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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 72

ANO DE 1947 15 DE JANEIRO

IV LEGISLATURA

SESSÃO N.º 72 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 14 DE JANEIRO

Presidente: Ex.mo Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Ex.mos Srs. Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.

Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 70 e 71 do Diário das Sessões.

O Sr. Presidente anunciou que recebera os elementos pedidos aos Ministérios do Interior e das Colónias, respectivamente, pelos Srs. Deputados Águedo de Oliveira e Braga da Crua e da Presidência do Conselho vários decretos-leis para os fins do § 3.º do artigo 109.º da Constituição.

Foi autorizado o Sr. Deputado Figueiroa Rego a depor como testemunha num, tribunal de Lisboa.

Os Srs. Deputados Mendes Correia e Manuel Múrias referiram-se à morte do escritor brasileiro Afrânio Peixoto.

Foi aprovado um voto de pesar proposto pelo Sr. Presidente.

O Sr. Deputado Rocha Paris ocupou-se da venda de milho nas regiões do Norte.

O Sr. Deputado Alberto Crua referiu-se às deficiências da distribuição do abastecimento público.

O Sr. Deputado Henrique Galvão requereu vários elementos pelo Ministério das Colónias.

Ordem do dia. - O Sr. Deputado Ernesto Subtil efectuou o seu aviso prévio sobre as pensões de preço de sangue.

O Sr. Presidente concedeu a generalização do debate, a requerimento do Sr. Deputado Colares Pereira, que também usou da palavra sobre o assunto.

Foi aprovada uma moção do Sr. Deputado Ernesto Subtil.

O Sr. Presidente encenou a sessão às 17 horas e 45 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 50 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva. Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Finto.
Alexandre Ferreira Finto Basto.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
André Francisco Navarro.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António de Sousa Madeira Finto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Fernão Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.

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João Ameal.
João Antunes Guimarães.
João de Espregueira da Rocha Paris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquivei.
José Maria de Sacadura Botte.
José Nunes de Figueiredo.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Mendes de Matos.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel Colares Pereira.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário de Figueiredo.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 72 Srs. Deputados.

Está aberta a sessão.

Eram 16 horas.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.08 70 e 71 do Diário das Sessões.

O Sr. Antunes Guimarães: -Sr. Presidente: pedi a palavra para a seguinte rectificação ao Diário n.º 71:

A p. 241, col. l.ª, onde se lê: "... É de justiça reconhecer que a subida do poder de compra...", deverá ler-se: "...É de justiça reconhecer que à subida do poder de compra..."; nas mesmas página e coluna, onde se 16: "... principalmente àquela grande procura ...", deverá ler-se: "... principalmente aquela grande procura ..."; também na mesma página, col. 2.ª, onde se lê:."... podem económicamente produzir", deverá ler-se: "... podem económicamente aproveitar".

O Sr. Presidente: - Se mais nenhum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra sobre os números do Diário em discussão, considero-os aprovados com as alterações apresentadas pelo Sr. Deputado Antunes Guimarães.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério do Interior em aditamento aos que já haviam sido enviados em satisfação ao requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Águedo de Oliveira.

Estão igualmente na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério das Colónias em satisfação ao requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Braga da Cruz na sessão de 28 de Novembro do ano findo.

Estes elementos vão ser entregues àqueles Srs. Deputados.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Comunico à Assembleia que se encontram na Mesa, enviados pela Presidência do Conselho, e para os fins do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os n.08 283, 284, 285, 289, 290, 291, 293, 29õ, 296,297 e suplemento ao n.º 298 do Diário do Governo, de 12, 13, 14, 19, 20, 21, 24, 27, 28, 30 e 31 de Dezembro do ano findo, contendo os decretos-leis n.ºs 36:027, 36:028, 36:029, 36:034, 36:036, 36:042, 36:043, 36:053, 36:054, 36:055, 36:056, 36:059, 36:061, 36:062, 36:063, 36:065, 36:067, 36:070, 36:071, 36:072 e 36:085.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa um ofício do juiz de Direito do 2.º juízo criminal de Lisboa pedindo autorização à Assembleia para que o Sr. Deputado Figueiroa Rego possa depor naquele tribunal no dia 29 do corrente, pelas 12 horas.

Informo que o Sr. Deputado Figueiroa Rogo não vê inconveniente para o exercício da sua função em que a Câmara o autorize a prestar o seu depoimento nesse dia.

Consultada a Assembleia, foi autorizado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Mendes Correia.

O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: neste momento em que no Brasil, amigo e irmão, refulge uma nova geração de poetas, de pensadores, de políticos, de trabalhadores, de homens de acção que hão-de trazer novo lustre, novas glórias, a esta comunidade luso-brasileira, que é mais do que uma família antiga, reunida no mesmo culto em torno do altar das suas divindades lares, em torno do altar das suas devoções domésticas, porque é a mais compreensiva, a mais universalista, a mais ternamente cristã e amorosa e elevadamente humana das comunidades internacionais ou supernacionais, no momento em que no Brasil refulge e brilha uma nova geração, vou falar de alguém que desapareceu do número dos vivos e que não pertence a essa geração, porque pertence a todas.

Vou falar de Afrânio Peixoto.

Com a sua morte perderam um dos seus mais altos valores o Brasil, a Inteligência e a Cultura, mas perdemos também nós, portugueses, um dos nossos maiores amigos.

O labor de Afrânio Peixoto foi multiforme e magnífico.

É o romancista, o homem de letras, o cientista, o médico, o biologista, o ensaísta, o professor, é o académico, o conferente e o conversador cintilante que desaparecem.

Torna-se difícil dar uma resenha da sua obra vastíssima, resenha que, aliás, não deixará de ser feita nas glorificações justas das academias e das sociedades literárias e científicas, mas eu evoco aqui, onde a sua voz ecoou, o romancista adorável da Maria Bonita, da Sinhazinha, da Fruta do Mato e de tantos outros romances e novelas que fizeram o encanto do público culto do Brasil e de Portugal.

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Evoco o ensaísta, o etnógrafo, o filólogo, o folclorista das Missangas, o autor de ensaios como aqueles que estão reunidos nesse belo volume, relativamente recente, que se intitula Maios e Estevas.

Recordo o biologista, o médico-legista, o professor de higiene e de medicina legal que escreveu tratados destas disciplinas e que elaborou na sua linguagem fluente, cintilante, maravilhosa, as belas páginas desse volume, que teve numerosas edições, que se intitula Criminologia; mas, Sr. Presidente, esse homem, cuja bibliografia foi vastíssima, multiforme e brilhante, esse homem não teve talvez uma verdadeira filosofia nas suas obras, em que se mistura o idealismo e o positivismo, o romantismo e o realismo, a espiritualidade e a sensualidade. A sua verdadeira filosofia era a sua lusofilia, um amor inabalável de todas as horas e de todos os momentos pela sua ascendência étnica, pela sua origem portuguesa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Afrânio Peixoto é o camonianista insigne, que escreveu numerosas obras sobre o nosso épico, e é um dos principais agentes do culto camoniano no Brasil, e foi sempre, em todas as horas, um dedicado amigo de Portugal e dos portugueses. Ler a sua História do Brasil é ler uma apologia entusiástica dos esforços, da dedicação e dos sacrifícios dos portugueses nas terras de Santa Cruz. Uma frase do historiador inglês Southey que ele repete: a O Brasil foi e será sempre uma herança portuguesa".

Mas ler as páginas calorosas, empolgantes, das suas Viagens na Minha Terra (referia-se a Portugal) é ler o mais fulgurante hino à nossa Pátria, à nossa terra, à nossa gente.

Desembarcou aqui, em Lisboa, e ao desembarcar disse: "Em Lisboa eu recuso-me a ser banal. Porque ali, aquele rio, o Tejo, se abre sobre o Oceano, por ele saindo e reentrando a glória de Portugal!".

E, depois de ter visto o nosso País, em jornadas dalgumas das quais guardo a saudosa recordação da sua companhia, as suas palavras são de constante elogio às coisas belas da nossa tradição e da nossa arte, são um elogio constante ao Minho, ao Douro, ao Algarve, a Trás-os-Montes, a Lisboa, ao Porto, a Coimbra, a Braga, a Évora, a todos os nomes e recantos gloriosos ou agradáveis de Portugal, aos mais modestos e humildes lugares da nossa terra.

Dizia ele, falando das mulheres de Aveiro, do Ílhavo, de Ovar e da Nazaré: "Implicitamente rezo uma oração a Deus por ter dado esta moldura de céu, de terra, de mar, de verdura, de sol, de tanta coisa bela, a estes palminhos de cara, a estas esculturas vivas, a estas mulheres nadas e criadas no mais lindo Cantinho de terra do mundo - Portugal!".

Sr. Presidente: acompanhei-o na sua visita à velha citânia do Briteiros, em devoção comum pelas raízes mais profundas da Pátria Portuguesa.

Acompanhei-o a Aveiro, a Viseu, a Braga, a Guimarães e na minha terra, no meu querido Porto, no qual ele percorreu todos os recantos que podiam guardar uma recordação, uma lembrança, um aspecto de beleza, de emoção ou de glória.

Tenho nesta ocasião uma saudade imensa, amargurada, ao recordar esses momentos inesquecíveis.

Fui com Afrânio Peixoto a S. Miguel de Seide. A propósito dessa visita escreveu ele páginas admiráveis, que estão contidas nas Maias e Estevas. E, ao mesmo tempo que neste livro defendia o português, defendia o brasileiro; ao mesmo tempo que condenava a brasilo-fobia de Camilo Castelo Branco, esse grande génio das nossas letras, fazia a apologia entusiástica dessa figura do hagiológio, da lenda e da Pátria que é Santo António de Lisboa.

Não mais o encontraremos, nós os portugueses, acolhedor, afável, hospitaleiro, sorridente, íntimo, familiar, nesse pórtico grandioso e admirável do Brasil, cercado de tanta beleza paisagística, a serra dos Órgãos, o Pão de Açúcar, a ilha de Paquetá, de tanta riqueza e esplendor, como é a linda baía de Guanabara, verdadeira apoteose natural da criação divina.

Nunca mais o teremos lá, a acolher-nos hospitaleiramente, nunca mais nos tomará do braço e nos acompanhará ao Petit Trianon, à Academia Brasileira do Letras, onde era uma das figuras mais destacantes. Não mais irá connosco a esse recinto já secular, sagrado para os portugueses, pedaço da nossa Pátria, que é o Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, em que se guardam tantas evocações da grandeza e da história dos dois países.

Esse Gabinete Português de Leitura chegou a ser, antes do Petit Trianon, a sede da Academia Brasileira de Letras, e, em sinal de gratidão, o grande Machado de Assis doou-lhe o original de uma das suas peças, que tinha o título simbólico de Tu, só tu, puro amor! Era como que a consagração simbólica, não de luta, mas do amor entre dois povos, do amor que fez a grandeza do Brasil.

Nunca mais o veremos na sua casa tão hospitaleira e tão distinta, nessa rua orlada de palmeiras que é a de Paisandú. Nunca mais o veremos em Petrópoïis, nessa cumeada que é um tão belo jardim de hortênsias. Nunca mais!

Recordo que numa das minhas jornadas ao Brasil fui com ele ao cemitério de S. João Baptista assistir aos funerais de uma grande figura da medicina brasileira, que era também uma notável figura da deontologia, o Prof. Miguel Couto.

Fomos de braço dado. Lá estivemos nessa jornada de devoção, e anoitecia quando, depois de um discurso de Aloísio de Castro, os dois retirávamos; como por magia acenderam-se num sem-número de campas daquele cemitério imensas luzes.

Era uma inovação para mim. Nunca tinha visto espalhadas pelas campas e jazigos lâmpadas eléctricas com tamanha profusão. Talvez houvesse uma mistura de paganismo e devoção cristã nessa exuberância de luzes. Pareceu-me tudo mais festivo do que fúnebre. Pareceu-me que esse cemitério era um campo luminoso de almas.

Evocando tão maravilhoso quadro, recordo os versos nostálgicos de Gonçalves Dias, um grande poeta brasileiro, cantor do indianismo:

Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores.

Sr. Presidente: eu não vim aqui fazer um elogio fúnebre, e creio mesmo que será mais grato à alma de Afrânio Peixoto - essa alma gentil que nos escuta, essa alma que viverá sempre entre portugueses e brasileiros- não palavras de pesar, de tristeza, mas sim um cântico de alegria, de vida e de fé. Eu creio, Sr. Presidente, em "Dom Portugal", como Afrânio Peixoto chamava a este Portugal eterno, que se reintegrou na trajectória dos seus destinos gloriosos.

Creio no Brasil, nesse pais maravilhoso e polimorfo, nessa terra esplêndida e exuberante de vida e de riqueza em que a natureza nos aparece sob os aspectos mais variados, as florestas do Amazonas e do Mato Grosso, as catingas do Nordeste e do Ceará, os sertões imensos, as savanas gaúchas do Sul, creio na sua gente, nas suas realizações industriais, agrícolas, pecuárias, nas suas extraordinárias possibilidades e perspectivas, as mais

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imprevistas e grandiosas. Creio nos laços e afinidades que unem para todo o sempre os dois povos.

E, a propósito, recordo ama quadra do nosso Correia de Oliveira que pode fazer parte desta profissão de fé, que faz parte deste credo partilhado por portugueses e brasileiros:

Portugal é de nós todos,
Sendo forte, grande e honrado,
Elo que eu sou - A cadeia
Nunca partirá do meu lado.

Estou certo de que nunca partirá também do lado do Brasil.

Creio no valor das realizações desta comunidade, a que chamarei supernacional e a qual, no culto comum de supremos valores espirituais, à beira deste Oceano que foi rota de caravelas, de almas e de esperanças, que é um berço de água sob um docel luminoso de constelações, forjará nesta hora incerta do Mundo, na paz, na bondade e na justiça, com um sentido universal de vida dentro de um sentido nacional de acção, uma nova idade, a mais bela, a mais alta e a mais fecunda da história universal.

Concluo. Ao mesmo tempo que desfolho perante a memória querida de Afrânio Peixoto as flores da minha saudade imensa proponho que a Assembleia exprima a gratidão do Portugal para com o seu grande amigo e ao mesmo tempo signifique à gloriosa Nação Brasileira a solidariedade fraterna e comovida da Nação Portuguesa no amargo luto que acaba de atingir por igual as duas pátrias.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Manuel Munias: - Sr. Presidente: serão apenas algumas palavras de adesão à homenagem que o Sr. Professor Mendes Correia acaba de prestar a um grande amigo de Portugal que morreu.

Faço-o com todo o coração, porque este amigo da nossa terra foi também um grande amigo que perdi. O polígrafo, a que pode dizer-se não ficou estranha nenhuma forma de expressão literária, ora, na realidade, um dos maiores escritores da língua portuguesa do nosso tempo.

Romancista, contista, folclorista e historiador, de todas as maneiras ele ora sempre um alto poeta, que sabia extrair dos seus temas toda a matéria lírica amorável que logo conquistava o espírito dos leitores. Mas tenho pensado, muitas vezos, ao meditar um pouco sobre a obra e figura de Afrânio Peixoto, desde que as notícias que de lá vinham aceitavam de um momento para o outro o desaparecimento do grande escritor, tenho pensado que, apesar de tudo, o coração, a alma, o espírito de Afrânio Peixoto, era na realidade muitíssimo maior do que a obra que nos legou.

Ele desperdiçava-se muitas vezes no cultivo do amizades, no adoçar de um certo número de arestas que dividiam os homens, no conquistar para os seus amores - que eram Portugal e Brasil - o pensamento, a vida, a capacidade de simpatia de todos os homens.

Nunca vi ninguém que tivesse maior empenho em diluir queixumes de portugueses quanto a alguns brasileiros e se preocupasse mais em conquistar entre os brasileiros as mais fortes e constantes amizades para Portugal.

Também, e muitas vezes, pude observar que Afrânio Peixoto, quando estava entre nós, palmilhando, devagar e saboreadamente, a terra portuguesa, atento a tudo que podia encontrar de mais expressivo na maneira de ser dos portugueses, na sua arte, na sua vida histórica total, vivia no entanto angustiado da saudade do seu Brasil.

Por outro lado, todas as vezes que embarcava aqui no Tejo, que ele considerava o grande rio criador de beleza, a grande fonte do portuguesismo - o rio lusíada por excelência para todo o Mundo -, já Afrânio Peixoto partia cheio, do coração, do saudado de Portugal.

Vivendo, desta maneira, perfeitamente trespassado por aquilo que algumas vezes dizíamos ser num brasileiro a saudade histórica do português que um dia partira a colaborar na transformação de uma terra deserta de vida civilizada no grande Império que um dia seria.

Recordo o nosso último encontro em Lisboa, descendo os dois as escadarias deste próprio edifício, ao sair de uma sessão da Academia da História, quando Afrânio Peixoto dizia a sua mágoa no insistir-se fazer do Brasil um conceito de nação jovem, apenas moderna, pois ele tinha a consciência de que a vida espiritual da sua Pátria não começara na hora em que Pedro Alvares Cabral aportou às terras de Santa Cruz - sentia, ao recolher-se a pensar na maravilhosa unidade -territorial, moral e espiritual do Brasil, que as raízes da sua vida se alongavam no tempo para além de 1000 o se confundiam com as raízes históricas o quase milenárias de Portugal.

Nunca um português, nunca um brasileiro, foi mais completamente consciente do marulhar dentro do si do sangue de muitos séculos, nem, como Afrânio Peixoto, deixou de sentir no seu amor a Portugal o Brasil o império espiritual de que a comunidade de língua o de religião constituem a maior garantia. De tal maneira se juntaram e se misturaram que são incapazes do diluição e por tal jeito que, sendo Portugal e Brasil, efectivamente, nações perfeitamente autónomas, podendo viver no orgulho perfeito da sua autonomia, nem por isso deixaram de ser incomparáveis os laços que os prendem, tão diferentes dos que para outros povos os chamam.

Sr. Presidente, todo o amor do Afrânio Peixoto a Portugal era assim, amor que vinha do tempo mais recuado, amor herdado. Não tinha ninguém que lhe agradecer. Dizia: "O meu amor a Portugal vem-me do meu amor pelo Brasil B. Ele próprio sentia e confessava ser, em si, uma forma natural e irredutível da vida. Agora que ele morreu, creio bem que melhor começaremos a entender, pensando melhor, que Afrânio Peixoto viverá mais do que nunca entre nós, mais profundamente, mais completamente recordado por aqueles que não souberam a tempo entender nesse homem um dos grandes forjadores de uma unidade moral intercontinental que nenhum homem, com os seus erros, será capaz de aniquilar.

Sr. Presidente: perdemos um grande amigo; perdemos um dos mais desinteressados amigos que Portugal encontrou jamais. Por isso me parece que se devia dizer isto nesta Casa, neste momento, para que, numa breve meditação, não parecesse diminuída a importância da nossa perda: - quando morre tal amigo Portugal fica mais pobre.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - A Câmara ouviu, com a atenção e a emoção que o assunto merecia, as palavras com que os Srs. Deputados Mendes Correia e Manuel Múrias prestaram homenagem à memória de Afrânio Peixoto.

O Sr. Deputado Mondes Correia, no final das suas considerações, propôs que a Câmara exprimisse por qualquer forma o seu reconhecimento à amizade com que Afrânio Peixoto sempre distinguiu Portugal, aos serviços que ele prestou à nossa Pátria, o à perda que enlutou o Brasil.

Creio traduzir o pensamento final das considerações do Sr. Deputado Mendes Correia propondo à Câmara que ela exare no Diário dos seus trabalhos um voto de

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profundo pesar pela morte do Afrânio Peixoto, com a qual ficam de luto, ao mesmo tempo, o Brasil, onde ele nasceu e onde o seu génio floresceu, e Portugal, que ele tão fielmente amou, e a literatura de língua portuguesa, que tanto enriqueceu.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Proponho portanto que no Diário das Sessões de hoje seja exarado um voto de sentimento pela morte de Afrânio Peixoto.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

Manifestações gerais de concordância.

O Sr. Presidente: - As calorosas manifestações que acolheram a minha proposta silo a medida do sentimento da Câmara e são a sua mais expressiva aprovação, dispensando a formalidade do outra votação.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: de pesar proposto.

Considero assim aprovado o voto

O Sr. Rocha Paris: - Sr. Presidente: de novo volto a usar da palavra para me referir ao problema do milho, cuja venda em mercado livre preconizei.

Hoje, porém, posso afirmar que a ideia que tive a honra de expor nesta Assembleia tem o apoio de mais de setenta concelhos produtores de milho, que por intermédio de vozes autorizadas de alguns dos seus a homens bons" me quiseram distinguir com o seu franco apoio, conselho e incitamento.

Até este momento as circunstâncias que me levaram a falar sobre este importante assunto não se modificaram, mas até se devem ter agravado, por nenhuma medida ter sido tomada para solucionar ou pelo menos remediar o assunto.

Evidentemente, Sr. Presidente, que o facto de fazer voltar o milho ao regime de mercado livre exige que se não descurem as necessárias medidas de fiscalização nas fronteiras, e para isso poderiam ser utilizadas, com vantagens para todos, as numerosas brigadas de fiscalização existentes, se é que se apresenta o perigo de o milho se escoar, em quantidades apreciáveis, através do secular contrabando para o país vizinho.

O que porém se torna urgente, Sr. Presidente, é que seja revisto o sistema que actualmente regula este sector da economia nacional.

As palavras com que vou terminar estas ligeiras considerações bastarão, a meu ver, para justificar o facto de ter voltado a focar este assunto na Assembleia Nacional.

Posso afirmar a V. Ex.ª, Sr. Presidente, que nas vésperas e dias de Natal e Ano Novo, datas universalmente consagradas, e em que a caridade cristã procura minorar as ânsias e sofrimentos dos que vivem com dificuldades, em alguns concelhos de regiões onde o milho abunda não foi distribuída farinha de milho, justamente no momento em que ele enche as tulhas dos lavradores, obrigando assim os consumidores que não são produtores a ficar nesses dias, e em muitos outros, sem pão ou a adquiri-lo por preços de usura, sabe Deus com que sacrifício e tristeza!

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr: Alberto Cruz: - Sr. Presidente: tenho hesitado muitas vezes em pedir deste lugar os esclarecimentos que desejo, respeitantes a abastecimentos do País.

Tenho receio de má interpretação das minhas palavras; que uns as tomem como conquista de fácil celebridade e que outros me julguem receoso do futuro, enfileirando ao lado dos eternos descontentes e dos inimigos da actual situação política.

Resolvi vencer esses escrúpulos e deixar como sempre à minha consciência o julgamento dos meus actos, respondendo aos primeiros que as minhas ambições se confinam sómente à boa reputação profissional que desejo e à gratidão e respeito dos doentes cuja vida me é confiada, e aos segundos que o meu passado garante o presente e que os meus olhos estão sempre postos no prestígio e engrandecimento das instituições políticas que sirvo.

Não é demais repetir, para que todos saibam, que nem eu nem nenhum dos meus ilustres colegas desta Assembleia julgam impecável a marcha, dos negócios públicos em todos os seus sectores, alguns dos quais reclamam larga reforma, sempre no sentido de bem servir a Nação e melhorar as condições de vida de todos os portugueses.

