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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 63
ANO DE 1946 12 DE DEZEMBRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.º 63, EM 11 DE DEZEMBRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 45 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foi aprovado, com emendas, o Diário das Sessões n.º 61. Deu-se conta do expediente.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Mário Madeira, que se referiu aos diversos aspectos do problema da habitação no momento actual, e Rocha Paris, que aludiu à necessidade de libertar o comércio do milho das numerosas peias criadas pela acção fiscalizadora.
Ordem do dia. - Prossegui a discussão, na generalidade, da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para o anode 1947.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Henrique Galvão, Mário Madeira e Carlos Borges.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 30 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Finto dos Reis Júnior.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
Álvaro Eugênio Neves da Fontoura.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António J adice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernão Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Indalêncio Froilano de Melo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Ameal.
João Antunes Guimarães.
João Cerveira Pinto.
João de Espregueira da Rocha Paris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
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José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquivei.
José Maria Braga da Cruz.
José Martins de Mira Galvão.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Nunes de Figueiredo.
José Penalva Franco Frazão.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Mendes de Matos.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama vau Zeller.
Mário Borges.
Mário de Figueiredo.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Spratley.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Teófilo Duarte.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 79 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 46 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário das Sessões n.º 61.
O Sr. Braga da Cruz: - Peço a palavra para apresentar a seguinte rectificação: a p. 52, col. 1.º, onde se lê: «20 por cento», deve ler-se: «2 por cento»; na mesma página, col. 2.a, onde se lê: «o estado», deve ler-se: f o estudo».
O Sr. Presidente: - Se mais nenhum dos Srs. Deputados deseja fazer uso da palavra sobre o Diário, considero-o aprovado, com as rectificações apresentadas.
Pausa.
Deu-se conta do seguinte
Expediente Exposição
Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Excelência. - Numerosas vezes tem a Associação Lisbonense de Proprietários representado aos poderes públicos no sentido de promover a revisão de certos problemas originados por uma legislação que, promulgada em determinadas circunstâncias, com um carácter manifestamente transitório e excepcional, se mostra perfeitamente incapaz de satisfazer novas exigências e de regular situações que o decurso do tempo profundamente alterou. Referimo-nos ao problema do inquilinato, em que ainda vigora um regime que, criado para acudir a necessidades julgadas imperiosas resultantes da anormalidade do período da primeira Grande Guerra, se mantém hoje como há cerca de vinte anos, como se de então para cá fossem as mesmas as condições do meio para que então se legislara.
A última guerra deixou vários legados dolorosos, e entre eles o do aumento do custo da vida em todos os países, e portanto no nosso como nos outros.
Este aumento de preço de todos os artigos indispensáveis à vida está, naturalmente, obrigando os governos a intervir na determinação desses preços, por forma a evitar que à sombra de uma alta, que cada dia mais só acentua, se pratiquem abusos indefensáveis, mas também sem desconhecer a fatalidade das causas que determinam esse movimento, e portanto sem pretender inutilmente anulá-lo.
O Governo Português tem seguido na regulamentação deste problema a única solução que as leis económicas e as experiências passadas lhe consentiam, procurando impedir todas as manobras da rarefacção de produtos, assim como os injustificados aumentos cios seus preços, mas sem deixar de acompanhar e de reconhecer a alta desses preços, aos quais tem fixado montantes bastante superiores aos que eram antes da guerra.
Assim tem feito o Governo para os produtos agrícolas e industriais, deixando sempre ao comércio de grosso o de retalho uma margem suficientemente remuneradora da sua actividade.
Pari passu e porque o Governo pensou que era comprar produtos mais caros era preciso ter maiores rendimentos, tratou-se de aumentar os salários das classes trabalhadoras e os vencimentos dos servidores do Estado.
Há uma classe porém - única entre todas - à qual não tem sido até hoje consentido o mais ligeiro aumento no preço dos serviços com que contribui para a vida económica da Nação. Essa classe é a dos proprietários urbanos.
Conforme já tem sido exposto em anteriores representações, não há razões de ordem jurídica, moral e económica que justifiquem ou sequer tornem compreensível este estado de isolamento e de desfavor de uma classe única no meio de todas as que formam, pelo seu conjunto, o agregado nacional.
Não as há de ordem jurídica, porque a lei leve ser igual para todos, e desde que se reconhece, e com razão, que é indispensável ir gradualmente ajustando a situação de todas as classes sociais às novas condições de vida legadas pela guerra a todos os países, não se explica que uma única classe seja exceptuada das medidas que se julga indispensável decretar para todas as outras.
Não as há de ordem moral, porque a classe dos proprietários urbanos deve merecer dos poderes públicos a mesma protecção que qualquer outra, tanto mais que representa um sector tão importante da economia nacional.
Não as há, finalmente, de ordem económica, porque aqueles que empregaram as suas economias na construção de prédios urbanos e prestam à colectividade um serviço tão necessário como os que empregam essas economias no amanho das terras ou nas fábricas de indústria, não se justificando, por isso, que a estes dois últimos empregos de capital seja prestada toda a assistência, procurando-se mercados internos e externos, emprestando-se capitais de giro e fixando-se preços remuneradores aos produtos, e que, em contrário, aos que produzem serviços de habitação não só se não concedeu nunca o mais pequeno auxílio, mas ainda seja a pró-
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priedade urbana sacrificada muitas vezes em favor de todas as outras classes de produtores e consumidores, fixando-se rendimentos sem paridade com as de todos os outros capitais, empurrando assim para uma situação difícil todos aqueles que dessa forma empregaram as suas economias.
Assim fizeram os Governos anteriores ao 28 de Maio, que, tendo reduzido o valor da nossa moeda a um vigésimo ou trigésimo do seu valor antigo, apenas permitiram, na lei n.º 1:662, de 4 de Setembro de 1924, que as rendas dos prédios de habitação fossem multiplicadas pelos coeficientes 6 a 7 e as das casas comerciais por 10 e 12, o que praticamente correspondeu a reduzir a uma pequena fracção o valor de todos os capitais investidos na propriedade urbana.
Quanto à actual situação política, conquanto de início se tivesse manifestado o propósito de o resolver pouco a pouco, começando-se por permitir, pelo decreto n.º 15:289, que as rendas de habitação fossem multiplicadas por 10 e as comerciais por 14, além de várias outras medidas tendentes à regularização futura de alguns outros problemas, deteve-se nesse caminho, suspendendo-se parte das medidas decretadas, não obstante as inúmeras representações que por parte desta Associação têm sido feitas.
Quando pela primeira vez se sentiu, entre 1925 e 1930, a angustiosa falta de casas na capital, a actual situação política não só garantiu, para futuro, a liberdade contratual, mas, para desviar os capitais para a construção urbana, .iniciou o sistema das isenções tributárias por largos períodos. A confiança nessa medida e ainda o incentivo do desaparecimento dos encargos fiscais deram realmente o resultado esperado e, em pouco menos de quinze anos, uma verdadeira nova cidade foi edificada.
Quando, porém, finda a segunda guerra mundial, a nossa moeda voltou a desvalorizar-se e houve a necessidade de intervir a fundo na fiscalização dos preços, adoptaram-se dois sistemas perfeitamente diferentes e, de certo modo, opostos: enquanto para os produtos da terra e da indústria e para o trabalho de todas as espécies se seguiu o sistema de ir consentindo ou concedendo pequenos e sucessivos aumentos, com o fim de ir adaptando gradualmente o preço de todas essas mercadorias à crescente desvalorização do meio circulante, procurando evitar abusos, mas sem desconhecer o facto indiscutível da redução do poder de compra da moeda e portanto da subida de preços, para a mercadoria «serviços de inquilinato», abrangendo rendas de habitação e de comércio, adaptou-se o sistema radical de as fixar no que eram anteriormente, e já nessa altura seus quantitativos estavam limitados por imposições legais, sem se lhes conceder o mais pequeno aumento, criando-se assim no meio da vida económica da nação um sector estanque, ao qual se proibiu ir-se pouco a pouco adaptando às novas condições da vida, como se estas não afectassem por igual os que empregavam os seus capitais na agricultura, na indústria e no comércio e os que os em pregavam na construção das propriedades urbanas.
Esta é, em rápidas linhas, a situação em que se encontra a propriedade urbana, em face das modificações que a última guerra trouxe à vida económica nacional.
Mas, se por um lado se mantém a imposição de limites às rendas de prédios urbanos, limites para os quais se não entrou em linha de conta com as novas condições económicas, visto que são anteriores a estas, por outro lado não foi possível impedir o agravamento de todos os encargos que oneram a propriedade, o que significa que o proprietário nem sequer mantém nominalmente o mesmo rendimento dos seus prédios que lhe era consentido em 1928.
À mesma renda recebida tem de reduzir agora um maior quantitativo para despesas de conservação, etc. Desta forma, o seu rendimento líquido em escudos é inferior ao que então recebia.
Não é só no que respeita à fixação dos quantitativos das rendas dos prédios urbanos que o problema do inquilinato carece de ser considerado.
Há, na verdade, aspectos impressionantes, que criam manifestamente ao proprietário urbano uma situação de inferioridade, impondo limitação ao seu direito de proprietário, que, se não podem de momento ser totalmente banidos, necessitam quanto antes de modificações que pouco a pouco encaminhem para uma normalização do exercício do direito de propriedade.
Com a presente representação tem-se em vista pôr em evidência, mais uma vez, a necessidade de encarar do frente o problema.
Para isso, e sem querer alongar demasiadamente estas considerações, não pode a Associarão Lisbonense de Proprietários deixar de referir algumas situações especiais, que, entre tantas outras, necessitam de ser regulamentadas, parecendo que devem ser encaradas logo que os poderes públicos decidam modificar o injusto regime de inquilinato actualmente vigente.
A título meramente exemplificativo se enumeram os seguintes casos:
a) Enquanto muitos proprietários se vêem forçados a suportar uma vida de privações e a assistir, impotentes, à desvalorização dos seus bens, a cuja conservação dificilmente podem acudir, grande parte dos inquilinos, achando pequeno o benefício de pagarem uma renda irrisória, exploram nas casas arrendadas a lucrativa indústria de hospedagem, cobrando dos hóspedes, à fusta do que lhes não pertence, quantias exorbitantes. Os inquilinos desses prédios bem pódem considerar-se co-usufrutuários deles, pois que em seu poder fica uma apreciável parcela do rendimento que, em boa razão, ao proprietário deveria caber.
A sublocação das casas constitui um dos problemas mais agudos do inquilinato, qualquer que seja o aspecto por que se encare.
Além do aspecto de ordem social revelado pelos brados clamorosos que contra a desenfreada especulação dos sublocadores levanta a parte da população dos centros urbanos que se aloja em partes de casas, são ainda de considerar com toda a atenção os seus aspectos moral e material.
E, com efeito, incompreensível que, por deficiência da lei, senão à sombra das suas disposições defeituosas, e possam os inquilinos negociar com as casas que lhes não pertencem nem foram arrendadas para esse fim, exercendo nelas clandestinamente uma indústria altamente lucrativa e em que, na mira de tornarem um negócio mais lucrativo, nem têm em conta a capacidade de alojamento da casa, admitindo hóspedes até ao último palmo quadrado de chão livre.
Daqui resultam, como é óbvio, consideráveis prejuízos no imóvel, a cuja reparação as autoridades camarárias ou sanitárias obrigam o senhorio, a requerimento do próprio inquilino que lhes deu causa.
E certo que a lei admite a sublocação como fundamento de despejo. Mas como a sublocação é uma figura jurídica, com contornos definidos e requisitos certos e determinados, acontece que raras vezes o senhorio consegue provar perante os tribunais todos os elementos que as constituem.
Acresce que a lei estabeleceu a favor do inquilinato a prescrição do direito de intentar o despejo com fundamento na sublocação caso se prove que o senhorio dela tenha conhecimento há mais de seis meses.
E assim escapam à acção dos tribunais, pela dificuldade de prova de todos os elementos que constituem a
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sublocação e pela possibilidade de provar a prescrição, quase todos os inquilinos que por qualquer forma negoceiam com a casa que arrendaram, embora o façam transgredindo o contrato de arrendamento.
Impõe-se que, além do contrato de sublocação o si constituir fundamento de despejo, todo o qualquer contrato que o inquilino faça, com quem quer que seja, que envolva alojamento remunerado.
b) O problema dos traspasses carece de ser modificado, por forma a evitar a continuação dos abusos que diariamente se vêm verificando.
Para fugir à actualização de rendas, que em casos de traspasses pode ter lugar, e às imposições fiscais, dissimulam-se os traspasses sob a forma de cedência de quotas, quer nas sociedades por quotas, quer nas sociedades em nome colectivo.
Adoptando-se, como se adopta, com larga frequência estes expedientes, são manifestos os prejuízos que disso resultam para o Estado e para o proprietário urbano.
c) Outro aspecto que importa modificar é o que coloca os prédios destinados a habitação como que em regime de enfiteuse perpétua.
Por força de lei, o direito ao arrendamento, por morto do arrendatário, transmite-se aos herdeiros legitimários, com excepção apenas dos que não tenham coabitado com ele nos últimos seis meses.
Daqui resulta que no direito ao arrendamento se sucedem tantos inquilinos quantas forem as gerações que provenham do inquilino originário. O arrendamento transmite-se assim ad perpetuum, permanecendo inalteráveis as suas condições.
Isto garante, sem dúvida, a estabilidade do lar; mas garante também, à custa do senhorio, um aumento do património do inquilino, que deixa aos seus herdeiros a diferença que vai da renda que a casa produz para a que devia produzir.
Para garantia do lar à custa do senhorio são já suficientes as demais restrições à liberdade contratual. A. transmissão do direito ao arrendamento ad perpetuum ultrapassa a medida da justa protecção à família.
d) Constituindo as disposições que regem a matéria do inquilinato medidas de excepção e de protecção ao inquilinato, em detrimento dos interesses do senhorio, devia ter-se adoptado, em relação aos estrangeiros, o regime de reciprocidade.
Na verdade, se circunstâncias de emergência podem impor ou aconselhar temporariamente o sacrifício dos interesses de uma classe de indivíduos, em benefício de outra classe, é de elementar justiça que aquele sacrifício reverta apenas a favor de portugueses, visto que são portugueses os que o suportam, salvo quando se verifique a reciprocidade.
e) Importa acelerar a marcha dos processos judiciais de despejo, designadamente quando fundados em falta de pagamento de rendas, e revogar o preceito do Código das Custas Judiciais que torna dependente do pagamento das custas em que o inquilino tenha sido condenado a execução de sentença que tenha decretado o despejo.
Esta disposição significa que quando o inquilino não efectua o pagamento das custas em que foi condenado, por ter sido vencido na acção, terá o senhorio, se quiser executar a sentença, de pagar as custas do processo em que não foi condenado, juntando assim ao prejuízo das rendas que não recebeu o encargo das custas.
Também não é razoável manter a favor do inquilino um regime de privilégio em matéria de recursos, pois que, ao passo que o inquilino pode sempre recorrer até ao Supremo Tribunal de Justiça da sentença que lhe for desfavorável em processo de despejo, o senhorio só o poderá fazer se o valor do processo o permitir.
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Nacional: o problema do inquilinato vem sendo debatido na imprensa, foi recentemente ventilado em sessão da Câmara Municipal de Lisboa, tendo sido observado com grande elevação por alguns Srs. Deputados na Assembleia Nacional na anterior legislatura.
Dada a justiça das aspirações contidas na presente reapresentação, onde se faz apenas a reedição do que em anteriores exposições se afirmou, e dada a publicidade que estes assuntos têm tido nos últimos tempos, pode afirmar-se que a opinião pública, reconhecendo a justiça e a oportunidade das reivindicações expostas, está preparada para aceitar de boamente as modificações ao regime de inquilinato que as circunstancias impõem.
A acrescentar à delicada situação em que se encontra a, propriedade urbana, surge agora a lei de autorização de receitas e despesas para o ano de 1947 (lei de meios), em cujo artigo 5.º, § J.º, se estabelece que o valor dos prédios urbanos para efeitos de liquidação de sisa ou do imposto sobre sucessões ou doações será o da matriz, acrescido da percentagem de 20 por cento.
Isto significa que nas transacções sobre prédios urbanos, quer por título gratuito, quer por título oneroso, a respectiva contribuição é agora agravada de 20 por cento, o que mais vem contribuir para a desvalorização da propriedade.
Esta nova circunstância, a somar à s anteriormente referidas, mais vem pôr em evidência a oportunidade do se procurar uma solução, ainda que temporária, para o problema do inquilinato.
A Associação Lisbonense de Proprietários vem perante V. Ex.ª, como digno Presidente da Assembleia Nacional, e perante os Srs. Deputados da Nação, como o foi perante o Governo, na pessoa do seu ilustre Presidente, pedir para o problema que expõe a solução urgente que ele reclama. Hoje a solução é ainda fácil. Se se deixar correr o tempo, a solução tornar-se-á muito mais difícil.
A Associação Lisbonense de Proprietários não pede que se decrete desde já a liberdade de rendas, pois bem compreende que, estando os principais produtos e serviços consumíveis sujeitos a tabelamento, não há razão para que as rendas urbanas o não estejam também. Mas pretende que esse tabelamento, como vem sucedendo para os outros produtos e serviços, e em face dos números-índices oficiais, seja ajustado à depreciação do valor aquisitivo da moeda e se estabeleça o princípio de que, de futuro, se deslocará, em períodos a fixar, com as flutuações desse valor.
Se, mercê da alta competência do Governo da Nação e das circunstâncias económicas, for possível reconduzir a situação económica e financeira da Nação ao ponto de equilíbrio a que os poderes públicos conseguiram levá-la antes da guerra, não haveria mal em restabelecer a liberdade contratual para as casas que então viviam nesse regime, estabelecendo-se uma escala de aumentos graduais de renda para as que já então estavam fora do regime da liberdade contratual.
Se, porém, se tornar impossível, pelo menos por algum tempo, o restabelecimento do equilíbrio antigo e até, possivelmente, tiver de aceitar-se um agravamento da situação actual, parece à Associação Lisbonense de Proprietários de mais elementar justiça que se integre a propriedade urbana dentro das condições do nosso equilíbrio económico, suprimindo a actual imobilidade das rendas e tabelando-as, como se faz aos principais produtos e serviços, de acordo com as flutuações do poder aquisitivo da moeda, determinadas pelas tabelas oficiais dos números-índices.
A bem da Nação. - O Presidente da Direcção, Visconde de Santarém.
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O Sr. Presidente: - Vou mandar publicar no Diário a representação que acaba de sor lida. Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Madeira.
O Sr. Mário Madeira: - Sr. Presidente: vou falar num assunto do que já me ocupei duas vezes na última sessão.
Que me sirva de atenuante o hábito de ser breve, que não esqueço, mesmo para aqueles que considerem que a grande e indiscutível importância do tema não basta para me absolver da insistência. Trata-se do problema da crise de habitação, e aproveito esta oportunidade para pedir a V. Ex.ª o favor do insistir janto dos poderes públicos para que me sejam fornecidos alguns elementos que pedi na sessão de 21 de Março, sobretudo aqueles a fornecer pelas Câmaras Municipais do Lisboa, Porto e Setúbal, sem os quais não posso tratar, como me proponho, o problema com a amplitude devida.
Entretanto o que vi foi o interesse com que a imprensa portuguesa tratou o assunto e apraz-me salientar a campanha do Diário Popular, que bastas vezes se lho tem referido.
Sei que o problema não é local, não é só nacional é mais do que europeu, visto nos Estados Unidos da América do Norte e no Canadá, como há pouco tive ocasião do ver, se procura, sem se encontrar, uma solução rápida e completa.
Manda a verdade que se diga que não estou convencido, estou mesmo muito longe de estar convencido, de que em Portugal se tenha chegado à enérgica coordenação de esforços que as circunstâncias exigem.
Como já disse, reservo-me para, quando venham os elementos pedidos, tratar o assunto com maior largueza e amplitude, isto é, como eu entendo que ele deve ser tratado nesta Câmara.
Neste momento, Sr. Presidente, quero apenas referir-me ao aspecto que todos nós conhecemos, nós, os que vivemos as épocas longínquas do outros tempos de vida normal.
Havia então muitos escritos nesta época do ano, assim como no mês de Junho.
Ainda hoje se voem alguns escritos nesta cidade de Lisboa, mas é apenas naqueles prédios de rendas caras e construção sumptuosa, rendas que muito poucas pessoas podem pagar, sendo mistério inexplicável como eles desaparecem rapidamente. Mas, se não há outras casas com escritos, quer isto dizer que não haja mudanças nem casas que mudam de inquilino? Nós sabemos que há e sabemos também as circunstâncias e condições em que se sublocam habitações, e é contra esse estado de coisas que eu quero protestar.
Tenho elementos que confirmam a existência generalizada duma especulação odiosa que hoje se faz na cidade. São factos que cabem na alçada da lei civil, e, pelas suas circunstâncias especiais, cabem também na alçada da lei penal.
Existem desde há muitos anos garantias de inquilinato. Essas garantias, simplesmente pela circunstância de se habitar numa casa há muitos anos, permitem pagar uma renda que está muito longe do valor actual do prédio; trata-se de um direito próprio, a usufruir, mas não é nem pode ser um direito negociável.
Eu entendo que a primeira fase do que há a fazer para reprimir esses abusos seria a suspensão da cláusula da livre sublocação. Ela foi criada com uma ideia e um conteúdo diferentes dos de hoje.
Quando antigamente, antes da actual crise de habitação, um inquilino firmava no arrendamento a cláusula da livre sublocação, era para um fim bem diferente daquele para que hoje se desvia e utiliza.
Era até certo ponto feito no interesse do senhorio, assegurando-lhe a continuidade do aluguer.
Hoje, essa cláusula não pode nem deve manter-se de forma nenhuma, sob pena de continuar a ser possível o que ainda há dias alguém ouviu ao perguntar pelo telefone o preço da renda do uma casa que se anunciava estar livre: «de facto a casa aluga-se, mas, antes de mais nada, V. Ex.ª está disposto a dar 70 contos de traspasso?».
E quem diz 70, diz 50, 40 ou 30, ou mesmo 5 contos, nos casos ainda mais revoltantes em que se especula com um miserável tugúrio onde pretenda alojar-se uma família desafortunada.
É isto o que correntemente se passa, sem qualquer espécie de repressão.
Diz-se até, em muitos casos, não sei só com verdade se com mentira, que estas indemnizações se pedem de acordo com os próprios senhorios, o que não diminui nem agrava a responsabilidade, apenas significando a existência de mais um réu conivente.
Um outro problema de momento, problema que pode também imediata solução, é o da sublocação das partes de casas.
Há inquilinos que estão em casas de rendas antigas e que as sublocam em partes o em condições de verdadeira exploração, não possuindo quem a elas se sujeita as mínimas condições de higiene ou de conforto, não tendo garantias algumas, nem a mais pequena espécie de defesa legal.
Evidentemente, estamos perante um direito a que nunca se quis dar esta projecção e que nunca se pensou alguém pudesse utilizar desta forma.
Parece-me que em face de tudo isto se impõe, em casos destes, a intervenção do Governo, o V. Ex.ªs sabem que nunca fui partidário do excessivo intervencionismo do Estado. Em muitos casos dessa inoportuna intervenção resultam apenas embaraços para os que se lho sujeitam inteiramente, no exercício dos seus legítimos direitos, criando-se uma situação artificial, do que só aproveitam os menos escrupulosos, que pescam nas águas turvas das perturbações artificialmente criadas.
Mas parece-me que nestes casos se impõe uma acção do Estado dentro da sua função de mera polícia moralizadora, que não lhe é negada nem pelos liberalistas mais convictos.
Vejo que se perseguem, e bem, aqueles que especulam com géneros do primeira necessidade; perseguem-se u condenam-se mesmo aqueles que põem de parte um pouco das suas parcas disponibilidades para as venderem em melhores condições, a fim de conseguirem comprar um pouco mais de pão para os seus filhos. E eu pergunto se não é mais condenável e se não é mais odioso este «mercado negro» dos traspasses, em que se negoceiam bens de o u trem, valorizados pela miséria alheia.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Rocha Paris: - Sr. Presidente: no seu magnífico discurso pronunciado por ocasião do encerramento da 1.ª Conferência da União Nacional, que com tão grande brilhantismo se realizou ultimamente, o Sr. Dr. Marcelo Caetano, ilustre Ministro das Colónias, disse:
Nota-se em Portugal, como em toda a parte, o cansaço da excessiva intervenção do Estado, que as necessidades da guerra impuseram na vida económica.
O Pais desejaria ver-se livre dos manifestos, das requisições, dos racionamentos, dos contingentes, dos condicionamentos, das guias de trânsito, do tudo isso que não é consequência necessária e lógica da organização corporativa, mas com que ela teve de
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arcar no momento em que assim o exigiram os imperativos do interesse nacional.
E compreende-se perfeitamente esse anseio do País, o que é, aliás, hoje em dia, o mesmo anseio manifestado noutros países-na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra.
Com estas frases lapidares, e que tão bem focam o problema que nos aflige, concordam, sem dúvida, todos os que reconhecem que é necessário o sacrifício dos particulares em favor do bem colectivo.
Logo em seguida o Dr. Marcelo Caetano afirmou:
Compreende-se, pois, que tal seja o estado de opinião.
E, se os homens que estão no Governo pudessem pôr em prática aquilo que mais do fundo da alma lhes apetecia, estou convencido de que não deixariam de satisfazer as reclamações públicas, restituindo ao regime do liberdade largos sectores da vida económica.
Quer-me parecer, sinceramente, Sr. Presidente, que chegou o momento de o Governo poder libertar das peias e restrições que tanto o têm afligido um dos sectores mais importantes da produção do norte do País.
Refiro-me à produção do milho na região de Entro Douro e Minho.
Como é do conhecimento geral, a colheita de milho do corrente ano foi excepcionalmente grande.
Posso afirmar a V. Ex.ª, Sr. Presidente, não com o apoio de dados estatísticos, que não possuo, mas com o depoimento insuspeito de amigos lavradores da região, que há muitos anos não tínhamos uma colheita tão abundante deste precioso cereal, que no Norte constitui um dos mais usados produtos alimentares, sem o qual a economia dos casais agrícolas dificilmente se poderá manter.
E, sendo assim, parece-me lógico e naturalmente indicado que, embora a título provisório, se restitua a liberdade a esse importante sector da vida económica do País, acabando no presente ano agrícola com as capitações, restrições, etc., que até hoje o tom dominado e por vezes humilhado.
Ao produtor de milho das regiões em que se acentuou a abundância seria então dada a faculdade de poder gastar na alimentação dos seus as quantidades que julgar indispensáveis, dispondo livremente do que lhe sobrar, podendo assim ficar abundantemente abastecidas as feiras e mercados onde tradicionalmente os consumidores rurais costumavam abastecer-se.
E se, por infelicidade, no próximo ano agrícola a colheita de milho fosse fraca, então o Governo poderia regressar ao sistema de restrições, que seria aceite com voluntário acatamento pelos produtores de milho, pois estou plenamente convencido de que estes seriam os primeiros a reconhecer que o Governo lhes dispensava um tratamento em harmonia com as circunstâncias do momento.
O Sr. Melo Machado: - V. Ex.ª dá-me licença? Há ainda um outro aspecto. Como o milho na sua maior parte foi apanhado em condições precárias, se não se lhe der rápido consumo acabará por não aproveitar a ninguém, porque apodrecerá.
O Orador: - Terminava portanto esse sistema injusto a que me referi na sessão do 25 de Maio de 1945:
a) Produção deficitária de milho - capitações baixas, mas justas, dificuldades enormes na criação dos gados;
b) Produção abundante de milho - capitações ainda restritas e portanto injustas, continuando assim as dificuldades na alimentação dos gados.
Ora, Sr. Presidente, a colheita deste ano excepcional consente, a meu ver, como já disse, libertar o lavrador das dificuldades que tanto o têm afligido, permitindo-lho que volto a dispor livremente do seu milho não só para o sustento das suas famílias, mas também para a alimentação dos seus gados.
E este último aspecto não deve ser indiferente ao Governo, pois quanto maior for o número de cabeças de gado que o lavrador puder criar e engordar mais abundante será a produção de carne e de gorduras.
São estas ligeiras mas sinceras observações que apresento à consideração do Governo, num momento em que se apresenta o problema do milho com um dos aspectos mais favoráveis dos últimos anos, que permitirá, sem restrições, o abastecimento normal do País não só em relação aos que dele necessitam para os gastos das suas casas e lavouras, mas também ao Governo, que, actuando directamente no mercado livre do milho, onde poderá efectuar as compras das quantidades de que precisar para suprir em parte as deficiências da produção de trigo, exercerá assim a função reguladora do preço de venda do milho, que não convém deixar baixar a limites ruinosos para a lavoura.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continua em discussão a proposta de lei de autorização de receitas e despesas. Tem a palavra o Sr. Deputado Henrique Galvão.
O Sr. Henrique Galvão: - Sr. Presidente: no período legislativo passado raras vezes aconteceu algum orador proferir palavras de crítica em matéria delicada ou que se supôs delicada, sem fazer precoder o seu exórdio de explicações quanto à sua posição e intenções. Dado o credo político confessado, afirmado e publicamente reconhecido de todos os Deputados eleitos para esta legislatura, pareceu-me, por vezes, redundante e inútil essa preocupação de explicar o que estava por natureza explicado. Mas, dada a repetição e insistência, aceitei o facto como praxe instalada ou a instalar.
E só em atenção o obediência ao que parece ter sido consagrado como praxe - mais do que como lembrança de incidente levantado em torno de certa questão que o ano passado trouxe à Assembleia- me permito prefaciar o meu arrazoado com algumas palavras breves de explicação.
Tenho alguns reparos a fazer à proposta de lei do meios. Não admitem suspeitas nem explorações políticas de espécie alguma. E por duas razões: conforme a primeira, só trago propósitos construtivos de colaboração - e, não sendo homem de conluios, de combinações, nem sequer de ambições políticas (o que julgo ter repetidamente demonstrado na forma como comprometo, perante certas sensibilidades políticas, que, aliás, não entendo, as minhas conveniências pessoais), não me encontro senão perante obrigações que o meu mandato me impõe; conforme a segunda razão, porque as minhas palavras, a minha crítica, caberão folgadamente, à vontade, dentro dos limites perfeitamente marcados na exortação final do brilhante discurso pronunciado pelo Sr. Presidente do Conselho o mês passado. Reproduzo-a: «Sejamos largos de pensamento e aceitemos as correcções e desenvolvimentos que o regime comporta sem se negar; intensifiquemos a aplicação dos princípios, que só parcialmente têm sido aplicados quanto à organização e ré-
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presentação directa no Estado dos interesses da Nação; continuemos de braços abertos para a colaboração de todos os que, de coração isento, desejem apenas trabalhar para o bem comum».
Estas palavras claríssimas só têm um sentido.
As minhas não terão outro.
Sr. Presidente: nada tenho a objectar nem a opor às disposições da proposta de lei de meios. Os meus reparos referem-se à matéria omissa neste documento e que julgo deveria, por princípio, necessidade e emergência, ter nele o seu lugar.
Como dizia o ano passado, ao ocupar-se também da lei de meios, o nosso ilustre colega Dr. Pacheco de Amorim, «não é o que a proposta em discussão contém que me merece reparos, mas o que ela cala».
Sr. Presidente: conforme dispõe o Acto Colonial - reflectindo, aliás, não só uma ideia fundamental, mas também um sentimento secular do País -, «É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam».
E, afirmando a solidariedade entre as partes componentes do Império Colonial e a metrópole, estabelece o mesmo diploma constitucional que esta solidariedade «abrange especialmente a obrigação de contribuir pela forma adequada para que sejam assegurados os fins de todos os seus membros e a integridade e defesa da Nação».
Estes princípios, que, perante a nossa História e o sentido dos nossos destinos, podemos classificar de sagrados, envolvem naturalmente responsabilidades materiais, morais e políticas indeclináveis.
Referir-me-ei, por agora, apenas às responsabilidades materiais que resultam do facto histórico e político de «possuirmos e devermos colonizar domínios ultramarinos e civilizar as populações indígenas que neles se compreendam».
A proposta de lei em discussão oferece, demais, a melhor das oportunidades para examinar não só a posição em que nos encontramos perante as responsabilidades que assumimos, mas também para, com «largueza de pensamento» meditarmos sobre «as correcções e desenvolvimentos» que neste capítulo fundamental da política do País e do regime este tem de considerar sem correr o risco de «se negar».
Tentarei não ser retórico; isto é: tentarei falar útil.
Sr. Presidente: a proposta de lei de meios ainda este ano é omissa acerca de certos meios que as circunstâncias - digamos as realidades- mostram tornar-se indispensáveis ao estabelecimento de uma perfeita conformidade entre os princípios constitucionais que acabo de citar e os factos da sua aplicação. Quer dizer: não será ainda durante o ano de 1947, se a proposta for aprovada sem alterações, que se considerarão, praticamente, certas responsabilidades financeiras que a empresa colonial impõe à metrópole - especialmente vivas nesta época que estamos atravessando e entendidas não sómente pela consciência da Nação mas também pela própria lei.
Não me proponho, por mais que a oportunidade me seduza, agitar aqui a velha querela doutrinária que há una século pretende, ingloriamente, traçar uma linha divisória definida entre deveres e direitos das metrópoles e colónias em matéria financeira. E a discussão eclodiu, por assim dizer, entre os economistas, enciclopedistas e fisiocratas do século XVIII - e continuará, sem dúvida, ainda no próximo século, alimentada pelo desentendimento eterno entre os extremismos de um espírito metropolitano que não sente a questão colonial, mesmo quando alcança compreendê-la em linhas gerais, e um espírito colonial que não sente as limitações necessárias ao próprio êxito da empresa colonial. Quer dizer: as metrópoles, influenciadas ainda pela era do Pacto Colonial, pretenderão sempre reduzir os encargos das suas responsabilidades efectivas, sem quebra ou enfraquecimento de nenhum dos seus direitos de soberania e vantagens inerentes as colónias exigirão sempre das metrópoles mais encargos e mais liberdade de acção.
Não pretendo agitar uma vez mais esta questão, porque pretendo ser mais realista. Passo assim, sem me deter, sobre doutrinas que não se entendem -e que aqui continuariam a não se entender -, e dirijo-me directamente a factos, a realidades, que, na sua força e nas suas tendências, decidem das doutrinas aplicáveis, como não o decidiram, nem possivelmente decidirão, os debates académicos.
Os factos, as realidades, conforme a ordem que melhor permite avaliar das suas relações e consequências, são os seguintes:
Ordinariamente a metrópole - digamos o contribuinte metropolitano - paga, como encargos da glória, prestígio e proveito que as colónias prodigamente lhe dão, somadas todas as despesas, importância que se cifra à volta de 22:000 contos -isto é, pouco mais do que as despesas da administração central do Ministério das Colónias.
Realmente as despesas ordinárias liquidadas por este Ministério nos dezoito anos económicos últimos (de 1928-1929 a 1945), conforme o mapa da despesa ordinária que acompanha o parecer da Câmara Corporativa, somam 389:010 contos, o que realiza a média anual de 21:611 contos.
A média não se eleva além de 25:000 contos se juntarmos às despesas ordinárias as despesas extraordinárias liquidadas durante o mesmo período, incluídas as derivadas da guerra.
Podemos, pois, dizer, sem erro muito sensível, que as colónias têm custado ao contribuinte metropolitano, durante os últimos vinte anos, cerca de 25:000 contos, ou seja uma centésima parte das despesas ordinárias do Orçamento Geral do Estado e aproximadamente 1/130 do total das despesas ordinárias e extraordinárias.
É o mais barato de todos os Ministérios, e, em relação a todos os mais encargos que suporta, bem pode dizer-se insignificante para o contribuinte metropolitano a despesa que faz com o sen Império Colonial.
O director honorário dos negócios políticos do Ministério das Colónias da França queixava-se em 1938, na sua Histoire des Finances Coloniales de La France, de a metrópole não gastar com as colónias senão a sexagésima parte da importância do sen orçamento de despesas ordinárias.
Vejamos o que por muito menos (cerca de 25:000 contos por ano) recebe a metrópole portuguesa - digamos ainda o contribuinte metropolitano - das colónias; só uma parte do que recebe, pois não entro em linha de conta com o acréscimo de potência política e de influência moral que resulta espontaneamente do facto de possuirmos colónias, e que, sendo da ordem do incalculável, excede incomensuràvelmente uma ninharia de 25:000 contos.
Apenas algumas epígrafes ou rubricas, rapidamente anotadas - as necessárias para alcançar o plano demonstrativo a que pretendo chegar, sem alongar inutilmente esta exposição.
No comércio com as colónias verifica-se que importámos das colónias (números de 1945) 18,72 por cento da importação total da metrópole, no valor de 759:000 contos, e que exportámos para as colónias 23,72 por cento da nossa exportação total, no valor de 768:000 contos, o que dá entre as importações e exportações (independentemente dos benefícios colhidos com a importância
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bruta destas operações) um saldo a favor da metrópole de 9:000 contos em 1945.
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Por sua vez as colónias (exceptuadas Macau e Timor, que a guerra colocou em situação especialíssima) exportaram para a metrópole 43,7 por cento da sua exportação total e importaram da metrópole 47 por cento da sua importação total.
Valores em contos
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É possível que em tempos normais a metrópole possa adquirir, com mais ou menos vantagens, em mercados estranhos os produtos que importa das colónias, embora sempre com prejuízo para a economia do conjunto. Mas já não parece tão possível que conseguisse colocar em mercados estrangeiros os 768:000 contos do mercadorias que colocou em 1945 nas colónias.
E desta possibilidade que as colónias dão como mercado aos produtos portugueses resultam benefícios económicos para o contribuinte metropolitano, e em que as finanças da metrópole colhem importâncias bem superiores aos 25:000 contos que cedem ao capítulo colónias.
Se juntarmos a este lucro financeiro, já muito razoável, os que se lhe somam provenientes do concurso das colónias para a economia metropolitana e de importâncias directamente arrecadadas pelo Tesouro, verificaremos, na ordem de coisas materiais em que situei a questão, que a empresa colonial é altamente lucrativa para a metrópole - para as suas finanças e para os seus contribuintes.
O pessimismo de Oliveira Martins não tinha razão de ser. O político e o economista enganaram-se redondamente.
Refiro, ao acaso, algumas fontes abundantes de receita, umas directa, outras indirectamente tributárias do Tesouro metropolitano: contribuições, impostos e participação de lucros em empresas que, tendo a sede em Lisboa, exercem as suas actividades nas colónias. São numerosas. Um dos nossos vícios consiste exactamente em administrar de Lisboa, do seio de numerosos conselhos de administração, empresas coloniais. Não me foi possível estimar a importância desta receita, mas não tenho dúvidas de que excederá de longe os 25:000 contos que a metrópole gasta com a empresa colonial.
Só o Banco de Angola, de que o Estado é o principal e quase exclusivo accionista, realizou no espaço de dez anos (1936 a 1945) 95:593 contos de lucros líquidos - mais de 9:000 contos por ano. Destes lucros distribuíram-se dividendos no valor da 28:500 contos.
E, enquanto a colónia que assegurou ao Banco tais lucros nunca recebeu mais que os 1:000 contos anuais que por lei lhe foram atribuídos pelo privilégio - da emissão, o Tesouro metropolitano recebia como accionista do Banco mais do dobro.
Consideremos mais que o saldo de transferências entre a metrópole e as colónias é francamente favorável à metrópole. Só Angola transferiu para a metrópole durante o ano de 1945 437:800 contos (números redondos), contra 349:800 contos que a metrópole transferiu para Angola.
Quer dizer: esta colónia, em plena fase de crescimento, ávida de capitais, tão necessários ao seu desenvolvimento, e tão prometedora para investimentos sérios e estudados, no momento em que a metrópole, pletórica de dinheiro, sofre os males da inflação exporta mais dinheiro para a metrópole do que a metrópole exporta para Angola!
Não é lícito supor que o Tesouro e os contribuintes metropolitanos não realizem benefícios financeiros com tal movimentação de fundos.
Consideremos também que há cerca de 100:000 brancos trabalhando nas colónias, descongestionando, por consequência, desta importantíssima quantidade as dificuldades que o excesso de população na metrópole principia a criar e tornando-se precioso ponto de apoio para a formação de futuras correntes do emigração portuguesa para a África, circunstância que, embora muito indirectamente, também não é indiferente nem ao contribuinte nem ao Tesouro metropolitano.
Consideremos ainda todos os lucros - podia dizer fabulosos - que se têm realizado nos últimos anos na metrópole à custa da política de preços imposta às colónias quanto aos contingentes de produtos que estas têm de destinar ao abastecimento da metrópole, sacrifício este que nem sequer aproveita ao consumidor metropolitano, pois, como se sabe, o melhor da diferença entre os preços injustamente fixados ao produtor colonial - e irrisórios perante os que ele podia obter noutros mercados - o os preços de retalho na metrópole, sempre elevadíssimos, reverte a favor de uma multidão de intermediários e do Estado.
Tratarei esta questão na Câmara noutra oportunidade. Anotemos só, por agora, que as finanças da metrópole o os contribuintes metropolitanos participam largamente destes lucros.
Consideremos o volume de receitas com que contribuem para o Estado indústrias ou actividades cuja existência é próspera e seria mais do que precária se lhes faltassem os mercados coloniais. Nomeadamente as indústrias de tecidos (que continuam impunemente a devolver às colónias, em obra, a 107&20 cada quilograma o algodão que de lá recebem em fibra a 9$75), a agricultura e o comércio vinícola, as indústrias metalúrgicas, os cimentos e pozolanas, o calçado, etc.
Finalmente, para não alongar demasiadamente o arrazoado, consideremos quanto as colónias contribuíram para reduzir as dificuldades que sofremos durante os últimos anos. Como teríamos resistido, Sr. Presidente, se não fôssemos um país colonial?
Não preciso cansar mais a paciência de V. Ex.ªs para chegar ao ponto que queria fixar como de partida, isto é, que a empresa colonial é não só, normalmente, altamente lucrativa para a metrópole, como pode ser, em certas épocas muito difíceis, o sen mais poderoso ponto de apoio e recurso do salvação.
Sr. Presidente: é o momento do nos perguntarmos:
Cumpre a metrópole com estes 25:000 contos que destina à empresa colonial os seus deveres de soberana res-
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ponsável? Ou, antes, se não quisermos distinguir do todo a parte capital: é possível só com os 25:000 contos que a metrópole destina à empresa colonial e com os recursos financeiros das próprias colónias desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações índigenas que neles se compreendam
Se é possível, não há que considerar a exiguidade da verba orçamental metropolitana senão como expressão de um milagre de economia e talento, que só nos cumpre agradecer e louvar. E não terá uma importância exagerada distinguir se do total suficiente a metrópole devia pagar mais e as colónias deviam pagar menos.
Mas, se não é possível o veremos que não é; hoje muito monos do que ontem -, há que perguntar então: que mais deve fazer a metrópole - coberta, aliás, pelos lucros que colhe da empresa - e até onde podem o devem ir as colónias, no jogo entro os seus interesses e os seus deveres de solidariedade, como partes indissociáveis que são da Nação Portuguesa?
É o que mo proponho, aproximadamente, fixar, em desenvolvimento do meu reparo quanto ao lacto do não figurarem na proposta do lei de autorização de receitas e desposas os meios que, por necessidade e emergência, devem ser postos ao serviço da função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam.
Sr. Presidente: a Carta Orgânica do Império estabelece desde o início (artigo 179.º) que constituem encargo de cada colónia:
a) Os juros, anuidades de empréstimos e encargos que tiver assumido por contrato ou lhe forem impostos por lei;
b) Os serviços de administração da própria colónia;
c) O fomento dos seus territórios;
d) O fabrico da sua moeda e valores selados e postais;
e) O vencimento do pessoal das classes inactivas na proporção do tempo por que nela houver servido;
f) As passagens e manutenção dos deportados, degredados o vadios e mais indivíduos enviados para outras colónias por determinação dos seus tribunais ou autoridades;
g) O pagamento dos serviços de fiscalização da sua administração financeira;
h) As despesas com o Conselho do Império Colonial e sua secretaria;
i) As despesas com os tribunais superiores e outros serviços comuns a diversas colónias, na proporção das suas receitas;
j) Os subsídios para a manutenção de carreiras entre os portos da colónia ou entre estes e os do outras colónias vizinhas.
É constituem encargo da metrópole:
a) As despesas consideradas de soberania, incluindo as que se fizerem com a delimitação de fronteiras, as do Padroado do Oriente e as da residência de S. João Baptista de Ajuda;
b) As despesas da administração central do Ministério das Colónias;
c) As missões políticas de civilização, propaganda e estudo, quando do sua iniciativa;
d) Os auxílios a estabelecimentos de formação de missionários e auxiliares, pela entrega de edifícios próprios, subsídios extraordinários e pela inscrição no Orçamento Geral do Estado de uma verba destinada a esses estabelecimentos;
e) Os subsídios, totais ou parciais, a companhias do navegação marítima e aérea, de telegrafia o análogas;
f) As passagens e manutenção dos deportados, degredados, vadios u outros indivíduos enviados para as colónias por determinação dos seus tribunais ou autoridades.
Sr. Presidente: são disposições fundamentais de uma lei orgânica do Império Português, que obrigam igualmente a metrópole e as colónias e que, não correspondendo em pureza, a nenhuma doutrina clássica de colonização, lixam, no entanto, uma doutrina mais equilibrada, justa e realista do que as doutrinas clássicas.
Quanto a mim, bastaria que a lei se cumprisse o que previamente nela se esclarecesse uma disposição que, por não ser clara nem na Carta Orgânica nem em lei complementares, se torna necessário esclarecer: a que se refere às despesas consideradas do soberania, o que nem eu, nem V. Ex.ªs, nem as colónias sabem quais sejam.
Ora a lei cumpre-se rigorosamente por parlo das colónias - e mais que rigorosamente, porque as colónias ainda acodem às insuficiências manifestas do orçamento da metrópole com verbas muito importantes.
Mas não se cumpro rigorosamente por parte da metrópole.
Vamos por partes.
Disse que a lei se cumpria rigorosa mente por parto das colónias - mais que rigorosamente! E do facto as colónias suportam - a meu ver bom - os encargos que a lei lhes impõe e - a meu ver mal - alguns encargos que a lei não refere o que manifestamente deveriam ser suportados pela metrópole.
As próprias desposas de fomento dos seus territórios, mesmo quando para as realizar recorrem à assistência financeira da metrópole, suo, na sua qualidade do reembolsáveis, inteiramente encardo das colónias, e por vezos em condições tão estranhas como as do último empréstimo contraído por Angola, para constituir o s«u modestíssimo Fundo de fomento: a juro mais módico ;i parte emprestada pela Companhia dos Diamantes do que a parte emprestada pela Caixa Geral do Depósitos.
Mas as colónias pagam ainda para o Instituto de Medicina Tropical (mais do 500 contos); para o Jardim e Museu Agrícola Colonial (mais de 550 contos); para a Agência Geral das Colónias, além das comissões de agência (mais de 2:000 contos); para a publicação da separata de legislação colonial (mais do 130 contos); para pessoal e material para realização de trabalhos científicos da Junta das Missões, Geográficas o de Investigações Coloniais, com sede em Lisboa (mais de 1:400 contos); para o Gabinete de Urbanização (mais de 1:400 contos); para o Jardim Zoológico do Lisboa (mais de 000 contos - pois também será do interesso das colónias o Jardim Zoológico de Lisboa?); para duas missões - a botânica e a antropológica (600 contos para o Fundo de defesa do Império, que pareço, assim, não ser uma das tais despesas consideradas de soberania (mais do 19:000 contos).
E além destas importâncias maiores, que somam mais do 26:000 contos - isto é, mais do que as despesas da metrópole polo Ministério das Colónias -, pagam ainda para o expediente o compra de insígnias da Ordem do Império Colonial; para o pessoal o material da Comissão Revisora das Pautas Aduaneiras Coloniais; para Sociedade de Geografia; para o subsídio e melhoria que vence o cônsul de Portugal em Dakar; para despesas especiais do propaganda; parti o cônsul geral de Portugal em Johannesburgu; para o cônsul geral de Portugal em Hong-Kong; para a Missão Geográfica, e até para aquisição de animais para o Jardim Zoológico de Lisboa - ursos brancos das regiões polares, inclusivamente, se o Jardim os apetecer - o etc., etc., etc.
E aqui se vêem, à vista desarmada, as insuficiência orçamentais com que luta o Ministério das Colónias - para ser um Ministério das Colónias. Tão nítidas e tão constantes que constituiu quase um hábito o recurso cómodo a subscrição das colónias para pagar o
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que o Ministério deveria pagar - e imo pode. Até os bichos do Jardim Zoológico! Até o Palácio Burnay, nu Junqueira, e o Palácio das Laranjeiras foram adquiridos pelas colónias!
Seria para acudir a tais despesas que se agravou o imposto indígena em algumas colónias?
Não suporta a metrópole da mesma forma os encargos que a lei lhe impõe.
Já vimos como as colónias contribuem para satisfazer alguns.
Resta examinar o que são os encargos considerados de soberania, além dos que a lei designa, isto é, os da delimitação de fronteiras, o Padroado do Oriente e a residência de S. João Baptista de Ajuda.
Não se consegue ao certo apurar quais sejam, de modo a entender esta expressão despesas consideradas de soberania" como rubrica financeira de sentido, objecto e limitações definidas.
Diga-se de passagem que esta questão das despesas de soberania não se apresenta, nem se apresentou, mais clara noutros países coloniais - salvo na Inglaterra - e que, de uma maneira geral, tem sido capítulo nebuloso das finanças coloniais, que as metrópoles parece terem o cuidado de não deixar definir precisamente.
E assim, em lugar de dizer-se despesas consideradas de soberania", devia talvez dizer-se, em melhor correspondência com as realidades, algumas despesas miúdas que as metrópoles, de tempos a tempos, inscrevem como sendo de soberania".
Evitarei aqui ainda um debate doutrinário, talvez muito interessante, mas inútil para a questão essencialmente prática que pretendo apresentar.
E assentemos que, conforme as rubricas do Orçamento Geral do Estado e toda a matéria a este respeito omissa na lei, têm sido consideradas despesas de soberania simples participações financeiras da metrópole (simples, fortuitas e exíguas) em alguns capítulos da administração financeira das colónias, mas que não foram considerados claramente como despesas de soberania todos os encargos com a defesa das colónias, com a colonização étnica, com a civilização dos indígenas e com a investigação científica. São as colónias que têm despendido o melhor das verbas consumidas nestes capítulos.
Em resumo: não se sabe que parte definida considera a metrópole como encargos seus (de soberania) na função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles s f compreendam.
Não se sabe nem se distingue, perfeita ou imperfeitamente, no Orçamento Geral do Estado. E, como não se sabe, deixemos, por agora, a preocupação de descortinar doutrina a este respeito, para considerarmos certas realidades, das quais talvez se desprendam espontaneamente os elementos de constituição da verdadeira doutrina.
E as realidades são estas:
Há, pelo menos, dois problemas em que vão, não só o melhor do nosso prestígio e das nossas responsabilidades de colonizadores, como também os mais firmes esteios da nossa segurança política e económica nas colónias, e que as colónias não podem resolver, nem atacar em profundidade no ritmo imposto pelas condições de emergência que informam esses problemas, só pelos seus meios financeiros, sem comprometerem irremediavelmente as possibilidades de fomento dos seus territórios.
Trata-se dos problemas que se referem à colonização étnica e ao repovoamento indígena, este posto em condições de tal agudeza e emergência que se aproxima já, em Angola, do desastre irreparável.
Na colonização étnica, nos últimos anos, se não baixámos de nível tão gravemente como o referem as últimas estatísticas do recenseamento da população - porque de facto o recenseamento é a este respeito menos real que pessimista -, perdemos, no entanto, nitidamente, o ritmo progressivo em que íamos desde 1900 e que em Angola- a colónia mais povoada por europeus portugueses- teve o seu ponto culminante em 1931.
1900 .............. 9:198 brancos
1913 ............ 13:800
3920 ............. 20:700
19:22 ............. 29:000
.1924 ............. 36:192
1927 .............. 42:843
1931 ............. 59:493
1933 ............. 58:698
3934 ............. 58:098
3940 ............. 44:083
Na melhor das hipóteses, estacionamos ou retrocedemos ligeiramente, o que é tanto mais lamentável quanto é certo que, por um lado, os números máximos alcançados estavam ainda muito longe do razoável necessário, e, por outro lado, se verificava, e vem verificando, na metrópole um fenómeno demográfico inteiramente oposto, isto é, como tive ocasião de dizer nesta Câmara o ano passado: lá, muita terra e pouca gente; aqui, terra escassa para a gente que há.
Para enfrentar este problema, económico e político, da maior importância, problema de fundo, capital, tão claramente integrado em interesses e deveres de soberania, o Ministério das Colónias não dispõe, ou não tem disposto nos últimos dois anos (porque antes nem disso dispunha), de mais de 5:000 coutos anuais, ingloriamente gastos quase exclusivamente em passagens de colonos (decreto-lei n.º 34:464).
E para não se enfrentar o problema com os meios necessários, embora modestos, conforme a proporção em que teriam de estar com os recursos da Nação, tem quase insinuado que não, que todos os esforços do Estado no sentido de movimentar a colonização étnica estão condenados a fracassos aparatosos". E não faltam exemplos, portugueses e estrangeiros, que parecem confirmar os receios, nem preconceitos sobre a hospitalidade da África, que parecem apoiá-los.
Ora, seria preciso distinguir o que não se fez ou fracassou por impossibilidade material do que não se fez ou fracassou por incapacidade de realizadores e porque de facto se trata de empresa que não pode ser concebida por aprendizes, embora muito talentosos, nem por burocratas, embora muito arrumados e pontuais.
Por mim sustento: é possível - tão possível como necessário - elevar a ritmo mais vivo e compensador a empresa da colonização étnica, uma vez que não faltem os meios necessários, conjugando criteriosamente alguns elementos qualitativos de uma colonização dirigida (a chamada colonização sistemática) com os elementos espontâneos da colonização livre - os primeiros como pontos de apoio dos segundos, os segundos como elementos de quantidade.
Mas compreendo que só alcance sentir assim quem conhecer as colónias nas colónias, e, por isso mesmo, em desacordo com aqueles que só lêem os tratadistas e só conhecem as colónias através dos documentos que se concentram num gabinete.
Não é tarefa realmente para burocratas nem que se compadeça com o sentido burocrático que toma a colonização quando os homens de acção, os realizadores, (não confundir com técnicos), são quase sistematicamente desviados da colaboração dos homens de gabi-
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nete - e só de gabinete -, sempre com muito boas razões, a que se chamam a razões políticas".
Mas é tarefa que temos de cumprir e que não admite já longas e cinzentas indecisões.
Pois não constituirá esta tarefa um dever de soberania?
E não realizará também o interesse de uma metrópole que já mal alimenta uma população que caminha apressadamente para as alturas dos dez milhões de habitantes e que despende angustiosamente em obras de colonização interna quantias que serão sempre superiores aos resultados práticos que alcançará?
O problema está estudado, visto, revisto e meditado. Sobre ele escreveram-se já todas as palavras necessárias e também as redundantes. Apenas falta realizar alguma coisa que exceda os limites e a importância dos 5:000 contos que a metrópole gasta quase exclusivamente em passagens de colonos e que as colónias de povoamento não podem custear.
Sr. Presidente: mais grave e embaraçosamente se põe a questão indígena. Sofremos perdas demográficas a que não poderemos resistir durante muitos anos, deparamos com problemas de mão-de-obra que só no repovoamento encontrarão soluções estáveis e definitivas e, na ordem de obrigações que temos como civilizadores das populações indígenas, surgem dificuldades, sobretudo de ordem sanitária, que temos de dominar com urgência, para não as encontrarmos insuperáveis um dia. Dificuldades que, diga-se de passagem, nem a organização actual nem os meios de que dispõem os serviços de saúde resolverão.
Não é o momento de desenvolver esta simples nota.
Obrigo-me a .esclarecer completa mente a Câmara sobre esta questão em outra oportunidade. Por agora quero apenas fixar que nos encontramos possivelmente -- em minha consciência certamente - perante o problema tais grave e perigoso da história económica das colónias durante os últimos cem anos, senão durante os últimos séculos. A questão indígena ameaça toda a estrutura económica e social, tão heróica e laboriosamente erguida, de Angola e Moçambique, e também dn Guiné e S. Tomé e Príncipe. Em Cabo Verde não há uma questão indígena, mas há, com aspectos peculiares e frequentemente trágicos, como actualmente, um problema demográfico igualmente sério e igualmente carecente de meios. Na Índia surgem também questões demográficas graves.
O panorama enegrece de ano para ano e os horizontes das soluções tornam-se cada vez mais curtos.
As medidas de emergência e de profundidade que seriam necessárias para atacar o problema com decisão exigem meios financeiros de que as colónias - ou só as colónias - não podem dispor. E com as medidas ou os desenvolvimentos de medidas de que, podia dizer, improvisadamente se tem lançado mão nos últimos anos (e com maiores ou menores reflexos no agravamento do imposto indígena) mal se trava ou retarda o ritmo catastrófico em que a questão se desenvolve, por mais que a propaganda tente, por vezes, soprá-las.
Outra tarefa urgente, de emergência, que exige decisão, firmeza, sentido das realidades, optimismo construtivo, desembaraço e meios.
A questão indígena, depois de João Belo, tem-se arrastado, embaraçada de retórica - retórica de discursos e retórica das próprias medidas legislativas -, que as circunstâncias exigem que cesse, para entrar no quadro das grandes realizações da Nação e das glórias de país colonizador que somos.
E, contudo, quem melhor do que nós compreendeu e realizou os princípios humanos de uma política indígena? Quem melhor do que nós, na nossa tradição e
ordem, está em melhores condições morais e espirituais de combater as dificuldades modernas do problema?
Dir-se-á, considerando o desafogo financeiro que parece verificar-se em algumas colónias, que talvez ainda desta vez elas possam dispor de meios para atacar tais problemas.
Não tenhamos ilusões; parte dos saldos com que sucessivamente se têm encerrado as contas de gerência, reflectindo embora uma ordem orçamental que é legítimo título de orgulho da obra administrativa do regime, resulta da insuficiência de dotações dos serviços, que muitas vezes têm verbas para existir, mas que não as têm para agir. Desaparecerá essa parte dotando, sobretudo os serviços de acção e fomento, com meios mais amplos e, aliás, indispensáveis. Outra parte resulta d." participação do Estado na euforia de negócios determinada pela guerra. É puramente circunstancial. E a parte que ficaria como resultado real do aumento da riqueza pública e do tacto da administração não é demais, nem talvez suficiente, para realizar os largos planos de fomento em que as colónias têm de se lançar, e que, decerto, excederão o alcance de desarticulados" e até agora trôpegos, planos quinquenais a 60:000 contos por ano.
Ora, acho bem que as colónias custeiem as suas obras de fomento e aplaudo a disposição da Carta Orgânica que o estabelece. A metrópole não se exigirá mais, para isso, do que a assistência financeira, naturalmente reembolsável. Mas, para que as colónias possam assumir eficientemente esse encargo, não (podem distrair os meios, aliás muito escassos, de que dispõem em cometimentos de soberania - ou porque de direito são de soberania ou porque como tal e de facto se impõem por força das circunstâncias.
E eis, Sr. Presidente, o os meios" a que mu referi no princípio deste arrazoado e sobre os quais a proposta de lei de meios é omissa.
Estas considerações não esquecem nem reduzem - ao contrário- o valor e importância da decisão com que só encorou a reconstrução de Timor nem da obra de arrumação financeira e de disciplina administrativa que as colónias devem ao regime V que, decerto, as salvou de aparatoso desastre. Nem tão-pouco permitirão a ninguém supor que alguém deseja ou recorda com saudade o tempo em que não havia, contas e em que as relações financeiras entre a metrópole o as colónias tendiam para um extremismo oposto ao actual.
E essa é outra das razões por que afirmei de princípio que os meus reparos não se podiam prestar a explorações políticas. Nem tais reparos poderiam ter lugar justamente sem a realização prévia dessa obra de ordem - única base possível (e alcançada) do que as colónias pretendem, a lei dispõe e o Deputado aqui defende; reparos que ao mesmo tempo respondem a certa acusação tão insistentemente formulada pela oposição: que não revemos os nossos erros, que não usamos o direito livre de crítica - que somos apenas um coro.
Decerto, Sr. Presidente, nem só os meios financeiros suo necessários à solução dos problemas a que me referi e de mais alguns. Outros é preciso considerar, num ritmo novo, que as circunstâncias da época impõem e que realize praticamente nas colónias o que os nossos princípios e doutrinas já estabelecem como directrizes de acção, e nomeadamente: meus orgânicos, que nos permitam sair da lentidão e de certo tipo burocrático para que tende mais e mais a nossa administração colonial; meios coordenadores, que nos permitam sacudir os vícios da descoordenação, que tanto embaraçam a execução dos princípios de solidariedade económica imperial e as questões sociais dependentes do custo da vida; meios de formação, que nos permitam constituir quadros objectivos de valores e sair de vez do recurso
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subjectivo aos aprendizes simpáticos, que principiam a carreira colonial em altos postos, por vezes com prejuízo dos funcionários coloniais de carreira; meios políticos, que nos permitam distinguir e considerar particularidades, de si distintas, entre o ambiente (político da metrópole e o ambiente político das colónias, etc.
E, ao serviço destas outras espécies de meios - como muito bem frisou o Sr. Ministro das Colónias numa entrevista concedida ao Diário da Manhã -, estas coisas, que nos faltam e são de facto essenciais: boa organização de serviços, inteligente concepção dos planos, firmeza e continuidade nas realizações; condições que me (permito esclarecer acrescentando: boa organização dos serviços, isenta de burocracia retardadora; inteligente concepção dos planos, que não deve confundir-se com intelectual concepção dos planos; firmeza e continuidade nas realizações, que saiba evitar a firmeza e continuidade nos erros.
Mas não é este o momento >de tratar senão de meios financeiros.
Sr. Presidente: um colonialista belga, cuja obra de homem de ideias e Valorizar o país por meio de capitais metropolitanos (referia-se ao Congo Belga, nosso vizinho em Angola) em proveito de accionistas metropolitanos desenvolve, é certo, os seus recursos -mas não no interesse, antes de tudo, dos seus habitantes -, e foi a isto que nós, na Conferência de S. Francisco, nos obrigámos. Como obter o dinheiro? Vejo três fontes possíveis de receitas: as subvenções gratuitas da metrópole; a restituição pelo Tesouro de uma parte mais equitativa nos benefícios realizados na colónia, e a exploração racional, em proveito da colectividade, das suas riquezas dominiais. Mais tarde, uma vez carrilado o programa, ele se alimentará, em medida crescente, do seu próprio rendimento - o aumento progressivo da produtividade do Congo trará consigo um aumento paralelo da sua riqueza, do seu poder de compra, das suas trocas, da sua capacidade fiscal e das suas receitas orçamentais. E mais adiante: A Grã-Bretanha constituiu o Fundo de desenvolvimento e bem-estar colonial, dotando-o com 120.000:000 de libras, a despender em dez anos. E numa circular recente o Ministério das Colónias de Inglaterra lembra que, de todos os países aliados, a Grã-Bretanha foi o que viu as suas finanças mais duramente atingidas pela guerra. Largamente credora antes de 1939, a Grã-Bretanha tem hoje uma dívida externa de três biliões e meio de libras. Pois apesar desta situação o Governo não hesitou em pedir ao contribuinte britânico um sério sacrifício financeiro em favor das suas colónias. Porquê? Sem dúvida porque o Governo sabe não só quanto as colónias merecem esta assistência, em razão das vantagens de toda a ordem, que proporcionam à metrópole, mas também porque considera o gesto politicamente necessário, e convencido de que no fim de contas não será um mau negócio para a nação. O sacrifício britânico permite, assim, ao Ministério das Colónias exigir dos contribuintes coloniais mais ricos um esforço fiscal paralelo, que desta maneira alimentará o Fundo e acelerará o progresso do Império. Encerro com esta citação as minhas considerações. Oxalá amanhã outro possa citar palavras como estas, mas então de um português, não para (pregar uma doutrina, mas avaliando resultados da sua aplicação. Vozes: - Muito bem! O Orador: - Sr. Presidente: vou enviar para a mesa a seguinte moção: "A Assembleia Nacional, aprovando na generalidade a proposta de lei n.º 96, para autorização de receitas e despesas para o ano de 1947, emite um voto no sentido de serem consideradas pelo Governo, com o devido reflexo no Orçamento Geral do Estado e a amplitude necessária, as disposições da Carta Orgânica do Império que se referem a encargos de soberania, e especialmente os necessários para activar as soluções dos problemas referentes à colonização étnica e assistência e civilização dos indígenas B. Tenho dito. Vozes: - Muito bem, muito bem! O Sr. Mário Madeira: - Sr. Presidente: se por discussão na generalidade da proposta de lei se entender uma apreciação de ordem geral da política financeira do Governo, não é esse agora o meu propósito ao usar da palavra, e certamente alguns oradores que se me seguirão o farão de forma mais categorizada. Mas, porque quero fazer umas breves observações a alguns artigos, parece-me que o devo fazer ao vir aqui falar para evitar mais repetidas intervenções em cada parte da discussão na especialidade. Há na lei artigos, como seja o artigo 15.º, com que estou inteiramente de acordo, de tal maneira ele traduz o pensamento, que já foi aqui repetido, de que se trata de uma medida de inadiável justiça. Estou certo de que a Câmara a aceita com a certeza de que será ama efectivação, de tal maneira o Sr. Ministro das Finanças costuma medir antecipada e criteriosamente a possibilidade de cumprir as soas promessas. Outros há, porém, como o artigo 5.º, que mo parecem ser daqueles sobre que tenho de fazer algumas rápidas e despretensiosas considerações. Diz-se no artigo 5.º que se vai juntar à incidência de determinadas taxas um adicional. Parece-me, Sr. Presidente, que deve entender-se pelas disposições deste artigo que se trata de uma fixação definitiva de valores e que se vai acabar de vez com a possibilidade de avaliação por parte do Estado. Era bom que o Governo esclarecesse se foi esse o pensamento ao articular esta disposição. Creio que da maneira como está redigido não há sombra de dúvida, mas é preciso que na prática se não possa voltar ao antigo sistema de, quando menos se espera, vir uma avaliação extraordinária. Se o Estado cria uma taxa sobre avaliações e se entende que, desde que se aplica este adicional, tem actualizado o valor das suas matrizes, ele renuncia a vir fazer avaliações extraordinárias. É tempo de libertar o con-
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tribuinte das culpas que lhe não cabem por deficiências na actualização dos valores matriciais, que se traduzem na incerteza permanente da sua exacta responsabilidade fiscal.
O Sr. Proença Duarte: - Não sei se V. Ex.ª entende também que essa interpretação se estende ao facto de a sisa ser independente do preço de compra do proprietário.
Estabelece-se diálogo entre o orador, o Sr. Proença Duarte e o Sr. Carlos Borges.
O Sr. Presidente: - Pego a V. Ex.ª que não estabeleçam diálogo.
O Sr. Braga da Cruz: - V. Ex.ª, Sr. Dr. Mário Madeira, dá-me licença? Realmente, o § 2.º desse artigo emprega as palavras "os interessados" e a Comissão de Fiçanças, ao analisar esse parágrafo, para melhor ficar expresso na lei, vai apresentar uma proposta de substituição, em que se lê só os contribuintes terão ...".
O Orador: - Isso vem ao encontro do meu pensamento.
Outro reparo, Sr. Presidente, é o que se refere ao artigo 9.º
Dou o meu inteiro aplauso às considerações que a Câmara Corporativa fez sobre o problema da imposição legal das taxas e acho que essas considerações são tão convincentes que estão até certo ponto em contradição com a parte final do parecer que acaba por propor a aprovação total da proposta de lei.
Evidentemente, e aceitando em rigor a doutrina, que é perfeita sob o ponto de vista legal, não seria ela a propor nem nós a aprovar a redacção do artigo 9.º
Chego à conclusão de que a Câmara Corporativa vê como eu que o que se pretende dizer no artigo é que o Sr. Ministro das Finanças verificará se as taxas a criar ou a modificar o foram legalmente.
Isto sem tirar conclusões da confissão, que poderia considerar-se implícita na disposição, de que até agora assim se não tem procedido.
E a base legal tem de ser iniludivelmente, conforme a própria Câmara Corporativa o diz, uma disposição com força de lei.
Abstenho-me de estar a fazer considerações a tal respeito, por desnecessárias, pois todos nós conhecemos as circunstâncias em que, por exemplo, se têm criado taxas que são autênticas contribuições, como implicitamente se reconhece ao fazer-lhes referências nesta lei dos meios.
E agora só mais um reparo, porque ele vem a propósito.
Fala-se em taxas lançadas pelos organismos corporativos e de coordenação económica.
Já, quando aqui se tratou do assunto ao criar-se a comissão de inquérito, este ponto foi bastante focado.
Estabeleceu-se, Sr. Presidente, uma lamentável confusão. Os organismos corporativos devem ser órgãos de autodirecção, visto que sempre se disse que com tais organismos se pretende chegar à economia autodirigida.
Não é difícil demonstrar que os organismos de coordenação económica não são corporativos, mas até são, na sua essência, em oposição a esta ideia corporativa. Ora são precisamente esses organismos os que mais tem criado numerosas taxas, que avultam como elementos, quantas vezes anómalos e perturbadores, na nossa vida financeira e fiscal, cada vez mais modelarmente arrumada quanto aos restantes elementos que lhe são próprios. Isto parece senti-lo o próprio parecer, quando faz referência detalhada a cada espécie dos organismos de coordenação económica visados na proposta de lei juntamente com os organismos corporativos, estes com bem menores responsabilidade" na matéria de criação de taxas mais ou menos arbitrárias.
Ao aprovar este artigo, atribuindo-lhe o exacto conteúdo e sentido que referi, faço-o coma certeza de quede futuro se entre inteiramente na normalidade legal, de que parece termos andado bastante afastados.
Um último ponto, um último reparo, que me é apenas sugerido na prática, no meu contacto com as real idades da vida, no que se refere à disposição do artigo 8.º - imposto profissional.
Estou inteiramente de acordo e aplaudo como do indiscutível justiça que se elevem os escalões de isenção. Mas parece-me, e formulo aqui a sugestão, que haveria grandes vantagens em paralelamente adoptar na fixação deste imposto um regime semelhante ao que se estabeleceu para o imposto complementar. Isto é, adoptar um escalão de isenção geral, a partir do qual se fixassem outros de incidência por taxas progressivas.
Eu sei que há uma grande diferença entre um e outro e que no imposto complementar é, por sua natureza, mais fácil e lógico de adoptar o sistema. Mas habituámo-nos de tal maneira a ver funcionar bem a máquina fiscal, que por certo ela saberá estudar e resolver o problema da aplicação no imposto profissional de um regime igual ao do imposto complementar, que se revelou de tão feliz aplicação e aceitação.
Dentro do regime actual, quando se chega exactamente ao limite da isenção, há uma dificuldade muito grande em obter e, o que é mais estranho, em fazer aceitar uma melhoria de situação.
Quando se negoceia um contrato colectivo, quando se trata directamente com uma empresa para melhorar as condições do pessoal cujo ordenado está no limite onde acaba a isenção e além do qual o empregado tem de pagar imposto profissional, a não ser que se dê um salto brusco na sua quase totalidade em proveito do fisco, o empregado ainda fica prejudicado.
Trata-se precisamente de uma matéria colectável em extremo delicada e digna da mais carinhosa atenção. Estamos a mexer na parte mais sensível, que é a dos pequenos ordenados, onde a diferença de alguns poucos centavos prejudica imediatamente a economia familiar, orçamentos domésticos de bem precário equilíbrio.
Parece-me que talvez se possa chegar a um resultado tal que, sem diminuir o rendimento geral deste imposto, nos leve ao estabelecimento de escalões com taxa progressiva acima da base até à qual ninguém pagaria.
Acabar-se-ia com uma situação que sei, melhor do que ninguém, quanto se agrava na prática. Para lhe dar remédio vale bem a pena estudar a solução que preconizo, que é com certeza viável, embora haja dificuldades, que os serviços competentes - de tão reconhecida competência- saberão certamente vencer.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Carlos Borges: - Sr. Presidente e Srs. Deputados : se a chamada proposta da lei de meios fosse uma proposta técnica de assuntos financeiros jogando com algarismos, trabalhando com cifras, declaro a V. Ex.ª e à Assembleia que não teria coragem para vir a esta tribuna. Em cifras, em algarismos, em finanças, estou menos do que na instrução primária: mal sei as quatro operações,
Mas, por uma tradição anterior à existência desta Assembleia, a lei de meios foi sempre um pretexto legítimo para fazer a apreciação da vida económica, financeira e política do País, para fazer críticas, para formu-
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lar reparos, para apresentar alvitres e, de certo modo, significar a, quem manda os queixumes de quem tem de obedecer. É nesse sentido precisamente que eu resolvi usar da palavra e apreciar a proposta submetida a esta Assembleia, proposta que, pela sua vastidão, embora esteja condensada num número reduzidíssimo de artigos, compreende e abrange todas as manifestações de actividade do País, toda a sua vida económica, política e social. Permito-me dizer alguma coisa do que é necessário que o Governo saiba e que o País naturalmente gostará de ouvir daqueles que, bem ou mal, e neste caso mal, o representam nesta Assembleia.
Não apoiados.
Os ilustres oradores que me precederam focaram vários assuntos de administração, todos com brilho, todos com proficiência, cada um pondo nos assuntos que tratou os conhecimentos especiais ou da sua vida, ou da sua profissão, ou da sua experiência.
Eu, que também tenho uma vida profissional, escolhi para início das minhas considerações aquilo que conheço mais intimamente, e que é a vida judiciária.
Falou-se aqui muito, e bem, do problema do inquilinato.
Antes, porém, de abordar este momentoso problema do inquilinato, que não quero deixar no esquecimento, vou referir-me ao problema da organização judiciária e à maneira como alguns serviços dependentes do Ministério da Justiça têm sido organizados o remunerados. Quanto a mim, um dos actos mais meritórios da Revolução Nacional foi terminar com a intervenção do júri nas causas criminais e comerciais.
É possível que nem todos estejam de acordo comigo, mas penso assim.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Eu posso assegurar que profiro a decisão de três juizes togados ao veredictum de nove homens de representação local, como comerciantes, industriais, etc., e prefiro por numerosas razões.
Sucede que foi substituída a intervenção do júri por três juízos togados. Era esta realmente a fórmula que se impunha: a nomeação de três juizes com inteiro conhecimento das responsabilidades e longa experiência de julgar, além da isenção característica da sua função.
Ultimamente o tribunal colectivo passou a ser constituído por dois juizes togados e a ter como adjunto o conservador do registo predial ou, na sua falta, o conservador do registo civil.
Entendo eu que não deve ser muito dispendioso para a Fazenda Pública a manutenção dos três juizes togados.
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O Orador: - Eu faço justiça às qualidades de honestidade dos conservadores do registo civil e do registo predial e acredito que eles estão sempre animados do maior interesse em cumprir cabalmente a sua missão, mas a verdade é que eles não são juizes e levam para o seio da deliberação do tribunal informações de carácter local, que poderão ser influenciadas por razões de familiaridade, por motivo de ordem política ou de outra natureza e que pesem na decisão do pleito.
Por tudo isto, o tribunal colectivo deve ser exclusivamente constituído por juizes togados.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas há mais, Sr. Presidente. Nos serviços do tribunal é muito corrente os magistrados, para poderem administrar a justiça, terem de ausentar-se dos seus lugares o ser substituídos pelo conservador do registo predial ou civil, geralmente proprietário, agricultor ou industrial e que tem família no lugar, e, então, das duas uma: ou se indispõe com toda a gente para ser juiz imparcial, ou então não é juiz nem é nada, e a justiça não pode andar assim apenas pelo facto do o Estado andar a fazer economia evitando nomear mais uns tantos juizes.
Este estado de coisas tem de ser remediado porque não pode continuar.
Hoje, em que a alçada do juiz de Direito foi elevada para 20 contos, o inconveniente da substituição do juiz pelo conservador toma maior vulto o relevo. Isto relativamente à organização jurídica. Sei, Sr. Presidente, que o Governo se preocupa grandemente com os problemas dependentes do Ministério da Justiça.
Sei que a sua obra merece todo o nosso aplauso e estou certo de que as considerações que acabo de fazer não são palavras atiradas ao vento e que hão-de ser devidamente consideradas por quem cuide de fazer, tanto quanto possível, a melhoria dos serviços do sen Ministério. Este é o aspecto da organização judiciária.
Muitas e mais largas reflexões teria de fazer, mas não quero fatigar a Assembleia nem roubar o tempo a quem melhor do que eu possa usar da palavra.
Vou tratar agora da situação do alguns funcionários dependentes do Ministério da Justiça e notar esto caso curioso: foram publicados dois decretos-leis arbitrando subvenções ao funcionalismo. Todos os funcionários, uns menos, outros mais, beneficiaram desse subsidio.
Devo dizer que não concordo inteiramente com a forma como ele foi atribuído, pois entendo que devia haver duas categorias de funcionários: aqueles que precisam de subsídios e aqueles que não precisam.
É possível que haja muitas dificuldades para a execução da minha maneira de ver, mas quem há pouco tempo fez um inquérito para a aplicação do imposto complementar facilmente se podia inteirar da situação dos seus funcionários e saber quais os que precisam de auxílio para poderem continuar naquele nível de vida que mantinham antes da conflagração mundial.
Isto é um ponto de vista pessoal. Simplesmente o que eu quero dizer é que todo o funcionalismo que tinha vencimento fixo, certo, foi beneficiado.
Porém, os funcionários que recebiam emolumentos não receberam qualquer espécie de subsídios. Principalmente os conservadores do registo predial e conservadores do registo civil das comarcas de l.a classe não foram beneficiados de maneira nenhuma, e até foram prejudicados, porque tiveram de aumentar os vencimentos aos seus ajudantes, copistas e colaboradores.
Não quero falar, Sr. Presidente, na necessidade de estabelecer uma lei destinada a beneficiar os conservadores do registo predial e do registo civil que se encontram em comarcas de muito movimento. Isso ficar-me-ia mal, porque seria estar a falar em meu proveito e eu sou incapaz de o fazer.
Mas a verdade é que em muitas conservatórias e cartórios não se recebe subsídio algum e nem todos os notários e conservadores têm rendimentos suficientes para atribuírem um auxílio pecuniário aos seus empregados e colaboradores.
Para remediar este mal bastaria autorizar um simples adicional de 5 ou 10 por cento sobre os emolumentos da tabela, com a determinação de que o produto desse adicional seria exclusivamente aplicado aos ajudantes o outros empregados. Não era preciso mais.
Não imagine V. Ex.ª que isso representaria um sacrifício grande para o contribuinte português, porque o registo civil é o mais barato de todos os serviços públicos e nas conservatórias e cartórios movimenta-se a riqueza, que bem pode com o encargo.
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Posso fazer essa afirmação sem receio de que ninguém a conteste.
Sr. Presidente: peço desta tribuna ao Governo e chamo a atenção dele para a situação desses pobres escriturários, alguns já velhos, outros senhoras, gente pobre, gente humilde que precisa de um auxilio, que o não pode receber de quem vivo exclusivamente do seu lugar e que não tem para o dar.
Claro que aqueles conservadores -e não quero dizer quantos são, nem quem são- que advogam, que têm rendimentos próprios, podem prescindir das receitas das suas próprias conservatórias para ajudar essa gente, mas o Estado é que não tem o direito de exigir esse sacrifício, que dependo apenas da generosidade de um patrão e não e uma obrigação jurídica.
Feitas estas considerações, desejo referir-me à lei do inquilinato.
Esta lei, que há dias originou um grande burburinho no País, porque se falou em que se ia mexer nela e toda a gente ficou apavorada, foi publicada em 1911, modificada não sei por quantos decretos, contém preceitos que necessariamente tom de modificar-se e precisa principalmente de uma codificação. É necessário juntar diplomas dispersos, fazer um corpo de doutrina que não só possa servir para advogados e magistrados, mas também para os próprios interessados.
E que nesse diploma se acabe com a especulação dos arrendatários e seja sopeada a ganância dos senhorios e a dos inquilinos.
O Sr. Bustorff da Silva: - Até mesmo em matéria de sublocação.
O Orador: - Nessa e noutras matérias. Não se compreende que um cavalheiro que tem magníficas quintas na província, magníficos palácios numa vila sertaneja, esteja em Lisboa a ocupar um prédio ou um. andar por uma renda irrisória. Não se compreende que um sujeito que não tem que fazer em Lisboa, Porto ou Coimbra esteja a gozar ali os benefícios da lei do inquilinato.
O primeiro conflito que tem de ser resolvido é o da renda.
São várias as soluções que se oferecem. A mais simples para mim seria pôr os casos em que o contrato de arrendamento é rescindível e os casos em que não é rescindível. Mas a questão da renda de um prédio urbano deve ser sempre um caso esporádico a debater entre o senhorio e o inquilino e que o tribunal resolveria tendo em atenção a- situação pecuniária do senhorio e do inquilino o o valor locativo do prédio.
O Sr. Braga da Cruz: - Foi essa a solução adoptada em Inglaterra.
O Orador: - Não é justo que o inquilino pobre tenha de ser sacrificado e posto na rua pelo arbítrio e ganância de um senhorio rico.
A renda é uma função de possibilidades do senhorio e de riquezas do arrendatário. Assim, parece-me que seria fácil arranjar uma solução justa deixando tudo em paz.
O que se está passando não diz bem com a legislação sobre inquilinato. É preciso que, tanto o inquilinato, chamemos-lhe doméstico, como o inquilinato comercial, sejam regulamentados e codificados.
Também não está certo que um comerciante, simplesmente porque arrendou uma propriedade para o seu comércio ou indústria, fique com uma renda que se lhe fixou e apenas teve uma pequena elevação.
Quando eu aprendi direito diziam-me que só havia duas espécies de contratos perpétuos: o contrato de enfiteuse e o contrato de casamento.
Hoje são ambos rescindíveis. O contrato de enfiteuse é rescindível no fim de vinte anos e o outro com o simples divórcio. Não é justo, portanto, e isto só pode ser encarado com um certo bom humor..., que o contrato de arrendamento, principalmente de arrendamento comercial, seja perpétuo.
Mas dizem: o inquilinato comercial dá ao senhorio a preferência no traspasse, e eu pergunto: que vantagem é essa? Como é que um senhorio de uma casa na Baixa vai optar por um negócio que desconhece inteiramente? Não é possível.
Isto fica muito bem como um direito teórico. Fica muito bem na fachada e é muito bonito, mas atrás dele não há nada.
Bastaria que o senhorio tivesse uma participação pequena ou grande nos lucros do inquilino para se lho dar uma razoável compensação.
O que é verdade é que a lei do inquilinato precisa ser revista cuidadosamente, e por forma que não prejudique nem os pequenos nem os grandes arrendatários, mas em que o inquilino não seja o dono do prédio e o senhorio verdadeiramente sacrificado. É preciso que haja concordância e não divergência e antagonismo de direitos e de interesses.
Sr. Presidente: contém a proposta várias disposições que merecem inteiramente o meu aplauso e agrado. Tudo quanto está na proposta relativo à execução da lei n.º 1:914 eu tive a honra de discutir e de aprovar. Essa lei é um. documento que há-de ficar na história deste período de administração pública do nosso País.
Pena foi que a guerra, com todos os sacrifícios e dispêndios, obrigasse a desviar para todas as outras despesas os saldos verdadeiramente extraordinários que o Governo tinha acumulado durante anos de uma administração honesta e severa, que conseguira não só restaurar a economia portuguesa, mas resgatar as finanças e levantar o crédito do País.
Tudo o que se promulgou na lei n.º 1:914 está no artigo 10.º da proposta. Pena foi que a guerra nos impedisse de lhe dar execução com o ritmo que se previra.
Mas sempre o Governo continuou a obra de restauração e fomento económico e financeiro, através, das maiores dificuldades.
Quando não houvesse outra maneira de fazer propaganda política neste País, em que há homens que se fingem cegos e especulam com a boa fé ou a imbecilidade dos outros, bastaria esta obra para glorificar a Revolução Nacional e os Governos que têm presidido aos destinos do País desde o 28 de Maio.
Vozes: - Muito bem, muito bem 1
O Orador:-Este aplauso não vai, porém, som pequenos reparos.
A hidráulica agrícola, o repovoamento florestal, a colonização interna, os melhoramentos agrícolas, as obras de abastecimento de águas às sedes dos concelhos, tudo isto é indispensável, mas torna-se preciso que esses melhoramentos sejam bem distribuídos, por forma a não dar mais a uns do que a outros, tratando uns como filhos e outros como enteados.
É lamentável dizer que há dezenas de lugares de aldeias no nosso Pais onde a fonte é ainda de mergulho.
É preciso que as sedes dos concelhos não tenham regalias, no que respeita a sanidade, sobre as pequenas aldeias rurais, onde também existe a necessidade de se ter saúde para se poder trabalhar.
Daqui também emito o voto de que o Governo, que vive hoje num grande regime de centralização administrativa, tome as medidas necessárias para que as câmaras olhem pela sanidade pública, principalmente no que se refere a abastecimento de águas das freguesias rurais.
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O Sr. Melo Machado:- Mas é que para isso é preciso dinheiro.
O Orador: - Se o não podem fazer num ano, que o façam em dois, três ou quatro, mas o que não pode ser é as sedes dos concelhos beneficiarem de melhoramentos à custa das pequenas povoações.
Mais considerações teria a fazer sobre esta proposta, que dá margem para toda a espécie de considerações, mas, como disse, não desejo abusar da atenção da Câmara nem da paciência de V. Ex.ª
Reservei para o fim o assunto que me determinou a subir a esta tribuna. Trata-se de uma questão de assistência.
Vi há dias num pequeno extracto de um jornal, do um grande órgão de informação, que na sede de uma associação se tinham reunido vários partidários do parlamentarismo em conjugação com aspirantes à concentração do poder de punhos fechados. Ali se teria dito que a assistência pública era escassa e má e, com assombro meu, que a caridade cristã era um sentimento inferior ou coisa parecida...
O Sr. Bustorff da Silva: -Pecaminoso.
O Orador:-Não me lembrava do termo, mas devo dizer que, dada a categoria mental das pessoas a quem são atribuídas estas palavras, fiquei profunda e seriamente impressionado.
Quando os homens de talento se deixam cegar, se deixam obcecar ao ponto de em público proferirem tais palavras, confesso que tenho a impressão de que a humanidade caminha em massa para um manicómio. Ou sou eu que estou doido ou doido está o homem eminente que proferiu estas palavras, e certamente as desmente todos os dias, porque não posso acreditar que não seja capaz de abrir a bolsa para matar a fome a alguém, nem de que não corra para acudir a algum desgraçado que precise do seu auxilio.
Sr. Presidente: ou afirmo que o sentimento da caridade cristã se sobrepõe ao próprio ateísmo, e poucos serão os livres-pensadores que a não praticam, e bem haja o Governo que a auxilia o incita directamente ou por intermédio de organismos administrativos, fazendo com que as populações reunidas em grandes cortejos concorram dentro das suas possibilidades para os hospitais das suas terras, para sustentar os doentes, para a sopa dos pobres, tão necessária para matar a fome aos vagabundos e miseráveis de todas as cidades que estão situadas aquém da cortina de ferro e de aço daquele paraíso onde ninguém pode entrar e de onde ninguém pode fugir. Nesse paraíso vedado é possível que a caridade seja um sentimento inferior e pecaminoso, mas fora dele a caridade nobilita e honra quem a pratica. É o sentimento do bem, é o sentimento da fraternidade, não daquela dos «vivas» e dos « morras», mas que dá pão a quem tem fome e de beber a quem tem sede.
Sr. Presidente: falava da assistência e devo dizer a V. Ex.º que há pouco tempo me chamaram a atenção para dois artigos do Código Administrativo, e fiquei surpreendido, porque nunca tinha reparado neles!
O Sr. Botelho Moniz: - Se fosse eu que dissesse isso, estava bem, agora V. Ex.ª!...
O Orador: - A minha ignorância é tão enciclopédica como a sabedoria de V. Ex.ª e também já tenho idade para não ter orgulho de confessar as próprias deficiências.
Diz o artigo 773.º do Código Administrativo:
Leu.
Sanatórios I Confesso que não tinha lido este número do artigo 773.º, senão tinha protestado contra a sua letra e o seu espírito.
Ora para que serve o imposto de turismo ? Serve para isto - é o artigo 127.º do mesmo Código que o diz:
Leu.
Agora pergunto, Sr. Presidente e meus senhores, se a taxa de turismo tem esta aplicação, e não tem outra, para que é que os tuberculosos contribuem com essa taxa?
O tuberculoso, que não vai a um casino, que não joga na roleta, que não anda pelos chás dançantes, que é afastado de todo o convívio, que apenas anseia por recobrar a saúde ou prolongar a vida, que proveito tira desse tributo? Não lhe basta ser doente, de uma doença que não perdoa, e ainda por cima nas contas do sanatório tem de pagar 3 por cento para o turismo, para os teatros que não pode frequentar, para as diversões a que não pode assistir, para embelezamentos e cómodos de que não desfruta.
Isto, Sr. Presidente, é uma coisa que fica bem na lei?
Então um tuberculoso, que temos de defender de todas as maneiras, que vai por vezes para os sanatórios com os pulmões a desfazerem-se, mesmo quanto aos ricos, há-de ser obrigado a pagar esta taxa de 3 por cento?
Felizmente que ninguém tinha dado por tal e parece-me que está no espírito de todos nós que desapareça Ao Código Administrativo tão monstruosa disposição. É uma vergonha!
Nem o autor do Código de 1936 nem o autor do Código de 1940 viram certamente o que isto representava de crueldade e de desumanidade.
O Sr. Albano de Magalhães: -V. Ex.º de facto sabe que está em execução essa lei? Que essa taxa se tem pago?
O Orador: - Sim, senhor.
O Sr. Albano de Magalhães: -É inacreditável!
O Orador: - Faço justiça aos autores daqueles Códigos, que não viram tal disposição. Não é assim, não é com o que dali se recebe que se defende o folclore da região. Esse dinheiro, que cheira a sangue, não pode servir de maneira nenhuma para ò turismo. Pedir a um homem que não tem saúde o pagamento de uma taxa é uma enormidade.
Por isso, eu apresento à Assembleia a seguinte proposta de aditamento àquela parte do artigo 6.º, § único, que se refere ao aumento da contribuição predial para os corpos administrativos.
O § único passaria para 1.º e o meu para 2.º
A proposta é a seguinte:
«Proponho que o § único do artigo 6.º da proposta passe a § 1.º e que ao mesmo artigo se adicione o seguinte :
§ 2.º É isenta do imposto de turismo a importância total das contas pagas pelos doentes internados em sanatórios e casas de saúde».
Sr. Presidente: termino aqui as minhas considerações, votando conscientemente a proposta em discussão na sua generalidade, aplaudindo e louvando a acção do Governo e pedindo à Providência que nos permita continuar a ser governados segundo leis de meios tão bem elaboradas como esta e com uma administração tão honesta como
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a que nos dá quem dirige os destinos do nosso País, para que possamos continuar a viver em paz. Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem I O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - A próxima sessão será amanhã, à hora regimental, com a mesma ordem do dia de hoje.
Está encerrada a sessão. Eram 18 horas e 15 minutos.
Sr s. Deputados que entraram durante a sessão:
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Maria Pinheiro Torres.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Jorge Botelho Moniz.
José Luís da Silva Dias.
José Maria de Saoadura Botte.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel França Vigon.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Querubim do Vale Guimarães.
Teotónio Machado Pires.
Sr s. Deputados que faltaram à sessão:
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Camilo de orais Bernardes Pereira.
Fausto de Almeida Frazão.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Gabriel Maurício Teixeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
João Carlos de Sá Alves.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim Saldanha. Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria da Câmara Pina.
Rafael da Silva Neves Duque.
Sebastião Garcia Ramires.
O REDACTOR - Luís de Avïllez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA