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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 78

ANO DE 1947 24 DE JANEIRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

IV LEGISLATURA

SESSÃO N.º 78, EM 23 DE JANEIRO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 50 minutos.

Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.
Foi autorizado o Sr. Deputado Pinto Coelho a depor como testemunha no 2.º tribunal cível de Lisboa.
Usaram da palavra ou Srs. Deputados Froilano de Melo, que aludiu a problemas relativos ao ensino na Índia Portuguesa; Luis Pinto Coelho, que tratou do problema do transporte de gado para consumo público, vindo das ilhas e colónias, e lembrou a conveniência da criação das indispensáveis instalações frigorificas, e Mira Galvão, que enviou para a Mesa um projecto de lei sobre a reorganização do parcelamento da serra de Mértola.

Ordem do dia. - Continuou a discussão na generalidade da proposta de lei sobre a reforma do ensino técnico profissional.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Moura Relvas, Teófilo Duarte e Antunes Guimarães.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 55 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 40 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Gazaee.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernão Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Indalêncio Froilano de Melo.
João Ameal.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
João de Espregueira da Rocha Paris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.

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José Esquivei.
José Luís da Silva Dias.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão,
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Nunes de Figueiredo.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Mendes de Matos.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel Colares Pereira.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel França Vigon.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 70 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 15 horas e 50 minuto».

Antes da ordem do dia

Deu-se conta, do seguinte

Expediente

Telegramas

De apoio à representação da Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, subscritos por: Grémio dos Industriais de Lanifícios do Sul, Fábricas Barros, Limitada, Barros & Irmão, Limitada, Sociedade Industrial de Malhas e Fiação, Sociedade de Lanifícios da Foz, Manuel Lopes Henriques & Filho, Limitada, Alexandrino Fernandes Nogueira, Patrício & Balsemão, Limitada, Tomás Costa & Irmão, Fernandes Antunes & C.a, João Alçada.
De apoio às considerações do Sr. Deputado Figueiroa Rego, subscritos por: Grémios da Lavoura de Beja e Castro Verde, Alberto Barreto de Carvalho, André Bravo, Luciano Gonçalves Fialho e José Gomes Pulido Garcia.
Das Câmaras Municipais da Figueira da Foz e Cabeceiras de Basto, congratulando-se com a aprovação pela Assembleia Nacional da moção apresentada aquando do aviso prévio do Sr. Deputado Rocha Paris sobre os municípios.
Do Grémio da Lavoura do Crato, protestando contra a representação da Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, de cujos fundamentos discorda na maioria.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa um oficio do 2.º tribunal cível da comarca de Lisboa pedindo autorização para o Sr. Deputado Pinto Coelho depor como testemunha.

Informo que o Sr. Deputado Pinto Coelho não vê inconveniente em que a Câmara dê a sua autorização.
Consultada a Assembleia, foi autorizado. 3
Pausa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Froilano de Melo.

O Sr. Froilano de Melo: - Sr. Presidente: desejo tratar hoje de um problema que respeita à instrução o educação dos filhos da Índia Portuguesa e de como essa arma poderia ser utilizada para o fomento da cultura e para a expansão da nossa língua na grande índia.
Em dois quadros assaz elucidativos, que peço para serem integrados no Diário das Sessões, resumi os dados que pude colher e que requisitei ao governo da índia, que solicitamente nos forneceu. É pois meu dever patentear àquele governo o meu reconhecimento por essa gentileza.

QUADRO N.º l

Demonstrando o sucessivo decréscimo da população escolar que frequenta o Liceu de Goa

[Ver Quadro na Imagem]

Resumindo:
a) A percentagem da população escolar que frequenta o Liceu de Goa é mínima se a compararmos seja com a população escolar global do país, mesmo restringindo-a às famílias educadas que ministram aos seus filhos o ensino secundário, seja com a que dentro e fora do país frequenta as escolas inglesas;
b) Estudando a frequência escolar nesse Liceu em dez anos consecutivos, e desprezando-se um ligeiro aumento notado no biénio escolar de 1938 a 1940, constata-se uma diminuição sucessiva, que atinge uma cifra do cerca de 42 por cento.

QUADRO N.º 2

Demonstrando o enorme Incremento que dentro do nosso país tem tomado o ensino secundário inglês, segundo os moldes da Universidade de Bombaim

[Ver Quadro na Imagem]

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[Ver Tabela na Imagem]

(a)Ensina também o curso dos liceus até ao 3.º ano.
(b)Tem ensino português à parte

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Em resumo: temos no nosso território, espalhadas por cidades e aldeias, 63 escolas secundárias particulares do inglês, onde leccionam 389 professores nacionais e 71 estrangeiros e que são frequentadas por uma população média de 8:890 estudantes (22 vezes maior do que a população liceal), dos quais apenas 2:455, ou seja 28 por cento, tomam o português como língua subsidiária no curso dos seus estudos, subordinados ao regime inglês.
O problema, como vedes, é bastante sério. Não se pode encará-lo sob um prisma acanhado e unilateral, que poderia dar resultados contraproducentes. Os fenómenos sociais são originados por determinantes várias e é necessário que os homens do Governo, pesando as realidades, saibam encaminhá-las por uma vereda que nos traga proveito e honra para o nome nacional.
É o ensino em colégios ingleses que tem dado aos filhos de Goa o pão que em tão larga escala ganham nas terras de emigração. Há quarenta anos foi iniciado em Goa por um sacerdote abnegado, o Father Lyons, que fez da nossa terra a sua pátria adoptiva e nela dorme, abençoado por milhares de almas que instruiu e educou. Mas é forçoso confessar que nestes últimos anos não têm deixado eles de ser um foco de desnacionalização. Mais: não vos é desconhecido -porque vo-lo disse eu no começo desta sessão legislativa que a vaga de separatismo que varreu por momentos a nossa Índia teve acesso franco em algumas dessas escolas, em que havia professores estrangeiros que abusaram da nossa hospitalidade, obcecados, pela paixão da integração do nosso território na grande índia.
Que tem feito o Governo para entravar essa desnacionalização e derivar a corrente para uma maior expansão do nome e da cultura portuguesa? Apenas isto: ninguém pode matricular-se nas escolas inglesas no nosso território sem ter o exame do 1.º grau. A medida é insuficiente e por vezes contraproducente. Ninguém poderá pretender que no seio de famílias em que a língua portuguesa não seja a língua corrente o exame do 1.º grau possa fomentar o cultivo da nossa língua!
For vezes contraproducente, disse-o eu, porque muitas famílias goesas estabelecidas na África Inglesa e que querem educar os seus filhos em Goa, entregando-os ao cuidado dos seus parentes, mandam-nos a Belgão, Poona e Bangalore, por causa dessa exigência, que reputam infrutífera e uma perda inútil de tempo e dinheiro.
Que poderia o Governo fazer para aproveitar esses goeses educados como outros tantos factores de uma maior expansão da nossa língua e cultura?
As minhas considerações dirigem-se ao Governo da Nação e, em especial, ao espírito culto e superiormente equilibrado do Sr. Professor Marcelo Caetano. Dignar-se-á V. Ex.ª, Sr. Presidente, transmitir-lhas, porque o meu papel de informador leal e despido de preconceitos é aqui que o devo exercer, nesta sala que V. Ex.ª dirige com o saber da sua experiência e com o brilho da sua actuação parlamentar.
Nos séculos passados a língua portuguesa foi a língua diplomática das cortes indianas nas suas relações entre si e .com os potentados estrangeiros. Ainda no primeiro quartel do último século o português era a língua franca da índia. E a força da sua penetração foi tão grande que ainda há dois meses, numa sala de espera da gare de Belgão, quando perguntei a umas meninas que iam a Bombaim que línguas indianas falavam, responderam-me com a deliciosa simplicidade da sua infância: «portuguese, a little hindustani...» Vox populi, vox Dei!
Fazem ideia os meus dignos camaradas nesta Assembleia o que representa de orgulho para nós esta ingénua constatação de almas infantis de que a língua portuguesa é já uma língua nativa, familiar, coloquial, dos povos do Malabar e de outros centros onde mourejam famílias que foram originariamente goesas?
Que tem feito o Governo para alimentar esta chama sagrada que famílias goesas, há longo tempo estabelecidas na Índia vizinha, ainda cultivam nos seus altares domésticos ?
Nada, pela palavra nada! O próprio reconhecimento oficial do português como língua subsidiária no curriculum das Universidades de Bombaim e Calcutá deve-se exclusivamente à acção individual de filhos de Goa, a quem presto aqui a homenagem do meu reconhecimento.
Como deveria pois o Governo agir para utilizar esses milhares de emigrantes educados como outros tantos arautos da nossa cultura e da nossa língua?
Ouso apresentar as seguintes sugestões:
1.ª Revogar a lei que obriga os estudantes a apresentarem o exame do 1.º grau para admissão nos colégios ingleses no nosso território e substituí-la pela obrigatoriedade do ensino simultâneo do português em todos esses colégios, com um programa de língua, história e literatura consentâneo com a respectiva classe;
2.ª Por acção diplomática bem conduzida, estender o reconhecimento da cadeira de Português, já hoje efectivado nas Universidades de Bombaim e Calcutá, a todas as demais Universidades indianas;
3.ª Criar, como adjunta do conselho de instrução pública, uma junta de inspecção às escolas inglesas, composta de três membros escolhidos entre os directores desses colégios de nacionalidade portuguesa e que sejam graduados das Universidades inglesas, junta que, representando um elo de ligação com essas Universidades, organizaria o cnrriculum da cadeira de Português, de acordo com a orientação da Universidade e com o fito da expansão da nossa língua, e funcionaria também como agente fiscalizador das actividades anti-sociais que quaisquer dos seus professores, nacionais ou estrangeiros, exerçam no nosso país.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Luís Pinto Coelho: - Sr. Presidente: pedia palavra para chamar a atenção da Assembleia e, através dela, a atenção do Governo para um problema que ignoro se está sendo estudado o acerca do qual desejaria ser esclarecido.
É do conhecimento geral que a população de Lisboa sofreu sempre, mais ou menos, e até nas épocas chamadas normais, da deficiência de abastecimento de carne.
Para esse abastecimento vem recorrendo-se há muito ao gado produzido fora do continente, em especial ao dos Açores e de Angola, que é transportado vivo nos navios que servem as carreiras.
A carência de produtos alimentares na metrópole, resultante da guerra e dos maus anos agrícolas, compeliu as instâncias oficiais a intensificar e a acelerar quanto possível esse transporte de gado, tendo a Junta Nacional a Marinha Mercante decidido, de há tempo a esta parte, que carreguem gado em Angola todos os navios de carga que demandem os portos daquela colónia, quer sejam das carreiras da África Oriental, quer das carreiras da África Ocidental.
Esta espécie de carga é indesejável para os armadores por diversas razões. Obriga a despesas avultadas na preparação dos navios que, como é óbvio, não são especialmente construídos para o efeito.
Obriga a mau aproveitamento de espaço dos navios, pois os animais não podem vir empilhados, e, além disso, exigem o embarque de forragens para a sua alimentação.
O frete é pouco ou nada remunerador, pois mais não consente o valor de orna carga que se deprecia sempre

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por baixas em viagem e cujo preço é limitado no consumo.
O armador é, por outro lado, obrigado a transportar gratuitamente, ou quase, na vinda e no regresso, os tratadores do gado.
Por fim - e deixo para último lugar a razão principal-, os animais causam gravíssimos estragos nos navios, principalmente... com a inevitável satisfação das suas necessidades. No fim de cada viagem, os convés em que foram armados os estábulos ficam em estado miserável.
Mas, Sr. Presidente, o problema não deve ser encarado apenas no aspecto, aliás respeitabilíssimo, do interesse dos armadores, cuja actividade é essencial para a vida da Nação.
A capacidade da nossa frota, uma vez que, como disse, os navios não são especialmente construídos para o efeito, é reduzidíssima quando expressa em transporte de gado vivo e quando referida às necessidades, mesmo só de Lisboa.
Os melhores navios, que, evidentemente, não podem carregar apenas gado vivo - o que seria uma ruína -, transportarão cerca de 250 bois.
Ora, segundo os cálculos ultimamente feitos, 250 bois dão para o consumo da capital num dia!
Se acrescentarmos a isto tudo que durante oito meses em cada ano o gado de Angola não se apresenta em condições de suportar uma viagem longa - pelo que sofro baixas aterradoras - e que, mesmo nos restantes quatro meses, sofre sempre baixas e considerável quebra de peso, conclui-se facilmente pelo relativamente pequeno valor económico da importação do gado vivo.
E ainda não é tudo, Sr. Presidente.
Chegam-me informações, que reputo dignas de fé até prova em contrário, de que os bois importados de Angola são frequentemente portadores de moléstias contagiosas, que propagam às espécies metropolitanas enquanto se encontram no período que pode chamar-se de nova engorda, necessário à recuperação do peso perdido em virtude da época de embarque ou dos abalos da viagem.
Deverá então suprimir-se desde já a importação de gado vivo, especialmente de Angola?
Tanto não ousarei pedir, porque, embora relativamente pouco, com isso sofreria o abastecimento da metrópole, e particularmente o de Lisboa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas, Sr. Presidente, tudo parece indicar - digo mais: impor- que se caminhe rapidamente, urgentemente, para a importação exclusiva de carne congelada. Sem perda, pelo menos considerável, de valor nutritivo, poder-se-ia centuplicar a quantidade de carne - verdadeira carne- importada.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Entraram já ao serviço da economia nacional algumas das belas unidades previstas no plano de reconstituição da marinha mercante, plano e reconstituição que nunca serão demasiadamente encarecidos. Muito brevemente entrarão ao serviço outras, e outras, e outras belas unidades.
Todas, elas, por imposição daquele mesmo plano, são dotadas de porões frigoríficos. E para quo, afinal? Para transportar gado vivo?
É-me sumamente doloroso, Sr. Presidente, pensar que esses magníficos navios novos estarão consideravelmente desvalorizados no fim de meia dúzia de viagens em que transportem gado vivo. Poucos meses de utilização com esta nociva carga-e eis os armadores obrigados a pesadas despesas de conservação e de reparação.
E isso dói-me, não por exclusiva sensibilidade aos interesses -aliás legítimos, repito- dos armadores, a cujo número, de resto, não pertenço, mas por sensibilidade aos superiores interesses comuns nacionais.
A ninguém podo ser indiferente saber que é excessiva e escusadamente onerada a exploração de uma indústria vital para o Pais o que é es ousadamente encurtada a vida de uma frota que tantos sacrifícios custou à economia nacional e que praza a Deus seja o mais tarde possível- ainda há-de vir a ser de novo pedra fundamental da salvação da nossa grei.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Urge, Sr. Presidente, ver atacado e resolvido o problema do abastecimento de carne à população de Lisboa. Há que pôr em execução, inteligente e desapaixonada, os interesses legítimos em jogo. A mim, parece indispensável o recurso à pecuária insular e colonial. E, sendo assim, reputo indispensável e urgente a abolição do anacrónico sistema do transporte, indubitavelmente antieconómico, do gado vivo, pelo menos das colónias, substituindo-o pelo do transporte do carne frigorificada, para o qual está apetrechada a nossa frota mercante nacional.
É certo que não basta, haver instalações frigorificas nos navios de transporte. É necessário havê Ias nos portos de embarque e do desembarque da carne; e não as há ainda. Mas a todo o tempo é tempo de realizar: nada há que não tenha de começar.
Termino por onde comecei: apenas quero chamar a atenção para um problema que ignoro se está sendo estudado e acerca do qual muito desejaria ser esclarecido.
Por isso, requeiro que, pelo Ministério da Economia, me sejam prestadas informações sobre os seguintes pontos:
1.º Considera-se ou não indispensável o recurso à pecuária colonial para abastecimento da metrópole e, em especial, de Lisboa? Só não, porquê?
2.º Se sim, considera-se ou não que há conveniência ou necessidade em abolir o sistema de transporte do gado vido, substituindo-o pelo transporte de carne frigorificada?
3.º Sendo afirmativas as respostas às questões anteriores, está ou não sendo estudada a montagem de instalações frigoríficas para recepção da carne importada? Quais as dificuldades previstas ou reveladas na execução dos projectos porventura existentes?
Requeiro mais que, pelo Ministério das Colónias, me sejam também prestadas informações sobre os seguintes pontos:
1.º Consideram-se ou não como actividades a proteger e desenvolver as de criação do gado e exportação do carne das colónias, especialmente de Angola?
2.º Sendo afirmativa a resposta, considera-se ou não como importante o mercado consumidor da metrópole?
3.º Sendo afirmativas as respostas às questões anteriores, considera-se ou não conveniente ou necessário substituir o sistema de exportação de gado vivo pelo de exportação de carne congelada?
4.º Há estudos ou projectos, oficiais ou do conhecimento das instâncias oficiais, para construção de instalações frigoríficas nas colónias -especialmente em Angola- destinadas a armazenagem de carne para exportar? Que dificuldades se prevêem ou já se revelaram na realização dos projectos porventura existentes?
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Mira Galvão: - Sr. Presidente: o projecto de lei que vou ter a honra de enviar para a Mesa sobre a reorganização do- parcelamento da serra de Mértola tem por fim lançar as bases jurídicas que tornem pôs-

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sível a resolução de um problema de ordem económico-social de grande importância para uma vasta área do distrito de Beja (9:660 hectares), integrada na zona maior produtora de trigo do País -o concelho de Mértola-, que em 1916 foi o concelho que produziu mais trigo, porque esse ano coincidiu com a arroteia e maior sementeira da serra em questão.
Não maçarei a Câmara com uma larga justificação do projecto, porque isso seria incompatível com o tempo de que me é permitido dispor e porque o projecto vai acompanhado de minucioso relatório elucidativo.
A serra de Mértola, ou serra de (Cambas, por pertencer à freguesia de Santana de Cambas, não é uma região montanhosa, como do nome se poderá depreender, mas apenas de terras onduladas, mais acidentada junto dos cursos de água - a ribeira de Chanças e o Guadina (que a limitam a leste e oeste) e seus afluentes -, mas ainda assim com altitudes máximas que mal chegam aos 300 metros. Dada a sua orografia, das mais acidentadas da região, e porque até ao fim do século passado se manteve coberta dê grandes matagais, onde abundavam os lobos, os javalis e as quadrilhas de malfeitores, e ainda por ser baldio, os habitantes da região lhe chamavam c A Serra».
Este baldio já existia no reinado de D. Dinis, que confirmou por carta régia o privilégio, depois ratificado por outros monarcas, de só poder ser utilizado pelos habitantes da região de Cambas. Com a necessidade de alargar a cultura cerealífera, a serra, que em recuados tempos «ó era utilizada para a apicultura e pascigo de algumas cabradas, passou a ser cultivada pelos habitantes natos da freguesia de Cambas. A serra assim era de iodos e de ninguém, pois nenhum cultivador podia construir nela casa telhada, apenas cabanas cobertas de colmo e terra batida, ou praticar outro acto de que pudesse depreender-se qualquer direito de propriedade. A serra assim era desfrutada mais em regime de rapina do que com interesse por um desfruto racional e de boa conservação da propriedade.
A sombra deste direito consuetudinário surgiram, porém, exploradores, que, ludibriando esse direito, cultivavam na serra grandes extensões em seu exclusivo proveito, mas evocando os legítimos interesses do povo.
Daqui resultaram dois grupos entre os cultivadores da serra, apoiados por outros dois grupos políticos, tanto nos últimos anos da Monarquia como nos primeiros da República: os que pretendiam a divisão da serra para desfrutarem como melhor entendessem o bocado que lhes pertencesse e os que não queriam a divisão, para poderem desfrutar em seu proveito a maior área que pudessem em nome do direito tradicional baseado em que a serra era de todos e de ninguém em especial. Desta circunstância se fez política eleiçoeira durante muitos anos, até que em 1925, sendo Ministro da Agricultura o Sr. engenheiro Ezequiel de Campos, foi publicado o decreto n.º 10:552, mandando dividir a serra em glebas e entregar uma a cada habitante da freguesia de Cambas que a ela tivesse direito, segundo o direito tradicional.
Feito o recenseamento e o plano de divisão, coube cerca de 1 hectare a cada pessoa, de onde resultou a pulverização da propriedade. Sendo uma região de terras estruturalmente pobres e clima irregular, não podia uma família viver de 1 hectare de terra nem muitas das glebas os seus donos podiam cultivar economicamente, por terem residência muitos quilómetros afastados delas. Acresce ainda que muitos dos habitantes de Cambas que receberam glebas nunca foram agricultores nem lhes interessava a cultura da terra, e por isso traspassaram as glebas a outros, quer por arrendamento, quer à ração, quer vendida, apesar de o decreto n.º 10:552 proibir a venda e alienação durante quinze anos depois do registo predial. As vendas foram, feitas por títulos particulares, que alguns vendedores ainda reconhecem, outros, passados alguns anos, tomaram novamente conta das terras, sem restituírem a importância da venda aos compradores. Apesar destas dificuldades, constituíram-se logo alguns núcleos de exploração económica, onde os seus possuidores construíram casas e se instalaram com a família. Dada a feição agrícola da região, logo se reconheceu que era indispensável uma área superior a 50 hectares, em volta dos 100, para uma família de seareiros poder viver desafogadamente do seu trabalho. Como, porém, a lei proibia as vendas, estes núcleos de exploração perfeita, sob o ponto de vista económico-social, não se puderam formar e os que se começaram a formar carecem de ser ampliados.
Por isso, a finalidade principal deste projecto é permitir a venda e a troca para tornar possível o reagrupamento das glebas até se formarem as unidades económicas, visto faltarem ainda alguns anos para que termine o prazo proibitivo estipulado no decreto n.º 10:552.
Nestes últimos anos de escassas produções a situação económica dos seareiros da serra complicou-se e agravou-se ainda mais com a impossibilidade de pagarem os empréstimos feitos pela Caixa Geral de Depósitos, de onde resultou a penhora e venda em hasta pública de centenas de glebas e até de fracções de glebas por dívida das contribuições à Fazenda Nacional, que, por serem dispersas, não podem constituir unidades económicas enquanto não forem (permitidas a venda e a troca de que trata este projecto.
Como de tudo isto resultou o caos económico e social para os colonos e possuidores das glebas da serra de Mértola, encarrega-se, no projecto, a Junta de Colonização Interna de fazer o estudo económico-social da situação da serra resultante da má divisão e de propor ao Governo as medidas que julgar indispensáveis para resolver este problema de colonização, tendo em vista H. melhoria das condições económico-sociais dos colonos e seareiros.
Por último, como algumas glebas não foram oficialmente entregues aos adjudicatários, por circunstâncias várias, e se encontram, pelo menos de direito, em poder da Câmara Municipal, providencia-se no projecto à sua anexação ao campo experimental instalado há dezassete anos na serra e que tem a área apenas de 50 hectares, por ser uma necessidade premente a sua ampliação para melhor corresponder à sua alta finalidade de prestar assistência técnica aos seareiros e fazer investigação científica de carácter agrícola.
É esta, em resumo, Sr. Presidente, a finalidade do projecto de lei que vou ter a honra de enviar para à Mesa e que desejaria ver apreciado pela Assembleia Nacional dentro do mais curto prazo possível, dado o seu interesse para a região de Mértola, cuja má situação se agrava dia a dia, e a sua importância para a economia do País.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta de lei da reforma do ensino técnico profissional. Tem a palavra o Sr. Deputado Moura Relvas.

O Sr. Moura Relvas: - Sr. Presidente: agradeço a V. Ex.ª o ter-me reservado a palavra para hoje. Estava,

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com efeito, um pouco fatigado, pois tinha feito a viagem de Coimbra directamente para a Assembleia Nacional.
Aproveito a oportunidade para testemunhar a V. Ex.ª o meu apreço e estima pessoal e a minha muita admiração pelas inegáveis e superiores qualidades de V. Ex.ª
Posso resumir o que ontem disse da seguinte forma:
Anelaremos bem avisados fugindo, no ensino técnico preparatório, ao enciclopedismo teórico, rejeitando a unificação da cultura geral que se pretende estabelecer. Entendo que devem ser incluídas no curso preparatório disciplinas de cultura geral e de cultura profissional, estas últimas podendo ser também óptimos elementos da cultura geral do futuro operário.
Houve ontem aqui um quiproquó por causa dos trabalhos do Bottai, o qual não indica as disciplinas que fazem parte do curso preparatório, o que não se deu com Rava.

O Sr. Marques de Carvalho: - Simplesmente, Bottai fez uma «carta do escola», ao passo que Ba vá fez um discurso o um trabalho num congresso, o que é diferente.

O Orador: - Não foi um discurso num congresso. Rava sintetizou o que se fazia na escola em matéria de ensino industrial.
É uma exposição simples e clara do ensino industrial na Itália, ensino que compreende os seus diversos graus o indica as disciplinas que fazem parte do curso preparatório dessas escolas.

O Sr. Marques de Carvalho: - Mas nesta exposição nada está em contradição com a acarta da escolas.

O Orador: - Por isso lhe chamei quiproquó.
Disse no meu discurso do ontem quais eram as disciplinas que faziam parte do curso preparatório na escola italiana.
Não sou, portanto, contrário aos cursos técnicos preparatórios, mas acho inaceitável o programa da proposta.
Vou agora tratar do ensino complementar de aprendizagem.
Considero-o inoportuno c, trazendo-o do conceito puramente espiritual que o ditou para a realidade concreta, eis o que sucede:
Um aprendiz ganha à roda de 20$ diários. Como passa um quarto do dia, ou seja duas horas, na escola, o patrão dá-lhe 5$ diários por um trabalho que não é prestado. São, durante os nove meses do ano lectivo, cerca de 1.350$.
Há empresas ricas cujos proprietários têm consciência social o que não deixarão, no próprio interesse, como observa a Câmara Corporativa, de enviar os seus aprendizes às escolas complementares de aprendizagem.
Mas estarão amanhã essas empresas em condições de manter tal regalia, quando se restabelecer o equilíbrio económico?
Quanto às empresas pobres de meios, não pode pensar-se que elas tenham condições para arcar com esse dispêndio, que, só para quatro aprendizes, anda à roda de 5 contos anuais.
Se o ensino complementar de aprendizagem se tornasse obrigatório, não deixaria de causar grandes apreensões aos industriais.
Seria uma medida de tipo marxista, a que o nosso meio não está habituado.
Escrevendo sobre as possibilidades de frequentar cursos nas escolas técnicas, Kitchen, em As Escolas Técnicas e de Continuação, exprimiu-se deste modo:

Existe uma possibilidade em vinte e cinco em que o patrão consinta que o operário substitua o seu trabalho nocturno por um período correspondente durante grande parte ou em todo o seu período do estágio.

Se as dificuldades são assim na Inglaterra para o estágio dos operários, onde o patrão é pouco prejudicado, que diremos nós no nosso caso, onde se paga um trabalho que não é prestado? Considero esta medida inoportuna e, por isso, digo que ela me deixa um pouco céptico. Não me parece que esta medida pertença exclusivamente ao domínio do Ministério da Educação Nacional; ela deve ser objecto de estudo por parte dos organismos corporativos...

O Sr. Cerveira Pinto: - V. Ex.ª dá-me licença? V. Ex.ª incorre num erro de facto. Onde é que há aprendizes que ganhem 20$ por dia?

O Orador: - Olhe... na Câmara Municipal de Coimbra, onde os aprendizes electricistas ganham 21$!...

O Sr. Cerveira Pinto: - Mas há algum texto legal que estipule tal salário? Não há. Os aprendizes ganham salários muito inferiores a esse. V. Ex.ª tem o caso de um tecelão já feito, que ganha 19$.

O Orador: - Eu ouvi dizer que chegavam a ganhar 3.000$ por mês!...

O Sr. Cerveira Pinto: - Isso é o que ganha um mestre de tecelões.

O Orador: - Passemos agora ao ensino agrícola.
O ensino actual está cheio de deficiências e encontra-se mal ordenado. A reforma de 1931 parecia uma coisa, mas na verdade revelou-se um grave erro pedagógico.
Tenho o horário da Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra, e no 5.º ano os alunos frequentam dezasseis disciplinas.

O Sr. Marques de Carvalho: - E acha V. Ex.ª que isso não precisa de uma reforma?

O Orador: - Evidentemente. Precisa de uma reforma, mas não é desta.
As condições em que a agricultura se desenvolve, a alternação das culturas, a verificação dos sucessos ou insucessos dos métodos empregados, as dificuldades e contratempos provenientes do clima variável nos vários anos, da natureza do solo e da psicologia dos próprios trabalhadores rurais tornam a adaptação profissional por meio de prática agrícola absolutamente necessária desde o l.º ano.
A vida agrícola só pode existir para aqueles que se apercebem, por experiência vivida, do seu conteúdo, ao mesmo tempo sublime e caprichoso. E tudo isto é substituível por um exame de admissão? Não creio.
Também não é substituível por hortas e jardins.
Este trabalho de horta e jardim, praticado em recintos forçosamente pequenos e acanhados, reveste um carácter de artificialismo, que é absolutamente contrário à própria índole e natureza da vida do campo.
Aqui não pode haver intensificação do estudo profissional, nem de trabalho de oficina.
Estamos na dependência da oportunidade do tempo e dos anos e não nos podemos esquecer de que temos de ter isto em conta.
Porém, pela proposta ato se criam cursos agrícolas acelerados, como se o legislador tivesse pulso para dirigir o Sol.

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O Sr. Marques de Carvalho: - Onde está o «acelerado»?
Aquilo a que V. Ex.ª se refere são cursos abreviados, de aperfeiçoamento para trabalhadores já feitos. E repare V. Ex.ª que se substituiu sempre a palavra «curso» por «ensino».

O Orador: - Não conheço as alterações feitas pela Comissão, mas, se não há cursos acelerados, ainda bem. Porém, continuo a ter a opinião de que se pretende criá-los. Pelo menos na proposta vêm indicados os cursos abreviados.

O Sr. Marques de Carvalho: - Não receio V. Ex.ª; não há na proposta cursos «acelerados» no sentido que V. Ex.ª lhe atribui.

O Orador: - Outro aspecto do problema: a entrada para as escolas agrícolas dos alunos que fizeram fora o seu curso preparatório.
Rapazes ou homens quase feitos, chegados tardiamente à vida do campo, com hábitos divergentes adquiridos em outras escolas, dificilmente conseguirão atingir a índole profissional de perfeita conformidade com o meio. Devo-mos educar os nossos rapazes nas escolas agrícolas desde pequenos.
Há também como que uma fatalidade pedagógica criada pela entrada em internatos de alunos habituados a externatos. Temos de estabelecer o regime de quase perfeita polícia, ou mesmo vida do caserna, para se manter algum aprumo ou alguma ordem em tais estabelecimentos.
Os liceus têm as suas lotações excedidas, e não só compreendem no estado actual medidas ou conjunto de medidas que fatalmente farão afluir aos liceus ainda maior número de alunos.
Recordo-me de que o Liceu D. João III foi entregue pela Junta em 1936 e destinava-se a 400 alunos. Posteriormente tiveram de ser feitas obras para aumentar a capacidade do edifício e hoje encontram-se nele matriculados 1:050 alunos.
Tudo se utiliza para salas de aula: anfiteatros, sala de línguas, sala da Mocidade Portuguesa, sala do conselho de professores, etc.
Sr. Presidente: nos edifícios a construir para as novas escolas técnicas deve atender-se ao cálculo do número dos alunos, para evitar os inconvenientes dos excessos de lotação.
Esta afluência também se verifica nas outras escolas. Há na Escola Avelar Brotero, actualmente, 1:250 alunos, mas disse-me o seu director que, se atendessem todos os pedidos, a frequência seria superior a 1:600. A Escola Agrícola tem actualmente 115 alunos, mas, se atendessem todos os pedidos, teria à roda do 300.
Até que ponto podo ir a lotação das escolas a construir?
Uma lotação excessiva conduziria ao desemprego; uma lotação diminuta anarquizaria o ensino.
Falou-se aqui na necessidade de aumentar a frequência da Escola de Regentes Agrícolas. Sejamos prudentes, porque um número excessivo de regentes agrícolas poderia determinar um verdadeiro despotismo burocrático opressivo da lavoura se o Estado se visse obrigado ou quisesse colocar todos os desempregados.
Uma classe em desequilíbrio social por excesso de membros parasitários tende, com efeito, a acolher-se sob as asas do Estado-asilo, que tem de criar funções fictícias para se justificar. Por outro lado, o interesse dos técnicos parasitas é sempre afirmar e acentuar a ignorância dos práticos -no caso agrícola, dos lavradores-, falando no seu «rotineirismo» para se valorizarem ante a opinião pública e o Estado, impondo o seu domínio.
O descontentamento e a reacção da propriedade e da indústria contra abusos de funcionários parasitas e irresponsáveis não deixaria de ocasionar perturbações sociais.
Vou encarar agora as legítimas ambições dos proprietários rurais na sua função de pais e educadores.
Nem a proposta nem o douto parecer da Câmara Corporativa atentaram nisto suficientemente. Os proprietários rurais com meios suficientes -note-se que eu sou um pequeníssimo proprietário rural- têm a legítima aspiração de dar aos filhos uma instrução completa com formação superior. Trata-se dum imperativo do nosso meio social, aliás benéfico. Se as escolas agrícolas lhes não permitirem a realização dessa ambição não concorrerão a essas escolas. Esta ambição não tem só carácter particular e familiar-é de interesse nacional. O proprietário rural é, no seu cantão, um chefe social, com influência notável educativa no sou meio. Orientará nos precisos termos da sua formação e valorizar-se-á pelo prestígio da sua cultura intelectual.
Não pode discutir-se a utilidade de os filhos de proprietários rurais, mesmo quando médicos, engenheiros, advogados ou professores, possuírem contacto com a vida agrícola através da escola.

O Sr. André Navarro: - V. Ex.ª dá-me licença? Isso está previsto na própria proposta. Depois dos 20 anos, está prevista a existência de cursos, em regime de externato, para exactamente os indivíduos filhos de proprietários rurais poderem adquirir esses conhecimentos complementares.

O Sr. Mira Galvão: - Está na lei, mas não mo consta que se tenha utilizado na prática.

O Sr. Marques de Carvalho:-Hás nós estamos afixar bases de orientação. Não somos responsáveis pela execução ou falta de execução que venha a verificar-se.

O Orador: - Tirar um curso agrícola em três anos...

O Sr. Marques de Carvalho (interrompendo): - Mas não é o curso de regente agrícola. Desculpe, mas V. Ex.ª está a confundir. Nas escolas de regentes agrícolas há o curso normal respectivo. Isso que V. Ex.ª quer, a tal patine agrária para os filhos de proprietários rurais, é outra coisa e também está previsto na proposta. Não tem portanto essa lacuna.

O Orador: - Eu tenho de responder continuando, e, como tenho de responder continuando, continuo!
Risos.
Trata-se de instituir ou, antes, de voltar a instituir-se uma escola para os filhos de proprietários rurais para manter vivo o espírito da vida da lavoura, tal como os militares têm o seu colégio para manter vivo o espirito militar de seus filhos.
Em suma, o proprietário rural tem necessidade da regalia, que o Estado lhe faculte, de uma escola agrícola onde se mantenha o curso liceal completo (secção de ciências).
V. Ex.ª supõem talvez que eu tenha determinada ideia na cabeça, mas eu muitas vezes não tenho a ideia que V. Ex.ª supõem.

O Sr. Marques de Carvalho: - Mas nós entendemo-nos pelas palavras. V. Ex.ª diz determinadas palavras e nós inferimos delas o seu pensamento.

O Orador: -v. Exa. deduz antes de eu atingir os fins que me norteiam.
Em suma, o proprietário rural tem direito a que o Estado lhe faculte a existência de uma escola agrícola onde

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se mantenha o ensino liceal completo (secção de ciências), com acessos ulteriores mais amplos que presentemente, em que só tem à escolha a agronomia ou a veterinária.
Esta escola voltaria a ter a designação de Escola Nacional de Agricultura, teria sede em Coimbra e os seus diplomados poderiam seguir qualquer curso superior para que fosso exigido o certificado do 7.º ano do ciências.
Nesta orientação fizeram os seus cursos os Srs. engenheiro Homem de Melo, actual Subsecretário da Agricultura, e o nosso colega Dr. Santos Bessa.
Há nesta proposta, depois de tantos pontos de discordância, um aspecto que a torna eminentemente simpática. Trata-se da construção do novos edifícios para as escolas técnicas.
A Escola Brotero. particularmente, funciona em condições deploráveis. Encontrei, numa visita que lá fiz, a serralharia mecânica completamento inundada. Isto é normal durante o Inverno, e tanto assim que o chefe da oficina tem de usar tamancos. E este estado de coisas continua, mesmo depois da minha intervenção junto da repartição competente dos monumentos nacionais, e o mestre da oficina lá continua a não prescindir dos seus tamancos. Os alunos são obrigados a permanecer naquele local, e pode fazer-se ideia da insalubridade da casa. Felizmente, graças à política financeira do Governo, tudo isso se pode modificar.
Vou terminar as minhas considerações.
Pode perguntar-se se somos uma raça decadente, fisicamente defeituosa. Podo perguntar-se se este sol magnifico nos diminui as energias que são necessárias para o trabalho. Pode perguntar-se se confiamos mais na dialéctica que nos realizadores e nas obras realizadas.
A história dos últimos vinte anos prova que não somos decadentes. Fomos capazes do progredir na indústria, nas vias de comunicação, nas finanças, na defesa nacional, etc.
Bastou que um homem polarizasse as energias da Nação para que esta, consciente das suas possibilidades, o aplaudisse e acompanhasse. Não se tratava portanto de decadência, mas de um deplorável atraso.
Desta forma, não devemos deixar perder o que se ganhou. É necessário fazer compreender à juventude que os tempos de imitação passaram e que devemos olhar para nós mesmos, para a nossa casa, e não olhar para o sudário de injustiças que vão por esse Mundo fora.
É o grande problema nacional que fica para resolver: o da educação da juventude.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Advirto a Assembleia de que ontem foi apresentada pelo Sr. Deputado Ribeiro Cazaes uma moção que conclui assim: «A Assembleia Nacional resolve sobrestar na apreciação da proposta de reforma do ensino técnico profissional e julga conveniente ponderar ao Governo a necessidade de a integrar num plano geral de reforma da educação nacional que urge realizar».
Interpretei esta moção como visando a retirar da discussão a proposta de lei por razões de oposição na generalidade. Não terá, portanto, uma discussão independente da discussão na generalidade e, finda esta, será submetida à votação.
Tem a palavra o Sr. Deputado Teófilo Duarte.

O Sr. Teófilo Duarte: - Sr. Presidente: a proposta em discussão baseia-se numa documentação tão numerosa e complexa, coligida pela comissão encarregada de fazer o estudo do problema em causa, que aqueles que dela tomaram conhecimento não podem deixar de chegar à conclusão do que estamos em presença de um trabalho muito sério e fundamentado.
Inquéritos realizados junto de entidades patronais, de entidades operárias, de escolas e até de simples particulares tiveram como resultado reunir-se um enorme conjunto de elementos, que permitiu ao Ministério da Educação aperceber se do assunto em toda a sua complexidade e poder apresentar uma proposta a esta Câmara, que não pode deixar do merecer a nossa melhor atenção.
Realmente, o assunto bem merecia ser tratado com tanto cuidado, porquanto ele é da maior importância, não só em virtude da quantidade enorme de pessoas a quem ele interessa como ainda por se correlacionar estreitamente com a preparação de um grande número de elementos a fornecer à produção económica. Quanto ao primeiro aspecto, basta ver que os alunos matriculados no ensino técnico elementar, complementar e médio e no agrícola em 1943 andaram por 43:000, dos quais 18:214 no ensino industrial, 23:657 no comercial e 742 no agrícola, para nos apercebermos da quantidade enorme de gente a quem o assunto interessa.
Talvez que àqueles de V. Ex.ª que não estão em contacto muito estreito com este assunto, como eu não estava, não deixe de causar surpresa o conhecimento de que o número de alunos matriculados nestes últimos anos no 1.º ano destas escolas técnicas foi incomparavelmente superior ao dos que se matricularam nos liceus.

O Sr. Marques de Carvalho: - Perdão... esse número é sensivelmente o mesmo.

O Orador: - V. Ex.ª está equivocado, porquanto no l.º ano dos liceus, em 1943-1944, segundo consta de um mapa que figura no relatório oficial do Ministério da Educação sobre o assunto, matricularam-se 6:310 alunos; ora os matriculados nas diversas escolas técnicas de ensino elementar, complementar, médio e agrícola no mesmo ano, segundo a referida estatística, atingiram o número de 11:804, isto é, quase o dobro.

O Sr. Marques de Carvalho: - Esses números referem-se apenas aos alunos do l.º ano. A frequência global é mais ou menos a mesma.

O Orador: - Está bem; mas os números por mim citados, que são exactos, visam a mostrar que a tendência hoje verificada é para uma enorme maioria de indivíduos se matricularem nas escolas técnicas, apesar da circunstância apontada pelo ilustre Deputado que me precedeu no uso da palavra, de serem rejeitados muitos pedidos de admissão, em virtude da falta de capacidade das mesmas.
Mas eu dissera que a importância do assunto derivava não só da quantidade de alunos matriculados nas escolas técnicas, mas ainda da circunstância de ele se relacionar ultimamente com o fenómeno da produção.
Este fenómeno da produção está hoje no primeiro plano das preocupações de todos os homens de Governo; e então em Portugal, dando-se a mais a previsão da intensificação industrial que se iniciará dentro de anos, em virtude do adiantamento dos trabalhos de electrificação, há uma necessidade urgente de irmos preparando mão-de-obra qualificada para que no dia em que se comece a efectuar em grande escala a dita industrialização - que é fatal e indispensável para resolver o problema do incremento populacional que se vai notando dia a dia- estarmos preparados com gente habilitada.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Mas, além destas circunstâncias, não haverá outras que mostrem haver vantagem e ser oportuno efectuar a reforma do ensino?
Há-as sim, o bem prementes são elas, como sejam as deficiências actuais de ordem orgânica e funcional, ligadas quer à orientação doutrinária, quer a recrutamento de pessoal, a instalações e apetrechamento.
Tenho pena que a parte preambular da proposta não seja mais detalhada quanto aos resultados dos inquéritos e estudos feitos, a fim de poderem ressaltar as ditas deficiências e poder-se fazer uma melhor ideia sobre a oportunidade da proposta e sobre a vantagem dos remédios apresentados.
Vou enumerar algumas delas, para se avaliar da dita oportunidade, e ainda para se verificar se a proposta as remedeia ou não, ou se fica tudo na mesma.
Começando pelo ensino técnico elementar industrial, citarei o que se dá numa escola que tive ocasião de visitar- a maior de Lisboa; e como o que se passa nas restantes do País deve ser aproximadamente o mesmo sob o ponto do vista que interessa, como mostram as estatísticas, as conclusões poderão ter um certo carácter de generalidade.
A dita escola tem 2:297 alunos, dos quais 1:406 frequentam o curso diurno, sendo cerca de 900 os que se matricularam no de serralheiro. A função desta escola industrial, como de resto a das outras, é, por lei, preparar principalmente operários. Ora V. Ex.ª não deixarão de ficar surpreendidos ao verificarem que nela acabaram o curso de artífices, em 1946, apenas 14 serralheiros e 6 carpinteiros, rendimento este insignificante.
É certo que além daqueles cursos funcionam outros, como o de modistas, que diplomou 51, o de bordadoras, que diplomou 14, e o de costureiras, que preparou 11. E que os cursos nocturnos, preparando mestres de obras, auxiliares de obras públicas, serralheiros e carpinteiros, também passaram, respectivamente, 44,14, 39 e 6 diplomas. Mas, se atendermos a que estes cursos nocturnos são, em geral, frequentados por indivíduos que já são operários e procuram aperfeiçoar-se, conclui-se que os números que interessam são os do ensino diurno, referentes a rapazes que não tem ofício, e que portanto o rendimento da escola é realmente insignificante no referente à preparação de artífices.
Ora cabe perguntar: porque é que se dá esta anomalia de um tão fraco aproveitamento?
As causas são bastante complexas, mas podem resumir-se nas seguintes: em primeiro lugar, a maior parte dos alunos é filha de gente modesta, que não tem recursos económicos suficientes que lhe permitam que os seus filhos frequentem essas escolas durante cinco ou seis anos sem nada ganharem. Por isso, quando eles chegam aos 14 ou 15 anos tratam de os empregar, e levam-nos a abandonar essas escolas para ver se ganham alguma coisa em qualquer emprego. Em segundo lugar, há também muitos alunos que se matriculam com o desejo de aprenderem rapidamente alguma coisa que lhes permita ganharem rapidamente a vida, mas, quando eles começam a frequentá-las e constatam que o ensino é principalmente teórico e de que pouco lhes serve a frequência da escola, resolvem abandoná-la. Realmente, do exame dos horários constata-se que no 1.º ano dessas escolas industriais, das 22 horas de trabalho semanal, apenas 6 são consagradas aos trabalhos das oficinas. É certo que esta percentagem vai aumentando de ano para ano, e assim no 2.º em 33 horas cabem 15 às oficinas, no 3.º em 36 cabem-lhe já 18, no 4.º em 37 cabem-lhe 18 e no 5.º em 36 são já 20; mas não só esta percentagem ainda é pequena, como ainda ela é apenas de ordem teórica, em vista da deficiência de instalações e de apetrechamento. Em terceiro lugar, há outra causa que também contribui para o abandono destas escolas, e que consiste na grande percentagem de reprovações, visto que, sendo o ensino principalmente teórico, os professores não podem deixar de se influenciar pelo exemplo dos seus colegas dos liceus e Universidades, o que desanima muitos dos alunos, aspirantes a simples operários.
O que fica exposto é o resultado do exame do que só passa na escola atrás mencionada; e o que sucede com ela deverá suceder com as outras do País, segundo mostram os dados estatísticos. É que, segundo eles, os referentes a 1943-1944, à medida que o aluno avança no curso verifica-se uma quebra enorme na frequência global dos vários anos, e assim, nos dos cursos elementares e complementares industriais c comerciais a frequência é traduzida pelos seguintes números:

Industrial Comercial
1.º ano ................................ 5:664 10:389
2.º ano ................................ 4:267 7:034
3.º ano ................................ 3:410 4:222
4.º ano ................................ 2:298 1:988 5.º ano ................................ 1:776 570
6.º ano ................................ 458 61

Quanto a diplomados, o número dos que saíram naquele ano, em todas as profissões, foi de 1:011.
Poder-se-á dizer que esta percentagem de não aproveitamento não é excepcional e que ela está mais ou menos em harmonia com a dos liceus; duas a verdade é que não é razoável que se comparem coisas que não têm analogia entre si.
Nos liceus, como nos cursos superiores, compreende-se que se faça uma selecção e uma triagem rigorosas, a fim de evitar que alunos com fraca capacidade intelectual sejam um tropeço dos cursos, mas nas escolas industriais, destinadas a preparar operários para trabalho manual, não se compreendo tão grande rigor.
De quanto fica exposto verifica-se que o número de diplomados que saem dessas escolas é muito pequeno, e isso devido principalmente às causas apontadas. Mas o pior ainda não é isso, mas sim que, desses poucos diplomados, é muito pequena a percentagem dos que exercem a sua profissão.
As informações colhidas nessa mesma escola a que há pouco me referi dizem-me que possivelmente, dos alunos diplomados, não chegam a 10 por cento aqueles que passam a utilizar a sua profissão, indo os restantes para empregados de escritório, para a armada, etc. Estas informações não devem andar longe da verdade, porquanto os trabalhos estatísticos realizados pela Escola Afonso Domingues, embora incompletos, mostram que em 86 diplomados serralheiros apenas 17 exercem essa profissão.
Vejam V. Ex.ª a situação absurda a que nós chegamos. Dos alunos que frequentam as escolas, poucos são os que acabam o seu curso, e desses poucos apenas uma minoria utiliza os conhecimentos que lá adquiriu para exercer a sua profissão. É certo que alguns outros exercem profissões possivelmente correlacionadas com os seus cursos, como será talvez o caso dos 17 que foram para a armada e o exército; que outros 25 continuam os seus estudos; que 7 são desenhadores; mas isto são conjecturas que, mesmo a mostrarem-se exactas, não destroem a afirmação principal: a de que só 17 exercem a profissão que lhes levou 5 anos a cursar.
O número sobre o qual incidiu este inquérito era maior, mas sobre mais 175 desses diplomados não se conseguiram obter informações do destino que tomaram depois de tirarem o seu curso. Temos, pois, de nos cingir ao número de 86, atrás mencionado, para se poderem formular conclusões com certa segurança.
E porque é que a maioria desses homens não utiliza o seu curso?

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As razões não são difíceis de explicar. Um rapaz tira o seu exame de instrução primária e dá entrada nas escolas industriais, onde trabalha 5 anos e onde esse trabalho tem mais o carácter de ordem teórica do que de ordem prática. Por isso, ao terminar o seu curso, ele, que está possuidor de uma certa cultura geral, que lhe dá laivos de pseudo-intelectualismo, que vive num meio mais de escolar que de operário e que não se habituou a considerar-se tal, esse homem, dizemos, não se sujeita aos trabalhos grosseiros que as oficinas lhe impõem, nem a viver num meio em que predominam os analfabetos, as pessoas sem educação igual à sua e que lhe mostram uma grande reserva, quando não hostilidade. Depois, há ainda a notar que esses alunos, quando saem ou ainda frequentam as escolas, são muito mal pagos visto serem considerados aprendizes.
V. Ex.ª sabem quanto é que a Companhia dos Telefones de Lisboa, apesar de ser uma das grandes empresas da capital, paga a um aprendiz, mesmo que esteja matriculado em qualquer ano destas escolas?
No primeiro ano, em que é considerado aprendiz sem prática, paga-lhe 10$ diários e no segundo ano, quando passa para aprendiz com prática, paga-lhe 15$ diários.
Só no fim destes dois anos poderá ser mecânico, com 600$ mensais.
Aumentem V. Ex.ªs a estes salários os 50 por cento de melhoria e vejam se mesmo assim se não justifica a relutância que um aluno de curso equivalente ao 5.º ano do liceu tem em o utilizar para se empregar.
O director da Escola Fonseca Benevides, referindo-se a este aspecto da questão, escreveu:
«O curso da Escola não á etapa para lugares de relevo nas oficinas, mas sim habilitação para salas de desenho ou cursos de marinha, exército o aviação. A razão do desprezo dos diplomados das profissões para que foram preparados deve estar na diferença entre a cultura geral do curso e elevação do meio em que foram formados e o ambiente das oficinas, baixo demais para as pretensões que criaram». Também o parecer da Câmara Corporativa foca este mesmo aspecto ao aludir ao drama dos diplomados pelas escolas técnicas.
De tudo quanto ficou exposto no referente ao ensino elementar e complementar industrial parece poder concluir-se, independentemente da opinião que se tenha sobre as causas, que estamos em presença de dois factos incontroversos, que são: primeiro, pouco aproveitamento dos alunos que frequentam as escolas industriais; segundo, desinteresse dos diplomados pelo curso que escolheram.
Por isso, em presença desta situação, não podemos deixar de concordar que muito bem fez o Sr. Ministro em tentar modificar o actual estado de coisas no referente a este aspecto do ensino técnico.
Vejamos agora o que se passa quanto ao ensino técnico médio industrial.
O objectivo deste ensino, que é ministrado, como V. Ex.ª sabem, nos dois Institutos Industriais de Lisboa e Porto, é criar auxiliares de engenharia. A frequência destes dois Institutos era em 1943-1944, segundo as estatísticas, de 1:416 alunos e os que terminaram o curso foram 154.
Neste caso passa-se uma coisa parecida com o que atrás mencionamos. Os engenheiros queixam-se de que os ditos diplomados se recusam a desempenhar o papel de auxiliares, previsto por lei, e que eles, engenheiros, com cursos superiores, se vêem obrigados muitas vezes a desempenhar serviços que não estão bem dentro da sua categoria e que bom poderiam ser feitos por indivíduos que tivessem habilitações mais elementares, com benefício para a economia do serviço. Ora, porque é que tais diplomados, cuja função deveria ser a de auxiliares dos engenheiros, não se sujeitam a desempenhar essas funções e se recusam a colaborar com eles?
Dizem os diplomados dos institutos industriais que não há razão alguma para se verem colocados nesta situação de auxiliares, porquanto o curso do seu instituto dura aproximadamente o mesmo número de anos que o do Técnico, que o número de cadeiras é quase o mesmo e que a qualidade do ensino ministrado nelas é também muito análoga. Acrescentam ainda que a tradição inerente a estes cursos mostra que no tempo em que havia poucos engenheiros eram eles quem desempenhavam a maior parte das funções que hoje cabem aos diplomados do Instituto Superior Técnico.
Por isso pedem que se anulem as restrições postas à sua actividade, que os inibem de trabalhar em cimento armado, de projectar trabalhos de abastecimento de águas para povoações com mais de 999 habitantes, etc. E acabam por dizer que ou lhes dão as antigas regalias ou então é preferível extinguir o curso e substituí-lo por outros mais rudimentares.
A luta entre as duas classes, e cujo eco chegou ato nós através da representação do sindicato dos ditos diplomados, convém ser resolvida, e por isso, e principalmente para obviar à dita carência de auxiliares do engenheiros, há que modificar o actual estado de coisas. Se as escolas industriais preparam poucos alunos que sejam verdadeiros operários, como vimos, os institutos industriais também preparam poucos alunos que sejam verdadeiros auxiliares de engenheiros. Num o noutro caso nota-se excesso justificado de intelectualismo. O depoimento da Companhia União Fabril no inquérito não deixa de ser curioso de registar. Ei-lo: «Há uma notável deficiência na preparação prática dos diplomados do instituto industrial. Dir-se-ia que o curso não é conduzido no sentido de os preparar para dirigir directamente operários. Se eles continuarem a manter a tendência de serem engenheiros auxiliares, pouca utilidade terão na vida industrial. É indispensável que eles saibam pegar numa ferramenta e não receiem sujar as mãos».
Uma razão, pois, mais a juntar à mencionada, quando se tratou do ensino elementar, para justificar a actuação governamental apresentando esta proposta.
Eu gostaria de focar também detalhadamente as deficiências dos outros ramos de ensino tratados na proposta, mas isso levar-me-ia muito longe e a hora vai já bastante adiantada.
Não farei, portanto, grandes referências ao que só passa no ensino comercial, limitando-me u dizer que a situação é idêntica à do industrial, como se depreendo do próprio preâmbulo da proposta, que esclarece que apenas 3 por cento dos indivíduos que frequentam as escolas comerciais conseguem levar o seu curso até ao fim.
Quanto ao que se passa no ensino elementar agrícola, destinado a fornecer feitores e capatazes de lavoura, o qual é ministrado nas duas escolas da Paia e de Santo Tirso, onde havia, em 1943-1944, 225 alunos e em que os diplomados foram 36, limito-me a perguntar aos homens desta Câmara que têm ligação com a agricultura: conhecem muitos casos de particulares utilizarem tais diplomados para aqueles fins? Estou convencido de que não; e não me alongo nas razões de tal, precisamente pela falta de tempo, limitando-me a dizer que o único escoamento de tais diplomados são os serviços do Estado.

uanto ao ensino médio agrícola, creio que também os regentes agrícolas não têm saída para a lavoura; mas o caso destes diplomados merece mais algumas palavras.
O curso de regentes agrícolas, dado nas três escolas de Coimbra, Santarém e Évora, em que o número do alunos era em 1943-1944 de 517 e o de diplomados de 72, é de sete anos.
Apenas no 6.º e 7.º se estudam cadeiras propriamente tecnológicas. Nos primeiros cinco anos desse curso ministram-se todas as cadeiras dos também primeiros cinco anos

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dos liceus; mas no 4.º e 5.º ainda outras correlacionadas com a agricultura. Ora, se a maioria de nós já entende que há necessidade de aliviar os programas dos liceus, por se reconhecer que eles estão muito sobrecarregados, o que não deveremos pensar duma organização como esta dos regentes, em que o 4.º e 5.º anos ainda estão sobrecarregados com mais cadeiras e em que no 7.º se estudam dezasseis, como disse o Sr. Dr. Moura Relvas? E, como dois anos apenas para o estudo de cadeiras tecnológicas me parece pouco, julgo que esta organização também imponha uma intervenção ministerial.

O Sr. Querubim Guimarães: -V. Ex.ª dá-me licença?

V. Ex.ª parece ser de opinião de que nas escolas de regentes agrícolas deve apenas ser ministrado o ensino de matéria agrícola e posta de parte a cultura geral...

O Orador: - Eu não disse isso, e quando chegar à devida altura responderei a V. Ex.ª, visto que agora os to u a locar apenas as deficiências que encontro no ensino.
Destas considerações, que se alongaram por mais tempo do que eu queria e que visam as deficiências do ensino tratado pela proposta, concluo: que o aproveitamento dos alunos é deficiente em relação à frequência; que a maioria dos diplomados não se aproveita do ensino recebido: que os objectivos da orgânica actual de tal ramo de ensino não são conseguidos, o que mostra que há oportunidade e vantagem na apresentação da proposta.
Vejamos agora se as medidas propostas remedeiam tais inconvenientes, isto é, entremos na apreciação da economia da proposta.
Uma das inovações da proposta é a criação do ciclo preparatório elementar, criação esta que tão grande celeuma levantou aqui, ontem o hoje, por virtude das considerações que a tal respeito proferiu o orador que me antecedeu nesta tribuna.
É que tal conceito liga-se estreitamente à doutrina que defende a necessidade da ampliação da cultura geral mesmo nos cursos técnicos, conceito esse vigorosamente combatido pelos partidários da sua restrição em proveito da especialização.
O assunto é muito melindroso e tem sido debatido pelas autoridades mais diversas, e a proposta justifica a criação deste ciclo com a corrente doutrinal que, baseando-se nos dados das ciências psicológicas e em razões de carácter social e económico, preconiza a elevação para os 14 ou 15 anos da idade em que se deve iniciar qualquer aprendizagem de natureza estritamente profissional.
No relatório presente ao Ministro e que serviu de base pura a elaboração da proposta detalha-se mais o assunto, afirmando-se: «a escola técnica não pode limitar-se a criar o profissional, o homo economicus, mas cumpre-lhe formar o homem social, apto a determinar-se em ordem aos seus fins superiores e pessoais no quadro da Nação».
E mais adiante: «a sua função não pode cifrar-se em adestrar a mão que executa; cumpre-lhe preparar os espíritos para a compreensão dos problemas de ordem moral, política, económica e profissional que a vida apresenta a cada homem».
Por isto que fica lido podem V. Ex.ªs ver o aspecto transcendente o doutrinal sob que os órgãos responsáveis do Ministério da Educação Nacional encaram este problema. E eu não deixo de chamar a atenção de V. Ex.ªs para ele, porque traduz com certa fidelidade talvez o pensamento daqueles oradores que se pronunciaram neste sentido.
Por sua vez, a Associação Industrial de Lisboa, respondendo ao inquérito em que foi ouvida, encara o problema mais terra a terra, sob um aspecto mais prático, o que não quer dizer mais razoável. Ela escreveu:

O objectivo das escolas industriais não é mais do que fornecer operários hábeis e qualificados, conscienciosos e manejando com precisão os materiais da sua profissão. Por isso a escola deve ser essencialmente a oficina, e o próprio ensino do desenho não é necessário ir mais longe do que ao ponto que é necessário para o operário ficar habilitado a ler os desenhos.

Qual dos dois conceitos é de aceitar?
Eu tenho um pouco a impressão de que qualquer deles têm um aspecto bastante extremista, que talvez não mereça aprovação, e que no bem entendido meio termo é que estará o que é razoável e justo.
Se, por um lado, me parece que a Associação Industrial restringe demais o aspecto que deve ter o ensino e quer fazer apenas do operário uma simples máquina que trabalhe perfeitamente, por outro lado julgo que as locubrações em que se embrenham os órgãos burocráticos do Ministério a que me referi complicam a questão o não permitem abordar este assunto com aquele espirito de objectividade que convém.
Dir-se-á: a uma criança com 11 ou 12 anos não deve ser ministrado o ensino oficinal, porque a sua saúde se recente de tal. Eu tenho uma opinião um pouco diferente, e entendo que o trabalho oficinal, desde que seja ligeiro e condicionado à idade dos alunos e se entremeie com as aulas teóricas, não só não tem inconvenientes, mas até tem a vantagem de representar um descanso para o cérebro de quem o recebe.
Na visita que fiz há dias à escola dos salesianos, ordem especializada de há muitas dezenas de anos no ensino profissional, encontrei muitas crianças de 11 e 12 anos trabalhando quatro horas nas oficinas, além do tempo consagrado às aulas teóricas; e das informações colhidas fiquei com a impressão de que tal regime nada tem de contrário à saúde dos alunos.
O aproveitamento de tais pequenos operários não será grande? Nem isso se pretende, pois aquilo a que se visa é descobrir a vocação de cada qual, tendo-os mesmo nessa idade entregues à tarefa de trabalharem em diversas oficinas para que os mestres verifiquem diariamente quais as melhores aptidões que revelam, a fim de que no fim de um ou dois anos possam então dedicar-se especialmente a um certo e determinado oficio.
A idade é pouca para se descobrir tal vocação? Parece-me que a experiência do que sucedeu com cada um de nós nos mostra que tanto aos 11 como aos 13 a ideia que tínhamos sobre a escolha da carreira era a mesma. Aqui o que importa principalmente é descobrir a aptidão especial de cada um, o isso entendo que é bastante independente da idade e que se consegue mais facilmente pondo a criança a lidar com três ou quatro ofícios do que a estudar várias matérias de cultura geral e a esperar pelos 13 anos. De resto a proposta, embora dê a impressão de que o ciclo preparai rio visa mais a aumentar a cultura geral, ampliando os conhecimentos obtidos na escola primária, embora anexando-lhe os trabalhos manuais -que nós estamos habituados pela experiência a considerar um trabalho superficial-, a proposta, digo, estabelece que o dito ciclo deve ter o cunho de orientação profissional.
Ora parece-me que este cunho lhe é dado mais flagrantemente desde que se dê grande relevo aos trabalhos oficinais que, exercidos periodicamente, permitam descortinar a vocação especial de cada aluno. A não se fazer assim, e a querer-se que os dois anos de ciclo visem principalmente a ampliar a cultura geral, cairemos na seguinte situação: eles serão perdidos quase inteira-

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mente para o trabalho oficinal, e como a criança, ao deixar o ciclo para entrar no curso profissional, poderá ainda frequentar cursos-bases que a ajudem a descobrir a sua vocação, pergunto quantos anos é que ficam para o ensino propriamente dito do ofício. Ou os dois cursos não vão além dos cinco anos de hoje do das escolas profissionais, o então a preparação oficinal será muito pequena, ou eles se alongam, com os inconvenientes conhecidos.
Ora se hoje, com cinco anos de oficina, os alunos saem mal preparados profissionalmente e ainda com pretensões intelectuais, o que não sucederá amanhã se se aumentar a cultura geral em prejuízo da oficinal ou se se prolongar esse mesmo curso?
De resto, parece-me que há ainda que atender ao aspecto psicológico do caso, que requer que o aluno, desde que abandone o ensino primário, passe a maior parte do tempo na oficina e não nas aulas, para que se convença de que é principalmente um homem da classe operária, e não um escolar semiburguês, evitando-se assim o que agora se dá, no referente à relutância que ele mostra em se integrar nos meios operários. Terminarei a análise deste aspecto da proposta concordando com a criação do ciclo preparatório, sim, mas desde que se consigne bem claramente nela que ele terá um carácter predominantemente oficinal, visando à criação do espírito profissional e à descoberta das aptidões.
Terminada a análise do aspecto da proposta no referente à primeira inovação, que não pode deixar de ser bastante sucinta, em virtude da falta de tempo, passamos à duma outra, que reputo muito interessante, e que é das de maior importância da proposta. Quero referir-me ao curso de aprendizagem, no qual o tempo escolar é retirado do trabalho oficinal prestado aos particulares, sem qualquer dedução no salário do aprendiz. As estatísticas e a prática mostram que os cursos nocturnos dão maior rendimento que os diurnos. Isto deve-se atribuir não só à idade dos alunos, como principalmente à circunstância de eles irem receber o ensino teórico quando já possuem uma base de experiência oficinal que lhes permite uma apreensão mais perfeita dos assuntos tratados. E tal melhoria de aproveitamento ainda não é o que poderia ser se o dito operário não frequentasse as aulas depois de um dia inteiro de trabalho, que nem sempre lhe deixa disposição para seguir convenientemente as lições nem tempo para as preparar. Se, portanto, ao horário do trabalho oficinal prestado retirarmos umas duas horas para a frequência escolar; se as matérias dadas nos cursos tiverem uma ligação bem íntima com as necessidades da profissão, de modo a que o operário reconheça bem claramente a sua influência prática, estou certo de que conseguiremos aumentar o rendimento dos ditos cursos nocturnos pela diminuição do seu actual inconveniente: o cansaço do escolar. É certo que esta medida não agradará muito aos patrões, principalmente aos da pequena indústria, por representar mais um encargo com que eles vão ser onerados, mas com o tempo eles serão os primeiros a reconhecer que a melhoria da qualidade do trabalho dos ditos operários os compensa de sobra do sacrifício feito.
Quanto ao curso de mestrança também o reputo uma inovação muito feliz, por ele ser o complemento do anterior. Não basta termos operários mais ou menos hábeis, mas torna-se também necessário que os elementos chefes que estão em contacto directo com eles e que representam o traço de ligação entre os superiores dirigentes da indústria, técnicos ou administrativos e a massa operária tenha uma competência que os imponha à consideração dos seus subordinados. Ora hoje em dia a maioria dos mestres tem uma cultura geral e profissional que os deixaria bem pouco à vontade em presença de muitos alunos saídos das escolas profissionais se estes ingressassem nas oficinas em lugar de seguirem cursos superiores. Há, pois, que preparar os mestres de amanhã, e por isso só é de louvar a instituição do dito curso, que para mim tem apenas o inconveniente inerente aos actuais cursos nocturnos.
Se o operário tem pouca disposição e tempo para preparar as suas lições e tomá-las, outro tanto se dará com os aspirantes a mestres, e talvez num grau mais elevado, visto que a situação que estes já têm então nas oficinas os sobrecarrega diariamente com mais preocupação do que aos simples operários.
Examinadas as principais inovações apresentadas no capítulo do ensino industrial elementar e complementar, vejamos agora as que respeitam ao ensino médio.
Diz a proposta que não convém alterar o actual nível científico deste ensino nem a sua estrutura, mas apenas beneficiá-lo no seu aspecto laboratorial e oficinal. Parece-me que, nestas condições, os inconvenientes que se apontaram quando tratámos deste capítulo não se remedeiam, porquanto o conflito entre as duas classes de diplomados, e, pior do que isso, a falta de colaboração entre elas, se mantém. Pois se a razão de tal está no nível muito aproximado dos dois cursos, se, como tão bem se frisa na informação da C. U. P., atrás mencionada, e ainda doutras entidades, as preocupações de intelectualismo, porventura justificadas, dos diplomados pelo Instituto Industrial já os levam a aborrecer a função de técnicos que se não confine nos gabinetes de trabalho; desde que a situação actual se mantenha fica tudo na mesma.
Intensificam-se os trabalhos práticos? Mas sobrecarregados como já devem estar os alunos com aulas, desde que o número destas se não reduza e, consequentemente, baixe o nível cientifico do ensino, a inovação proposta tornará ainda mais pesado o curso.
Parece-me pois que a dita inovação deveria importar reduções substanciais na organização dos cursos de modo a aumentar mais a distância que separa tais diplomados dos do Instituto Superior Técnico e a diminuir aquela que os separará dos futuros mestres de oficinas e indústrias.
Este meu ponto de vista aproxima-se pois bastante do sindicato reclamante. Parece-me que esta situação de incompatibilidade entre duas classes, que se traduz no encarecimento de actividades que, podendo ser desempenhadas por elementos de cultura média, o são por outros de cultura superior, e nas dificuldades postas ao exercício profissional dos ditos elementos de cultura média, carece de remédio e de remédio imediato.
Passemos agora à parte da proposta que se refere ao ensino agrícola elementar. A grande inovação é a criação de cursos para trabalhadores. Reputo a ideia também muito feliz, pois num país como o nosso, em que as duas maiores riquezas agrícolas (olivais e vinhedos) são tratadas por trabalhadores tão mal preparados, não há dúvida de que é urgente remediar tais inconvenientes. Mas a modalidade adoptada é que me parece infeliz. Embora a base não seja perfeitamente explícita, da conjugação de três frases nela inseridas parece depreender-se que o legislador conta principalmente com os professores primários para dirigentes de tais cursos.
Assim, as referências de que só «quando se tornar necessário será criado um quadro especial de professores para este ensino», de que «serão organizados nas escolas agrícolas cursos de férias especialmente destinados a professores primários dos meios rurais» e de que o a serviço desempenhado por estes professores primários será remunerado extraordinariamente», tudo isso, mas principalmente a primeira frase, me dá tal impressão, que é de resto a de muitos dos nossos colegas com quem falei a tal respeito.

Uma voz: - Não é essa a intenção do legislador.

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O Orador: - Talvez; mas apesar do emprego da palavra parcialmente, julgo que não se pode tirar outra conclusão que não seja a minha.

O Sr. Marques de Carvalho: - O professor primário tem de dirigir apenas a preparação geral; não a preparação técnica.

O Orador: - Mas onde está isso escrito?

O Sr. Marques de Carvalho: - Numa das bases da proposta.

O Orador: - V. Ex.ª quer ter a bondade de mo mostrar?

O Sr. Marques de Carvalho: - Tem V. Ex.ª razão. Está numa das bases do texto proposto pela Câmara Corporativa, e não no da proposta do Governo.

O Orador: - Ora se os nossos trabalhadores e até lavradores não acreditam muito na acção dos técnicos agrícolas, e isso é uma injustiça que hoje em dia principalmente não tem fundamento, o que não sucederá amanhã, quando eles virem os professores primários a orientar tais cursos?

O Sr. Mário de Figueiredo: - Hoje, em todo o caso, aquela descrença é menor.

O Orador: - Sim, em virtude da eficiência da actuação das brigadas técnicas, que metem pelos olhos dentro dos interessados que a acção dos especialistas é de aproveitar, mas, em todo o caso, a impressão da maioria ainda é aquela que expus.
Mas, além desta circunstância - a da incompetência do professor - e ela é fundamental, há ainda que encarar a outra, de que o professor não teria tempo para andar dias inteiros no campo a orientar os cursos de podadores, enxertadores, etc., exercidos em olivais, vinhedos e pomares, e a percorrer lagares ensinando a preparar o vinho, o azeite, etc.
Ora, nos tais cursos de trabalhadores o que interessa é este aspecto prático, de resto demonstrado já actualmente pela acção das actuais brigadas do Ministério da Economia e de certos organismos autónomos. A actuação de tais brigadas tem sido utilíssima, e pena é que elas se não multipliquem de modo a inundar o País com legiões de instrutores, para que em meia dúzia de anos os processos de tratamentos agrícolas atrás referidos não sofram uma mudança radical. Não me parece isto impossível, nem sequer de difícil realização, pois é uma questão de dinheiro e de organização. Ora, dinheiro hoje não falta ao Estado, e, quanto a elementos docentes para ministrarem tal ensino, que não pode deixar de ser rudimentar, ou eles já existem ou se preparam com facilidade. Julgo pois que os cursos previstos pela proposta teriam eficiência conveniente, aproveitando-se a organização que já está montada -a das brigadas atrás referidas- e dando-lhe proporções gigantescas.
Mas há que pôr de parte em absoluto a ideia do aproveitamento dos professores? N ao, mas segundo outra modalidade. Eu entendo que eles deveriam ser utilizados para ministrarem rudimentos de ensino teórico, e mesmo prático mas apenas aos seus alunos. Nas escolas coloniais, principalmente nas pertencentes a missões religiosas, é frequente encontrar hortos anexos às mesmas, em que os alunos praticam a agricultura nas suas modalidades hortícolas principalmente, ao mesmo tempo que tais hortos contribuem ainda para a sustentação dos internatos. Hoje, que em Portugal se fala tanto, e com razão, na necessidade do estabelecimento de cantinas escolares, parece-me que não deixaria de ser razoável encarar a ideia do estabelecimento de tais hortos junto das escolas dos meios rurais. Os alunos, se anualmente limpassem o seu olival segundo as regras da técnica moderna; se colhessem a azeitona em iguais condições; se realizassem enfim todas as outras operações de tratamento que ele exige; se fizessem operações análogas para um pedaço de vinha e de pomar; se tratassem dos animais dos seus estábulos; se cuidassem de um pedaço de horta que fornecesse legumes, hortaliças às suas cantinas, etc., muitos desses alunos, mesmo crianças, depois de andarem três ou quatro anos a assistir ou a praticar tal, ficariam com uns conhecimentos que lhes serviriam pela vida fora. Só quem não conhece pessoalmente o que se faz em tal capítulo lá fora, nas nossas colónias, pode tomar à conta de puro teorismo quanto fica dito.
É preciso dinheiro para adquirir tais hortos e prepará-los para tal função? É certo.
É preciso recorrer a mão-de-obra paga para ajudar os alunos nos serviços mais pesados? Também é certo. Mas o proveito pedagógico que se colheria de tal e o material traduzido na contribuição fornecida às cantinas, e principalmente num melhor rendimento a obter da produção agrícola em anos próximos, seria compensação bastante para o dispêndio feito. Desde que tal ensino não tenha pruridos de tecnicismo perfeito; desde que a actuação do professor primário seja orientada de vez em quando pelas brigadas que uma vez por outra aparecerão em aldeias e logarejos, parece-me que o que fica exposto não deixaria de ter vantagem.
Quanto às disposições referentes à preparação de capatazes e regentes agrícolas, parece-me que elas enfermam do mal de se querer diminuir a permanência dos alunos nas respectivas escolas, com o fundamento de que a preparação geral presentemente nelas adquirida pode ser alcançada cá fora, permitindo assim que se aumente a frequência dos cursos propriamente especializados. Não deixo de reconhecer o valor do argumento, mas parece-me que as vantagens da medida são menores que os seus inconvenientes, principalmente no que respeita aos capatazes.
Estes precisam de ser homens que, tal qual os operários especializados, adquiram uma mentalidade profissional tão acentuada que a sua actuação normal se faça segundo normas mais ou menos automáticas. O procedimento de tais indivíduos ao ensinarem qualquer operação agrícola aos trabalhadores que dirigem deve ter alguma coisa de instintivo, que só lhes poderá provir de um longo contacto com tais práticas. É preciso que um capataz, ao ensinar a manejar um tractor, a adubar um campo de trigo, a fazer tantas operações deste género, não esteja a pensar como o deve fazer, recapitulando conhecimentos adquiridos, mas que proceda como atrás dizíamos, mais ou menos automaticamente. Ora isto não se consegue senão com o contacto diário e realizado durante anos com coisas agrícolas.
Parece-me, pois, que o tirar-se o ciclo preparatório fora da escola, o exigir-se o estágio igualmente fora e o ter o aluno apenas um ano ou dois na mesma não lhe dará aquele cunho profissional que julgo indispensável. Eu julgo mesmo que é esta ausência de espírito de classe bem acentuada que se nota em quase todas as classes da sociedade portuguesa, com excepção dos oficiais saídos do Colégio Militar, dos actuais regentes agrícolas e pouco mais, que contribui para um deficiente funcionamento dos serviços públicos e actividades particulares.
Tudo quanto seja criar ou reforçar o espírito corporativo, tão acentuado na Idade Média, parece-me que deve ser animado. Por isso julgo que, a querer-se também admitir o regime do externato, o sistema obrigatório da permanência durante todo o dia nas ditas escolas, como de resto já hoje temos exemplo no Instituto Superior

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Técnico, deve ser adoptado quer nas escolas de capatazes quer de regentes, e que a modificação dos programas dos regentes agrícolas, de modo a dar-lhes uma cultura mais especializada, mesmo com prejuízo das matérias do ciclo liceal, deve igualmente fazer-se.
Haveria ainda várias outras observações a fazer sobre o recrutamento do professorado, e mesmo sobre o aspecto vago, impreciso e demasiado condicional de certas disposições que se pretendem justificar com a característica que a Constituição Política impõe à redacção de bases. Há tantas referências ao que se «poderá» fazer, no referente à possível obrigatoriedade da frequência escolar para a promoção do aprendizado, à possível inclusão de trabalho oficinal nos cursos complementares e de aprendizagem, à possível exigência do exame de admissão para a matrícula no ciclo preparatório, etc., que talvez não deixasse de convir tratar este aspecto da questão, mas a escassez do tempo tal não me permite. Concluirei pois esta minha intervenção no debate por chamar a atenção do V. Ex.ª para o aspecto da comparticipação que à corporação deve pertencer na organização do ensino, aspecto que num regime político corporativo como o nosso tem importância.
Há tratadistas, como Manoilesco, que, possuidores de ideias extremistas a tal respeito, sustentam o critério de que o ensino deve ser entregue exclusivamente às diversas corporações. Permitam-me V. Ex.ª que eu lhes leia o seguinte pequeno trecho de uma das suas obras:

A actividade educativa, mesmo nas suas formas escolares de natureza geral, deve transitar para a corporação do ensino, tão autónoma como qualquer outra. A autonomia corporativa compreende também a autonomia da educação corporativa.
Neste sentido as corporações económicas, agrícolas, industriais e de comércio terão cada uma o sen ensino profissional, cujos encargos devem suportar.

Por outro lado, partidários doutras escolas sustentam doutrina absolutamente contrária, a de que o Estado deve ter o exclusivismo do ensino, ou de que pelo menos a comparticipação dos particulares ou das corporações deve ser restringida segundo determinadas normas. Seria fastidioso estar agora a abordar a questão em toda a sua profundeza, limitando-me eu apenas a chamar a atenção de V. Ex.ªs para o facto de que hoje em dia entre nós já funcionam vários cursos de ensino o mais diverso, montados, um pouco à margem do Estado, pelos organismos corporativos, e com bons resultados.
Parece-me que as experiências já realizadas pela Junta Nacional do Vinho aconselham a ampliação a outros organismos corporativos, ampliação essa gradual e cada vez mais acentuada, de modo a libertar o Estado dum certo número de encargos, a fazer com que tais cursos tenham uma estreita ligação com as actividades económicas a que dizem respeito, melhorando pois o seu rendimento, e finalmente contribuindo para que a função do Estado sofra restrições neste capítulo, compensando assim a sua mais activa intromissão noutras que as circunstâncias impõem. Evitar-se há assim a hipertrofia que tanto se tem criticado já.

Terminarei dizendo que do tudo quanto ficou dito não queiram V. Ex.ª ver senão uma simples contribuição para uma possível melhoria da proposta em discussão. O conhecimento que tomei dos relatórios oficiais e dos inquéritos realizados, completado com os informes colhidos pessoalmente nos meios escolares e industriais, permitiram-me encarar a questão sob um aspecto que eu, talvez mal, considero bem objectivo e realista, aspecto que, salvo melhor opinião, conviria ser adoptado cada vez mais neste País, em que o teorismo e a ausência de espírito realizador dominam a maior parto das mentalidades.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Antunes Guimarães: - Sr. Presidente: independentemente da necessidade da reforma do ensino técnico, para que ao respectivo pessoal docente fossem, finalmente, abonadas novas retribuições, em obediência aos preceitos do decreto-lei n.º 26:115, de 23 de Novembro de 1935, e das vantagens que para a intensificação de obras relativas a tão importante sector da instrução pública não deixarão de resultar desta proposta de lei, conforme aqui ouvimos ao nosso distinto colega e antigo Ministro Sr. Dr. Sousa Pinto, e embora o ideal fosse traçar-se um plano geral de instrução antes que parcelarmente se legisle sobre os diferentes graus e capítulos do ensino, devo começar pela afirmação de que esta proposta de lei, além de certas inovações, a que adiante me referirei, e de nos proporcionar o ensejo de discutir tão urgente problema, nos traz a esperança de que o Governo, que já tem promovido obras importantíssimas noutros sectores do vasto distrito escolar, vai também dotar o ensino técnico com instalações, para que, finalmente, ele frutifique.
Sr. Presidente: indubitavelmente, torna-se cada vez mais instante a necessidade do ensino técnico, mas com feição indiscutivelmente prática e generalizado a todas as actividades.
É que estamos em plena idade da máquina.
Mas, paralelamente com os conhecimentos precisos para a conveniente condução dos múltiplos engenhos dia a dia postos à disposição dos trabalhadores, indispensável se torna habilitá-los também com outras noções, embora simples, mas adquiridas em pleno trabalho, para compreensão dos fenómenos que ali surgirem e, consequentemente se conseguir maior rendimento e perfeição.
Aquando da I Conferência da União Nacional eu aludi à obra ciclópica realizada pelos nossos antepassados, cujo esforço tinha apenas a colaboração de engenhos rudimentares, bem como da tracção animal, e ainda a energia da água e do vento aproveitadas em seus primitivos moinhos.
Mas, assim mesmo, a perseverança de muitas gerações conseguiu transformar encostas estéreis em socalcos fertilíssimos, enxugar extensas regiões pantanosas e regularizar torrentes impetuosas, para defesa contra a erosão, de maneira a transformá-las em factor precioso de irrigação e, simultaneamente, para garantia do funcionamento de inúmeras azenhas.
Sr. Presidente: para não sucumbir na duríssima luta económica da nossa época, já não bastariam por si sós aqueles agentes, impondo-se o aproveitamento de recursos que a mecânica, a química e outros importantes distritos da ciência põem à disposição dos que nas diferentes modalidades industriais e agrícolas aplicam sua energia.
Se nas grandes unidades fabris (onde o regime da especialização atinge graus extremos, dispensando certos conhecimentos técnicos aos operários correntes, quase sempre reduzidos à vigilância de máquinas cujo funcionamento ignoram) se não justifica a presença assídua de técnicos especializados, conhecedores das engrenagens e do respectivo trabalho e, assim, capazes de repará-las, já nas unidades de tipo menor, e sobretudo quando dispersas na província (estrutura por várias razões mais indicada neste País e para muitas indústrias), os operários de certa categoria não podem dispensar algumas habilitações gerais, para que o fabrico atinja o grau de rendimento económicamente indicado.

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É o caso do médico rural, que geralmente carece de ser policlínico, porque os especialistas convergem para os grandes centros.
Bem sei que a conveniente organização das indústrias dispersas e uma boa rede de comunicações podem, até certo ponto, concorrer para a garantia da presença de técnicos especializados sempre que venha a ser precisa.
Mas isto levará ainda bastante tempo, e há que caminhar quanto antes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - As considerações feitas sobre actividades industriais aplicam-se à lavoura, onde a tendência para a constituição de casais médios é bem notória. O feitor e, particularmente no que respeita à região nortenha, o caseiro, que é geralmente quem dirige a faina agrícola e que, juntamente com o proprietário, são os melhores mestres dos seus jornaleiros, só viriam a lucrar habilitando-se no emprego racional de produtos utilíssimos que a ciência lhes faculta e na utilização económica de máquinas hoje postas à sua disposição, as quais não deixarão de vir a generalizar-se quando a energia eléctrica se tornar acessível em preço, como é fundamental para não ficarmos para trás em relação a outros povos.
Sem falar nas deploráveis produções, de insignificante rendimento e de qualidade inferior, causa dó verificar em algumas quintas de proprietários progressivos os grandes prejuízos causados por inexperientes em motores e outros maquinismos de alto preço, que deveriam ser vantajosíssimos se convenientemente utilizados.
E o calvário dos que recorrem a certos produtos químicos para fertilização da terra e desinfecção de pomares e de muitas outras culturas?
Salvo no que respeita a olivais e vinhas, onde as podas têm melhorado bastante, a carência de podadores causa sérias arrelias aos que, após despenderem somas avultadas na plantação de fruteiras e outras plantas, vêm depois a lutar com a quase impossibilidade de obtenção de pessoal idóneo para os indispensáveis tratamentos, tendo-se registado estragos irremediáveis por se ter sido obrigado a recorrer a pessoal inexperiente, à falta de outro melhor.
No importante sector da pecuária registam-se com frequência autênticos fracassos.
E até acontece vir a sofrer seriamente a saúde pública em consequência da crassa ignorância dos mais rudimentares preceitos de higiene, o que importa evitar sem demora.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não obstante, certas regiões do continente são particularmente dotadas pela natureza para lucrativas explorações zootécnicas.
Como excelentemente dotadas para a vitivinicultura se mostram vastas regiões portuguesas, sendo, porém, de registar que, salvo alguns vinhos de grande categoria, destacadamente os produzidos na afamada região duriense, acontece não serem convenientemente tratadas (com grandes prejuízos para a nossa economia, que vai assim perdendo lucros consideráveis) muitas massas vinárias excelentes, devido à ignorância de elementares preceitos de enologia.
Notòriamente nos vinhos brancos, a falta da aplicação de cristais de enxofre e de tanino, agravada pela teimosia de os demorar na «mãe», revela-se na sua turvação e noutros defeitos que lhes diminuem o valor, quando os não condenam para o consumo, males a que também não escapam os vinhos tintos quando indevidamente tratados.
São assim incalculáveis os prejuízos devidos a insuficiente preparação técnica dos operários, em máquinas inutilizadas ou diminuídas na sua duração por desgaste anormal, em rendimento imperfeito ou insuficiente, bem como na produção de géneros do baixo valor ou impróprios para o consumo, e, desta fornia, incapazes de vencerem na luta com produtores estrangeiros, devidamente apetrechados com as melhores máquinas, conhecedores das fórmulas mais eficientes e aos quais não faltam, geralmente, recursos técnicos adaptados às condições particulares das regiões onde o trabalho deve realizar-se.
Sr. Presidente: estas graves lacunas não têm escapado, desde há muito, a vários governantes e outras entidades, que, duma maneira geral, só tom esforçado por evitá-las, ordenando diversas providências com vista ao ensino técnico, mas quase sempre de resultados precários.
Remontando a épocas distantes, começarei por citar as escolas dos mesteirais, onde artífices célebres aprenderam, em ambiente familiar, o manejo das indústrias fundamentais naqueles tempos remotos ou os segredos de delicadas artes, de que ainda se conservam relíquias preciosas.
Ao ilustre investigador A. L. de Carvalho devemos o estudo, desenvolvido e muito documentado, Os Mesteres de Guimarães, concelho onde nasci, no qual se lêem notícias interessantíssimas sobre as diversas artes ali exercidas com subida competência durante séculos, génese do actual e importante centro industrial daquele concelho e das vastas e conhecidas zonas do Ave e do Vizela, que o cercam, e onde laboram indústrias fundamentais da economia portuguesa, entre as quais se destacam a fiação o tecelagem, as cutilarias e os curtumes, lado a lado com as de marcado cunho artístico, como a marcenaria e também a ourivesaria, na qual -quem sabe?- talvez tivesse, na era quinhentista, praticado o genial Gil Vicente, que alguns dizem natural da terra onde nasceu a nacionalidade e a quem devemos, além dos monumentos literários que formam os alicerces do teatro português, a famosa custódia de Belém, construída com as primeiras pepitas auríferas trazidas pelos nossos grandes navegadores.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: no que respeita ao importante sector da agricultura, entendo dever referir-me aos monges-agrónomos, como lhes chama Vieira Natividade no seu belo trabalho sobre o convento de Alcobaça, os quais, naquele e noutros mosteiros espalhados pelo País, muito contribuíram para difundir bons ensinamentos, como para melhorar e seleccionar castas, variedades e raças, que muito vieram a valorizar a lavoura e a desenvolver a pecuária.
A alienação, por tuta e meia, da quase totalidade dos conventos privou a economia nacional de alguns centros úteis do instrução, que muito conviria ter continuado, após a sua conveniente adaptação às necessidades do ensino, pois dificilmente poderão agora ser supridos, pelo custo elevadíssimo de variadas instalações para alunos, aulas, laboratórios e outros fins e áreas amplas de boa terra apropriadas ao ensino e aos múltiplos ensaios de que as actividades agrícolas carecem continuamente de ser ajudadas para acompanhar o progresso.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: no valioso parecer da douta Câmara Corporativa sobre esta proposta de lei alude-se com inteligente oportunidade à conjugação (para se ir ganhando tempo na execução do programa de progresso industrial) do recurso aos que noutros países tomaram a dianteira, para começar a criar com eles a função, com a norma de se mandarem técnicos aos

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centros mais avançados, para, nos locais do trabalho, verem trabalhar e trabalharem também.
E ao lado de Colbert, a quem a França muito deve, cita-se Pombal, a quem muito ficámos devendo também.
A leitura desta passagem trouxe-me à memória factos ocorridos na minha meninice, quando morava em Braga e da casa habitada por minha família VI iniciarem-se, na cerca dos Congregados, uns pavilhões destinados à escola industrial com que o grande estadista Emídio Navarro decidira dotar a capital minhota, de tradições muito honrosas no que respeita a várias indústrias.
Volvido pouco tempo as obras pararam, não tendo ido além das paredes mestras.
Recordo-me do comentário que o caso merecera a meu saudoso pai: «Estes políticos não imaginam o mal que fazem a esta terra não deixando que se acabe o ninho que a águia aqui veio fazer».
Passados cerca de quarenta anos coube-me a honra e o prazer de contribuir, como Ministro do Estado Novo, para a conclusão daquelas obras, por tanto tempo paradas e que têm prestado àquela terra de trabalho valiosos serviços.
Emídio Navarro não se limitou a traçar o plano de uma vasta rede de escolas industriais, tendo algumas sido concluídas e já com boa folha de serviços ao ensino técnico.
A de Viseu, terra natal do ilustre estadista, recebera o honroso título de Escola Industrial Emídio Navarro, mas que, afinal, não foi mantido por muito tempo.
Pois, como vinha dizendo, no seguimento de Colbert e Pombal, que, segundo refere o erudito parecer da Câmara Corporativa, «procuraram onde os havia os artífices de que precisaram para o arranque dos seus programas de renovação», também Emídio Navarro, para demarcar a sua oportuna e penetrante visão de política industrial, recorreu a técnicos de países onde as indústrias então floresciam.
Recordo os nomes de Korrodi, Van Krichen, Mastbaun, Choffat, Fiorentini e, sobretudo, de Charles Le-pierre, de quem recebi sábias lições nos laboratórios da Universidade de Coimbra quando ali cursei a Faculdade de Medicina, e que depois veio a ser professor muito distinto da Universidade Técnica de Lisboa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Também é de toda a justiça uma referência à instituição de muitas bolsas de estudo, que têm permitido a numerosos portugueses obterem em grandes centros industriais do estrangeiro a preparação técnica precisa para serem úteis a si e à Nação.
A outros estadistas, de entre os quais destaco o nome do Dr. Azevedo Neves, que em 1918 enfrentou uma reforma vasta e sistemática do ensino técnico, mereceu atenção este magno problema, mas é me impossível desenvolver, como, aliás, bem o mereciam, o valor das suas providências.
O tempo regimental e escasso em demasia para tais dissertações.
Sr. Presidente: permita V. Exa que, antes de entrar propriamente na apreciação da reforma do ensino técnico profissional prevista na proposta de lei em discussão, eu, embora muito de passagem, aluda à intervenção do Estado Novo «m tão importante matéria, especialmente à legislação publicada em 1931 pelo Grovêrno de que fiz parte e em que sobraçava a pasta da Instrução Pública o ilustre Ministro Sr. Dr. Cordeiro Ramos.
Os diplomas mais importantes então enviados para o Diário do Governo foram os decretos n.ºs 18:420, 20:328 e 20:420, sôbre ensino técnico industrial, e os decretos n.ºs 18:908 e 18:909, sobre ensino agrícola.
Trata-se de documentos muito extensos e bastante completos, mas que, como neles se diz, não alteraram profundamente as bases enunciadas em elevados conceitos na reforma de 1918.
Visava-se mais uma codificação dos mesmos princípios, com o fim de corrigir certas deficiências reveladas pela experiência.
Sr. Presidente: muito haveria a dizer a respeito da legislação publicada pelo Estado Novo sobre ensino técnico agrícola e industrial, mas não é propriamente desses diplomas que se trata agora, embora me tenha interessado o seu confronto com a proposta de lei em discussão, para verificar as inovações e modificações que ela nos traz.
Ao fazê-lo fiquei com a impressão de que, salvo questões de pormenor e na sua maior parte de ordem regulamentar, são pouca» aã diferenças entre as duas reformas.
A primeira inovação, possivelmente de maior envergadura, encontra-se logo na base II, que determina a criação do l.º grau do ensino técnico, constituído por um ciclo preparatório elementar de educação e pré-aprendizagem geral, normalmente com a duração de dois anos, destinado a ministrar aos candidatos com a idade mínima de 11 anos aprovados na 4.a classe de instrução primária as habilitações precisas para a admissão nos cursos técnicos respeitantes às profissões qualificadas da indústria, do comércio e da agricultura.
O notável discurso proferido pelo ilustre Subsecretário de Estado da Educação Nacional, Sr. Dr. Leite Pinto, na inauguração da primeira escola do tipo formulado nesta base, levada a efeito na vila do Barreiro, e a que muito justamente foi dada a designação de Alfredo da Silva, o grande propugnador da indústria nacional, destacadamente da que labora naquele importante centro fabril, constituiu uma proveitosa lição, em que se definem as suas características e vantagens.
Disse aquele distinto membro do Governo: «Visa-se a assegurar a ligação do -ensino primário com o ensino profissional, suprimindo a paragem antiducativa a que até agora tem sido forçadas todas as crianças que, tendo sido aprovadas, à volta dos 11 anos, no exame de 4.a classe, pretendiam ingressar em qualquer curso técnico».
Criava-se assim c um ciclo preparatório de educação e pré-apreudizagem geral, avenida de aproximação, vestíbulo ou prelúdio de qualquer aprendizagem diferenciada. Durante os dois anos deste ciclo não se fará eu* sino profissional, mas tudo se encaminhará no sentido de facilitar aos alunos, no seu termo, a opção por qualquer das profissões que o meio lhes oferece».
O aluno nas oficinas adequadas à sua tenra idade trabalhará, «não como aprendiz de um ofício mecânico, mas como construtor dos seus brinquedos e utilidades, para que nesse trabalho experimente e exercite a alegria e o gosto de dominar os materiais inertes, de triunfar da sua existência e de os afeiçoar aos seus próprios desígnios, «lê criar novas formas e até de produzir riqueza.
Ao cabo deste período de dois anos de vida escolar estará o espírito preparado e estarão os músculos aptos para a aprendizagem de qualquer profissão nas fileiras das grandes ou das pequenas unidades da indústria ou do comércio».
O que, Sr. Presidente, acabo de ler entende-se como uma escola num grande centro fabril.

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Trata-se de uma experiência interessante, da qual pode discordar-se, como acabamos de ouvir da boca autorizada do nosso ilustre colega Sr. Dr. Moura Relvas, mas que é digna de tentar-se. Tudo depende da competência dos professores a quem ela for confiada e dos elementos materiais com que tais escolas vierem a ser dotadas.
Assim, como se diz na base XVI da proposta de lei, o ensino elementar agrícola pode ser ministrado nas sedes de grémios da lavoura, de Casas do Povo, nas escolas primárias e noutros locais para tal fim apropriados, preferindo-se os que disponham d>e terrenos anexos para demonstrações.
Ora, pergunto eu, como obter esses terrenos anexos, sem os quais a aprendizagem não se faria em condições e resultariam nulos os resultados da escola elementar no respeitante à sua função de iniciar os alunos em trabalhos de lavoura?
Já em tempos eu o disse nesta Assembleia e até sobre tão importante problema apresentei um projecto de lei, com que visava o aproveitamento para tão útil fim de uma parte da grande área de baldios espalhados por todo o País.
Constituir-se-iam, onde fosse possível, casais da escola, em que as crianças, auxiliadas pelos pais « dirigidas, de tempos a tempos, por técnicos competentes, aprenderiam, simultaneamente com as noções de instrução primária, a trabalhar a terra, que lhes forneceria o indispensável para a manutenção da respectiva cantina escolar.
Previa-se também a criação de pequenas indústrias locais anexas para a pré-aprendizagem, agora prevista nesta proposta de lei.
O desenvolvimento deste tema tomaria muito tempo, e portanto direi apenas que tal projecto de lei não mereceu parecer favorável da Câmara Corporativa.
A melhor parte dos baldios (esses bens da comunidade de tão alta função (económico-social) vai constituir lotes de propriedade privada, deixando-se às Casas do Povo e outros organismos o que for incapaz de ser agricultado.
Discordei e continuo a discordar desse critério, pois entendo que, a seguirmos tão errado rumo, depois de termos alienado os conventos e, um século depois, os passais, ficará a comunidade sem os terrenos precisos para muitos fins colectivos de grande alcance, como o agora incluído na base XVI desta proposta de lei, que reconhece, e muito bem, a indispensabilidade de certa área de terrenos anexos às escolas elementares agrícolas para garantia de aproveitamento dos alunos. Há, pois, que sustar a distribuição de baldios a particulares, que já está em plena execução, até que se estude quais as áreas a reservar para o ensino elementar agrícola.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E não só para o ensino elementar agrícola mas também para o ensino médio e outras exigências do ensino em geral.
Na base IX encontramos a criação dos cursos de mestrança, que funcionarão em regime nocturno e nos grandes centros industriais, para ministrar a operários com habilitações profissionais suficientes e que trabalhem nos ramos relativos a esses cursos a instrução geral e técnica de que careçam para exercer funções de contramestres, mestres e chefes de oficina.
Na base XII notamos que o título tradicional de condutor, que em 1931 fora restabelecido, é mais uma vez suprimido, voltando a designar-se agentes técnicos de engenharia os diplomados pelos institutos de ensino médio industrial.
Este último título fora criado pelo artigo 4.º do decreto n.º 11:988, de 29 de Julho de 1986, que dizia: «Aos diplomados com qualquer curso de ensino técnico industrial médio é conferida a designação de agente técnico de engenharia».
Sr. Presidente: no já citado decreto n.º 20:3-28, de 19 de Setembro de 11931, suprimiu-se aquele título profissional de agente técnico de engenharia e restabeleceu-se o de condutor de obras públicas pelas razões que transcrevo do respectivo relatório:
«Um título profissional impreciso e incaracterístico acarreta inconvenientes para o equilíbrio geral e não menores prejuízos para os próprios diplomados.
E indispensável que o título profissional não tenha exclusivamente um significado académico, mais ou menos transcendente; importa mais do que tudo que ele aponte à consideração de todos a posição oficialmente reconhecida do profissional por uma designação a que a sociedade atribua o merecido e justo valor.
Dentro dessa ordem de ideias, o título de agentes técnicos de engenharia actualmente concedido aos diplomados dos institutos industriais não satisfaz ninguém.
E fácil encontrar na tradição do exercício das profissões técnicas em Portugal um título que essa própria tradição tornou honrosíssimo pelo notável valor praticamente demonstrado de muitos profissionais que justamente se orgulhavam de o possuir.
É esse título o de condutor de obras públicas, título tradicional, que à consideração de todos muito naturalmente se impõe».
E para corresponder às necessidades modernas, resultantes de especializações técnicas, criaram-se então os títulos de condutor de máquinas e electrotecnia, de obras públicas e minas e de quimicotecnia.
Sr. Presidente: as considerações que acabo de ler convenceram-me, em 1931, da justiça e vantagens que havia no restabelecimento do título de condutor de obras públicas, e por isso tive a honra de assinar o decreto n.º 20:328, que incluía aquela determinação.
Três meses antes tinha sido aprovado pelo Governo e publicado, sob proposta minha, o decreto n.º 19:880, que remodelava o Conselho Superior de Obras Públicas, o qual havia sido criado cerca de oitenta anos antes pelo alto espírito de Fontes Pereira de Melo.
Aventara-se durante os estudos daquela remodelação a ideia de os antigos inspectores de obras públicas componentes daquele alto organismo passarem a designar-se t conselheiros», uma vez que faziam parte de um conselho superior e as respectivas funções corresponderem mais propriamente a este título.
Pois alguns ilustres engenheiros que haviam subido àquela elevada categoria comunicaram-me que preferiam o tradicional, embora aparentemente modesto, título de inspector, porque muitas décadas de trabalho valioso, perseverante e patriótico o haviam indiscutivelmente prestigiado, norma significadora que não deixaria de patrioticamente ser continuada.
Li com o maior cuidado a argumentação sobre este tema do título profissional que o ilustre presidente do sindicato daqueles valiosos colaboradores do trabalho nacional submeteu a esta Assembleia e, francamente, não modifiquei a opinião que há cerca de quinze anos havia formado em face das razões então apreciadas e que me convenceram a assinar o decreto n.º 20:328.
Contudo, entendo dever ser amplamente facultada a indispensável frequência complementar do Instituto Superior Técnico ou da Faculdade de Engenharia, para que os diplomados pelos institutos industriais possam, sem exames de aptidão, aliás já demonstrada, e dispensados da repetição desnecessária de disciplinas em que haviam sido aprovados, aproveitar todo o trabalho escolar anteriormente realizado com aproveitamento para

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se habilitarem, sem delongas, despesas e exigências escolares descabidas, ao uso, legítimo do título de engenheiro e de vantagens que lhe são inerentes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Trata-se, de facto, da aplicação de um princípio de boa justiça e de grande alcance social, que, aliás, informa a inteligente proposta de lei e o muito valioso parecer da douta Câmara Corporativa que a esclarece e completa, qual é o de se franquear o acesso aos mais elevados degraus das diferentes carreiras, depois de se ter garantido o indispensável encadeamento no ensino de todas elas, tendo-se em atenção as realidades da vida, expressas nas alternativas da sorte, no despertar tardio de vocações e em muitas outras circunstâncias que é obrigação atender para se evitarem cortes de carreiras, a criação de autodidactas que poderiam ser muito mais úteis se não lhes negassem o socorro da instrução e a perda de muitos valores.
Ainda na última sessão legislativa o nosso distinto colega Sr. Melo Machado aludiu à dificuldade de os alunos da Faculdade de Engenharia do Porto transitarem para o Instituto Superior Técnico, de Lisboa, se por qualquer circunstância imperiosa encontrassem vantagens na deslocação do respectivo domicílio para a capital.
O assunto ainda não foi convenientemente solucionado a bem dos legítimos interesses dos alunos, quando parece que bastaria que os respectivos programas de estudos se unificassem nas duas escolas, estabelecendo-se dois anos de preparatórios de generalidades na Faculdade de Ciências ou no próprio Instituto Superior Técnico, seguidos de quatro anos de especialidades de engenharia, com programas idênticos nas respectivas escolas de Lisboa e Porto.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Disto não resultaria prejuízo para o ensino, nem aumento de despesa, e haveria vantagens e comodidade para os alunos, que, em última análise, é o que mais interessa nos estabelecimentos de ensino de qualquer grau ou especialidade.
Sr. Presidente: ainda dentro deste tema -o de atender aos legítimos interesses dos alunos e de não os sacrificar, bem como aos interesses da Nação, que neles precisa de encontrar bons colaboradores-, vou referir-me a uma afirmação oportuna do aludido discurso do Sr. Subsecretário de Estado da Educação Nacional na inauguração da Escola Alfredo da Silva, no Barreiro. Disse o ilustre membro do Governo:
Se o profissional adulto não deve trabalhar mais de oito horas diárias, não seria lógico nem legítimo que o aprendiz houvesse de realizar para além desse limite todo o esforço que a frequência da escola exige.
Princípio salutar, que, aliás, informa também a proposta de lei e respectivo parecer e que, por isso, deveria generalizar-se a todos os graus dos diferentes ensinos, para que não continue a assistir-se a esse quase suicídio de alunos que, depois de passarem todo o dia nas aulas em trabalho extenuante, são forçados a longas e seguidas vigílias para estudarem matérias extensíssimas, marcadas e escolhidas sem critério pedagógico para a lição do dia seguinte, não se atendendo a que há outras obrigações a preencher na vida e que a resistência física tem limites.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E as carreiras interrompidas só porque o aluno revela grande negação para determinadas disciplinas, que, no fim de contas, não são indispensáveis na luta duríssima pela vida?
Recordo a afirmação de um político prestigioso e agora no Governo -de que é dos mais novos componentes- de conhecer dois espíritos, dos mais brilhantes e actualmente em situação de destaque, que não concluíram os respectivos cursos por terem emperrado em determinada disciplina, que, afinal, não lhes foi precisa para nada.
A minha formação médica habituou-me a considerar os indivíduos sempre capazes de serem úteis, por maiores que sejam as lesões sofridas, desde que se promova com inteligência e perseverança a educação compensadora dos órgãos não afectados.
Quanto há ainda a fazer na simplificação dos programas, na redução dos horários, na garantia de elementar conforto nas instalações escolares, muitas vezes transformadas em autênticas Sibérias e onde é frequente chover, e na maneira de tratar e orientar os alunos, para que eles possam vir a ser os cidadãos de que a Pátria absolutamente carece?

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: estes problemas do ensino técnico, como, aliás, todos os que se relacionam com a instrução e educação, obcecam os espíritos por tal forma que, uma vez concentrados no seu estudo, dificilmente conseguimos desviar a atenção para outros assuntos.
Desta forma, seria um desejo focar as múltiplas facetas em que a proposta e o parecer abundam e nas quais se verifica incontestável proficiência, mas os ponteiros do relógio que está na minha frente indicam-me a limitação regimental do tempo que me é permitido conservar-me nesta tribuna.
Mas há ainda uns pontos a que desejo referir-me. Antes de mais nada importa que na lei se garanta aos futuros trabalhadores os ensinamentos necessários para assegurar os preceitos da higiene em todos os sectores de trabalho.
E na base XI incluir, entre os diplomados para recrutamento do professorado do ensino técnico, os diplomados em Medicina, que, além doutras habilitações, são os mais indicados para ensinarem preceitos de higiene.
Alude-se naqueles diplomas à criação de novas escolas para o ensino técnico. Assim, na base XXV, com que se remata a proposta de lei, diz-se que «serão construídos, adaptados ou ampliados e devidamente equipados os estabelecimentos de ensino a que se refere a proposta, de harmonia com o plano de execução, a fixar pelo Governo».
E já no final das considerações que precedem as bases o Governo afirmara:
Estamos perante um problema de ordem material, que, como problema prévio, condiciona a solução de todos os outros.
Plenamente de acordo.
Como já tive ocasião de afirmar, legislação neste capítulo não nos tem faltado, e geralmente satisfatória.
Se o ensino técnico não tem correspondido, tanto no sector industrial como no agrícola, ao muito que seria preciso para que as iniciativas surgissem e as actividades prosperassem no grau indispensável ao progresso da Nação, é justamente, e em grande parte, devido à insuficiência material a que se alude nos diplomas em discussão e, também, por falta de clima propício ao desabrochar de empreendimentos económicos.

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Em 1931, quando o Governo a que pertenci publicou a série de decretos, a que já fiz referência, sobre ensino técnico industrial e agrícola, eram enfrentados simultaneamente outros problemas com que se visava proporcionar às actividades crédito acessível, energia eléctrica em condições aceitáveis, transportes rápidos, seguros o com tarifas módicas, e outros elementos fundamentais que todos conhecem e, assim, me dispenso de enumerar.
Essa política não foi seguida dentro do critério que de início a norteara; por outro lado, a necessidade de fazer economias determinou o sacrifício de importantes instituições escolares.
Assim, suprimiram-se a Faculdade de Direito de Lisboa e a de Farmácia de Coimbra, mas felizmente não tardaram a ser mais ou menos restabelecidas. Mas no Porto foram suprimidos o Instituto Superior de Comércio e a Faculdade de Letras, que ainda não lograram ser restabelecidos, como seria de toda a justiça, e chegou até a pensar-se lia supressão da Faculdade de Engenharia, o que seria erro gravíssimo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Velhos institutos, nascidos da iniciativa portuense, expressa pela Companhia da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e traduzida primeiramente na «Aula de náutica» e depois na t Aula de debuxo e desenho», transformaram-se, por iniciativa de Passos Manuel, na Academia Politécnica. Mais tarde surgiu o Instituto Industrial e Comercial do Porto e, depois de vicissitudes várias que seria longo descrever, foi, em 1933, suprimido o Instituto Superior de Comércio daquela cidade.
Sr. Presidente: da mesma forma que na cidade de Lisboa o ensino comercial tem como coroamento a Faculdade de Ciências Económicas e Financeiras, também a cidade do Porto, centro de florescentes actividades, não pode dispensar a criação imediata de sua Faculdade de Ciências Económicas e Financeiras, tanto mais que daí não resultariam grandes encargos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Também está absolutamente indicado que a região nortenha, especialmente a minhota, seja beneficiada com os ensinos médios industrial e agrícola, estando para isso naturalmente indicadas as cidades de Braga e Guimarães, que constituem os centros de actividades importantíssimas que não podem dispensar o concurso de técnicos convenientemente habilitados.
No futuro, da mesma forma que o ensino técnico industrial do Norte culmina na Faculdade de Engenharia do Porto, que tão distintos engenheiros tem habilitado, e que, necessariamente, o ensino comercial não deixará de vir a ter por coroamento a Faculdade de Ciências Económicas e Financeiras do Porto, cuja falta ali muito se tem feito sentir para os altos interesses representados naquele importante e progressivo burgo, também o ensino agrícola há-de vir a ter o remate indispensável num Instituto de Agronomia do Norte, para que a lavoura nortenha, de acentuada policultura, disponha finalmente de técnicos que a possam orientar na grande faina de que a Nação está absolutamente carecida.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Felizmente a orientação sábia da Fazenda Pública e de todos os outros departamentos da administração do Estado tem sido de molde a poderem realizar-se, finalmente, aquelas justíssimas aspirações dos nortenhos para que não continue a faltar-lhes um dos principais factores do trabalho constituído pela colaboração de técnicos convenientemente preparados.
Sr. Presidente: alude-se na proposta de lei à criação de um quadro especial de professores para o ensino elementar agrícola móvel.
A este regime de ensino móvel já a lavoura devo valiosos ensinamentos, cumprindo destacar-se os de algumas brigadas técnicas, como as que têm habilitado podadores de oliveiras e ensinado com proveito em campos de demonstração.
Lembro a instituição das Escolas Móveis Maria Cristina e Escola Móvel Agrícola das Caldas da Rainha e uma outra que tem funcionado em Vidago.
E portanto uma orientação acertada, porque se fundamenta em resultados práticos apreciáveis.
Também na proposta de lei se conta com a colaboração das empresas privadas para a eficiência técnica. Julgo um princípio interessante, desde que o Estado o estimule e até o auxilie com subsídios e outras compensações, mas entendo que a redacção proposta pela douta Câmara Corporativa na nova base sugerida no parecer com o n.º 2-A, onde emprega as palavras: «O Governo poderá impor a organização do ensino de aprendizes à indústria privada», não é de aceitar. Estas imposições e outras mostras de intervencionismo inconveniente do Estado, combinadas com as fórmulas capitalistas, de figurino monopolizador, adoptadas paru a exploração do elementos fundamentais, como os transportes ferroviários e a energia eléctrica, não são, positivamente, o que mais há-de contribuir para a criação do clima apropriado ao desenvolvimento tio ensino técnico, tão indispensável ao nosso avanço económico.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Utilizem-se, em primeiro lugar, todos os estabelecimentos dependentes do Estado, dos corpos administrativos e de certos organismos corporativos, em seguimento do que foi aqui votado, por proposta minha, no sentido de se facultarem, para estágios e cursos técnicos, os estabelecimentos fabris e laboratórios do Ministério da Guerra.
Não se alienem propriedades da colectividade, como está acontecendo com os terrenos baldios, antes de se verificar qual a utilidade que poderão ter para a comunidade a quem sempre pertenceram.
E, depois disto feito, estimule-se e agradeça-se o concurso privado para a alta finalidade visada por esta proposta de lei.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. A próxima será amanhã, com a mesma ordem do dia de hoje. Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 55 minutos.

Srs. Deputados que entraram, durante a sessão:

Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Augusto Figueiiroa Rêgo.
Artur Proença Duarte.
Carlos de Azevedo Mendes.
João Mendes da Costa Amaral.
Jorge Botelho Moniz.
Luís António de Carvalho Viegas.
Manuel Hermenegildo Louriuho.

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Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Querubim do Vale Guimarães.
Ricardo Malhou Durão.
Rui de Andrade.
Teotónio Machado Pires.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Álvaro Eugénio Neves da Fontoura.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Henrique de Almeida.
Herculano Amorim Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Xavier Camarote de Campos.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Maria Braga da Cruz.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Mário Borges.
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.

O REDACTOR - Luís de Avillez.

Projecto de lei enviado para a Mesa pelo Sr. Deputado Mira Galvão no decorrer da sessão de hoje:

Projecto de lei sobre a reorganização do parcelamento da serra de Mértola

Relatório

O baldio da serra de Cambas, ou da freguesia de Santana de Cambas, concelho de Mértola, hoje conhecido por serra de Mértola, foi instituído, segundo parece, no tempo do Mestre Dom Payo, anteriormente ao reinado de D. Dinis, como se depreende das cartas do Mestre Dom Johain Onores e de Garcia Roiz, que foi comenda dor-mor do dito concelho, enviadas àquele monarca. Tinha o privilégio de nele não lavrarem nem criarem gado as pessoas de fora do concelho.
Por carta régia de D. Dinis dirigida a Lourenceanes Carnes, comendador de Mértola, em 1348 «e a qualquer outro que depois dele viesse», o Rei ordenava que fosse respeitado o «privilégio em uso no tempo de Mestre Dom Payo, de não lavrarem nem criarem no lugar de Cambas os vizinhos de Mértola».
Esta carta e privilégio foram confirmados por uma outra carta de D. João II, em 1489, e mais tarde por outra de D. Manuel I, em 1500 da era de Cristo.
Segundo um cronista contemporâneo, «em 1687 a Câmara de Mértola, baseando-se na circunstância de a serra estar situada dentro da sua área territorial, decidiu arrogar-se o direito de cobrar ração do cereal que nela se produzisse.
O povo, não podendo sacudir esse jugo, ou, o que é mais provável, sendo receio de reagir, submeteu-se, deixando-se espoliar até 1713, ano em que procurou - valor os seus direitos, conseguindo que uma ordem Conselho da Fazenda lhos (reconhecesse, dando-lhe a, posse plena da serra e isentando-o de pagamento de renda, ração ou imposto.
A Citara, apesar de tudo, é que não desistia de se apesar de tão valiosa presa, e tanto assim que em 1751 intentou uma acção de reivindicação da propriedade, oblonilo do juiz de fora de Mértola sentença favorável as suas pretensões.
Desta vez, porém, o povo não esteve pelos ajustes. Não se submeteu. Recalcitrou, e a causa, subindo em apoiarão à Ouvidoria da comarca de Campo de Ourique, foi julgada a seu favor, sendo a Câmara condenada nas causas do processo. Um Távora -Jerónimo Tavares Mnscartnlias de Távora - subscreveu esta sentença, que foi confirmada por acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Novembro de 1753, e desde então não mais se esboçou qualquer tentativa séria de esbulho e o povo desfrutou sem contestação e quase «sempre a boa paz aqueles fertilíssimos terrenos». O superlativo é da responsabilidade do cronista, pois hoje, esgotada a sua maioria orgânica, estes terrenos «ao menos que férteis, « alguns até bem pobres, e ácidos todos eles.
Parece também que no (primeiro período da existência deste baldio ou logradouro comum, como o seu vizinho de Serpa, ele era destinado principalmente à, indústria apícola, e talvez por isso os habitantes do Cambas interessados nesta indústria se opunham à sua arroteia, pelo menos por parte dos de fora, para não lhe destruírem os matos, fonte principal do néctar que as abelhas colhiam.
Com o andar dos tempos e o aumento da população veio a necessidade, sempre crescente, de alargar a cultura cerealífera, e, facilitada a produção destes terrenos pobres em fósforo com o aparecimento e emprego dos superfosfatos, no fim do século passado a serra de Cambas começou a ser cultivada, mas só pelos habitantes da região, conforme o uso tradicional. Segundo esse uso, que adquiriu foros de direito, os habitantes de Cambas que queriam cultivar terra na serra dirigiam-se para ali na madrugada do dia de S. João e «marcavam» a terra que lhes parecia que podiam alqueivir no Inverno e mais lhes apetecia, por ser de melhor qualidade ou de mais fácil arroteia. A «marcação» constava em fazer um «malhão», isto é, colocar algumas pedras unias sobre as outras nos pontos altos e extremos do terreno apetecido ou uns ramos de mato cortados e atravessados sobre outros altos, em local bem visível. Ali já ninguém mexia. Os que chegavam e viam «terreno marcado» passavam adiante e iam marcar noutro sítio.
Quem marcava terreno tinha o direito de o arrotear, cultivar de trigo no ano seguinte e no terceiro ano de aveia, segundo a rotação de uso regional. A restolhice da aveia já podia ser marcada por outro para alqueivar e semear, se o seu dono não chegava primeiro e a marcava. Assim, alguns que encontravam e arroteavam uma terra boa, para a não perderem, (passavam a alqueivar de novo a restolhice de trigo e a cultivar novamente trigo.
Durante a guerra de 1914-1918, .dada a escassez «de combustíveis (lenha e carvão) e a necessidade de cultivar mais trigo, todos os homens disponíveis se lançaram a colher árvores e cepas na serra, para lenha e carvão, e os seareiros, que então se multiplicaram, tomaram conta de toda a terra susceptível de cultura económica, forçando o trigo sobre trigo, para não perderem o direito à terra, e deste festim desregrado e caó-

l. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, livro V do Guadiana, p. 74 v.

1 A. Cândido da Cosia, jornal querda n.º 351, de 18 de Agosto de 1932.

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tico resultou o esgotamento do terreno e seu empobrecimento em matérias orgânicas, proveniente dos detritos da vegetação espontânea ali acumulados durante séculos, e as produções baixaram, até se torna antieconómica a cultura.
Durante o período áureo de cultura da serra muitos seareiros, melhor apetrechados, ludibriando os seus conterrâneos, mandavam marcar a terra por pessoas amigas ou outras a quem pagavam, mas que não tinham interesse em a cultivar, e cultivavam eles assim grandes extensões por sua conta.
Desta forma nasceu uma classe de exploradores da serra, que em tempo de eleição defendiam o que eles chamavam «o direito do povo» ou de cultivar livremente na serra, com o único fim de poderem, em nome desse povo, cultivar por sua conta, e sem nada pagarem, em nome desse povo, cultivar por sua conta, e sem nada pagarem, a terra que os seus amigos marcavam como se para eles fosse.
Os partidos políticos, tanto nos últimos anos da Monarquia como nos primeiros da República, aproveitavam-se desta disputa, e em época de eleições os caciques da serra, com um dos partidos, defendiam o direito de a cultivarem livremente, e outro partido, com os «divisionistas», defendia a necessidade de dividir a serra em glebas, para entregar uma a cada família, com direito pleno de propriedade e todas as suas vantagens económico-sociais, acabaria assim o regime caótico da cultura de salto e a delapidação daquela parte do património nacional, que conduziram ao esgotamento excessivo da fertilidade transitória da terra e à erosão, que levava para o Guadiana e os seus afluentes a melhor terra, deixando a nu a rocha estéril.
Mas passadas as eleições tudo ficava como dantes, sem que qualquer chefe político ou Ministro se resolvesse a cumprir o que o seu partido havia prometido se ganhasse as eleições.
Foi o Sr. engenheiro Ezequiel de Campos, grande economista e amigo da terra, quem, quando Ministro da Agricultura, teve a coragem de arcar com os ódios e más vontades dos defensores da não divisão da serra e promoveu a publicação do decreto n.º 10:552, de 14 de Novembro de 1925, mandando dividir em glebas a serra de Cambas, ou de Mértola. Mas as críticas e a pressão dos contrários à divisão, aliadas a outras circunstâncias, foram de tal ordem que o Governo não teve coragem de pôr o decreto em execução.
Um dos primeiros actos de força, prestígio e confiança em si próprio do Governo, depois do advento do Estado Novo, foi o de mandar executar o decreto, removendo todos os obstáculos e dificuldades que se lhe opuseram.
Era, porém, a primeira divisão de baldios que se fazia por iniciativa e intervenção do Estado, e por isso não havia pessoal técnico treinado nesse género de serviços de campo nem observações e estudos práticos feitos no nosso País para os orientar. Daí alguns .dos erros e defeitos deste parcelamento.
Porém, o defeito principal, mas de origem legal, porque foi a própria lei que o impôs, foi o desejo do legislador, no intuito, até certo ponto louvável, de querer respeitar o direito tradicional expresso no § único do artigo 3.º, que diz: «A divisão do baldio da serra de Cambas, ou Mértola, considerado o direito tradicional dos povos que com o mesmo confinam, será praticada distribuindo os lotes ou glebas por todos os indivíduos de nacionalidade portuguesa, de qualquer sexo, idade ou estado, que na data em que foi feito o recenseamento definitivo tenham direito, em harmonia com a legislação vigente, o direito tradicional e os costumes legais, a usufruí-lo de qualquer dos modos que, segundo o § l.u, constituem o logradouro comum».
Feitos o recenseamento, a demarcação e o reconhecimento topográfico do baldio, verificou-se que pertencia cerca de 1 hectare de terreno a cada habitante que, nos termos do § único do artigo 3.º citado, tinha direito a ser contemplado, e para isso ainda foi necessário parcelar até os terrenos mais pedregosos, pobres e erosionados, quase impróprios para a cultura cerealífera.
Talvez pela mesma razão não se constituíram as reservas para arborizar, destinadas a matas a explorar em cortes periódicos (talhadia) para lenha, sendo agora a escassez deste combustível um dos grandes males de que enferma aquela região. A serra, que tem cerca de 9:660 hectares de superfície total, foi parcelada em 2:617 glebas, identificadas nos mapas, com áreas variáveis de 1 a 10 hectares, conforme o número de pessoas das famílias a que eram destinadas, sendo numeradas com letras por categorias, correspondentes ao número de hectares segundo a ordem do alfabeto, e com um número de ordem dentro de cada categoria.
Por meio de um inquérito, a que procedemos uns anos depois da divisão, pudemos identificar nos mapas e no terreno 858 glebas da letra A (l hectare), 507 B, 449 C, 339 D, 222 E, 140 F, 71 G, 22 H, 8 I e 1 J, ao todo 2:617. Mas além destas não foi possível identificar nos mapas 48 glebas da letra A e 15 da B e outras tinham os números trocados e foi difícil identificá-las.
Além da deficiente superfície das glebas, o que as colocava fora das possibilidades económicas de exploração, mesmo das agrupadas, por pertencerem aos membros de uma família, um outro defeito de que esta tentativa de colonização enferma é o de não se ter atendido às aptidões nem possibilidades dos que iam ser seus possuidores, e, assim, muitas delas foram entregues a pessoas que nunca tinham sido nem lhes interessava ser agricultores e as arrendaram ou venderam, alienando-as de facto, embora não o pudessem fazer de direito, porque a isso se opunha a doutrina da primeira parte do § 1.º do n.º 2.º do artigo 18.º do citado decreto n.º 10:552, que diz: a As glebas são inalienáveis por quinze anos, contados do registo predial da adjudicação, etc.».
Verificada a impossibilidade de se manter na seria uma família de colonos cultivando poucos hectares, os que puderam fazer casa na sua gleba e tinham disponibilidades compraram algumas glebas pegadas ou próximas e arrendaram ou tomaram à ração outras, e assim se começaram a constituir explorações agrícolas em condições económicas.
Baseados no direito consuetudinário e simplista desta gente, como a lei não permitia que fizessem escrituras das vendas, resolveram que bastava passar o título da adjudicação para a mão do comprador e fazer um escrito em papel comum ou selado, como se usava antigamente, em que o vendedor declarava que tinha vendido a terra ao comprador e a importância ajustada que dele havia recebido. Fizeram-se centenas de vendas por este processo, sem qualquer valor jurídico, e houve até quem construísse boas casas em terras adquiridas nestas condições.
Alguns dos vendedores já morreram, outros, passados alguns anos, tomaram novamente conta da propriedade, alegando que o comprador já estava bem preenchido do dinheiro que havia dado com a renda da terra durante os anos que a havia desfrutado. Isto principalmente logo que a propriedade foi inscrita na matriz em seu nome, como não podia deixar de ser sob o ponto de vista jurídico.
Com as más colheitas dos últimos anos agravaram-se as condições económicas dos pequenos seareiros colonos da serra, a maior parte não pôde pagar os empréstimos da Campanha da Produção Agrícola feitos na Caixa Geral de Depósitos, outros não pagaram as contribui-

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coes, e de tudo isto resultou serem executados pela Caixa Gera de Depósitos e pela Fazenda Nacional centenas de possuidores de glebas, muitas das quais já foram vendidas em praça e de muitas outras estão ainda correndo os processos.

De outras ainda foram vendidos apenas alguns avos ou, melhor, 1/2 a 1/1G, para reembolso das contribuições em dívida, e como ninguém licitou nesta miséria, como era natural, ficaram essas pequenas partes das glebas indivisas para a Fazenda Nacional. Nestas últimas condições, isto é, alienadas em parte, existiam 18 glebas nos meados de Novembro do corrente ano.

As glebas vendidas1 em hasta pública totalmente perfazem umas centenas de hectares, mas não me foi possível apurar o número exacto. Dois proprietários houve que adquiriram já glebas em praça que perfazem mais de 100 hectares para cada um.

De forma qiie daquela disposição de lei bem intencionada, mas que falhou por completo por não se tei tido em atenção na constituição das glebas a área mínima indispensável para terem condições económicas de explorabilidade, resultou o caos económico e social em que se encontra presentemente a serra de Mértola, situação a que é necessário pôr termo sem demora, permitindo a venda e troca ou o agrupamento das glebas, a fim de se reagruparem até constituírem unidades económicas.

Tendo, porém, em vista a função social, demográfica e económica do parcelamento, é no entanto necessário limitar a área das novas unidades a constituir, para evitar que se formem grandes herdades adquiridas por capitalistas que não as explorem por eua conta, e por isso no projecto de lei se limita essa área a 100 hectares, ou mais só em casos especiais, mediante parecer favorável da Junta de Colonização Interna.

Tanto por observações ie estudos feitos durante dezasseis anos no campo experimental de Vale Formoso, instalado na serra de Mértola, como por outros efectuados pela Junta de Colonização Interna ou em colaboração dos seus técnicos com os da Direcção Geral dos Serviços Agrícolas, verificou-se que naquela região, seca e de terrenos pobres e ácidos, é de cerca de 100 hectares a área necessária para a manutenção de uma família de seareiros com um certo desafogo económico.

Para se facilitar a formação dessas unidades económicas se propõe a autorização de venda e troca das glebas e se dá aos colonos o direito de adquirirem mais terra até perfazerem a unidade económica julgada conveniente.

Como o campo experimental de Vale Formoso tem apenas 50 hectares, e, portanto, está longe de representar a unidade económica da região, e ainda por ser indispensável estabelecer demonstrações várias, a fim de mostrar os processos mais económicos e tecnicamente mais perfeitos de agricultar as terras da serra, e em especial instalar diversos tipos de rotações que possam interessar às explorações agrícolas daquela região, demonstrações estas que tem de ser instaladas em folhas não muito pequenas para os resultados serem mais reais e concludentes, e também porque é necessário ter gados de rendimento, indispensáveis numa exploração agrícola bem ordenada, e, portanto, ter pastagens, procura-se fazer a ampliação do campo experimental à custa das glebas que ainda forem propriedade da Câmara Municipal de Mértola, por não terem sido adjudicadas a colonos ou não terem sido vendidas em hasta pública. Sabe-se que, pelo menos, duas das glebas cujos títulos ainda estão em poder da Câmara e figuram como propriedade desta já foram vendidas em praça, por terem sido penhoradas por dívidas à Fazenda Nacional dos seareiros a quem haviam sido destinadas, que se

apossaram abusivamente delas e as cultivavam, mesmo sem terem pago e recebido os títulos.

Para estudar in loco estes assuntos e propor ao Governo a anexação ao campo experimental das glebas que de direito ainda estiverem disponíveis e na posse da Câmara se propõe a nomeação de uma comissão composta por técnicos dos organismos do Ministério da Economia interessados neste assunto e o presidente da Câmara Municipal de Mértola, entidade também interessada.

Providencia-se ainda à troca das glebas a anexar por outras que pegam com o campo experimental ou ficam próximas deste e mais convenha juntar-lhe.

Como este assunto precisa de ser devidamente ponderado, estudado e combinado com os actuais donos dessas glebas, alguns dos quais as adquiriram por compra particular, de que ainda não fizeram escritura, também a mesma comissão fica com a atribuição de propor ao Sr. Ministro da Economia as condições em que lhe parecer viável esta operação, a fim de o Governo a autorizar por diploma legal.

Por último encarrega-se a Junta de Colonização Interna de mandar fazer o estudo das condições económico-sociais resultantes da defeituosa divisão e distribuição da propriedade nesta primeira tentativa de colonização interna e de propor ao Governo uma melhor arrumação da propriedade e melhoria da situação dos colonos.

Assim, tenho a honra de apresentar à apreciação e aprovação da Assembleia Nacional o seguinte

Projecto de lei

Artigo 1.º E permitida a venda e a .troca das glebas em que foi parcelada a serra de Cambas, no concelho de Mértola, por força do decreto n.º 10:552, de 14 de Fevereiro de 1925, para o efeito do agrupamento destas em unidades maiores, susceptíveis de boa exploração económica.

§ 1.º Qualquer colono só pode adquirir glebas até constituir um núcleo de exploração com área não superior a 100 hectares, ainda que não sejam contíguas, ou até 150 hectares em condições especiais, mediante parecer favorável da Junta de Colonização Interna.

§ 2.º É prova bastante da capacidade de compra, para efeito do parágrafo anterior, uma certidão da secretaria de finanças de onde constem as glebas que o (pretendente possui na serra, seus números e letras ou área em hectares.

Art. 2.º As glebas que na data da (publicação desta lei ainda existam na posse da Câmara Municipal de Mértola, em conformidade com o disposto no § 2.º do artigo 10.º do decreto n.º 10:552, por não terem sido os títulos pagos pelos (respectivos adjudicatários ou por qualquer outra circunstância, serão anexadas ao campo experimental de Vale Formoso, conforme parecer favorável e deliberação da mesma Câmara em sessão de 21 de Fevereiro de 1934.

§ 1.º Para efectivação do disposto neste artigo será nomeada, por portaria do Ministro da (Economia, uma comissão, composta .por dois engenheiros agrónomos, um da Direcção Geral dos Serviços Agrícolas e outro da Junta de Colonização Interna, e pelo presidente da Câmara Municipal.

§ 2.º A comissão de que trata o (parágrafo anterior fará no mais curto prazo possível1, que não irá além de um ano, o estudo das glebas que estão nas condições previstas neste artigo e indicará, em relatório dirigido ao Ministro da Economia, as que devem ser anexadas ao campo experimental. Sendo as glebas distantes

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deste, proporá a troca destas com outras que fiquem contíguas ou mais próximas do campo experimental e que mais convenha anexar-lhe.
§ 3.º Os donos das glebas destinadas a ser anexadas Hão obrigados a consentir na troca, mas têm o direito de escolher das glebas disponíveis as que mais lhes convierem e a ser compensados com maior área a (receber, se as glebas a entregar forem de maior valor.
§ 4.º Fica a Junta de Colonização Interna encarregada do proceder ao estudo das condições resultantes do defeituoso parcelamento da semi de Cambas e de propor ao Governo as medidas que julgar necessárias para melhor arrumação e aproveitamento da propriedade, sob o ponto de vista da colonização e melhoria da situação dos colonos.

Assembleia Nacional, 23 de Janeiro de 1947. -O Deputado José Martins de Mira Galvão.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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