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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 108
ANO DE 1947 21 DE MARÇO
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.º 108 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 2O DE MARÇO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 50 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 101 e 102 do Diário das Sessões. Deu-se conta do expediente.
O Sr. Deputado Sá Carneiro enviou para a Mesa um requerimento dirigido ao Ministério da Justiça.
Ordem do dia. - Continuação do debate sobre; o relatório geral da comissão parlamentar de inquérito aos elementos da organização corporativa.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Carlos Azevedo Mendes, França Vigon, Henrique Galvão e Botelho Moniz.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 50 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 40 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Gazaes.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
Manuel José Ribeiro Ferreira Manuel Marques Teixeira
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António de Sousa Madeira Pinto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Enrico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernâo Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Indalêncio Froilano de Melo.
João Ameal.
João Antunes Guimarães.
João Cerveira Pinto.
João de Espregueira da Rocha Pária.
João Luís Augusto das Neves.
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João Mendes da Gosta Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquivei.
José Qualberto de Sá Carneiro.
José Laís da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Saoadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Nunes de Figueiredo.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Téotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel Colares Pereira.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Spratley.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teotónio Machado Pires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês,
D. Virgínia Faria Gersão.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 73 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 00 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 101 e 102 do Diário das Sessões. Pausa.
O Sr. Presidente: - Como nenhum dos Srs. Deputados deseja fazer qualquer reclamação sobro estes Diários, considero-os aprovados.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Chamo a atenção da Câmara para o Diário das Sessões em que foi publicado o parecer da Comissão de Legislação sobre a situação do Sr. Deputado Mário Madeira. Amanhã será apreciada a situação desse Sr. Deputado.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, para um requerimento, o Sr. Deputado Sá Carneiro.
O Sr. Sá Carneiro: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa o seguinte requerimento:
«Requeiro que, pelo Ministério da Justiça, me sejam fornecidas, com urgência, cópia dos seguintes documentos:
1) Projecto elaborado pelo Sr. Dr. José Pinto Loureiro;
2) Parecer emitido sobre o mesmo pelo Sr. Prof. Dr. J. Alberto dos Reis;
3) Projecto, com cento e quarenta e cinco artigos, que o Sr. Prof. Dr. Vaz Serra chegou a ter em condições de ser promulgado;
Todos esses documentos são mencionados no parecer n.º 16, publicado no suplemento ao Diário das Sessões de 5 de Fevereiro último».
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continua em discussão o relatório geral da comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Mendes.
O Sr. Carlos Mendes: - Sr. Presidente: entre os muitos e bons serviços que ao País tem prestado o Sr. Dr. Mário de Figueiredo devo certamente pôr em lugar de destaque a apresentação da sua proposta para a nomeação da comissão de inquérito à organização corporativa.
A Assembleia Nacional bem mereceu igualmente em ter aprovado a proposta e nomeado a comissão, cujo inquérito, agora em debate, tem merecido os mais rasgados aplausos e louvores.
E bem justificados são, pois a comissão cumpriu com o mais elevado o escrupuloso cuidado o mandato que lhe foi conferido.
O inquérito, porém, que à Assembleia tem merecido o mais rasgado elogio e aprovação, não deve ficar circunscrito às páginas do Diário das Sessões. Dele se deve fazer uma mais larga propaganda, pois o País deve e precisa de o conhecer.
A vida dos organismos corporativos e de coordenação económica serviu de base a uma intensa campanha contra a Situação e contra o seu Governo, criando-se uma atmosfera pesada e até pouco tranquilizadora.
O inquérito vem mostrar-nos que eram infelizmente verdades muitas das afirmações que serviam de base a tal campanha.
Reconhecê-lo só nobilita. Impõe-se agora o saneamento.
Do inquérito, porém, a conclusão é que os princípios não foram atingidos.
Mas claudicou-se na sua execução.
Muitos dos organismos não cumpriram, em primeiro lugar, porque o pessoal não esteve à altura da sua missão. Recrutou-se sem o mais leve cuidado. Uns por incompetência, outros porque um passado duvidoso os deveria ter afastado e alguns porque, propositadamente, só pensaram no descrédito da instituição.
Se se tivesse organizado um cuidadoso curriculum vitae dos empregados dos vários organismos, certamente se teriam evitado muitos desmandos.
Depois, o que, com tanta propriedade, o inquérito chama a psicose da abastança deveria ter contribuído para muitas das tantas reclamações.
Se nos serviços houvesse dificuldades orçamentais, se tivesse sido preciso comprimir despesas, se se tivesse pedido algum pequeno sacrifício, certamente teria havido mais cuidadoso carinho na sua execução.
E sobretudo teria havido maior correcção e boa vontade para os que tivessem necessidade de se aproximar
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dos guichets dos organismos. Em regra era mal recebido e tratado com menos atenção quem precisasse de resolver qualquer assunto. Daí tanta revolta, porque o povo tem sede de ser esclarecido e bem acolhido, como diz o inquérito.
Tudo eram complicações e dificuldades. Parece até que uma das finalidades da organização corporativa era a protecção à indústria papelaria, tantos e tão variados são os papeis exigidos, como aqui tão claramente frisou o ilustre Deputado Sr. Bustorff da Silva.
Quantas vezes os pequenos proprietários se nos dirigem, aflitos, com largos papéis, cujo sentido não compreende e muito menos sabem preencher.
Reconhecem-se porém no inquérito os vícios; é urgente, inadiável e preciso que se lhes dê pronto remédio.
Está nisso o prestígio do regime e até da Situação. As elevadas palavras, a enérgica actuação e rasgada iniciativa do Sr. ministro da economia são disso garantia.
São precisas e claras as conclusões do inquérito; a sua realização trará à consciência do País a tranquilidade e a confiança.
Primeiro que tudo devem os organismos corporativos, tanto quanto possível, voltar à função para que foram criados, deixando de exercer acção de comerciantes-armazenistas, que tantas complicações, tantos erros e tantas naturais aleivosias lhes trouxeram.
Depois que se dê rápida realização, nomeadamente, à conclusão IV do inquérito. Desde que os organismo seja forçado a Ter de dar rápida solução ás questões que lhes sejam postas e saber que delas o interessado pode recorrer, os serviços passarão a correr com maior cuidado e os interessados terão a garantia de ser atendidos e ver resolvidos os seus casos.
E logo, como consequência, o tribunal especial, a que se refere a conclusão IX, com largos poderes, prestigiado, e certamente os serviços começarão a seguir outro rumo e o sistema passará a estar rodeado de igual atmosfera de carinho, aquele que deu origem à manifestação de 1939 ao Sr. Presidente do Concelho, a que se referiu o ilustre Deputado Sr. Teotónio Pereira.
Quadro impressionante e admirável o que nos apresenta o inquérito sobre a acção das caixas de previdência. O nosso operário começa a sentir os seus efeitos e a regozijar-se com o pequeno sacrifício que lhe é pedido.
Nos auxílios prestados têm avançado cautelosamente as caixas de previdência.
É grande ainda o caminho a percorrer.
Não se compreende que não considerem a grávida como uma doente para o auxílio a prestar-lhe. Parece até um princípio contrário ao estabelecido na Constituição quanto à protecção à família ...
Certamente as caixas de previdência avançarão muito mais no campo dos auxílios a prestar. Os seus 024:000 contos de fundos acumulados devem ser a garantia de que mais um passo largo irão dar, não esquecendo as casas económicas para os seus associados.
Mostra-nos também o inquérito um quadro, mas este doloroso, quanto às Casas do Povo, no paralelo feito com as Casas dos Pescadores.
Eu sei que é encantadora o cheia de grandeza a acção das Casas dos Pescadores e sei também que nas Casas do Povo algumas há que não têm cumprido. Devem por isso fechar-se?
Não será, porém, preferível que primeiro sejam reorganizadas, como a comissão propõe?
As Casas dos Pescadores são vinte e uma. São dirigidas por oficiais de marinha, e todos nós sabemos como os oficiais da nossa marinha são cumpridores, disciplinadores dedicados e prontos até ao sacrifício.
Depois, o pescador, mais irmanado no perigo, acorre por isso confiadamente ao convívio da sua casa, onde encontra todo o amparo, toda a assistência.
São largas as suas receitas. Em 1940, conforme os quadros juntos ao inquérito, foram de 10.418.000$, o que dá uma média de 496 contos para cada uma das vinte e uma casas.
Em 1946 tinham um fundo comum de 673.362$35, o que dá uma média para cada de 32.064$5.
Bem diferente é o contraste com as Casas do Povo.
Não têm, em regra, quem, com competência, as dirija. ÀS suas direcções têm de ser constituídas por sócios efectivos, por consequência trabalhadores.
O rural é refractário à associação e, em regra, desconfiado. Precisa de realidades palpáveis para se prender e render. Infelizmente, as suas receitas não permitem essas realidades.
São quinhentas e oitenta e duas as Casas do Povo. Tiveram em 1945 uma receita de 28:987.000$, o que dá uma média de 49.800$ para cada uma.
O seu fundo comum é de 3:711.833$58, o que dará uma média de 6.300$ para cada. Pequena receita para obra tão vasta a realizar.
Mas a Casa do Povo deverá ser o centro dos meios rurais, a barreira forte e disciplinada para defender a nossa boa gente do campo da onda avassaladora da indisciplina.
É preciso dar-lhes força, organizá-las, prepará-las cuidadosamente e fazer com que elas sejam o centro benfazejo onde as gentes do campo encontrem auxilio nas suas doenças, na sua invalidez, a par do amparo e da orientação cristã, que lhes trará depois a alegria, a felicidade.
E se na alínea 3) da conclusão i a comissão propõe possibilidades financeiras para os grémios da lavoura, que tanto delas precisam para bem realizar a sua finalidade, acrescente-se também que às Casas do Povo com as quais os grémios têm de viver em tão estreita ligação se lhes dêem iguais possibilidades para que, juntamente com a necessária e indispensável organização, elas possam levar aos nossos centros rurais o amparo e auxílio e a direcção que tanto precisam.
E termino, Sr. Presidente, com a frase incisiva do inquérito:
Não escondamos os erros, mesmo para os corrigir, mas procuremos ser justos e reconheçamos que, se a obra tem muitas imperfeições, não deixa de ser melhor do que as ruínas do liberalismo sobre que houve de ser constituída.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. França Vigon: - Sr. Presidente: hesitei muito em entrar neste debate sobre o inquérito aos elementos da organização corporativa. Por um lado parecia-me preferível uma posição de inteiro afastamento da discussão, por modo a não se considerar que alguém litigava aqui em causa própria e, assim, que nela se imiscuía a paixão, ou, pelo menos, espírito menos isento do que deve sor o espírito dos julgadores. Repugnava-me, porém, conformar-me eu próprio com tal ideia, pois tinha em consciência a certeza de que não cairia em tão feio pecado. E repugnava-me mais ainda a ideia de que nada dizer se tomaria, ou à conta de fuga ao salutar exercício da discussão, ou, o que era pior, que estava de inteira conformidade com o relatório da comissão de inquérito.
Devo ao grande espirito de Mário de Figueiredo o ter-me feito sair da minha indecisão. E não perco o ensejo para o dizer, porque, em situação de não poderem ser levadas as minhas palavras à conta de louvaminha,
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alegra-me poder-lhe testemunhar neste momento a minha gratidão e a minha homenagem.
A gratidão, porque, em face da minha discordância por parte do trabalho da comissão, seu trabalho também, não se limitou à elegante disposição de espírito de achar bem ou útil a minha intervenção ou, até, ao conselho de eu intervir. Insistiu na ideia de que eu devia intervir. Apontou-me, embora com a maior cordialidade, um dever, o que só amigos fazem e só amigos agradecem.
Mas devo também ao Sr. Deputado Mário de Figueiredo e à comissão a que presidiu a minha homenagem.
Ao ler e reler o relatório, pude fazer melhor ideia do enorme esforço - esforço intelectual e esforço de vontade- que representa a soma de trabalhos nele revelados.
Imensidade e dispersão do campo de trabalho, necessidade de este ser rápido, deficiências de informação, insuficiência dos meios de acção, incompreensões lá de fora -quando não descrença das intenções-, exigência de coordenar procedimentos e critérios dos inquiridores, preocupação constante do serviço da justiça e da Nação-eis como penso que terá sido o ambiente de trabalho e a tarefa da comissão nestes meses em que a maior parte de nós, Deputados, nos recolhemos às nossas ocupações públicas ou privadas e às nossas predilecções de espirito, quase sem darmos conta da grande missão a que, silenciosamente, tenazmente, continuavam dedicados alguns dos nossos.
É ao pensar nisto que sinto devida a minha homenagem, feita de consideração intelectual, de respeito moral e de camaradagem de sentimentos.
E é dominado por este espirito, mas livre de consciência e de inteligência, que pretendo fazer nesta tribuna um simples apontamento ao trabalho da comissão.
Poderá pensar-se imediatamente que não está de acordo a limitação de um apontamento com o tamanho da obra, tal como a considero. Está, por duas razões:
Em primeiro lugar porque não estou em total desacordo com o conteúdo do relatório e depois porque o decurso dos trabalhos parlamentares não deu tempo a que pudesse incidir sobre os da comissão o estudo demorado que, em meu parecer, exigiam o seu vulto, natureza e responsabilidade.
E é por aqui que quero começar.
Entre a entrega que nos foi feita do relatório e o começo do debate mediou meia dúzia de dias ou pouco mais. E neste espaço, preenchido em grande parte com as sessões da assembleia e a preparação das intervenções nestas, não nos ficou o mínimo de tempo indispensável para a meditação cuidadosa e a tomada de notas, que, pelo menos, exigiam a consulta de documentos da comissão e a recolha de elementos indispensáveis.
Eu não quero dizer com isto que fosse indiscutivelmente preferível o adiamento para a próxima sessão do debate deste assunto.
Concordo mesmo em que há razões de ordem política
- mas não sei se as mais fortes - para se desejar que a sua discussão se faça já.
Mas não posso deixar de notar que com tão pouco tempo entre o conhecimento do relatório e o debate as horas disponíveis não nos chegaram para mais do que para tomar umas ligeiras notas, relativas a um ou outro assunto. A mim, pelo menos, não chegaram para mais.
Assim, se se firmaram no meu espírito algumas certezas, não se esclareceram todas as dúvidas e até apareceram outras.
Não posso, por inteligência, aceitar integralmente todos os juízos do relatório e não tive tempo para os apreciar, sobretudo para me convencer da sua justificação. Não duvido um segundo da convicção dos membros da comissão ao formularem tais juízos.
* É, porém, licita a minha hesitação em considerar alguns juízos certos, e isso sucede, por exemplo, quando comissão aponta factos ou números por modo que são de tirar logo certas conclusões, mas podendo tirar-se outras com a verificação desses números ou desses factos.
Dou um exemplo para esclarecer melhor o meu pensamento :
A p. 738-(5) do relatório consta do quadro i que em 1945 havia 121 grémios dos chamados facultativos e 86 dos chamados de comércio. Os primeiros teriam 149 dirigentes e os segundos 217.
Ora a simples multiplicação daqueles números por 3, que é o número dos membros da direcção de cada um, daria os resultados, bem diferentes, de 363 e 258.
E não se diga que isto não tem importância. Tem, considerado o caso como exemplo de dúvidas que não puderam esclarecer-se porque não houve tempo, e tem-na porque o caso em si mesmo contém um aspecto importante. Senão vejamos:
Informa-se no quadro v que as despesas com os honorários dos dirigentes dos grémios facultativos em 1945 foram de cerca de 360 contos, o que dá a média aritmética de menos de l conto por ano se os dirigentes andarem à roda de 360, mas saltará para 2.400$ se o número dos dirigentes for o dos quadros.
Mas vejamos mais alguma coisa:
Será exacto chamar-se honorários àquilo que alguns dirigentes dos grémios facultativos recebem?
Será exacto inclui-los em igualdade de circunstâncias com os dos grémios chamados obrigatórios?
Creio bem que não.
Nestes últimos os dirigentes recebem uma quantia certa, com todas as características do vencimento fixo.
No caso dos grémios facultativos e do comércio alguns dirigentes, mas só alguns, recebem no fim do ano, por força do saldo de exercício e, portanto, se o houver, uma indemnização votada pela assembleia geral ou pelo conselho geral, indemnização variável e destinada a compensá-los de gastos, prejuízos e perdas que sofreram por terem dirigido organismos cujo serviço causou esses gastos, esses prejuízos, essas perdas.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Eu, em esclarecimento a um dos Srs. Deputados que antes usou da palavra, já afirmei, muito embora numa passagem rápida e curta, que os dirigentes dos grémios do comércio e facultativos não tinham vencimento.
O Orador: - Posso assegurar a V. Ex.ª que o Instituto Nacional do Trabalho e Previdência não consente que os dirigentes destes grémios recebam vencimentos
O Sr. Mário de Figueiredo: - O que se indica no mapa é apenas o quantitativo que, por qualquer forma lhes era atribuído e de que se quis deixar no relatório uma indicação...
O Orador: - ... Mas ao quantitativo foi dado o nome de honorários!
O Sr. Mário de Figueiredo: - Por motivo de como idade de organização do mapa, não podíamos estar; abrir muitas colunas.
O Orador: - Pergunto: é legítimo considerar isso como honorários de dirigentes e incluir tais quantias na mesma categoria em que se incluem as remunerações dos dirigentes dos outros grémios?
Mais ainda:
Não seria preferível referir essas quantias ao lado do número dos que realmente as recebem, para não se caiu no erro de supor que são todos a recebê-las e não apenas alguns, evitando uma ideia de generalidade que está errada?
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Posso dar outro exemplo de verificação da incerteza )n de erro de facto.
Nos quadros de pp. 738-(68) e seguintes consta o número dos dirigentes dos grémios facultativos e do comércio. Tão depressa aparece designado o número l como o número 4, o número 6, o número 9, o número 17.
Não fiz a conta, mas estou convencido de que a comissão, ao fazer o quadro da p. 738-(5) - número de dirigentes -, tomou como bons os que constam daqueles quadros subsidiários e somou-os.
E com isto só errou. É fácil ver porquê. Os organismos, ao responderem ao inquérito, consideraram uns que dirigentes eram os membros da direcção, outros acrescentaram um ou três da mesa da assembleia geral, outros os de outro qualquer órgão e um deles, ao apontar um só dirigente, deve ter-se contido talvez na ideia de que dirigente era só o presidente.
Dei estes exemplos apenas para documentar a minha afirmação de que uma análise mais demorada do relatório e a confrontação com os seus elementos informativos m outros que houvesse tempo de recolher poderiam levar numa ou noutra parte a interpretações diferentes de algumas a que a comissão chegou ou a que podem conduzir o texto ou os números do seu trabalho.
Também digo que não estou convencido de essa análise levar a conclusões gerais diversas daquelas a que chegou a comissão. E isso é, na verdade, o que interessa. Mas também afirmo que não estou a apresentar estes casos por mero espírito de detracção do trabalho. Para mim, perigoso é poder-se tirar conclusões erradas dos pontos não corrigidos ou não esclarecidos. E não tenhamos dúvidas de que o relatório vai ser analisado fora lesta Casa com diverso espírito, não, faltando quem se encarnice em procurar tudo o que convenha a certos objectivos políticos bem conhecidos, ou, melhor, de esculação política cujos fins já são conhecidos e cujos processos já experimentámos.
A comissão de inquérito foi constituída para investigar s vícios do funcionamento dos elementos da organização corporativa, procurar as causas do ambiente público que s cerca, indicar aqueles vícios, para a necessária correcção, e referir as causas, com o intuito de serem elimiadas.
A comissão, antes de mais, cuidadosamente lembro: do mesmo no princípio do seu relatório.
E percebe-se o intuito.
Rigorosamente, no estrito sentido jurídico do voto da assembleia, havia só que rebuscar o mau e nada obrigava a apontar o bom.
Houve-se a comissão com acerto na conjectura, por não se esqueceu de que emanava ou fazia parte de na assembleia política e, assim, não praticou o erro de
ser apenas o rol ou a explanação dos defeitos. Enveadou, como era mister, pelo caminho de, não só propirar as justificações legítimas e apontá-las em todos os isso do relatório, como também indicar virtudes entradas e os benefícios delas resultantes.
Não redigiu, portanto, o unilateral libelo acusatório 3 faltas que apresentaria um tribunal revolucionário,
asses que fazem o pavor de certas épocas sangrentas
História. Serenamente, pairou acima das paixões polcas ou sentimentais, dos interesses feridos ou das lições refreadas, ficou indiferente às esperanças de agnanimidade, que fosse absolvição, ou aos desejos violência de oferecer cabeças em bandejas. A comissão mostrou-se cônscia da sua missão de anaar uma obra humana, para mais obra de período conrbado e feita para as mal avindas e desvairadas gentes* e nós somos. Por isso soube apontar as dirimentes e atenuantes quando as havia e, mais, saiu do domínio trito do rol dos vícios de funcionamento e fez também, embora insuficientemente, o dos seus benefícios. Mostra
o texto do relatório, mostram sobretudo as conclusões, que no balanço final o saldo é destes e com grande diferença.
Contudo, presa às directrizes de trabalho que resultavam do voto da Assembleia, confinado este à pesquisa dos vícios de funcionamento e das causas do ambiente público, só por esta razão - estou disso convencido -, o seu trabalho ressente-se quanto aparenta uma excessiva generalização dos defeitos em virtude de não a contrabalançar, por não ser sen objectivo, uma larga e completa explanação das virtudes achadas.
E isto é grave, grave não em si mesmo, mas nos seus efeitos, sabido como é que o público aceita facilmente a critica punitiva, que deseja, das obras do Estado ou que ele julga do Estado, e só dificilmente a apreciação que dirime ou que louva. O lado bom, se é tomado, é o com desconfiança, ou pelo menos com hesitação. Não se firma, não se instala nos espíritos, como se firma e se instala a acusação, mesmo que seja do pior - ou, melhor direi, que mais fortemente se instala quanto pior for.
Somos assim, muito embora, decorridos os anos, passemos a dizer bem daquilo que mais feríramos, e muito embora o façamos, a partir de certo momento, como se sempre tivéssemos louvado. E nesse momento somos capazes de jurar que nunca outra coisa fizéramos. Basta-nos muitas vezes derruir a estátua, vê-la quebrada aos nossos pés, para logo chorarmos a sua queda como a de um ídolo. Pelo menos, seremos capazes então de juntar os bocados e colocá-los no escrínio das coisas preciosas, jurando que abatêramos a estátua sem querer e que, afinal, muito gostávamos dela.
Malaventurado povo é este, o do extremo ocidental, rico de glórias, que não hesita em denegrir, para mais tarde delas fazer a sua vida e a sua saudade.
E nisto dos grémios, como se chamou no vulgo à organização corporativa, a coisa é séria.
Quero dizer que, onde não pusermos nós toda a verdade, o público não cuidará de suprir a falta desta. Os grémios são assim uma espécie de «jasuítas» da nossa época
- não digo Jesuítas. Não há mal que se lhes não assaque, nem bem que se lhes atribua espontaneamente, por mais real e sensível que seja. O mal vem, como bem anota o relatório, de não se terem sentido os prejuízos que resultariam da sua falta. O público não pode comparar, porque não tem à vista as dimensões que lhe dariam a comparação. Não obteve todo o beneficio que exigia e não sentiu o malefício de que o livraram.
E não há que sair disto se por um esforço enorme de vontade o de espírito de justiça não se lhe demonstrar persistentemente, tenazmente, até ao cansaço, que não tem razão. Às vezes as coisas boas também entram nos ouvidos do público e melhor entram ainda no coração do povo-entidades que distingo tanto quanto distingo o frequentador dos cafés e das esquinas das cidades do cavador dos nossos campos.
Perdoem-me V. Ex.ªs estas filosofias, que resultam do tal receio de que os «grémioss sejam tomados pêlos aneo-
-jasuitas» das nossas vidas.
Tudo isto veio a propósito de querer dizer que a excessiva, embora aparente, generalização dos defeitos pode induzir em erro e, por isso mesmo, redundar em pessimismo que não se justifica.
E porque nem posso abarcar o largo âmbito do inquérito, nem, se pudesse, teria tempo para o fazer, reduzo-
-me ao campo da acção sindical e do funcionamento dos organismos sindicais. Quando digo sindical englobo tudo que é de trabalhadores, sejam do campo, das oficinas, dos escritórios ou das lojas.
Mas antes quero anotar que nem só a parcimoniosa relegação das virtudes ou a falta de menção de algumas
- e das maiores - dá lugar a essa aparente generalização dos defeitos.
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Em si mesmo, o relatório, na impressão final que resulta do conjunto e no referir de certos particulares, dá-lhe causa.
Este é um facto curioso de referir. Não há dúvida de que a propósito da análise dos defeitos, dos erros e das faltas há sempre ou quase sempre um emas», que explica muitas, quando não as justifica. Não raro aparece a restrição de que se trata de alguns casos, culpas de alguns, desvios que não são da totalidade, procedimentos «típicos» mas não gerais.
Contudo a impressão final é, não sei porquê, de forte arrastamento no sentido da generalidade.
Acresce que o próprio relatório a deixa firmada em certos passos, numa primeira leitura.
Será porque o «mas» ou a restrição não é suficientemente ampla, como parece que se impunha por vezes?
O fenómeno será de ordem psicológica?
A verdade é que se verificou no espirito de todos com quem tenho trocado impressões, muito embora todos também reconheçam que uma mais cuidada leitura do relatório afasta em muito aquela impressão de conjunto. Mas leituras repetidas e cuidadas não as faz a maioria. Isso é só preocupação de poucos.
E vamos ao pior, que é o agravamento deste facto com o de não se referirem grandes e proveitosas realizações da organização corporativa, as quais me pareceria ter sido conveniente pôr em face dos seus desvios. Como disse, confinar-me-ei, por falta de tempo, de exame e de ponderação total, a uma só parte do trabalho: a organização dos trabalhadores.
O relatório, a p. -(17), tem um apontamento, um ligeiro apontamento, referente aos sindicatos. São cinquenta e uma linhas, a meia coluna, como soem ser as do Diário das Sessões.
Claramente, começa por afirmar que não se estudaram os sindicatos. Percebe-se: não se estudou o seu funcionamento.
Mas acrescenta logo que se pôde considerar a acção da organização no aspecto social.
«Considerar» é o que se diz e convém sublinhar já.
E imediatamente refere que aquela acção se considerou com uma forte impressão de assombro.
Daqui até ao fim da 51.º linha seguem-se apenas quatro coisas: a citação dos números mestres da acção previdencial em 1945 e 1046, a nota de que tudo se fez partindo do zero e de que os trabalhadores não agradecem. Para findar o apontamento, os do social, que é como quem diz os do Instituto Nacional do Trabalho, levam também a sua conta, para não se fugir à regra: nem mais nem menos que uma tremenda surra pelo feio pecado do fanatismo.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá licença? Ter uma religião não ó ser fanático...
O Orador: - V. Ex.ª já se esqueceu do termo que usou junto ao termo «religião» : «radicalismo»...
O Sr. Mário de Figueiredo: - Não sei se lá está o adjectivo «saudável». Se a comissão o não escreveu, lá teve as suas razões...
Asseguro-lhe que no meu espírito está sempre a ideia de que uma certa forma de radicalismo é saudável.
O Orador: - Que pena esse pensamento não estar consignado no relatório!
- E o delito consistiu, diz-se, em se ter sido dominado pela ideia do primado do social sobre o económico, em perfeita atitude de radicalismo, que foi fruto do abandono da preparação económica que eles, os do social, deviam buscar e não buscaram, e da sua impassibilidade feroz ao impor encargos às empresas que excederam o condicionalismo da nossa economia.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Não está lá nem «impassibilidade» nem «feroz». Mas o que lá está é a verdade.
O Orador: - Não está, mas subtende-se sem esforço.
A atenuar a condenação, lá vem por fim a nota amiga e, no fundo, reveladora da camaradagem espiritual dos inquiridores, de que esses tais têm no peito o calor do apostolado social e realizaram a sua religião.
E mais nada. Quanto aos sindicatos, mais nada.
O Sr. Cerveira Pinto: - Esse radicalismo que s comissão aponta parece-me ser exaltador e além disse dá conta de uma das grandes virtualidades do regime em que vivemos, pois mostra que ao lado dos conservadores estacionários podem existir os sociais-progressivos.
Não se pode, pois, dizer que vivemos em partido único
O Orador: - Já faço a minha profissão de fé a esse respeito.
Eu não sei, Sr. Presidente, que atitude justificará este passo apressado do relatório da comissão: se um cai de braços, triste, desalentado, dos que dobraram « muitos anos na tarefa do social, se o despedir de um grito de inconformidade perante tão inesperada injustiça praticada afinal por homens justos.
Mas porque não é por ora a altura de falar dos senti mentos, vamos a outras realidades.
Se a comissão tivesse condicionado sempre e só o sei trabalho à indicação dos vícios, compreendia-se que t capítulo dos sindicatos nada mais contivesse do que a: cinquenta e uma linhas e o seu escasso conteúdo.
Mas a comissão foi em muitos passos esclarecida m considerar dos grandes inconvenientes que, em justiça pura e em política, resultariam de tal procedimento. Por isso não se aceita facilmente o método seguido nest parte do seu trabalho. Esperemos que se conheça a sua razão.
E ponho já em relevo a gravidade da posição assumida, porque estou intimamente convencido da necessidade de emendar o desvio ... este da comissão.
Não há meio industrial no País, fábrica ou oficina loja ou escritório, onde a insatisfação não tenha? Sobre esta e em muitos casos, quase sempre - digamos - a recusa do reconhecimento pelo bem recebido. Nem quero chamar-lhe ingratidão para não se supor que alguma vez se desejou o agradecimento.
E a verdade é que o assunto da política social tratada pela maneira por que o faz a comissão parece confirme as vozes e as recusas de espírito de que falo. Párect não confirma, mas lá fora dir-se-á o contrário.
Não basta afirmar a forte impressão de assombi causada pelo reconhecimento da acção social o acrescentar alguns números da previdência.
Era preciso que a comissão testemunhasse, é precit que a Assembleia Nacional testemunhe à Nação, ser representada, que aquela acção é já uma grande realidade, uma grande e nunca acabada obra.
A comissão poderia ter-se dado à tarefa de indagacerca do funcionamento dos organismos sindicais. E t não digo deveria porque tenho em grande respeito intenções dos homens que a compõem, intenções emocionadas na realização pelo tamanho excessivamente grande da empresa que lhes foi cometida e pelo tem; aflitivamente reduzido de que dispuseram para o encargo
Não pode caber-me a mim, sob pena de ser considerado procurador em causa onde também pus um esforço embora diminuto, o apontar em números e em factos realizações da nossa organização social. De resto, está à vista e não são poucos os adversários que o reconhecem. Mas não tenho pejo de afirmar que ela só por se mais não houvesse, justificaria a existência da organização corporativa e seria dirimente das suas falt;
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E o que pesa profundamente na consciência da minha missão de Deputado é a necessidade de se reconhecer que o peso das soas enormes realizações excede em muito o peso de alguns desvios.
Não pode caber-me a mim -repito-, sob pena de ser réu do delito de premiar a obra em que afinal também coloquei um desajeitado- tijolo, não pode caber-me a missão de desenhar aqui o edifício construído.
Mas há pelo menos uma parte que tenho de pôr perante os olhos de V. Ex.ªs Com o ser Deputado da Nação como V. Ex.ªs, o não fazê-lo deixar-me-ia condenado em minha consciência.
Não aludirei a mais, mas isso terei de dizer.
Refiro-me, Sr. Presidente, aos efeitos sociais dos contratos colectivos de trabalho.
Não os quero considerar propriamente como instrumento jurídico da regulação de direitos e deveres. Isso ó a acção directa através daquilo que se fez, de que fala o relatório. Quero aludir a certos efeitos sociais, ou seja à acção indirecta através daquilo que ela tornou possível.
Em geral não se estima o beneficio da paz social proveniente desses contratos. Mas chega a parecer que a comissão também o não estimou.
Desde a celebração dos primeiros contratos colectivos, juntando-se cada vez mais aos anteriores, decorreram anos, e já não são poucos aqueles em que o País se viu livre das greves, que imobilizavam quase todas as suas actividades económicas e até os serviços públicos, e dos tumultos, que lhes faziam companhia fiel.
A luta de classes entre os patrões e os trabalhadores deu noutro tempo desassossego do público, perdas das empresas, inquietação das populações, aflições das mulheres, das mães e dos filhos, sangue, punições, ódios cada vez mais fundos, diminuição da autoridade, desprestígio dos Governos, empobrecimento da economia nacional, enfraquecimento do Estado.
Essa luta de classes foi substituída pela luta, esta desejável, no estudo e na realização das convenções do trabalho, em combates que não precisaram, para terreiro, de outro maior do que a área de um gabinete de trabalho.
E o País goza da paz social que emana de todas estas realizações, sem que se aperceba de que não era com a polícia que ela poderia ser construída.
Que o público ou mesmo o Pais, à força de sentir o benefício, já não dê pela sua origem ainda aceito. Que a Assembleia Nacional não o proclame não creio. Que a nossa comissão de inquérito não o tenha apontado como grande virtude do sistema e sua indiscutível realização não compreendo.
E mais do que tudo, não aceito por modo algum a concepção de que isto se tenha conseguido à força de um radicalismo fanático que impôs o primado do social sem estremecer perante a fraqueza da nossa indústria, do nosso comércio e da nossa agricultura.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá-me licença para um parêntese?
Eu gostava que V. Ex.ª esclarecesse, já não digo a comissão, mas a Assembleia sobre isto: se realmente não valerá mais esse radicalismo fanático do que a espécie actual de burocratização a que estamos a assistir ?
O Orador: - Disse há pouco a V. Ex.ª e repito: eu já vou fazer a esse respeito a minha profissão de fé.
Parece que a comissão ignora ou esquece que os contractos colectivos são assinados pêlos organismos representativos das actividades; que os acordos são assinados individualmente pelas entidades patronais que a eles querem sujeitar-se; que as comissões de estudo dos despachos de salários mínimos são constituídas por lei, com representação destas entidades e com representação, quase sempre na sua presidência, dos Ministérios económicos
respectivos, e que, mesmo assim, as disposições das comissões têm sofrido, antes de aprovadas, as correcções cautelosas impostas pêlos membros do Governo que as estudam, sancionam ou despacham e, depois de entrarem em vigor, as cautelas de aplicação das comissões arbitrais e dos tribunais de trabalho.
O Sr. Bustorff da Silva: - V. Ex.ª refere-se aos princípios consignados na lei ou à forma como muitas vezes são efectivados?
O Orador: - Refiro-me ao processo de ajustamento dos contratos e à fiscalização a que é sujeita a sua aplicação, tudo feito tendo em conta, entre o mais, o evitar tais radicalismos.
Muito havia u dizer a este respeito, mas o tempo não chega.
Parece que a comissão ignora que algumas convenções colectivas não estão celebradas, outras não foram alteradas e certos despachos de salários mínimos não foram proferidos por se ter verificado em estudos exaustivos que constam dos arquivos do Instituto Nacional do Trabalho a impossibilidade ou a inconveniência económica momentânea da sua aplicação.
Para findar esta parte do meu arrazoado, apenas uma declaração.
Não sei o que pensa a comissão acerca do primado do social em nosso tempo, nem tenho o direito de o saber.
Por mim declaro abertamente que o professo, mas não com os extremismos de acção que o relatório imputa aos do apostolado social. Eis a profissão de fé de que já falei.
E porque aqueles professam também a fé desse primado, agradeço à comissão, por eles e por mim, e agradeço ao sen presidente terem reconhecido a nossa sinceridade e a persistência da nossa vontade. Poucas vezes ouvimos um louvor. Em geral somos açoitados de uma banda e de outra.
O acharmos imerecidos alguns juízos da comissão de inquérito não nos impede, porém, de aceitarmos o magnífico espírito com que profere outros, os quais recolhemos como coisas preciosas no fundo dos nossos corações de crentes, missionários da justiça social.
Segue-se na parte do relatório em que pude tomar algumas notas o capítulo respeitante às Casas dos Pescadores e do Povo.
É reconfortante o que só diz relativamente às primeiras. Constitui o reconhecimento e a sanção da sua notável obra. Ainda bem que o principal operário, o comandante Tenreiro, se encontra nesta Assembleia, para aqui mesmo ter a consagração justa do seu mérito, do seu sacrifício e da sua fé de pioneiro da acção social junto dos pescadores.
Mas o acabo dos trabalhos está na parte referente às Casas do Povo.
A mesma generalidade excessiva quanto à verificação e atribuição dos defeitos e o mesmo pessimismo a resultar de tal generalidade.
Há que reconhecer, contudo, e com o relatório, que, de facto, um grande número de Casas do Povo não corresponde aos seus objectivos e que ó preciso vitalizá-las, como se diz agora, e impulsioná-las.
Levando uma vida vegetativa relativamente aos fins que deviam prosseguir e não prosseguem, porque, devendo ser fonte de acção espiritual, são apenas assim como que pequenas repartições burocráticas, essas mostraram-se até agora incapazes de seguir a magnífica ideia que as imaginou. Essas -direi- são muitas, mas não o maior número o estou longe de aceitar quo a sua identificação se faça. para o efeito, com um simples traço que divida o mapa do continente em duas regiões: a das Casas do Povo más e a das Casas do Povo aceitáveis.
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Julgue-se o que se julgar, todas têm sido, na medida do possível, constantemente observadas, seguidas e acarinhadas pelo Subsecretariado das Corporações. Lembro, para melhor informação do que afirmo e entre o muito que poderia citar, o decreto de Agosto de 1940 e o de Janeiro de 1945, que criou a Junta Central das Casas do Povo.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Simplesmente esses problemas não se resolvem com decretos.
O Orador: - Eu já vou dizer que não é só com decretos.
Esse último diploma significa o reconhecimento da necessidade de criar um órgão orientador que vigie pelo espirito dessas instituições e de fiscalizar a sua mecânica pêlos serviços do Instituto.
A Junta Central tem trabalhado nestes dois anos com a mesma preocupação permanente de corrigir erros e de suprir deficiências e já tinha atingido conclusões que se aparentam até certo ponto às da comissão, verificando algumas causas que ela aponta e outras até mais profundas.
Assim, já reconheceu a necessidade de uma organização que põe em causa as próprias concepções fundamentais da estrutura das Casas do Povo. Possui hoje os elementos indispensáveis à definição de novas directrizes na matéria. Não se entendeu, em todo o caso, que, num assunto que exige tanta ponderação, fosse possível ensaiar novas soluções sem se fazer o balanço completo dos resultados obtidos até aqui. Para tanto está em curso um inquérito completíssimo que abrange todos os aspectos da actividade das Casas do Povo e que permitirá avaliar do produto da sua acção numa primeira fase de existência, da qual se terá de transitar para uma outra em que, recolhida a lição da experiência, se poderá prosseguir com mais certeza.
Não podemos esquecer que nisto, como no mais, em obras como em experiências, em montagens de sistemas como em preparação de dirigentes, em propaganda como em estudos, se partiu sempre do zero. E o zero nesta matéria existia ainda há treze anos.
Menciona a comissão a vantagem de encerrar as Casas do Povo cujo funcionamento se tenha mostrado inútil ou perturbador da vida local.
Devo esclarecer que esta orientação vem sendo há tempo seguida. São vinte e três as Casas do Povo suspensas por despacho e cinquenta e uma as dissolvidas. Desde a criação da Junta Central os organismos nessas situações são respectivamente de doze e de seis.
Contudo e a esse respeito há alguma coisa de importante para que devo pedir a atenção da Assembleia.
Dissolver uma ou mais Casas do Povo não deve significar que se prescinda definitivamente de levar a organização dos trabalhadores rurais à maior extensão possível.
Esta organização ou vive pela dispersão ou não atinge os seus fins.
Não se quer afirmar com isto que cada freguesia deva ter, forçosamente, uma Casa do Povo. Mas quer-se dizer que a organização falharia, por inadaptável, se não pudesse alastrar-se por modo a cada vez abranger uma maior extensão territorial e, assim, um maior âmbito de beneficiários.
Não há, pois, que desistir de a levar a toda a parte. Há que criar meios de o conseguir e de voltar à tentativa e de insistir, sempre que se reconheça o ensejo. Assim deverá ser enquanto estivermos convencidos da sua legitimidade e da sua utilidade.
Concorda-se, porém, em que a criação duma Casa do Povo exige, mesmo quando é desejada, uma forte preparação no sentido de lhe formar ambiente. Isso pressupõe a acção pessoal, a presença e o esforço dos delegados do Instituto. Atribui-lhes a comissão o erro de terem fundado instituições destas sem esse trabalho prévio e filia esse facto na convicção daqueles de tal não ser preciso, porque as Casas do Povo, só por si, pela sua acção, se haviam de impor.
Não contesto o acerto da observação, que não se adapta, porém, ao caso de todas que falharam, porque quanto a muitas houve esse trabalho prévio.
E acrescento que, quando ele não se faz, isso resulta quase sempre não da razão que a comissão aponta, mas da circunstancia de os delegados, absorvidos pelo enorme despacho do movimento das delegações, actividade burocrática que se criou, não por prazer, mas dado o volume e a complexidade dos assuntos, e além disso presos a um orçamento que lhes assegura uns escassos 350$ mensais para transportes, não poderem quase sair das suas repartições e privarem-se assim, cheios de desespero, da única acção que realmente os entusiasma e sempre preferiram.
Ficam amarrados ao gabinete quando a sua preferência sempre foi a de irem à oficina, à freguesia, à Casa do Povo e chegam a pagar do seu bolso as custosas despesas de transporte que o Estado não lhes assegura e cujas verbas realmente diminuem de orçamento para orçamento, porque não sobem com o aumento do custo das viagens e com a necessidade de cada vez mais numerosas deslocações.
E veja V. Ex.ª, Sr. Presidente, e vejam V. Ex.ª, Srs. Deputados, se neste caso também é de atribuir aos dirigentes a culpa da falta!
Há um facto importante sobre que devo esclarecer a Assembleia.
Julgou-se necessário estudar com particular cuidado o problema da assistência médico-farmacêutica aos sócios das Casas do Povo e suas famílias, problema sobre o qual parece não se ter demorado a atenção da comissão de inquérito, mas que tem importância capital. Escusado é mencionar as razões da afirmação.
Por iniciativa da Junta Central está-se procedendo a um inquérito sobre a matéria, o qual servirá de base a um estudo do Conselho Superior da Previdência Social.
Também se deu conta do problema das quotas, a que se refere a comissão de inquérito. Por portaria de Dezembro de 1944 foi nomeada uma comissão para o estudar e propor a solução conveniente. A comissão já apresentou o seu relatório, e se, por ora, não foi modificado o regime existente, foi, com certeza, por se entender que se impunha uma revisão profunda do Estatuto das Casas do Povo, revisão em que se integra e enquadra esse aspecto particular, que não devia ser isoladamente tratado.
Do esforço da Junta Central, que se não limita à eseculação sobre o sistema, já se vão colhendo benefícios e vulto, resultados esses de que a comissão, se tivesse tido mais tempo, se teria certamente apercebido.
Por isso devo referir-me também ao que se tem feito no campo cultural, ou seja à coordenação e orientação das actividades educativas e recreativas das Casas do Povo, realizadas por directivas particulares, pela instituição de prémios literários, pela publicação de um mesário que assinala notavelmente a sua presença nos meios rurais e que conseguiu já uma efectiva penetração.
Encarou-se o problema, tão difícil, da leitura para a gente do campo e não se têm poupado diligências para o resolver.
É que, no fundo, não se trata apenas da estrutura dos organismos, de uma melhor ou pior actuação dos seus dirigentes, das reacções locais e das ambiências geográficas. Há um problema mais profundo, que diz respeito ao espírito das instituições, e esse não se resolve unicamente com decretos de significação confinada. E também não é possível, num sector confinado e dispondo dos meios
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escassos que a comissão lucidamente reconheceu, realizar aquela transfiguração por que todos nós ansiamos.
O Sr. Cerveira Pinto: - Essa transfiguração das Casas do Povo só pode obter-se mediante dinheiro.
No fundo, o que há é um problema de dinheiro e também de direcção.
O Orador: - Não é só isso.
O Sr. Cerveira Pinto: - As Casas dos Pescadores são vinte e seis e têm 21:000 contos, porque para lá todos pagam, ao passo que as Casas do Povo são quinhentas e o fundo comum dessas instituições é constituído, na mais optimista das hipóteses, por uns ridículos e esganados 5:000 contos.
O Orador: - Na verdade, estamos numa situação tal, quanto à receita do fundo comam das Casas do Povo, que, ou não consentimos que outras se fundem por ora, ou então o rateio daquele fundo dará quantias insignificantes.
O Sr. Cerveira Pinto: - Mas deixe-me V. Ex.ª dizer-lhe o outro motivo por que muitas Casas do Povo têm falhado, e que consiste em se persistir no delírio romântico-corporativo de entregar as direcções desses organismos aos sócios efectivos.
Estou convencido de que não há em Portugal um único trabalhador rural que esteja à altura de dirigir uma Casa do Povo.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Cortês Lobão: - É essa exactamente a razão da diferença de funcionamento
entre as Casas dos Pescadores e as Casas do Povo.
O Orador: - Também não ó só essa a razão da diferença. Não me chega, porém, o tempo para me alongar em explanações que são na verdade tentadoras. Excedi-me no tempo que tomei à Câmara. Releve-me da falta o entusiasmo pelo assunto, entusiasmo que V. Ex.ª, Sr. Presidente, e V. Ex.ªs, Srs. Deputados, absolverão generosamente.
Foi meu intuito até agora demonstrar que o relatório, umas vezes por insuficiência da explanação dos benefícios, outras por excessiva generalização dos defeitos, pode induzir em erro na apreciação da organização corporativa, no julgamento da sua acção e efeitos.
Não me queixo disso. Sinto apenas a amargura do facto.
Mas queixo-me, sim, de uma grave injustiça que nele se comete, tanto mais grave quanto é certo que -repito- os homens que o assinam são homens justos.
Em poucas palavras direi qual é o meu pensamento.
A Revolução Nacional tem já um património espiritual, que criou.
E dela faz parte sem dúvida, sua grande parte, tudo isso que a organização corporativa, a sua ética, os seus objectivos de engrandecimento nacional, levantaram em todo o País.
À volta desta ideia, atraídos por ela apaixonadamente, juntaram-se valores morais indiscutíveis.
Simples operários que nenhuma ideia seduzira, jovens professores do aldeia, párocos sequiosos de justiça social para os seus rurais, gente saída das Universidades, homens das oficinas desiludidos de velhas e traiçoeiras teorias, velhos proprietários a quem um século de liberalismo não embotou a sensibilidade patriarcal e a noção do que é ser chefe, engenheiros cansados dos tumultos das fábricas, dirigentes sindicais, pequenos chefes de
aldeia, industriais convertidos a um ideal de que gostariam de ter beneficiado quando operários - todos estes são os muitos, embora muito menos do que os precisos, que vieram até à nossa chama.
Sacrifícios desde as horas de repouso do empregado dadas ao sindicato até ao dinheiro ou à fiança comprometidos em garantir a acção do grémio.
Dedicações que se traduzem na permanência de anos em lugares que nada rendem e onde, ao contrário, se é apontado pelo vulgo ou pelos beneficiários como imbecil, como traidor ou como vendido. Dedicações representadas pela inteira doação da vida em acarretamento durante anos a lugares de minguada retribuição, quando lá fora se abriam possibilidades reais de lucrativos trabalhos.
Luta contra as incompreensões. Recompensa em insultos o ameaças e suspeitas.
Com isto tudo e mais e pior, infelizmente, se caldearam as vontades dos que, pouco a pouco, formaram a hoste dos apaixonados pela ideia corporativa e que estão firmemente dominados pelas mesmas convicções do princípio. Estes não têm culpa dos desvios e dos vícios. O movimento em que entraram, sem dúvida o mais forte movimento espiritual da Situação, é, como já disse, património desta. Constituo força de que dispõe e ideal que lhe pertence.
A arrancada desses, em 1933, fica bem ao pé da arrancada do 28 de Maio.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Lutaram e com isso engrandeceram o espírito da Revolução Nacional. Outros tiraram proveitos materiais ilícitos que às mãos daqueles nunca foram, pois estão limpas da mácula do dinheiro mal ganho e nunca conseguiram amealhar sequer o necessário para uma doença. Não cometeram desvios e, se alguns erros se lhes podem assacar hoje (tão fácil é corrigir agora o que já está experimentado!), ninguém os apontava até há pouco, ninguém os apontava ontem ainda.
Pois bem:
No relatório da comissão nem uma palavra a respeito desta forte contribuição, talvez a maior para o património moral da Situação.
Chega a parecer que não se deu em Portugal movimento de tão forte espiritualidade. Chega a parecer que ninguém estima o contributo moral formidável que para a vida da Nação constitui essa disposição extraordinária de inteligências e de almas.
Eu não quero crer que a comissão tenha esquecido tão extraordinário movimento, que não morreu, que há-de frutificar mais, nem quero crer que até ao fim persista no seu quase silêncio a esse respeito. Mau foi - passe o arrojo do conceito, desculpe-se a sinceridade com que se põe tal convicção -, mau foi que não tivesse proclamado no seu relatório esse valor inestimável como o maior crédito, a maior realização e p melhor efeito da organização corporativa.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Henrique Galvão: - Sr. Presidente: como é natural, dada a posição que ocupo na Câmara, a minha intervenção neste debate não abrange a totalidade do conteúdo do relatório de inquérito aos elementos da organização corporativa.
Como Deputado por uma colónia, são os interesses coloniais que me preocupam - evidentemente no quadro dos interesses da Nação - e são, por consequência, eles que determinam as minhas intervenções.
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E, assim, da questão em causa tomarei apenas a parte que diz respeito à coordenação económica entre a metrópole e as colónias, na esfera de acção e influência dos elementos da organização corporativa que se chamam os organismos de coordenação económica dependentes do Ministério das Colónias. f
O que se me oferece dizer - declaro-o desde já - não discorda da matéria exposta no relatório da comissão; pelo contrário, apenas pretende desenvolver pontos enunciados, com o propósito de alcançar certa finalidade que não figura entre as conclusões do referido relatório.
Proponho-me,- enfim, tratar, no âmbito das ideias e factos que resultam dos trabalhos da comissão de inquérito, a nossa situação perante os princípios fundamentais de solidariedade económica da metrópole e colónias, n acção dos organismos criados, de harmonia com tais princípios, com objectivos coordenadores e deduzir dos factos do seu funcionamento a ideia da sua reforma orgânica e funcional.
E, assim, conforme, aliás, sempre julguei, não há senão na forma diferença sensível entre a minha intervenção de hoje e o aviso prévio que anunciei em princípios do mês passado. Na verdade confundem-se.
Propositadamente tentarei manter as minhas razões no nível de compreensão do homem da rua.
Sr. Presidente: principiarei por afirmar a minha convicção quanto às enormes dificuldades que se opõem à instituição de um sistema orgânico de coordenação económica imperial, prático, realizador e aproximadamente perfeito - desde as dificuldades levantadas pelas nossas dependências económicas insanáveis até às dificuldades verdadeira e não verdadeiramente atribuídas ao estado de guerra no Mundo e a outras de que só podemos acusar os nossos próprios defeitos.
São enormes e, por vezes, implacáveis.
Coordenação económica compreende, evidentemente, a melhor combinação das partes coordenáveis para o melhor aproveitamento e rendimento das riquezas e actividades de cada uma e do conjunto. Mas compreende também, do ponto de vista que visa este objectivo do «melhor rendimento», a coordenação prévia dos elementos económicos das próprias partes coordenáveis, isto é: que cada peça do sistema se constitua, ou tenha constituído, para funcionar perfeitamente no jogo em que tem de entrar com as demais..
Ora a verdade -e isso constitui uma das mais sérias dificuldades para a instituição de um sistema orgânico de coordenação perfeitamente eficiente entre a metrópole e as colónias- é que a condição, prévia ou simplesmente necessária, da coordenação (digamos apenas organização económica) dos elementos de cada colónia e da metrópole não está realizada. Quer dizer: cada uma cias partes não levará ao conjunto os valores importantíssimos de uma organização própria. E, assim, funcionariam dentro do sistema como funcionariam numa máquina de precisão peças mal acabadas.
A metrópole, ou antes, a economia metropolitana tem-se alheado por demais do concurso das colónias e, constituiu-se, por vezes, contra as colónias, deixando prosperar interesses cujo interesse é a descoordenação. Por sua vez as colónias atrasaram-se como produtoras e também criaram certos interesses que se opõem ao jogo fácil dos elementos a coordenar. Estabeleceram-se desta maneira alguns antagonismos económicos que, evidentemente, não se limam nem se eliminam por força de simples decretos.
E por mais que o tempo se tenha posto contra nós, visto que temos de andar depressa e não continuar luxuosamente a perder as oportunidades em enleios burocráticos, a verdade é que não se resolvem sem tempo, nem o tempo as respeitará se o dispensarmos...
Temos de um lado uma economia metropolitana, evidentemente errada, quanto à posição e realidades (não só económicas, mas também políticas) da metrópole perante as colónias. Temos do outro lado economias coloniais, não menos erradas e fortemente inferiorizadas pelas condições técnicas e sociais da produção, pelos desacertos de uma política aduaneira incompatível com uma política colonial de povoamento e produção; com a burocratizarão dos serviços; com as falhas e encargos dos sistemas de transportes; com a falta de crédito colonial (não confondamos com a organização de crédito actualmente ao serviço das colónias e à qual não pode chamar-se de crédito colonial); finalmente, para não referir senão grandes causas, inferiorizada também pelas irregularidades, surpresas -e às vezes violências- das suas dependências da metrópole.
Citemos como realidades ou exemplos da situação desacertada assim expressa por agora apenas como ilustrações de facto que auxiliam a sua compensação - para não citar senão alguns dos mais salientes:
A insistência com que se considera o problema da colonização interna na metrópole, independentemente do problema do povoamento europeu nas colónias: enquanto a metrópole procura angustiosamente terras para a gente que já a excede, as colónias procuram aflitivamente gente para as terras que lhe sobram. E não há maneira de se considerarem estas duas necessidades, senão tornando-as inconciliáveis com razões que nenhuma razão prática e substancial aceita.
Concebeu-se, e principiou a executar-se, um plano de renovação da frota mercante sem que fossem consideradas algumas realidades pungentes da produção colonial, cujo desafogo depende, em grande parte, da economia e perfeita adaptação técnica do sistema de transportes à sua feição e possibilidades.
Já o ano passado o disse e sustento: resolveu-se o problema com mais atenção aos interesses da marinha mercante que aos interesses das colónias e do consumidor metropolitano. Aguardo pacientemente que os resultados demonstrem que tenho e tinha razão.
Outro exemplo: neste momento grave de penúria e de dificuldades de abastecimento, perdida, por falta de coordenação a oportunidade rara de organização económica que a guerra nos concedeu - importamos carne e gorduras da Argentina e da Dinamarca, trigo da América, batatas da Noruega, arroz do Brasil, etc., a preços e em quantidades que dominam preços e quantidades da produção interna. E verificamos ao mesmo tempo que alguns países duramente flagelados pela guerra se desembaraçam de dificuldades e caminham para a normalidade dos preços, quantidades e transportes em condições que nós, país colonial, ainda não realizámos.
Um último exemplo: na metrópole os problemas de produção, nomeadamente os agrícolas, agitam-se como doenças crónicas. Nas colónias os mesmos problemas ainda não se orientaram praticamente para soluções civilizadas. Entre uns e outros quase não existe relação. Existem antagonismos: o antagonismo do arroz, o antagonismo dos cereais, o antagonismo das carnes, o antagonismo das conservas, etc., levantando-se como obstáculos contra as possibilidades de coordenação.
Produz-se caro e produz-se mal, porque em cada uma das partes tudo é pequeno ou incipiente e não existe um sentido de conjunto que as engrandeça e faça progredir. Esta pequenez e esta insipiência não permitem produzir bem nem produzir barato. E daí uma pobreza aflitiva, que, digamos, naturalmente se desorienta, «m ganância e especulação, quando circunstâncias extraordinárias como a guerra lhe valorizam transitoriamente os produtos.
Não vale a pena citar mais factos nem exemplos. Os que citamos lembram automaticamente outros.
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E quem anda na rua - o homem comum - encontra-os dia a dia e pergunta, sem compreender, na metrópole e nas colónias, de que nos serve sermos um país colonial, de que nos serve sermos um império?
Voltemos ao ponto de partida: é muito difícil, enormemente difícil, conceber e realizar a coordenação económica de partes assim desorganizadas ou reduzidas como valores coordenáveis.
Mas, por mais difícil que seja, tem de fazer-se frente à situação: não para a bater de um só golpe com o elixir de uma orgânica publicada no Diário do Governo, mas também não improvisando perante as dificuldades ou procurando ganhar tempo com tentativas desarticuladas.
Temos um longo caminho a percorrer, mas é necessário que entremos no verdadeiro caminho e dele não nos desviemos, sejam quais forem os interesses criados na descoordenação, sejam quais forem as razões invocadas pelo receio das dificuldades.
E o verdadeiro caminho é só um: o do respeito, da obediência e do cumprimento dos princípios de solidariedade económica expressos no Acto Colonial - o caminho de providências e realizações em que a solidariedade deixa de ser uma palavra gritante para se transformar em programa de acção.
Não basta dizer e escrever solidariedade. E preciso fazer solidariedade.
O regime encontrou já, criada e instalada, como vício orgânico da economia portuguesa, esta situação de desacerto entre as economias da metrópole e das colónias e os erros que, do ponto de vista da solidariedade imperial, inferiorizam as partes constitutivas do Império. Agravavam-na então a desordem financeira, a instabilidade das moedas, os desmandos do crédito e as dificuldades naturais resultantes de uma ocupação militar e administrativa recentemente concluídas.
Talvez porque o mal vinha de longe e tinha constituído na sua vigência, nas almas e bestuntos portugueses, uma maneira de ser geral distanciada das realidades imperiais da Nação, isto é, talvez porque em Portugal há muito tempo se não pensava imperialmente, os esforços do regime, no seu impulso inicial de ordem e ressurgimento (e o tempo também), eliminaram ou corrigiram as agravantes da situação. Mas o espírito que adivinhava e sentia o próprio mal - a descoordenação - nas suas manifestações, desnudadas por entusiasmos de propaganda, não pôde, de um modo geral, exceder o enunciado de algumas fórmulas e ideias que o sentimento comum, demasiadamente metropolitano, e os interesses por ele criados não consentiram que vingassem. E assim, embora elevadas e melhoradas algumas condições prévias, a realidade continuou a ser a descoordenação. A economia imperial continuava a mover-se segundo um sistema de compartimentos estanques - por vezes, e à luz de certos factos, como se metrópole e cada uma das colónias fossem apenas um conjunto de países politicamente federados mas economicamente independentes. Era assim em economia liberal e assim continuava a ser em economia dirigida.
Esta descoordenação era clara entre as partes do conjunto e também na própria organização das partes constituintes. Ainda recentemente o nosso ilustre colega Dr. Pacheco de Amorim, no decurso da sua lição magistral sobre a política monetária, demonstrou como na metrópole se tornou evidente, em certa altura, a descoordenação entre a política de estabilização de câmbios do Ministério das Finanças e a política de estabilização de preços do Ministério da Economia - do que resultou o hibridismo de uma política de gabinete, com sérias consequências sobre os problemas que ambos pretendiam resolver. Nas colónias também qualquer observa o desentendimento, por exemplo, entre a acção dos serviços de Fazenda e os serviços técnicos, dos serviços de saúde e os serviços administrativos e até, dentro de alguns serviços, como os administrativos, a descoordenação entre a administração civil propriamente dita e os negócios indígenas.
Nesta descoordenação intrometiam-se facilmente, perturbando o jogo das possibilidades económicas e constituindo erros políticos deploráveis, certas violências exercidas por interesses económicos muito metropolitanos sobre as colónias, certamente de interesse para alguns, mas, evidentemente, contra o interesse geral.
Constituíram casos de pura descoordenação a questão das carnes, a política do arroz e dos cereais, as dificuldades por tanto tempo opostas à industrialização das colónias, a desorganização da marinha mercante imperial, etc., como os constituem ainda alguns absurdos vigorosamente sustentados por interesses privados contra o interesse geral e que ninguém entende, por mais que se expliquem.
Cito alguns exemplos demonstrativos:
Em 1937, perante o receio de colheitas escassas de arroz na metrópole, foi assegurada a Angola a colocação de 5:000 toneladas deste produto no mercado metropolitano. A colónia, cuja produção, apesar de enormes possibilidades, se encontrava limitadíssima por falta de mercados, reagiu prontamente ao incentivo, correspondeu com a sensibilidade e entusiasmo que a caracteriza e produziu as 5:000 toneladas necessárias à metrópole. Mas estava o arroz pronto a ser carregado quando um telegrama lacónico, de patrão que não dá satisfações, a informa de que a metrópole já não precisava das 5:000 toneladas e que a colónia não devia contar com a colocação de mais de 1:500. Omito pormenores. O facto exposto assim, na sua máxima simplicidade, explica e ilustra - até porque não é facto isolado nem excepcional - em que termos se concebia a política imperial . do arroz e, em parte, porque razão temos de recorrer hoje ao arroz brasileiro, sem embargo de se continuar a envenenar as populações das regiões orizícolas da metrópole com o impaludismo-verdadeira moeda com que se pagam os benefícios de uma política de arroz fechadamente metropolitana.
Outro exemplo de protecção absurda a interesses metropolitanos - ou, antes, a alguns interesses metropolitanos ilegítimos - contra a produção colonial e o consumidor da metrópole encontra-se na chamada questão das carnes. Só nos lembrávamos das carnes de Angola quando não havia outro recurso de abastecimento, o que equivale a dizer que se estabelecia como regra a incerteza para os produtores de Angola, incerteza agravada ainda por todas as deficiências de transporte. Pois bem: mesmo estes fornecimentos aventurosos sofriam aqui as piores diabruras. E tentou-se impunemente desacreditar as carnes de Angola, contra todos os esforços dos exportadores para as valorizarem, indo-se ate ao ponto de se sujeitar o gado a regime de emagrecimento antes de entrar no matadouro.
Indo para exemplos mais recentes, actuais, talvez V. Ex.ª não ignorem que enquanto na metrópole falta aflitivamente o sabão, racionado em quantidades microscópicas, há fábricas em Angola que não podem exceder uma produção de 30 por cento da sua capacidade ... por falta de colocação para os excedentes do consumo da colónia.
E não ignoram certamente que, por via da mesma descoordenação, mais responsável que todas as dificuldades da hora presente, temos colónias que nos poderiam abastecer de trigo - e que o importamos do estrangeiro; que nos poderiam abastecer de óleos comestíveis- e que a nossa população não dispõe do mínimo de gorduras alimentares necessárias à sua saúde (enquanto na metrópole o azeite se raciona a 3 decilitros
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teóricos mensais por cabeça, demo-nos ao luxo de queimar em Angola e Moçambique milhares de toneladas de sementes de algodão); que nos podiam, enfim, fornecer todos os alimentos de que essencialmente carecemos- e que algumas delas dificilmente satisfazem as necessidades do seu consumo.
O panorama é o mesmo relativamente às matérias-primas.
Desta desarrumação económica resulta natural, automaticamente, uma situação de preços, ainda agravada pela procura em épocas como a actual, que ora se põe contra o produtor colonial para proteger interesses instalados na metrópole, ora se eriça contra o consumidor metropolitano para defender os chamados direitos de uma multidão- de intermediários - desarrumação e tão desarrumada» que o milho da Argentina pode chegar ao Tejo a preço mais baixo do que sai do Lobito, e os produtos coloniais, pagos na origem ao produtor a preços irrisórios, saídos das colónias e entrados no Tejo ainda a preços acessíveis, chegam ao consumidor (quando chegam) a preços intoleráveis. O milho de Angola, pelo qual o produtor indígena recebe, teoricamente, entre $40 e $50, realmente entre $30 e $40, é pago pelas classes pobres que o consomem a l$80. Sofre entre o produtor e o consumidor uma elevação de quase 600 por cento. O café, que se vende em Lisboa, ao balcão, a 25$ cada quilograma, sai de Angola, das mãos do produtor, a pouco mais de 2$. E o mesmo acontece com o feijão, a carne, o arroz, etc. Entre o produtor e o consumidor -7 os extremos do sacrifício e sobre os quais pesam todos os amargores desta desarrumação - ou antes: contra o produtor e o consumidor forma-se uma escala inacreditável de encargos fiscais, de taxas, de despesas de transporte, de lucros de intermediários, etc., que sendo manifestação clara de descoordenação, só por si explicam a prosperidade afrontosa de certos indivíduos e a miséria pungente de muitos mais.
E não há um poder coordenador que se exerça, oriente e domine a economia dos produtos, desde que se produzem até que se consomem.
Atribuo aos desacertos deste mecanismo, funcionando com peças desarticuladas -e não é difícil prová-lo-, responsabilidades na situação de carência e nos amargores sofridos pela população com o nível que os preços atingiram, pelo menos, tão directas e pesadas como as que aqui se atribuíram à inflação da moeda. E não compreendo que não se tivesse considerado então, durante o debate acerca da política monetária, - a medida em que a coordenação económica entre a metrópole e as colónias teria contribuído para reduzir o excesso de meios de pagamento a que se atribui quase exclusivamente o custo da vida em Portugal. E lamento que a política, ou simplesmente medidas de deflação, nos tenham de conduzir nesta emergência a comprar no estrangeiro tantas mercadorias essenciais que as colónias nos poderiam fornecer - e quem sabe! - a cultivar também nas colónias um problema grave de inflação.
Estas considerações, ou antes, estes factos brevemente alinhados, demonstram, sem necessidade de ir mais além, que o sistema de coordenação económica gizado na esfera dos Ministérios das Colónias e Economia para os produtos coloniais não correspondeu às intenções.
Forque se constituiu organicamente errado?
Porque funcionou mal?
Por uma e outra razão.
Convém examinar as causas da sua incapacidade perante os objectivos essenciais, com o espírito de ver claro quanto a ideias de reforma - as causas orgânicas e as causas funcionais.
Sirvo-me para isso dos elementos fornecidos, em síntese, .pelo relatório da comissão e relatórios das secções
em que se organizou e de elementos que requeri e outros de meu conhecimento directo.
Pela ordem de importância, julgo que o sistema de coordenação económica instituído pelo Ministério das Colónias, e praticamente desarticulado do Ministério da Economia (primeiro erro grave de organização coordenadora), ficou muito aquém dos seus objectivos e foi muito além dos erros e pecados que, por insuficiência orgânica, poderia justificar, pêlos seguintes motivos:
1.º Falta a esse conjunto de organismos, criado com nítido espírito de improvisação, uma direcção económica de conjunto vigilante, competente e activa. Teoricamente essa acção é exercido pelo Ministro das Colónias. Praticamente nenhum Ministro das Colónias a poderá exercer directamente, nem dispondo de dias de quarenta e oito horas. Demais, uma acção directiva verdadeiramente coordenadora da economia dos produtos coloniais tem de exercer-se também para além das fronteiras do Ministério das Colónias. Se assim não acontecer, o problema pôr-se-á, de entrada, em termos que não podem deixar de o condenar a promover a desarticulação de dois sistemas de meios, que são, na verdade, indissociáveis e complementares. A economia dos produtos só poderá defender-se eficazmente, em proveito de todas as partes intervenientes e com o mínimo de prejuízo para todos, e naturalmente para o País, comandados que sejam sob o mesmo critério geral todos os fenómenos que a condicionam, desde os que informam a produção até aos que se referem ao consumo, isto é, desde que consigamos articular as operações de produção e exportação nas colónias com as operações de importação e distribuição nos mercados consumidores.
Não existe hoje uma direcção económica activa e constante sobre a economia geral dos produtos-e não existe também porque os Ministros têm muitos outros assuntos de que se ocupar e são mais que, exclusivamente, directores de sectores económicos em cada uma das partes desarticuladas: Ministério das 'Colónias e Ministério da Economia.
Só assim se explicam os absurdos verificados no desenvolvimento da economia do algodão, café, milho, trigo, etc., e até o agravamento constante dos preços, nem sempre justificável pelas dificuldades da hora presente: desorganização na produção, nas indústrias, no comércio, sem outros meios, de correcção que não sejam improvisações precipitadas sobre problemas de emergência.
A coordenação principia por faltar o poder coordenador.
2.º Porque os organismos são vários, muito diferentemente organizados, independentes como compartimentos estanques, e todavia exercendo actividades que não podem nem devem considerar-se separadamente.
Existe uma junta imperial de exportação do algodão colonial. Tem a sua sede na metrópole (distante demais dos centros de produção e exportação para os poder comandar eficientemente na metrópole), onde a direcção económica do produto deixa de pertencer-lhe, para ser praticamente exercida pela comissão reguladora dependente do Ministério da Economia.
Quer dizer: pelo afastamento dos centros de produção e exportação diminui consideravelmente a sua capacidade de comando e direcção e onde está deixa de dirigir. Cede aí lugar a outra direcção, a outros critérios, a outros interesses, que, sob o mesmo produto, se desligam da direcção, critérios e interesses anteriores.
Existe uma. junta imperial de exportação dos cereais, que, não exercendo também funções de comissão reguladora e não tendo praticamente outro campo de actividade que não seja Angola, afastou de Angola a sua direcção.
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É certo que desta faz parte um delegado do Ministério da Economia, mas só teoricamente o sistema aparece assim articulado. A função do delegado é mais representativa do que prática. E, na verdade, pode dizer-se que pela sua acção pessoal -e só por ela- o Ministério da Economia intervém na junta. Mas, em contrapartida, a junta não intervém na economia do produto logo que esta se desliga do Ministério das Colónias. O que se passa com o milho nesta transição de C. I. F. Tejo para sua movimentação e aplicação na metrópole é simplesmente absurdo, e, contudo, a junta nada pode fazer para o melhorar.
Existe uma junta imperial de exportação do café, que, essa, exerce também funções de comissão reguladora, mas a experiência tem demonstrado que é mais sensível às forças da economia metropolitana do que às necessidades da economia colonial, certamente porque a sua direcção se encontra no centro daquela.
Todas estas juntas imperiais de exportação não impedem que haja ainda nas colónias de Angola e Moçambique, tutelando outros produtos, mais duas juntas de exportação, por sua vez completamente desligadas das comissões reguladoras de importação.
Cada um destes organismos trabalha, como disse, em compartimentos estanques. E tão diferenciados e independentes uns dos outros que nem tinham orçamentos semelhantemente organizados, nem pessoal igualmente atribuído, nem regras de funcionamento identicamente estabelecidas.
Assim, sendo agentes de coordenação de elementos indissociáveis da solidariedade económica do Império, só contribuíram para descoordenar e dispersar o que devia ser solidário.
Mesmo trabalhando em ordem burocrática e moral -o que actualmente se verifica na generalidade-, continuam a ser agentes de dispersão económica. E os prejuízos que a sua acção, assim exercida, causa à economia indígena quando o produtor indígena produz mais que um produto são incalculáveis. É de lembrar, a propósito, quantas famílias indígenas em Angola e Moçambique foram proibidas de se dedicar às próprias culturas alimentares para se lançarem mais intensivamente sobre a cultura do produto tutelado pela junta. Realmente, no sistema assim concebido, a cada uma das juntas só interessa o produto ou produtos cuja economia dirige e que de forma alguma se podem considerar na independência a que o sistema os arrasta.
3.º Porque não creio que uma acção coordenadora, que para ser eficiente e real se tem de exercer sobre a produção e comércio coloniais -mas especialmente sobre a produção-, tendo em conta não só as particularidades locais, mas também a sua constante evolução, não enfraqueça a sua capacidade à distância em que se encontram as direcções das juntas imperiais, sobretudo quando se verifica falta de capacidade dos dirigentes, muito afastados das realidades coloniais.
4.º Porque a ordem criada não se adapta, nem é adaptável, à ordem dos fenómenos, digamos ao seu mecanismo. Parecem estes bem claros e nítidos.
No conjunto imperial, em relação aos produtos coloniais, salvo apenas os casos de distribuição dos produtos em mercados externos -operação que a metrópole ou as colónias podem dirigir conforme a proximidade e as relações directas de cada uma das partes com esses mercados-, os fenómenos ou operações distribuem-se da seguinte forma: as colónias produzem e exportam, a metrópole importa e distribui para consumo interno ou reexportação. Quer dizer: nas colónias põem-se problemas técnicos e comerciais (de exportação especialmente), na metrópole só problemas comerciais (de importação especialmente). O conjunto de problemas coloniais e o conjunto de problemas metropolitanos
são complementares, mas independentes quanto à essência e processos. Exigem coordenação, mas não podem sofrer mistura, integração ou mútua intervenção.
No sistema actual toda esta ordem se confunde, interfere e mistura. Quer dizer: não joga com as realidades - é contra elas.
5.º Porque o sistema considera diferentemente a economia de cada produto. Realmente, porque não hão-de beneficiar dos mesmos cuidados e assistência as oleaginosas, as fibras, a borracha e tantos outros produtos cuja importância se encontra diminuída apenas pelo desinteresse a que têm sido votados? Por exemplo: o rícino, a borracha, certas fibras, os óleos, a farinha de peixe, etc. Dir-se-á: estes produtos estão sob a tutela das juntas coloniais. Mas não é assim. A acção das juntas coloniais, porque os produtores são, mais ou menos, os mesmos e as juntas, imperiais e coloniais, concorrem umas com as outras, apenas pode trabalhar nos espaços em branco deixados pelas imperiais.
6.º Porque, neste sistema de coordenação económica, as partes a coordenar nas colónias não estão igualmente sujeitas à acção coordenadora dos governadores gerais. E embora as fórmulas pretendam marcar a sua intervenção, a verdade é que esta se torna mera formalidade perante a acção das juntas imperiais. Praticamente há duas autoridades, dois critérios, duas acções, de que resulta o desinteresse dos governadores gerais pela direcção dos produtos confiados à tutela das juntas imperiais. Frequentemente estas atribuem algumas das suas dificuldades aos governadores gerais, que mais facilmente podem intervir como tampões do que como êmbolos. Não menos frequentemente os governadores gerais, perante outras dificuldades, se descartam dizendo: a Isso é lá com as juntas».
A organização para a coordenação económica, segundo as regras que interessam ao conjunto em cada colónia, deve, quanto a mim, ser instrumento dos governadores - no caso únicos responsáveis perante o Ministro.
7.º Porque a acção técnica perante os problemas económicos mais importantes - os da organização e defesa da produção- não pode dentro do actual sistema ter o alcance necessário. Julgo-a mesmo inorganizável para além das fórmulas e sem mais poder que as simples fórmulas.
Uma organização técnica para o algodão, com o seu corpo de investigadores, experimentadores e assistentes ; uma organização técnica idêntica para o café; outra para os cereais - e ainda técnicos das juntas coloniais, técnicos dos serviços oficiais do Estado! Nem temos pessoal competente em número bastante para isso. E mesmo que o tivéssemos, de alguma forma se cairia na dispersão e talvez também na desarticulação dos objectivos económicos comuns.
O problema fundamental a atacar pelo sistema de coordenação económica -mais importante e sério que todos os problemas de disciplina, movimentação e coordenação comercial em que as juntas se têm debatido ingloriamente - é sem dúvida o da organização da produção. A disciplina, movimentação e coordenação comercial têm. de exercer-se sobre produtos obtidos em condições de concorrência nos mercados externos e em condições harmónicas com o nível de vida da população portuguesa na metrópole (quantidades e qualidades).
Ora a nossa produção colonial, quer a que se destina apenas ao mercado metropolitano e. consumo interno, quer a que pretende nos mercados externos um lugar ao sol, é, salvo raras excepções, inferior em qualidade, sempre muito cara e por vezes insuficiente. Estas questões da qualidade, quantidades e preços de custo ameaçam de morte a economia de muitos produtos no dia em que a concorrência internacional se restabelecer - e es-
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pecialmente se tal restabelecimento se operar contra os regimes proteccionistas que hoje ainda defendem (com prejuízo, todavia, para o consumidor nacional) alguns desses produtos.
Temos de melhorar os nossos produtos, baixar o seu preço de custo e elevar, onde for aconselhável, as quantidades da produção, e temos de dar também a outros produtos, espontâneos ou susceptíveis de futuro económico animador (piassaba, fibras têxteis, borracha, resmas, etc.), as condições de posição e valorização que hoje não têm.
Como o principal produtor é o indígena -e, além deste, o europeu utilizando em larga escala a mão-de-obra indígena-, o problema tem de ser resolvido por meios técnicos e meios sociais. Os primeiros agindo directamente sobre a cultura ou extracção do produto e seu beneficiamento, os segundos sobre a organização económico-social dos produtores indígenas.
Nem a natureza dos problemas, nem a sua vastidão, nem a dependência em que a economia de cada produto se encontra da economia de outros e da organização social dos produtores, admitem dispersão de esforços nem dispersão de técnicos - estes sempre em número insuficiente perante a tarefa a realizar.
Temos assim que considerar o problema técnico no conjunto das necessidades da colónia, e não quanto a sectores mais ou menos isolados de uma economia que, na verdade, deve ser solidária. E temos de considerar também, como realidade flagrante, que nos faltam, em quantidade e especialização, o número suficiente de técnicos.
Ora o sistema actual considera exactamente uma situação contrária: em lugar de conjunto, a dispersão; em lugar de economia de unidades técnicas, dispêndio incomportável. Criou-se o Centro de Investigação Científica Algodoeira. Em obediência ao mesmo princípio ou espírito que o concebeu teremos de criar o centro de investigação científica dos cereais, o do café, o das oleaginosas, etc. Não temos pessoal nem recursos para tanto. Mas, em compensação, não há quem negue que um centro de investigação científica agronómica corresponderia às necessidades e estaria dentro das nossas possibilidades. Mas como organizar e manter, para ser mais que simples formalidade ou fachada, um organismo concentrado desta natureza, sobre sectores de actividades dispersas e descoordenadas e também como consequência da nossa maneira de ser, muito ciosos da sua função e da sua independência?
No campo da experimentação acontece o mesmo: dispêndio exagerado de técnicos, de dinheiro, de actividade e numerosos atritos.
A aplicação prática tornar-se-á nestas condições o que de facto é: outra fórmula. A desarticulação entre os técnicos e os produtores é uma realidade das mais flagrantes do sistema actual.
Entendo, por consequência, que a solução do problema técnico, fundamental, como o problema social que o envolve, é incompatível com o regime dispersivo actual, por mais sedutores que sejam certos aspectos teóricos cujos observadores pretendem o contrário.
As próprias exigências técnicas, conforme o deduzo dos programas de trabalho elaborados pelos técnicos, o condenam. Exemplo: na cultura do algodão, como em outras, o tratamento dos terrenos exige rotações, quer dizer: exige que se cultivem alternadamente outros produtos, que, além dos serviços que prestam à reparação das terras, têm também a sua economia própria. Outras vezes há vantagem em realizar culturas, intercalares
- algodão e milho, por exemplo- para assegurar a alimentação da família produtora.
Como vamos realizar, técnica e coordenadamente, estas operações, defendendo ao mesmo tempo a economia
dos produtos em causa, se a direcção desta se exercer, sobre cada produto, em compartimentos estanques?
8.º Finalmente, parque a organização torna-se assim extremamente cara, multiplica as suas peças burocráticas pelo número de compartimentos e desorienta o público.
Até agora porque a vida destes organismos tem decorrido numa época de alta de preços anal refreada e, por consequência, de euforia de negócios, os produtos têm suportado este encargo sem outro prejuízo sensível que não seja o aumento incessante do custo da vida - sensível, aliás, só para o consumidor, que é quem menos se faz ouvir e menos é atendido.
Para manter as despesas dos organismos de coordenação económica ou elevá-las, para criar ou manter outras, basta fixar preços mais altos. E tem havido sempre quem compre neste - Mundo e nesta época de penúria.
As coisas não se passarão assim amanhã, quando o equilíbrio se restabelecer nas bases antigas ou noutras. Uma. concorrência mais farta voltará a influir sobre os preço». Ao mesmo tempo, se não é certo, é de prever que tenhamos de seguir o exemplo do Congo Belga quanto às ideias que informaram o seu actual sistema aduaneiro, isto é, temos de prever que parte dos encargos que pesam hoje sobre a importação passem a pesar sobre a exportação, lançando sobre os produtos em comércio despesas mais altas.
E assim parece não ser de admitir senão, ou uma organização tão cara como a actual, ou mais, mas de que resulte para os produtos uma soma de benefícios, tão praticamente traduzíveis em melhoria de qualidade e baixa de preço do custo, que constitua perfeita contrapartida dos encargos, ou, de preferência, a organização que apenas se arme dos elementos necessários para realizar aqueles objectivos, expurgando-se dos supérfluos e dos que devoram o tempo.
Actualmente não se gasta talvez o que deveria gastar-se com os serviços técnicos, mas gasta-se muito mais do que se gastaria, para o mesmo volume de resultados, em organização mais concentrada.
Gasta-se o melhor das receitas com os serviços burocráticos e com as numerosas complicações que resultam da sua acção, tornada, por assim dizer, dominante. Há, pelo menos, tantas secretarias, com a orgânica e o pessoal de secretarias gerais, quantos os organismos e suas dependências principais. Os serviços de estatística são um e mundos em cada um, por vezes um mundo bastante desabitado de elementos práticos.
O mesmo acontece com os serviços de contabilidade, pelo menos cinco serviços centrais! Os serviços de assistência sanitária ao pessoal aparecem igualmente multiplicados e, naturalmente, sem sentido de proporções. Só a Comissão Reguladora em Lourenço Marques montou e mantém um posto de socorros com os respectivos serviços clínicos ... que chegaria para assistir a quase todo o funcionalismo público da cidade. A Junta de Exportação encarava a realização com muita simpatia e procurava seguir-lhe o exemplo.
Mas a dispersão acarreta ainda despesas de instalação e funcionamento, que se multiplicam pelo número de organismos em proporções que não correspondem às necessidades.
E, consequentemente, da variedade e quantidade de serviços afins, de sedes, de instalações - a que naturalmente correspondem também critérios, métodos, normas, etc., muito variáveis-, resultam a desorientação do público, impaciência», antipatias, perdas de tempo, por fim, campanhas de descrédito e perda de prestígio.
A mesma dispersão, de si caríssima, quanto aos órgãos principais, é levada a agravar as suas despesas com dependências que se acumulam as mais das vezes sem necessidade.
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Há lugares em Angola e em Moçambique onde se juntam vários delegados e subdelegados dos diferentes organismos, com funções puramente administrativas, que um só desempenharia u vontade: Novo Redondo, Porto Amboim, Quelimane, Porto Amélia e outros.
Depois, a própria dispersão, pela sua natureza descoordenada, deixa espaços em branco na organização geral. E porque se julga necessário preenchê-los, obriga a estabelecer, à margem da sua actividade, outras organizações igualmente dispersas, dispersivas e caras, cuja intervenção é também, de alguma forma, paga pêlos produtos - nomeadamente a comissão de compras e essa Agência Geral das Colónias, recentemente inquirida, não se sabe com que resultado, e cuja acção tanto impressionou a opinião pública na metrópole e nas colónias.
Em resumo: as causas principais apuradas permitem concluir que o sistema falhou e se desacreditou, não só por vícios de funcionamento como também por erros de orgânica, isto é: porque, concebido para uma acção coordenadora, se organizou descoordenadamente e praticou a descoordenação económica.
Por consequência -e esta é a conclusão construtiva de uma crítica - defendo a sua reforma ou reorganização para além dos arranjos e sanções a aplicar contra os vícios de funcionamento, os desmandos de dirigentes e não dirigentes, a incompetência de uns e a maldade de outros, no rumo das seguintes ideias coordenadoras:
1.º A criação de um conselho imperial de coordenação Económica, instituído como cúpula do sistema e considerando a economia dos produtos conforme o seu lugar, as suas possibilidades e o seu destino racional na economia geral do Império, isto é, abrindo larga comunicação entre os grandes compartimentos estanques de duas economias dissociadas, que são o Ministério das Colónias e o Ministério da Economia. Um conselho imperial de coordenação económica que substitua os antagonismos económicos entre a metrópole e as colónias, pelo acerto dos verdadeiros interesses nacionais, que não são os da descoordenação em que vivemos. Um conselho imperial de coordenação económica que estabeleça entre o produtor e o consumidor, em lugar dos intermediários parasitas que hoje asfixiam a produção e afligem os consumidores, o caminho largo e fácil que claramente se mostra indicado pelas possibilidades da produção colonial e pelas necessidades de uma população cujos problemas sociais se não resolvem entre o baixo nível de vida e a vida cara. Um conselho imperial de coordenação económica, enfim, que realize os princípios de solidariedade expressos no Acto Colonial;
2.º A redução dos órgãos do sistema ao necessário e suficiente -o necessário e suficiente orgânicos e funcionais-, que correspondam à realidade dos fenómenos e das operações. Isto é: uma junta de produção e comércio nas colónias; uma junta de importação e distribuição na metrópole, orientadas pelo conselho imperial-em substtiuição da multidão inorgânica e desorientadora de órgãos que se acotovelam e produzem mais papéis do que algodão, café e cereais;
3.º Finalmente, a criação dos organismos de fiscalização reclamados no relatório da comissão.
Sr. Presidente: lamento que as condições apertadas de tempo de que disponho me não permitam tratar este problema senão por esta forma incompleta e desataviada- pouco mais que notas à margem de uma questão cuja profundidade e alcance não pude certamente atingir.
Antes de concluir, e visto que referi causas e razões da incapacidade do sistema de coordenação económica dependente do Ministério das Colónias, devo anotar que, além das referidas, e que se podem classificar como erros de orgânica e de funcionamento, há que
responsabilizar outras que não pudemos considerar simples erros, porque se revelaram nitidamente como pecados, faltas, irregular idades, não sei se crimes, de natureza muito grave.
Sem estes desvios imperdoáveis de funcionamento, porque errare humanum est, talvez alguns dos erros se tivessem evitado, a revisão do sistema se tornasse mais fácil e a opinião pública se mostrasse mais compreensiva ao comentar certas faltas do sistema, talvez as suas qualidades tivessem ganho vulto sobre as suas deficiências.
No sector sobre o qual incide esta intervenção verificaram-se, conforme os relatórios das secções, factos de enorme gravidade que são atribuíveis a responsáveis cuja posição de responsabilidade dilata a importância da gravidade.
Não é possível ignorar o que consta desses relatórios, honesta e desassombradamente elaborados, não só pela projecção política que a ignorância teria, como também porque é nosso dever, ao aparecer a matéria do relatório da comissão, promover o necessário no sentido de e distinguirem os bons dos maus, os culpados dos inocentes, e proteger com essa distinção tantos que na organização corporativa trabalham com acerto, zelu, competência e dedicação. Estes ver-se-iam envolvidos na mesma onda de suspeição pública que procura atingir culpados e alcançados pelo veneno da especulação política que procura atingir o regime se a distinção não se fizer.
O regime não pode ser atingido, visto que o relatório da comissão o defende pela clareza contra o silêncio e pelo desassombro contra certas considerações que têm comprometido outros regimes. Mas é preciso que os inocentes e aqueles que porventura mereceriam ser louvados por serviços prestados não corram o risco de ser considerados como culpados e responsáveis das culpas e responsabilidades que o relatório trouxe à clara luz do dia.
Não temos que julgar os culpados. Não somos tribunal.- Mas temos que revelar as culpas e indicar os responsáveis.
E porque assim é, termino chamando a atenção da Assembleia, sem mais comentários, porque seriam redundantes, para a matéria exposta nos relatórios parciais da 3.ª secção (Juntas de Exportação do Café Colonial e dos Cereais das Colónias), aguardando que sobre eles o Governo se pronuncie.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Interrompo a sessão por uns minutos.
Eram 18 horas e 10 minutos.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão. Eram 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Botelho Moniz.
O Sr. Botelho Moniz: - Sr. Presidente: infelizmente para V. Ex.ª e para a Assembleia, vou ser excessivamente longo.
Os assuntos a versar são tantos que, embora dedique a cada um apenas meia dúzia de palavras, não conseguirei ser breve, por mais que o deseje e por mais que sacrifique a argumentação.
Parece-me primacial dissipar todas as dúvidas acerca da matéria que estamos discutindo. Tentá-lo-ei a meu
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modo. O que vou dizer poderia intitular-se: «O corporativismo visto por um homem prático e desapaixonado».
Julgo desnecessário pedir atenção para a importância vital e decisiva do debate em que andamos empenhados.
Consumidores, produtores, comerciantes, políticos, apoliticos, trabalhadores manuais, funcionários do Estado, servidores dos organismos de coordenação económica e das instituições corporativas -Todo o País, enfim- põem os olhos em nós, aguardando com maior ou menor ansiedade as decisões da Assembleia. Aquilo que resolvermos marcará a orientação futura da economia nacional. Portanto, interessando fundamentalmente ao progresso e ao prestígio do Estado Novo, interessa às forças vivas da Nação.
Muita gente considera, apaixonadamente, que este debate sobreleva quantos até aqui temos realizado.
Na análise dos acontecimentos económicos, na crítica dos homens e na apresentação de soluções, os portugueses encontram-se profundamente divididos. A verdadeira unanimidade de opiniões somente pode ir buscar-se a uma aspiração comum a todos os homens ... e mulheres : pagar menos e cobrar mais.
Risos.
Como conseguir o milagre? O ramo de ciência que descobriu esta nova pedra filosofal chama-se «racionalização da produção e distribuição».
Os meios menos perigosos de sistematizar a racionalização, melhorando os salários e barateando os produtos, sem produzir crise de desemprego nem arruinar as industrias já instaladas, são o «corporativismo» e o «condicionamento industrial».
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Dentro desta concepção racionalista, corporativismo e condicionamento industrial não significam limitação exagerada das iniciativas, nem proibição de instalações novas, nem cartéis, nem trusts, nem monopólios, nem defesa parasitária de instalações antiquadas. Na vida agrícola, industrial e comercial, quem não melhorar as suas instalações, quem não as modernizar cientificamente, quem não tender para produzir barato e bom deve ser condenado naturalmente ao desaparecimento. Lugar aos mais competentes! Lugar aos mais dinâmicos! Lugar aos que melhor sirvam os interesses dos seus trabalhadores e dos consumidores!
Criemos condições de vida a quem quiser progredir; convençamos os retrógrados e abandonemos os teimosos à sua sorte, porque o Mundo não pára na sua marcha progressiva.
Adepto da racionalização, apóstolo do corporativismo e intérprete do único condicionamento legítimo, acuso todos aqueles que do corporativismo e do condicionamento querem fazer o contrário de racionalização. (Apoiados). Por outras palavras: em vez de um regime parasitário, servido por parasitas, para beneficiar parasitas protegidos, o corporativismo e o condicionamento devem constituir fontes de progresso e incitamentos constantes à melhoria das condições de produção e de trabalho.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Salvo excepções raras e honrosas, conseguiram-se até aqui esses resultados ? Respondo francamente: não!
Porquê? Culpa da doutrina? Culpa do sistema ou da orgânica? Culpa dos homens? Caso de força maior proveniente da guerra e da seca, catástrofes que tudo desculpam? È o que vamos ver.
Para isso comecemos por abrir os olhos de quem anda apostado em confundir tudo.
Na vida económica portuguesa há que distinguir:
1.º Ministério da Economia, com as subdivisões conhecidas, que são, entre outras, o Subsecretariado de Estado da Agricultura, o Subsecretariado de Estado do Comércio e Indústria, o Conselho Técnico Corporativo, a Intendência Geral dos Abastecimentos e os organismos de coordenação económica, tipo comissão reguladora.
2.º Ministérios das Finanças, das Colónias, das Comunicações, da Marinha e das Obras Públicas. Este último também intervém de forma importante na vida económica porque, além do mais, nele se encontra o Comissariado do Desemprego. Quer pela acção das câmaras municipais, quer por virtude do artigo 409.º do Código Administrativo, é preciso ainda não esquecer o Ministério do Interior, que através dos governadores civis, administradores de concelho e autoridades policiais, exerce intervenções locais.
3.º Federações nacionais com funções comerciais.
4.º Organismos puramente corporativos, ou que deveriam ser puramente corporativos, tipo «sindicatos nacionais» para os trabalhadores, «ordens» para as profissões liberais, «grémios» para os lavradores, industriais e comerciantes.
5.º Organizações de protecção social, tipo «caixas de previdência» e t caixas de abono de família». Este enunciado, embora incompleto, demonstra a complexidade e variedade da orgânica. Prova também quão difícil será uniformizar critérios.
Tudo isto é englobado, pêlos ignorantes, na designação geral de grémios.
Se os géneros escasseiam, a culpa é dos grémios. Se são caros, a culpa é dos grémios. Se há «mercado negro», a culpa é dos grémios. Se carecemos de transportes, a culpa é dos grémios. E os pobres grémios, mesmo que não existam ou só funcionem como prolongamento das comissões reguladoras e do Estado, desviados da sua função doutrinária ou legal pela força das circunstâncias, são hoje os bodes expiatórios de tudo quanto se passa e não se passa em Portugal.
Como se generalizou esta noção errada, absurda, simplista e caluniosa em muitos casos?
Em primeiro lugar porque o público, -o chamado grande público - é, sob o ponto de vista de raciocínio, uma criança pequena. Os seus contactos, como lavrador, como consumidor e como comerciante, limitavam-se ao plano do grémio. Não iam mais além.
Em segundo lugar porque, como diz o relatório da comissão parlamentar de inquérito, certas actividades económicas privadas, para se desculparem perante uma clientela de mentalidade primária, invocavam sempre um único e grande responsável: o grémio.
O grémio! Entidade vaga, ora papão de crianças pequenas, ora cabeça de turco de ambições indesejáveis.
A coisa partiu, a meu ver, dos armazenistas e retalhistas de mercearia, que mais contactam com a população. Foram eles os autores directos ou indirectos da campanha, e não vale a pena apurar agora se a responsabilidade foi directa ou indirecta. Criado o estado de espírito, não tardou que fosse aproveitado por políticos de mentalidade igualmente primária. Alguns armazenistas desviavam os géneros ou demoravam o levantamento e diziam aos retalhistas que o grémio não lhos entregara. Certos retalhistas, depositários das senhas de racionamento dos agregados familiares que as donas de casa lhes confiavam, desviavam os géneros para o «mercado negro», reduziam as rações a sen talante ou atrasavam as entregas por «culpa dos grémios».
Quando a papelada a que os grémios eram obrigados dificultava as entregas, ou quando os géneros não eram distribuídos aos grémios, ou quando efectivamente não existiam, ou quando existiam e os organismos competentes do Estado os mantinham em reserva ou esque-
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eidos, ninguém se preocupava senão em atribuir culpas... aos grémios.
Armazenistas e retalhistas agremiados não souberam ver o perigo que corriam e atacaram, às vezes injustamente, a instituição que devia acolhê-los e defendê-los. Culpados de renegarem o seu grémio, hão-de sofrer consequências desastrosas.
Avolumou-se tal multidão de queixas que as portas das agremiações vão abrir-se de par em par e acabará o regime de alvarás, de quotas de rateio, de contingentes e de outros valores negociáveis.
Apoiados.
Aqui, perante a ânsia de liberdades que eles próprios criaram, terminarão todos os condicionamentos e todas as limitações de iniciativa, para darem lugar à concorrência livre. Assim o quiseram, assim o tenham!
Amanhã, se chorarem arrependidos, se pedirem protecção contra a concorrência desmedida, se se disserem arruinados por lutas desleais - queixem-se de si próprios e não peçam o regresso de um sistema defensor da harmonia de interesses, que eles próprios, pelas suas intrigas e a sua ganância, transformaram em sistema antieconómico.
Sirva-lhes a lição o sirva a mais alguém dos outros ramos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A confusão estabelecida pelo público, entre os vários sectores da economia, de que fica dado o exemplo típico, prova a necessidade de esclarecimentos repetidos.
É tempo de se tomar o ponto, indicando onde estamos e para onde vamos. Todos os países civilizados possuem corporações.
Chamem-se trade-untons ou labor-unions ou sindicatos operários - correspondem ao nosso sindicato nacional.
Este último peca, nalguns casos, apenas pela obrigatoriedade de inscrição.
Chamem-se associação de classe, união de produtores ou federação de comerciantes - correspondem ao nosso grémio patronal. Também entre nós se nota, para a algumas associações deste tipo, a imposição de se organizarem.
Quanto às profissões liberais, em todos esses países existem ordens de advogados, de médicos e de engenheiros. Segundo se diz, entre nós pecam por tendência excessiva à defesa dos interesses dos agremiados contra o exterior.
Em Portugal, onde, como nos outros países, os termos ou designações andavam empregados confusa e impropriamente, o legislador teve o cuidado de efectuar a destrinça lógica: sindicato, para o trabalhador; grémio, para o dador de trabalho; ordem, para a profissão liberal; associação, para estas ou outras classes agremiadas livremente.
Assim se evitou que o sindicato agrícola, antiga agremiação de lavradores, de característica patronal, se confundisse, como se confunde em Espanha, com o sindicato profissional, de característica operária. E assim apareceu o termo «grémio», que, na gíria popular, hoje designa, não menos impropriamente, todas as corporações existentes. Estas, salvo pequenas diferenciações de orgânica e de execução, quase sempre originadas na obrigatoriedade legal de inscrição, correspondem às similares estrangeiras. Não constituem novidade quanto à existência e, na maioria dos casos, quanto ao funcionamento. As diferenças principais que existem consistem na posse de direitos, regalias e deveres, estabelecidos oficialmente, que outros países lhes não reconhecem.
A comparação pode estabelecer-se por maneira sintética dizendo: em Portugal deseja-se que as corporações
sejam protegidas e acarinhadas paternalmente. Em muitos casos esse desejo já se encontra efectivado. No estrangeiro as corporações aparecem como elementos de lata de classes ou d« choque de interesses. O Estado acaba por intervir nas emergências graves. Em vez de prevenir, remedeia. Em vez de evitar, pune.
Ninguém nega a existência do velho provérbio: mais vale prevenir do que remediar. Ele constituo, afinal, o pilar em que assenta a tendência moderna da justiça, da governação pública e da actividade privada.
Neste capítulo, ou seja em matéria de corporações, devemos estar possuídos do orgulho legítimo de que o nosso sistema é preferível a qualquer outro.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª tem estado a marcar esta diferença essencial: núcleos de interesses há em toda a parte. O espirito que preside à organização desses núcleos é que tem de ser necessariamente diferente quando se parte do estado liberal para o estado corporativo.
O Orador: - É que nós respeitamos acima de tudo o interesse nacional.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Para nós fica evidentemente arredada a luta de classes.
O Orador: - Exactamente, no que ela tenha de contrário àquele interesse.
Verificado que existem corporações em todo o Mundo, respondo agora, mais precisamente, à interrupção do Sr. Deputado Mário de Figueiredo. Se existem corporações em todo o Mundo, por que razão os outros sistemas de governo não se chamam também corporativos?
A meu ver, porque não incluíram o corporativismo na sua Constituição como um dos órgãos ou unidades do pluralismo do Estado e porque não deram representação oficial às classes na vida política nacional. De acordo com o que já fizera Sidónio Pais (e indo mais além) o Estado Novo, filho legítimo da República Nova, substituiu o velho Senado pela Câmara Corporativa, cuja função, embora consultiva, é da mais alta importância.
Ninguém dirá, em presença dos pareceres cuidadosamente elaborados que os dignos Procuradores nos submetem, que aquela instituição não seja de utilidade nacional indiscutível e não funcione com inteira e louvável independência.
E ninguém poderá negar que os dignos Procuradores constituem (pêlos seus nomes, pelas suas categorias sociais e pelas actividades que representam) um verdadeiro escol na vida pública portuguesa. Isto é indiscutível. Inatacável. Por si só constituiria razão suficiente para classificar de corporativo o nosso sistema e para justificar as vantagens da inovação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas, felizmente, existem ainda outras vantagens na nossa organização corporativa. Tenho dito frequentemente que, para a analisarmos com clareza, conhecimento de causa e justiça, devemos distinguir três coisas: doutrina, orgânica e execução.
Quanto à doutrina, vejamos como se comporta perante o Estado e a sociedade, perante a economia dos produtos e perante a tendência natural e artificial de lutas de classes e de interesses. Perante o Estado, o corporativismo, se mantiver personalidade moral e jurídica, assegurará a defesa das liberdades individuais e do espírito de iniciativa contra a tirania burocrática.
Vozes: - Muito bem!
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O Orador: - Perante a sociedade lutará contra o espírito demagógico, em prol do prestigio da classe. Nestas duas defesas substitui o indivíduo isolado e impotente pela colectividade a que ele pertence. (Apoiados). O indivíduo será neste caso o animador; a colectividade será o exército que combate.
Devemos reconhecer que vencer apoiado num exército é mais fácil de que vencer isoladamente, por maior valor individual que se possua ...
Perante a economia dos produtos, corporativismo significa combate inteligente à sobreprodução e à concorrência desmedida; constitui garantia de existência de mercadorias em reserva o, principalmente, já o disse, ensinamento constante ora matéria de racionalização.
Não procurará destruir as possibilidades de produção. Pelo contrário, procurará melhorá-la em qualidade e em quantidade. Assegurará, nos anos fartos, de abastança, a armazenagem, a conservação e a exportação das mercadorias.
O corporativismo, por mais caro que saia, será útil se produzir saldo positivo do valores morais e materiais.
Ninguém pode fazer contas simplistas ao que custa a organização. Não convém dizer-se, simplesmente, que gastámos 10:000, 20:000 ou 50:000 contos. É preciso pôr no outro prato da balança os; benefícios que a despesa realmente produziu.
Inversamente, o corporativismo poderia custar barato, eu não custar coisa nenhuma, e dar resultados absolutamente maléficos. Não importa o custo bruto, importa o proveito ou lucro líquido.
Em economia nada pode medir-se só através do custo; os resultados das actividades económicas avaliam-se pêlos resultados, e estes calculam-se pela comparação entre custo e receita.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Perante a luta de classes e de interesses, e corporativismo tenderá constantemente para evitar soluções violentas ou posições irredutíveis. Substituirá a violência do facto consumado, tipo «greve», pela discussão livre de igual para igual.
Melhorará assim, quando bem orientado, as relações entre operários e patrões, e entre grupos de produtores de interesses divergentes, quer dentro da mesma classe, quer de umas contra outras.
Quanto mais apaixonada e irritante for a divergência em estudo melhor e mais útil será a acção moderadora que a corporação poderá desempenhar. Ninguém queira ver nela a destruição das aspirações individuais ou colectivas de melhoria de situações. Pelo contrário, o corporativismo dá .mais força e expressão às ambições legítimas de progresso.
Simplesmente substitui a acção violenta pela negociação consciente. Em vez de luta desordenada, num plano inferior e prejudicial aos interesses gerais, garantirá os direitos e as liberdades de todos contra a violência de alguns.
Apoiados.
As vantagens teóricas ou doutrinárias do sistema são incontestáveis.
Sr. Presidente: vejamos agora se a prática, isto é, a orgânica e a execução, está correspondendo à teoria. E, se não estiver, a quem, ou a que, há que pedir responsabilidades. Se descobrirmos as causas de erros, poderemos evitá-los de futuro. Se não soubermos descobri-los, ou nos enganarmos na origem, os erros continuarão.
Quanto à orgânica:
À primeira vista encontramo-la incompleta, imperfeita e desviada da missão natural ou doutrinária. O real traduz-se por: falta de corporações, falta de equilíbrio entre corporações e dispersão das organizações existentes.
É evidente que nos faltam corporações. É evidente que nos falta o equilíbrio entre certas corporações operárias que existem e certas corporações patronais que não existem, porque tivemos muita pressa em organizar sindicatos nacionais sem que os fizéssemos acompanhar pêlos correspondentes grémios de patrões.
É também evidente que existe dispersão das organizações, pois muitos grémios ou sindicatos poderiam ser fundidos, para maior simplicidade de serviços e mais fácil harmonia das actividades.
Fugirei a citar exemplos, salvo quando sejam necessários para facilitar a compreensão. De contrário, se caminhasse entre a floresta de casos de detalhe, este debate não terminaria, com grande gáudio do público, antes do ano 2000.
Mas vejamos um exemplo típico ou concreto. Foi recentemente formado o Grémio da Marinha Mercante. Existe o Grémio dos Industriais de Transportes em Automóveis e existe, ou deveria existir, o dos transportes ferroviários ...
O Sr. Mário de Figueiredo: - Hoje não pode existir esse grémio, porque o patrão é só um!
O Orador: - Agradeço a observação de V. Ex.ª, porque ela melhora o meu raciocínio.
Exactamente porque os transportes ferroviários estão concentrados, ou teoricamente concentrados, e não é possível criar-se um grémio de uma só entidade, deveriam englobar-se num único os transportes marítimos, por estrada e por caminho de ferro. Há tantos pontos de contacto entre todos e interesses tantas vezes comuns, embora noutros casos divergentes, que a solução harmónica e simples seria a fusão dos grémios citados.
Dizia eu: nota-se imperfeição na orgânica por falta de certos organismos, por carência de equilíbrio entre organismos patronais e operários e por dispersão das organizações.
Entretanto, a meu ver, não são estes os principais defeitos da orgânica. Dois muito mais importantes nos aparecem. Classifico os: desvios nas missões superiores e desvios nas missões primárias ou elementares.
Nas missões superiores o desvio consiste em suprir a falta de corporações por organismos do Estado que, erradamente, o público denomina corporativos.
Sinto amor profundo, entranhado e constante pelo corporativismo. Quando oiço ataca Io, pergunto imediatamente aos críticos se existe corporativismo verdadeiro em Portugal.
Discordo da destrinça subtil que fazem muitos economistas entre corporativismo de associação e corporativismo de Estado. O segundo não ó corporativismo, é socialismo.
Não sigo também aqueles que nos apresentam os organismos de coordenação económica sob o disfarce de prócorporativismo.
Na verdade, são repartições públicas, onde quási nunca existe o menor espírito corporativo, porque foram criadas como instrumento de intervencionismo.
Na prática de muitos anos verifiquei que a chamada coordenação económica é igual a subordinação económica. Manda e devassa o Estado, obedece a empresa privada. Ora a subordinação económica levada a tal excesso não é outra coisa senão socialismo de Estado. E o socialismo de Estado, precisamente porque impede a liberdade individual, é a antítese do corporativismo puro.
Portanto, os primários e os simplistas, esses senhores que fazem para aí muito escândalo e que andam cons-
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tantemente a berrar contra os grémios, julgam atacar o corporativismo e atacam exactamente a sua antítese. Por consequência, são corporativistas sem o saberem...
Risos.
Porque não sabem estudar seja o que for, esses senhores, enganaram-se no rótulo do continente.
Émulos de D. Quijote na cavalgada contra os moinhos de vento, combatem como se fosse corporativismo uma coisa que nunca o foi e que, repito, constitui claramente o contrário de corporativismo.
Por isso a doutrina surge intacta deste debate. Verifica se que os erros não lhe pertencem, mas sim a outros sistemas que ela própria condena.
Fica dito o indispensável acerca do desvio nas missões superiores, consequentes à criação e funcionamento dos chamados organismos de coordenação económica. Vejamos agora o desvio nas missões primárias ou elementares : os grémios e sindicatos nacionais.
É indiscutível que neste País existem grémios e sindicatos a funcionar maravilhosamente. Todos aqueles que, por força das circunstâncias ou por verdadeira capacidade dos dirigentes, não quiseram intervir de forma excessiva nas actividades particulares e defenderam as liberdades e iniciativas individuais desempenharam verdadeiramente o seu papel.
O desvio de função na «orgânica» de grémios e sindicatos nacionais mistura-só frequentemente com erros de «actuação», tornando-se quási impossível discriminar se aquele desvio funcional foi causa ou efeito destes erros de actuação.
Exemplificando:
Todos aqueles que só subordinaram ao Estado, para além da legitimidade da subordinação, procederam mal. Erro de orgânica ou do actuação? Do legislador ou do dirigente corporativo?
E pior procederam aqueles que, em vez de zelarem o interesse do público ou dos agremiados, defenderam os interesses das suas direcções; que em vez de contribuírem para a melhoria das condições de vida do consumidor, abusaram da força excepcional que em má hora lhes foi entregue, a pretexto da guerra. Todos esses, como, indicando um paradoxo, muito bem disse o Sr. Dr. Mário de Figueiredo, por desvio da função, comprometeram a organização...
O Sr. Mário de Figueiredo: - Mas não fui eu quem disse; foi a comissão...
O Orador: - Não enjeite a paternidade...
Risos.
É desvio da função subordinar-se ao Estado, em vez de cooperar com ele, defendendo os agremiados; é também desvio da função abusar dos poderes que lhe foram confiados e aproveitá-los para uso das direcções ou dos amigos das direcções; é ainda desvio da função aceitar missões comerciais, embora impostas pela guerra e pelo Estado. Por errada concepção económico-social, houve grémios que nas barbas da fiscalização oficial se transformaram em «cartéis», suprimindo a concorrência entre associados e promovendo lucros ilegítimos, obtidos à custa do interesse geral. Num país em que já não se admitem monopólios, certos grémios criaram a forma moderna do piuripólio. Todos estes, barreiras fechadas à liberdade de iniciativa e à racionalização, necessitam normalização imediata.
No entanto, interroguemo-nos: por acaso, seria missão corporativa aquela que lhes entregaram? Temos de responder francamente: não.
Houve desvios de função nitidamente provocados pelo Estado e houve, não menos nitidamente, aproveitamento de pessoas que não estavam preparadas para o exercício de cargos directivos. Disso tratarei quando falar dos
homens e da execução. Mas, vamos com Deus, é justo que se diga desde já que, na maior parte dos casos, as direcções que erraram foram substituídas por comissões administrativas. Está certo.
Também algumas vezes foram demitidas aquelas que, perfeitamente dentro da lei corporativa, protestaram contra o intervencionismo exagerado dos burocratas.
Não está certo.
Quanto à doutrina intacta e quanto à orgânica imperfeita, já dei opinião. Analisemos agora a execução, isto é, a actuação de governantes e governados. E procuremos as origens dos males.
Andam a apresentar-se nesta contradita político-económica a que assistimos todos os dias três concepções da economia. Uns preferem a economia liberal, outros a dirigida o certo número de pessoas falam numa coisa a que chamam economia autodirigida.
Tenho andado, de há anos para cá, como Diógenes, de candeia acesa, a percorrer os países do Mundo que se rotulam de liberais, à procura da economia liberal.
Conforme toda a gente sabe, o país mais democrático do Mundo, e que portanto merece os maiores elogios dos liberais, 100 por cento, é a Rússia...
Risos.
Estudei através de muitos livros, e de conversas com várias pessoas, as doutrinas económicas russas, a orgânica antiga e actual e os métodos de execução.
E embora a Rússia seja tão bom modelo de democracia que pretendo conquistar o Mundo para si própria em nome dessa mesma democracia-não foi difícil descobrir que não existe lá a mais ligeira sombra de economia liberal.
Vejamos se esta aparece pura nas outras democracias, que são precisamente o inverso da russa.
Na América, com o seu new decd, na Inglaterra, com o seu governo conservador, o de coligação nacional e o trabalhista, encontrámos intervenção constante do Estado na economia. Nos outros países passa-se igual. Aparece em todos eles a intervenção, que quase não se sente, tipo «direcção de moeda». Outras vezes revela-se através do proteccionismo de certos decretos; outras ainda mostram-se no avultado número de organismos coordenadores, que logo à nascença contêm o micróbio do socialismo de Estado. Por mais que busquemos, não encontramos nenhum país liberal onde não haja economia dirigida. Dirigida apenas no plano superior ou comandada também no pormenor, é dirigida sempre. Eis os factos. Não os discuto. Ninguém pode negá-los.
Ao reconhecer-se hoje a necessidade de relações entre os Estados para a troca de mercadorias, para a fixação ou estabilização dos valores da moeda, para a garantia dos transportes e para tantas coisas mais, não podemos afastar-nos da inviabilidade da economia dirigida. Não a disfarcemos sob outras designações. Não lhe chamemos liberal. E também não a digamos auto dirigida, porque isso produzirá confusão e poderá determinar ambições nos dirigentes corporativos, expressas na tendência de subirem de conselheiros técnicos a mentores dos governos.
A economia dirigida num plano superior é função dos governantes. Não deve chamar-se-lhe, imprecisamente, economia autodirigida, porque, em plano superior ou de orientação geral, esta só pode ser imprimida pelo Estado. Nunca surgirá automaticamente das relações entre as corporações, ou das ideias individuais dos dirigentes das corporações, embora, ouvidas umas e outros, deva resultar sempre do choque de opiniões e da harmonização- dos interesses, e não do arbítrio ministerial.
Admitamos o fenómeno, admitamo-lo como impossível de o evitar, e, logo de entrada, procuremos encontrar para ele a correcção devida: a meu ver, o Estado não deve afastar-se do plano superior, isto é, daquela direcção
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que quase não se sente. Não descerá a pormenores mesquinhos.
Cito muitas vezes como exemplo flagrante da economia dirigida, quase sem ninguém o sentir, a direcção da moeda.
O Sr. Águedo de Oliveira: - E é.
O Orador: - Agradeço muito a V. Exa a sua confirmação.
Através do valor da moeda o Estado intervém decisivamente na economia, mas, por se tratar dum método indirecto, quase ninguém se apercebe da intervenção.
Ora essa o outras fórmulas de intervenção indirecta têm precisamente o condão de evitar a invasão da empresa privada pelo Estado e de simplificar os serviços. Quando, em vez delas, os burocratas utilizam métodos directos, o corporativismo surge-nos logo como a melhor defesa contra a tendência viciosa da economia dirigida de se meter nos pormenores da vida de cada qual.
Mas para isso deve estar isento de espirito de subordinação, embora animado da melhor vontade de colaborar.
Posta a questão nestes termos, que papel fica à economia autodirigida? Pensamos que a economia autodirigida constituirá o escalão imediato da economia dirigida, porque uma não dispensa a outra. A segunda é o complemento inferior ou médio da primeira. A economia autodirigida dominará quando muito um produto ou grupo de produtos.
Enquanto que a coordenação superior, directa ou indirecta (de preferência indirecta) pertence ao Estado, a coordenação autodirigida pertence à corporação, sob condirão de ela não se afastar dos interesses nacionais. Necessitamos que estes se encontrem acautelados, sem nos deixarmos dominar por ilusões, porque os homens são todos muito bons, são todos muito simpáticos, mas nas corporações antigas e modernas, estrangeiras ou nacionais, existiram e existirão sempre possibilidades de abuso que é indispensável dominar. Impeçamos que o grémio se transforme em cartel ou pluripólio, em vez de servir os interesses gerais. E impeçamo-lo de intervir excessivamente na vida das empresas privadas. Não substituamos a tirania burocrática pela ... «autotirania»!
Apoiados.
Já disse, e é verdade, que a direcção da economia será tanto melhor quanto menos a sentirmos.
Se aplicarmos este princípio à planificação da economia em todos os seus escalões, a execução dos serviços será facilitada e simplificada.
No estudo dos métodos de execução comecei pêlos conceitos de economia dirigida e autodirigida. Vou referir-me agora a processos de trabalho (centralização, coordenação de pormenor e coordenação no escalão superior) e aos homens que escolheram entre esses métodos.
Cabe aqui recordar a primeira máxima do livro alemão orientador das «empresas-modelos»:
«O verdadeiro chefe de indústria deve dar a toda a gente a impressão de nada ter que fazer».
Isto significa, por outras palavras: quem se prender com trabalho material não terá tempo para coordenar a orientação. Nas grandes casas, e em muitas médias, se o chefe se perder em pormenores, acabará por abandonar assuntos principais.
Pelo contrário, liberto de papelada, de problemas secundários e de coisas importunas, o chefe da indústria ficará em condições de pensar e dirigir com firmeza.
Quanto aos subordinados, obrigados a possuir iniciativa, trabalharão mais rápida e proficuamente.
Adoptou-se este método em Portugal?
Não. Na maior parte dos casos confundiu-se direcção, orientação ou coordenação com centralização.
Recorreu-se à centralização demasiada, que ou representou carência de colaboradores ou significou desconfiança acerca desses colaboradores.
Não chego a saber o que faltou mais: se confiança nos homens, se homens de confiança. Estes teriam aparecido e colaborado se não os desanimassem com o tratamento recebido, unias vezes filho da inveja, outras do terror do «diz-se».
Seja qual for o sistema económico, os homens tom importância primacial: no capitalismo há, no mesmo ramo de indústria, empresas prósperas e empresas falidas. No regime de economia dirigida encontramos comissões reguladoras óptimas, como a do comércio do bacalhau, que pode servir de modelo de previdência e progresso, o. outras francamente opressivas dos produtores; vemos também indústrias ricas e indústrias miseráveis. No regime corporativista há sindicatos bons e maus, raras Casas do Povo óptimas e quase todas péssimas - a par das Casas dos Pescadores, excelentes.
Donde se vê que o homem, o animador, ó quase tudo.
À falta de homens, por não se querer encontrá-los, foi-se para a coordenação de pormenor, em vez de se ir para a coordenação em plano superior. Porque o tempo não podia chegar para tudo, apesar de um trabalho exaustivo, era inevitável dar-se primazia a determinados organismos ou assuntos, abandonando mais ou menos os restantes.
As resoluções demoravam, os males, as carências e demais assuntos andavam sempre à espera de que houvesse oportunidade para estudar a solução, os colaboradores ora viam passar semanas e meses sem conseguirem despacho, ora eram forçados a trabalhar de afogadilho quando impossível esperar mais.
Tal qual o grande chefe de indústria, o Ministro da Economia, logo que montada a máquina o orgânica», deve dar a impressão de nada ter que fazer. Isto não significa que possa estar sempre a banhos ou nas termas.
Os seus colaboradores serão bastantes e suficientemente bons para a execução material e para a actuação corrente, ou diária, dentro dos limites concedidos pela coordenação ministerial.
A centralização excessiva e a coordenação de pormenor acabam por esgotar os chefes e originam a paralisação de actividades.
Mas haveria os homens que o método descentralizador exige?
Julgo que sim. Simplesmente, não puderam actuar. O grande mal não foi a desonestidade, que nos quadros oficiais só raramente se notou, mas o receio da desonestidade e o horror às responsabilidades.
Não dependo de ninguém, não preciso agradar a ninguém e não temo concluir que, salvo poucas excepções, os homens não podiam fazer mais do que aquilo que efectivamente fizeram.
Isto apesar de muitos haverem sido mal escolhidos sob o ponto de vista técnico, porque se receou apelar para os competentes e experimentados das indústrias, do comércio e da agricultura.
Um caso de força maior -a guerra-, complicado com a dispersão de serviços, as lutas de interesses ou de competência de repartições, e a falta de coordenação, que sem dúvida existiram, colheu os organismos na sua fase inicial e impediu que os homens desempenhassem mais utilmente a missão recebida.
Se quisermos fazer acusações, não as dirijamos a um único indivíduo, ou a uma única organização, mas sim a nós próprios, portugueses, que ainda não estamos familiarizados com métodos racionais. E há muita gente, habituada a trabalhar com vagarosa cautela, que confunde dinamismo com precipitação.
Temos o costume de exigir tantos papéis, tantos cuidados, tanta minudência, que acabamos por nos perder
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no meio da baralhada e deixamos de distinguir entre essencial e inútil. E sobre cada um dos elementos da organização atiraram-se tantos serviços, que eles não possuíam meios pessoais o ú materiais de os executar.
Um dos organismos visados nesta confusão, impropriamente chamada corporativa, foi a Intendência Geral dos Abastecimentos, improvisada, e criada nos últimos anos da guerra, quando a situação económica já era difícil.
A Intendência. Geral dos Abastecimentos teve à sua frente, primeiro, um lioinein iiotabilíssimo, sob todos os aspectos. Depois, outro com não menores qualidades de saber, de calma, de honestidade e de carácter, a quem folgo prestar hoinen.-i.gem.
A ambos, logo em seguida à sua nomeação, eu disse que era impossível o exercício de tal cargo, porque não estavam realizadas a> condições burocráticas, orgânicas, económicas ou coordenadoras, chamemos-lhes os nomes que quisermos, para que a Intendência funcionasse como devia.
Ou seria um forte organismo coordenador da produção, da importação, do transporte e da distribuição, ou não seria coisa alguma ... alúm de cabeça de turco.
Disse-o com conhecimento perfeito de causa, tanto por experiência própria anterior, como por experiência adquirida depois da guerra. Ambos os nomeados concordaram comigo, ambos reconheceram as dificuldades, mas não hesitaram perante o calvário que se lhes oferecia. Por isso lhes exprimo a minha homenagem. Foram sacrificados, não puderam fazer tudo quanto era preciso, mas sempre fizeram alguma coisa. Não conheço missão de sacrifício maior que a de um homem aceitar cargos ingratos, consciente de que vai ser alvo de todas as críticas, sem compensação material ou moral, sabendo de antemão que não possui poderes bastantes para enfrentar as dificuldades. Estes dois homens serviram. Não atingiram o objectivo ambicionado, porque isso era impossível, mas serviram o País até aos limites das suas forças. Nada mais podia exigir-se deles.
Eis dois exemplos frisantes de homens bons. Pela força das circunstâncias não conseguirem fornecer o rendimento que normalmente dariam.
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado Botelho Moniz: peço a V. Ex.ª o favor de abreviar as suas considerações.
O Orador: — Embora falte muito que dizer, não prolongarei por muito tempo a minha intervenção no debate, felizmente para V. Ex.ª, Sr. Presidente, para a Assembleia e para mini.
Mas, continuando :
Tenho muita honra em pertencer à comissão parlamentar do inquérito. Não abdiquei das responsabilidades que a eleição do V. E? !ls me entregou. Fui uma das pessoas que subscreveu o trecho do relatório que se refere à responsabilidade dos dirigentes corporativos o à responsabilidade ministerial.
Houve quem supusesse que nós procurámos atirar sobro os dirigentes corporativos e de coordenação económica responsabilidades que porventura pertencem aos Ministros.
Refiro-me, especialmente, às responsabilidades de faltas de coordenação, de resolução rápida e de conformismo ou abdicação.
Falha de orgânica ou falha de execução — não interessa agora destrinçar qual —, ó certo que não foi estabelecida ligação eficiente entre os vários Ministérios; dentro do mesmo Ministério, entre os diversos serviços; e até em alguns organismos, como diz o relatório da comissão de inquérito, entre os vários departamentos próprios.
Faltou nitidamente um Conselho Superior da Economia do Império, com funções deliberativas, no género do proposto pelo Deputado Henrique Galvão, idêntico ao que funcionou, com benefícios evidentes, durante a primeira guerra mundial, no consulado de Sidónio Pais.
Só assim teria sido possível assegurar um mínimo de unidade económica, acabando com a tremenda diversidade de critérios e actuações.
Isto não significa que seja partidário de bitola geral aplicável indistintamente a todos os produtos e todas as rogiòes do Império.
Cada qual possui economia própria. Mas o conjunto deveria ser harmónico e concorrer para o abastecimento português de preferência ao estrangeiro. Não posso concordar com algumas atitudes ou métodos de trabalho de qualquer dos Ministros da Economia que geriram a pasta durante a guerra, e nela se sacrificaram pelo bem da grei.
Mas quando realizo o meu exame de consciência, duvido se, perante as fatalidades da orgânica e da execução, lhes seria possível fazer mais e melhor.
Podemos citar muitos casos de pormenor que efectivamente foram maus e dignos de crítica áspera. Mas seria possível resolver melhor?
Penso que sim, outros pensam que não, uns conhecem certos aspectos do problema, outros conhecem outros, mas a verdade insofismável ó esta: se Portugal teve nível de vida criticável, ainda assim foi superior ao que os outros países alcançaram.
Quando o Sr. Dr. Rafael Duque saiu do Governo escrevi-lhe uma carta em que lhe dizia: «Andámos os dois sempre às turras enquanto o senhor foi Ministro. Nunca fui adulador. Mas agora, que o senhor deixou o Ministério, posso dizer-lhe que realizou, pelo menos, esta obra: nível de vida superior a- qualquer país da Europa, apesar dos tabelamentos e do mercado negro».
Postos as vantagens e os inconvenientes na balança, verifiquei saldo positivo.
Apesar de muita gente me considerar Deputado da oposição, tenho prazer em demonstrar por esta forma a minha concordância com o passo do relatório da comissão parlamentar de inquérito relativo a responsabilidades de dirigentes.
Resumindo: os homens foram vítimas dos métodos de trabalho e das circunstâncias. Se não estiveram à altura do cargo, queixemo-nos menos deles que do facto de a máquina estar apontada aos efeitos em vez de combater as causas, e, por isso mesmo, da falta de coordenação superior.
Os erros do passado talvez nos sirvam de emenda para o futuro.
Para terminar, vou referir-me a outro aspecto do problema que não ó propriamente corporativo, nem dependente, em muitos casos, de organismos de coordenação económica: o condicionamento industrial.
Foram grandes as confusões estabelecidas entre corporativismo e coordenação económica. Não foram menores as relativas ao condicionamento industrial.
O condicionamento industrial tem sido sempre exercido pelo Estado, ouvidos ou não os organismos corporativos interessados, se os há, ou os de coordenação económica. E é claro como água que ele não tem funcionado devidamente. Limitação estreita, domora de resoluções, divergência de critérios ou falta de coordenação, dispersão de serviços, desigualdades aparentes ou reais de tratamento — tudo apareceu no inquérito.
O resultado final foi, nuns casos, monopólio, noutros casos pluripólio. Houve no condicionamento a mesma tendência viciosa que encontramos em certos grémios, cujas direcções não foram orientadas no verdadeiro sentido corporativista: essa tendência viciosa de encerrar as actividades económicas numa torre de marfim, ou de
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protegê-las por meio da muralha da China, contra a qual é inevitável protestar. Ninguém esqueça o exemplo histórico da Revolução Francesa. O seu móbil político simbolizou-se no ataque a uma espécie do Tarrafal desse tempo, que era a Bastilha, dentro da qual os ingénuos «libertadores», no dia 14 de Julho, encontraram apenas quatro presos sem importância...
O Sr. Mário de Figueiredo: - Tal qual como o Tarrafal agora.
O Orador: - A verdade histórica mostra-nos que o regime de opressão contra o qual se fez a Revolução Francesa era menos de natureza política que de natureza económica.
As corporações haviam-se desviado do seu papel e impediam o progresso social, por não darem lugar aos novos.
A Revolução Francesa, para destruir o exagero, caiu no exagero oposto.
Apareceu-lhe como justo exactamente o invés do sistema corporativo e suprimiu radicalmente o direito de associação, que só bastante mais tarde veio a ser restabelecido.
Apesar dos bons desejos de muitos ignorantes, entre nós não irá passar-se a mesma coisa, porque não o permitiremos. Não emendaremos alguns erros por meio de erros ainda maiores.
For isso, Sr. Presidente, tentemos evitar todas as causas de protesto. Apesar da propaganda injusta, ou só justa em certos casos, que nos acusa de consentirmos monopólios e pluripólios, na realidade somos contra eles. Só por culpa de poucos homens e de vários erros de método o vício pôde aparecer, e nalguns ramos florescer e... frutificar. Por consequência, há que corrigir os exageros de condicionamento, quer provenham do Estado, quer das corporações.
Resta-me analisar, sob ponto de vista exclusivamente pessoal, a posição da comissão de inquérito perante toda esta série de problemas, e também as da mesma comissão de inquérito perante a Nação, perante a Assembleia e perante o Governo.
Certos sectores do País pedem demagogicamente que lhes indiquemos os culpados dos a grandes crimes que se diz terem sido cometidos.
Já perguntei aqui uma vez: existem muitos culpados? Quem os apontou? Não foram enviados centos deles aos tribunais? Onde param os restantes? Como adquirir provas quando tudo se limita a e diz-se» ou a simples indícios ?
Quanto a pessoas, indícios e só indícios, digo bem. Estão referidos nos relatórios. E acerca deles seguir-se-á o caminho natural das coisas: averiguação e envio à jurisdição competente, nuns casos, disciplinar, noutros criminal, quando a investigação resulte. Mas é preciso que expliquemos ao País o que realizámos. Um julgamento? Não. Um inquérito policial? Muito menos. Um inquérito político? Sim. Um inquérito corporativo? Sem dúvida. Um inquérito económico? Principalmente. Não somos juizes. Não invadimos as atribuições de outrem.
É também evidente que não realizámos nem podíamos realizar um inquérito policial; nem ele interessava ao País, porque para isso já existem, além das várias policias e da fiscalização da Intendência Geral dos Abastecimentos, as inspecções do Conselho Técnico Corporativo, as sindicâncias ordenadas pelo Governo e ainda outras formas de conhecer faltas ou crimes.
É claro que, por efeito do nosso inquérito, veio parar-nos às mãos um certo número de queixas relativas a delitos ou supostos delitos, que transmitimos ou transmitiremos às entidades competentes. Mas, na realidade, não era esse objectivo policial o que pretendíamos atingir. Desejámos muito mais, e muito mais importante.
O quê? Uma coisa que nunca se fez em qualquer situação política: a revisão técnica, honesta, corajosa e profunda daquilo que durante os últimos anos se passou no sector económico. E esse estudo geral foi realizado, doesse a quem doesse, para conhecermos as causas dos males económicos e encontrarmos o remédio respectivo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Que mais interessa ao País?
Entregarmos-lhe duas ou três cabeças de criminosos ou darmos solução aos problemas económicos, de maneira a quo todos vivam melhor?
Se fôssemos demagogos, optaríamos pelo método usado nessa sublime democracia que eu amo sobre todas as coisas - a Rússia. Na Rússia, quando um plano económico não dá resultado, o Governo, em vez de confessar o erro, arranja um bodo expiatório, acusa esse bode de sabotagem económica, promove um julgamento soleníssimo, condena o bodo e fuzila-o ou dá-lhe um tiro na nuca. Em seguida afirma quo o sistema está intacto e que a orgânica está também intacta. A culpa fora apenas de certos elementos de actuação, homens miseráveis que traíram, e por isso mereceram punição exemplar.
Tudo continua como dantes, excepção feita do número de covais nos cemitérios, mas o povo fica satisfeito com o «Paizinho», porque lhes entregou uma cabeça de responsável ou de pseudo responsável.
Em vez de estudar problemas, é sempre mais fácil apontar um ou mais homens como criadores de todas as misérias. Mas quase nunca ó verdadeiro.
Não pretendemos, nem podíamos pretender, coisa semelhante. Não buscamos desculpas nem subterfúgios. Buscamos remédios.
Realizámos um inquérito económico, e um inquérito» corporativo. Supomos ter definido as causas dalguns males e nas conclusões do nosso relatório julgamos ter encontrado os remédios. Encontrámo-los? Não os encontrámos?
A Assembleia julgará!
Afinal, perante a Assembleia Nacional, somos as únicas pessoas que vão ser julgadas, pois vimos pedir para os nossos actos a sanção de V. Ex.ªs, se porventura a merecermos. Para que bem nos julguem, há que verificar que não adoptámos o elogio sistemático dos aduladores, nem a condenação também sistemática que usam as oposições.
Nuns casos a comissão de inquérito foi completamente radical. Atirou-se aos erros com a mesma coragem que S. Jorge aos mouros. Noutros entendeu haver atenuantes. Noutros admitiu as dirimentes. Mas sempre decidiu sem olhar a pessoas ou a situações políticas, e apenas de harmonia com a nossa própria consciência.
Mas serão justas as soluções que apresentámos? Estou convencido de que acabaremos por não agradar a ninguém. No dizer de alguns, seremos excessivos. No de outros, benevolentes ou imprecisos. E, para muitos homens nulos, não passaremos de zeros.
Como exemplo desta impossibilidade de agrado, permitam V. Ex.ª que lhes conte um pequeno episódio do inquérito.
Ia passado o dia em que terminara o prazo de entrega das queixas e reclamações. Eis senão quando, dos píncaros mais altos do Olimpo, iluminados pela luz vermelha do sol oriental, uma comissão delegada de Júpiter omnipotente mandou-nos pelo centurião da guarda uma nota combinatória:
«Salvé, ó comissão de inquérito! Esperámos precisamente que terminassem todos os prazos de queixa para vos dizer o seguinte :
«Somos portadores das verdades eternas. Sabemos quanto se passou e quanto vai passar se. Mas como aque-
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las velhas esfinges que estão muito em moda nas democracias, só falamos por enigmas.
Se quiséssemos falar claro, quanto teríamos que contar à comissão de inquérito! Entretanto, nada desejamos
dizer. Deuses sublimes, desprezamos os simples inquiridores que nunca atingirão as alturas do Olimpo. Vós, mortais desprezíveis, sois suspeitos. Incapazes de averiguar seja o que for, estamos certos de que só desejais passar atestados do bom comportamento. Por isso nunca
conhecereis as mil e uma verdades que nos recusamos a
dizer. Se as revelássemos, vós não as compreenderíeis nem as adoptaríeis, mas o sol tremeria nas alturas. Calamo-nos para não deixar o Mundo às escuras».
E por mais que nós pedíssemos e suplicássemos, quase ajoelhados, os deuses do Olimpo, que a luz vermelha do sol ilumina, embora portadores de verdades imortais, continuaram mudos, mudos, mud... os e negaram-se a responder. Afinal, embora disfarçados sob a caraça de Júpiter, eram homens que nada sabiam...
Mas basta de ironias ou de referências a esses deuses omnipotentes que, em nome da democracia, nos multam por ter cão e por não ter. A única verdade reside nesta pergunta: qual foi a situação política anterior a 28 de Maio de 1926 que teve a coragem de realizar aquilo
que nós realizámos em matéria de inquérito?
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Pergunto cara a cara a esses homens, que, segundo parece, já não são do M. U. D., porque até de lá os deitaram fora: - eram os senhores capazes daquilo que nós fizemos? Teriam a heroicidade de apresentar um relatório onde, na expressão feliz do presidente
da nossa comissão, por detrás de cada palavra, de cada período, de cada asserção, se encontra um facto indiscutível, averiguado?
Em tantos anos de República, alguma vez procederam de forma semelhante? Não!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Os senhores guiaram-se por ideias preconcebidas. Anteciparam se. Julgaram-nos por si próprios, antes do havermos executado a missão que a Assembleia nos entregara.
Exigimos que nos digam se porventura não a cumprimos com lealdade, com correcção e com patriotismo. Sei que não seriam capazes de fazer o mesmo. Pergunto agora se tom autoridade para acusar o Estado Novo por qualquer dos actos que nós mencionámos no relatório da comissão de inquérito. Todos esses erros e muitos outros, multiplicados por 10, por 20 ou mesmo por 100, formaram a actuação económica dos homens que hoje se encontram a chefiar a oposição!...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Exactamente por culpa do descalabro
económico que nos legaram, a indústria, o comércio e a agricultura constituíram contra eles a união dos interesses económicos, e nós tivemos depois de fazer a Revolução.
Apoiados.
Por último:
Os remédios ou conclusões indicados pela comissão de inquérito podem não parecer bastantes, porque quando se passa da generalidade para a especialidade é sempre impossível agradar a toda a gente. Mas, a meu ver, como bem se diz no relatório da comissão de inquérito, tais conclusões podem consubstanciar-se numa pequena fórmula geral que enuncio assim :
«Coordenar a orientação superior, harmonizar interesses, simplificar métodos e serviços, libertar de peias a iniciativa particular, de maneira a torná-la independente de autorizações nos casos correntes, e abreviar sistematicamente as resoluções, evitando perdas de tempo a governantes e governados».
Estou convencido de que esta fórmula encontrará aplauso geral e que contribuirá para aliviar uma atmosfera que nos diziam pesada, mas que, graças a Deus e devido à actuação do actual Ministro da Economia e do Subsecretário do Comércio e Indústria, já se desanuviou imenso e dentro de pouco tempo melhorará extraordinariamente.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. A próxima sessão será amanha, à hora regimental, com a mesma ordem do dia que estava dada para hoje. Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 50 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
António Maria Pinheiro Torres.
Artur Proença Duarte.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
João Garcia Nunes Mexia.
Jorge Botelho Moniz.
José Alçada Guimarães.
José Teodoro dos Santos Fonnosinho Sanches.
Luís Mendes de Matos.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Querubim do Vale Guimarães.
Ricardo Malhou Durão.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
Álvaro Eugênio Neves da Fontoura.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Carlos de Sá Alves.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Mário Borges.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Rafael da Silva Neves Duque.
O REDACTOR - Luís de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA