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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 106
ANO DE 1947 19 DE MARÇO
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.º 106 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 16 DE MARÇO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira
Nota. - Foi publicado um suplemento ao Diário das Sessões 100, que contém o parecer da comissão encarregada de apreciar es contas públicas de 1945.
SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão 16 horas.
Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente. Usou da palavra o Sr. Deputado Ribeiro Cazaes, que se referiu necessidade de ser restaurada a comarca de Vouzela, chamando a atenção do Governo para essa aspiração.
Ordem do dia. - Discussão do relatório geral da comissão paramentar de inquérito aos elementos da organização corporativa. Usaram da palavra os Srs. Deputados Luís Teotónio Pereira e sstorff da Silva. O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 55 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 45 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Jánior.
Álvaro Eugênio Neves da Fontoura.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
André Francisco Navarro,
Atonio Augusto Esteves Mendes Correia,
Antonio Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Enrico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernão Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Gaivão.
Henrique Linhares de Lima.
Herculano Amorim Ferreira.
João Ameal.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Sá Alves.
João de Espregueira da Rocha Paris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
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Joaquim doa Santos Quelhas Lima.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquivei.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
José Nunes de Figueiredo.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama Van Zeller.
Mário Borges.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Bui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teotónio Machado Pires.
misses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados. Está aberta a sessão.
Eram 16 horas.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Exposições
Subscrita por João de Azevedo Vasconcelos, Manuel Gil e Eurico Vieira da Costa, o primeiro na qualidade de delegado dos lavradores e os dois últimos na de dos comerciantes da ilha Graciosa, distrito de Angra do Heroísmo, em que justificam e documentam os seus telegramas à Assembleia Nacional a propósito do mercado livre para a cevada naquela ilha.
Subscrita por José Gonçalves, Armindo Augusto, João Lopes Alves e Francisco Oliveira, antigos componentes da direcção da extinta Casa do Povo de Rossio ao Sul do Tejo, em que, a propósito do relatório geral da comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa, aplaudem a parte do mesmo relatório que se refere à actividade das Casas do Povo e as suas conclusões.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Ribeiro Cazaes.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Sr. Presidente: por n* de uma vez, a palavra eloquente de ilustres membros desta Assembleia, soando como toque vibrante de e rins, tem despertado em nossas almas as visões grandiosas do passado, tornando miais sólidas as energias que no presente nos animam e mais firme, mais segura a nossa confiança no futuro.
Como verdadeiros representantes do povo português os Deputados da Nação têm, desta forma, aproveite iodas as oportunidades que se apresentam para afirmarem que Portugal sabe para onde vai, principalmente porque sabe de onde vem.
O culto pelo que fomos e que nos permite recordar orgulhosamente, que a nossa terra foi tanta vez, longa caminhada de séculos, o facho sagrado que guiou o Mundo pela estrada da vida está enraizado mi ai do todos os portugueses, mesmo daqueles a quem a cegueira de paixões loucas desnorteia e o espectáculo e deslumbrante do artificial e efémero perturba.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Haverá algum português que, ao sentir os perigos rondando a nossa casa, não pense seus pergaminhos de oito séculos, não invoque o nome dos seus santos, dos seus apóstolos, dos seus heróis como se do fundo da alma uma voz se erguesse "brado de armas" - apelo aos que Deus levou - para a seu lado formarem na defesa do solo sagrado em nasceu?
Haverá algum português que não sinta inesgotáveis energias para todos os sacrifícios, para todas as br lhas da vida, se a sombra das grandes e poderosos parece querer toldar ò céu da nossa terra, recordando longo caminho andado, e em que, desde Ourique, tantas e tantas vezes o passo bíblico de David e Golias materializado em feitos imorredouros?
Só quem não é digno de chamar-se português ignora o que fomos e perde a fé no futuro - tantas são as páginas da história a demonstrarem que Deus é o a timoneiro da nossa barca.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Pois são estes mesmos sentimentos culto pelo passado, de respeito pelo património sagrado de séculos, de fé e confiança no futuro, que me fora erguer hoje a voz nesta Casa paira falar da terra que nasci.
E que, Sr. Presidente, a minha terra é uma miniatura perfeita da nossa Pátria, na sua longa vida de séculos, nas heranças sagradas que possui, no contributo prestado à civilização cristã, na sua impressionante beleza e até no exemplo reconfortante do sente, neste passo histórico de ressurgimento nacional
Terra de S. Frei Gil, o Fausto português; terra apóstolo Simão Rodrigues, um dos companheiros Santo Inácio de Loiola e, depois, de S. Francisco vier; terra de Duarte de Almeida, o decepado Toro, o heróico alferes-mor do Rei Africano - Vouzela, jóia engastada no coração da Beira, é, incontestavelmente, como que um pequenino resumo da história de Portugal. Faz lembrar uma princesa adormecida entre os braços do Vouga e do Zela, uma, princesa cantada ..., aã patine dos séculos, os castelos ruínas que a cercam, as belezas sem par que a rode são como véus de mistério, que nos fazem sonhar lendas da moirama e feitos de cristãos.
Correu sangue, correu pranto:
Ai Alafão! Ai Vouzela ...
Como os cristãos a adoravam
E os moiros gostavam
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Assim fala ela minha terra o grande poeta Correia de Oliveira, para logo acrescentar, em comovedora, devoção e impressionante ternura:
Ó vila de São Frei Gil
Onde eu andei em menino
Quem sabe, Terra! as cadeias
Que lançaste ao meu Destino.
Por lá andou também o primeiro rei a curar-se dos seus males e na acta das Cortes de Lamego figura o nome de Vouzela como cidade entre os das dezasseis terras que à igreja de Santa Maria de Almacave enviaram procuradores.
Não desejo, Sr. Presidente, pedir a V. Ex.ª e à Câmara o sacrifício de me acompanharem no desenrolar minucioso da história da minha terra, mas seja-me permitido registar um ou outro passo da sua longa vida, como indispensáveis peças do processo, para o julgamento sereno e justo da injustiça que lhe foi feita, da afronta que representa aos sentimentos patrióticos, quo constautemente invocamos, a forma como ela foi tratada.
Já no tempo da fundação da nacionalidade, como disse, Vouzela era terra de importância material e de categoria política.
Em 1436 era a capital do concelho de Lafões, que se estendia quase de Viseu a Aveiro.
Quatro séculos passados, em 1834, foi criado o concelho de S. Pedro do Sul e em 1836 o de Oliveira de Frades.
Depois disso muitas alterações se verificaram na estrutura administrativa da região de Lafões e todas elas definindo a supremacia de Vouzela em relação às outras terras desse maravilhoso recanto do nosso País.
Em 1867, apenas trinta anos passados depois da criação dos concelhos de S. Pedro do Sul e de Oliveira de Frades, a Junta Geral do Distrito, convocada para tratar da divisão administrativa, propôs a extinção daqueles concelhos e que um só se formasse, com sede em Vouzela. Em Dezembro desse mesmo ano só foi extinto, contudo, o de Oliveira, de Frades e anexado, quase na sua totalidade, ao de Vouzela.
O constitucionalismo veio encontrar o concelho de Lafões formando uma só comarca, com sede em Vouzela.
Em 1890 foi criada a comarca de S. Pedro do Sul e em 1906 a de Oliveira de Frades.