Sr. Presidente: a profissão que exerço obriga-me a contactos permanentes com pessoas de todas as condições sociais e de todos os credos políticos, e por isso a ouvir queixumes, principalmente sobre abastecimentos, a maior parte dos quais com grande fundamento de verdade e de justiça e por isso dignos de consideração.

O povo, no seu critério simplista, julga que os Deputados, que aqui se encontram por seu mandato, podem e devem resolver todas as suas dificuldades presentes, bastando só fazer-se eco dos males que o aflige.

Embora eu saiba que é impossível o regresso imediato, em matéria de abastecimentos, aos felizes tempos de antes da guerra, julgo que pelo menos o que é bom e o que é mau deve ser equitativamente distribuído.

Desejo saber, e há-de haver quem informe, porque é que na maioria das terras do País os géneros racionados, já de si tão deficientes, não se distribuem igualmente e a tempo e horas, havendo localidades onde os aguardam com ansiedade durante meses e nunca chegam.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Lá para o Norte, onde vivo, nem no Natal distribuíram o contingente de azeite para o clássico bacalhau com batatas, apesar de ter sido anunciada nos jornais a distribuição em Dezembro de 14:000 litros em Braga e 25:000 em Guimarães, para compensar as faltas passadas.

Posso informar que a culpa não foi das entidades locais, mas o facto deu-se e assisti, com grande mágoa, às antipáticas "bichas" às portas das mercearias na tarde do dia 24 (no mesmo dia em que lá se reúnem as famílias na ceia do Natal) para receberem um decilitro por pessoa desse precioso óleo, e poucos foram os que tiveram essa relativa felicidade, depois de meses de espera.

Os meus Ilustres colegas sabem bem o que representa a tradição para o nosso povo, principalmente para o da província, e por isso os males que factos destes acarretam.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - De quem foi a culpa?

Porque se não providenciou com o tempo devido?

Lê-se todos os dias nos jornais, nas cartas dos seus vários correspondentes de* todos os pontos do País, faltas desta natureza: faltas de azeite, faltas de açúcar, faltas de arroz, faltas de bacalhau, etc., noticiando a seguir os preços por que correm na bolsa do mercado negro", onde podem ser adquiridos.

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Isto lê-se todos os dias e não se vêem remédios para essas faltas nem providências para as atenuar.

Julgo que não é por falta de papéis, selos, cadernetas e complicada burocracia, que não falta em terra alguma, e terras pequenas há em que os funcionários da Intendência são mais que os da secretaria camarária, melhor pagos e nem sempre corteses nas suas relações com o público.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: eu sei que a ambição e o egoísmo humanos não têm limites e que tudo e todos querem enriquecer em dois dias, com o menor esforço, não se preocupando com os malefícios que os seus baixos instintos acarretam.

Mas também julgo que há-de haver forma de atenuar esse estado de coisas, estudando com método e carinho tão complexos problemas e agindo com a violência que for necessária para lhes dar solução condigna.

O Governo já procurou, por intermédio dos seus organismos de coordenação económica, solucionar muitos casos (e por isso só louvores e gratidão merece), como os das carnes e gorduras importadas da Argentina, batatas da Dinamarca, Noruega e Holanda, bacalhau da Terra Nova e Noruega e milho, trigo e feijão da Argentina, América do Norte e das nossas províncias ultramarinas.

Infelizmente, só directamente se tem sentido uma parte desses benefícios em Lisboa e Porto.

No entanto, há coisas de difícil compreensão. No Minho e em muitas terras do Norte há gado em abundância. Nas suas múltiplas feiras semanais aparecem magníficos exemplares, mas não há carne nos açougues! Que fazem os organismos ou as pessoas encarregados de resolver esses problemas? Os dias vão passando, uns após outros, e nada se faz ou se diz que dê esperanças de rápida solução.

O ano foi farto de milho, mercê de Deus, e é do conhecimento de todos que temos açúcar suficiente para as nossas necessidades.

Porque se não experimenta libertar alguns produtos, como o milho (já aqui pedido pelo nosso ilustre colega Dr. Rocha Paris), o açúcar e o bacalhau, das peias burocráticas que os fazem arredar dos mercados, embora se limitem ou fixem os preços, para evitar especulações, se continue com a fiscalização já rigorosamente estabelecida e se vigiem com o maior cuidado as nossas fronteiras, para evitar as viagens clandestinas desses mesmos produtos?

Posso estar enganado na minha boa fé, mas não sou só eu quem assim pensa, aqui e lá fora.

Mas se estou em erro, desejo ser esclarecido, para poder também elucidar os de boa fé e responder aos ataques com que outros pretendem atingir o nosso sistema político.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-Sr. Presidente: não há ninguém em Portugal, e mesmo lá fora, que não conheça a profunda transformação operada em todos os sectores da nossa vida pública, que modificou em poucos anos a fisionomia do País, dotando-o com melhoramentos de toda a ordem, para o pôr ao par das nações mais civilizadas, e muito especialmente no campo social, onde, apesar das promessas dos políticos do passado, ninguém se tinha abalançado a dar-lhe qualquer solução.

Pois tudo isto não é reconhecido por grande parte dos portugueses, com muita mágoa o verifico, porque o problema vital para todos no momento presente é o problema da alimentação, tema de todas as conversas e de todos os ataques, porque a todos afecta igualmente.

Esse problema, pois, é que deve merecer o mais aturado estudo, no bom sentido de resolver o que tiver solução e esclarecer o País do que for impossível de solucionar.

O meu fim não é fazer-me porta-voz de todos os queixumes que ouço com os mais variados objectivos. Desejo sómente pedir igualdade de benefícios ë restrições para todas as terras do País, grandes e pequenas, sem excepção, que haja mais regularidade na distribuição dos géneros, de forma a que cheguem a todos e a toda a parte nos primeiros dias de todos os meses, principalmente agora que já melhorou consideravelmente o nosso sistema de transportes, tanto por caminho de ferro, como por camionagem.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Isto é necessário resolver-se, nem que para tal seja preciso modificar ou extinguir organismos ou substituir aqueles que nesses mesmos organismos tenham dado provas de negligência ou incompetência.

Se não tiver razão nas minhas palavras, proferidas sómente com o objectivo superior de prestigiar a situação que sirvo desinteressadamente e o lugar para que fui eleito, desejo ser esclarecido por quem tenha o dever de o fazer, e assim também ficar esclarecido o País.

Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Henrique Galvão: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa o seguinte requerimento:

«Requeiro que, pelo Ministério das Colónias, me seja concedida vista dos seguintes documentos do arquivo da Inspecção Superior de Administração Colonial:

a) Pareceres e relatórios produzidos pelos inspectores superiores e administrativos sobre política e trabalho indígenas desde 1937;

b) Relatórios produzidos pelo inspector superior encarregado do inquérito aos organismos de coordenação económica dependentes do Ministério das Colónias em Setembro de 1944.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 14 de Janeiro de 1947.- O Deputado Henrique Galvão.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente:-A ordem do dia é constituída pela efectivação do aviso prévio, apresentado pelo Sr. Deputado Ernesto Subtil, sobre a situação das famílias com direito a pensão de preço de sangue.

Tem a palavra o Sr. Deputado Ernesto Subtil.

O Sr. Ernesto Subtil: - Sr. Presidente: quando, na última sessão legislativa, me propus tratar, mediante aviso prévio, da situação em que se encontram as famílias com direito às pensões de preço de sangue, prometi demonstrar, no dia que para esse efeito me fosse designado, que essa situação é absolutamente insustentável e que o Código nos termos do qual ela foi criada precisa por isso mesmo de ser modificado com a maior urgência.

De conformidade com o Regimento desta Assembleia, foi dado conhecimento desse aviso prévio ao Governo, o qual já acudiu um pouco àquela situação, por isso que, ao publicar o decreto-lei n.º 35:886, de 1 de Outubro do ano findo, elevou para 800$ mensais o limite

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estabelecido pelos §§ 1.º, 2.º e 3.º do artigo 1.º daquele Código o concedeu, pela primeira vez, aos pensionistas de preço do sangue o subsídio eventual de 30 por cento.

Vozes:-Muito bem!

O Orador: - Mas, Sr. Presidente, se é certo que com tais providências do Governo alguma coisa ganharam já esses pensionistas, e consequentemente suas famílias, certo é também que nem por isso ficou o problema resolvido, uma vez que ainda se não pôs termo à injustiça, à imoralidade e à desumanidade a que fiz referência ao apresentar o meu aviso prévio, o qual não perdeu, por esse motivo, a sua oportunidade.

Vou, portanto, efectivá-lo, e o mais sucintamente que me for possível, não só porque, para o efeito, não será necessário um longo discurso -que eu, de resto, não seria capaz de fazer, mas também porque não quero nem devo maçar esta Assembleia com as minhas despretensiosas palavras.

Vozes: - Não apoiado!

O Orador: - Sr. Presidente: em todos os países civilizados do Mundo, quando um funcionário do Estado, civil ou militar, perde a vida ao serviço da Nação, é concedida às pessoas que estavam a cargo desse funcionário uma pensão de preço de sangue que as compense um pouco da perda que sofreram sob o aspecto material, já que sob o aspecto moral nada há infelizmente que as possa compensar de uma tão grande infelicidade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Assim também se tem procedido no nosso País, onde, melhor ou pior, o assunto vem sendo regulado desde há mais de um século, desde a carta de lei, se não estou em erro, de 19 de Janeiro de 1827.

E, presentemente, as pensões de preço de sangue são reguladas entre nós pelo Código que faz parte integrante do decreto n.º 17:335, de 10 de Setembro de 1929, com as alterações que posteriormente lhe foram introduzidas.

É, pois, esse diploma, Sr. Presidente, que, salvo o devido respeito, me proponho atacar, porque, como já disse ao anunciar o meu aviso prévio, ele não merece a minha concordância, como não merece nem pode merecer, estou certo disso, a concordância de ninguém que tenha pela Família e pela Pátria verdadeiro culto.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sem mais preâmbulos, que não vale a pena fazer, passo a expor desde já as razões dessa minha discordância.

Nos termos dos §§ 1.º e 2.º do já citado Código, as pensões de preço de sangue só poderão ser abonadas, na sua totalidade, aos interessados que provem carência de alimentos ou que, tendo rendimentos próprios, estes, incluindo os dos montepios, não excedam a importância de 800$ mensais.

E, nos termos do § 3.º desse mesmo artigo, aos interessados que auferirem qualquer renda ou provento o Estado só pagará a importância necessária para com esse rendimento pessoal perfazer a totalidade da pensão a que os mesmos interessados tiverem direito.

Tais disposições, cuia redacção é manifestamente defeituosa e tem sido objecto de várias dúvidas, não é justo nem moral que se mantenham.

É que a pensão de preço de sangue representa, por assim dizer, uma indemnização que se deve pagar às famílias dos funcionários civis ou militares que morreram ao serviço do seu País. E, porque todas essas famílias sofrem as consequências dessa morte, é evidente que todas elas devem ter o direito de receber aquela indemnização, que, se nem de longe compensa tal sofrimento, é, em todo o caso, a única que o Estado pode pagar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Por isso não se compreende que as pensões de preço de sangue só possam ser abonadas, na sua totalidade, às famílias nas condições que já referi, ou seja àquelas que provem carência de alimentos ou tenham rendimentos não excedentes a 800$ mensais, além de que essa restrição dá lugar, Sr. Presidente, a situações verdadeiramente revoltantes.

E, para prova de que assim é, aponto três exemplos:

a) Dois oficiais do exército de igual patente perderam a vida em defesa da Pátria, e tanto um como outro deixou uma filha menor.

A filha de um desses oficiais, que, por infelicidade, por má orientação ou má administração de seu pai, ficou, por morte deste, sem quaisquer rendimentos, recebe a pensão de 1.400$.

Mas a filha do outro oficial, que ficou com o rendimento de 1.200$, proveniente do Montepio em que seu pai teve o cuidado de inscrever-se e de alguns bens que do mesmo herdou e foram adquiridos à custa de muitas economias - essa filha, porque tem aquele rendimento, só recebe do Estado 200$ por mês, ou seja a diferença entre esta importância e a da pensão a que teria direito!

b) Dois guardas da polícia, ambos casados e sem filhos, foram mortos num conflito popular em que intervieram, como agentes da autoridade, para restabelecer a ordem, e as respectivas mulheres ficaram com alguns bens, cujo rendimento é de 300$ mensais e com a pensão de preço de sangue de 385$.

Uma das viúvas, que é saudável, mas não quer trabalhar, recebe do Estado a totalidade da referida pensão.

«Mas a outra, que é trabalhadora e consegue ocupar-se em um serviço que honradamente lhe rende 450$ por mês,, essa, por esse facto apenas, passa, em dado momento, a receber como pensão a diferença entre a soma dos seus proventos e o limite de 800$, ou seja simplesmente 50$!

c) Dois soldados da guarda nacional republicana morreram em resultado de um combate que, no desempenho das suas funções, foram forçados a travar com uma quadrilha de malfeitores, e cada um deles deixou uma filha solteira e sem quaisquer haveres.

Pois bem! A filha de um desses soldados, que, por culpa sua ou de seu pai, nunca trabalhou nem sabe, por essa circunstância, ganhar b pão de cada dia, recebe do Estado a totalidade da respectiva pensão, que é de 280$.

E a filha do outro soldado, que, à custa do seu próprio esforço e de sacrifícios sem conta de seu pai, tirou o curso e exerce a profissão de professora, pelo desempenho da qual percebe o vencimento de 800$, essa fica ... sem receber nada do Estado!

Podia, Sr. Presidente, citar mais alguns exemplos de situações como aquelas que exemplifiquei c existem, em grande número, por esse Pais fora, ao abrigo do Código que regula actualmente a concessão das pensões de preço de sangue.

Julgo, porém, que será inútil fazê-lo: o que já disse é mais do que suficiente, penso eu, para mostrar que o dito Código cria situações absolutamente insustentáveis

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para as famílias - e são muitas -, que tem de suportar-lhe as consequências, e bem assim situações verdadeiramente imorais.

E que elas conduzem não só à imprevidência dons, que é, pode bem dizer-se, premiada, mas também à ociosidade de outros, que é sempre perigosa e deve, por isso, condenar-se, mas para a qual o Estado inevitavelmente contribui, uma vez que, no caso de que se trata, é ele quem tira todo o proveito do trabalho dos pensionistas.

Evidente é pois, Sr. Presidente, que tais situações não podem manter-se sem desprestígio do próprio Estado, que não deve incutir no ânimo dos seus servidores a ideia de que, para eleitos da pensão do preço do sangue, não vale a pena ser-se previdente, e bem assim não deve, ao conceder essa pensão, deduzir da importância dela nem o rendimento pessoal dos pensionistas, para que este prezem os bens que herdaram se adquiriram, nem o produto do trabalho dos meamos pensionistas, para que estes não deixem de trabalhar, podendo fazê-lo, ou para que, trabalhando, não procurem iludir o fisco.

Para tanto, para que este estado de coisas se modifique, basta que se regresse ao regime estabelecido pelo decreto n.º 3:632, de 29 de Novembro de 1917, que anteriormente regulava a concessão das pensões de sangue, e por forma - é de justiça que se diga - muito mais generosa e humanitária.

E que, nos termos desse decreto, o quantitativo das pensões para a família do falecido era sempre cumulável com a pensão do Montepio Oficial ou de qualquer outro, e desse quantitativo não deduzia o Estado os rendimentos dos pensionistas: nem os provenientes dos bens adquiridos ou herdados dos seus maiores, nem os obtidos pelos mesmos pensionistas à custa do sen próprio esforço.

E porque, Sr. Presidente, só isso é que está bem e é moral, torna-se absolutamente necessário, para acabar com as situações que indiquei, que seja revisto o Código de 1929, a que tantas vezes me tenho referido. E essa revisão deve compreender designadamente a tabela anexa ao mesmo Código, que fixou a maior parte daquelas pensões, ou seja todas as concedidas até 31 de Dezembro de 1943, a fim de as mesmas serem actualizadas nas bases, pelo menos, em que foram já, por força do decreto-lei n.º 33:968, de 22 de Setembro de 1944, aquelas que o Estado concedeu em consequência dos acidentes ocorridos depois daquela data.

E que, além de não ser justo nem humano tratar a lei uns pensionistas de preço de sangue por forma diferente por que são tratados outros, a revisão e actualização da referida tabela é também absolutamente necessária, porque, como já disse nesta Assembleia, muitas das pensões por ela criadas, por serem tão insignificantes -há algumas que não ultrapassam 50$- não poderão evitar que os respectivos pensionistas, dado o aumento sempre crescente do custo da vida, se outros recursos não tiverem, morram tristemente à fome.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Com estas palavras termino, Sr. Presidente, o meu aviso prévio. E termino com a convicção de que ele não terá sido do todo inútil, pois veio pôr em evidência a imperiosa necessidade que há de rever o Código que regula actualmente a concessão das pensões de preço do sangue-revisão essa que é reclamada pelas famílias daqueles que morreram ao serviço da Nação, muitos dos quais de morte gloriosa e precedida dos maiores martírios.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Nesse sentido tenho a honra de mandar para a Mesa, se V. Ex.ª, Sr. Presidente, mo permite, seguinte moção:

«Considerando que o Código que faz parte integrante do decreto n.º 17:335, de 10 de Setembro de 1929, e que regula a concessão das pensões de preço de sangue, manda atender aos rendimentos pessoais dos respectivos pensionistas e bem assim aos proventos que os mesmos obtêm à custa do sen próprio esforço, para o efeito de aqueles rendimentos e estes proventos serem deduzidos da importância daquelas pensões;

Reconhecendo que tal dedução tem dado lugar a situações de uma injustiça e imoralidade flagrantes; e

Considerando, ainda, que a tabela anexa ao dito Código, pela qual foram fixadas as pensões de preço de sangue concedidas anteriormente a 1 de Janeiro do 1944, precisa de ser actualizada nos mesmos termos, pelo menos, em que o foram as concedidas posteriormente àquela data:

A Assembleia Nacional exprime o voto de que o Governo proceda, com a possível urgência, à revisão do referido Código, no sentido do evitar aquelas situações, e bem assim à revisão da referida tabela, no sentido de a actualizar convenientemente».

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Ernesto Subtil terminou as suas considerações enviando para a Mesa a moção que V. Ex.ª ouviram ler.

Estão, pois, em discussão, o aviso prévio e a moção apresentados por aquele Sr. Deputado.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Interrompo a sessão por alguns minutos.

Eram 17 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente:-Está reaberta a sessão.

Eram 17 horas e 35 minutos;

O Sr. Presidente: - Continua em discussão o aviso prévio do Sr. Deputado Ernesto Subtil.

O Sr. Colares Pereira: - Requeiro a generalização do debate.

O Sr. Presidente: - Concedo a generalização do debate.

Tem a palavra o Sr. Deputado Colares Pereira.

O Sr. Colares Pereira: - Sr. Presidente: ouvimos» todos, com grande prazer, o Sr. Deputado Ernesto Subtil, não só por aquilo que disse, mas sobretudo por aquilo que representa o pedido que ele vem fazer da revisão do Código das pensões de sangue.

Ouvimos, repito, com todo o prazer, as considerações de S. Ex.ª, porque estou certo de que bem poucos assuntos poderão estar tanto no ânimo de todos nós coma este.

Efectivamente, a pensão do sangue tem um aspecto, um significado, uma razão de ser que não há ninguém dentro de um Estado organizado que não tenha em sua mente o desejo enorme de conseguir para aqueles que a mereçam a certeza de que a morte de alguém numa família, quando essa morto foi pela Pátria, não altera a posição que tinham, nem o rendimento que auferiam enquanto era vivo esse que pela Pátria desapareceu, dando a vida por ela.

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E, assim, tudo quanto seja pedir-se que se reveja o gravíssimo problema e, sobretudo, que se limem algumas arestas, estou certo de que está no ânimo de todos.

De tudo quanto consta da moção do Sr. Dr. Ernesto Subtil uma ideia fundamental se afirma, que é a referente às pensões conforme as pessoas auferem ou não

auferem outros rendimentos.

Há duas pessoas, por exemplo, que recebem como pensionistas igual pensão, mas uma aufere mais pelo seu trabalho uma certa remuneração: desconta por isso, e a outra não; isto é, por não querer trabalhar recebe intacta a pensão.

Isto parece uma injustiça, uma crueza. Mas talvez a intenção do legislador tenha sido outra e a medalha tenha, como todas, um reverso e, visto que uma pessoa já aufere determinado rendimento, a pensão não concorra, aviltando o preço, a lugares que muitos disputam. Hás isto estaria certo se o número de pensionistas fosse tão grande que pudesse fazer concorrência a esses lugares.

O número de pensionistas poderá ser de 40 em relação a 4 milhões de pessoas, e então as pensões não podem levar a esse perigo.

De resto, não se trata de pensões do montepio ou de

quaisquer outras, nascidas do um critério de previdência; trata-se de pensões de sangue.

As pensões de sangue são na sua quase totalidade dadas a viúvas de heróis, de homens que morreram nas nossas guerras do África ou outras, ou então na defesa da ordem pública, onde nós todos temos de reconhecer que tem morrido muitos sem pensão, ou com pensões em que as viúvas quase morrem também de fome.

Então, temos de colocar o problema, claramente. A viúva com uma pensão pode viver mal e para educar os filhos que ficaram lança mão de um trabalho digno, de um trabalho sério, capaz para uma senhora, procurando com uma máquina de costura, por exemplo, obter um pequeno aumento que lhe permita fazer face a essa

Mas esse trabalho é falível, e na maioria das vezes a remuneração é extremamente diminuta, induzindo a fiscalização a erros. Fazem-se médias; deve ganhar 300$, mas não se sabe, ou não se leva em linha de conta que, daquela quantia, há que tirar a prestação para a máquina de costura que ainda não está paga ...

Mas a sua pensão, essa, é-lhe cerceada. É-lhe diminuída da quantia em que foi avaliada a remuneração do seu trabalho.

Ora, tudo quanto se faça no sentido de fazer desaparecer estas anomalias e voltar-se ao regime mais justo do anterior Código de Pensões tem o aplauso da Câmara, e para mim este assunto é daqueles em que não há discordâncias, em que todos nós pensamos certamente da mesma maneira.

Eis por que dou à moção o meu inteiro aplauso.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente:-Vou pôr à votação da Câmara a moção apresentada pelo Sr. Deputado Ernesto Subtil, como conclusão do debate suscitado pelas considerações de S. Ex.ª

Submetida à votação, foi aprovada.

O Sr. Presidente:-Vou encerrar a sessão.

Amanhã haverá sessão com a seguinte ordem do dia: efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Bocha Paris sobre a crise dos municípios.

Está encerrada a sessão.

Eram 17 horas e 45 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:.

António de Almeida.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Herculano Amorim Ferreira.
Joaquim Mendes do Amaral.
Jorge Botelho Moniz.
José Luís da Silva Dias.
Querubim do Vale Guimarães.
Ricardo Malhou Durão.
Teófilo Duarte.
Teotónio Machado Pires.
Srs. Deputados que faltaram â sessão:
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Álvaro Eugénio Neves da Fontoura.
António Maria Pinheiro Torres.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Gaspar Inácio Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Maria Braga da Cruz.
José Martins de Mira Galvão.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Penal vá Franco Frazão.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luis Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Mário Borges.
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

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