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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 107

ANO DE 1947 20 DE MARÇO

IV LEGISLATURA

SESSÃO N.º 107 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 19 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira

Nota. - Foi publicado um suplemento no Diário das Sessões n.º 105, que contém o parecer n.º 23 da Câmara Corporativa, relativo à proposta de lei n.º 171 (organização suprema da defesa nacional).

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 45 minutos.

Antes da ordem do dia: - deu-se conta do expediente.
Os Srs. Deputados Mário de Aguiar e Braga da Cruz solicitaram a restauração de várias câmaras.
O sr. Deputado Mendes Correia ocupou-se de questão de cultura, em especial da necessidade de proteger o livro português.

O Sr. Deputado João de Amaral referiu-se ao decreto-lei relativo à sentença do Tribunal de contas que condenou três professores do Instituto Superior de Agronomia.

Ordem do dia. - Prosseguiu a apreciação do relatório geral da comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa. Usaram da palavra os Srs. Deputados Águedo de Oliveira, Mendes Correia e Antunes Guimarães.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 50 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 35 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Cazaes.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
Manuel José Ribeiro Ferreira Manuel Marques Teixeira
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernao Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Herculano Amorim Ferreira.
Indalêncio Froüano de Melo.
João Ameal.
João Antunes Guimarães.

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João Carlos de Sá Alves.
João de Espregueira da Bocha Paris.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquivei.
José Luís da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
José Nosolini Finto Osório da Silva Leão.
José Nunes de Figueiredo.
José Fenalva Franco Frazão.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Mendes de Matos.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Borges.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Querubim do Vale Guimarães.
Ricardo Spratley.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teotónio Machado Pires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 86 Srs. Deputados.

Está aberta a sessão.

Eram 15 horas e 45 minutos.

Antes da ordem do dia

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Ofícios

Dos Grémios do Comércio dos concelhos de Espinho e Feira e do concelho de Gondomar, manifestando o seu apoio ao projecto de lei do Sr. Deputado Mendes de Matos, sobre o descanso dominical.

Exposições

Subscrita por Belmiro Neves Pinho o Adriano Gregório Gonçalves, em que manifestam o seu desacordo com o projecto de lei do Sr. Deputado Sá Carneiro, sobre inquilinato.

Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Excelência. - Os representantes de todos- os grémios da lavoura na Junta Nacional dos Resinosos, pura cumprimento da missão que lhes é imposta na defesa da lavoura, julgam dever trazer perante V. Ex.ª o que segue:
Tendo o ilustre Deputado Sr. Dr. Pacheco de Amorim feito reparos sobre aspectos da resinagem, entendeu a União dos Grémios dos Industriais e Exportadores de Produtos Resinosos apresentar uma exposição, datada de 8 de Janeiro passado, para atenuar o efeito das declarações do ilustre parlamentar.
Primeiro parece-nos estranho que, havendo entre es associados da referida União quatro vogais na Junta Nacional dos Resinosos, o assunto não fosse sequer conhecido da Junta para ser directamente apresentado à Assembleia Nacional, evocando disposições ao abrigo das quais, como representantes da lavoura, nos sentimos também obrigados a esclarecer alguns pontos esquecidos ou algo obscuros na referida exposição, não podendo deixar de lamentar as decisões da União dos Grémios, onde a lavoura não tem representação, apesar de ali se tratarem interesses bilaterais, tão respeitáveis para a produção como os da indústria.
Esqueceu-se dizer que em 1943 os preços-base médios propostos e aprovados pela Junta Nacional dos Resinosos eram de 2$50 e que só depois, e com surpresa, é que foram descidos, pela portaria n.º 10:315, para 1$80, baixa que foi mantida, a despeito de uma representação da maioria dos grémios da lavoura e dos seus representantes, em desacordo com essa portaria.
Houve, pois, redução ao que fora previsto no referido organismo de coordenação económica e a favor da indústria, o que deu talvez lugar a um dos períodos notados pela União.
O quanto os preços pagos à lavoura representam em benefício da indústria pode ser esclarecido pêlos números seguintes:
Considerando normal o rendimento, em gema limpa, de 80 por cento de pez e 20 por cento de aguarrás, cada incisão, dando a média de lkg,500 de gema, produzirá 1kg,200 do primeiro derivado e 300 gramas do segundo.
Com estes elementos basta comparar os preços médios das incisões em cada ano e as respectivas cotações dos produtos obtidos para se avaliar das oscilações dos lucros industriais.
Segundo os números da Junta Nacional dos Resinosos, os preços médios das incisões foram em 1933 - portanto antes da guerra- l$20 e, respectivamente, 1$39 por quilograma de pez e 2$i23(7) de aguarrás, produzindo portanto cada incisão 1kg,200 de pez = l$66(8)+aguarrás 300 gramas =$67(1) =2$33 (9).
Aplicando o mesmo cálculo para 1942 - em plena guerra -, com a incisão de 4$88, o rendimento dos produtos obtidos passa a 9 $25 (2).
Em 1943, com a descida vertical da incisão a, média de 1$77, que nem sequer chegou aos l$80, o seu rendimento em produtos manufacturados mantém-se em 7$60(2), segundo as cotações de venda, e a despeito dos preços impostos para os contratos colectivos, de que tão sentidamente se lamenta a representação da indústria.
Comparando os diferentes preços pagos à lavoura por incisão em relação aos produtos manufacturados, verifica-se:

Cotações de gema:

1938.................... 1$02
1942.................... 4$88
1943.................... 1$77

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Produtos manufacturados:

1938 .............. 2$33(7)
1942 .............. 9$35(9)
1943 .............. 7$60(2)

ou seja à volta de 138 por cento no primeiro, 95 por cento no segundo e 430 por cento de margem para custear o fabrico em 1943, graças à tal média-base fixada por portaria.
Isto se considerássemos a anedia normal de lkg,500 de gema por incisão, que até um dos mais competentes técnicos económicos da nossa indústria resineira admitia em lkg,600.
Ao aceitar-se a média mais favorável para uma exploração normal deve notar-se que os limites legais das incisões são 9 e 8 centímetros, que abusivamente têm chegado eon grande parte do pinhal a 14 e 16 e mais, o que deve considerar-se verdadeira mutilação, em vista a exagerado e ilegal rendimento de gema.
Assim se conclui que os lucros foram superiores aos números apresentadas e agravado o prejuízo da lavoura com os danos no pinhal sem nenhuma compensação.
É por isto talvez que a indústria prefere mostrar os seus cálculos por fornia a considerar o rendimento da incisão como indeterminado, para se reportar apenas à sua relação abstracta para cada quilograma de produtos laborados.
Depois de fazermos o cálculo pelas normas gerais como bases de orçamentos, vamos servir-nos da que melhor parece convir aos industriais com a base do segredo do negócio.
Mesmo benevolamente aceite a sua fórmula de cálculo, a relação entre os preços das incisões e dos produtos resinosos foi em 1938 de 65,4 por cento pago à lavoura, de 64,2 por cento em 1942 e apenas de 34,9 por cento em 1943, com os tais preços fixados e consequentes contratos colectivos.
O que, a admitir como boa a base fixada em l$80 como norma para os contratos colectivos e consumo interno dos produtos, estes deveriam ter sido vendidos a 2$57, e não a 5$06, segundo regista a média estabelecida na Junta Nacional dos Resinosos, o que poderia ter-se remediado pelo cumprimento de disposições regulamentares, mas que a indústria, neste como em outros casos, tem considerado letra morta, em seu benefício e lastimável desprezo de disposições corporativas.
E assim, para se avaliar os lucros excepcionais da indústria em face do que esta pagou à lavoura, basta conhecer-se que a exploração de 1943 foi de 26.302:715 incisões e que, mantida uma proporção constante entre os preços pagos e os produtos laborados, teríamos em 1943 cerca de 3$50 por ferida, e, considerado mesmo um pequeno aumento na despesa industrial de um ano para o outro, verifica-se que o cálculo deverá estar certo à volta de 3 $20.
Constata-se assim que a lavoura recebeu em 1943 pela sua gema apenas 46:555.805$55, em lugar de 84:168.638$, que receberia mantidas as devidas proporções entre o preço da resina e a venda dos produtos fabricados, sem ter em linha de conta o excesso de produção obtida à custa do sacrifício do pinhal arruinado no seu desenvolvimento e o valor da madeira, com pura perda para o lavrador e para o património nacional.
Mas estes números das incisões dão tanto lugar a dúvidas que em 1945 a própria União dos Grémios remeteu aos grémios da lavoura uma circular pedindo a indicação do número de incisões feitas na área de cada um para completar as informações dos seus associados, dizia-se.
Esta confissão de dúvida sobre os elementos estatísticos é estranha, visto existir uma disposição legal quo
impõe aos industriais visar nos grémios da lavoura todas as declarações de aluguer de pinhal, disposição obstinadamente desprezada em geral e que a própria união não tem feito cumprir aos seus associados.
Assim, somos levados a crer que o referido número de incisões e respectivos lucros se afasta da realidade pura menos e que até ao presente se tem esquivada a indústria a todos os esforços da lavoura para se obter elementos seguros no respeitante à exploração e sua relação com os produtores.
Pode parecer nebulosa a forma como se mantiveram, com tanta margem de lucros, as cotações médias das incisões sem a natural concorrência entre os industriais.
Precisa esclarecimento.
A resinagem no País tem estado, pela força do condicionamento industrial ou virtualmente pelas circunstâncias criadas, dividida em três zonas: a do Norte Douro, entre Douro e (Mondego e sul do Mondego.
E nestas últimas que se fixaram os mais numerosos centros fabris, é aí que se pode exercer certa concorrência de preços elevando as médias por incisão.
No Norte apenas três, virtualmente duas grandes empresas, tinham direito ou possibilidade de explorar o pinhal livres de toda a concorrência e aproveitando tanto o desconhecimento como a necessidade dos pequenos proprietários para obter pinhal abaixo mesmo dos prejuízos causados na árvore pela exploração da gema.
E esta circunstância privilegiada -que não a disciplina corporativa dos preços- que permite a essas empresas ditar cotações sem serem incomodadas pêlos pequenos industriais.
Indo ao Norte buscar resina a baixos preços, conseguem margens de compensação e médias muito inferiores, acumulando reservas com que podem excluir qualquer veleidade de fazer-lhes frente 110 Norte.
E esta situação que, criando um regime especial de médias inferiores e lucros proporcionalmente superiores para estas empresas, lhes cria um predomínio tão doloroso para a lavoura como absorvente da pequena indústria.
E, assim, pouco a pouco os outros industriais vão vendo as suas faculdades absorvidas, e sujeitos às directrizes impostas ou à perda da sua independência económica.
E foram, quanto a nos, sobretudo, estas as causas daquelas . anomalias tão justamente assinaladas pelo Sr. Dr. Pacheco de Amorim.
De há anos para cá, a situação poderá resumir-se no fortalecimento das duas grandes empresas, com prejuízo da lavoura e da modesta indústria, que em melhores condições económicas poderia trabalhar.
Parece depreender-se da exposição da União dos Grémios dos Industriais e Exportadores de Produtos intensos que não só se não fizeram fortunas anormais em certos sectores da indústria resineira, como até esta têm sofrido dolorosas privações no seu exercício.
Em todo o caso a lavoura é que não viu a indústria cumprir o disposto nos artigos 22.º e 23.º do regulamento do trabalho de pinhal e obtenção da resina, os quais dispõem que o preço-base de aluguer será compensado por uma comparticipação nos lucros em relação às cotações médias efectivas das vendas de produtos laborados.
E que nem neste caso de lucros excepcionais, que os números oficiais demonstram com suficiente eloquência, se cumpriu.
Quer-nos parecer que julgamos ter-se esquecido dizer isto e que a nossa posição de legítimos representantes da lavoura nos impõe esclarecer junto da Assembleia Nacional e a Nação, que nos cumpre servir por bem.

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Sr. Presidente: os representantes da lavoura na Junta Nacional dos Resinosos abaixo assinados, esperando que lhes seja concedido o mesmo tratamento que à União dos Grémios dos Industriais e Exportadores de Produtos Resinosos, ousam solicitar que, ao abrigo do n.º 18.º do artigo 8.º da Constituição Política da República Portuguesa, V. Ex.ª se digne, em sessão, ordenar a leitura desta representação à ilustre Câmara dos Srs. Deputados.
Com os nossos agradecimentos temos a honra de apresentar a V. Ex.ª os anais respeitosos cumprimentos.
A bem da Nação. - Os Delegados da Lavoura na Junta Nacional dos Resinosos. - (Ilegível) - (Ilegível) - David Faria de Matos Viegas.
O Sr. Presidente: - Foi ontem, já no final da sessão, distribuído o parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de lei n.º 119, em que se converteu o decreto-lei de protecção ao cinema nacional.
A Comissão de Educação Nacional deve reunir-se hoje para apreciar este parecer. Peço a atenção da Câmara para o assunto, visto ter sido reconhecido urgente, pelo que será ainda discutido dentro desta sessão legislativa.
Pausa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Mário de Aguiar.

O Sr. Mário de Aguiar: - Pedi a palavra para chamar a atenção do Governo, e muito especialmente do Sr. Ministro da Justiça, para as considerações com que me vou referir a um assunto que é da maior importância, não só porque respeita ao interesse geral da Nação, que tem de manter uma boa distribuição da justiça, mas também porque está intimamente ligado ao interesse de algumas vilas e povoações rurais que nos cumpre aqui defender em todas as suas justas reclamações.
Ao lado dos mais altos problemas nacionais, que têm sido superiormente versados nesta Assembleia, entendo que a Câmara só se dignifica aproximando-se também da pequena vida local, acarinhando e estimulando o desenvolvimento das vilas e das aldeias que nos confiaram p. elevada representação que exercemos como Deputados da Nação.
Já nesta legislatura pedi ao Governo, e nesse sentido tive a honra de apresentar um projecto de lei, se reintegrassem as autoridades concelhias dentro da sua antiga tradição e prestígio, e hoje venho pedir também ao Governo que, em nome do progresso de alguns povos e de uma indispensável descentralização dos serviços de justiça, proceda a uma nova divisão judicial do território do País, revendo o decreto de 9 de Julho de 1927, que extinguiu trinta e sete comarcas, todas da maior importância.
Não tenho a intenção de atacar essa providência excepcional do Governo, porque tenho ainda bem presentes as circunstâncias também de excepcional gravidade em que há vinte anos se encontrava a situação financeira do Estado, da qual só nos reabilitámos devido à sábia administração do eminente homem de Esto do que é o Sr. Dr. Oliveira Salazar, serviço que deve ficar para sempre na memória de todos os portugueses.
Foi uma das medidas que constituíram o programa de salvação pública, de cujo pensamento e execução só podem ser declarados responsáveis aqueles que tornaram possível que estrangeiros exigissem ao Ministério Ivens Ferraz a fiscalização das nossas finanças e da nossa administração pública.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas o decreto da extinção das comarcas, Sr. Presidente, foi das mais duras provações a que Eodiam sujeitar-se os povos atingidos, pois, para aquelas que ficaram mais distantes da sede das comarcas a que as suas foram anexadas, esse diploma representou não só a extinção da sua autonomia judicial, mas quase PI extinção da própria justiça.
E sem justiça não pode haver ordem nem trabalho, e a própria dignidade da pessoa humana sente-se diminuída, porque não tem garantias de defesa.
A distância e a dificuldade de comunicações nalguns casos não chegam certamente a ser conhecidas de todos os Srs. Deputados, pelo menos daqueles que vivem nas grandes cidades, mas basta dizer-lhes que sei de povos que estão a tal distância da sede das suas actuais comarcas que têm de dispor de três dias para irem cumprir qualquer ordem judicial.
E quando, ao fim do terceiro dia, regressam a casa, sentem os incómodos graves de uma grande jornada e tiveram de contrair uma dívida pelas despesas que fizeram.
A estes inconvenientes acresce que as novas circunscrições judiciais não coincidem com as administrativas e fiscais, de modo que aqueles que têm de comparecer nos tribunais não podem aproveitar a sua penosa e dispendiosa deslocação para tratar das suas contribuições ou dos seus assuntos camarários.
Algumas das comarcas extintas foram divididas e distribuídas por três e quatro comarcas, e estas novas comarcas ficaram pertencendo, nalguns casos, a dois distritos e até a duas províncias diferentes!
Cito o seguinte exemplo: pela extinção da comarca de Tábua as suas freguesias foram distribuídas por três comarcas diferentes - Argauil, Oliveira do Hospital e Santa Comba Dão-, alcançando a área de dois distritos diferentes - Coimbra e Viseu -, de duas províncias também diferentes -Beira Litoral e Beira Alta- e de duas dioceses também diferentes -Viseu e Coimbra.
Estes factos anormais são dignos de atenção da Câmara e do Governo, ao qual, devo dizê-lo, não pertencia nenhum dos actuais Ministros, nem mesmo o Sr. Presidente do Conselho, quando foi publicado o decreto que extinguiu as trinta e sete comarcas.
Tudo leva a crer que a providência que ordenou esta disparidade territorial foi tomada provisoriamente, há vinte anos, parecendo que deve ter chegado a oportunidade de se proceder à sua revisão.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas, Sr. Presidente, não foram só os povos anexados que sofreram com a extinção das comarcas.
Também os magistrados e os funcionários da justiça das comarcas aumentadas ficaram sobrecarregados com trabalho incompatível com a boa ordem dos serviços, com as suas forças e com as responsabilidades que os seus inspectores e as suas consciências lhes impõem.
Basta dizer que a área jurisdicional de algumas comarcas ficou abrangendo, em regra, para cima de quarenta freguesias, mas algumas ficaram tendo para cima de sessenta, e outras ainda atingem, setenta e nove circunscrições paroquiais, como se vê pelo mapa anexo ao decreto que extinguiu as comarcas.
Acresce que há freguesias distanciadas das sedes das comarcas 50 a 60 quilómetros.
Ora, tanto pela vastidão da área como pelo excessivo número de habitantes, a justiça nestas comarcas não pode obedecer a alguns dos seus requisitos essenciais, porque não pode ser fácil, nem acessível, nem pronta e tem fatalmente de ser cara.

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E quando a justiça é cara, já não existe para as classes médias e pobres, que, sem ela, ficam sujeitas a extorsões e a impunidades, impróprias de meios civilizados.
Ao grave inconveniente de acumulação de trabalhos e de funções judiciais tem procurado obstar o Sr. Ministro da Justiça, aumentando os quadros do funcionalismo judicial das comarcas que absorveram as que foram extintas e até os dos julgados municipais, sendo com frequência publicadas no Diário do Governo as respectivas portarias.
Mas, então, Sr. Presidente, se a necessidade de aumentar os quadros dos serviços judiciais está sendo reconhecida oficialmente, se uma parte das economias apuradas com a extinção das comarcas está sendo já aplicada ao funcionamento dos mesmos serviços, porque não há-de o Governo restituir esses mesmos serviços às comarcas extintas, reintegrando trinta e sete vilas dentro da marcha do seu progresso e desenvolvimento e que foram sacrificadas, há vinte anos, por culpas que não cometeram?!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É de considerar que essas comarcas não foram criadas há muitos anos com quaisquer fins políticos. Pelo contrário, deveram a sua autonomia judicial à importância do seu território, da sua população e da sua localização.
Se essas circunstâncias favoreceram a criação dessas comarcas, agora, que são decorridos, em geral, mais de cinquenta anos, é evidente que aumentou a sua população, enriqueceu o seu território e foram beneficiadas as suas vias de comunicação.
Até sob o ponto de vista financeiro a restauração das comarcas extintas é defensável. Abstraindo mesmo de que já cessou, na sua maior acuidade, a causa da extinção, o encargo para o Estado seria mínimo, se atendermos ao aumento cada vez maior dos actuais quadros judiciais e ao aumento de receita que essas comarcas produzirão se forem restabelecidas.
Por outro lado, se um juiz de 3.ª ganha 3.700$ e um delegado de igual categoria ganha 1.800$, a soma destas duas verbas multiplicada pelo número de meses do ano e por 37, que é o número de comarcas, perfaz o total de 2:464.200$.
Esta verba é manifestamente modesta ao lado dos milhões de contos que estão sendo aplicados em melhoramentos, que são da mais alta importância, é certo, mas não se poderá dizer que os serviços de uma boa administração de justiça sejam menos importantes e menos necessários à vida e ao progresso da Nação.
(Submetidas todas estas considerações à elevada apreciação desta Assembleia Nacional, espero que o Sr. Ministro da Justiça, a quem o País já deve os mais relevantes serviços e a quem, por isso, presto as homenagens ia minha maior admiração, possa muito brevemente atender as reclamações dos povos sacrificados já há, vinte anos, e que constituem a décima parte da população do País.
Só valorizando a província se pode conseguir que ela ião seja pouco a pouco abandonada, como está acontecendo, o que é um dos maiores inales dos tempos modernos e que é preciso evitar, a bem do interesse nacional, que todos procuramos servir.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Braga da Cruz: - Sr. Presidente: há com certeza um problema em suspenso respeitante à organização idiciária em Portugal.

Refiro-me à revisão do decreto n.º 13:917, de 9 de Julho do 1927.
Tal problema apresenta duas soluções: ou a solução de uma revisão total, que seria demorada e talvez acarretasse até duvidosas consequências de ordem política e financeira, ou a solução tendente só a serem atendidos os casos mais clamorosos que de per si se mostrem de evidência tal cuja solução não possa ter delongas.
É que há casos que levam à intranquilidade das populações, quase por completo privadas da protecção desse órgão de soberania: os tribunais.
Ouvi, com toda a atenção, sustentar nesta Assembleia uma e outra destas duas soluções.
Ontem a palavra brilhante e autorizada do ilustre Deputado Sr. Ribeiro Gazaes; hoje a palavra igualmente brilhante e autorizada do nosso ilustre colega Dr. Mário de Aguiar.
Evidentemente o Sr. Deputado Mário de Aguiar, pedindo a restauração de todas as comarcas, quis ter um acto de cavalheirismo, um acto altamente louvável, por certo, mas não conseguiu, de maneira nenhuma, deixar de perceber-se, através das suas palavras, que algum caso havia directamente ferido a sua consciência de jurisconsulto ilustro como é.
Nesta ordem de ideias, devo declarar que não se me afigura possível fazer-se essa revisão total com a restauração de todas as comarcas extintas, visto que, pela própria demonstração feita no relatório do decreto n.º 13:917, corroborada pelo mais que até hoje se há verificado, alguns casos são de evidente rejeição.
Mas, se alguns casos, na realidade, não deverão ser atendidos, outros há que merecem uma reparação imediata, e esses de reparação imediata são demonstrados pêlos números das próprias estatísticas e por alguns factos mais que vou ter a honra de, em breves palavras, apresentar à Câmara.
Há nos dados estatísticos publicados recentemente no volume que se refere à estatística judiciária, serviços esses pêlos quais não posso deixar de dirigir as minhas felicitações ao Instituto Nacional de Estatística pela regularidade e rigor com que são publicados, informações que demonstram que certos casos tão clamorosos não podem deixar de requerer a imediata atenção do Sr. Ministro da Justiça.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Vejo por essa estatística que um desses casos é precisamente aquele que foi aqui ontem citado pelo Sr. capitão Ribeiro Cazaes, respeitante à comarca de Vouzela, e vejo também que o outro caso, que quase o iguala, e em muitos casos o excede, é o que respeita à comarca de Amares.
Esta comarca de Amares, das terras de Entre-Homem e Cávado, foi completamente anexada à comarca de Vila Verde, e dai verificar-se esta anomalia: a comarca de Vila Verde era de 1.ª classe e a de Amares de 2.ª; juntaram-se, deram uma enormíssima comarca com terras que vão até à fronteira, e ficou uma comarca de 3.a classe.
O absurdo é tão manifesto e os serviços tão penosos que não há juiz, delegado, escrivão ou oficial de diligências que queira permanecer a trabalhar em semelhante comarca.
Para mais, como a substituição do juiz de Direito é feita pelo conservador do registo predial, sucede que, estando no exercício do cargo um distinto funcionário cujo serviço a inspecção classificou de muito bom, esse funcionário, porque julgava humanamente impossível desempenhar cabalmente esses serviços de justiça, viu-se forçado a requerer a sua aposentação.

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Este é um dos casos que necessita imediatamente de ser remediado. Isto não pode continuar, nem a comarca a ter uma vastidão de territórios e peso de serviços que inibem os funcionários de poder cumprir os seus deveres.

Os factos que eu acabo de apontar são do pleno conhecimento do ilustre juiz conselheiro presidente do Tribunal da Relação do Porto.

E, como S. Ex.ª está perfeitamente ao par de tudo quanto se passa na comarca de Vila Verde e no julgado municipal de Amares, eu termino fazendo um apelo ao Sr. Ministro da Justiça para que mande, com a possível urgência, S. Ex.ª proceder a um inquérito às condições em que são forçados a correr os serviços de justiça na comarca de Vila Verde e no julgado municipal de Amares, e cujas conclusões, estou disso certo, levarão S. Ex.ª a restaurar sem demora a antiga comarca de Amares, a bem da justiça e a bem da Nação.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: antes de abordar o assunto que constituirá o objecto das minhas rápidas considerações, desejava associar-me ao que acaba de ser dito nesta Assembleia relativamente à necessidade de se rever a divisão comarca.

Conheço perfeitamente o caso da comarca de Vagos. Devo dizer que se tratava da melhor comarca de 3.º classe, ou de uma das melhores comarcas de 3.ª classe, tendo surpreendido todo o mundo a sua supressão. Afectou-se deploràvelmente a economia local, como se afectaram as tradições e o prestígio daquela histórica vila, que tantos esforços despendeu no seu progresso e na boa acomodação das repartições judiciais. Mas, sobretudo, não se atendeu ao interesse das partes, ao movimento de processos, à densidade de população, à posição cêntrica de Vagos num nó de importantes comunicações. Não foi, porém, este por agora o tema sobre o qual eu pedi a V. Ex.ª para me conferir o uso da palavra. Limito-me, portanto, a associar-me às palavras aqui proferidas relativamente à necessidade de ser revista a divisão judicial em geral, procedendo-se ao justo restabelecimento de algumas comarcas, entre as quais a de Vagos. Espero que o assunto será devidamente considerado por quem de direito.

Sr. Presidente: tratei há tempos, na Assembleia, de questões relativas ao culto da arte em Portugal e referi-me, de um modo especial, entre os assuntos versados nessa ocasião, à organização do Teatro Nacional de S. Carlos. Desejaria acentuar hoje que se confirmam afinal os meus receios de uma colaboração demasiado restrita de cantores portugueses, sem que os méritos de alguns dos cantores estrangeiros contratadas justifiquem a preterição dos nossos artistas.

Entendo que é preciso resolver em conjunto o problema do Teatro Nacional de S. Carlos, de modo a que venha a ser de facto um centro nacional de cultura artística.

Hoje refiro-me especialmente à exposição feita à Assembleia Nacional pela direcção da revista O Ocidente, a respeito do problema do livro português.

Ë necessário, como já disse várias vezes nesta Câmara, cuidar a sério da defesa ido nosso livro. Uma vaga de literatura estrangeira, nem sempre a melhor, facilmente invade as nossas livrarias e as nossas bibliotecas, sem que exista a devida reciprocidade de tratamento dos outros países em relação ao livro português.

E de considerar a sugestão da dita revista para o estabelecimento de um certo número de facilidades, sobretudo em Espanha e no Brasil, para o nosso livro, como sejam na aquisição de cambiais em outros países para o pagamento dos livros importados de Portugal cobranças postais, pequenas encomendas, etc.

E muito especialmente chamo a atenção da Assembleia para a sugestão respeitante à criação de um Instituto Nacional do Livro, que, em colaboração com outras entidades, como as Academias, o Secretariai! Nacional da Informação, o Instituto para a Alta Cultura e a Inspecção das Bibliotecas e Arquivos, cuidaria; de propor as providências necessárias para a salva guarda do nosso livro.

Sr. Presidente: o número de leitores que no ano de 1945, segundo estatísticas oficiais, aliás incompletas frequentaram as bibliotecas públicas deste País foi apenas de 564:867. Desses apenas a modestíssima quota d 80:495 constitui a parcela de leitores especializado durante o ano para as nossas bibliotecas. Atente-se ei quantos indivíduos nestes números serão o mesmo leitor, os frequentadores assíduos ou por mais de uma vez.

Quer isto dizer que muito mais de dez décimos d população portuguesa não frequenta as bibliotecas públicas ao menos uma vez por ano! E desolador!

Sr. Presidente: são de louvar as iniciativas do Secretariado Nacional da Informação das Exposições do Livro Português em Madrid e em Barcelona e é de louvar também a organização pelo mesmo Secretariado de bibliotecas ambulantes, de que tenho diante de mim um magnifico relatório, do qual constam os livros pretende e o número de leitores. Simplesmente a frequência e leitores dessas bibliotecas é ainda diminutíssima.

A iniciativa da criação de um Instituto Nacional do Livro, a exemplo do que se fez no Brasil em 19c e também em Espanha, com certeza não faria senão fomentar a publicação e desenvolver a expansão do livro português.

Portugal deveria seguir a este respeito uma política análoga â brasileira, pois desde 1937 até 1944 nada menos de 2:386 bibliotecas se registaram no Brasil, e, de sãs, mais de 100 foram fundadas pelo Instituto Nacional do Livro. No mesmo período este último distribuiu 308:400 volumes.

Tal exemplo é digno de ser meditado e seguido entre nós!

Os livros são, como se dizia numa legenda da velha biblioteca de Alexandria, os remédios da alma, dês que sejam bons.

É preciso, portanto, fomentar por todos os meios nosso alcance a impressão, a publicação e a distribuição do bom livro português, mas é preciso também a aumentar o número de escolas, para haver, pelo menos entre nós, quem os saiba ler.

É necessário, porém, ainda que alguns pensem o contrário, aumentar também o próprio número de Universidades.

Na Suíça há sete, e esse país tem uma população bastante inferior à nossa.

As nossas escolas superiores tiveram em 1945 u: população superior a 10:000 alunos. Ora estes 10 :C alunos davam bem para cinco ou seis Universidade. Presentemente acumulam-se, antipedagògicamente, cursos sobressaturados.

O rendimento das escolas superiores em Portugal em 1945 o seguinte: aprovações, 3:162; conclusões curso, 1 :214. As aprovações são de 73 por cento do número de requerentes; não chegaram a 30 por cento número de inscritos.

Nem por isso eu julgo que deve deixar de haver uma selecção rigorosa. Aliás, os próprios alunos que não e seguem terminar os seus cursos adquirem uma certa cultura e é a difusão ampla da cultura que se torna necessário.

Todos estamos a preocupar-nos com a existência pessoas competentes; é necessário constituir escóis

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Esses escóis só se podem obter por meio de cultura. Não haja receio de se transformar de se formar um grande proletariado intelectual; se não houver homens competentes, este País terá um destino bastante precário e a preparação desses homens depende essencialmente do modo como organizarmos os estabelecimentos de cultura. Também, para honra da Nação, não se deverá abandonar a investigação científica. Eu renovo os votos, muitas vezes expressos, para que sejam aumentadas as dotações do Instituto para a Alta Cultura e da Junta das Missões Geográficas e de Investigação Coloniais.
O prestígio de um País como o nosso mede-se pelo grau da cultura dos seus homens. Não podemos impor-nos ao Mundo pelas riquezas, pelas indústrias, pelo potencial bélico, embora sejam de desejar esforços para progresso de todos esses aspectos da vida nacional e meritórias sejam muitas energias desenvolvidas nesse sentido. Mas o que acima de tudo nos prestigiará será, como o passado, o valor de inteligência a da estrutura moral dos nossos homens, o que fizemos pela Verdade e pela Justiça.
Quanto às colónias, o que nos imporá não são direitos históricos que lá fora poucos respeitam, mas o que fizermos pela protecção dos indígenas contra os perigos que os ameacem e pela valorização dos recursos naturais dos territórios ultramarinos.
Aquela protecção e esta valorização só podem Ter uma base segura: a fornecida pela cultura e investigação científicas ao serviço de um grande ideal espiritual, humano e nacional.
Tenho dito

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.

O Sr. João do Amaral: - Sr. Presidente: o diário do Governo publicou ontem um decreto-lei que «considera autorizadas, com dispensa de cumprimento de todas as disposições legais, a arrecadação das receitas próprias de Instituto Superior Agronomia e do Laboratório Central de Patologia Vegetal Veríssimo de Almeida, bem como todas as despesas realizadas pelo menos organismos no período de 1 de Julho de 1930 até 31 de Dezembro de 1936».

Por esse mesmo decreto fica, pois, o Tribunal de Contas autorizado, mediante requerimento, a fazer a revisão das decisões proferidas pelo mesmo Tribunal. E é evidentemente que, dentro do novo regime legal estabelecido por este decreto, o Tribunal de Contas regulará este assunto com a mesma rectidão e o mesmo espírito de justiça com que julgou anteriormente ao abrigo do regime legal que existia.
Por este decreto atende o Governo um voto formulado por esta Assembleia. Não creio que mereça revelo especial o facto de o Governo atender um voto da assembleia Nacional. É da moralidade constitucional das relações do Governo com a Assembleia que ele dê plena audiência às reclamações, sugestões e votos desta Câmara.
Todavia, acontece que nos consideramos do decreto o Governo diz, muito excepcionalmente, muito especialmente, que atende a sugestões feitas, com o aplauso da Assembleia Nacional manifestado na sessão de 4 de Fevereiro último.
Esta referência, Sr. Presidente, à Assembleia Nacional parece-me, sim, que deve levar-nos a exprimir o sentimento, que julgo comum a todos os Srs. Deputados...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Dizia eu, Sr. Presidente, o sentimento de congratulação e reconhecimento da Assembleia pela manifestação pública que o Governo quis dar e do apreço em que tem a nossa colaboração e do zelo que lhe merece o prestígio deste órgão da soberania.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - continua em discussão o relatório geral da comissão de inquérito os elementos da organização corporativa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Águedo de Oliveira.

Sr. Águedo de Oliveira: - Sr. Presidente: não me interessa hoje o «para quê» da organização corporativa.
Aqui, nesta tribuna, já num período de doze anos foi dito o bastante.
Não me interessa hoje destacar os serviços prestados à economia portuguesa pela mesma organização - o ter-se montado para acudir, apressadamente e bem, os efeitos da sobreprodução e da sobrecapitalização verificados nos anos posteriores a 1930; a orientação vincada a um fim nacional numa economia descomandada e fragmentária; o poder de reintegração no arranque da liquidação mundial; o funcionar como órgão de economia descomandada e fragmentária; o poder de reintegração no arranque da liquidação mundial; o funcionar com órgão de economia de guerra para uma política de necessidade, relativamente autárquica.
Não me interessa hoje destacar os serviços prestados à economia portuguesa pela mesma organização-o ter-se montado para acudir, apressadamente e bem, aos efeitos da sobreprodução e da sobrecapitalização verificados nos anos posteriores a 1930; a orientação vincada a um fim nacional numa economia descomandada e fragmentária; o poder de reintegração no arranque da liquidação mundial; o funcionar como órgão de economia de guerra para uma política de necessidade, relativamente autárquica.
Não me interessa o poder de adaptação já manifestado na série de eventos do pós-guerra.
Também não me interessam as grandes irregularidades e graves infracções que possam entrar no domínio da lei comum e que são inerentes à condição do homem, a quem o arbítrio foi deixado, entre o bem e o mal. Releguem-se ao respectivo poder.
Interessa-me o «porquê» desta hora - as razões prováveis de muitos factos do relatório que estudei miudamente.
Trago, o meu depoimento com vontade de acertar, de destacar o mais importante e de completar apenas o que está bem expresso nas conclusões da comissão.
Trago o meu depoimento, produto de largas observações, contactos, estudo - de trabalho sério.
Não peço para ele o respeito da dialéctica fácil ou repentista.
Peço apenas, Sr. Presidente, que se acredite em que procuro, como tantos, acertar num caso tão difícil e delicado.
A Assembleia Nacional salda um compromisso com o eleitorado porque, se algum mandato foi posto nas eleições designadamente, foi este do examinar as condições práticas da organização corporativa.
A Assembleia Nacional procura restituir à sua pureza o pensamento de Salazar, relativamente à justiça social, no campo económico - pois grande parte dos erros e abusos encontrados se filiaram em desvios e incompreensões manifestos do seu pensamento puro.
A Assembleia Nacional surpreende os opositores o serve o País com um trabalho que a muitos se afigurou impossível ou carecendo de anos; nítido, desassombrado e imparcial, que revela espantosa capacidade, e uma tarefa enorme que chegou ao fim.
Aqui, há dias, uma personalidade diplomática estranhava e achava admirável que neste Pais se pudesse realizar um debate sobre o problema monetário, coisa de que se fugia lá fora.

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Também agora se celebrará um caso de evidente coragem política, de tão transcendente projecção reformadora, pois que, além do mais. toca na própria essência do regime.
Não tenho jeito para as lidos parlamentares. Não exerço reflexo apreciável na opinião do País. Mas certamente terei comigo muita gente ao felicitar a comissão, e particularmente o Dr. Mário de Figueiredo, pelo seu magnifico relatório.
A sua proverbial independência e isenção, as suas belas qualidades quo o País aprecia devidamente foram, desde o primeiro momento, garantia segura de que se poria termo ao confusionismo das críticas, que se obteria cliché seguro dos factos, que sairia coisa séria da avalanche tormentosa de confrontar as queixas com o «real» da vida corporativa.
E mais - que havia de chegar-se ao fim! «Repito: a Assembleia Nacional salda um compromisso, restitui os princípios à sua pureza, serve o Pais com imparcialidade!
Estamos ainda no chamado «terceiro caminho». Jornadeamos por via intermédia. Nem vamos pela ordem autoritária e planificada, nem nos transviamos no caminho do interesse particular exclusivo.
O meu depoimento será restrito e será longo, li estrito, porque hei-de referir-me a poucos pontos concretos desta discussão; longo, porque estes pontos concretos desenvolverei mais do que habitualmente.
Ainda que aluda a princípios e a teorias, no meu depoimento referir-me-ei apenas ao corporativismo na prática, digo melhor, ao corporativismo em acção.
É isso que se discute e pretende rever-se.
Sr. Presidente: deixo os aspectos de ordem jurídica e ordem social, deixo mesmo os casos da chamada consciência corporativa, para me referir a três capítulos de economia corporativa, avivados pelo relatório.
E digo desde já os traços que vou sublinhar, pondo-lhes adiante imediatamente as soluções; a exposição tornar-se-á mais clara:
1.º Existem incertezas sobre a essência económica do corporativismo. Solução: hão-de ser dadas normas rigorosas para a política económica;
2.º É difícil saber até onde vai a acção do Estado e o poder corporativo. Solução: estabeleça-se um pequeno estatuto de defesa da empresa privada;
3.º O corporativismo prático não pode ignorar o consumidor. Solução: oriente-se no sentido de uma economia de alto nível e de progresso técnico.
Sr. Presidente: alguns dos erros e desvios cometidos, algumas funções impróprias, certas atitudes abusivas, alguma política errónea praticada pêlos altos e inferiores dirigentes corporativos vou eu filiá-los nas incertezas, frequentemente notadas, sobre a essência económica do corporativismo.
Em regra, distingue-se a natureza de certas premissas de economia corporativa, fala-se depois em espírito, mas dá-se à acção económica imensa liberdade de sujeição a fins, demarcam-se algumas funções e acaba-se numa política complexa.
É isto economia corporativa? Será.
É isto política económica corporativa? Poderá ser o poderá não ser.
Está isto dentro do quadro económico corporativo? Talvez, mas não é certo.
As dúvidas são imensas e por tal motivo não surpreendem - as perplexidades, as incompreensões, os desacertos, as incertezas, os procedimentos díspares, as interpretações menos firmes. Não surpreendem mesmo os erros e os desvios tantas vezes desculpáveis por falta duma concepção justa!
Este caso tem de ser posto à Câmara com certo desenvolvimento.
Um primeiro aspecto - o da economia autodirigida, em frente da economia dirigida.
Pela economia autodirigida os elementos económicos, à margem da governação, orientariam e dirigiriam a actividade económica geral.
Mas é certo que muitos economistas e alguns corpo rativistas entendem a economia corporativa como uma forma de dirigismo superior. E diz-se e nota-se: a larga intromissão do Estado no domínio privado força ao dirigismo propriamente dito.
A crise de 1930-1940, a guerra e o pós-guerra impuseram e impõem a intervenção suprema.
A ampliação de funções, a política social do Estado moderno, o domínio monetário, a racionalização do transporte, a implantação da indústria, a ligação à economia mundial e ultramarina, as ruínas da concorrência tornam o dirigismo do Estado irresistível. À margem do corporativismo? Fora do corporativismo, mas ao lado? Contra o corporativismo?
Que importa - fatalidade invencível, à vista de todos. Mas suponhamos que se realiza um autodirigismc puro e simples.
Como é que o administrador, o simples homem de negócios, educado na luta da concorrência ou professando respeito pelo agente de serviço público, vai proceder Que noção substancial possui do bem comum, do prece justo, do consumo humano, para além do seu circule profissional?
O Dr. Marcelo Caetano acrescenta à autodirecçãi o descentralismo.
O Dr. Castro Fernandes apresenta dúvidas sobre a autodirecção marchará até à liberdade absoluta do organismos e reconhece que nesta expressão se confunde quase sempre infinidade de coisas.
O Prof. Teixeira Ribeiro ensina que o autodirigism parece estar na função representativa do ramo económico, na resolução de problemas pelo contrato colective num afastamento quer da planificação, quer do auto matismo.
O Dr. Mário de Figueiredo, no relatório tende a asse ciar a autodirecção ao corporativismo de associação a direcção ao corporativismo do Estado.
Se nós dissermos que por cá se está fazendo direcção através dos organismos de coordenação e das instância públicas, mas que se navegará para o horizonte de auto direcção, o caso não fica ainda bem esclarecido e a dúvidas permanecem.
Sr. Presidente: o aspecto da justiça social não ó mono complexo e dá margem para hesitações.
Todos nós a sentimos, a queremos, mas havemos d deixá-la às divagações da intuição? A nossa consciência nos seus recônditos, será tão afinada que-possa à primeira vista distinguir entre a justiça e a injustiça social?
Realmente o corporativismo se ideou o compreende como uma fórmula de justiça social, capaz de introduz: proporção, direito e virtude nas relações entre a rendi o juro, o lucro e o salário como elementos de repartição do produto social.
Mas esta fórmula não nos ajuda, de momento, a resolver os problemas imediatos da produção e do consumi Não abre caminho entre as restrições e os excessos. E tem porventura um defeito.
Cria-se a ideia de que, socorrendo-nos de uma forniu puramente social, podemos obviar ou resolver as maiores dificuldades económicas, obviar ou resolver as dificuldades de técnica, de produtividade, de ciclos, de flutinções seculares, de custos, de preços, de capitalismo, e neocapitalismo!
Mas, quanto a mim, há uma dificuldade maior e esto convencido de que se inquirisse alguns dos dirigente corporativos que têm assento nesta Câmara me resposta

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deriam ser esta a razão de algumas das suas dificuldades e porventura o motivo dirimente de muitos actos discutíveis da sua parte.
A verdade é esta: princípios religiosos, éticos e jurídicos comandam o uso complexivo do trabalho e da riqueza; eis a grande dificuldade.
O que é fundamentalmente economia corporativa?
Quais são os destinos e aplicações dos bens e valores em regime corporativo?
Quais são os fins sociais a que ficam afectos os resultados do trabalho e do capital?
E aqui as divergências, distinções, graus e orientações revelam-se enormes.
Desculpe V. Ex.ª, Sr. Presidente, mas tenho de socorrer-me de vários testemunhos, sem prosápias de erudição, mas por necessidade de que se examine o assunto com toda a amplitude.
O Prof. Ugo Papi, ao referir-se à economia corporativa, consubstancia-a num interesse superior da nação, que se reparte: em pacificar socialmente; aumentar e melhorar a produção; promover a justiça social.
O Prof. Perroux, fazendo o confronto entre a corporação medieval e a corporação moderna, assegura que esta última «tenta dar coesão, no quadro nacional, a uma economia concentrada e a harmonizar tanto os interesses como as aspirações de grupo. E asseguro mais - que ela corrige a dissociação do factor capital e os antagonismos de grupo.
Os Profs. Serpieri e Gobbi referem o sistema como uma harmonização admirável entre os poios extremos - comunista e liberal.
E apontam os fins económicos nacionais que não poderão cindir-se, nem da ética, nem da política. Referem as actividades individuais, em função nacional, mas não ilimitadas. E caracterizam assim a economia corporativa: um processo experimental, baseado na iniciativa particular, na acção das corporações e na intervenção do Estado; um sistema de coordenação; um conhecimento das exigências e dos interesses das transacções; uma disciplina da produção e da poupança.
E acrescentam: ca economia corporativa procede por experiências a fim de corrigir erros».
Tomemos nota desta última declaração, que nos aproveita hoje.
Deixo agora outros testemunhos, os dos Profs. Lolini e Carli, que não se ajustam entre si, nem aderem perfeitamente aos anteriores.
O Prof. Marco Fanno é bastante nítido: a organização corporativa ostenta as seguintes funções económicas: dirige a economia nacional; propulsiona as actividades; acresce a produtividade; repara e distribui os danos resultantes da conjuntura.
Parece que desejaria que a sobredita organização funcionasse com custos gerais mínimos.
O Prof. Francesco Vito, da Universidade Católica dei Sacro Cnore, de Milão, no meu modesto entender a mais alta expressão de economia corporativa, assinala alguns fins sociais ao sistema:
Restabelecimento de equilíbrio da concorrência contra as forças históricas de perturbação.
Revisão definida da distribuição da riqueza.
Obtenção de uma soma global de rendimentos superior ao alcançado em economia livre.
Actuação no maior grau para equiparação de rendimentos.
Realização de preços mínimos para o consumidor.
Tudo isto subordinado a uma visão integral do bem--estar nacional.
O Prof. Marcelo Caetano tem por certo que a organização corporativa irá salvar a pessoa humana e a empresa do aniquilamento; eliminar da concorrência as ruinosas coligações; fazer a reforma social no Estado;
investir a corporação em órgão de regulamentação e disciplina e assentar, por fim, toda uma economia de preço funcional justo.
Para quê multiplicar as citações?
Vamos agora, Sr. Presidente, à lei geral.
A Constituição, no artigo 29.º, reclama que a organização venha a obter primeiramente o máximo de produção e riqueza socialmente útil; depois uma vida colectiva que aumente o poderio do Estado e torne justas as relações entre portugueses.
No artigo 31.º estabelece a coordenação e regulação superior da vida económica.
Propõe vários fins de equilíbrio demográfico, defesa do parasitismo; povoamento, menores preços e acréscimos de salários, etc.
O Estatuto do Trabalho Nacional repete estes fins sociais e acrescenta-lhe a desbnrocratização da vida social.
Em face de tudo isto e na ausência de directivas mais firmes e adequadas eu não estranho e desculpo alguns erros cometidos e uma hermenêutica menos feliz dos dirigentes corporativos superiores e inferiores.
Em primeiro lugar os dirigentes, na dúvida ou na dificuldade, tendem a fugir para as bermas da estrada. Se fogem para o lado do Estado surge-nos o monopólio; se fogem para a banda da empresa pode aparecer-nos uma espécie de cartel.
Burocracia pura no primeiro caso. Predomínio pluto-crático no último.
Em segundo lugar os dirigentes corporativos foram educados na quadra restricionista da defesa contra a crise mundial de sobreprodnção. Mas agora o caso mudou de figura, pela alternativa cíclica. Precisamos de sustentar um critério contrário, um critério expanaioniata.
Em último lugar muitos corporativistas contemplam o sistema como se fosse uma rede de restrições sistemáticas para nos emaranhar os movimentos. E dificultam as transacções.
Vender pouco naquele caso, vender com dificuldade neste, significam vender menos e vender caro.
O meu remédio parece lógico. Estabeleça-se uma resenha de fins da economia corporativa para a quadra mais próxima, difundam-se esses fins, acatem-se e respeitem-se e a economia corporativa poderá ser uma realidade, sem controvérsias; um instrumento nacional de equilíbrio contra as perturbações de progresso, contra as resistências próprias do nosso ambiente tradicional.
Sr. Presidente: um segundo ponto: a minha ideia agora exprime-se com relativa singeleza - a empresa privada, não obstante concebida como pilar da economia corporativa, encontra-se desarmada perante o poder económico corporativo ou estadual. Não tem certezas jurídicas. Não tem seguranças. Não tem garantias. Esta ideia é simples mas vai forçar a desenvolvimentos e observações demoradas. Os problemas nela envolvidos são naturalmente complexos.
Senão vejamos:
Por definição, a economia corporativa devia ser entregue a si mesmo. Mas o acréscimo de funções públicas, a necessidade de obviar a crises e guerras, as reclamações de uma política social e exterior estão impondo sempre crescente ingerência do Estado na vida económica.
Por outro lado, havendo criado um sistema à sua margem e, de algum modo, independente do serviço público, mas não confiando às iniciativas e às harmonias espontâneas o advento e progresso da nova fórmula-o Estado veio a ser impulsionador activo, primeiro regulador e fiador da sustentação da instituição e vigor das novas formas corporativas.
Porque as suas ideias e a própria evolução para aí o levaram, porque pretendia despojar-se um pouco das suas preocupações de administrar o casal nacional, mas

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havia de o estabelecer com firmeza e rigor, porque a guerra acrescentasse novas funções ou ampliasse as anteriores, viemos a surpreender, cada vez mais tolhido e difícil, o campo onde se debatiam as empresas privadas. Nem sempre estas souberam ou puderam tomar o ponto na sua rota e nem sempre lhes foi possível demarcar a sua situação no mapa.
Eis o problema. Eis as dificuldades. Eis as contestações. Eis as intromissões e, sobretudo, eis as razões de ser de muitos abusos, de muitos queixumes, de muitas preocupações, algumas das quais nem mesmo chegaram à comissão de inquérito.
Portanto - Estado organizador, propulsor e garantia da ordem corporativa. Esta última impondo muitas vezes em nome dele ou socorrendo-se do seu vigor jurídico. Empresa privada, a quem não bastava a regra de fazer tudo quanto não for proibido, nem sempre sabendo o que lhe deveria ser consentido.
Porque há dúvidas na doutrina e nas leis e estas são origem de desvios e vícios de funcionamento é que me refiro mais desenvolvidamente ao assunto.
Porque não funcionará inteiramente bem aquilo que não for sabido inteiramente bem; o que é ou o que deve ser.
Vejamos:
Em 1938, o Prof. Marcelo Caetano escrevia em O Sistema Corporativo, p. 45.
Na economia corporativa o Estado (concebido como poder político) tem uma função de coordenação, fiscalização e garantia. Coordena os interesses diversos entre si e com o interesse nacional, resolvendo os conflitos que se levantem: fiscaliza a actividade das corporações para não permitir a nenhuma subalternização dos interesses alheios aos seus próprios e garante às corporações o desenvolvimento pacífico da sua actividade legal e moral, desobstruindo os obstáculos jurídicos e políticos que ele seja capaz de remover. Necessitará o Estado de uma estrutura especial para o desempenho desta função?
Se nos colarmos bem a este texto havemos de visionar um Estado, de grande e descompassada força, apanhado num duplo trabalho de hierarquização e ajustamento de interesses, com funções de vigilância e de ingerência que excedem o plano da riqueza, caminhando pelo ético, e que deverá prover-se ainda dos meios adequados à permanência do sistema.
A visão original da posição do Estado parece tão enérgica que o escritor põe a si mesmo a ideia de ama reforma de estrutura para além dos institutos corporativos.
O Dr. Castro Fernandes refere-se à posição do Estado quando se refere a «intervenção económica».
A propósito cita-nos cos diplomas que se referem um pouco mais vagamente à função de intervenção económica».
Nota a intervenção económica explícita em certas faculdades conferidas aos grémios. Toma em devida conta a existência dos organismos de coordenação económica, salientando a sua acção preponderante na economia da guerra mundial, e acaba por considerá-los verdadeiros serviços económicos, dotados de espírito corporativo.
E adiante, confirmando o meu modo de ver, acrescenta: e A matéria não está, como se vê, perfeitamente esclarecida e ó muito difícil definir a posição que o nosso corporativismo adoptou». E remata que não lhe parece poder pôr-se em dúvida a legitimidade da intervenção.
Para o Prof. Francesco Vito a teoria económica correcta não só há-de contar com a acção do Estado, mas a acção dele entra no domínio científico e entende que este há-de procurar atingir os seus fins sociais por meio de uma economia de equilíbrio:
Porém, inserir sistematicamente a acção estadual na teoria económica corporativa não exclui de facto a possibilidade, nem reduz a oportunidade, de um estudo mais profundo da acção estadual a que dê lugar a política corporativa.
Não exclui a possibilidade - trata-se na verdade de dar maior amplitude a um capítulo da ciência económica.
Não reduz a oportunidade - a inserção sistemática da acção estadual na teoria económica corporativa não pode verificar-se, a não ser pela esquematização e simplificação ao máximo grau dos dados do sistema, mas isto não diminui de facto o interesse de considerar outros sim a acção estadual perante as várias situações possíveis em que o sistema venha a encontrar-se.
Daqui resulta, no meu modo de ler, porque o caso é um bocadinho misterioso, que havemos de inserir com largueza a acção estadual no quadro científico, mas contando ainda com a acção corporativa propriamente dita. Não deveremos reduzir as oportunidades da acção e contaremos mesmo com tal acção nas várias emergências.
Pegam-se pois nas noções tradicionais de ciência e arte da riqueza e transportam-se para o plano corporativo. Servimo-nos dos instrumentos de política económica para acudir depois ao que for necessário.
Podia perguntar: haverá assim uma política económica corporativa? Mas prefiro seguir com a minha análise.
Examino agora alguns textos legais - apenas dois.
O artigo 7.º do Estatuto do Trabalho Nacional define o poder de coordenação e regulamentação da entidade pública.
Este poder funciona como realizador de um equilíbrio dos vários sectores. .
Este poder funciona como defensor contra o paras itismo.
Este poder funciona para obtenção duma baixa de preços e alta de salários.
Este poder difunde o espírito de cooperação e desburocratiza.
Por outro lado o decreto n.º 26:707, de 8 de Junho de 1936, confere aos organismos de coordenação económica a faculdade de coordenar e regular superiormente a vida económica e social nas actividades respectivas, ao mesmo tempo que lhes atribui as funções oficiais de regulamentação e administração.
Mas as regulamentações especiais alargam a actividade central e estabelecem novas normas de disciplina e intervenção corporativa.
Ora, perante a complexidade das intervenções legais e práticas, os fins diversos da acção estadual, do serviço da economia nacional e do serviço corporativo, ergue-se a tímida e obscura empresa privada; senhora duma tradição vetusta, ainda forte pelo seu direito e resultados, mas enfraquecida pelas crises económicas e dubitativa e angustiada pelas crises políticas que lhe toldam os horizontes.
A lei corporativa proclama - e nós todos o sabemos- que ela é ainda o mais fecundo instrumento do progresso e da economia nacional.
A economia política, tanto na velha como na recente fase, asseguram que ela deve ser autónoma - para ter iniciativas, para executar iniciativas; que ela deve ser estável - para poder consolidar o seu poderio; que ela deve ser duradoura - para ser elemento da nação; que ela deve ser progressiva - para beneficiar da técnica como da alta geral.

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Portanto se são indispensáveis as lotas de extermínio, se o monopólio contradiz o bem comum, em proveito de alguns, um poder intromissor complexo, grandioso, omnímodo pode arruinar a empresa ou tornar-lhe a vida dificílima. E isso se tem visto.
Não imagine V. Ex.ª, Sr. Presidente, que este problema é teórico ou desprendido de projecção na vida prática.
Ele é de todos os instantes.
Quando se publica um estatuto; quando se organiza uma coordenação; quando um fiscal entra num armazém de vinho ou numa mercearia; quando se requere uma tarefa; quando se pede a remoção dum obstáculo, a empresa privada pode não saber onde começa e onde acaba o poder de intervenção económica.
Mas o agente público, o interventor corporativo, o fiscal podem não saber também de limites ou considerá-los difusos e então temos a série de atropelos, querelas, conflitos, intromissões que tornam a vida difícil.
A face do problema que eu quero apresentar ainda não é esta. É outra.
Diante dum poder forte a empresa privada não se pode valer duma tábua legal elástica ou imprecisa. Também não lhe serve socorrer-se da autonomia da vontade como princípio jurídico.
Talvez não baste a providência preconizada na conclusão IX.
Sr. Presidente: no meu entender há-de definir-se legalmente um estatuto de defesa da empresa privada, visto que esta é um pilar do regime corporativo; visto que o Estado, entrando a sua porta, há-de parar em certa altura; visto que o corporativismo foi ideado por ela e para ela e não contra ela!
Três, quatro artigos, três ou quatro garantias bastariam para acautelar e defender a iniciativa privada.
Dissemos: a empresa privada está desarmada perante o poder económico; terá a liberdade mas não tem um direito positivo.
A distribuição de encargos - os maiores - pelo contribuinte específico, a rápida e arbitrai decisão de operações, actos ou negócios de centenares de contos, a hipertrofia da coordenação, as intromissões incómodas ou inquisitoriais na vida privada, as faltas de atenção, e agora o temor dos fiscais, a perplexidade perante as ordens superiores, a intranquilidade nas terras, nos armazéns, nas fábricas, nos estabelecimentos, têm de ser acautelados e limitados por um estatuto.
Último ponto capital: a existência irredutível do consumidor.
Todo o produtor, transportador, distribuidor, segurador ou banqueiro figuram no circuito económico como consumidores, e, por isso, uma noção muito forte sobre organização levou à indiferença ou desatenção de uma posição que era fatal pertença de cada um, estivesse onde estivesse.
Muitos autores não escrevem sobre consumo, alguns sistemas o deixam na sombra, várias orientações se tomam com perfeita indiferença e o sistema corporativo pode-se ter desenvolvido, figurando-se alguns dirigentes que o consumo privado não mereceria preocupação maior.
A verdade é que o consumo interessa sobremaneira - fatalidade fisiológica, não se pode passar sem ele; categoria económica, dele depende a poupança e a formação do capital; coroamento do processo da riqueza, ele vem a germinar em emprego e nova circulação de bens.
A economia corporativa não pode ser indiferente ao consumo e há-de orientar-se num sentido de elevação do nível respectivo.
Maiores consumos, melhor qualidade, superior especialização. Tudo quanto não seja isto é retrogradar!
Ora o consumidor, por ser «todos», foi equiparado a nenhum.
Era o senhor «toda a gente» e era como se não fora ninguém.
Eliminou se do número dos que dão que falar. Certos escritores esqueceram-no.
Pareceu anacronismo lembrá-lo e houve mesmo quem se servisse dele como arma de ataque ao regime. Consumidores afinal éramos todos. E os interesses de todos estavam ao cuidado da Assembleia Nacional e do Governo. As autoridades representavam o consumidor e deviam estar da sua banda.
Mas o caso merece reflexão.
Quem manda na produção da riqueza nem é o empresário, nem é o Estado, nem é o dirigente corporativo; manda, em última instância, o consumidor.
Manda autenticamente.
E manda na qualidade, na quantidade e tia especialidade; bem sei que segundo a sua propensão, os seus réditos e escolhas, mas ... manda, e até quer mandar no preço, porque deseja adquirir por baixo, despendendo o menos possível.
Quando foi da grande querela das lãs falou-se aqui muito do consumidor, mas não se desceu aos retoques do quadro.
O estudo do consumidor mostra a imensidade do mundo agrário, a enormidade decrépita da classe média, o poder marginal dos sectores limitados do comércio e da indústria, as aflições dos que têm réditos sem elasticidade.
Vamos traduzir parte disto em números:
Em 1940, 1.811:645 chefes de família.
Por 453:791 agricultores correspondem, trabalhando nas indústrias alimentares, 63:348 pessoas; 08:889 trabalham na indústria das madeiras; 143:201 pessoas empregam-se na tecelagem e correspondem-lhe nada menos de 37:999 guardadores de gado; 181:152 pessoas empregadas no comércio e nos seguros, dos quais 64:389 são comerciantes; 83:864 vivem do transporte.
Na agricultura, pecuária e pesca labutam 1.439:000 pessoas; porem, se lhe juntarmos as mulheres trabalhadoras de campo, obtemos a cifra de 2.658:000, importante para o conjunto da população activa de mais de dez anos.
Em princípio as despesas com dirigentes, pessoal, constituição de fundos não pesariam demasiadamente sobre o consumo se tivessem uma aplicação ou destino reprodutivo.
Se porventura substituíssem pessoal privado por pessoal corporativo, também não carregarão ainda nos preços finais. Se, pela força da coordenação, houver racionalização, eficiência ou eliminação de desperdício também não deveremos preocupar-nos excessivamente com o seu peso.
Portanto, nalguns casos a despesa corporativa será utilidade, noutros será substitutivo de encargos privados, noutros ainda pesará autenticamente sobre o consumidor, que comprou mais caro ou só pôde comprar menos.
Discutem-se assim os 500:000 contos calculados pulo engenheiro Sr. Araújo Correia.
Se pesam como melhor organização ou distribuição, pouco pesarão; mas se pesam como burocracia económica, como retrocesso, como estagnação de negócios, o seu peso tornar-se-á insuportável.
O produtor responde à procura do consumidor. E o consumidor deve ser elemento activo e não um simples resignado.
Por isso questões de consumo representam interesses do maior número. E o maior número pretende que a sua capacidade de compra seja o mais alta possível. Para aproveitar os melhores resultados de uma concorrência regulamentada é preciso não perder de. vista o consumidor - ele não é ninguém mas é toda a gente!

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O sistema o a prática corporativa não podem dissociar-se do consumidor; melhor, dos seus interesses. Leio à Câmara estas formosas palavras:

As corporações devem organizar-se e governar-se de modo que forneçam a cada um dos seus membros os meios mais fáceis e próprios para conseguirem seguramente o fim proposto, isto é, a maior abundância possível para cada um dos bens do corpo, do espirito e da família.

Estas palavras são de Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum.
Sr. Presidente: concluindo: não esqueço que estamos numa fase preparatória, em que o Estado promove e encoraja e que a noção de corporação ainda não está perfeitamente estabelecida.
Não esqueço que, por vezes, existe contradição entre o pensamento cristão vivificador, os textos e as realizações.
A Câmara vai ter de pronunciar-se e decidir entre um sistema eclético, provido de elasticidade e com alguma experiência adquirida e a readaptação gradual a um esquema puro.
Não me parece que possamos despojar facilmente o que está do carácter administrativo - o Estado continuará a intervir com constância nos anos próximos.
Receio um conselho técnico corporativo órgão macrocéfalo, à margem de tudo e com poderes que o serviço público não quis ou não tem.
Quem coordenará os coordenadores?
Seja como for, se nas conclusões puder ser achada expressão dos meus reparos, estarei inteiramente com eles.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: vou ser muito breve nas minhas considerações.
Embora eu pense - e com certeza comigo toda a Assembleia- que o carácter de especialização que qualquer assunto possa ter não veda a um Deputado o uso da palavra sobre esse assunto, na realidade entendo que no caso presente só determinados aspectos da matéria em discussão justificarão que eu fale neste momento. Um desses aspectos é o da extraordinária «projecção política deste debate. Julgo que poucos temas, entre nós, têm servido mais de objecto das discussões políticas dos últimos tempos do que a organização corporativa.
Fez-se dele quase um estandarte, quando na realidade o assunto pode e deve -a meu ver- ser examinado - dentro de um critério estritamente objectivo, prudente, cauteloso, social, nacional. E sem a menor paixão, mas com a certeza da sua magnitude política, que vou ocupar-me dele nestas breves palavras.
É curioso encontrar, por vezes, na forma de raciocinar, nos métodos de trabalho intelectual, relativamente aos mais diversos domínios de estudo, paralelismo» ou analogias impressivas. Há muito de análogo entre a forma de raciocinar de um jurista e a de um matemático. Os problemas em Direito, como noutros domínios de estudo, podem formular-se luminosamente como uma equação na álgebra. E, apesar das diferenças profundas de objecto, é extrema a analogia entre a disciplina mental com que um médico examina um doente e aquela com que um engenheiro estuda uma máquina. Repito: apesar da diferença profunda dos dois domínios de estudo.
Ë por esse motivo que julgo haver algum interesse em usar da palavra neste momento, embora sem investigações especiais na matéria e sem a pretensão de acrescentar qualquer coisa de essencial e de novo ao trabalho da comissão de inquérito ou ainda às considerações já feitas desta tribuna por pessoas altamente especializadas. A meu ver o relatório é notável ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... pela sua seriedade meticulosa, pela sua objectividade, pela sua prudência, e rendo as minhas calorosas homenagens à comissão de inquérito pelo labor magnífico e frutuoso que ela desenvolveu. Tenho a impressão de que nos encontramos em face, não apenas de um grande serviço prestado ao País, mas também de uma substancial e criteriosa ampliação facultada à discussão puramente doutrinária desta matéria.
A comissão fez bem em não se perder em pormenores, Pouco interessavam aqui. Era preferível a impressão de conjunto, pois a pormenorização, num debate parlamentar desta natureza, tornaria difícil e confuso o exame crítico e sintético do problema.
Mas penso que, de certo modo, ao contrário do que se diz logo de início no relatório da comissão, não é apenas o funcionamento da organização corporativa que está em causa, mas a própria organização em si. O facto de esta derivar de disposições constitucionais não impede que tomemos uma posição a seu respeito, embora não possamos tomar qualquer resolução a seu respeito como princípio, estrutura, forma geral do Estado. Em suma, julgo que, de qualquer modo, perante o País, perante toda a gente, no plano de doutrina, a organização corporativa está também em foco.
Claro que, de acordo com a necessidade de obtemperar às críticas feitas, muitas delas de ânimo leve, a esta organização, a comissão encarou, e muito bera, já pelo próprio mandato que recebeu, não apenas o que constitui, de facto, organização corporativa propriamente dita, mas também organismos que desta tribuna já foram classificados até de anticorporativos, como alguns organismos chamados de coordenação económica.
A confusão entre uns e outros é feita, evidentemente, lá fora, com frequência, num propósito de propaganda política, numa tarefa de que facilmente se descortina a intenção profunda. Sei que, aquando da propaganda eleitoral em alguns pontos deste País, se instigaram pobres mulheres a gritar: e Abaixo os grémios!».
Era e é este o grito de guerra, o estandarte erguido contra tudo, contra a organização corporativa e contra os organismos de coordenação económica, contra a nossa situação económica, contra a situação política.
Muito bem fez assim a comissão em apreciar as actividades de uns A impressão que se colhe à primeira vista do grande número de factos de pormenor que se contam sobre o regime imposto à economia nacional é francamente má. O Sr. Ministro da Economia já interveio, por exemplo, da maneira mais sensata possível para obstar a que se exerça uma repressão absurda sobre uma criatura portadora de l litro de azeite. Poderíamos todos citar muitos factos desta natureza, porque eles abundam. Basta não esquecer que para exportar para o estrangeiro, a título de simples brinde, um casaquinho de malha para bebé ou um cache-col se exige uma licença da Junta dos Produtos Pecuários. Os dirigentes deste organismo necessitam de perder um tempo precioso a assinar tais licenças. É a submersão asfixiante

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pela papelada, contra a qual tantas vezes nos temos aqui revoltado.

O Sr. Botelho Moniz: - V. Ex.ª dá-me licença?
Apenas para dizer que a Junta Nacional dos Produtos Pecuários, a Intendência Geral dos Abastecimentos e outros organismos, uns de coordenação económica e outros que se chamam não sei como, são como v. Exa. muito bem disse, organismos completamente estranhos à doutrina e à organização corporativa e, como também já se disse nesta tribuna, na maior parte dos casos completamente auticorporativos.

O Orador: - Exactamente. Mas os factos que a ponto pertencem ao número dos que criam um estado de espírito adverso à organização corporativa, embora não se referiram a esta organização. Alguns deles, se não fossem as suas desastrosas e lamentáveis consequências, poderiam até figurar numa nova «Campanha Alegre», nas Farpas, como aquele caso bem conhecido de, para se exportar uma pequena quantidade de palitos, ter sido necessária uma licença Junta de Exportação de Madeiras ou Concelho Técnico Corporativo.
Já nesta Assembleia se aludiu também ao facto de a lenha ser paga ao pobre proprietário na origem a 30$ por tonelada, acontecendo que, se esse proprietário viver na capital, terá de pagar depois aqui essa mesma lenha a 320$ por tonelada.
Estas anomalias são chocantes e escandalosas. Embora deseje não me alongar em casos de pormenor, citarei ainda a anomalia estranha de um produto de azeite haver recebido a indicação, por carta, de um distribuidor para fazer entrega de determinado comprador, recebendo logo esse distribuidor por aquela simples carta a importância de 1$20 por cada litro de azeite.
Reconheço também que a todo o tempo se deve emendar um erro, mas é preciso ser mais prudente em certos casos de condicionamento industrial, dando valor aos dispêndios de capital e de trabalho com o desenvolvimento de certas indústrias. É o caso dos lacticínios de Aveiro, já aqui focado pelo Sr. Deputado Querubim Guimarães.
Haja mais prudência com exigências e autorizações, a que correspondem garantias que depois se eliminam bruscamente em reviravoltas de critério. Bem sei que o condicionamento industrial não depende directamente da organização corporativa. Mas todas asa faltas apontadas atingem fundamente esta na opinião pública.
Ainda um caso estranho de chamada coordenação económica:
Os números serão apenas aproximativos, mas a Junta paga por um couro de uma rês morta 300$ e vai, ela própria, vender o mesmo por 600$.
Isto excede todo a medida do sensato e do razoável.
Alguém disse, e foca-se isso no parecer da Câmara Corporativa, que a posse de um alvará, com meio de especulação comercial, constituía, em certos casos um verdadeiro tesouro, uma mina.
Mas todos os males descritos resultam, acima de tudo, e o parecer da comissão o mostra de uma maneira iniludível, como, de resto, é a minha impressão própria pelo contacto que tenho tido com alguns organismos dessa natureza, tudo isso resulta, acima de tudo, repito, da incompetência de uma grande parte do pessoal, sendo, pois, muito de aplaudir o que se consigna numa das conclusões do relatório da comissão de inquérito. É necessário pensar na preparação, formação e selecção do pessoal; utiliza-se o Gabinete de Estudos do Concelho Técnico Corporativo, como sendo um centro dessa formação pessoal.
Aquando dos centenários, que ontem foram aqui recordados, neste debate, pelo sr. deputado Teotónio Pereira, procurei, na organização de um congresso de ciências da população, para a sua secção económica, entre as pessoas mais competentes do País na matéria, alguém que escrevesse algum trabalho sobre economia corporativa. Apenas o Sr. Dr. António Cruz, director do Gabinete de História da cidade do Porto, fez uma síntese sobre a história dos misteres e das corporações nesta cidade, trabalho esse que, tendo grande mérito no ponto de vista da investigações histórica, não era o mais necessário em relação aos tempos de agora.
E porque é que eu não consegui encontrar mais ninguém?
É que o nosso escol nessa matéria é reduzidíssimo u estava todo ocupado com actividades anais imperativas. Dessa limitação vem o fracasso de um grande número das organizações em questão. Dela resulta muitas destas não corresponderem ao seu objectivo. Mas o mal é tão generalizado! E tão frequente esquecerem-se os fins de uma instituição ou cargo!
Quando exerci a presidência de uma autarquia local, encontrei-me, num serviço dessa autarquia, perante entidades que reclamavam contra certos aspectos do funcionamento do dito serviço. Ouvi uns e outros e, que final da discussão, o então director desse serviço - pessoa intelectualmente distinta e noutras actividades muito competente- fez uma proposta de solução em que dizia obtemperar a todas as reclamações e protestos. Essa proposta satisfaria os reclamantes. Perguntei-lhe se ela era, por sua vez, eficaz para a finalidade dos serviços. Ele respondeu: «Isso não, não se faz mais nada». Então perguntei-lhe como se chamavam os serviços de que ele era director. Caiu em si e procurou outra plataforma.
Na organização económica do País é afinal esse um dos grandes males: pessoas mesmo inteligentes, cultas e probas perdem facilmente o pé no que respeita à consecução dos objectivos superiores que lhes cumpre visar. E o mesmo em muitos domínios da vida nacional. Pelo que é pormenor, acidente, episódio, esquece-se consta sómente o fundamental, o que constitui o objectivo de um cargo, de uma função, de um organismo.
Associo-me, portanto, a todos os votos tendentes a uma boa formação de pessoal para a organização corporativa como para a direcção da nossa vida económica. Mas vou lembrar à comissão que, além do Gabinete de Estudos do Conselho Técnico Corporativo, colabore nessa formação o Centro de Estudos Económicos, criado em boa hora, pelo ilustre Ministro das Finanças, no Instituto Nacional de Estatística. Porque não há-de este Centro realizar estudos, investigações, que concorram naturalmente para a formação do pessoal, desse escol de que necessitamos?
Associo-me igualmente ao que disse o ilustre Deputado Sr. Dr. Bustorff da Silva relativamente ao que há de inadmissível nos lucros excessivos e incompreensíveis e no fausto das instalações de alguns dos organismos económicos. Basta percorrer 03 números que nos dá a comissão de inquérito para se verificar que existem por vezes desproporções enormes entre as receitas e as despesas. E, se é certo que muitos desses organismos necessitam para o seu funcionamento de fundos de maneio, de fundos de compensação ou de fundos especiais, certo é também que as receitas que afinal pesam sobro os membros desses mesmos organismos ou sobre o público não devem ir além do estritamente necessário para o desempenho do papel atribuído a essas entidades.
E evidente, pela leitura das estatísticas relativas á organização corporativa, pelos relatórios publicados sobre a mesma organização, como ainda também pelo presente relatório da comissão de inquérito, que o cor-

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porativismo em Portugal está longe de se estender de facto a todo o território e a todas as actividades em que deveria interferir.
Isto apesar dos notabilíssimos esforços desenvolvidos por algumas individualidades de grande mérito, a quem rendo daqui as devidas homenagens.
O nosso corporativismo é incompleto, é fragmentário, é, sob muitos aspectos, superficial. Pode dizer-se numa fase apenas incipiente.
Tenho pelo corporativismo a simpatia que me é dada por uma deformação profissional, pelo meu interesse pelas coisas históricas. O corporativismo tem velhas tradições no País.
Já no começo da Monarquia se tomaram providências económicas hoje em moda designadas por nomes estrangeiros. Os nossos primeiros monarcas decretaram, por exemplo, o clearing.
Mas eu sou avesso a um estrito, a um rigoroso dogmatismo em matéria política e económica.
Entendo que as soluções variam segundo os países e segundo as épocas e acho que nós devemos sempre reivindicar o mais possível o carácter nacional, o carácter próprio, o carácter original das nossas soluções.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Recordo que na minha mocidade estava em voga a ciência social de Lê Play e Tourville. O ilustre Prof. Serras e Silva, o engenheiro Matos Braamcamp e outras individualidades portuguesas consagravam-se com entusiasmo ao estudo desse ramo de pesquisas sociais. Ele inspirou mesmo muitas outras ilustres personalidades que, na velha terminologia política, poderíamos chamar «figuras das direitas».
De acordo com as tendências dessa escola, ainda não renunciei desejar também uma autêntica liberdade de iniciativa privada. Para mim as corporações de hoje não podem ter a simplicidade das antigas, nesta época de industrialismo e de tecnicismo intensos e complexos. As corporações não devem ser asfixiantes das actividades económicas, reais, fecundas, legítimas, espontâneas naturais, como não se deve nunca perder de vista que acima do interesse de qualquer agremiação, de classe ou de profissões há os interesses nacionais, há os interesses do grande público, sobretudo do público consumidor, e, acima de tudo, ainda dos pobres, dos infelizes, dos deserdados da fortuna.
De todo este debate, e sobretudo do relatório da comissão, tirei esta conclusão, mais uma vez: os defeitos são menos dos sistemas e das instituições do que dos homens. Eis a razão pela qual tenho batalhado e continuarei a batalhar, no sentido do aperfeiçoamento do factor humano em Portugal. Eis a razão que me levou hoje a subir a esta tribuna.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Antunes Guimarães: - Sr. Presidente: à interminável série de perguntas, dúvidas e até de acusações que de todos os sectores nacionais surgiam a propósito da organização corporativa a Assembleia Nacional, correspondendo a uma proposta da maior oportunidade do distinto Deputado Sr. Dr. Mário de Figueiredo, nomeou uma comissão para proceder a um inquérito, cujo inteligente e substancial relatório está em discussão.
Tive a satisfação de o ler, não com o vagar que um tal documento bem merecia, e como eu muito desejaria fazê-lo, porque a multiplicidade de temas para que a nossa atenção diariamente é solicitada não nos permite dispor do tempo que esse estudo requereria, mau, mesmo assim,
foi-me possível, além dos pontos já aqui inteligentemente desenvolvidos, destacar algumas passagens sobre as quais esboçarei considerações que V. Ex.ªs vão ter a paciência de escutar; mas, antes de o fazer, pronunciarei algumas palavras de apreciação geral.
No proficiente relatório foca-se, logo de entrada, a desvirtuação dos organismos corporativos, forçados como foram, durante a guerra, a exercer funções que lhes não cabiam e para que não estavam devidamente preparados, de forma que o público os confundiu, umas vezes com a Intendência Geral dos Abastecimentos e quase sempre com grandes casas de negócio, género concentração económico-capitalista. Este forçado desvio de funções quase ao nascer perturbou a vida da nova instituição.
Com uma coragem e imparcialidade dignas de registo, no capítulo intitulado «Desvios e vícios de funcionamento», o panorama é definido com mão de mestre, em linhas muito gerais, e, assim, depara-se com um longo sudário em que se fala de outros afastamentos das funções para que haviam sido criados os organismos corporativos, mas estes insusceptíveis de serem imputados à guerra, como o de passarem a constituir intermediários privilegiados, que se iam substituindo às entidades a que muitos anos de trabalho deram a precisa competência, e que por isso nunca deveriam deixar de exercer determinadas funções, ou as reduziam a situações insignificantes e caracterizadamente parasitárias.
Fala-se em injustiças e favoritismos de que nem sempre as próprias direcções se mostraram isentas.
E vai-se até à referência a operações realizadas por peita de funcionários e a preços do «mercado negro», como se alude também a mercadorias arrastadas para fora da área dos grémios.
Afirma-se que a organização corporativa marcou tendências manifestas para o monopólio.
E define-se a evolução do fenómeno que a tanto conduzira: partindo de concentrações voluntárias, e por vezes detentoras de poder público, iam negando o exercício da actividade aos que já a exerciam, aos que pretendiam voltar a exercê-la e, ainda, recusando a inscrição a todos os que, embora no seu pleno direito, quisessem dela fazer parte.
De tal recusa todo o apelo ou recurso resultava em pura perda.

O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá-mo licença?

O Orador: - Tenha a bondade.

O Sr. Mário de Figueiredo: - É só pura uma nota perfeitamente no mesmo terreno em que estão a ser feitas as considerações de V. Ex.ª
Houve muitos casos em que se sentiu a diferença de tratamento do patrão para o trabalhador consequente do facto de estar fechado ao trabalhador o estabelecer-se por conta própria.

O Orador: - Tem V. Ex.ª toda a razão. O que acaba de dizer, não só confirma, mas agrava as relações do patrão com o operário, em prejuízo do segundo.
Alude-se, com sobejos fundamentos, à complicada e perturbadora burocracia corporativa, onde se exacerbaram os males apontados à burocracia do Estado: papéis sem conta, deslocações por tudo e para tudo, sem se atender à vida de cada um, delongas intermináveis e despesas muitas vezes evitáveis.
É posta em evidência a euforia financeira, sobretudo dos organismos de coordenação e dos grémios obrigatórios, a qual se exprime em muitas centenas de milhares de contos.
E, como consequência de tanto dinheiro, fala-se no luxo das instalações e dos quadros.

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Como se poderia falar também nos automóveis, nas viagens e noutras despesas por vezes bem dispensáveis.
Mas ... adiante.
Se ao menos os quadros fossem bem constituídos, a qualidade dos serviços poderia, até certo ponto, justificar o montante dos gastos.
Compreende-se a dificuldade do encontrar desde logo pessoal competente para a multiplicidade de funções de uma organização totalmente nova.
Mas recorreu-se, sobretudo, a pessoas de pouca idade, geralmente inexperientes e desconhecedoras das dificuldades da vida prática, sem o cuidado de os enquadrar com outros que já tivessem demonstrado aptidões e preparação para funções do género das que iam exercer.
E no que toca ao pessoal não dirigente verificaram-se também insuficiências de toda a ordem, como, aliás, também existem nos serviços do Estado e fora dele.
Mas, talvez devido apressa de se constituírem os respectivos quadros e a uma selecção também precipitada, que não permitiu joeirar convenientemente, notou-se nos organismos corporativos maior percentagem de incorrecções, das quais algumas foram devidamente castigadas.
Também aqui foram encontradas acumulações, apesar de certas retribuições serem avultadas e geralmente atribuídas a funcionários muito novos e recentemente saídos das escolas, os quais, se tivessem ingressado nos serviços do Estado, teriam de esperar pelo último quartel da vida, e depois de subirem vagarosamente a dura escala hierárquica, para receberem honorários equivalentes.
Outras insuficiências e males foram encontrados, mas a maior parte inerentes, em diversos graus, a todos os serviços, sejam públicos ou privados.
Sr. Presidente: tive a satisfação de verificar que ao lado de desvios e vícios de funcionamento, a que contrariadamente venho de aludir, se registam no relatório, em contrapartida, benefícios apreciáveis.
Benefícios apreciáveis e de incontestável valor, sobretudo tendo-se em conta o longo período de guerra durante o qual se exerceu a actividade dos diferentes organismos corporativos.
O trecho que se encontra na primeira coluna da página 738-(16) do relatório, e que, segundo ali se diz, foi muito inteligente e oportunamente transcrito de um dos relatórios parciais, é elucidativo neste fundamental capítulo.
Ali se afirma que só calculando os malefícios que teriam resultado para a economia nacional sem a intervenção da organização corporativa durante a guerra é que seria possível o apuro eloquente e definitivo dos benefícios que lhe devemos.
E apontam-se os traços gerais dessa intervenção e os resultados correspondentes para a Nação.
V. Ex.ªs não deixaram de ler o impressionante trecho, razão por que me dispenso agora, apesar do prazer que nisso teria, de reeditar as considerações ali magistralmente feitas.
Sr. Presidente: no valioso relatório da nossa comissão de inquérito põem-se em equação problemas da maior oportunidade, que determinaram particular atenção do meu espírito e sobre os quais, após as considerações de ordem geral que V. Ex.ªs tiveram a paciência de ouvir, vou discorrer, mas com a promessa de não tomar muito tempo à Assembleia Nacional.
Ao dissertar-se sobre Casas dos Pescadores e do Povo afirma-se logo de entrada que as primeiras são as melhores.
As Casas do Povo, diz-se ali, não têm correspondido ao belo pensamento que as inspirou.
Como centros de acção educativa não produziram os benefícios esperados.
Não conseguiram atrair os trabalhadores, cuja preferência vai ainda para a taberna.
No campo da acção social (colocação de desempregados, previdência e assistência) registam-se benefícios, mas quási limitados ao Alentejo.
Constituíram elemento de divisão, em vez de penhor de paz.
Motivo de perturbação, em vez de ordem, confrontam-se as receitas das Casas dos Pescadores e do Povo, demonstrando que as primeiras excedem em muito as segundas, tendo em atenção o seu número e o dos respectivos sócios.
Como resultante de tal diferença, são melhores as condições de vida das primeiras.
E, consequentemente, encontram-se ali escolas do mães e creches, postos de puericultura e internatos, serviço de visitadoras, jardins-escolas, escolas primárias, casas de trabalho e escolas profissionais de pesca.
Não falta a assistência religiosa.
E no campo médico vai-se da consulta ao fornecimento de variadíssimos medicamentos, análises, radiografias, pequena e grande cirurgia, hospitalização, subsídios e ainda outros benefícios.
Distribuem-se refeições e variados géneros.
Funcionam caixas de empréstimo e existe uma organização de seguros efectuados pelas mútuas dos grémios e dos pescadores.
E ao lado das sedes e lares dos pescadores existem bairros de casas económicas para sua moradia.
Regala de facto o espírito ler uma tão grande e valiosa enumeração de frutos benditos de uma trio útil organização.
Sr. Presidente: pergunta-se no relatório da nossa comissão de inquérito, para averiguar das razões da disparidade assim verificada entre aqueles organismos:
«Haverá espírito menor de solidariedade entre as gentes do campo do que entre as gentes do mar?»
E afirma-se: A pequena empresa agrícola não é propícia à germinação de instituições de carácter social, fundadas na mútua colaboração».
Alude-se a falta de meios das Casas do Povo em confronto com as dos Pescadores.
E salienta-se também a falta de dirigentes para as Casas do Povo, que não existe para as dos Pescadores, pois nestas são oficiais de marinha.
Neste último ponto estou de acordo; e começo por associar-me às palavras de justa homenagem, ontem pronunciadas nesta Assembleia, aos merecimentos e valiosos serviços que as Casas dos Pescadores devem à actuação inteligente, tenaz e patriótica do nosso muito ilustre colega Sr. comandante Santos Tenreiro.
Quando, há já bastantes anos, foram aqui apreciadas as Casas dos Pescadores, eu subi à tribuna para tomar parte no debate e recordo-me de ter afirmado que a sua organização ia corresponder às realidades confiando-se a direcção a oficiais da marinha, contrariamente ao que se verificava nas Casas do Povo, cuja direcção constituía prerrogativa dos sócios efectivos, isto é, dos operários agrícolas, deixando para os contribuintes, isto é, para o sector dos patrões e proprietários da terra, as limitadíssimas funções da presidência da assembleia geral.
Além de se dispensar a intervenção dos competentes na transcendental administração das Casas do Povo, que tinha de atender ao económico, ao social e a outros sectores que, como venho de dizer, já encontraram realização nas Casas dos Pescadores, foi-se entregar aquele difícil encargo aos trabalhadores, aos quais geralmente falecem as habilitações para isso indispensáveis.
Por outro lado, dividindo a grande família dos meios rurais em sócios efectivos e contribuintes e separando-os, não só nos títulos, mas nas respectivas funções, e tirando aos proprietários as de ordem administrativa, que lhes deveriam ser naturalmente reservadas, para as impor aos trabalhadores, que nunca em tal haviam pensado,

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apenas se conseguiu, como muito bem se diz no relatório, um elemento de divisão, em vez de penhor de paz, o motivo de perturbação, em vez de ordem.
Sr. Presidente: no que respeita ao confronto dos meios abastados de que felizmente dispõem as Casas dos Pescadores com a escassez que deploràvelmente se regista nas do Povo, trata-se de mais uma revelação da flagrante disparidade que se verifica entre as actividades industriais e a agrícola.
Nesta última, apesar do muito que nestes últimos tempos se tem apregoado acerca dos seus lucros mirabolantes, tudo é muito limitado - resultados financeiros da exploração agrícola e salários dos respectivos trabalhadores.
Mas os encargos vão subindo.
E vão-se dispersando os recursos para ocorrer à tributação do Estado, recentemente agravada com 10 por cento na contribuição rústica e também abrangida pelas taxas progressivas do imposto complementar, pêlos grémios de lavoura e outras, instituições, entre as quais figuraram justamente as Casas do Povo, cujas quotas assumem, por vezes, importâncias avultadas, as quais, como se diz no relatório, se repetem por tantos concelhos quantos sejam aqueles em que o mesmo proprietário possua qualquer prédio.
Sr. Presidente: nunca registei espírito de menor solidariedade entre as gentes do campo do que entre as gentes do mar.
Uns e outros são portugueses, isto é, fazem parte de um povo onde desde sempre floresceu e frutificou o espírito da maior solidariedade.
Nascido e criado em plena zona rural, e tendo vivido em convívio estreito com os respectivos habitantes, sempre apreciei e admirei o espírito de solidariedade que ali se manifestava em todas as circunstâncias: nos momentos de alegria e de tristeza, nos trabalhos em comam, nos maiores cataclismos, nas obras de interesso colectivo e no contributo geral para a manutenção da igreja, da escola e do hospital.
Desde as Misericórdias aos compromissos marítimos, de tão remota tradição e fontes inexauríveis de benefícios, desde as confrarias, que se espalham por todo o Pais e asseguram assistência vastíssima aos respectivos povos, aos cortejos das oferendas, que reúnem todas as famílias para, em procissão festiva, garantirem a manutenção dos seus hospitais, não faltam neste abençoado País demonstrações eloquentes do admirável espírito de solidariedade que se revela tanto à beira-mar como nas aldeias interiores.
Foi o conhecimento dessas preciosas virtudes que me norteou na elaboração do decreto dos melhoramentos rurais e me determinou também a apresentar um projecto de lei sobre o Casal da Escola, para o ensino elementar agrícola e manutenção da cantina escolar, mercê da conveniente utilização de parte dos baldios, projecto quo não chegou a ser discutido, mas cuja doutrina está agora em vigor, devido a ter sido aprovada, aquando da discussão da proposta de lei sobre ensino técnico, a minha sugestão sobre aproveitamento de baldios para o ensino agrícola.
Sr. Presidente: apesar da sua organização, um tanto artificial, e da aludida insuficiência de recursos, há felizmente Casas do Povo com obra utilíssima.
A uma delas já eu tive a honra e satisfação de aludir, há anos já, nesta Assembleia.
Os trabalhadores reúnem se ali regularmente com suas famílias e divertem-se honestamente.
Não se registam abusos de jogo nem de bebidas alcoólicas.
São-lhes fornecidos ensinamentos úteis. Funciona um bom serviço de assistência médica e medicamentosa, que até vai garantindo socorros urgentes nos acidentes de trabalho, à falta até de um posto das companhias de seguros.
Distribui subsídios em circunstâncias várias e outras ajudas muito apreciáveis.
Na legislação reguladora das Casas do Povo há modificações importantes a fazer.
Mas impõe-se urgentemente que, dentro do espírito de uma moção por mim apresentada aquando do debato sobre organização hospitalar, o votada por unanimidade, o Governo defina qual a intervenção das entidades seguradoras do ramo de acidentes de trabalho na organização de postos de socorros, ambulâncias, hospitais, etc.
Isto feito, poderiam as Casas do Povo desenvolver uma acção larguíssima e sem ter que substituir-se, nos socorros a prestar a sinistrados, no que é de obrigação das companhias de seguros.
A sua acção poderia conjugar-se com a daquelas companhias para uma assistência muito mais larga e eficaz, assunto da maior importância, que aguarda solução urgente, para o que todos confiam na alta competência do Sr. Subsecretário de Estado das Corporações.
Sr. Presidente: no valioso relatório da nossa muito ilustre comissão de inquérito põe-se uma questão da maior transcendência:
Porque não aparecem os trabalhadores reconhecidos a agradecer à Situação o que tem feito por eles e a significar-lhe o seu aplauso caloroso?
E muito tem sido na verdade.

O Sr. Botelho Moniz:- V. Ex.ª dá-me licença? Desejo esclarecer que para a vida de uma empresa privada esses benefícios de ordem social representam 25 por cento do custo da mão-de-obra.

O Orador: - Agradeço muito a V. Ex.ª o seu esclarecimento. Eu já conhecia a grande importância desses benefícios, os quais representam, de facto, uma percentagem muito importante, mas, em todo o caso, paga sempre pelas empresas de boa vontade, dado o fim utilíssimo a que se destina.
São consideráveis as vantagens do que o operário já beneficia.
Haja em vista a situação favorável do grande sector dos operários fabris, que tantos benefícios têm logrado, em relação a grande parte dos que se ocupam na lavoura e, sobretudo, em face das dificuldades, quase invencíveis, com que luta, duma maneira geral, a classe média.
Muito se tem feito, sem dúvida alguma, em variados aspectos da sua vida privada e das respectivas actividades profissionais.
Há, porém, uma faceta que não foi devidamente atendida - faceta que até foi contrariada - e que veio a constituir óbice irremovível à mais legítima das aspirações dos trabalhadores, especialmente dos que são dotados com os predicados de inteligência, de. habilidade profissional, de capacidade de iniciativa e de faculdades do poupança para se elevarem na escala da respectiva actividade, passando da categoria de simples operários, à do patronato e, assim, assumirem as responsabilidades do comando e, com o risco dos negócios, as possibilidades de lucros legítimos.
«Nem só de pão vive o homem».
Quando tive de intervir no condicionamento industrial, vai para quinze anos, eu previra as deletérias consequências de quaisquer entraves a essa ascensão legítima dos operários de mérito e deixei absolutamente livres as pequenas indústrias, que poderiam vir a constituir embriões de grandes empreendimentos e o prémio merecido dos que, trepando a escada rude da vida, assim conseguiam triunfar.

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20 DE MARÇO DE 1947 933

Desta forma se criava o estímulo indispensável à revelação do mérito e ao florescimento de iniciativas para dignificação dos que bem trabalham e prosperidade da Nação.
No I Congresso da União Nacional, realizado em 1934, numa tese que ali apresentei sobre «Política rural», podem ler-se as palavras seguintes:

A orgânica corporativa, que, na Idade-Média, brotara também das oficinas, onde patrões e operários formavam como que famílias, há-de ajustar-se harmònicamente à distribuição das indústrias em pequenas unidades rurais, e estas, por sua vez, nela hão-de encontrar a indispensável defesa e coordenação, mas em fórmulas equilibradas, onde, à disparidade chocante de grémios representativos de reduzidíssimo número de patrões em face da massa incomensurável dos sindicatos operários, suceda a proporção razoável que a justiça social exige, sem prejuízo dos legítimos interesses económicos.
Mas o futuro veio mostrar, como acertadamente se diz no relatório em discussão, que se marchou para as concentrações e se negara o exercício da actividade a muitos dos que nela já trabalhavam, a outros estorvou-se que voltassem a nela trabalhar e aos que pretendiam entrar de novo fechou-se inexoravelmente a porta, condenando-os assim, sem lhes reconhecer os respectivos méritos, à situação perpétua de operários, mas reservando para alguns privilegiados as funções patronais e o comando supremo, quaisquer que fossem a sua competência ou dedicação ao trabalho.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Deve dizer-se que isso aconteceu mais nas empresas comerciais do que nas empresas industriais.

O Orador: - Claro está que a aludida falta de reconhecimento de alguns operários à política do Estado Novo deve fundamentar-se noutra ordem de razões; mas o que fica apontado ó fundamental, porque briga com a dignidade humana, prejudicando ao mesmo tempo a economia portuguesa.
É que os operários mio se contentam somente com vantagens materiais e outras de ordem social que a organização corporativa lhes vai conquistando.
Sr. Presidente: tantos problemas gostaria eu ainda de tratar, relacionados com esta organização instalada pelo Estado Novo, uns focados no relatório e outros que ali não são abrangidos!
Mas não é possível abrangê-los a todos na minha exposição, quo tem de terminar, porque o período regimental está quase no fim.
Contudo, não terminarei sem aludir à transferência das sedes de variadas secções corporativas das terras onde tinham longa o florescente tradição para outras, marcadamente a capital, onde o desenvolvimento dessas actividades fora manifestamente inferior.

O Sr. Botelho Moniz: - Isso tem sucedido por virtude da organização corporativa ou do condicionamento industrial?

O Orador: - Da organização corporativa.

O Sr. Botelho Moniz: - V. Ex.ª pode dar-me um exemplo?

O Orador: - O quo respeita a mercearias. É velha tradição da cidade do Porto essa actividade comercial.

O Sr. Botelho Moniz: - Então V. Ex.ª refere-se ao Grémio dos Armazenistas de Mercearia? Isso que aconteceu com esse Grémio, o relatório classifica-o como um desvio da organização.

O Orador: - Mas é atribuída a culpa à organização corporativa.

O Sr. Botelho Moniz: - A organização corporativa tem as costas largas e por isso é que toda a gente lhe malha em cima...

O Orador: - Já aqui me referi aos serviços prestados pela organização corporativa. Mas o certo ó que nós estamos a apreciar as coisas como elas são. Em política, o que parece é. Assim o disse, com acerto, o Sr. Presidente do Conselho. E os prejudicados por essas deslocações de actividades económicas responsabilizam principalmente a organização corporativa. E tais deslocações das sedes dos grémios e outros organismos, além de avultados prejuízos, exigem viagens constantes à capital.

Sr. Presidente: compreende-se a repercussão prejudicial que daí tem derivado para importantes sectores do comércio e da indústria, bem como para as terras onde sempre haviam laborado.
E os trabalhos, tempo perdido e despesas avultadas que a constante deslocação dos interessados exige?
À centralização político-administrativa que tanto vinha prejudicando legítimos interesses da província, veio juntar-se uma centralização de ordem corporativa, de piores consequências que a primeira, e cujo vulto se pode avaliar pêlos comboios sempre repletos, os hotéis com as lotações sistematicamente preenchidas, o movimento exagerado das ruas, a concorrência aos cinemas e teatros e outras manifestações desta sensacional euforia corporativa.
Sr. Presidente: há dias, falando com alguns colegas meus, do Norte, isto é, com médicos que ali exercem clínica, ouvi referências à repercussão que nas respectivas esferas de acção profissional se vem registando com a criação de lugares de médicos privativos de sindicatos, grémios, etc.
Alguns desses organismos são constituídos por muitos milhares de filiados, aos quais correspondem outras tantas famílias, cuja assistência passa desta forma a ficar a cargo daqueles médicos, com grande diminuição de clientes para os quo não conseguem a indispensável nomeação.
Disseram-me que está em estudo uma outra fórmula, que visa à distribuição aos filiados doentes de senhas dando direito a consulta e tratamento, mas com a faculdade de escolha de outro médico, retirando-se assim aos daqueles grémios ou sindicatos o exclusivo de que vêm beneficiando.
Trata-se de facto de um assunto da maior importância, porque não seria razoável que, ao garantir-se a assistência médica indispensável a todas as categorias do trabalho nacional, se fossem prejudicar gravemente os direitos de muitos médicos, com o desvio de clientes que daí poderia vir a resultar.
Deve, por isso, merecer as atenções do ilustre Subsecretário de Estado das Corporações, em cuja comprovada competência todos confiam.
Sr. Presidente: até agora tenho-me limitado, ao apreciar o relatório da nossa comissão de inquérito, a comentar vícios e desvios ali apontados.
Apontei também insuficiências e esforcei-me por encontrar explicação e, portanto, o consequente remédio para algumas delas.
As minhas últimas palavras reservo-as para afirmar que no balanço dos prós e contras é grande o saldo no primeiro sentido a favor da organização corporativa.

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934 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 107

Ainda muito recentemente eu aludi nesta Assembleia aos múltiplos benefícios que dela vêm colhendo as actividades vitivinlcolas.
E também tenho reconhecido a acção útil dos grémios da lavoura, os quais, além de outros serviços importantes, vêm corrigindo os males derivados da excessiva pulverização daquela actividade, orientando-a e coordenando-a, missões utilíssimas em que aqueles organismos ainda podem e devem ir muito além, para que a lavoura, convenientemente conjugada, possa defender-se dos que procuram explorá-la.
Para concluir, direi entender que a doutrina corporativista, à qual já muito devemos, careço do ser adaptada à índole muito particular do nosso povo e a circunstâncias essenciais do caso português.
Muitos dos vícios e desvios apontados devem-se justamente a falhas de adaptação que aja demorada experiência da sua vigência e as grandes lições registadas no admirável relatório da nossa comissão permitirão remediar.
As minhas últimas palavras são para felicitar a comissão de inquérito, especialmente o seu brilhante relator, Sr. Dr. Mário de Figueiredo, e a todos agradecer o valioso serviço prestado à Assembleia Nacional, à organisação corporativa e à Nação e o prestígio que do seu trabalho resultará para o Governo do Estado Novo.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Estão inscritos ainda nove oradores sobre este debate. Terei, portanto, de prolongar as sessões para além da hora regimental, visto existirem pendentes outros assuntos para os quais foi votada a urgência.
Veio da Câmara Corporativa o parecer sobre a proposta de lei de organização suprema da defesa nacional, à qual o Governo reconheceu urgência. Convoco desde já a Comissão de Defesa Nacional para examinar esse parecer, pois provavelmente será a discussão da proposta de lei dada para ordem do dia da sessão de sexta-feira ou de sábado.
Também veio da mesma Câmara o parecer relativo à proposta de lei de protecção ao cinema nacional, como já anunciei no princípio desta sessão. Convoco desde já a Comissão de Educação Nacional, a fim de tornar possível a discussão dessa proposta, para a qual a Assembleia votou urgência.
Está pendente de discussão o projecto de lei, já transitado da anterior sessão legislativa, sobre remição de censos, quinhões e direitos de compáscuo. Chamo para ele a atenção das Comissões de Legislação e de Economia.
Finalmente, relevem-me que saliente a importância da discussão a fazer-se das Contas Gerais do Estado e das contas da Junta do Crédito Público, que entrarão em debate logo depois de concluído o da organização corporativa.
A próxima sessão será amanhã, à hora regimental, com a mesma ordem do dia de hoje: continuação do debate sobre o relatório geral da comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa.
Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 50 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Artur Proença Duarte.
João Xavier Camarate de Campos.
José Alçada Guimarães.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Pereira dos Santos Cabral.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel França Vigon.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Ricardo Malhou Durão.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
Álvaro Eugênio Neves da Fontoura.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomea.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Cerveira Pinto.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Rafael da Silva Neves Duque.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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