Em resumo: a minha terra teve dois filhos - S. Pedro do Sul e Oliveira de Frades.
O primeiro atingiu a sua maioridade em 1890. É uma região rica, progressiva - o Brasil de Lafões. O segundo, Oliveira de Frades, faz-me lembrar, pela forma como da terra-mãe se separou, em 1906, aquele pedaço da nossa Pátria que um dia cedemos em dote de princesa ...
Vouzela ficou triste com o afastamento desses filhos, embora orgulhosa de um e de outro; e, velhinha, agarrada, aos seus pergaminhos de oito séculos, aos seus castelos, mais apagadamente recolhida na sua casa solarenga, continuou a ser o alíobre mais rico de Lafões em servidores da Pátria no exército, na cátedra, m magistratura, enfim, em todos os planos da vida nacional-, sem pensar alguma vez que os que viessem depois teriam de ir aprender português ao Brasil ou a ser fidalgos à índia ...
E quem a olhasse de longe, continuando a mesma vida de sempre, com a serena dignidade de velha castelã, entre sonhos e lendas, sem ambições e sem ódios. soberanamente indiferente perante o crescente poder do rei-milhão, poderia dizer que a Vouzela seriam aplicáveis aquelas palavras de desalento de Afonso Lopes
Vieira, que tão bem definiram um momento da penosa caminhada da nossa Pátria:
«Portugal é uma peça de porcelana preciosa que um dia caiu ao chá o e se partiu em mil pedaços. Nós ficámos a mirar num caco a peça antiga».
Na segunda década deste século os males que afectaram a nossa Pátria também atingiram Vouzela.
Invadida por elementos do exterior, aquela mansão de paz e de beleza, aquela terra de sonho e de lendas, sofreu a miserável sementeira das mesmas desgraça? que tanto apoucara durante anos e anos o nome Portugal perante o Mundo. E os filhos de Vouzela. à semelhança de todos os portugueses espalhados pêlos vários cantos da Terra, acabrunhados, esmagados pelo peso do infortúnio, olhando os padrões milenários, sagrados, daquela terra bendita -a sua igreja românica, os seus castelos em ruínas, as pedras gastas - pelas legiões de Boina-, erguiam a alma para o monte do castelo, pedindo à padroeira da Pátria. Nossa Senhora da Esperança, que deles se amerceasse. que sobre ele? deixasse cair um olhar de bênçãos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Chegou a hora do ressurgimento. Soou a hora da Revolução Nacional. Febrilmente Vouzela continua a sua trajectória histórica: não há em muitas léguas em redor melhor pousada do que ali; há luz e água e esgotos em todas as habitações; constroem-se hotéis; rasgam-se estradas; enfim, a paz e o trabalho voltam àquele torrão abençoado, povo voltaram também a Portugal inteiro.
O Palácio da Justiça é o mais belo de toda a região de Lafões; a sua velha igreja, monumento nacional de puro estilo românico, surge em todo o seu esplendor; vêem-se, a cada instante, almas de artistas, vindos de toda a parte, debruçados nos panos das muralhas, na ponte romana sobre o Zela, a recolherem, aqui e além, pedaços de beleza daquela terra de encantamento. As pedras da estrada, que os soldados dos Césares trilharam, voltam a ser mais preciosas do que o metal arrancado às entranhas das serras - e o viandante, que d« Viseu se dirige para o sul ou de Aveiro acompanha o curso do Vouga, vê ao longe, durante a noite, todas as noites, a muitas léguas de distância, uma coroa de luz projectada no céu, impressionante afirmação de fé glorificando a Mãe de Deus, Nossa Senhora do Castelo de Vouzela - Nossa Senhora da Esperança.
Pois bem! É precisamente neste momento, em que todos os portugueses voltam a encontrar a rota que Vouzela sofre o maior infortúnio da sua longa vida de séculos; é precisamente nesta hora, em que Portugal, de pergaminhos na mão, diz ao Mundo que sabe de onde vem, e, por isso, conhece o seu destino, como farol da civilização latina e cristã, que Vouzela recebe o golpe; profundo, sangrento, de ver extinta a sua comarca. Porquê?! Porquê?! Repito: porquê?! Com que direito?! Então os mesmos que alicerçam no culto do passado a razão de ser da sua vida. do seu labor, das suas aspirações, dos seus sonhos de devoção patriótica, vão ferir uma terra em que cada pedra tem uma lenda, cada pedaço de chão uma história?!
Que incoerência é esta?!
Em 1926 foi extinta a comarca de Vouzela!!!
Brada aos céus tamanha afronta!
Não desejo, neste momento, tratar da chamada questão comarca. Quero falar só da minha terra.
Com que direito é que são invocados os nossos pergaminhos de séculos, se invocam os nomes dos santos e dos heróis de Portugal, para afirmar nossos direitos, de pátria livre e senhora dos seus destinos, quando Vou-
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zela foi afrontada, foi ferida, nesses metanos alicerces da sua longa vida de grandeza, de honra e de glória?
Pondo desta fornia perante o País o caso da extinção da comarca da minha terra, pergunto se é assim que os sentimentos pátrios se dignificam e fortalecem, desafio quem quer que seja a encontrar argumentos capazes de justificar a injustiça que atingiu Vouzela.
Apoiados.
Apelo para os sentimentos de nacionalista, sem mácula, do Dr. Cavaleiro, de Ferreira, ilustre Ministro da Justiça de Portugal, para quem, ao contrário de muitos, de quase todos, nesta época de monstruoso materialismo, uma pedra de armas vale mais do que uma pepita de ouro, Cavaleiro do Ressurgimento, que, para honra minha, a meu lado já teve a vida em perigo, sob os golpes da anti-Nação, para se debruçar um instante sobre este caso da minha terra - e fazer justiça!
Apoiados.
Apelo para S. Ex.ª o Presidente do Conselho, para Salazar, o timoneiro da nau, por mercê de Deus, a quem ouvi um dia que alguma coisa há que os canhões não destroem, certamente pensando nos altos valores que a minha terra se orgulha de possuir, para que se digne consagrar uns instantes do seu precioso labor ao caso de Vouzela.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas porque foi extinta a comarca de Vouzela, quando esta terra foi durante séculos e séculos a cabeça de Lafões?
Por economia?
Então extinguissem as de S. Pedro do Sul e de Oliveira de Frades, suas filhas. Seria mais económico e mais justo.
A comodidade dos povos exigia que fosse extinta antes a de Vouzela, a do centro, ouvi dizer então.
Qual centro?
A comarca de Vouzela não está no meio da de Oliveira de Frades e da de S. Pedro do Sul. Isso é um erro grosseiro de corografia, que seria ridículo rebater aqui, nesta Assembleia de homens de bem e que conhecem a nossa terra, erro que bondosamente se pode suportar, tolerar, ao turista burguês endinheirado, que só sabe que para se deslocar, em confortável automóvel, de S. Pedro do Sul para Oliveira de Frades tem de passar por Vouzela
Também se disse então que houve necessidade de extinguir a comarca da minha terra para não ficarem três tão próximas umas das outras. O mesmo erro do corografia já referenciado se observa nesta afirmação. Ficam próximas as três vilas, isso é verdade, mas as regiões dos três concelhos é que devem ser consideradas. Além disso, sendo esse o critério estabelecido, porque não se verificou tal medida em relação a outras terras? Entre as vilas de Lafões há maior distância do que a que separa, por exemplo, Vila do Conde da Póvoa de Varzim e Penafiel de Paredes. E nenhuma destas terras sofreu o desgosto de ver extinta a sua comarca.
Houve ainda quem afirmasse, quem segredasse aqui e ali, que o movimento judicial de Vouzela não justificava a existência da sua comarca. Mentira! Até o julgado municipal que hoje é tem maior, muito maior movimento, do que o de várias comarcas. Basta citar como exemplo o facto, que as estatísticas comprovam - e que é verdadeiramente chocante-, de já ter tido mais do dobro, mais do dobro, repito, do da comarca de Oliveira de Frades, sua filha - emancipada, como já disse, desde 1906.
Por este ligeiro resumo se verifica que não é só o aspecto sentimental que há a considerar no que respeita à comarca de Vouzela. Quis descer, embora o caso da
minha terra tenha de ser analisado em plano mais alto, até àqueles que só sabem tratar assuntos da vida através do «deveB e do «haver». Julgo que também esses concordarão que foi injusta medida a extinção da comarca de Vouzela. Brada aos céus tamanha injustiça r
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Representa negra ingratidão pêlos serviços que Vouzela prestou à Pátria e à civilização cristã; define a incoerência dos homens que nos pergaminhos históricos encontram o mais sólido argumento em defesa dos direitos de Portugal, face às ambições dos poderosos e dos grandes; é uma afronta a todos os portugueses que ensinam seus filhos a rezar e a dar u vida pela Pátria, afronta que afecta até quem a consente.
Só mais algumas palavras. Devo-as à memória de um homem que foi soldado da Revolução Nacional.
Porque trato agora publicamente, apenas agora, o caso da extinção da comarca de Vouzela?
Fiz parte da comissão nomeada em 1926 pela minha terra para defender a nossa comarca. Pouco fiz, muito pouco, mas, todavia, o que me foi possível, para que justiça fosse feita a Vouzela.
Ouvi então muitas barbaridades, sofri muitos ataques, à Revolução Nacional. Foi-se longe demais nas diatribes, nas ofensas ao Governo e, em especial, ao Ministro da Justiça Dr. Manuel Rodrigues - tão longe que foi ultrapassado aquele mínimo de elegância de linguagem e atitudes que exijo a quem comigo convive.
Ao Dr. Manuel Rodrigues prendiam-me laços de respeito pelo seu real valor, de gratidão por ser nosso companheiro na marcha de 1926 e pêlos serviços que prestou à Revolução Nacional -nada mais. Os seus defeitos... Quem os não tem? O maior que lhe conheci, tomara-o eu: um grande coração, unia bondade que o levava tão longe ... que chegava ao erro.
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - Pois bem: a quem ofendeu esse homem público de tal forma que considerei esse procedimento como falta de respeito por si próprio proibi que tornasse a falar-me; e, como a questão comarca não só estava a ser tratada no plano de enxovalho rasteiro e mesmo a ser aproveitada, como alimento de desordem ..., afastei-me.
Que estas palavras rudes de uni soldado sejam tomadas como preito de homenagem à memória de um outro soldado da Revolução Nacional que bem serviu o País, embora tão cruamente ferisse a minha terra e os meus sentimentos nacionalistas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Publicamente, nunca voltei a falar na comarca de Vouzela, mas muitos sabem da ferida aberta, ainda a sangrar, na minha alma de vouzelense e de português.
Hoje, Deputado da Nação, não tendo em vista, como nunca tive, conseguir a menor importância local, obter interesses de qualquer ordem, como o demonstra a minha já longa vida de servidor, aproveito esta oportunidade para cumprir o que considero dever sagrado - como lafonense e como português.
Sr. Presidente: peço a V. Ex.ª paira ser intérprete, junto do Governo, do meu pedido de justiça para Vou-
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Peço-o como Deputado da Nação, coimo soldado da Revolução Nacional, como português.
Ë que, Sr. Presidente, a injustiça que atingiu a minha terra afecta os sentimentos mais. altos, mais nobres, em que o patriotismo se alicerça.
Quem não é por Vouzela não quero dizer que seja contra Portugal, mas, para a defesa da Pátria, a sua armadura fica menos sólida, perdem altura os sentimentos que devem animar quem crê na eternidade da Raça!
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em discussão o relatório geral da comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Teotónio Pereira.
O Sr. Luís Teotónio Pereira: - Sr. Presidente: devo começar por declarar que foi com o maior júbilo que votei a constituição da comissão parlamentar de inquérito aos elementos da organização corporativa.
Era necessário sair da confusão em que se vivia, e eu nenhuma dúvida tinha de que, entregue o caso a pessoas íntegras e libertas da qualquer paixão, toda a verdade se esclareceria. E esclareceu-se, Sr. Presidente; a conclusão não poderia ser outra: o corporativismo não está em causa; o fracasso teve origem num desvio de funcionamento, isto é, na perversão da ideia.
A p. 738-(4) do relatório lê-se:
Não deteve as secções ou subcomissões, de harmonia com ia orientação geral da comissão, o facto de a actividade dos organismos estar coberta ou ser fundada em decisões ministeriais.
Embora o inquérito não abrangesse estas decisões e os organismos pudessem apresentar como justificação de uma certa actividade o facto de estar aprovada pelo Governo ou de serem, ao desenvolvê-la, meros executores de um pensamento governamental, à comissão pareceu que não devia deixar de considerar aquela actividade. Não devia, em primeiro lugar, porque o processo de atingir soluções queridas pelo Governo pode ser vicioso, e esse é, em geral, da responsabilidade dos executores; em segundo lugar, porque, se, por um lado, a hierarquia obriga a executar as decisões superiores, o espírito de colaboração obriga, quando não é simples subserviência de dependente, a chamar a atenção para a sua ilegalidade, para a sua inconveniência em relação ao interesse geral ou mesmo para o conflito em que eventualmente estejam com o sentido da instituição a que respeitam.
Não percebo bem a intenção que ditou estas palavras; de qualquer forma, porém, elas servem a justificar a razão por que alguns se afastaram de toda a actividade, embora o seu gesto tivesse sido, por vezes, interpretado como desânimo ou falta de persistência.
Aos de fraca memória recordarei os motivos que levaram à substituição do antieconómico e anti-social liberalismo pelo corporativismo.
Ao estado de carência em que a guerra de 1914 tinha deixado o Mundo depressa se sucedeu um aflitivo período de sobreprodução.
Queimava-se o café; os cereais substituíam o combustível; ofereciam-se prémios para quem encontrasse novas aplicações para a borracha, etc.
No nosso País a indústria das conservas agonizava, os vinhos pejavam as adegas dos produtores e os armazéns dos comerciantes, os salários baixavam e, para acudir ao desemprego, publicava-se em Setembro de 1932 o decreto n.º ,21:699. De toda a parte se reclamava a intervenção do Estado, e essa intervenção teve início no dia em que o Sr. Doutor Oliveira Salazar, acompanhado pelo nosso ilustre colega engenheiro Garcia Ramires, então director da Associação Industrial de Lisboa, saiu em peregrinação pêlos principais centros produtores de conservas de peixe.
Ao referido director da Associação Industrial de Lisboa, chamado logo em seguida a ocupar a pasta do Comércio e Indústria, ficaram-se devendo as primeiras soluções de ordem corporativa.
Num curto espaço de tempo, as conservas, os vinhos, o bacalhau e o arroz de produção nacional, corporativamente organizados, foram as cobaias que permitiram avaliar a excelência do sistema.
Estas primeiras medidas, abrindo a porta a tudo o que depois se fez no campo social, encheram o País de esperança e entusiasmo.
Nesse tempo ninguém vociferava contra os grémios, e, bem ao contrário do que sucede agora, só havia receio de que a obra não prosseguisse.
Esse receio motivou a jornada apoteótica de 27 de Fevereiro de 1939, em que mais de 200:000 pessoas entregaram ao Sr. Presidente do Conselho uma mensagem onde se liam estas palavras:
... E porque queremos estar bem possuídos do espírito que há-de presidir às futuras corporações é que pedimos aos grémios patronais que, irmanados nos mesmos sentimentos, aqui viessem connosco.
Mais uma vez ligados aqui estamos, neste primeiro cortejo das corporações, para trazer ao Chefe da Revolução Nacional a certeza de que, integrados na doutrina do Estatuto do Trabalho Nacional, estão a seu lado, atentos à palavra de comando, todos os que labutam sem descanso pela grandeza e eternidade da nossa querida Pátria.
Esta manifestação, da iniciativa dos sindicatos nacionais, solicitando a instituição das corporações, foi o canto de cisne do corporativismo.
Depois veio a guerra e vierem as comemorações centenárias, os organismos de coordenação económica, os salários mínimos, os grémios da lavoura, o debate na Assembleia Nacional, a Intendência dos Abastecimentos e o grito de «Abaixo os grémios».
A guerra e as comemorações centenárias relegaram a Revolução para plano secundário.
Os organismos de coordenação económica, portadores desde início do germe anticorporativo, e que só esperava ocasião propícia para se desenvolver, abriram a porta à intervenção do Estado, falseando assim o pensamento e a clarividência do Chefe, que no começo da Revolução proclamara:
O intervencionismo, sempre que o Estado o fez e onde quer que o fez, só tem concorrido para esterilizar as iniciativas, sobrecarregar o número de funcionários, agravar desmedidamente as despesas e os impostos, diminuir a produção, delapidar grande parte da riqueza privada, restringir a liberdade individual, torná-lo insuportável inimigo dos povos.
Os salários mínimos não passam de simples expediente, e a propósito convém recordar neste momento
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as seguintes palavras, pronunciadas em 1933 pelo primeiro Subsecretário de Estado das Corporações:
... Daqui partiu a ideia de um salário mínimo.
Evidentemente que ninguém de bom senso espera agora que o Governo publique um decreto determinando urbi et orbi que os salários de todas e quaisquer profissões não possam descer abaixo de determinados quantitativos.
Se o mundo das coisas económicas fosse tão simples que o problema pudesse ser resolvido por uma semelhante disposição, como singelamente algumas pessoas mo têm sugerido, as coisas compor-se-iam à maravilha. Mas estamos muito longe dessa estrutura simplista, e por isso o caminho a seguir será um tanto diverso.
O problema do salário suficiente vem encontrar solução à medida que formos pondo um pouco de ordem nesta grande casa em desalinho que é a economia nacional.
Julgam os operários que muitas das nossas actividades estão em condições de suportar neste momento um aumento geral, mesmo reduzido, dos salários e ordenados que pagam aos que as servem?
E, como muitas actividades não estavam, nem estão, em geral, em condições de suportar aumentos de salário, sucedeu o que era inevitável: tirar-se aos beneficiados, em virtude do aumento do custo da vida daí resultante, com as duas mãos o que se lhes havia dado com uma.
Os grémios da lavoura limitaram-se, quando muito, a substituir os antigos sindicatos, pois nenhuma outra acção podiam ter, uma vez que a Federação dos Produtores de Trigo e as Juntas do Vinho, das Frutas, do Azeite, dos Resinosos e não sei quantos mais organismos já tutelavam a lavoura.
Talvez a sua existência seja vantajosa para se lhes dependurar na porta o simbólico ramo de louro ou para servirem de negaça ...
O debate aqui havido, não me lembro se na última ou penúltima legislatura, é natural que tivesse tido efeitos muito diferentes, se, como desta vez sucedeu, a todos fosse dado conhecimento exacto dos factos.
A Intendência dos Abastecimentos - mais um organismo a complicar - nem sequer foi feliz no nome, tais as recordações que desperta.
Depois de oito anos inteiramente consagrados à demolição do corporativismo e, o que ainda é pior, ao seu descrédito, porque tudo ou quase tudo o que o comprometeu se fez, abusivamente, sob o seu signo, não é de estranhar que o grito que prevaleça seja o de «Abaixo os grémios».
Mas Deus não dorme, como diz o povo, e deste debate há-de sair a verdade, que, de resto, o relatório da comissão de inquérito, corajosamente, já deu a conhecer ao País.
Não se puderam estudar os sindicatos, diz o relatório. Foi pena, porque os sindicatos foram, durante os cinco anos em que se fez corporativismo, o grande baluarte da Revolução.
O corporativismo foi a grande esperança das massas sindicalizadas e é agora a sua grande desilusão. Ficaram, felizmente, ainda alguns que acreditam no sistema e que não desconhecem a origem do mal que o minou.
O capítulo que o relatório dedica às Casas dos Pescadores merece a atenção de todos V. Ex.ªs e mais ainda, Srs. Deputados, porque lhes afirmo que as Casas dos Pescadores não constituem mais do que uma pequena parcela da grandiosa obra corporativa realizada no sector da pesca e noutros que se relacionam com o mar. Mas é que ali o criador, o orientador e o coordenador
de toda essa obra admirável foi um homem excepcional, o nosso ilustre e dinâmico colega comandante Tenreiro, a quem, em boa hora, foi confiada a organização corporativa do referido sector.
Perfeitamente integrado na ideia e tendo começado por onde devia, isto é, pela organização das classes patronais, pôde o comandante Tenreiro, a breve trecho, dedicar-se àquilo que nele é a sua maior paixão: a dignificação e melhoria das condições de vida da gente do mar.
Obra imensa esta do comandante Tenreiro, tão grande e tão humana que chega a comover, como se lê no relatório!
Porque não sucedeu o mesmo com as Casas do Povo?
Eu, que tenho acompanhado, dia a dia, a obra do comandante Tenreiro e que por ele tenho mais que admiração, já não falando na amizade que nos liga, muitas vezes penso se o desânimo não o teria já vencido se não tivessem confiado só a ele a chefia dos exércitos que tão esforçadamente tem sabido levar de vitória em vitória.
No campo da lavoura, a primeira batalha a travar terá de ser contra os até agora omnipotentes organismos anticorporativos que dominam a produção; depois haverá que organizar a produção em moldes corporativos e cooperativos, que o caso é idêntico ao da pesca, e só então poderá haver Casas do Povo, como já hoje existem Casas dos Pescadores.
Seria injusto afirmar que não existe já uma ou outra Casa do Povo digna do nome, mas isso não marca corporativamente, porque, em geral, só ao sacrifício de uma pessoa ou à abnegação de uma família ilustre e compreensiva isso se deve.
Já mais longo do que é meu costume, eu desejaria ficar-me por aqui; entendo, porém, não o dever fazer sem significar a minha absoluta discordância com a conclusão VII do (relatório da comissão de inquérito, e que, afinal, pode não ser discordância, se a tal escola prática de preparação que ali se propõe se destinar apenas a um lugar de estágio para os pretendentes a delegados do Governo junto dos grémios, e não para dirigentes.
De dirigentes preparados estamos todos fartos; o que se precisa é de dirigentes verdadeiros, dirigentes por conquista, e estes só o corporativismo os poderá fornecer. Para se ser dirigente, um bom dirigente corporativo, não basta frequentar uma escola e usar um chapéu debruado; é necessário muito mais do que isso.
Requer conhecimento profundo dos assuntos, qualidades de trabalho, vida irrepreensível e autoridade para se fazer obedecer. Felizmente, em todas as actividades existem pessoas com estes predicados, e se nem sempre vêm à superfície, ou é porque a sua experiência as leva à indiferença, ou porque o ambiente lhes não serve.
Ou se vai abertamente para a autodirecção económica, confiando-a às elites, aos que já deram provas na vida de se saberem administrar e de administrar o que a outros pertence, ou então altere-se a Constituição e reforme-se o Estatuto do Trabalho Nacional, por forma a pôr estes diplomas de acordo com a navegação tortuosa que andamos fazendo do liberalismo para o socialismo e vice-versa.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Bustorff da Silva: - Sr. Presidente: há-de haver justamente um ano que os Deputados que compõem esta Assembleia nomearam a comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa.
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Acordaram, assim, como que numa delegação de mandato.
O relatório há dias apresentado por essa comissão, e que constitui o objecto do debate de hoje, é, em meu conceito, nada mais nada menos do que o documento de prestação das contas que os nossos mandatários nos devem, a nós, mandantes, pelo encargo que tivemos a honra de lhes cometer.
Está, portanto, a comissão de inquérito a prestar as suas contas.
À Assembleia cumpre aprová-las ou rejeitá-las, louvá-las ou opor-lhes censura e concluir perfilhando as conclusões do relatório ou trazendo ao assunto quaisquer sugestões novas.
Pela minha parte, abusando involuntariamente da paciência de V. Ex.ªs, visto que apenas há algumas horas deixei esta tribuna, inicio a discussão fazendo os comentários e apontando as faltas que passo a resumir.
Num assunto desta monta convém, antes de irmos mais longe, determinar com matemática exactidão qual o âmbito do mandato, isto é, onde chegaram os poderes que a comissão exerceu por nossa delegação.
Esses poderes constam expressivamente da proposta de cuja aprovação proveio a dita comissão de inquérito.
E foram eles:
1.º Investigar os vícios do funcionamento dos elementos da organização corporativa;
2.º Procurar as causas do ambiente político que os cerca;
3.º Indicar aqueles vícios, havendo-os, para que sejam corrigidos; e
4 º Referir estas causas, para que sejam eliminadas.
Por conseguinte, à comissão de inquérito não foram conferidos quaisquer poderes de execução.
À comissão de inquérito não foi cometido o encargo de incriminar, julgar e punir.
Os poderes da comissão de inquérito ficaram reduzidos à competência restrita para investigar e apontar vícios e causas, de modo a poderem ser corrigidos.
De nenhuma incriminação de natureza pessoal, de nenhum julgamento preciso e concreto, apontando réus e aplicando-lhes sanções, a comissão foi incumbida.
Nesta conformidade, entendo do meu dever louvar desde já o critério perfeitamente modelar e compreensivo dos poderes que lhe cabiam, manifestado pela comissão de inquérito no importante, no bem elaborado relatório apresentado - corajoso documento que vai ser objecto da minha apreciação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Nem de outra forma podia ser! Se tivéssemos tomado diversa atitude negaríamos ab initio a própria essência da instituição dentro da qual exercemos o nosso mandato, iludiríamos a função de uma assembleia parlamentar como esta.
Mais! Trilharíamos um caminho pelo qual nenhum homem de bem avança os seus passos, qual seja o de acusar pessoas que não podem aqui defender-se, incriminar indivíduos praticamente impedidos de levantar a voz no próprio meio em que as acusações eram formuladas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Cometeríamos a cobardia de atacar pelas costas e amordaçados indivíduos porventura culpados, mas sem garantias de defesa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Bem andou, por conseguinte, a comissão de inquérito mantendo-se num critério de pura objectividade, actuando por forma que bem merece o aplauso rendido, sincero e veemente de todas as consciências bem formadas.
Não vá, todavia, supor-se que na atitude que estou definindo procuro criar restrições, opor limitações ao ajuste de contas daqueles que pêlos seus actos realmente devam prestá-las.
Falo claro e procuro ser entendido facilmente. No meu conceito e suponho que no de todos V. Ex.ªs, o ajuste de contas não compete à Assembleia Nacional - que não é um ... «tribunal do povo».
Mas ficou aberta a porta, reunido o material, organizado o corpo de delito, na posse dos quais o organismo competente agirá, assegurando a liberdade de defesa indispensável a todos os acusados, admitindo controvérsias e esclarecimentos que aqui não tinham viabilidade.
E não se dirá que a Assembleia Nacional receia que assim se proceda. A tal respeito o relatório é categórico!
Efectivamente, como se desempenhou a comissão de inquérito do mandato que lhe confiámos? Seguindo o exemplo - tantas e tantas vezes repetido em assembleias políticas com as quais aquela em que nos encontramos não quer ter nenhuma espécie de afinidade-, de tudo encaminhar sorrateiramente para a solução do abafarete?
De modo nenhum!
A comissão de inquérito facilitou a apresentação de todas as acusações, viessem de onde viessem, ainda mesmo que caracterizadas pelo aspecto infamante da denúncia anónima; principiou por convidar todos os indivíduos, todas as entidades fossem elas quais fossem, amigas ou inimigas, adversários ou simpatizantes, que tivessem censuras a opor aos organismos corporativos ou de coordenação económica; concedeu-lhes um largo prazo para exercerem esse direito; recorreu à imprensa, correndo ao encontro de certas almas menos corajosas, desculpando e estimulando com generosa benevolência o descaroável recurso à denúncia anónima; aguardou que decorressem os prazos fixados; mesmo depois do respectivo decurso, permitiu que fossem entregues, recebidas e apreciadas todas e quaisquer queixas que os interessados quiseram formular e, não contente com o exposto, dirigiu-se directamente aos organismos de coordenação económica, aos organismos corporativos, formulando dois questionários: um, questionário administrativo, outro, questionário económico-social, a fim de com a maior amplitude poderem dizer não só da sua acção, mas, acima de tudo, das suas intenções.
Não se encontra na história das assembleias políticas exemplo de tão fervoroso anseio de devassar um assunto e esclarecê-lo nos seus mínimos detalhes!
Com o material recolhido e através uma série de subcomissões que funcionaram como filtros através dos quais foi possível separar o que interessava à comissão de inquérito para elaborar o seu relatório, este foi organizado com o alevantado desassombro que há pouco tive ocasião de classificar em termos que jubilosamente vejo merecerem o aplauso de V. Ex.ªs
A liberdade de acusar foi tal e tamanha que por parte do público se estabeleceu a confusão, que a comissão de inquérito anotou e me parece muito oportuno destacar, mercê da qual houve quem supusesse que a Assembleia Nacional se propusera criar com a comissão de inquérito uma nova «muralha das lamentações» junto da qual todos iriam carpir as suas mágoas. E foi assim que a comissão foi bastas vezes solicitada para intervir em questões relativas ao ensino, às alfândegas, & administração geral do Estado e até aos tribunais, pedindo-se-lhe a reforma de sentenças que se reputavam injustas!
Por pouco a comissão não se viu sujeita a ter de decidir queixas acerca do funcionamento de sociedades particulares ou dissídios entre indivíduos mal-avindos e que não estavam dispostos a recorrer aos meios judiciais
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criados para julgar, punir ou absolver os responsáveis em contendas desta natureza!
Elaborado o relatório, a comissão de inquérito resumiu-o em várias conclusões.
A primeira é a de que o sistema sai desta devassa, levada até às últimas extremidades, inteiramente salvo.
Os princípios foram excelentes, são excelentes, continuarão a ser excelentes; servidos por homens que. os saibam interpretar, que queiram actuar dentro da doutrina que os informa, satisfazem por completo às necessidades e aos interesses nacionais.
Há, sim, que reprimir os que não compreenderam a alta função em que foram investidos, ou que meter na ordem os que, tendo compreendido essa função, dela abusaram e abusam, assumindo atitudes de tiranetes ridículos, umas vezes inacessíveis, outras de repulsiva má educação.
E, acima de tudo, há que contrariar certas ampliações de funções, que uma situação excepcional de guerra até certo ponto justificaria, mas que a partir da aproximação da paz se encontram deslocados ou, o que é pior, sem finalidade.
Com independência e clara concepção das circunstâncias a comissão de inquérito indicou sucintamente os principais erros, os principais desnivelamentos, desorientações ou abusos que teve ocasião de constatar.
Voltando um pouco atrás e em confirmação de que os vícios não são do sistema mas de alguns dos homens seus servidores, direi que não sou agricultor, nem industrial, tendo feito toda a minha vida completamente afastado de situações do Estado, no exercício exclusivo e restrito da minha profissão.
Pode, por consequência, haver exagero naquilo que vou referir; mas precisamente porque estamos aludindo aos princípios, e o princípio averiguado pela comissão de inquérito foi o de que o sistema em si continua ileso, reputo oportuno informar V. Ex.ª de que, ainda não há horas, um dos maiores lavradores da nossa terra me garantiu que determinada comissão reguladora exerceu a sua actividade por forma a permitir que este País realizasse nos anos de seca, de carência absoluta de adubos e num período de racionamentos e tabelamentos confusos, sucessivas colheitas de arroz que teriam sido impossíveis se essa comissão não houvesse garantido aos ranchos que trabalhavam nos arrozais do sul do País o abastecimento indispensável.
Deste facto se concluo que sempre que houve um organismo que soube satisfazer a função, apoiar os seus agremiados, servi-los no momento oportuno, orientá-los, suprir-lhes as faltas, exercer junto do Poder Central aquela acção indispensável para em momentos de crise evitar faltas e dificuldades por vezes quase insuperáveis, desde que houve organismos que conseguiram com perfeita isenção e absoluta fidelidade executar até final o sen objectivo, o sistema resultou perfeito.
Evidentemente que a comissão de inquérito tem razão, tem carradas de razão quando em seguida se alonga em discriminar razões de queixa que, por isso mesmo que andam na boca e na consciência de toda a gente, merecem desta Assembleia Nacional uma providência que conduza ao seu rápido aniquilamento.
Em primeira linha avulta a desurbanidade ou a petulância de certos funcionários de alguns organismos corporativos ou de coordenação económica.
Perco me raras vezes nessas paragens. Não posso, por conseguinte, depor pessoalmente; mas são às dúzias, às dezenas, às centenas as queixas que tenho ouvido de pessoas que no uso do seu direito se dirigem ao organismo que sustentam com as suas quotizações para dele receberem serviços e ai são acolhidas como elementos indesejáveis, obrigadas a esperar horas sobre horas, a lançar num papelinho o objecto da entrevista que solicitam do grãmanitu, que se mantém fechado a sete chaves num gabinete mais alto que a torre de marfim, ao ponto de na maior parte das vezes desistirem e resolverem por si próprias as dificuldades, visto que a entidade criada para as apoiar, acolitar ou defender esquece imperdoàvelmente o cumprimento dos seus deveres.
Sabemos todos, também, que nestes últimos anos muitas das moradias de Lisboa foram adquiridas por organismos de coordenação económica ou organismos corporativos, a fim de nelas instalarem faustosamente as suas repartições.
Objectam-me que esta censura carece de fundamento, visto ser fácil fazer a prova de que a maior parte dessas aquisições foram feitas a preços inferiores, pelo que, com a desvalorização da moeda, se hoje se proceder à revenda desses prédios luxuosos hão-de obter se cifras bastante superiores às despendidas como preço de aquisição.
A isto serenamente oponho que não é função dos organismos corporativos ou de coordenação económica funcionarem como agentes de compra e venda de propriedades ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ...A isso oponho que o Estado, numa orientação de economia, mantém modestamente instalada a quase totalidade dos seus serviços. A isso obtempere, por último, que contrastam impressionantemente e desagradàvelmente as instalações dos serviços da Nação e a riqueza, o luxo de alguns desses organismos corporativos ou de coordenação económica.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mais: a comissão de inquérito oferece no seu relatório quadros que representam um valioso elemento de estudo para esta Assembleia.
Destaco de entre eles o quadro III em relação ao quadro V, e o quadro IV em relação ao quadro VI.
O quadro III refere-se ao número de dirigentes de organismos da espécie de que estou tratando.
O quadro V diz respeito às despesas com os honorários desses dirigentes.
O quadro IV refere-se aos números representativos do pessoal dos organismos de coordenação económica.
O quadro VI diz respeito às despesas com remunerações desse pessoal.
Comparando estes quadros, vê-se que em 1945 havia 1:028 dirigentes de organismos corporativos ou de coordenação económica, que recebiam por ano 7:399.163$ como honorários, e que havia, nada mais nada menos, do que 9:937 empregados recebendo 119:493.983$.
São excessivos os salários?
Para o pessoal a capitação anda ao redor de 12 contos anuais, para os dirigentes algum tanto menos, o que desmente a campanha, profusamente difundida, de que são ordenados de autênticos nababos os pagos nos. organismos corporativos e de coordenação económica!
O Sr. Mário de Figueiredo:-V. Ex.ª dá-me licença?
Eu creio que V. Ex.ª calculou mal a capitação. Não quero significar com as minhas palavras que de um modo geral os dirigentes recebem mais do que isso.
Quero informar V. Ex.ª e, desde este momento, a Assembleia, de que há organismos, como os grémios da lavoura, em que os dirigentes recebem o que se chama uma autêntica ridicularia, há dirigentes que não recebem nada, como são os dos chamados e grémios do comércio», e, em geral, dos grémios facultativos. Ficam os dirigentes dos organismos de coordenação económica e dos grémios obrigatórios.
Faço esta nota sem deixar ao mesmo tempo de sublinhar que nem eu nem a comissão consideramos ou con-
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siderámos, de um modo geral, exagerado o que é atribuído aos dirigentes.
O Orador: - Está portanto esclarecida, após a interrupção feita pelo Sr. Dr. Mário de Figueiredo, a falsidade de que todos os dirigentes de organsimos corporativos ou de coordenação económica eram prodigamente remunerados e, em contrapartida, V. Ex.ª aprendem no relatório da comissão que entre os 10:000 empregados dos organismos corporativos, ou seja, militarmente falando, uma e divisão, muitos existem aos quais a comissão de inquérito tributa referências largamente elogiosas.
Logo, se alguns ou, melhor, se muitos descuidaram as suas obrigações, tombem muitos outros souberam realizar trabalho profícuo.
Manda a boa equidade destacar os últimos, louvá-los e recompensá-los.
Os méritos dos melhores de certo hão-de ser reconhecidos e aproveitados, até para que sirvam de escarmento aos que se afastaram do bom trilho.
Todavia, mesmo aos que ficarem é, pelo visto, muito útil recordar-lhes a verdadeira essência dos princípios do corporativismo consignados na nossa Constituição e no Estatuto do Trabalho Nacional.
A política de uma economia do Estado, dirigida com intervenção directa do mesmo Estado, jugulada ou comandada ditatorialmente por delegados do próprio Estado, em que verificamos que erroneamente se lançaram alguns organismos corporativos, tem de terminar.
Não é isso que impõe os princípios constitucionais pêlos quais nos regulamos. A Constituição perfilha uma economia auto-dirigida sob a fiscalização e orientação superior do Estado, na qual as actividades individuais se desenvolvem livremente, tendo por único limite o interesse geral da Nação; no nosso sistema as qualidades pessoais, de iniciativa e de inteligência, o poder de realizar de cada indivíduo podem e devem exercer-se com liberdade idêntica à das aves que cruzam o espaço desde que o façam sob a limitação de não afectarem os direitos alheios ou os interesses da própria colectividade.
Ao que parece, porém, houve quem traduzisse disciplina por despotismo e coordenação ou orientação por absorção.
Pois muito bem. Vamos a arrancar da bíblia que orienta o procedimento desses senhores conceitos nitidamente erróneos.
Despotismos, absorções das actividades individuais são descabidos e devem ser amoldados àquela justa harmonização de interesses, àquela coordenação de esforços que conduza a um Portugal maior e melhor, onde todos caibam caminhando de mão na mão e nunca às cotoveladas, onde todos se entendam, se acolham reciprocamente, se considerem e se estimem como irmãos que vivem sob o céu de uma mesma pátria e não como soldados que obedeçam militarmente às ordens de um comando oposto aos princípios da lei constitucional e tanta e tanta vez alheio ao prestígio e à autoridade que vêm da verdadeira competência.
O Sr. Quelhas Lima: - V. Ex.ª referiu-se à observância do soldado relativamente aos seus superiores, e, eu devo dizer que há sempre a possibilidade de, quando um inferior é prejudicado nos seus direitos, reclamar - é claro, dentro da ética regulamentar- se se julga injustamente atingido. Pergunto: quando um industrial, lavrador ou comerciante é lesado nos seus legítimos direitos pelas entidades corporativas ou de coordenação económica, e, tendo reclamado perante elas próprias, não é atendido com justeza e rigor, a quem recorrer?
Que disposição legal existe que corrija estas estranhas atitudes ou procedimentos?
O Orador: - V. Ex.ª não fez mais do que lançar um traço vermelho sob as afirmações que acabo de produzir. Precisamente porque reconheço a justeza das afirmações de V. Ex.ª, venho fazendo observar que se encontram, por vezes, em posições de comando, indivíduos recentemente saídos dos bancos da escola, destituídos da indispensável experiência e alheios ao interesse que no desenvolvimento do negócio implica o risco de capitais próprios, mas que supõem lícito mandar comerciantes e industriais como na África qualquer sobeta manda molegues
O Sr. Quelhas Lima: - É que, enquanto na vida comum, quer se trate de magistrados quer de militares, enfim, seja quem for, quando se prevarica há um código penal que pune qualquer espécie de infracção aos deveres gerais ou especiais, e eu pergunto a V. Ex.ª qual é o código penal que se aplica a esses dirigentes quando prevaricam, quando assumem atitudes menos respeitosas, parciais, etc. ?
O Orador: - Relativamente às faltas à margem da legislação penal vigente, esse código não existia até ao momento em que o Sr. Dr. Mário de Figueiredo entrou na comissão de inquérito.
Publicado o seu relatório, transferida para o Governo a discriminação dos responsáveis, estou em crer que todos os abusos serão reprimidos, todos os crimes, se é que há crimes, perseguidos, todas as faltas castigadas o toda a sede de justiça satisfeita.
Muitos apoiados.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá licença? E claro que o código existia. Há neste País um código 1 penal, como V. Ex.ª sabe muito melhor do que eu.
O Orador: - O código a que me referia ó outro, aquele a que aludiu o Sr. Deputado Quelhas de Lima, onde se punam desleixes, incorrecções, faltas à margem do Código Penal.
Mercê de Deus pode-se afirmar bem alto que do relatório da comissão de inquérito resulta para o Estado Novo e para todos os portugueses, resulta para Portugal esta informação consoladora: no que toca a honestidade, nada de especialmente grave pôde averiguar-se que atingisse os dirigentes ou os delegados do Governo nas organizações corporativas ou de coordenação económica.
Houve faltas, há defeitos e vícios próprios dos homens, compreensíveis após um período de quatro anos de guerra, com todos os desnivelamentos morais que ela provoca, todas as propensões para o abuso, embora não sejam caracterizadamente crimes ...
O Sr. Mário de Figueiredo: -V. Ex.ª dá licença? A comissão não afirma isso. A comissão não denuncia criminosos, mas não afirma que não possam existir.
O Orador: - Reconheci-o há bem pouco ...
O Sr. Mário de Figueiredo: - Não denuncia perante a Assembleia, porque a Assembleia não é um tribunal normal, nem um tribunal especial, nem um tribunal do povo.
Apoiados.
O Sr. Carlos Borges: - Mas denunciará perante o Governo.
O Orador: - E o Governo tomará depois as atitudes e aplicará as sanções que entender necessárias.
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Meus senhores: os homens, seja qual for o regime no qual exerçam as suas actividades, têm os seus egoísismos, as suas paixões, os seus vícios, os seus defeitos.
Era inevitável, por conseguinte, que no funcionamento destes organismos se encontrasse a projecção destas faltas inerentes à natureza humana.
Mas por isso que o sen apuramento não é para aqui, passamos adiante.
Ouvimos há pouco ao nosso ilustre colega Sr. Dr. Mário de Figueiredo que em vários organismos da espécie, embora os respectivos dirigentes não tivessem remuneração avultada ou não tivessem sequer remuneração, a verdade é que os encargos de instalação, funcionamento o recrutamento de pessoal originaram despesas e criaram encargos que era forçoso satisfazer. E então esses organismos meteram-se no caminho vicioso de se sobreporem aos agremiados, substituindo-os e entregando-se eles próprios à preocupação de realizarem transacções directas, de que obtinham lucros. Foi um erro de função, é um atentado contra os princípios...
O Sr. Carlos Borges: - É um abuso.
O Orador: - Sem dúvida. E não pode continuar.
Por outro lado verificou-se em algumas organizações uma outra situação ainda mais grave, e, mais de que grave, defeituosa e indecente pelo egoísmo que revela.
Foi quando, agremiados determinados comerciantes ou determinados industriais, a circunstância de possuírem um selo branco os convenceu de que podiam contar com a protecção incondicional do Estado, e que era chegada a oportunidade de aplicarem aquele velho preceito popular que aconselha quem sobe a que parta o degrau inferior.
Agremiaram-se e fecharam as portas; agremiaram-se e monopolizaram a actividade; agremiaram-se e proclamaram que dali por diante mais ninguém comerciava naquela espécie de comércio, mais ninguém podia exercer aquela espécie de indústria - a não ser eles, eles, os escolhidos, eles, os eleitos de um pretenso corporativismo à sua imagem e semelhança.
Mataram completamente o principal valor do estabelecimento comercial ou do organismo industrial - a clientela. Entraram na solução da mais cómoda preguiça; sucedesse o que sucedesse, produzissem bem ou mal, sabiam que os riscos da competência estavam ilaqueados pêlos compartimentos estanques em que se haviam conseguido encerrar.
E então todos os concorrentes que apareceram e todas as pessoas dispostas a colaborar passaram a ser escorraçadas, proibidas de comerciar, postas de parte.
Fez-se mais. Com a guerra, e a pretexto do mau funcionamento dos organismos corporativos, criaram-se os organismos de coordenação económica, que invadiram as actividades e funções dos organismos corporativos. Enxertaram-se nesses organismos de coordenação económica delegados do próprio Executivo. Com esta simplicidade de processos inverteu-se radicalmente a doutrina que informa o sistema corporativo da nossa Constituição e criou-se o aspecto de que o Estado passava a intervir, mandando, pondo e dispondo a seu bel-talante.
Sejamos justos.
Com a responsabilidade do próprio Estado, por indicação dos Ministros, com a intenção formal de que assim fosse por parte daqueles que ocupavam as cadeiras do Poder?
De nenhum modo.
Pela tal exacerbação de funções, pelo delírio das funções, pela repetição da fábula da rã, por excesso de vaidade, muitas e muitas vezes por um desvairado e orgulhoso pretensiosismo dos que se orgulhavam de possuir a verdadeira razão, a solução única. A imposição da sua vontade seria o único remédio salvador!
Acredito que fossem óptimas as intenções, Mas, como há- dias disse, de óptimas intenções está o inferno cheio.
E agora chegámos a um ponto sobre o qual a comissão de inquérito passou mais do que levemente e que, todavia, para mim, que vivo dia a dia perto daqueles que exercem actividades comerciais, industriais ou agrícolas, constitui a principal razão de queixa da forma como exercem as suas funções certos organismos corporativos e certos organismos de coordenação económica.
Refiro-me à idolatria, ao abuso, ao desatino, à mania da papelada.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A numerosos colegas nossos ouvi referências ao que ocorre na vida do muitos lavradores do Norte.
Todavia não existe cotejo possível entre o que decorre na lavoura e o que se exige do comércio ou da indústria.
Se o mal do próximo atenua o próprio, a lavoura deve sentir-se consolada.
O que se passa na vida do comerciante o a do industrial da capital é muito mais doloroso.
Ainda quando determinado comerciante exerce a sua actividade restritamente em relação a um único produto, trata apenas com os organismos da especialidade e a sua maceração é relativa; mas quando o comerciante, por a sua actividade abranger mercadorias de várias origens, tem de negociar em matérias que se relacionam, por exemplo, com a Comissão Reguladora do Comércio de Metais, com a Junta de Exportação do Algodão Colonial, com a Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos, etc., então a vida desse homem decorre por forma a recomendar a aquisição de um colete de forças que lhe domine um ataque de loucura furiosa, de prever se não findam as aberrações da ... papelada burocrática.
Pedi a um amigo, que exerce a sua actividade precisamente num negócio desta última espécie, que me fornecesse exemplares de todos os papéis que tem de assinar para fornecer a sua clientela. Tenho-os aqui. Excedem a dúzia e meia!
Tem de assinar estes papéis para exportar produtos químicos. Enche estes, mais estes e preenche mais aqueles. Dá-os brancos, cor de rosa, esverdeados, azul pálido ou amarelos.
Quase ... um arco-íris!
Com os exportadores do vinho do Porto a tragédia e semelhante ...
Houve que publicar uma volumosa agenda, recheada dos infinitos papéis a preencher.
V. Ex.ª compreendem que não há boa vontade, não há coragem de bem servir, não há simpatia por um regime político, não há intenção de colaborar com um Governo - que todos sentem e sabem que se dedica ao bem da Nação -, não há qualidades morais, não há espirito de sacrifício que bastem para evitar um momento de desânimo ou de indignação contra a mania revoltante de ocupar o tempo de cada qual em verdadeiras ninharias, quando existem 9:337 empregados de organismos corporativos que tinham muito bom tempo e obrigação de executar estes trabalhos.
Importa, por consequência, remeter os interessados ao seu campo de acção e à sua actividade perfeitamente definida.
O decreto n.º 29:099, de 14 de Novembro de 1938, que a comissão invoca no sen relatório, já pretendeu acudir a semelhantes anomalias.
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Sr. Presidente: muitas outras observações haveria que fazer, destinadas a liquidar pequeninos nadas que nem por constituírem verdadeiras futilidades alheias ao regular funcionamento do sistema deixam de contribuir para o descontentamento existente. Mas a hora vai avançada e quero terminar.
Das conclusões do relatório da comissão de inquérito extraem-se vários ensinamentos, que convém resumir: em primeiro lugar o País está cansado de excessos burocráticos, de mesquinharias de mangas de alpaca, do culto do papel, do duplicado, do triplicado, que absorvem tempo infinito e paciência da melhor; depois, cumpre ao Governo melhorar as condições do funcionamento do sistema, facilitar as actividades individuais, embora mantendo-as sob a. acção coordenadora do Estado; prosseguir na experiência política da. libertação gradual dos diversos meios do produção iniciada polo Sr. Ministro da Economia.
Pouco a pouco há que compenetrarmo-nos de que a guerra acabou, pelo menos quanto aos seus inconvenientes mais graves.
Volvamos, por conseguinte, sem atropelos nem movimentos bruscos, às normas correntes numa economia de paz.
Onde havia que corrigir erros ou vícios, a comissão de inquérito acudiu com o valioso contributo de uma indicação desapaixonada e criteriosa.
Esta Assembleia Nacional elevou-se a um plano sem igualem qualquer outra assembleia política elegendo essa comissão.
Confio em que nenhum dos seus membros descerá para o campo das retaliações pessoais, das vinditas mesquinhas, de ajustes de contas e chis imputações insidiosas um que a paixão dos homens obscureceria e aviltaria a dignidade da. sua função como Deputados à Assembleia Nacional.
Mantendo-nos neste propósito prestaremos ao País um serviço relevante e corresponderemos a confiança quo elo nos dispensou.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. A próxima sessão será amanhã, há hora regimental, com a mesma ordem do dia: discussão do relatório geral da comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa. Está encerrada a sessão.
Eram 17 horas e 55 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
António de Almeida.
Indalêncio Froilano de Melo.
Jorge Botelho Moniz.
José Alçada Guimarães.
José Luís da Silva Dias.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Manuel França Vigon.
Querubim do Vale Guimarães.
Ricardo Malhou Durão.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Cerveira Pinto.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Mendes de Matos.
Manuel Colares Pereira.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.
O REDACTOR - Luis de Avillez
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA