sent a difficulty about Portugnese índia, which, I regret to say, is in a deplorable condition at the present moment and for some time past now. Obvi-ously, this state of affairs cannot continue long in Goa. It is bad for Goa and bad for the people arbund Goa, but, for the moment, I em not aware of any governmental action to be taken, becanse, obviously, althongh it is a small bit of índia, it raises interna-tional issnes. If an international issne comes on our way, we will have to deal with it, but, for the moment, we have só many big problema to deal with, that an issue which might resolve by itself, needs not be raised by us, as Government. (Times of índia, 27 de Setembro de 1946).
Tradução. - Não há nenhuma dificuldade quanto à Índia Francesa, tanto quanto o posso julgar. Dificuldade há-a no presente quanto à Índia Portuguesa, que, lamento dizê-lo, jaz numa condição deplorável no momento presente e desde há algum tempo. É mau para Goa e mau para o povo à roda de Goa, mas por agora não prevejo nenhuma acção governamental a ser tomada, porque, por motivos óbvios, ainda que se trate de um pequeno pedaço da índia, levanta problemas internacionais. Se uma questão internacional surge no nosso caminho, teremos de a enfrentar, mas, por agora, temos tantos grandes problemas a resolver que uma questão que se pode resolver por si mesma não precisa de ser levantada por nós, como governo.
Não é preciso pôr mais na carta! Uma questão que se resolverá por si mesma. Como? Promovendo sedições no nosso País com agentes estranhos à nossa terra, comissionados para esse fim; absorvendo essa borbulha (pim-ple) sem um tiro (without a shot)
Pelo que vedes, as responsabilidades de governo, a deontologia inter governamental deixem-mo empregar esta expressão -, não acalmaram a sede revolucionária e absorcionista.
Bem ao contrário, para os políticos nossos vizinhos qualquer revolucionário tem o direito de entrar no nosso País e nós devemos andar nesse permanente desassossego de prende na fronteira, põe na fronteira, torna a prender, torna a expulsar», um jogo de escondidas que seria ridículo se não contivesse algo de verdadeiramente grave!
E abertamente, ostensivamente, com grande publicidade em todos os jornais, se anuncia: e Fulano de tal vai a Goa para dirigir a organização da mocidade goesa a fim de lutar pelo estabelecimento das liberdades cívicas em Goa!».
E se o nosso Governo, para garantir a ordem e a paz no nosso território, e em pleno direito de soberania, quiser prender esse desordeiro, não faltará quem, à sombra da sua autoridade moral, mental e mística, diga ao povo: «Vamos agora a ver o que fazem o vice-presidente do governo e o vice-rei da Índia para que a
Anthority there may stop that injnstice». (Times of índia, 3 de Outubro de 1946).
Tradução. - A autoridade aí ponha cobro a essa injustiça.
Injustiça! Prender um intruso que vem roubar a paz da nossa casa! Diga-me o mundo inteiro, da cátedra augusta das melhores tribunas internacionais, se estamos vivendo numa era de razão e de justiça ou se se devem relegar essas expressões ao domínio da psiquiatria, como testes de demência, porque em indivíduos que o mundo venera como protótipos de bondade e de alta cultura mental não posso admitir que sejam manifestações de maldade ou de estupidez.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Basta, que já é longo o sudário que vos expus. Há algumas conclusões que com a máxima sinceridade desejo expor à Assembleia Nacional, à Nação inteira e urbi et orbi, para que todos me ouçam e Portugal marque a linha de conduta a seguir nesta conjuntura, que reputo muito grave!
Ninguém suponha que as minhas palavras encerram um vislumbre sequer de oposição ou de má vontade à independência da grande índia: todos nós fazemos os mais sinceros votos para que a estabeleçam sólida, forte e próspera, digna de um povo que tem uma história e uma cultura imorredouras.
Mas que deixem viver em paz e sossego a nossa pequenina terra, que não quer sujeitar-se nem aos distúrbios revolucionários que mancham de sangue e ódio as ruas das suas formosas cidades, nem ao nosso englobamento e absorção nesse grande colosso que nos quer tragar.
Para o meu espírito, livre de qualquer espécie de tutelas ou de preconceitos, essas conclusões são:
I. - Estamos cercados de uma atmosfera hostil, cuja insólita agressividade nos quer absorver e engolir.
Ainda há quatro dias no discurso presidencial do Congresso Nacional Indiano, se fizeram as seguintes afirmações, que não há uma voz que se permita rebater! Ei-las:
e Se os britânicos abandonarem a índia, como inequivocamente prometeram, é ridículo as autoridades portuguesas proclamarem que Goa faz parte do sen território, encontrando-se a milhares de milhas distante de Portugal». E acrescenta: «Quero assegurar ao povo de Goa que tem toda a simpatia do Congresso na luta por leis e direitos e que a Índia livre jamais tolerará a sua sujeição a uma tirania estranha».
Que estranha, insòlitamente estranha, concepção do direito internacional! Que dementada inversão de papéis nessa deliberada agressividade! Não é o Congresso, com
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a sua doutrina, que viola a liberdade dos portugueses da índia; é Portugal que viola a liberdade da Índia com a sua presença em Goa?
Viu-se jamais uma anormalidade psíquica de tamanho quilate?
Perante tamanha obcecação que invade as mentes das mais altas entidades responsáveis pela política indiana, é um erro pensar que poderemos conservar a nossa Índia à força de baionetas.
Uma acção diplomática calma e ponderada urge desde já exercer, a fim de libertar a nossa terra da vaga de demência interna, e sobretudo externa, que no presente momento tão gravemente a assola.
II. - É um erro descansarmos à sombra da teoria cómoda de que, enquanto por aí, na Índia Inglesa, andam às bulhas uns com os outros, a nossa soberania está segura. Não é certamente esse compasso de espera, de uma transitoriedade efémera, que devemos ofertar à Alma Nacional nem às almas dos antepassados que moldaram a nossa formosa Goa à imagem e semelhança das terras de Portugal.
III. - É o mais colossal dos erros o sonho que porventura quaisquer indo portugueses acalentem de que a integração de Goa na grande Índia representará a independência de Goa!
Populacionalmente atingindo apenas a metade do milhão que é exigido para um voto na Assembleia Legislativa Central, com a população hindu naturalmente regressada ao estatuto indiano, mercê das suas afinidades sociais e religiosas, com 50 por cento de cristãos de nível educacional mais modesto, podendo reverter ao hinduismo, senão religiosamente, pelo menos na sua estrutura social, o futuro que espera a culta minoria cristã ocidentalizada é o futuro de Israel chorando as ruínas de Sion! Por Deus! Tentemos salvar a personalidade criada pela cultura de cerca de cinco séculos que nos ligaram aos destinos da terra portuguesa, situações e proventos de relevo e postos de confiança, à sombra da qual tantos dos meus compatriotas usufruíram no passado e usufruem no presente, seja em Portugal, seja nos nossos grandes territórios africanos, e talvez em escala superior às que se lhes deparam, guardadas as devidas proporções, na Índia e Africas até hoje ligadas à bandeira inglesa.
IV. - Impõe-se que a Assembleia Nacional, o Governo e o povo -um por todos e todos por um!- proclamem alto e bom som, para o conhecimento de todos os povos e de todos os governos do Mundo, que a Índia Portuguesa é e continuará a ser portuguesa.
Uma declaração neste sentido, clara, terminante, insofismável, urbi et orbi, terá o condão de fortalecer a fé que já começa a vacilar em corações de tíbios e de timoratos, apavorados pela propaganda estrangeira, infelizmente não contraminada por uma contrapropaganda nacional.
V. - Impõe-se que se acabe para sempre a lenda de que a Índia Portuguesa precisa da Índia Inglesa para poder viver e subsistir. Mas para o fazer há necessidade de que um exército de técnicos conscienciosos e sabedores, e não simples burocratas parasitas, transforme aquele jardim natural em um pomar de riqueza, que os seus filhos possam fruir na paz dos seus lares abençoados, que oxalá nunca venham a ser manchados por essas orgias de sangue e de morte que são ojour àjour da Índia de hoje. Esses filhos de gente pobre e faminta, que são actualmente a matéria explosiva que dá pasto à revolta, serão o mais sólido esteio da nossa segurança nacional.
E se, por um fenómeno cósmico insólito -uma seca de morte, os campos a estiolarem abrasados, a cria a morrer nos estábulos-,.houver a ameaça da fome, qual o país que tenha o mar livre que corre o perigo de morrer de inanição ? E a vós, filhos de marinheiros que conquistastes o Mundo, que preciso de vos lembrar que é no mar que residiu e que ainda reside a soberania de Portugal?
Inunde-se, nesse ano de crise, a terra de Goa com arroz e açúcar vindos da Guiné, de Moçambique, de Timor, do Brasil, com trigo vindo da nossa grande Angola, em barcos nossos, com marinheiros nossos; distribua-se, gratuitamente, se necessário, pelos pobres e pelos famintos, e vereis se essa despesa de soberania não há-de reverter em benções para o povo e em riqueza para a Nação Portuguesa!
VI. - O problema de Goa deixou de ser um problema nacional para entrar no domínio da cobiça internacional. É necessário, pois, uma acção diplomática calma, ponderada, mas firme, perante o governo central vizinho, não em Bombaim, mas em Nova Dolhi, onde o contacto pessoal dos nossos diplomatas com as altas individualides políticas indianas lhes demonstre a elegância da nossa cultura e a grandeza da nossa acção, para eles desvirtuada ou, pelo menos, totalmente desconhecida! Porque na Índia ainda tem curso a máxima de Bnda de que o ódio se não combate com ódio, mas com amor, e os equívocos se não desfazem com argumentos, mas com tacto, diplomacia, conciliação e o espírito aberto para os pontos de vista alheios.
Mas com quem nos havemos de entender nessa atmosfera de paixão e de hostilidade que vos descrevi? Quem há-de ser o intermediário que infunda nas mentes exaltadas a calma necessária para se encararem com respeito as questões atinentes à justiça e ao direito alheio ?
No Times of Índia leio um telegrama de Londres de 20 de Setembro em que o partido trabalhista inglês afirma:
The belief is strongly held in ali political circles in England, irrespective of parties, that the ultimato moral responsibility for maintaining law and order in Índia dnring this transitional period, must rest with the British Government.
Tradvqâo. - É convicção firme em todos os círculos políticos ingleses, sem diferença de partidos, que a manutenção da lei e da ordem na índia, durante este período de transição, deve, em última análise, pertencer ao Governo Britânico.
Se esta declaração se refere aos distúrbios de Calcutá e Bombaim, a quem deve pertencer a responsabilidade dos distúrbios que súbditos britânicos (indianos britânicos) vêm causar no nosso País?
São esses leais aliados de há séculos que me parece deverem ser os mais indicados para os pourparlers dessa acção diplomática de que falei, tanto mais que vejo que na ocasião da cedência temporária das nossas bases nos Açores contraíram eles, juntamente com os norte-americanos, que hoje gozam de tão larga influência na índia, obrigações morais o internacionais com o Governo de Portugal para a garantia e integridade dos territórios pertencentes à nossa soberania.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E para concluir, como o pendão de revolta que agita a Índia livre é sob a base tentadora de que pretende ela extinguir o estatuto colonial dos povos, não será tempo de pensar a sério nas magníficas considerações do relator Dr. Vieira Machado ao projecto das alterações à Carta Orgânica, já discutido e aprovado por esta Assembleia, e elevar essas parcelas nossas engolfadas em terras estrangeiras à categoria de províncias de Portugal, não apenas em platonismos sonoros da ré-
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tórica oficial, mas de facto, como a Argélia o é da França continental ?
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Falta-me competência para detalhar este problema no seu complexo aspecto sociológico.
E sendo filho das colónias, compreendeis que tenho um certo melindre em o abordar.
No seio desta Assembleia, com o sentimento português que inspira a minha alma de patriota, é meu dever preconizar para o bem da Nação que se expurgue quanto antes da nossa legislação tudo quanto possa constituir vexame ou melindre para os portugueses do Oriente.
Em política e sociologia não há diplomas imutáveis; há adaptações inteligentes! Se a concepção actual do Império Colonial Português comanda que os nossos territórios do ultramar sejam vazados num molde único, com dor vos digo, a Índia corre o risco de se perder. Urge que se publique um Estatuto Político Indiano que dê à Índia uma situação de perfeita igualdade com as províncias metropolitanas. Entremos num caminho rasgadamente igualitário, para que possamos pelo menos conservar o amor da minoria ocidentalizada, que, desejosa de continuar portuguesa, esbarra com o projecto de vir a não ter pátria nenhuma, pois que se em Portugal nos disserem, mesmo que veladamente, «Vê bem, que és indianos, na grande Índia nos dizem abertamente: «Arreda, que és português»!
Sem retóricas, sem eufemismos, com a frieza de uma dissecação anatómica, achei do meu dever de cidadão português informar-vos do perigo que ameaça a nossa índia. E, como esse perigo resulta sobretudo de uma dementada obsessão externa, tive de refrear a vibração que sacode a minha alma para vos dar um relato monótono na sua documentação, como uma página de notário!
Para mim é tempo de concluir. Para a Nação é mais que tempo de agir!
Que a Índia Portuguesa seja sempre portuguesa são os votos angustiados de centenas de milhares de filhos de Goa, que, uns com fé inabalável e nunca desmentida, outros porventura trânsfugas de momento, mas já hoje sinceramente arrependidos do caminho errado que os fascinou e de que começam a antever as ruinosas consequências para a vida e para a paz dos seus lares, repetem convictamente que vale mais morrer com honra do que viver nessa absorção inglória, que é a pior das escravidões! Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Quelhas de Lima:- Sr. Presidente: ouviu a Câmara com a costumaria e séria atenção, constante interesse e subiria emoção o discurso magistral do eminente cientista Deputado Dr. Froilano de Melo sobre problemas da acentuada delicadeza e premente actualidade que se agitam na apaixonante e bem querida parcela do Império: a eterna, Índia Portuguesa..
Sr. Presidente e Srs. Deputados: quando olhamos ao redor e escutamos os clamores de um Mundo em cachão, quando sentimos, ora aqui, ora ali, erguerem-se os mais estranhos problemas na vida dos povos, onde já mal se distingue, no tumultuar das paixões, a noção do bem e do mal quando os maiores e mais fortes impérios da tenra estremecem as suas fundações e diante dos rumores dos povos procuram satisfazer as suas legítimas aspirações através de rigorosa e corajosa análise íntima da consciência do dever humano, quando na imensa e portentosa península da Índia se acende trágica fogueira de almas, procurando encontrar o seu rumo histórico, não pode parecer estranho, antes parece naturalmente compreender-se até pela lei ou condição física da proximidade, que a Índia Portuguesa -ceptro da nossa maior glória de além-mar - acuse e sofra o fluxo e refluxo da maré que passa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sem pretender atrever-me a unia análise histórica o suas rendas românticas, e antes olhando frontalmente as realidades, quero exprimir simplesmente e com naturalidade algumas das suas premissas fundamentais e que os portugueses de lês a lês devem guardar com firmeza em si, evocando e sentindo o Império, encarando tranquila mente o Mundo civilizado.
No caminho das descobertas e conquistas, ante uma Europa atrofiada nos recursos materiais, neurasténica nos espíritos, Portugal afronta os mistérios do mar e com D. Henrique marcha, sob o império da fé, para as suas imensas acções, erguendo os mais altos princípios civilisadores - e os gigantes no comando das empresas que lhes são confiadas- cumprem e transmitem de boca em boca, em sucessão de gerações, enternecedoras palavras, ditadas, segundo creio, por Nicolau V: «No nosso caminho ajudai o fraco contra o forte, defendei o pobre contra o abuso do rico».
Ao mundo europeu abre Portugal de par em par o esplendor da Renascença - e na Índia luta, vence, esmaga, o rume, o tune e o mouro, para melhor amar o índio, erguê-lo, libertá-lo, enfim!
Essa Índia Portuguesa, em que Goa se destaca em períodos de largo esplendor, ostentando até hoje as maiores galas dos seus pergaminhos e forais de privilegiada condição, foi mantida e defendida pela Pátria-Mãe, em sincronismo com os seus povos, através dos maiores sacrifícios e sofrimentos, para salvaguardar os seus altos valores humanos e delicado património moral - e jamais para guardar ou espoliar os seus recursos materiais, bem modestos e até escassos.
Nunca fomos comerciantes e muito menos financeiros, e nenhum factor o demonstra melhor do que ficarmos pobres depois de termos na mão as maiores riquezas do Mundo.
Pense o Munido o que pensar, jamais o activo, inteligente e delicado povo da Índia Portuguesa poderá deixar de sentir a inspiração, o suave afago, o socorro do exemplo do mais alto conceito da vida humana que adeja na imortalidade de S. Francisco Xavier e a grandeza de D. Afonso de Albuquerque, patrono dos índios, mago da Justiça.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Decorridos cinco séculos, os princípios basilares, fundamentais, que informam do alto as axilações- entre os povos da Índia e a Pátria-Mãe mantêm-se imperturbavelmente num alto nível de dignidade humana.
Como que ouvindo e sentindo com consciência firme a dignificação do homem e igualdade do género humano, como suprema lei da vida, sem qualquer pendor para qualquer incomportável critério de justificação racial, Portugal, hoje e sempre, pratica e exprime com irrefutável verdade nas suas acções e sentimentos aquele conceito moral pregado por S. Paulo: «Não há gregos, nem bárbaros, nem senhores, nem escravos». O género humano só comporta: semelhantes.
E isto. Sr. Presidente e Srs. Deputados, significa o culto da justiça e do direito contra o critério da força.
Desta forma, vemos integrados em todos e os mais altos sectores da vida nacional, desde a causa pública
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aos mais complexos ramos cia actividade do homem, tantas vezes com o maior índice de valor, alta sabedoria e notório destaque, os habitantes da Índia Portuguesa.
Mas até podemos dizer, seguindo na mesma linha geral de pensamento, que esta alta concepção da vida que Portugal entesta se alarga até aos próprios indo-britânicos, largamente estabelecidos nos territórios de além-mar.
Quero contudo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, desobrigar-me destas considerações pura dizer já e rapidamente que Portugal não concede nenhum favor, não pratica acção graciosa, caritativa ou magnânima, nestes procedimentos, mas antes que constituem, sem mais, o primário axioma que resulta das suas constantes civilizadoras, harmónicas com os princípios morais de dignidade e respeito próprios pela condição humana.
Na defesa e elevação das grandes causas humanas, Portugal está na trincheira da frente - bem à frente.
Falemos claro e alto: quantas nações têm forais velhos neste terreno; Passemos adiante.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: chegam até nós, com certa intensidade, os ecos do doloroso e intenso drama que se está gerando no seio dos variados povos que- se situam na grande península da Índia ao buscar o seu rumo histórico-político e que, extravasando os limites próprios, pretendem tocar ou colidir, pela condição física da proximidade, a Índia Portuguesa. Membros do partido do Congresso Indiano ou seus delegados lançam, com vária frequência e processos diversos, a inquietação das suas paixões nos habitantes da Índia Portuguesa, ao som da promessa de libertação.
Ponho-me a cismar e digo para mini, mas em voz ala: que espécie de libertação oferecem os membros do Congresso Indiano aos habitantes da multi-secular Índia Portuguesa?
Quando, Sr. Presidente, observamos, com espanto e mágoa, que em plena maturidade da vida humana na imensa Índia os homens se catalogam, se arrumam e diferenciam em castas e onde vivem sem esperança 50 milhões de homens na mais aviltante degradação, suprema injúria lançada em rosto de uma humanidade que anseia e se esforça pela criação de uma comunidade pacífica, igual e fraterna dos homens, seria interessante conhecer que espécie de libertação os defensores ou concordantes com tal concepção da vida - castas humana - pretendem oferecer aos habitantes da Índia Portuguesa, usufruindo por séculos em fora igualdade de direitos perante a lei e perante Deus?
Que casta lhes será oferecida: grandes ou miseráveis párias? Decência ou degradação? Dignidade ou escárnio?
Para além do seu próprio e multi-secular direito histórico, Portugal nada tem a corrigir nas suas grandes linhas gerais em relação à bem querida Índia Portuguesa essencialmente no que respeita à defesa e exaltação dos seus preciosos valores humanos, que constituem tesouro de extrema valia que serão sempre tenaz e firmemente defendidos e protegidos.
As possíveis e naturais quezílias por justas aspirações de qualquer ordem administrativa, económica ou social dos habitantes da Índia Portuguesa serão sempre resolvidas com nobreza e equidade pelo Estado Português na intimidade do lar comum.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Marques de Carvalho pediu a palavra para apresentar uma moção sobre este debate.
Dada a importância do assunto e a justificada emoção despertada na Câmara, sugiro ao Sr. Deputado Marques de Carvalho a conveniência de subir à tribuna.
O Sr. Deputado Marques de Carvalho subiu à tribuna.
O Sr. Marques de Carvalho: - Sr. Presidente: o assunto trazido a esta Câmara pelo nosso ilustre colega Prof. Froilano de Melo é daqueles que põe em patriótico alvoroço todo o português bem formado.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ouvimos, pela sua voz, a voz da índia, da nossa índia, que, como sempre, se proclama portuguesa. Com a autoridade especial que lhe dá a sua qualidade de goense e o seu prestigio de homem de ciência, ele veio aqui afirmar fidelidade perfeita à Pátria portuguesa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Acidentais erros de Administração, possíveis inabilidades de governo, desacertos eventuais de comando, não podem nunca levar a esquecer os postulados doutrinários, o primado espiritual da nossa civilização no Oriente.
Não há párias na Índia Portuguesa!
Já com Albuquerque, quem se convertia tornava-se português em plenitude de direitos.
Não se pretendia um domínio, ou - se se quiser -, Sr. Presidente, pretendia-se mais que um domínio: o nosso conceito imperial, vazado no imperativo da dilatação da Fé, em si mesmo envolvia a ideia de que fazer cristãos era fazer portugueses.
Apoiados.
É assim, Sr. Presidente, que desde então - há mais de quatro séculos - pela fraternidade em Cristo temos irmãos na índia.
Um dos chefes hindus de mais prestígio, o presidente do Congresso Indiano, mostrou uma total incompreensão dos fundamentos éticos da nossa comunidade nacional ao dizer que era uma ficção considerar os territórios de Goa, Damão e Dio como constituindo um todo uno com um território europeu, a milhares e milhares de milhas...
Não há distâncias quando a unidade se faz pela comunhão da Fé, pela fusão das almas, e é este, Sr. Presidente, o milagre português.
Apoiados.
No Parlamento, no Governo, nos altos postos da Administração, na magistratura, na cátedra, sempre portugueses de Goa têm ombreado, lado a lado, com portugueses do Minho, da Estremadura, do Algarve, das ilhas ou de qualquer outra terra lusitana.
Positivamente que não foram factos análogos que desencadearam na imensa península industânica a rebelião do Congresso e, após o Governo autónomo, a balbúrdia sangrenta que alastra implacàvelmente, sem se ver como possa ser delida.
Pretende o Congresso a unidade pela desordem e pelo crime?
Na Índia Portuguesa o não matarás, da lei de Deus, é mantido pelo culto de S. Francisco Xavier, e no espírito tutelar do apóstolo das índias está, inteiro, o Portugal cristão.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - De quem é que o Congresso quer libertar os portugueses de Goa? Libertos estão eles das
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terríveis questões raciais que dividem e que matam e que ali - naquele canto de Portugal - se dobram e cedem à qualidade de português, ,que a todos irmana e a todos dignifica.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas, Sr. Presidente, eu não pedi, propriamente, a palavra para acrescentar quaisquer considerações ao depoimento impressionante do professor Froilano de Melo, que, de resto, já teve a realçá-lo a palavra vigorosa do comandante Quelhas Lima.
Se pedi a palavra foi porque me pareceu indispensável que, definindo a sua posição em face do problema, a Assembleia Nacional proclamasse, em nome de todo o Portugal -continental, insular e ultramarino -, a sagrada intactibilidade da Pátria Portuguesa. E é assim, Sr. Presidente, que tenho a honra de apresentar uma moção em que, exprimindo-se a mais veemente repulsa por quaisquer atentados à soberania portuguesa, se confia no Governo e se saúdam, em comunhão fraterna, todos os indo portugueses que tanto têm contribuído para o prestigio e grandeza da Pátria comum.
A moção que tenho a honra de mandar para a Mesa leva também a assinatura do Deputado Quelhas Lima e é, Sr. Presidente, do seguinte teor:
Moção
A Assembleia Nacional, ouvida a exposição sobre a situação na Índia Portuguesa feita pelo ilustre Deputado Prof. Froilano de Melo:
1.º Afirma a sua confiança nos princípios da justiça, e do direito das nações a serem respeitadas na sua integridade e na inviolabilidade do seu território;
2.º Saúda o Estado da índia, que há mais de quatro séculos faz parte da Nação Portuguesa;
3.º Reafirma os sentimentos de fraternidade que ligam os portugueses de todo o Mundo aos seus irmãos indo-portugueses, que, dentro e fora dá Pátria, têm elevado o nome de Portugal pela sua cultora e comum sentido de grandeza da Nação;
4.º Assegura ao Governo e ao governador geral da Índia todo o apoio na sua acção em defesa dos superiores interesses nacionais.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Froilano de Melo: - Sr. Presidente: graças à Assembleia Nacional, através da moção apresentada pelo Sr. Deputado Marques de Carvalho, são levados aos portugueses da Índia o carinho e o sentimento de confiança. E se o ilustre autor da moção me der licença, eu terei muita honra em ser um dos signatários dessa moção.
O Sr. Marques de Carvalho: - A honra é nossa!
O Sr. Presidente: - Convido o Sr. Deputado Froilano de Melo a subir à tribuna a fim de assinar a moção.
Pausa.
O Sr. Presidente: - A importância do assunto que tem sido objecto das atenções da Câmara, nesta sessão, justifica inteiramente a admissão desta moção, mesmo antes da ordem do dia.
Vou, pois, submetê-la à votação da Câmara, votação esta que poderá ser feita por levantados.
Submetida à votação, foi a moção aprovada por unanimidade.
O Sr. Presidente: - Interrompo a sessão por 5 minutos.
Eram 17 horas e 10 minutos.
O Sr. Presidente : - Está reaberta a sessão. Eram 11 horas e 36 minutos.
O Sr. Presidente:- Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Tem a palavra p Sr. Deputado Nunes de Figueiredo, para efectuar o aviso prévio sobre escolas do magistério primário.
O Sr. Nunes de Figueiredo: - Sr. Presidente: ao subir pela primeira vê/a esta tribuna apresento a V. Ex.ª os protestos de alta consideração e admiração pelas suas invulgares qualidades.
A todos os colegas apresento os meus cumprimentos e dirijo as minhas saudações. Só lamento não estar presente o Sr. Deputado Santos Bessa, amigo leal e dedicado, que num outro sector não menos importante está aplicando o melhor do seu saber, da sua actividade e da sua inteligência. Vi-o partir com mágoa.
Sr. Presidente: ao apresentar o aviso prévio sobre escolas do magistério receei que alguém pudesse ver nele qualquer caso pessoal a focar, qualquer aspecto de pormenor a resolver. Moveu-me única e simplesmente o interesse nacional, porque entendi que se tratava de um problema que não podia continuar a ser descurado, e, por se tratar de um sector principal - o da escola prima- ria - , julgo não dever continuar-se com legislação de emergência e improvisada, com escolas com defeitos graves de funcionamento, de instalação e até de orientação.
Nos dias que se seguiram recebi palavras de incitamento de vários pontos do País e, coisa curiosa, precisamente ri e distritos que têm escolas.
Sr. Presidente: o decreto-lei n.º 32:243, de 5 de Setembro de 1942, é, manifestamente, legislação improvisada. E não admira. Preparado à pressa, para acudir a uma situação alarmante, não Louve tempo para consultar as entidades e os indivíduos que conheciam mais de perto o problema, já teoricamente e em função de aturado estudo das ciências pedagógicas, já pelo que a profissional prática diária lhes ensinara.
Por outro lado, não pareceu talvez conveniente construir sobre a base da legislação anterior nem aproveitar de uma experiência antiga que, parece, tinha dado maus frutos. Arquitectou-se, portanto, sobre base hipotética e, como é natural, tomaram-se por ponto de partida algumas premissas falsas. Arquitectou-se, portanto, deficientemente.
Ao fim de um ano de trabalho no novo regime ou, melhor ainda, ao fim de dois - isto é, após a obtenção do diploma pelos primeiros alunos admitidos - , podiam ter-se chamado os directores das escolas e outros indivíduos cuja colaboração parecesse útil para que, juntos, falassem das deficiências encontradas e estudassem para elas as melhores soluções. A solução indicada deve ter parecido maçadora e inoperante, e, portanto, continuou-se com soluções improvisadas para os pequenas problemas d« pormenor e deixaram-se por tapar os buracos mais fundos. A visão foi sempre lamentavelmente fragmentária e, portanto, superficial; as soluções foram sempre parciais e, portanto, ilusórias.
Mas vejamos algumas das deficiências mais graves que se foram notando e que aguardam ainda solução.
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O director da escola tem no 1.º semestre dezasseis horas e no 2.º doze horas de serviço semanal docente; não há nenhum professor na escola que tenha mais serviço e até há apenas um cujo serviço é igual, o de Didáctica !
Este serviço docente, que exige ao director preparação longa, cuidada e difícil em duas disciplinas fundamentais- Pedagogia e Psicologia -, coloca o director, por exemplo, na necessidade de classificar 80 alunos em duas disciplinas diferentes e básicas; calculando que, para uma classificação conscienciosa, é necessário, pelo menos, um exercício por mês em cada uma das disciplinas, temos que o director é forçado a ler por mês, pelo menos, cento e sessenta exercícios escritos, o que, à média provada de quatro por hora, representa mais quarenta horas de trabalho mensal, ou seja mais cerca de duas horas em cada um dos dias lectivos. Somando estas horas ao tempo de prelecção e ao de preparação das lições, tem de reconhecer-se que estamos em face de um trabalho absorvente e extenuante.
Mas, além de todo este serviço relacionado com a sua função docente, o director tem a seu cargo, evidentemente, a direcção da escola, com o que isso representa de horas consumidas no estudo e despacho do expediente, na solução dos pequenos problemas diários de disciplina e organização, na recepção de alunos, pais de alunos e outros interessados, nas diligências junto das autoridades locais, nos serviços de representação, etc.
Mas há mais ainda: o director tem a seu cargo a presidência do conselho administrativo, com o que isso acarreta de responsabilidade no doseamento das verbas, na disciplina das compras, nos pagamentos, nos descontos por faltas ou outros motivos, etc. Tem a seu cargo a direcção das dez escolas primárias de aplicação, com a competente obrigação de fiscalizar o seu funcionamento, presidir aos seus conselhos, superintender ao recenseamento, à matrícula e aos exames de passagem de classe das crianças, processar os vencimentos dos professores, dar despacho ao expediente dessa secção d t- ensino primário, determinar o serviço de assistências e regências dos alunos - mestres, etc. Tem de presidir a todo o serviço de exames da escola, exames de admissão, de saída e de Estado, com o que isso significa de classificações de provas escritas, interrogatórios em provas orais, conselhos de júris, avisos, pautas e relatórios, etc. Tem de organizar o estágio, distribuir os estagiários, ler os seus relatórios e os dos professores orientadores do estágio, organizar as sessões e conferências pedagógicas, presidir a todas elas, etc. E tem, finalmente, de solucionar todos os imprevistos que surgem a cada momento numa escola que é frequentada por 200 crianças do sexo masculino, 200 do sexo feminino, 140 alunas - mestras e cerca de 20 ou 30 alunos - mestres.
De forma que para o director da escola há apenas duas soluções: ou aguentar-se até ao esgotamento total das suas energias físicas e mentais... e desistir em seguida (como já fizeram alguns), ou resignar-se com um deficieintíssiimo cumprimento cios seus deveres...
Sr. Presidente: todo o pessoal da escola e das escolas de aplicação é da escolha do Ministro, que, para tanto, não consulta a direcção da escola. Como, porém, o Ministro não conhece os professores locais nem as necessidades práticas da escola, a sua escolha recai, evidentemente, nas pessoas que lhe são indicadas por certos influentes da localidade, que não conhecem o problema pelo seu lado pedagógico e técnico.
Isto é, o director da escola é. responsável pelo bom funcionamento dos serviços, e portanto pela competência dos seus colaboradores; mas o seu pessoal é-lhe
imposto por indicações alheias, .sempre ou quase sempre pedagogicamente irresponsáveis!
Os resultados práticos conhecem-se: à frente de algumas escolas de aplicação, servindo, portanto, de orientadores metodológicos aos alunos - mestres, estão hoje alguns professores dos chamados «paraquedistas», quer dizer, para orientar a prática de alunos - mestres que acabam de frequentar as aulas de Pedagogia, Psicologia e Didáctica escolheram-se alguns professores que nunca frequentaram uma escola do magistério. E porquê?... Porque, não possuindo classificações nem tempo de serviço que lhes permita serem nomeados para uma escola da cidade, se serviram dos tais influentes e das suas recomendações, com manifesto prejuízo de gente mais competente!
É uma situação incongruente, com a qual um director sério só pode conformar-se se possuir uma dose invulgar do tal citado espírito de sacrifício...
Sr. Presidente: apenas quatro professores pertencem ao quadro privativo da escola e estão em condições de dedicarem a ela a sua atenção e o seu tempo (o de Pedagogia e Psicologia, o de Desenho e Trabalhos Manuais, o de Didáctica e Legislação e a professora de Educação Feminina; os outros seis -a maioria, portanto- são por lei professores do liceu local, que a emprestam umas horas à escola. E a lei, já pela irrisória remuneração, já pelas complicações burocráticas e pelas despesas que andam ligadas à sua nomeação anual, criou a estes professores uma situação tal que foi necessário improvisar um decreto para os obrigar a prestar o referido empréstimo de serviço.
Quer dizer: a escola não possui um corpo docente! Que é como quem diz: é um estabelecimento sem personalidade.
Os programas foram, sem qualquer sombra de dúvida, arquitectados à pressa, mal doseados e, em certos casos, hipotéticos ou até errados. Veja-se, a título de exemplo, este dislate pedagógico: a Pedagogia estuda-se logo no 1.º semestre, isto é, antes de se ter estudado a Psicologia, que lhe deve servir de base! Outro aspecto: a Educação Física incluiu no programa longas caminhadas e acampamentos demorados, mas não se previu o pagamento das horas extraordinárias e dos dias que o professor perderia se quisesse cumprir cabalmente!
Conclusão: o programa de Pedagogia só se pode cumprir... dogmatizando-se, o de Educação Física só se pode cumprir... sonhando-se.
Sr. Presidente: onde os programas são excessivos, errados e ilusórios o sistema de exames não pode deixar de ter defeitos. Aqui, como é natural, peca-se por excesso: para um curso de dois escassos anos lectivos há um período de mais de um mês para exames de admissão, um período de mais de um mês para exames de saída e um período de mais de um mês para Exames de Estado!
Os exames de admissão são a repetição inútil de alguns exames liceais; e ainda se não elaborou para eles o prometido regulamento, de forma que se vêm fazendo desde 1942 de acordo com o regulamento e os programas do decreto n.º 30:968, de 14 de Dezembro de 1940. Mas, coisa lamentável!, estes programas e regulamentos não se destinavam as escolas do (magistério - pois estas nem sequer funcionavam ao tempo -, unas sim ao cumprimento do decreto-lei .n.º 30:901, de 10 de Dezembro de 19J-0, que era, já de si, uma lei de emergência, precisamente a que criou os «paraquedistas»! Onde estará a lógica desta curiosa adaptação?
(Os exames de saída são a repetição intútil das disciplinas que acabam de cursar-se na escola; os alunos recebem as classificações da frequência em meados de Fevereiro e entram nos exames de provas escritas de saída
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três ou quatro dias depois. Para quê? E depois, ao contrário do que podia supor-se, os alunos não saem para parte alguma; entram, sim, no estágio, que é feito, evidentemente, nas escolas primárias locais, em condições idênticas às do trabalho nas escolas anexas.
No fim do curto estágio, que, por causa, dos exames de saída, não começa nunca antes de 15 de Março, aparecem os Exames de Estado, sem realização de aulas a classes e, mais uma vez, com interrogatórios sobre disciplinas cursadas na escola. Exames de (pura formalidade, de um relatório que o candidato pode mandar fazer a um teórico da pedagogia, exames que não dão o vaiar do aluno. Para estes exames também não foi ainda elaborado regulamento; depois de uma triste experiência de júri único, resolveu-se, à última hora, aproveitar o regulamento antigo ... com algumas alterações, mais ou menos arbitrárias. E, muito embora a lei preveja que as notas finais sejam atribuídas em júri único, cada escola classifica os seus alunos muito a seu modo, esperando algumas escolas pela saída das motas das outras para que os «seus» alunos e o seu «prestígio não fiquem prejudicados numa corrida à nota pouco menos que ignóbil. (Conclusão: enquanto, nos penúltimos exames, algumas escolas não (passaram de 17 valores, outras subiram, .fartamente a 20; e enquanto algumas desceram (prudentemente a 10 outras não quiseram passar abaixo de 13. Os alunos que se «defendam», (portanto, com a cunha e com a dissimulação enquanto frequentam u escola, se pretenderem altas classificações! Nos últimos exames já reuniram em Lisboa os directores das diferentes escolas e remediou-se um pouco a situação.
Sr. Presidente: as turmas, que começaram por ser de 40 alunos, já foram aumentadas, arbitrariamente, para 50; e, para «não ficar de fora uma pessoa muito amiga a, já uma vez uma escola teve turmas de 52 alunos! É evidente, porém, que onde se passar de 25 ou 30 alunos já é impossível a afeição prática» do ensino, de que falam as «sonhadoras» instruções aos programas. Por exemplo: com S tempos semanais de regência em 10 escolas de aplicação, e só de 15 de Outubro a 15 de Fevereiro, é fácil de calcular que «prática» cabe a cada um dos 100 alunos - mestres...
O relatório e o articulado do decreto-lei insistem no carácter eminentemente prático do ensino, que é eminentemente teórico e de fachada.
Toda a preparação dos alunos tem de ser superficial e apressada; os programas são demasiado extensos e os períodos lectivos, por oposição, muito curtos. Vejamos: por causa dos exames de admissão, o 1.º semestre nunca começa antes de 1 de Novembro e não pode também terminar depois de 15 de Fevereiro, por causa dos exames de saída; descontadas as férias do Natal, é um «semestre» que, portanto, não chega a ter três meses! E tem de caber nele, «por exemplo, toda a Pedagogia!
Depois, por causa dos exames de saída, o 2.º semestre não começa efectivamente antes de 15 de Março e os Exames de Estado não «permitem que vá muito além de 15 de Junho; é, (portanto, outro semestre que, depois de descontados as férias lia Páscoa, não chega também aos três meses. O 3.º semestre é, logicamente, igual ao 1.º; e o 4.º, que é de estágio em escola da cidade ou dos arredores, é, logicamente, igual ao 12.º
O curso não tem, portanto, muito mais de dez meses úteis! E é nesse espaço de tempo que se - tem de ensinar - e de aprender! - o programa todo, com todo o seu peso morto de matéria supérflua e de exigências descabidas de alguns dos seus professores, que ensinam a que não aprenderam (para equilibrar algumas lacunas flagrantes!).
Resultado: o inúmero de aulas semanais, apesar de insuficiente, é demasiado. Os alunos entram às 9 horas e raro saem antes das 17. Esta sobrecarga do horário agrava-se, porém, com as aulas do curso de dirigentes da M. P. F., a maioria das quais, por motivos que decerto nunca ninguém se deu ao trabalho de conhecer, são mera repetição de programa já dado na escola e, as mais das vezes, até pelo mesmo professor. Assim, por exemplo, as alunas - mestras têm a Música da escola, e a Música da M. P. F., a Moral da escala e a Moral da M. P. F.; os (professores são geralmente os mesmos e1 os programas da M. P. F. dizem textualmente: «Revisão do programa das Escolas do Magistério»! Isto seria ridículo se não fosse tão grave.
O horário, além da sobrecarga, complica-se por dois motivos principais:
a) Como a maioria dos professores tem a sua actividade principal no liceu, o horário da escola tem de conjugar-se com o liceal, sofrendo alterações sempre que aquele é modificado;
b) Como os alunos têm assistências e regências nas escolas primárias anexas, é preciso fazei- o milagre da conjugação de tempos lectivos de 40 minutos (os da escola primária) e com tempos de 50 minutos (a maioria dos da escola) e com tempos de 80 minutos (os de Desenho, Trabalhos Manuais e Educação Feminina). Na hipótese - aliás frequente - de o professor de Moral da escola ter também serviço docente no - seminário local, então o horário passa a ser um quebra-cabeças. cuja solução acaba sempre por prejudicar o aproveitamento dos alunos.
Sr. Presidente: por motivos pouco conhecidos, o número das escolas foi muito aumentado. Num país bastante pobre de vocações e, sobretudo, de verdadeiras dedicações, os cargos de muitas dessas escolas têm, aqui e além, de ser preenchidos por pessoal de competência nem sempre comprovada. Como, porém, dois lugares são efectivos, o que não permite substituição fácil nem barata, teremos num futuro próximo graves problemas que só poderão resolver-se com forte prejuízo do Tesouro Público.
De resto, muitas das escolas, por motivo do próprio exagero do número, estão mal alojadas; e nenhuma delas, com excepção talvez das de Lisboa, Porto e Braga, está sequer regularmente dotada de material ou de instalações. O ensino que se faz tem forçosamente de ser rotineiro, velho, talvez prejudicial. Um país onde o ensino é rotineiro acaba também, com o tempo, por se tornar um país rotineiro. Atalhar este perigo é tarefa bem mais meritória do que o empenho de servir os desejos e as vaidade» de certas câmaras e juntas de província que querem por força ter a sua «escolazinha» à porta... para valorizar o turismo local e nelas anichar os que só podem entrar pela porta do cavalo e nunca pelo concurso ou pela competência em qualquer serviço demonstrado.
Mas é evidente que 10 ou 15 más escolas ajudam muito menos a Nação do que apenas três ou quatro escolas modelares. Em questões de educação, pelo menos por enquanto, ainda a qualidade vale mais do que a quantidade. E, presentemente, ainda nenhuma das nossas escolas atingiu o nível que devia ter.
Enfim, há dezenas de outras deficiências de menor monta, pequenas questões de -pormenor, em que talvez não valha a pena tocar «por enquanto. Para quê falar já nos pormenores da decoração, se os «próprios fundamentos do edifício precisam ainda de ser reconstruídos?
Sr. Presidente: A instrução primária é «primária» por ser a primeira e é «primária» por ser primacial. Os seus problemas são os problemas mais importantes da Nação; a nossa cultura primária é, por enquanto, a nossa única cultura verdadeiramente real. Em face disto, não parece ousado afirmar que o problema de formação do professor primário não pode ser resolvido
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sobre o joelho: É o problema do verdadeiro formador da Nação. Precisa de ser estudado a fundo, muito a sério e por pessoas responsáveis.
Mas a reforma que se fizer não pode fazer-se em dois dias; são precisos estudos aturados e profundos. Só uma comissão de gente honesta e disposta a trabalhar afincadamente durante muitos meses «era capaz de fazer alguma coisa certa e definitiva. E essa comissão precisa de ter absoluta liberdade de trabalho; precisa de ter licença e fundos para se deslocar pelo País, precisa de escutar os directores das escolas, os directores dos distritos escolares, alguns professores e determinados alunos das escolas, os professores mais hábeis de cada distrito e os que, tendo saído há pouco das escolas, saibam dizer que deficiências a vida prática lhes fez notar na sua formação. A comissão deverá mesmo, se assim lhe parecer necessário, ter a liberdade de lançar inquéritos. Os relatórios publicados pelo Ministério da Educação da Inglaterra dão conta do trabalho primoroso de comissões desta natureza, compostas de mais de duas dezenas de pessoas; os gastos com inquéritos e com a obtenção do «testemunho» de todas as entidades e instituições, públicas e particulares, directa ou indirectamente interessadas no problema a estudar, ascendem, por vezes, a muito mais de uma centena de contos. Seria justo que a gente portuguesa imitasse da Inglaterra o que ela tem de proveitoso e útil.
Sr. Presidente: entendido assim que nenhum homem tem o direito de só por si, ditar a solução dos problemas das nossas escolas do magistério, as modificações que passo a propor têm o carácter de mero depoimento pessoal:
a) Os directores das escolas do magistério devem ser escolhidos pelo director geral do ensino primário (o qual, por sua vez, foi escolhido pelo Ministro) e devem continuar a exercer o cargo em comissão de serviço, para que essa comissão possa cessar em qualquer altura e sem qualquer contemplação, logo que se verifique que a escolha não foi boa;
b)0 director da escola deve ser inteiramente responsável pelo bom funcionamento do estabelecimento e, portanto, pela competência do seu pessoal; só poderá sê-lo, porém, se lhe for dada a liberdade de escolher à vontade os seus colaboradores, os quais, como é lógico, também devem ser chamados em comissão. Há toda a vantagem em recrutar os professores no professorado primário;
c) Para que a escolha possa ser feita em boas condições é preciso que a remuneração oferecida compense a deslocação dos professores que forem chamados a prestar serviço nas escolas. Os vencimentos terão, portanto, de ser remodelados, ou poderá optar-se também pelo regime das gratificações. O pessoal das escolas de aplicação, por exemplo, só poderá ser de 1.ª qualidade quando o director da escola puder oferecer boa remuneração aos melhores professores primários da região, aos quais, de outro modo, não conviria a deslocação das suas terras. Não faz sentido, por exemplo, que, enquanto é dada a gratificação de 100$ aos orientadores dos estagiários, não esteja prevista gratificação pelo menos igual para os professores das escolas de aplicação, que são responsáveis pela bem mais difícil, mais trabalhosa e mais longa orientação dos alunos - mestres;
d) Á escola pode talvez vegetar; mas o que não pode é viver de professores liceais emprestados, que, embora incompetentes no professorado primário, são às vezes regulares funcionários no ensino liceal, aonde têm de ser substituídos por contratados que... são contratados para preencher as vagas deixadas pelos técnicos. Urge remodelar o sistema da distribuição das disciplinas, no sentido de se lhe poder oferecer um quadro privativo de professores que lhe dediquem todo o seu tempo e toda a sua atenção. Só assim é que a escola pode adquirir uma personalidade, só assim é que se pode esperar dela que faça... escola. Porque é preciso que nos convençamos, de uma vez para sempre, de que uma escola que não está em condições de fazer escola é um organismo absolutamente inútil e, provavelmente, prejudicial;
e) O director da escola, o orientador geral da sua acção, o criador de estímulos, o verdadeiro motor ideológico do conjunto, o seu representante e o seu símbolo, não pode reger mais de uma disciplina (porque tem de ser mestre nela) e não deve ter por semana mais do que as seis horas de serviço docente que lhe dava em tempos o decreto n.º 22:369, de 30 de Março de 1933. Convém que a sua disciplina seja a Pedagogia, por ser esta a que lhe permite uma mais perfeita e mais directa orientação ideológica das novas camadas de professores e por ser ela também a que lhe dá possibilidade de criar nos alunos a ética profissional, que tanta falta vem fazendo em muitos sectores da vida nacional. E o programa de Pedagogia deve ser distribuído de tal modo que o director acompanhe os alunos do início ao fim do curso, em contacto constante com os seus problemas, em auscultação permanente dos seus progressos e... sempre com um dedo nas suas classificações;
f) Os diplomas legais devem deixar ao director e ao conselho escolar de cada escola uma larga margem de acção livre para que possam florescer as iniciativas de cada uma delas e para que a sua personalidade se forme ao longo de linhas não divergentes, mas também não necessariamente coincidentes. Os problemas da nossa escola primária variam de região para região; uniformizar a formação dos professores é enfraquecer a sua acção e despersonalizar as escolas. As actividades circum-escolares complementares devem poder exercer-se e estimular-se com toda a liberdade. Se for seguido um mau caminho, substitua-se imediatamente o director; mas enquanto não houver razão para se lhe retirar a confiança não se lhe afogue a iniciativa numa batalha inglória e interminável de papéis, de requerimentos e de licenças!;
g) Os exames de admissão estão muito longe de ser selectivos; o segundo ciclo liceal constitui habilitação suficiente para a entrada na escola. Os programas precisam de ser modificados; urge libertá-los do supérfluo, do demasiado teórico, do hipotético, do cientificamente duvidoso; urge acrescentar-lhes certos conhecimentos indispensáveis, como a Puericultura e a História da Educação Geral e Nacional e ainda as três disciplinas que .precisam de ser estudadas em função do ensino a ministrar na escola primária: Português, Aritmética o. Geometria e Geografia e História. È preciso atender às diferenças de actuação futura da professora e do professor e deixar uma margem para estudo de certos problemas característicos (económicos ou outros) da região em que o professor vai exercer. A feição prática do ensino precisa de tornar-se realidade. E indispensável fixar um novo plano de estudos;
h) E mister que se simplifique, se regulamente e se abrevie o serviço de exames. As classificações finais dos Exames de Estado têm de caber a um júri único;
i) O problema do estágio tem de ser estudado a sério ; tem de garantir-se uma maior ligação entre o estagiário e a escola e a orientação do estágio só deve entregar-se a professores realmente bons;
j) Redução das turmas ao máximo absoluto de 25 alunos - mestres e 25 alunas - mestras em duas turmas para seis escolas na metrópole, que serão suficientes para garantir o provimento das vagas que forem ocorrendo;
k) Aumento do período lectivo e, em compensação, redução do número de horas semanais obrigatórias; fixação de certo número de horas para actividade livre dos alunos;
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l) Atribuição do carácter de escolas experimentais às escolas de aplicação anexas;
m) Redução implacável do número de escolas e, em compensação, montagem modelar das que ficarem. É indispensável aparelhagem antropométrica e psicotécnica, epidiascópica, cinematográfica e radiofónica. As salas das diversas disciplinas têm de ser montadas em sistema laboratorial. Não podem faltar anfiteatros e oficinas para construção de material didáctico. Na biblioteca, que tem de ser ampla e rica, deve juntar-se o máximo possível de bibliografia, pedagógica portuguesa;
n) Havendo menos escolas, surge, evidentemente, o problema do aproveitamento de candidatos pobres, mas hábeis, que surjam em cidades onde não exista escola. A solução até agora adoptada tem sido a de criar uma escolazinha em cada uma dessas cidades, uma escolazinha necessariamente mal provida de pessoal, de edifício, de material... e de moral. Não parece a melhor solução... néon a anais barata, embora seja a que permite aos influentes locais a colocação de maior número de amigos. O dinheiro que as câmaras e as juntas de província desgastam com essas escolazinhas poderia, com muito mais proveito de nós todos, ser convertido em bolsas de estudo, que permitiriam pagar aos tais candidatos pobres e hábeis a frequência das escolas modelares. Os bolseiros teriam de ser escolhidos com muito critério, logo à saída do liceu e entre gente que não continuaria estudos se não lhe fosse dada a bolsa. Seria preciso garantir também que essas bolsas não fossem, como as de agora, pagas só depois dos meados do ano lectivo ...;
o) Seria preciso também definir, em termos concretos, as atribuições e a competência (incluindo a disciplinar) do director, do conselho escolar, do conselho administrativo, do conselho das escolas de aplicação, do secretário da escola, do secretário das escolas de aplicação, etc. Não faz sentido, por exemplo, que para a revelação de uma falta dada a mais por qualquer aluno seja preciso seguir requerimento e processo para o Ministro ...;
p) E do mais que, em pormenor, seria ainda preciso se poderá falar a seu tempo, se for julgado necessário.
Para já, a obra talvez anais importante seria acabar de vez com a inquietante superstição de que as escolas do magistério estão um furo acima das escolas primárias e dois furos abaixo do liceu ...
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Roqueiro a generalização do debate.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Está concedida a generalização do debate. Mas, como a hora vai adiantada, o debate continuará na sessão de amanhã, que terá a mesma ordem do dia.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 10 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
António de Sousa Madeira Pinto.
Diogo Pacheco de Amorim.
Jorge Botelho Moniz.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Manuel França Vigon.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Fausto de Almeida Frazão.
Fernão Couceiro da Costa.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Gabriel Maurício Teixeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Herculano Amorim Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
João Antunes Guimarães.
João Cerveira Pinto.
João de Espregueira da Rocha Paris.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria da Câmara Pina.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Mário Borges.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Querubim do Vale Guimarães.
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.
Teófilo Duarte.
Teotónio Machado Pires.
D. Virgínia Faria Gersão.
O REDACTOR - M. Ortigão Burnay.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA