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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 144

ANO DE 1948 15 DE ABRIL

IV LEGISLATURA

SESSÃO N.º 144 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 14 DE ABRIL.

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira

Nota. - Foi publicado o 4.º suplemento ao Diário das Sessões n.º 133, que contém o parecer da comissão encarregada, de apreciar as contas públicas de 1946.

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 50 minutos.

Antes da ordem do dia. - O Sr. Deputado Antunes Guimarães referiu-se às comunicações ferroviárias no Norte do Pais.
O Sr. Deputado Pacheco de Amorim ocupou-se da angustiosa situação em que se encontram os guardas florestais requisitados pelo Serviço de Requisição de Lenhas.
O Sr. Deputado Bustorff da Silva falou sobre o decreto-lei n.º 36:824.

Ordem do dia. - Prosseguiu a discussão, na generalidade, do projecto de lei sobre inquilinato, do Sr. Deputado Sá Carneiro, e da proposta de lei relativa a questões conexas com o problema da habitação. Usaram da palavra os Srs. Deputados Mendes Correia e Bustorff da Silva.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 30 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Álvaro Eugénio Neves da Fontoura.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
João Ameal.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Sá Alves.

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João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Gosta Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquível.
José Luís da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Martins de Mira Galvão.
José Nunes de Figueiredo.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Mendes de Matos.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel Colares Pereira.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
Mário Borges. Mário de Figueiredo.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Spratley.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teotónio Machado Pires.
D. Virgínia Faria Gersão.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 73 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 15 horas e 50 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Antunes Guimarães.

O Sr. Antunes Guimarães: - Sr. Presidente: apesar dos «velhos do Restelo», que teimosamente votam os caminhos de ferro ao ostracismo, considerando-os anacronismo que já nada justifica e acusando-os de graves prejuízos, que se .exprimem em explorações deficitárias que levam as respectivas empresas à ruína, verifica-se que, de uma maneira geral, toda a Nação continua a considerá-los factores insubstituíveis para a conveniente organização dos .transportes e em representações a esta Assembleia e ao Governo, ou através da imprensa, vai demonstrando seu grande anseio pela construção de novas linhas, de alterações de traçados e de outras características, actualização de material circulante, electrificação de determinados percursos e adaptação de horários e tarifas às realidades económicas e às exigências legítimas dos povos, tudo isto acompanhado de argumentos demonstrativos de que não é de ânimo leve nem por mera fantasia que tais reclamações sobem até às altas esferas.
Repetidas vezes, na presente sessão legislativa, vários ilustres Deputados têm sido valiosos intérpretes das
populações que aqui representam, para as suas terras não serem esquecidas no que respeita ao fomento ferroviário.
Assim é que, desenvolvidamente e com grande cópia de argumentos, foi aqui tratado o troço de interligação das linhas do Norte e Oeste, para se atingir Peniche, do lado do ocidente, e Setil, do oriente; a linha de prolongamento do sistema de bitola reduzida da Beira Alta até às margens do rio Douro; certos traçados da Beira Alta e outros do Alentejo, que não discrimino para não tomar muito tempo à Assembleia Nacional e também porque tudo consta do Diário das Sessões.
Ainda na sessão de ontem o incansável e muito ilustrado Deputado Sr. engenheiro agrónomo Mira Galvão se referiu mais uma vez ao problema ferroviário do Alentejo, levando até ao Governo a aspiração da cidade de Beja por justificados melhoramentos na estação daquela cidade, onde, felizmente para a economia daquela produtiva região, se regista um grande congestionamento de tráfego, a que importa dar quanto antes a indispensável saída.
Sr. Presidente: em matéria ferroviária registou recentemente a imprensa dois acontecimentos dignos desta Assembleia pelos planos anunciados e promessas feitas.
O primeiro teve lugar julgo que na estação de Casa Branca, onde a 21 de Março último o muito ilustre Ministro das Comunicações e distinto minhoto, Sr. coronel Gomes de Araújo, se deslocou, com o pessoal do seu Gabinete, altos funcionários dos caminhos de ferro e outras entidades categorizadas, para inaugurar o serviço de automotoras entre Casa Branca e Vila Viçosa, tendo feito o trajecto num daqueles veículos de construção sueca, motor Diesel e lotação para sessenta e cinco pessoas.
O ilustre titular das Comunicações aproveitou essa oportunidade para algumas afirmações sobre política ferroviária, todas elas da maior transcendência e destinadas a grande projecção económico-política.
Aludiu ao estado actual das vias e do material circulante, esclarecendo ser urgente a aquisição de 100:000 toneladas de carril e de 1 milhão de travessas e a substituição de algumas pontes e aquisição do correspondente material circulante, para a indispensável garantia de segurança, comodidade e velocidade, o que exigirá o dispêndio de cerca de 400:000 contos.
Falou da encomenda, pela Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, de seis automotoras suecas, doze nacionais, seis atrelados para as primeiras e sessenta carruagens, e, pelo Estado, de dezoito automotoras suecas (quinze para via larga e três para estreita) e mais seis atrelados; material que deve entrar em serviço no corrente ano.
Referiu-se também a trabalhos importantes de recondicionamento de carruagens que não satisfaziam plenamente.
Citou números impressionantes: o dispêndio previsto em material é da ordem dos 400:000 contos, em carruagens e automotoras 140:000 contos e em material de tracção 190:000 contos.
Disse que a projectada electrificação de algumas linhas deve ultrapassar 1 milhão de contos.
Tão grandioso programa iniciou-se naquela data, que ficará memorável, com a entrada em exploração das referidas automotoras.
Sr. Presidente: o ilustre Ministro das Comunicações fechou o seu notável discurso aludindo às linhas gerais da política de transportes, na parte respeitante a caminhos de ferro, com as seguintes palavras:

O conhecimento das verdadeiras necessidades e dos meios que melhor as podem satisfazer, analisados à luz das exigências económicas, sociais e de

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defesa, indicarão o caminho a seguir. Eis o que o estado em corso há-de dizer, e então o País saberá com o que, no aspecto de construção de novas linhas, tem a contar, salvo, evidentemente, os casos excepcionais de pequenos ramais destinados a fechar as malhas da rede existente ou a completá-la em pequenos percursos.
É um problema em cuja solução terão de ser inteiramente postos de lado o efeito popular e o interesse local, para apenas se observarem, corajosamente, o interesse nacional de ordem económica e estratégica.
Foi com base neste critério que se cometeu ao Conselho Superior de Transportes Terrestres, no decreto-lei que o cria, o encargo de proceder à revisão da rede ferroviária do continente, aprovada Selo decreto n.º 18:190, publicado em 10 de Abril e 1930, tendo em vista, nessa revisão, a evolução das circunstâncias que influem na escolha do sistema mais conveniente de transportes terrestres.

Sr. Presidente: notáveis afirmações, em que se revela confiança e optimismo, baseados no conhecimento das realidades e possibilidades.
O plano da rede ferroviária, publicado em 1930, em decreto que tem a minha assinatura, ao lado da de todos os outros Ministros, cuja apreciação me deu muita honra e satisfação, baseadas no optimismo que me animava, resultara do estudo de técnicos distintíssimos, que foram, como agora referiu o ilustre Ministro das Comunicações, norteados pelas conveniências económicas, sociais e de defesa nacional.
E, embora tivessem sempre prestado a maior atenção às reclamações locais (por via de regra preciosas e sempre dignas de serem ouvidas com a atenção dispensada pelo médico ao seu doente), para o que se ordenaram os inquéritos indispensáveis, em caso algum fora alvejado o efeito popular ou isoladamente atendido o interesse local, se bem que nunca posto de lado.
Repito: este nunca foi esquecido, mas sempre devidamente integrado no interesse nacional, tanto de ordem económica como estratégica.
Ao saudar o Sr. coronel Gomes de Araújo pela sua oportuníssima política de transportes e corajosas afirmações sobre caminhos de ferro, que surgem como o renascimento de um rumo que fora, quase logo a seguir à aprovação do plano da rede ferroviária, por assim dizer totalmente abandonado, eu afirmo que me felicitaria que os múltiplos interesses fossem devidamente tidos em consideração e que o importante diploma assim elaborado fosse depois submetido à Assembleia Nacional.
Sr. Presidente: ainda algumas palavras sobre matéria ferroviária.
No dia 10 do corrente foi inaugurada, com a presença das autoridades do Porto e altos funcionários dos caminhos de ferro, representantes dos organismos económicos e muitas outras pessoas, a nova estação (bem que ainda provisória) da Trindade, cabeça da linha de via reduzida do litoral do Norte, que serve Póvoa de Varzim e Vila do Conde e entronca com outra linha, de via igual, que vai a Trofa, Guimarães e Fafe, depois de atravessar as importantes regiões fabris do Ave e do Vizela.
Nessa festa inaugural, a que não pude assistir por um motivo tristíssimo, o Sr. Fausto de Figueiredo, impulsionador activo e inteligente de obras de vulto e pertencente à direcção da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, fez declarações importantes, e, entre elas, a de que se ia electrificar a linha da Trindade (Porto) a Vila do Conde, Póvoa de Varzim e Famalicão.
Disse que o tráfego daquela linha, actualmente de pouco vulto, não deixaria de aumentar, mercê da tendência de expansão dos habitantes do Porto para as zonas
servidas por aquela linha, onde se realizam magnificas condições de habitação.
Devo. dizer que também naquela direcção se vai realizando intensamente a descentralização fabril, que muito tem prejudicado a cidade invicta.
Sr. Presidente: do vasto plano de electrificação da nossa rede ferroviária, este, do caminho de ferro do Porto à Póvoa de Varzim e Guimarães, é, sem contestação possível, dos que mais garantias realizam de uma produtiva exploração e que mais copiosa soma de bons serviços pode vir a prestar em toda aquela importante, laboriosa e densamente povoada região suburbana do grande centro portuense.
Felicito-me por uma tão oportuna e acertada resolução, que, além dos benefícios citados, demonstrará quanto foi oportuna a construção do túnel da Trindade, cuja iniciativa se deve ao nosso ilustre colega Sr. Ricardo Spratley e cujo decreto de aprovação tive a honra de assinar, e a ligação da Senhora da Hora à Trofa, que foi aprovada pelos ilustres Ministros que me precederam na pasta do Comércio e Comunicações.
E tais obras irão sendo aumentadas na sua importância à medida que se prosseguir no desenvolvimento daquele sistema ferroviário até Viana, por Apúlia, Ofir, Fão e Esposende, e vale do Ave acima, através da região industrial, e realizando as variantes indispensáveis para a aproximar sobretudo da praia de Vila do Conde.
E maior será quando se efectivar a unificação da sua bitola comi a da rede urbana da cidade do Porto, constituindo assim um grande sistema da capital nortenha com a zona do Norte e parte das Beiras.
Sr. Presidente: desta forma se irá valorizando o património nacional no seu importante capítulo ferroviário e concorrendo para a prosperidade dos nossos trabalhadores e bem-estar da população portuguesa.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Pacheco de Amorim: - Sr. Presidente: pedi a palavra para chamar a atenção do Governo para a situação angustiosa em que se encontram muitos guardas florestais, modestíssimos funcionários cujos vencimentos oscilam entre 468$ e 760$ mensais.
Foi o caso que, tendo sido em tempos mandados prestar serviço de marcação do arvoredo requisitado pelo Serviço de Requisição de Lenhas, de certa altura em diante começaram a ser-lhes pagas com irregularidade as despesas de deslocação a que por lei tinham direito. Por fim estes pagamentos cessaram. Como estes funcionários continuaram neste serviço, os vencimentos em atraso chegaram a ultrapassar 11 contos para alguns deles!
Como resultado desta situação anómala, os guardas em questão ou pediam dinheiro a juro para irem cobrindo as despesas a que se viam obrigados ou ficavam a dever nas pensões em que se hospedavam.
Em 27 de Janeiro do corrente ano foi publicado o decreto-lei n.º 36:736, que, para de certo modo remediar esta angustiosa situação, dispôs no artigo 6.º o seguinte:
As dívidas do Serviço de Requisição de Lenhas aos guardas florestais encarregados do serviço de marcação de árvores serão definitivamente apuradas e pagas, mesmo que respeitem a anos económicos anteriores a 1947.

Ora a verdade é que à data da publicação deste decreto-lei já estavam apuradas as mencionadas dívidas e, apesar disso, já lá vão mais de dois meses e ainda estes pagamentos se não fizeram.
Acresce que para alguns dos pobres guardas que estão a pagar juros o que têm a receber já lhes não

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chega para pagarem as dividas contraídas por este motivo.
Chamamos a atenção do Governo para esta situação moralmente grave, pois resulta de um acto que no Catecismo se acha classificado entre os «pecados que bradam aos céus».
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Bustorff da Silva: - Sr. Presidente: em 9 do corrente mês foi publicado no Diário do Governo n.º 82, 1.º série, o decreto n.º 36:824. Quero apenas chamar a atenção do Governo para a inoportunidade dessa publicação, uma vez que se está discutindo nesta Assembleia a sua proposta referente às questões conexas com o problema da habitação, que abrangem a matéria a que o aludido decreto se refere.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Elucido à Assembleia de que o decreto a que se refere o Sr. Deputado Bustorff da Silva estabelece a forma para o reconhecimento da utilidade pública das expropriações requeridas por empresas que exploram indústrias de interesse nacional.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continuam em discussão, na generalidade, o projecto de lei do Sr. Deputado Sá Carneiro sobre inquilinato e a proposta de lei relativa às questões conexas com o problema da habitação.
Tem a palavra o Sr. Deputado Mendes Correia.

O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: o assunto em discussão é de extrema magnitude, da maior gravidade moral e social. Há da minha parte, ao subir a esta tribuna para dele me ocupar, uma certa ousadia, visto eu estar longe de ser um técnico da jurisprudência.
Mas não entrarei em pormenores técnicos. Limitar-me-ei ao enunciado de alguns princípios, e faço-o obedecendo a um imperativo de consciência e certo de que me liga como cientista aos ilustres juristas que me escutam estreita afinidade de método e de processo, porque a lógica é só uma, o método científico é uno, havendo até íntima semelhança entre o raciocínio do jurista e o raciocínio do próprio matemático. Julgo que o melhor justa é aquele que sabe pôr em equação com nitidez e clareza o seu raciocínio, e isso aproxima-o naturalmente dos processos e da mentalidade dos matemáticos. A lógica, repito, é só uma. A verdade é a verdade.
Simplesmente, enquanto a Matemática é uma ciência exacta e rígida, o Direito sofre necessariamente uma evolução.
Ocupamo-nos da casa, do alojamento. A casa foi comparada já por Spengler, o autor famoso da Decadência do Ocidente, à concha dos moluscos, tão estreitamente ligada ela se encontra, na sua fisionomia e na sua função, com a própria existência do homem.
O grande antropogeógrafo Jean Brunhes enumerava três categorias ou três classes fundamentais de factos geográficos correspondentes às necessidades vitais primárias: a alimentação, o vestuário e a habitação. E Henri Bordeaux dizia que a «questão do alojamento é talvez o primeiro problema social».
Não quero cansar a atenção de quem me escuta com a menção de pareceres vários sobre a importância do assunto, mas, sem receio de cair num estafado lugar-comum, direi, sintetizando estes pareceres, que o lar é a melhor escola de virtudes domésticas e o bom alojamento é a melhor garantia da felicidade e da civilização dum povo.
Tenho um interesse já antigo pelo assunto. Ainda estudante de Medicina, trabalhei numa investigação sobre as condições de salubridade nas «ilhas» da cidade do Porto. Recolhi algumas dezenas de amostras de ar que respiravam os moradores dessas «ilhas», verifiquei a cubagem de muitos aposentos em que dormiam e cheguei a resultados que posso classificar de verdadeiramente impressionantes, de profundamente desoladores.
Sendo indicada a cubagem de 25 metros cúbicos como a satisfatória, cheguei a encontrar nalgumas dessas habitações números correspondentes a menos de 3 metros cúbicos por pessoa. Era gente empilhada.
Verifiquei também, Sr. Presidente, que as análises bacteriológicas do ar que se respirava naquelas mansardas conduziam a proporções de micróbios mais elevadas do que as verificadas no ar dos esgotos da cidade de Paris.
Quando presidente da Câmara Municipal do Porto, promovi um inquérito sobre as condições de salubridade dessas «ilhas», e chegou-se, entre outros resultados, à conclusão de que só 3 por cento das moradias é que tinham regulares condições de salubridade.
E viviam nas 13:000 casas de «ilhas» do Porto quarenta e tantos milhares de seres humanos. A renda predominante para cada família era inferior a 31$ mensais. O inquérito fez-se em 1939.
Tomei também, como presidente da Câmara Municipal do Porto, a iniciativa da construção de dois bairros municipais de casas económicas. E promovi a construção de um bloco de cento e quinze moradias, que foi, com grande injustiça, apelidado de «bloco Karl Marx», porque se supunha que ele tinha muito de parecido com um bloco de habitações do mesmo nome da cidade de Viena, bloco que se tornou célebre na história dos conflitos sociais dos últimos tempos. Mas verifiquei com satisfação que, quer em alguns pareceres que tenho presentes, quer em estudos publicados no Boletim de Urbanização, ainda recentemente distribuído aos Srs. Deputados, essa ideia de blocos é afinal de contas hoje plenamente aceite pelas entidades responsáveis deste País, ao lado das casas económicas unifamiliares, naturalmente preferidas.
Hoje, como quando na presidência daquele Município, direi que se não posso ser útil aos menos favorecidos da sorte não realizo a missão que me impõem a consciência e o sentir.
É preciso, no entanto, dizer bem alto nesta Casa, como lá fora reconhecer em todos os instantes, a grande importância e valor da obra realizada nos últimos anos, neste domínio, pelo Governo deste País.
Evoco, sobretudo, dois nomes ilustres de iniciadores em matéria de construção de casas económicas em Portugal, com o elogio que merecem, mormente pela largueza de visão que mostraram na sua iniciativa, de modo a que ela represente uma função social útil e real.
Refiro-me ao Dr. Oliveira Salazar e ao saudoso Ministro Duarte Pacheco.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É oportuno mencionar, sobre números oficiais, que o Estado, desde 1934, construiu neste País 5:535 casas económicas e que estão em construção 2:320.
Mas eu seria injusto se esquecesse que para a construção de casas de renda económica tem sido também excelente o labor desenvolvido por algumas câmaras municipais, por caixas de previdência e por algumas entidades privadas.

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Porém, é tempo de me ocupar mais detidamente do projecto e da proposta em discussão, e a esse respeito quero reconhecer também a alta intenção que da parte do Sr. Dr. Sá Carneiro e da parte do Governo do País presidiu à confecção destes dois documentos.
Desejo salientar, de um modo especial, o que há de simpático no projecto do Sr. Dr. Sá Carneiro em se atender à limitação das possibilidades de alguns aumentos de renda da parte de certos inquilinos, propondo-se a constituição de um fundo especial, cuja inviabilidade foi, aliás, proclamada no parecer da Câmara Corporativa e reconhecida, implicitamente, na proposta do Governo, mas a respeito do qual eu direi dentro de alguns momentos o que penso.
A gravidade da questão do alojamento não é exclusivamente portuguesa. Ela tornou-se mesmo especialmente intensa nos países devastados pela guerra. Em França fez-se em 1945 um inquérito às condições de existência de 1:080 famílias, pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos, e verificou-se que a percentagem para o aluguer de casa era, nessa altura, de 3,2 por cento nos orçamentos de operários e de 6,8 por cento nos dos reformados e, de um modo geral, das classes inactivas.
A média era de 3,9 por cento, mas este número é muito inferior ao que era anteriormente em França, pois em 1934 a percentagem atingia 10 por cento das despesas familiares.
Também na Finlândia a política do alojamento era intensa antes dos últimos acontecimentos.
Promoveu-se a construção de casas numerosas e a preço acessível, facultando-se empréstimos a baixo juro e com facilidades de amortização para essas construções. A lei de 1944 estabeleceu subvenções e a concessão de terrenos para construção; nos imóveis era fixada a proporção de dois terços das moradias para as famílias numerosas. Esta preocupação do número de pessoas da família domina, de um modo geral, a política de alojamento em quase todos os países que do assunto se ocupam.
Na Suíça o alojamento, como tradicionalmente é confortável, o seu encargo representa 15 a 20 por cento do salário; só nos meios mais abastados é que chega a atingir 30 por cento do rendimento.
Nalgumas cidades, como Zurique, a municipalidade prevê um crédito anual destinado a dar um subsidio de alojamento, variável com o número de filhos, àqueles indivíduos cujo salário seja inferior ao julgado necessário. É preciso notar que em França se previa ultimamente um esforço idêntico.
Na Suíça existem créditos à iniciativa privada para edificações de imobiliários e as cooperativas de construção desfrutam ali um grande favor. Só por si, nos últimos anos, têm realizado uma tarefa monumental, com a construção de mais de 20:000 habitações.
Em Portugal o nível de vida complica bastante o problema; materiais de construção caros e, por vezes, insuficientes, terrenos caros, mão-de-obra especializada insuficiente e, por outro lado, pouca margem para elevadas rendas nos orçamentos familiares.
Posso apresentar à Assembleia os números, que julgo inéditos, de um inquérito sobre as rendas desejadas pelos membros de uma sociedade de construções. São eles: até 150$ por mês, 11,3 por cento; de 151$ a 300$, 53,8 por cento, etc. Quer dizer que mais de metade dos indivíduos inquiridos desejava, para seu alojamento e de suas famílias, casas cujas rendas, para caberem dentro das suas possibilidades, estivessem compreendidas entre aqueles 151$ e 300$.
Em matéria de inquilinato há interesses antagónicos e múltiplos. Cada um tem um caso ou centenas de casos a contar; mas o que se torna necessário, para quem tem de decidir um assunto desta natureza, é, criteriosamente, procurar qual a posição, qual a orientação geral a adoptar.
Devo dizer que, por mim, pouco me importa que aquilo que vou dizer agrade ou desagrade a este ou àquele. Vou falar em obediência a imperativos da minha consciência, vou falar com a coragem que uma questão destas exige.
Penso, desde já, que na discussão de um projecto ou proposta de lei que não envolve modificações em matéria constitucional nos devemos naturalmente colocar dentro da Constituição, a qual, no seu artigo 35.º, diz:

Capital, propriedade e trabalho desempenham uma função social em regime de cooperação económica e solidariedade, podendo a lei determinar as condições do seu emprego ou exploração conformes com a finalidade colectiva.

Tenho presentes as palavras recentes, bem oportunas, de um homem público português que é uma das mais altas figuras políticas e intelectuais da nossa terra - o Sr. Prof. Doutor Marcelo Caetano -, que disse:

A repartição das riquezas tem de ser feita com a maior equidade: através do salário, incluindo nesta designação todas as formas de retribuir e beneficiar o trabalhador pela empresa, quer em dinheiro, quer em comodidades, vantagens e educação, através do imposto e através das obras de interesse público que os ricos devem fundar, sustentar e estimular.

E adiante acrescentou:

Não sou contra a existência dos ricos; mas o que proclamo é o seu dever de empregarem o supérfluo em fundações de utilidade colectiva, em instituições .de cultura, assistência e educação, largamente, generosamente, à semelhança do que os milionários americanos consideram honra ë dever de gratidão para com o público que os ajudou a enriquecer. Se esta transformação de mentalidade se desse e os ricos de haveres materiais fossem - não apegados aos bens terrenos - senhores e não servos do seu dinheiro, beneméritos e não perpétuos beneficiários dos seus concidadãos a questão social estaria meio resolvida.

Esta doutrina, que eu não exporia melhor, é também a doutrina das encíclicas papais, desde Leão X (De Rerum Novarum, Quadragésimo Anno, etc.). Não tem sido outra a doutrina sustentada pelos pontífices. Não é outra a concepção cristã da riqueza.
E o Direito tem naturalmente de evoluir, adaptado às circunstâncias novas, às exigências da sociedade nova.
Numa discussão na Ordem dos Advogados sobre o projecto do Sr. Dr. Sá Carneiro e sobre o parecer da Câmara Corporativa a que ele deu lugar um ilustre advogado, o Sr. Dr. Tito Arantes, enunciou os seus pontos de vista sobre inquilinato, na sua expressão, em dez mandamentos, os quais, como se diz no Catecismo, se encerram em dois, nestes termos:

1.º Garantir ao inquilino a estabilidade total da casa em que habita;
2.º Garantir ao senhorio a remuneração condigna do seu capital.

Salvo o devido respeito, permito-me modificar estes dois mandamentos, ampliando-os e adaptando-os talvez melhor às circunstâncias, desta maneira:

1.º Garantir ao inquilino a estabilidade total da casa em que legitimamente habita e uma renda compatível com os seus recursos e encargos familiares;

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2.º Garantir ao senhorio a remuneração condigna do seu capital, dentro do critério dos deveres das pessoas mais favorecidas para com os pobres e para com a colectividade em geral.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Permito-me salientar especialmente a importância que este assunto do inquilinato da habitação reveste no ponto de vista da família e da criança.
Num recente artigo de Sauvy na revista La Population, do Centro de Estudos Demográficos de França, afirma-se, a propósito da família e da criança perante o imposto, qualquer coisa que me pareceria oportuno proclamar também relativamente ao problema das rendas para a habitação, e é que os encargos de família devem ser menos tributados, sendo um erro financeiro a negligência da amortização do capital humano. É preciso evitar pôr tributação ou encargos excessivos sobre a família, o que Sauvy considera «um consumo desse capital, o mais precioso de todos».
Postas estas indispensáveis considerações preliminares, passarei à apreciação, em linhas gerais, da proposta do Governo, que substituiu, de certo modo, o projecto do nosso ilustre colega Sr. Sá Carneiro, e naturalmente vou referir-me, embora de modo ligeiro, a alguns capítulos que ali precedem o da actualização e fixação de rendas, seguramente o que mais interessa e agita a opinião pública.
Sobre expropriações já aqui disse há dois anos o que pensava.
Mantenho-me fiel ao princípio da arbitragem. Estarei só, mas, na minha convicção profunda, é necessário, para se fazer qualquer coisa de grande neste País, recorrer a esse meio, fixado na legislação dos centenários, o que não exclui naturalmente o dever, para os árbitros, de não exorbitarem, de serem cuidadosos e justos.
Congratulo-me com o reconhecimento do princípio da maior valia, que eu também tinha enunciado nas minhas intervenções rápidas há dois anos a propósito de expropriações.
Mas vou mais longe do que a proposta.
Apresentarei um aditamento estendendo mesmo aos prédios urbanos os direitos colectivos sobre a maior valia, admitidos na proposta do Governo para prédios rústicos não expropriados. Mas entendo também que para embaratecimento da construção, cada vez mais, nalguns pontos, se torna necessário um bom aproveitamento do espaço. E, se este aproveitamento do espaço permite a construção de blocos, não deve excluir-se a formação de lotes de terrenos que permitam a construção de pequenas moradias unifamiliares.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sobre o direito de superfície, não quero discutir um assunto que tem um carácter eminentemente técnico e jurídico.
Por mim, parece-me, no entanto, que se trata da renovação do velho regime de propriedade imperfeita, que se tinha abolido; mas não manifestarei a minha discordância nesse ponto, porque não me considero suficientemente autorizado a ter uma opinião firme a tal respeito.
Em matéria de sociedades anónimas, entendo que não devem apenas considerar-se as sociedades para construção de casas de renda económica ou limitada, mas também as casas unifamiliares, para propriedade individual dos ocupantes, para propriedade das famílias que nelas habitam.
Parece-me muito interessante esse aspecto da solução do problema da habitação, segundo um princípio adoptado já pelo Estado nas casas de renda económica, onde
o inquilino pode passar a chamar sua à casa em que habita após alguns anos.
Apresentarei uma emenda no sentido da concessão de facilidades de crédito, com empréstimos a baixo juro e amortização a longo prazo.
E, ao mesmo tempo, eu, que sou um entusiasta dos planos de urbanização, ouso, em nome dos interesses dos menos favorecidos, lembrar a vantagem de nesses planos se não terem ambições megalómanas e exigências excessivas que tornem os terrenos e a construção de tal maneira dispendiosos que as edificações se tornem inacessíveis, mesmo a juro módico, às classes menos abastadas.
O problema crucial, candente, nesta discussão é o da actualização e fixação das rendas de casa - um dos capítulos da proposta.
Reconhece-se implicitamente nesta e explicitamente nos pareceres da Câmara Corporativa a necessidade de caminhar de vacar nos aumentos que se pretende estabelecer nas rendas das casas de habitação para se atingir o rendimento colectável respectivo. Eu acho também que é bom ir devagar, para não termos de voltar pára trás. Entendo que este assunto merece prudente e cauteloso estudo, devendo-se ter procedido previamente a inquéritos e estatísticas, a fim de evitar qualquer precipitação.
Como a proposta e o projecto em discussão e como os pareceres da Câmara Corporativa, considero preferível tomar o rendimento colectável como limite do aumento de rendas a conceder eventualmente.
É preferível, de facto, aos coeficientes arbitrários sobre rendas desigualmente estabelecidas. É um valor oficial, moralmente é mesmo o indicado, porque é sobre ele que incide a tributação, e é, além disso, susceptível de rectificação.
Mas contra o que me pronuncio da maneira mais aberta e convicta, quer quanto aos prédios já construídos como para os que venham a construir-se em data próxima, é contra o estabelecimento imediato da plena liberdade contratual.
Não concordo, numa época de tabelamentos estabelecidos por exigências imperativas do bem público, não concordo, repito, que se abra uma excepção precisamente numa das matérias mais delicadas no ponto de vista económico e social, como é a questão do alojamento.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Já sei qual é a objecção que me será feita: assim ninguém quer construir, o ritmo da construção afrouxará, com todas as suas graves consequências.
Responderei que o Estado terá maneira de obrigar a empregar na construção de prédios uma parcela das suas sobras àqueles que as tenham.
A este respeito não faço ainda nenhuma proposta. Estou convencido de que, no dia em que o ritmo da construção, que, segundo as estatísticas oficiais, está progredindo, diminuísse por virtude das restrições sensatas e prudentes da liberdade contratual nos arrendamentos, o Governo se veria forçado a tomar a iniciativa de providências contra esse mal. Haveria maneira de verificar quem, tendo sobras provenientes dos seus rendimentos, poderia utilizar uma parte delas em construções necessárias ao bem público.
Outra objecção está escrita no próprio parecer da Câmara Corporativa e foi aceite na exposição já citada do Sr. Dr. Tito Arantes: é a de que são «repugnantes» as devassas à fortuna individual. Não penso assim. A meu ver, merece, de facto, respeito e simpatia a pobreza autêntica; merece respeito e simpatia a riqueza dos filantro-

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pôs, dos beneméritos; mas não merece nem respeito nem simpatia, da mesma maneira, a pobreza fingida, a riqueza fictícia ou a ostentação afrontosa de luxo e superfluidade. Essas não merecem respeito nenhum.
Tem-se afirmado também que os senhorios não devem assistência aos seus inquilinos. Certamente, quanto à obrigatoriedade relativa ao caso especial dos seus próprios inquilinos. Mas os ricos devem-na aos pobres em geral. E o abrigo familiar é sagrado. Tem de se encontrar a fórmula pela qual se garanta esse abrigo de acordo com a limitação das possibilidades dos orçamentos domésticos dos arrendatários.
Os aumentos de rendas não devem destruir a economia familiar dos que não podem pagar, tendo, evidentemente, organizada a sua vida dentro dum regime de trabalho honesto. E, se nós queremos procurar saber quem são os que merecem apoio, entre os inquilinos, por não poderem pagar os aumentos de renda, também não é mau que se distinga entre os senhorios dignos de toda a consideração e os senhorios gananciosos e desumanos.
Um regime de actualização de rendas não oferece, a meu ver, o perigo já referido de afrouxamento na construção de habitações. Os tabelamentos de géneros alimentícios também não trouxeram consigo o encerramento das casas comerciais. De resto, se a construção afrouxasse, teria o Estado necessidade de impor aos. lucros do capital privado a aplicação duma parcela a esse fim: há vinte e tantos milhões de contos à ordem, nos bancos, dos quais uma parcela pode ser aplicada nesse objectivo.
Apresento um aditamento à proposta do Governo, no sentido da criação de um fundo especial para subvenções familiares aos inquilinos que delas se verifique carecerem para satisfação desses aumentos. Doutro modo não votarei as disposições que autorizam estes.
Em contrário da Câmara Corporativa, não tenho dúvidas sobre a viabilidade da constituição desse fundo, que figurava no projecto do Sr. Deputado Sá Carneiro. Vou propor a fixação de determinadas receitas para esse fim. O que sei é que a renda de casa não pode constituir mais de 10 por cento dos proventos familiares para os mais pobres e com maior número de filhos e de 15 por cento para as classes médias.
Sugiro também nas minhas emendas a criação do Instituto da Habitação, para administrar o referido fundo e pára fazer os inquéritos e estudos necessários, dentro da maior imparcialidade e sem sobreposição à competência de outros serviços públicos.
Esse Instituto deveria integrar-se no Subsecretariado de Estado das Corporações e Previdência Social e deveria ser dirigido por um conselho, em que estivessem representados ou participassem aquele Subsecretariado, o Ministério da Justiça, o Ministério das Obras Públicas, o Ministério da Economia e o Ministério das Finanças. E iria mais longe: para garantir a imparcialidade do conselho, eu incluiria nele representantes dos senhorios e dos inquilinos.
Quanto às sublocações, acho que se deviam de facto reprimir os abusos, pois têm-se cometido abusos clamorosos nessa matéria. Mas há a salvaguardar os casos simpáticos das famílias que recebem em suas casas um ou dois estudantes da província ou um velho parente distante.
Pelo que respeita a despejos dos prédios, penso que a invocação dê obras de ampliação - salvo as determinadas pelos pequenos arranjos urbanísticos - e, do mesmo modo, esta vaga expressão, demasiado genérica, de «mau uso», ou ainda a utilização do prédio pelo próprio senhorio ou por parentes próximos, podem prestar-se a graves atentados contra a estabilidade do lar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não me preocupo agora com as disposições sobre o inquilinato comercial, que, como a proposta consigna, me parece, na verdade, menos susceptível de preocupações no que respeita aos aumentos de renda do que o inquilinato para habitação. Este mereceu mais viva atenção da minha parte, embora o outro deva também ser garantido em certa medida.
Enfim, as emendas e os aditamentos que vou ter a honra de entregar a V. Ex.ª, Sr. Presidente, e as sugestões que formulo não serão perfeitas, não representarão o ideal, mas obedecem a uma intenção sincera de encontrar uma solução justa e humana. O assunto comporta pormenorizações, que deixarei para o prolongamento da discussão.
Não tive, decerto, a pretensão de construir uma nova platónica cidade da utopia. Mas penso que, acima de um Direito envelhecido, há uma moderna justiça social, que decorre dos mais puros e límpidos preceitos cristãos, e sentir-me-ia feliz se a nossa actuação neste caso se pudesse traduzir, para a gente portuguesa, num acréscimo de saúde, de sossego, de bem-estar, de prosperidade, de encanto e alegria de viver.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Bustorff da Silva: - Sr. Presidente: agradeço a V. Ex.ª ter-me concedido o uso da palavra na sessão de hoje.
Assuntos da minha vida particular forçam-me a sair do País amanhã.
Está em discussão uma proposta do Governo sobre expropriações e inquilinato, dois assuntos da mais premente e indiscutível importância.
Sobre o primeiro - problema das expropriações - tive já oportunidade de ter uma intervenção em que me VI secundado, posso dizer com natural satisfação, pela unanimidade dos ilustres Deputados desta Câmara.
Quanto ao segundo - problema do inquilinato - pungir-me-ia não trazer a modesta colaboração justificada pelo conhecimento particular colhido através das lições de uma vida profissional que já se alonga por mais de duas décadas.
E, acima de tudo, conheço o País em que vivo, a poderosa facilidade de insinuação de certas alminhas malfazejas, e dispunha-me, por conseguinte, a suportar a série de intriguetas e insinuações malévolas a que o meu silêncio e a minha ausência se prestariam como excelentes... caldos de cultura.
Ora a amabilidade de V. Ex.ª permitiu-me evitar estes escolhos.
Bem haja, portanto, Sr. Presidente, e consinta que, mais uma vez, testemunhe o meu apreço pelo inexcedível critério com que V. Ex.ª preside aos nossos trabalhos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A proposta de lei n.º 202, sobre questões conexas com o problema da habitação, contém preceitos reguladores de matéria de expropriações e preceitos reguladores de matéria de inquilinato.
Vou examiná-los na generalidade, separadamente.
Sr. Presidente: no capítulo das expropriações entendo do meu dever chamar a atenção de V. Ex.ª e dos ilustres Deputados que me escutam para um facto estranho, absurdo, infelizmente incompreensível!
No início da sessão em decurso o Governo apresentou à Assembleia Nacional aquela proposta de lei n.º 202, cujas primeiras dezasseis bases respeitam a expropriações.

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De um modo geral, trata-se de um projecto orientado por um alto espírito de equidade e de oportunidade, revelador de um estudo aturado e inteligente e das altas qualidades do seu autor, essa distinta figura de homem público que é o actual Sr. Ministro da Justiça, a quem presto as minhas homenagens.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A Câmara Corporativa emitiu o seu parecer com a competência de que faz timbre.
E ao suspender os trabalhos desta Assembleia, em 3 do corrente mês, logo V. Ex.ª, Sr. Presidente, anunciou que ontem, 13 de Abril, deveria iniciar-se a discussão dessa proposta governamental.
Ora acontece que em 9 também do mês em curso o Diário do Governo publicou o decreto n.º 36:824... precisamente regulamentador das expropriações por utilidade pública a favor das empresas que explorem estabelecimentos industriais.
Começo por não perceber, Sr. Presidente, como hei-de explicar esta estranha coincidência de se aproveitar uma suspensão de trabalhos da Assembleia Nacional para se publicar um decreto que interfere em matéria objecto de uma proposta anterior do Governo, cuja discussão ia ser iniciada na mesma Assembleia.
Francamente, não compreendo!
Mas ... há pior!
Na legislatura de 1946, e após um estudo exaustivo do assunto, esta Assembleia votou as bases, ou, mais precisamente, decretou a lei, que o Governo promulgou sob o n.º 2:018, relativa às expropriações por utilidade Pública, que, nos termos do decreto-lei n.º 28:797, de 1 de Julho de 1938, ou diplomas posteriores, deveriam fazer-se por arbitragem.
E, na soberana declaração da sua vontade, determinou que essas expropriações obedeceriam todas às regras consignadas nas oito bases que ficaram constituindo o aludido diploma legal.
O Governo, em obediência ao determinado na respectiva base viu, publicou, em 27 de Agosto daquele ano de 1946, o decreto regulamentar n.º 35:831.
E, mal ou bem, a vontade da Assembleia - o resultado de uma longa troca de impressões, exclusivamente dominada pelo mais puro desejo de acertar e pela acrisolada dedicação pela causa pública - passou a ser lei do País.
Resultou bem? Resultou mal?
Não interessa devassar neste momento este aspecto da questão.
Era lei, decretada pela Assembleia Nacional.
Tinha de cumprir-se ... e cumpriu-se.
Mas posso afirmar a V. Ex.ª que, de um modo geral, os resultados obtidos foram excelentes.
Acudiu-se a uma ou outra injustiça mais gritante e, acima de tudo, criou-se um ambiente de morigeração de ambições ... expropriadoras, caracterizado pelo receio da censura e da reparação do abuso que inevitavelmente proviria do recurso aos tribunais.
Tal convencimento contribuiu, com maravilhosa eficácia, para desfazer uma atmosfera de queixumes cerrados e de protestos contra verdadeiras espoliações, que estava longe de actuar em benefício do actual regime político.
É certo que uma vez por outra ouvi a funcionários camarários ou membros de corpos administrativos palavras de saudade sobre ecos bons tempos de outrora».
Compreendi, como todos VV. Ex.ªs estão compreendendo.
E a esse «desfolhar das pétalas da saudade» sobre um regime comprovadamente nefasto classifiquei-o mais de louvor que de censura à obra por nós todos concebida e concluída.
O pensamento, a vontade deliberada desta Assembleia, ficou patente, claramente definida: os interessados poderiam sempre recorrer para o tribunal da câmara da situação do prédio (base III); o recurso seria julgado pelo tribunal colectivo (base IV, n.º 1); haveria lugar a avaliação (base IV, n.º 3); cada parte designaria dois peritos, sendo o quinto perito escolhido pelo juiz (artigo 11.º, § 2.º, do decreto regulamentar); além do arbitramento, poderia ter lugar a inspecção judicial e produção de prova testemunhal (artigo 12.º do decreto regulamentar).
Repito: mal ou bem, foi nestes precisos termos que esta Assembleia Nacional se manifestou.
Se havia imperfeições a rectificar, ela decerto as não esqueceria.
Entretanto, porém, o seu voto era lei.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, esse incompreensível decreto n.º 36:824, publicado há cinco dias, trata como de somenos as directrizes da Assembleia Nacional.
Onde havia recurso para o tribunal colectivo limita o recurso para o juiz de Direito da comarca.
Onde os interessados poderiam nomear cada um dois peritos restringe a faculdade de nomeação a um perito e comete ao magistrado a nomeação de três!
Não alude nem contém preceito que permita conceber a faculdade de produção de prova testemunhal.
E, certamente esquecido de que existe uma lei n.º 2:018, impõe que os processos de expropriação actualmente em curso e para os quais já exista qualquer acto preparatório sigam até final os trâmites do decreto-lei n.º 33:002, de 21 de Janeiro de 1944.
Como ... à vontade não será fácil descobrir melhor.
Sr. Presidente: sou daqueles que vivem na radicada convicção de que mentem os que insinuam que esta Assembleia não passa de um artificio... «para inglês ver».
Reputo-a uma realidade política.
Acorro aos seus trabalhos convicto de que participo de uma Assembleia Nacional que nada perde, nem se desdoura, quando a cotejamos com a de qualquer outro país civilizado, quero dizer: onde ainda não penetrou a chamada «democracia» estilo oriental.
Sofreria uma pungente desilusão se acaso tivesse de compenetrar-me de que laborava em erro!
Sem vida parlamentar que me empreste autoridade para falar com saber de experiência feito, mas, em todo o caso, mercê das lições aprendidas em três sessões legislativas, afirmo, sem receio de desmentido, que jamais VI traído nesta Assembleia o espírito de independência de todos e cada um dos seus membros.

O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá-me licença?... Mas não é preciso senão tomar atitude relativamente às disposições da proposta que regulam a mesma matéria.
Uma vez que a Assembleia tome atitude relativamente às disposições da proposta que regulam a matéria está a considerar o problema que V. Ex.ª acaba de sugerir e deve ser considerado.

O Orador: - V. Ex.ª tem carradas de razão. Se eu estiver presente nessa fase da discussão na especialidade irei além do aspecto legal do problema e farei o possível para sustentar qualquer proposta no sentido de vincar nitidamente a decisão desta Assembleia numa orientação contrária ao princípio consignado no decreto publicado há quatro ou cinco dias.
A severidade de múltiplas intervenções a que assisti radica-me na convicção de que me não iludo. Se há quem receba instruções ... «lá de fora» não é aqui.

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Não me conformo, consequentemente, com o lacto absurdo e injustificável que acabo de referir.
Para ele solicito a atenção dos meus ilustres colegas e do Governo.
As assinaturas de SS. Exas. o Presidente do Conselho e o Ministro da Justiça num diploma promulgado tão insolitamente hão-de ter explicação atendível. Sinto-o, como de ciência certa.
Entretanto, e como sintoma de que somos um corpo vivo, referi-me hoje, antes da ordem do dia, a esse excêntrico decreto n.º 36:824, de 9 do corrente.
É natural e quase certo que não poderá vir a ser revisto nos últimos dias de trabalho que nos restam.
Mas na discussão na especialidade da proposta n.º 202 há igualmente boa oportunidade para lhe acudirmos com o remédio mais propício.
Se o meu impedimento se prolongar para além dessa fase do debate, aqui deixo a sugestão para que qualquer de VV. Ex.ªs a aproveite, querendo.
Passemos agora às bases respeitantes ao inquilinato.
A discussão na generalidade tem de limitar-se à apreciação da oportunidade e da economia do projecto.
Será oportuna esta pretensão de acudir ao problema do inquilinato, tal como ele se nos depara?
Valia-me Deus! - que demonstrar a afirmativa não é senão o trabalho de arrombar ... uma porta aberta.
Em primeiro lugar e no aspecto legislativo do caso, vivemos num regime de proliferação de diplomas reguladores dos vários aspectos do inquilinato, autêntica manta de retalhos formada por uma teia de dezenas - digo mais - de cerca de uma centena de diplomas, na sua maior parte fruto de arranjos de ocasião, de acomodações ou transigências com impulsos de momento, de preocupações de jogar na aura populaceira, de correr ao aplauso fácil das massas.
Dei-me ao trabalho de contar os diplomas publicados desde 1910 que directa ou indirectamente se relacionam ou pretendem regular o instituto jurídico do contrato de locação de imóveis.
Sabem VV. Ex.ªs, Srs. Deputados, a que cifra cheguei?
Nada mais nada menos que 98!
Mete-se, portanto, pelos olhos dentro a inadiável necessidade de pôr ordem nesta baralhada de textos, caminhando-se aberta e corajosamente para a elaboração de um código do inquilinato.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E a proposta que vamos apreciar traz um contributo valioso para que tal aspiração se transforme em realidade.
No aspecto social, digamos, a paisagem é, se possível, ainda mais tenebrosa.
De uma parte, todos ou quase todos os senhorios proprietários de prédios construídos antes de 1939 e locadores das casas arrendadas até essa altura debatem-se numa vida de autênticas tragédias caseiras.
Apoiados.
As rendas médias dos prédios nessas condições não excedem, em Lisboa, 1500 a 200$ mensais; e o número de inquilinos em cada prédio é também, na média, de 4 a 5.
Destarte, o rendimento médio anual obtido em relação a cada prédio aproxima-se dos 8.001$, que raramente excede.
Ora as contribuições não deixam de ser onerosas.
Mas não são elas o ponto negro do quadro.
As obras de reparações, essas atingiram quantias astronómicas (Apoiados); o espirito de insatisfação de certos inquilinos (Apoiados), esquecidos das reduzidas rendas mensais que pagam e facilmente acolhidos em certas instâncias oficiais, dá azo a sucessivas intimações
para obras que é frequente absorverem, só por si, a totalidade dos rendimentos anuais de todo o prédio.
E, como um mal nunca vem sòsinho, de sete em sete anos as pinturas e as obras de limpeza e beneficiação das fachadas impostas pela Câmara!
Esses trabalhos, mesmo relativamente a um prédio de modestas proporções, importam actualmente em mais de uma dezena de contos; num prédio grande, de oito a dez inquilinos, ascendem, mesmo, a dezenas, a algumas dezenas de contos.
Quer dizer: absorvem as rendas de mais de um ano.
De modo que para aqueles que não tem outra fonte de rendimentos a situação é de angústia, de desespero, de contínuo e justificado protesto.
Em flagrante contraste com estes «novos-pobres», uma minoria de senhorios, elevada a tal categoria por virtude da aplicação dos fabulosos lucros amealhados à custa de especulações durante o período de guerra, dos malabarismos do «mercado-negro», pavoneia-se em regime de franca liberdade contratual, exigindo - pelo menos em Lisboa - rendas mensais de 3.000$, 4.000$, 5.000$ e 6.000$, que só os raramente afortunados poderão aceitar.
Por outro lado, uma inumerável alcateia de especuladores, que de arrendatários se transformaram em sublocadores, vive da exploração abusiva e intolerável das casas que tomaram de arrendamento.
Aos proprietários pagam, em geral, rendas diminutas, mesquinhas. Aos seus sublocatários arrancam-lhes implacàvelmente a pele.
E o desespero do senhorio ascende a autêntica, mas legítima, fúria quando intenta reagir contra a injustiça de que está sendo vitima e decai nos tribunais, nas acções que propõe, visto que se tem espalhado, como nódoa de azeite, uma desarrazoada jurisprudência no sentido de ampliar o conceito de albergaria ou pousada a situações que um justo entendimento da lei faria classificar de sublocações autentiquíssimas.
Para que a cena ganhe em pitoresco encontram-se também numerosos senhores, em geral do grupo dos tais senhorios saídos das águas turvas da guerra, que vivem em casas arrendadas e se recusam ao mais suave aumento das rendas que por elas pagam, embora sem rebuço de não moderarem as suas ambições no que respeita às rendas que cobram... nos seus próprios prédios, onde bem melhor deveriam residir.
Outros ainda protestam não poderem suportar rendas que excedam uma ou duas centenas de escudos mensais e arvoram-se em intransigentes defensores das garantias da lei do inquilinato, mas fazem-se transportar em carros luxuosos, que os esperam espectacularmente às portas dos prédios onde residem... pagando rendas diminutas...
E é um nunca acabar de escândalos, injustiças, abusos gritantes!
Perante estas facetas do problema, quem for atreito a decidir pelas aparências proclama sem hesitar que a solução única se encontra na permissão para a elevação geral das rendas baixas e na redução equitativa das rendas altas.
Mas qual!?
O nível médio da vida portuguesa é mais que modesto.
Olhando neste momento apenas para a chamada classe média - professores, militares de terra e mar, funcionários públicos, empregados por conta de outros, reformados, pensionistas, etc. - ninguém com senso-comum e elementar conhecimento da microscópica escassez dos seus réditos mensais se atreverá a conceber a possibilidade da aplicação súbita do regime de ampla liberdade contratual.
A corajosa abnegação de uma grande maioria desses chefes de família, o seu espírito de sacrifício e a forçada renúncia sem protesto às mil e uma pequeninas coisas

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que fazem a felicidade dos homens ressaltam a toda a luz da simples indicação dos ordenados ou vencimentos mensais que percebem. Atingiram, em muitos casos, a linha do limite.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Depois, ainda, o problema é absolutamente distinto nos seus aspectos e, até, na sua gravidade, se o focamos com referência a Lisboa, Porto ou Coimbra e às demais cidades e vilas do País.
Legislar em bloco para umas e outras conduz antecipadamente a erros e injustiças insuportáveis.
Estou informado de que no Norte, por exemplo, ao passo que das matrizes rústicas constam valores que não se afastam muito dos reais, as matrizes urbanas, essas, andam, de um modo geral, muito baixas.
Porquê?
Porque se trata de meios urbanos de limitado comércio ou indústria, onde o ambiente é de característico domínio do valor de produção da propriedade rústica.
Permitir, por conseguinte, reduções de rendas baseadas em matrizes assim organizadas bradaria aos céus.
De resto nem vale a pena pôr a hipótese da possibilidade da redução de rendas fixadas em quaisquer contratos de arrendamento, seja qual for a sua data.
Para os anteriores a 1939 seria inútil e, sem dúvida possível, injustíssimo; para os posteriores àquele ano, quem aceitou a renda fê-lo no livre exercício da manifestação da sua vontade; o Estado deve abster-se de intervir perturbadoramente nas relações de carácter privado; e os receios antevistos por alguns dos mais distintos Procuradores à Câmara Corporativa e aqui reflectidos nas considerações do Sr. Dr. Sá Carneiro, que ontem tive o prazer de ouvir, calam no ânimo de toda a gente.
Influenciado pela semelhança de condições psicológicas e sociais que existem em Portugal e no país vizinho de além-atlântico, dei-me à curiosidade de estudar como este problema foi encarado no Brasil.
E de lá nos chegam ensinamentos que, sob certos aspectos, não são de desprezar.
. Aos meus colegas jurisconsultos quero advertir de que usarei da terminologia adoptada nos textos legais brasileiros, nos quais se chama aluguel ao contrato que o artigo 1596.º do nosso Código Civil manda classificar de arrendamento. E passo a fazer um rápido resumo da orientação seguida no Brasil, pelo menos até fins de 1946, data da última legislação que me foi dado encontrar.
O instituto de locação, regulado na lei n.º 3:071, de 1 de Janeiro de 1926 (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil), foi sucessivamente modificado pelos decretos n.ºs 24:150, de 20 de Abril de 1934, 1:608, de 18 de Setembro de 1939, 4:565, de 11 de Agosto de 1942, 9:669, de 29 de Agosto de 1946, já aqui referido pelo ilustre Deputado Dr. Sá Carneiro, 8:527, de 31 de Dezembro de 1945, que instituiu o Código de Organização Judiciária do Distrito Federal, 7:399, de 19 de Março de 1945, que prorrogou por dois anos a locação de imóvel ocupado por estabelecimentos de ensino, 7:613, de õ de Junho de 1945, 19:573, de 7 de Janeiro de 1931, que dispõe sobre a locação de prédios por militares e civis quando removidos para outra localidade que lhes não permita manter a residência na da situação do prédio locado, e pela lei n.º 9:760, de 5 de Setembro de 1946, que legislou sobre os bens imóveis da União, locação, etc.
O decreto n.º 9:669 contém vasta matéria sobre renovação da locação, cessão da locação, sublocação total, direito à elevação de rendas, casos de rescisão do contrato, etc.
Destacarei o equitativo preceito contido no respectivo artigo 6.º, que preceitua que o arbitramento do aluguer do prédio se faça atendendo:

Ao preço de aquisição do imóvel, da construção ou da reconstrução;
À situação, estado de conservação e segurança;
Aos aluguéis dos prédios em condições análogas.

E, quanto aos fundamentos de rescisão da locação, quero mencionar os seguintes, que reproduzo do artigo 28.º do decreto citado:

Falta de pagamento do aluguel até ao dia 10 do mês do calendário seguinte ao vencido e demais encargos permitidos na lei;
Pedir o locador o prédio para sen uso próprio, ou, na locação parcial, para ascendentes ou descendentes ou pessoa que viva às suas expensas, desde que o locador nele resida;
Se o prédio for destinado a empregado do locador e rescindir-se o contrato de trabalho;
Pedir o locador o prédio para demolição e edificação licenciada de maior capacidade de utilização;
Infracção de obrigação legal ou contratual.

Ainda neste decreto n.º 9:669 encontra-se uma disposição importante: a que determina que a renovação de locação de prédio destinado a fins comerciais ou industriais continue regida pelo decreto-lei n.º 24:150, de 20 de Abril de 1934, e Código de Processo Civil (artigo 2.º).
Ora, sempre que não haja acordo entre os interessados, a renovação dos contratos de arrendamento de prédio urbano ou rústico destinado, pelo locatário, a uso comercial tem de ser sempre feita na conformidade do disposto nesse decreto.
O locatário faz citar o proprietário, com a indicação clara e precisa das condições oferecidas para a locação.
Se o proprietário não responder no prazo de cinco dias, considera-se aceite a proposta e renovado o contrato.
Se discorda, a sua contestação fica adstrita, na matéria de facto, essencialmente, ou à prova de que a proposta do locatário, excluindo a valorização trazida pelo locatário ao ponto ou lugar, não atende ao valor locativo real do imóvel, em face das condições gerais de valorização do lugar na época de renovação do contrato (e, nesta hipótese, tem de apresentar logo, em contraproposta, as condições de locação que reputa compatíveis com o valor locativo e actual do imóvel); ou à prova de que tem proposta de terceiro, competentemente individuado, para a locação do prédio em condições melhores, que, aliás, o inquilino pode aceitar, preferindo em igualdade de condições; ou, ainda, à prova de que o prédio vai ser usado por ele próprio locador, seu cônjuge ou ascendentes ou descendentes, mas, nesta hipótese, nunca para o mesmo ramo de comércio ou indústria do inquilino do contrato em trânsito.
Se o desacordo continua, as partes produzem as provas de direito comum de que disponham, mas é sempre necessário arbitramento, para o qual cada parte nomeia um perito e o juiz o terceiro, de desempate, findas as respostas dos quais as partes arrazoam e o juiz decide, a final, orientando-se pelas regras de direito e de equidade.
Na sua sentença o juiz, quando for o caso, fixa logo a indemnização a que tiver direito o locatário em consequência da não prorrogação da locação.
O processo que acabamos de resumir pode ser empregado de cinco em cinco anos, por virtude do preceituado na alínea b) do artigo 2.º do decreto.

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Fixou-se, como se vê, um critério original: a renovação dos contratos, quando não haja acordo de senhorio e arrendatário, tem de ser por este último promovida.
E a nova renda é fixada com base em elementos que, efectivamente, parece evitarem abusos ou prejuízos para ambos os interessados.
Por detrás destas aparências legais depara-se-nos, todavia, o verdadeiro e único critério: não há um problema de elevação ou redução de rendas a encarar e regular num conjunto ou bloco, mas sim uma série de casos particulares, variando de cidade para cidade, de vila para vila, de prédio para prédio e, inclusivamente, de indivíduo para indivíduo.
Ideal seria, por conseguinte, a criação de tribunais especiais, ao exemplo do que se pratica em Inglaterra, que apreciem e julguem situação por situação, cada uma das hipóteses que lhes forem submetidas.
Mas será esta solução viável imediatamente entre nós?
Sejamos positivos, realistas: claro que não é.
Os juízes portugueses vivem assoberbados de trabalho; os tribunais não têm mãos a medir; o pessoal, mal pago, escasseia; lançar-lhes sobre os ombros a responsabilidade do processamento e resolução, a curto prazo, de dezenas de milhares de litígios seria quase deixar cair sobre eles uma... bomba atómica.
Não pode ser.
Mas a louvável iniciativa e a corajosa atitude assumida pelo Governo mereceu louvor incondicional.
Já que não é possível acudir a tudo, procure-se, em todo o caso, limar arestas, remediar as injustiças mais palpitantes, perseguir os erros e abusos mais odiosos.
A oportunidade da proposta é, consequentemente, manifesta.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quanto à sua economia, não me fatigarei nunca a repetir que o grande mal, o ponto crucial das questões do inquilinato, reside no uso e abuso das sublocações.
Ai está o inimigo público n.º 1!
Mais de metade da população de Lisboa vive em regime de sublocações.
Há que perseguí-las, combatê-las, arrasá-las, estejam onde estiverem.
Sem dó nem piedade.
Anterior ou posterior ao decreto n.º 15:289, de 30 de Março de 1928, consentida ou não, a sublocação há-de ter imperativamente como consequência fazer surgir o regime de liberdade contratual nas relações entre o senhorio e o locatário.
A jurisprudência hesitante que a tal respeito continua subsistindo precisa de acatar.
Senhoras respeitabilíssimas, «brincando» às explorações comerciais com casas que arrendam e mobilam para a seguir sublocar por preços ... para estrangeiros; criaturas que têm em seu nome ou de pessoas de confiança mais de um contrato de .arrendamento, para ocuparem uma das casas arrendadas e especularem com a sublocação das restantes; aventureiros que tomam, sem discutir, a locação de andares vagos em casas novas, pagando a primeira renda e a caução para a seguir nada mais pagarem e continuarem fruindo essas casas enquanto as decisões da justiça e os sacrifícios materiais dos proprietários não produzem os seus salutares efeitos, são ervas daninhas, elementos perturbadores de um problema gravíssimo. A respectiva eliminação impõe-se.
Alcançado esse desiderato o resto demanda prudência e equilíbrio, mas está longe de ser insolúvel.
Deixemos em regime de liberdade contratual os contratos celebrados posteriormente à guerra.
Com referência aos contratos anteriores, porque não acompanhar as sugestões da Camará Corporativa?
Polidas em vários pequenos detalhes, que terão cabimento próprio na discussão da especialidade, os resultados que obteremos não se me afiguram alarmantes.
E a classe média?
Ninguém a defenderá com maior desejo de bem servir do que eu.
Mas dessa e classe média faz também, precisamente, parte a grande maioria dos senhorios de Lisboa e Porto! Não o esqueçamos!
Os lares que se mantêm com os rendimentos de um ou outro prédio que, à custa de sacrifícios e economias, foi possível adquirir; dezenas, milhares de pequenos proprietários e proprietárias pertencem necessariamente à mesma «classe média», confundem-se na escassez dos recursos e nos transes económicos da grande massa dos restantes componentes do grupo.
Não vivem melhor do que eles; irmanam-se em idêntica carência de meios materiais.
E quem não quiser ver assim é míope.
Ora a miopia... é um grave defeito para o legislador.
Termino, por isso, dando o meu voto à generalidade do projecto e prometendo voltar à discussão na especialidade, se acaso me for possível regressar a tempo.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - O debate continua na sessão de amanhã.
Está encerrada a sessão.

Eram 17 horas e 50 minutos.

Propostas enviadas para a Mesa sobre a matéria da ordem do dia durante a sessão de hoje:

Proponho que à base XVI da proposta governamental se acrescente este número:

4. A maior valia a que se refere a presente base abrange também os prédios que, não sendo expropriados, aumentem consideràvelmente de valor em virtude de obras de urbanização ou abertura de grandes vias de comunicação, sendo cobrada quando se verifique a transmissão a que se refere a alínea a) do n.º 1 da mesma base ou quando sejam requeridas obras de transformação ou ampliação dos respectivos prédios.

O Deputado António Augusto Esteves Mendes Correia.

Proponho que à base XXVIII da proposta do Governo seja dada a seguinte redacção:

O Governo poderá auxiliar a construção de casas de renda económica e limitada e de casas unifamiliares para os sócios de cooperativas constituídas nos termos legais, garantindo o fornecimento a preços predeterminados de materiais de construção, promovendo o fabrico em série desses materiais ou concedendo facilidades de crédito dentro dum justo critério de segurança e estímulo.

O Deputado António Augusto Esteves Mendes Correia.

Página 464

464 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 144

Proponho que à base XXIX da proposta seja adicionado o seguinte número:

5. Quando os inquilinos declararem não poderem suportar o aumento de rendas estabelecido em virtude desta lei, o dito aumento não se efectivará sem que um inquérito, levado a efeito pelo Instituto da Habitação, criado pela base seguinte, conclua que essa alegação é infundada ou, quando ela seja fundada, não se efectivará igualmente além do limite infrafixado sem que após o referido inquérito seja concedido ao dito inquilino um subsídio familiar correspondente à parte do aumento de renda que ultrapassa 15 por cento dos seus proventos familiares. Este limite será reduzido a 10 por cento para os que tenham, pelo menos, dois filhos menores e proventos familiares inferiores a 10.000$ anuais e elevado a 20 por cento para os que tenham proventos familiares superiores a 60.000$ por ano. No inquérito deverá verificar-se se as casas suo de categoria e amplitude superiores às correspondentes à condição social e ao número de filhos dos inquilinos, não sendo concedido qualquer subsídio quando tal se verifique e o senhorio ponha à disposição do inquilino uma casa que o Instituto da Habitação julgue suficiente para as necessidades do respectivo agregado familiar. Quando o fundo especial criado para os subsídios em questão não atinja a receita necessária para a satisfação integral de todos os subsídios atribuídos far-se-á uma redução proporcional dos mesmos, não podendo o aumento de renda ultrapassar o permitido pelos subsídios efectivamente concedidos.

O Deputado António Augusto Esteves Mendes Correia.

Proponho que seja adoptada a seguinte base, que se seguirá à XXIX da proposta do Governo:

1. É criado um fundo especial destinado a auxiliar os arrendatários que não possam pagar aumento de renda estabelecido nesta lei para o inquilinato de habitação.
2. Este fundo é constituído pelo produto das muitas criadas por infracções à legislação do inquilinato e pelas contribuições fixadas nesta lei e outras que venham a estabelecer-se.
3. A administração do fundo especial caberá a um Instituto da Habitação, criado não apenas para esse efeito, mas ainda para o estudo e resolução de todos os problemas relativos u habitação cuja matéria não esteja especificada na competência de outras entidades ou organismos, e ainda dos assuntos habitacionais em que se torne necessária uma coordenação das actividades das ditas entidades e organismos.
4. O Instituto da Habitação funcionará junto do Subsecretariado de Estado das Corporações e Previdência Social e será dirigido por um conselho, no qual estarão representados aquele Subsecretariado, os Ministérios da Justiça, das Finanças, da Economia e das Obras Públicas e ainda os senhorios e os inquilinos.
5. Todos os indivíduos que pagarem imposto complementar suportarão um adicional de 20 por cento sobre o mesmo imposto, sendo o produto desse adicional destinado ao fundo especial referido nos números 1 a 3, tendo também esse fundo como receita 00 por cento do produto dos aumentos de renda concedidos a proprietários que tiverem adquirido por acto intervivos os seus prédios posteriormente à data do decreto n.º 0:411 e outras contribuições que venham a fixar-se.

O Deputado António Augusto Esteves Mendes Correia.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Albano da Câmara Pimentel Homem de Melo.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
Artur Proença Duarte.
Henrique dos Santos Tenreiro.
José Alçada Guimarães.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Maria de Sacadura Botte.
José Pereira dos Santos Cabral.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Armando Cândido de Medeiros.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Fernão Couceiro da Costa.
Gaspar Inácio Ferreira.
Herculano Amorim Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Indalêncio Froilano de Melo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Penalva Franco Frazão.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel França Vigon.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Querubim do Vale Guimarães.
Rafael da Silva Neves Duque.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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