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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 23

ANO DE 1950 2 DE MARÇO

V LEGISLATURA

SESSÃO N.º 23 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 1 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs. Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro

Nota. - Foi publicado um suplemento «o Diário das Sessões n.º 17, que insere, as contas da Junta do Crédito Público referentes ao ano económico de 1948.
Foram publicados dois suplementos ao Diário das Sessões n.º 82, que inserem, o 1.º, os avisos que convocam várias secções da Câmara Corporativa, assim como vários Procuradores agregados, e a Mesa da mesma Câmara para funcionar como conselho administrativo durante a interrupção tios trabalhos tia Assembleia Nacional, e, o 2.º, a convocação da Assembleia Nacional para o dia 1 de Março.

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 10 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 21 e 22 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
O Sr. Presidente comunicou que recebeu da presidência do Conselho, para os fins do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Decreto-Lei n.º 37:744 e uma proposta de lei de protecção ao teatro português, acompanhada do respectivo parecer da Câmara Corporativa.
A Comissão de Legislação e Redacção propôs que a Assembleia se pronuncie sobre a antecipação da revisão constitucional.
Acerca das palavras proferidas pelo Primeiro-Ministro da União Indiana sobre Goa usaram da palavra os Srs. Deputados Sócrates da Costa, José Nosolini, Castilho de Noronha, Nobre. Santos e Sarmento Rodrigues e por último o Sr. Presidente.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 25 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 50 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calheiros Lopes.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António Sobral Mendes de Magalhães Ramalho.
António de Sousa da Câmara.
Artur Águedo de Oliveira.

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Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Délio Nobre Santos.
Diogo Pacheco de Amorim.
Domingos Alves de Araújo.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Cardoso de Matos.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José dos Santos Bessa.
José Soares da Fonseca.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Vasco Lopes Alves.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 92 Srs. Deputados.

Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.º 21 o 22 do Diário das Sessões.

O Sr. Carlos Moreira: - Sr. Presidente: no Diário das Sessões n.º 21, a p. 279, col. 2.ª, encontram-se duas intervenções minhas que necessitam de uma ligeira rectificação.
Assim, na primeira deve ler-se «índice de pobreza» onde está «índice de progresso» e na segunda intervenção, onde se lê: «é que se notava a falta de mão-de-obra», deve ler-se: «é que se notava era a falta de mão-de-obra».
Também a p. 281, col. 1.ª onde se lê: «por exemplo no Minho», deve ler-se: «por exemplo em Trás-os-Montes e no Minho».

O Sr. Presidente: - Se mais nenhum dos Srs. Deputados deseja fazer qualquer reclamação sobre os referidos números do Diário, considero-os «provados, com as rectificações apresentadas.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos enviados pelos Ministérios das Obras Públicas, da Guerra e das Colónias, pela Direcção de Obras Públicas do distrito da Horta, pela Comissão Administrativa das Obras da Cidade Universitária de Coimbra o pelo Ministério das Comunicações em satisfação de vários requerimentos do Sr. Deputado Jacinto Ferreira; os elementos enviados pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo Ministério das Colónias e pelo Ministério das Finanças em satisfação de vários requerimentos do Sr. Deputado Pinto Barriga; os elementos enviados pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos em satisfação do requerimento do Sr. Deputado Marques Teixeira; os elementos enviados pelo Ministério da Economia em satisfação dos requerimentos do Sr. Deputado Cortês Lobão; os elementos enviados pelo Ministério do Interior em satisfação do requerimento do Sr. Deputado Santos Bessa e do requerimento do Sr. Deputado Manuel Lourinho; os elementos enviados pelo Ministério da Economia em satisfação do requerimento dos Srs. Deputados Carlos Moreira, João Ameal e Sousa Campos; os elementos fornecidos pelo Ministério das Obras Públicas em satisfação do requerimento apresentado na sessão de 15 de Dezembro pelo Sr. Deputado Mário de Figueiredo; os elementos enviados pelo Ministério da Economia em satisfação do requerimento do Sr. Deputado Miguel Basto; os elementos fornecidos pelo Ministério das Comunicações em satisfação do requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Águedo de Oliveira, e os elementos enviados pelo Ministério da Economia em satisfação dos requerimentos apresentados pelos Srs. Deputados Gastão Figueira, Pedro Cymbron e Armando Cândido.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa, enviado pela Presidência do Conselho, o para os fins do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Decreto-Lei n.º 37:744, publicado no Diário do Governo n.º 18, de 14 de Fevereiro findo.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa uma carta do Sr. Deputado Daniel Barbosa agradecendo os pêsames que a Assembleia lhe exprimiu pelo falecimento de sua mãe, enquanto não o pode fazer pessoalmente.

Pausa.

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O Sr. Presidente: - Está presente na Mesa um oficio do 1.º juízo cível de Lisboa pedindo autorização à Câmara para o Sr. Deputado João do Amaral poder prestar depoimento nesse tribunal.
Vou consultar a Assembleia sobre se concedo a autorização pedida.
Consultada a Assembleia, foi concedida a autorização.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa uma proposta de lei sobre protecção ao teatro português.
A proposta de lei vem já acompanhada do parecer da Câmara Corporativa. Vai, por consequência, baixar à Comissão de Educação Nacional, e oportunamente será dada para ordem do dia.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Chamo a atenção da Câmara. Vai ler-se uma proposta recebida na Mesa.

Foi lida. É a seguinte:

«Têm sido ultimamente suscitados problemas cuja solução depende duma revisão constitucional. A Comissão de Legislação e Redacção, considerando a importância desses problemas, e em harmonia com o precedente estabelecido para a revisão de 1945, propõe:
1.º Que, nos termos do § 1.º do artigo 134.º da Constituição Política, a Assembleia Nacional se pronuncie sobre se, antecipando a época do revisão, deve assumir poderes constituintes;
2.º Que seja marcado para ordem do dia o debate sobre a matéria do número anterior e sobre as questões prévias que a sua apreciação possa determinar.
Mário de Figueiredo, João Luís Augusto das Neves, José Gualberto de Sá Carneiro, José Pereira dos Santos Cabral, José Soares da Fonseca, João Mendes da Costa Amaral, Luís Maria Lopes da Fonseca, Ulisses Cruz de Aguiar Cortes, Manuel Franca Vigon».

O Sr. Presidente: - Esta proposta da Comissão de Legislação e Redacção será designada brevemente para ordem do dia.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sócrates da Costa.

O Sr. Sócrates da Costa: - Sr. Presidente: apresento a V. Ex.ª as minhas homenagens nestas primeiras palavras que tenho a honra de proferir nesta Assembleia Nacional.
Com a devida vénia, dirijo também as minhas saudações aos Srs. Deputados e aproveito a oportunidade para agradecer, na parte que me respeita, as que dirigiu o Sr. Deputado Cortês Pinto aos representantes das remotas províncias ultramarinas, em termos que avivaram, com o mais profundo respeito, a veneração pelos heróicos antepassados de VV. Ex.ªs, que, em trato amigo com os nossos, fizeram do Goa um pedaço de Portugal.
Ao apresentar os meus cumprimentos a V. Ex.ª, Sr. Presidente, não me limito a um acto de mera cortesia, mas evoco um laborioso e fecundo período de actividade, em que, na divulgação dos princípios tradicionais da política portuguesa, V. Ex.ª se impôs à minha admiração, como presidente da comissão executiva da União Nacional, nas vésperas de ser plebiscitada a Constituição Política que nos rege.
Tive então a honra de ser um modesto obreiro junto de V. Ex.ª numa das sessões de propaganda realizadas na linda cidade de Viana do Castelo.
Aceitei nessa ocasião com entusiasmo a doutrina e os princípios divulgados, não só por um pendor de inteligência, mas ainda por ter adquirido a certeza de que nesses princípios se devia fundar o engrandecimento do longínquo torrão pátrio que é a minha terra natal, onde tantos portugueses ilustraram o seu nome com os incalculáveis serviços que prestaram à Humanidade na dilatação da cristandade o na confraternização dos povos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Foi com a confiança absoluta nesses princípios que aceitei a minha candidatura para Deputado pelo círculo da índia, pois neles vejo, em desenvolvimento da política nacional do Governo, a possibilidade de unia útil autonomia administrativa que justifique plenamente a histórica designação de Estado da Índia dada aos territórios que prolongam Portugal até à Península Indostânica e que é consagrada na nossa Constituição Política.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não versarei hoje sobre as aspirações ou necessidades do Estado da Índia porque, subitamente ferido na minha dignidade de homem livre e de goês e, portanto, de cidadão português na plenitude dos seus direitos cívicos e políticos...

Vozes: - Muito bem.!

O Orador: - ... ferido - dizia eu - com as afirmações atribuídas ao Primeiro-Ministro da República Indiana, as minhas faculdades mentais e a minha sensibilidade só uma coisa me permitem neste momento: um protesto.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Um protesto calmo e sereno de quem tem razão por ter sido injustamente atingido no que possui de mais sagrado: o direito de ser português e goês.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: o simples facto de ter assento nesta Assembleia, como goês que sou e por goeses eleito, mostra inequivocamente que Goa é parte integrante de Portugal.
E isto foi possível porque a actividade colonizadora dos Portugueses foi uma actividade unificadora dos povos. Não fez súbditos, mas fez cidadãos portugueses.
Baseando-se na igualdade originária e na fraternidade dos homens e seguindo, portanto, os princípios da sociologia e da política cristã, os Portugueses lidaram sempre com os Goeses como amigos e fizeram deles semelhantes a si próprios.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A força-sentimento pairou sempre acima da força-interesse. E assim foi preparada a entrada dos Goeses na grande comunidade das nações livres, como parte integrante da Nação Portuguesa.
Portugal desempenhou deste modo a sua nobilíssima função de pioneiro, pois promoveu uma estreita solidariedade de interesses e entendimento moral entre diversos povos na cooperação com o Estado Português.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E, porque nessa cooperação está a defesa da consciência que nós, os Goeses, temos de sor um povo

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destacado na índia, eu lavro o meu protesto contra tudo quanto possa de algum modo ferir a nossa personalidade e a nossa dignidade de homens livres.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. José Nosolini: - Sr. Presidente: as minhas primeiras palavras são para V. Ex.ª
Eu desejo renovar nesta sessão legislativa as minhas homenagens ao Presidente que, através de vários anos de trabalho, em todos os momentos, e principalmente nos momentos de maior responsabilidade para a vida política da Nação, tem sabido justificar os méritos e as qualidades que o elevaram a tão alta função e tem sabido conquistar a admiração, a consideração, o respeito e até o amigo apreço de todos desta Câmara e do País.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: não tirarei muito tempo à Assembleia; serei breve, como, aliás, convém ao assunto para o qual vou chamar a sua atenção.
Durante o período em que esteve encerrada esta Assembleia os jornais deram notícia das palavras proferidas no Parlamento Indiano sobre as nossas terras de Goa.
O Primeiro-Ministro da União Indiana teria afirmado que, a segundo pensamento do seu Governo, Goa devia integrar-se naquele Estado» e depois, em resposta a um Sr. Deputado, «que era indiferente àquele mesmo Estado que a guarnição militar de Goa houvesse sido duplicada ou quadruplicada».
Como reagiu a gente portuguesa daquém e dalém-mar, de toda a parte do Mundo, não há que salientá-lo nesta Assembleia. Mas nesta Assembleia, que constitui a representação política da Nação, não deixará de juntar-se à vibração daquele protesto uma palavra que defina o sentido, o real valor, dos acontecimentos, julgando-os com firme serenidade e mais pelo que valem do que pelo que magoam.
O que geogràficamente se designa por Índia abrange, como por exemplo qualquer das Américas, territórios politicamente diferenciados e distintos, que, por motivos de diversa ordem, vivem dentro de fronteiras próprias, independentes, em vida de boa vizinhança, respeitando-se mutuamente e cumprindo uns para com os outros as normas internacionais consagradas.
O território de Goa é território português mais pela fé, pela estrutura social, pelos conceitos da vida e pelo coração do que pela terra em si, que os nossos maiores conquistaram.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É um prolongamento da Pátria, que resultou mais da tarefa pacífica de séculos, da amistosa comunicação com a vida local, do milagre dos lares que «os casados» de Afonso de Albuquerque criaram e perpetuaram e da fraterna luz cristã com que S. Francisco Xavier iluminou e resgatou almas do que dos rudes golpes da espada. Lá, onde o combate decidiu, os soldados desferiram os mesmos golpes que desferiram nos campos ocidentais desta Península Ibérica - em S. Mamede, Santarém, Ourique. Mas não é apenas com semelhantes feitos que se faz uma pátria. E nós, sabendo-o e sentindo-o, podemos dizer que essas terras de Goa, como esta em que vivemos, são na mesma pedaços vivos de Portugal.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Deste canto europeu a gente da metrópole parte para lá, em tarefas da vida e da administração, para colaborar com a gente da índia, e lá trabalha como em terra sua que é; e de lá, sem dificuldades e sem reserva, a gente vem para aqui governar ou trabalhar como em terra sua que também é. E então vemos os portugueses de Goa ascender por vezes a sectores da governação do País e dirigir os destinos da Nação e ocupar os mais altos postos de comando, marcar posição de relevo nos trabalhos desta Câmara, destacar-se brilhantemente na Magistratura, na Medicina, no Direito, digamos: ser portugueses que honram e, sempre, que se honram de ser portugueses!
Perante estas realidades indestrutíveis tem de concluir-se que devem ter sido condições muito especiais e, possivelmente, as impertinências de qualquer iluminado ardendo em aspirações de propaganda que levaram o Primeiro-Ministro a pronunciar as palavras que nos feriram, mas que por si não podem alterar a verdade insofismável do direito, a força indelével dos factos, a vontade decidida de um povo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Os acontecimentos que se deram no Parlamento Indiano magoaram-nos. Não nos perturbaram.
É que a posição de Goa em relação ao Estado da Índia é a que impõem as relações de boa vizinhança entre dois estados independentes.
Goa, por si, que conta com o valor da sua cultura própria, com a excelência do seu nível moral e social, com a dedicação dos seus filhos, com a força do sen direito, com a dignidade dos seus vizinhos, com o interesse que eles próprios têm de respeitar princípios e direitos que também lhes aproveitam, Goa será sempre para o Estado da Índia o para o Mundo o que é - Portugal.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: creio que está nos sentimentos desta Assembleia exprimir a sua mágoa pelos factos passados no Parlamento Indiano, saudar e lembrar carinhosamente os nossos compatriotas goeses e, reduzindo os acontecimentos às suas justas proporções, limitar-se a manifestar ao Governo da Nação a convicção de que ele continuará a ser, como sempre, o zelador do bom nome e dos interesses de Portugal.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Castilho de Noronha: - Sr. Presidente: sendo esta a primeira sessão em que a Assembleia Nacional retoma os seus trabalhos após o período da interrupção, que se prolongou por todo o mês de Fevereiro, pedi a V. Ex.ª, Sr. Presidente, que me concedesse o uso da palavra para tratar de um assunto de excepcional magnitude, que, de há três semanas, vem apaixonando vivamente todo o mundo português, e ao qual já se referiram os Srs. Deputados que me precederam no uso da palavra.
Refiro-me às declarações do Primeiro-Ministro do Governo da Índia relativas a Goa.
Segundo telegramas procedentes de Nova Deli, que tiveram larga publicidade, o Primeiro-Ministro indiano, Sr. Nehru, teria declarado, no meio de aclamações, no Parlamento Indiano que Goa deve ajuntar-se à índia. Quer isto dizer que Goa deve ser separada de Portugal e integrada na Grande índia.

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A notícia do estranho facto levantou em todas as terras portuguesas uma formidável e viva reacção, traduzida em protestos, vibrantes e patrióticos.
Esses protestos, que pelo seu número e teor constituem uma impressionante e eloquentíssima manifestação nacional contra as declarações a que me refiro, atentatórias da integridade do País, esses protestos, dizia eu, são o eco do clamoroso protesto da história do Goa dos últimos quatro séculos.
Apoiados.
Atesta-nos ela que os Portugueses - fenómeno singular, fenómeno único na história das conquistas e descobrimentos -, mais do que a terra de Goa, conquistaram o coração dos seus habitantes. Se foi notável a vitória das armas portuguesas que veio coroar a memorável escalada de 25 de Novembro de 1510, mais notável ainda foi a vitória que os Portugueses ganharam após a conquista, fazendo que o povo de Goa se lhes afeiçoasse, e assim se estabeleceram relações cordiais e afectivas entre uns e outros, como se fossem povos irmãos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É o que explica que o Rei D. Manuel, no foral concedido à cidade de Goa em Março de 1518, manifestasse o desejo de que Goa fosse sempre realenga, não devendo ser apartada da coroa do Rei de Portugal.
Datam, pois, dos primeiros tempos os laços que, já não digo ligam, mas identificam Goa e Portugal, a tal ponto que Goa, pela cultura luso-cristã que os Portugueses aí implantaram, pela língua, pela religião, pelos seus usos e costumes, em uma palavra, pela sua fácies moral, é prolongamento de Portugal, como já muito bem disse o ilustre Deputado Sr. José Nosolini.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Muito grato me é afirmar nesta altura que Portugal pode rever-se com desvanecimento, com orgulho, nessa longínqua parcela do seu território, que tão bem soube corresponder ao empenho e interesse com que ele quis afeiçoá-la à sua imagem.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Afirmou-o antes de mini um português contemporâneo, o Sr. Alves Roçadas, nestas palavras flagrantes de verdade e patriotismo, escritas ainda não há muitos anos:

Em toda essa vasta Península Indostânica, onde actualmente tremula o leopardo inglês, não se encontra um só estado, grande ou pequeno, um trato colonial que represente tão nítida e completamente a acção do povo que o formou nem consubstancie tão profundamente os resultados de uma assimilação lenta, suave, prática e duradoura, como o nosso estado de Goa...
Subverta-se todo o Indostão no cataclismo de futuras invasões e Goa, só, continuará a personificar a Pátria Portuguesa, a menos que os seus habitantes não sejam destruídos do primeiro ao último, arrasadas as suas casas, as suas igrejas, as suas cruzes e lavada toda a sua terra.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ora, se assim é, se são tão estreitos os laços que há entre Goa e Portugal, que argumentos há que os possam desfazer?
Que razões há que justifiquem a absorção de Goa na e pela União Indiana? Invoca-se uma única, e essa de ordem geográfica. Pretende-se, em nome da unidade geográfica, que Goa se junte à União Indiana.
Mas a geografia física não faz o mapa político do Mundo. Comprova-o a própria índia, a Índia de hoje e a Índia de ontem, a Índia depois da independência e a Índia antes da independência.
Hoje, depois da independência, os territórios que geograficamente constituem a Índia politicamente formam duas unidades distintas, sem falar da Índia Portuguesa e da Índia Francesa.
Ora, se o mapa político da Índia não corresponde hoje, que ela é independente, à sua geografia física, porque se há-de insistir na anexação de Goa?
Antes da independência a Inglaterra dominava em todos os territórios que formam as, duas unidades políticas e independentes em que a Índia hoje está dividida. Quer isto dizer que lhe pertencia toda a índia, exceptuadas as minúsculas terras já mencionadas.
E nem por isso a Inglaterra pretendeu, em nome de tal unidade geográfica, anexar Goa à sua índia.
Aqui está como a própria índia, nas suas diversas situações políticas, opõe um vivo desmentido às razões com que se tenta consumar a absorção de Goa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas ponhamos a questão em face de uma outra versão que há sobre as declarações do Sr. Nehru. Segundo essa versão, o Primeiro-Ministro do Governo Indiano teria declarado, em resposta à interpelação do um deputado, da extrema nacionalista, que Goa deveria juntar-se à índia. Isso, a ser verdade, significa que a iniciativa da anexação deve partir de Goa. A União Indiana não vai abrir hostilidades para a ocupação de Goa. Esta é que deve decidir-se a integrar-se na Grande índia.
Uma declaração feita nestes termos seria, sim, menos dura, menos agressiva. Exprimiria apenas o desejo de que Goa um dia se integre na índia.
Mas nem por isso deixaria de ser grave.
O Sr. Nehru não diz a razão por que Goa deveria juntar-se à índia. Haverá alguma? Não tendo valor a razão de ordem geográfica, que, como vimos, é manifestamente inconsistente, a perspectiva da melhoria de situação seria o único estímulo para Goa se resolver a isso.
Ora só por estreiteza de visão se pode nutrir uma tal esperança. O povo de Goa nada lucraria integrando-se na índia. Pelo contrário. Passaria a viver no anonimato de um protectorado, perdendo a feição peculiar que faz a sua personalidade e que o distingue dos povos circunvizinhos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O que é que, em compensação, lhe daria a Índia mais do que Portugal lhe deu? Que outros direitos civis e políticos lhe seriam outorgados além dos que a Constituição Portuguesa lhe concede?
O indo-português monsenhor Rodolfo Delgado, eminente orientalista e insigne professor universitário, depois de acentuar que a influência de Portugal no Oriente tem um cunho todo peculiar e uma feição altamente afectiva e simpática, acrescentava:
Um facto da actualidade e de palpável evidência, que só por si representa um padrão glorioso e um aferidor seguro dessa relação entre os conquistadores e os conquistados, é o reconhecimento legal e efectivo da igualdade política e social, sem nenhuma restrição, de todos os coloniais - sejam índios, Chineses, Oceânicos ou Africanos - com os Europeus, facto que é um desiderato de várias colónias estrangeiras, vastas, ricas e ilustradas.

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Na concepção geral dos Portugueses e no seu consequente proceder, as suas colónias não são dependências ou núcleos de exploração...

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- ... pelo contrário são pedaços de Portugal disseminados, para sua glorificação, em diferentes climas, com raças, cores, castas, usos e costumes dissimilares, sim, mas nem por isso menos portugueses de alma e coração...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... sem invejarem a sorte de outras colónias mais florescentes.
Não há, pois, nada que induza o povo de Goa a declarar-se pela União Indiana, separando-se de Portugal. Temos os mesmos direitos, as mesmas regalias, as mesmas garantias que têm os portugueses da metrópole...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... além de que é o mesmo o modo de sor social, podendo, por tudo isso, Goa dizer com toda a verdade: «Aqui é Portugal!».
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Nobre Santos: - Sr. Presidente: foi com grande admiração o profunda estranheza que os Portugueses tomaram conhecimento através da imprensa das afirmações atribuídas ao Primeiro-Ministro do Governo da República da índia, o Sr. Pândita Nehru, acerca dos objectivos daquele país sobre os nossos territórios do Indostão.
Não é em nome dos interesses materiais e espirituais das populações portuguesas daquela parte da Ásia que eu desejo erguer aqui a minha voz.
Desejo levantar essa voz nesta Casa em sinal de protesto contra as afirmações do Primeiro-Ministro do Governo da Índia apenas como português que sente pela cultura e pela civilização indianas uma admiração e um amor muito grandes e que há perto de vinte anos vem esforçando-se por conhecer melhor o espiritualismo hindu e torná-lo conhecido e apreciado dos seus compatriotas.
As declarações do Pândita Nehru no Parlamento de Nova Deli, não chocaram apenas pela descortesia que representam para com uma nação que mantém com a Índia relações de amizade, amizade sincera, cimentada por uma longa tradição histórica; não chocaram apenas pelo que representam de injusto ataque aos soberanos direitos de um país amigo; não chocaram apenas pelo que representam de péssimo sintoma de um novo imperialismo nascente: chocaram, sim, principalmente por terem sido pronunciadas por um homem que representa a Nova índia, tão orgulhosa das suas admiráveis tradições históricas e espirituais e que, no exacto momento em que inicia os primeiros passos como país independente, atraiçoa a sua própria inspiração e resolve imitar os Ocidentais no que eles têm de mais condenável e de menos cristão.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quem conhece as admiráveis doutrinas do Bhagavad-Gita, quem conhece o espírito que sempre animou a grande nação indiana nos períodos áureos da sua história, como, por exemplo, no período do grande imperador budista Ashoka ou do grande imperador mogol Akbar, não podo deixar de sentir profunda mágoa ao tomar conhecimento daquelas palavras do chefe do Governo da índia.
Pronunciando-as, ele não representou nesse momento o seu país: não podia representá-lo nem relativamente ao seu passado histórico, nem relativamente ao espírito da sua cultura e da sua civilização, nem relativamente aos seus verdadeiros interesses actuais e futuros. Ele atraiçoou nesse momento o espírito do seu país. E os verdadeiros amigos da Índia ficaram perplexos e receosos de que os Hindus de hoje se revelem incapazes de salvaguardar a sua unidade moral - visto essas palavras significarem uma flagrante infidelidade à alma que deu tanta grandeza, brilho e renome universais ao grande país dos Bharatas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: a Índia medieval e moderna não conheceu unidade política senão em períodos muito escassos da sua história. Ela foi quase sempre constituída por pequenos reinos autónomos e rivais.
Mas, quando nesses curtos períodos, como aqueles lia pouco referidos, se elevou a essa unidade, a sua característica foi sempre a de um profundo idealismo e a do maior respeito pelo direito dos outros.
Um dos traços mais marcados da sua grandeza política é a convicção de que toda a autoridade recta e justa é uma forma da actividade divina. Uma das mais curiosas e constantes atitudes tem sido o olhar sempre a força como instrumento do direito.
Nenhum outro pais do Mundo, a não ser Portugal, só pode orgulhar, como a índia, de possuir uma profunda filosofia sobre a guerra justa e sobre o direito internacional.
Os que olham inquietos para o futuro da Humanidade actual podem pressentir sem dificuldade que a Índia está destinada, como país independente, a desempenhar papel de grande relevo na luta do espírito contra o materialismo, na luta dos nobres ideais contra o egoísmo baixo que neste momento desnorteia tantos homens bem e mal intencionados.
Mas a obra de equilíbrio e paz mundiais só será possível se a Índia continuar -como, aliás, livremente decidiu - a fazer parte da grande família da Comunidade das Nações Britânicas e a manter com a Europa e com a América as relações diplomáticas, culturais e económicas mais harmónicas e amigáveis.
Os territórios portugueses da grande península asiática e os seus habitantes podem e devem desempenhar nesse empreendimento de permeabilidade cultural e de harmonia de conjunto, hoje como no século XVI, uma acção decisiva em benefício da Europa e da índia, em beneficio do Ocidente e do Oriente, em benefício de toda a Humanidade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Seria uma traição imperdoável ao nosso passado histórico, mas sobretudo uma traição imperdoável à nossa missão futura em favor da civilização mundial que se aproxima, o renunciarmos aos nossos legítimos direitos, cimentados por admiráveis esforços e sacrifícios de muitos séculos.
Apoiados.
Pela nossa honra e dignidade, decerto, mas também, e principalmente, pelos benefícios que dai têm do advir para a Índia e para o Mundo, é absolutamente indispensável que os Portugueses e a civilização portuguesa na Península Indostânica permaneçam intactos e possam manter vivo aquele mesmo espírito que animou o grande Afonso de Albuquerque ou os nossos missionários que,

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a convite do grande imperador, exerceram tão bela acção espiritual junto da corte de Akbar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Todos nós nesta Casa apoiamos o Governo da Nação, mas, ao mesmo tempo, animamo-lo com entusiasmo a que, num grande esforço de intercâmbio diplomático e cultural, sejam iniciadas e mantidas com a Índia as mais estreitas e cordiais relações, porque compreendemos claramente que só uma larga discussão amigável e um grande esforço mútuo compreensivo podem conduzir a uma harmonia total e definitiva entre os dois grandes países, Portugal e a índia, cuja amizade se revelou sempre tão benéfica para o Mundo ao longo da história, sendo, no entanto, evidente que nessas discussões nunca poderá levantar-se o problema de mudança do soberania.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sarmento Rodrigues: - Sr. Presidente: é do meu dever saudar V. Ex.ª É um grato dever que assim cumpro, lamentando não dispor de novas palavras para bem manifestar toda a admiração e todo o respeito que V. Ex.ª merece; mas outros colegas meus nesta Assembleia esgotaram de maneira primorosa todas as expressões ao meu alcance, de modo que me limito a perfilhar, mas muito sinceramente, tudo o que aqui foi dito em honra e louvor de V. Ex.ª

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E na minha incipiente participação nos trabalhos desta Assembleia já colhi bastantes motivos de apreço, e até de reconhecimento, pela acção esclarecida do ilustre Deputado que é seu leadar. A sua presença no alto lugar que ocupa, rodeado da admiração e estima de todos nós, é para mim também motivo de tranquilidade e confiança.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Encontro-me, afinal, no seio da Assembleia Nacional. E no momento em que falo pela primeira vez lembro-me de idêntica situação por que passou o grande Herculano e copio-lhe as suas palavras para me escusar de vir aqui, pois que para tanto também da minha parte não houve, como ele dizia, «uma rogativa, uma carta, uma palavra sequer».
De facto, Sr. Presidente, honrando-me, embora, muitíssimo da companhia de tão ilustres colegas e da confiança que em mim foi depositada, ainda hoje seriamente duvido das minhas possibilidades de prestar a esta Assembleia colaboração que valha a pena. No entanto, nunca me furtei ao cumprimento dos meus deveres e nunca me neguei a servir o meu pais em todas as circunstâncias.
E por isso aqui estou.
Sr. Presidente: como membro desta Assembleia, eleito pela bem portuguesa gente de Moçambique, entendo hoje que me compete fazer umas ligeiras considerações acerca do caso da índia, que ultimamente tanto tem ocupado a opinião pública portuguesa de aquém e além-mar. Não disponho do qualquer informação oficial sobre esto assunto; mas basta-me a leitura dos comunicados dos jornais, sobretudo os de Portugal e da índia, para considerar que, embora o incidente não tenha aspectos de gravidade que possam trazer apreensões ato uma Assembleia como esta, me parece que não nos poderemos alhear totalmente de um sintoma pelo menos revelador de certa ligeireza por parte dos nossos amigos da República da União Indiana na apreciação da situação moral e política do Portugal naquele continente.
E sinto-me na obrigação de levantar a minha voz, pela dolorosa razão de me ver duplamente agravado pelo mau juízo que pessoas que muito admiro e - porque não dizer? - estimo tão levianamente estão fazendo da dignidade do nosso pais.
Sr. Presidente: as coisas da Índia tocam-me profundamente. Na minha permanência de mais de um ano em Goa colhi sobejos motivos de simpatia e de amizade, que não se limitaram ao nosso povo, mas nas quais largamente envolvi os nossos vizinhos, ao tempo fazendo parte da Índia Britânica.
Na nossa Índia todos podíamos verificar, com real desvanecimento, que uma perfeita harmonia ligava as mais variadas gentes de que se compunha a população do Estado.
Nunca encontrei discriminações prejudiciais, nem nunca presenciei atritos de qualquer natureza, quer entre os diversos grupos étnicos, quer entre os diferentes sectores religiosos. Mais do que respeito mútuo pelas crenças e pelos costumes, notava-se uma verdadeira fraternidade, perante a qual as naturais barreiras das raças, e sobretudo das religiões, parecia não existirem. E assim era, de facto. Cristãos, Hindus ou Maometanos, begarins, dessais ou titulares, não traziam consigo outra distinção além daquela que o grau de civilização a cada um marcava, como entre um cavador e um letrado.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Das terras populosas de Bardez de Salsete às solitárias montanhas do Satari, sempre h, mesma tranquilidade e confiança, o mesmo agrado em receber os visitantes, a mesma doçura de viver, adorando cada um o seu deus ou os seus deuses, numa vida de paz e felicidade.
Poucos recantos e poucos aspectos escapariam à minha presença e à minha curiosidade. Visitei os mais variados santuários, desde as majestosas igrejas da Velha Goa, padrões gloriosos da expansão do espírito cristão no Oriente, aos templos hindus, tão vetustos e acolhedores, de Mardol. Comi a areca que mãos hindus me ofertavam quando transpunha o seu lar, assim como fui recebido em tantas famílias cristãs, descendentes ou nativas. Sempre a mesma indistinta segurança e homogeneidade na característica fundamental da sua existência política, da sua vida em sociedade: eram todos Portugueses. Não distingui os meus amigos entre Cristãos, Mouros ou Hindus. Guardo de todos eles as mais afectuosas lembranças. Senti-me na Índia Portuguesa como me senti em Macau, na Zambézia ou Guiné, como sempre me sentira na minha terra natal.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nesse tempo - já lá vão vinte e cinco anos - os nossos vizinhos na índia, então britânica, agitavam-se num impressionante e extraordinário movimento de libertação. Como seu guia e como seu mestre, um dos mais iluminados espíritos que sobre a Terra tem vivido, génio irradiante de bondade e de humildade: o Maatma Gandhi.
Não pregava o ódio, nem a revolta, nem a violência.
À sua volta apagavam-se as paixões, turvas o por vezes sanguinárias, que periodicamente ensombraram a pureza de um ideal; ideal porventura mal definido, mas de facto existente no ânimo de milhões de indivíduos: o afastamento da autoridade inglesa da índia.
As hostes, que dia a dia engrossavam, compunham-se de Maometanos, aguerridos e voluntariosos, e de Hindus, mais místicos, menos decididos, embora mais numerosos.

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Mas estes companheiros, a quem a mesma ideia da libertação unia, na verdade não se entendiam, nem sequer como bons vizinhos. Eram frequentes as rixas, as devastações, os morticínios que entre eles se verificavam, por temperamentos irredutíveis, por intransigências religiosas, por falta, enfim, de um poder superior que os aglutinasse. Vagueavam, desamparados, ao sabor dos seus instintos.
É que eles não tinham, como os povos da Índia Portuguesa, uma pátria e uma lei.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Na própria família hindu as classes cavavam verdadeiros abismos, que era indispensável, mas bem difícil, preencher. Entre os Brâmanes e Párias não era possível admitir a mais pequena aproximação. Os Intocáveis eram seres que não contavam dentro da espécie humana.
Foi este o programa que o Maatma quis alterar, pregando fervorosamente a humildade e a tolerância, procurando irmanar os companheiros de armas ao menos no mútuo respeito e compreensão e nivelar os irmãos da raça hindu, que tão distantes uns dos outros se encontravam. E nesse apostolado gastava a sua vida, confiado em que essa pacífica e benfazeja união seria razão bastante para fazer compreender aos «seus irmãos ingleses», como ele dizia, que a hora da sua partida tinha chegado.
No entanto, era nesta tão humanitária e aparentemente tão simples tarefa que residia então, como reside ainda hoje, a principal dificuldade.
As cenas violentas entre irmãos de ideal não cessavam e repetiam-se, maculando de sangue fraterno o caminho da ascensão para a liberdade. E o Maatma, não podendo acorrer a toda a parte, incapaz de dominar a fúria das massas, e até por vezes por elas arrastado, penitenciava-se, pelos jejuns e orações, dos malefícios dos outros.
Em redor das prisões e dos templos onde- se encerrava formava-se então um halo de paz e as multidões recolhiam-se, entoando cânticos, ou em religioso silêncio. Uma teoria de discípulos bebia-lho as palavras inspiradas e impregnava-se da doçura dos seus processos e da constância dos seus princípios.
Entre eles, acompanhando-o até à sua morte - às mãos alucinadas de um seu fanático compatriota -, estava Nehru, o futuro Primeiro-Ministro da República da União Indiana. Eram homens como este, formados nos mais generosos e alevantados ideais, que haveriam de conduzir a jovem Nação Indiana nos seus passos vacilantes sobre um caminho semeado de perigos e de tentações. Eram estas almas, temperadas pela admiração diária de um alto espírito e pela prática da moderação, na defesa do direito e da justiça, que viriam a ser os condutores de um povo que surgia para a liberdade, com todos os excessos que mentes escaldadas e inexperientes haveriam de ter.
Portanto, não era de admitir, o Mundo não estava autorizado a admitir, perante tal escola de bondade, respeito e compreensão, que houvesse qualquer atitude menos digna da parte dos dirigentes que tão solidamente se preparavam para guiar o seu povo.
Como poderíamos nós, então, recear o mais pequeno desacato, verbal que fosse, partindo de tão acreditadas pessoas?

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - No dia 6 de Fevereiro, segundo nos contaram os jornais, na sessão do Parlamento da União Indiana, o Primeiro-Ministro teve de responder a perguntas, que lhe foram dirigidas por alguns Deputados, sobre supostas irregularidades do natureza política que se estariam passando em Goa.
Não conheço oficialmente as palavras proferidas; mas, pelo que nos diz a imprensa, e ainda não foi desmentido, nas suas respostas o Primeiro-Ministro manifestara o desejo de ver um dia o território do nosso Estado da Índia incorporado na União Indiana.
E pela mesma ocasião, em vários sectores da imprensa sectária indiana, se fizeram referências desprimorosas, e sobretudo mentirosas, sobre a nossa índia, considerando-a até como um perigoso foco de uma futura agressão a todo o continente!
Quem foram os autores destas ridículas e infamantes mentiras? Não sabemos, nem é preciso, porque não contam.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quem era o Primeiro-Ministro ? O Pândita Jawarlal Nehru. O discípulo e companheiro de Gandhi. O paladino da justiça e da liberdade.
É isto, Sr. Presidente, que me penaliza.
Nem sequer mo dei ao trabalho de procurar saber se as informações do Primeiro-Ministro tinham algum fundamento, se o suposto e único prisioneiro indiano nas «garras» da polícia de Goa era tratada com aquela severidade que tanto preocupa o Primeiro-Ministro.
Porque sinto ser extraordinariamente ridículo, tragicamente ridículo, que algum dirigente da União Indiana possa levantar a sua voz aflita em defesa de um seu súbdito que as autoridades portuguesas teriam prendido, certamente com muito boas razões, e tratariam, sem a menor sombra de dúvida, com aquela humanidade e brandura que tanto nos honra - quando com lastimável frequência os jornais nos trazem notícias de tumultos e massacres em que perdem a vida, através de toda a Índia estrangeira, dezenas, centenas, milhares de indivíduos.
Apoiados.
Quero crer que por detrás desta infeliz atitude não haja senão a necessidade de dar uma satisfação momentânea a uma pergunta impertinente ou o reflexo de uma vaga aspiração de construir a independência da União Indiana sobre a unidade geográfica da Península Indostânica.
Em qualquer caso, um homem que tem atrás de si o passado de Nehru, uma individualidade que representa o Governo duma nação amiga e duma nação que se formou invocando o Direito e a Justiça, não pode proferir tais palavras, mais próprias de quem preside a uma tirania do que a Governo que defende a liberdade.
Palavras, sobretudo, injustas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - De facto, Sr. Presidente, a posição do Portugal na Índia não pode ser atacada seja por quem for, e muito menos pelos nossos vizinhos naquelas paragens.
Em presença do que lá somos, à vista, a todos patente, da obra realizada e dos resultados a que chegámos, teríamos direito a esperar, de uma maneira absoluta, que sobre nós chovessem os louvores e nunca blasfémias. É quando nos colocamos em paralelo com os restantes aglomerados que habitam a índia, é inexplicável que, em vez de merecermos a sua admiração e de constituirmos, para eles, um exemplo, um motivo do virtuosa emulação, nos mimoseiem com ataques impróprios de gente esclarecida...

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - ... atitudes que, pelo contrário, são reveladoras de uma lamentável incapacidade de apreciar e fazer juízos sobre problemas e casos que a sua mentalidade certamente ainda não pode compreender.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A posição de Portugal na Índia é um verdadeiro padrão de grandeza espiritual do nosso povo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não quero eu, neste lugar e neste momento, historiar, nem a traços largos, a obra colossal que empreendemos no Oriente, as suas fulgurações, os seus desastres e os resultados que até hoje chegaram.
Não quero fazê-lo nem saberia fazê-lo.
Todos nós o sabemos, todo o mundo ilustrado o conhece. Não estou eu no Parlamento em Nova Deli, junto ao ilustre Primeiro-Ministro Nehru, frente aos seus admiradores e aos seus intransigentes adversários, para lhes dizer o que porventura ignorem e que muito vantajoso lhes seria não esquecer: o papel civilizador e benéfico que Portugal desempenhou desde os primeiros tempos na Índia e o que ainda continua a desempenhar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Com as seguintes palavras abre um livro há poucos anos publicado pelo ilustre escritor orientalista americano Maurice Collis acerca da vida de Fr. Sebastião Manrique:

A Ásia Portuguesa não era uma simples tentativa comercial, como outros estabelecimentos da índia. Os Portugueses, que descobriram o caminho marítimo para a Ásia, que estabeleceram fortalezas no golfo Pérsico, estreito de Malaca e além, que conquistaram Goa e introduziram lá a Inquisição, eram uma classe de gente totalmente diferente dos directores, accionistas e empregados de companhias.
Eram românticos, cruzados, conquistadores, bem como comerciantes, enquanto que os outros, entrando em cena um século depois, eram modernos homens de negócios, cujo único objectivo eram dividendos.

São verdades muito simples, de todos nós sabidas, mas que gostamos de ouvir - até como novidade - pela boca de um insuspeito americano, e por sinal bem pouco admirador dos Latinos.
Não nos levou à Índia a necessidade, que seria bem razoável, de procurar sustento. Nesse tempo cabíamos bem à larga na «pequena casa lusitana», acabada de consolidar a golpes contra os Mouros. Tínhamos nove décimos do território livre para explorar. Teríamos ido antes à Índia pela sede de glória, de grandeza, de tudo q que distingue os homens dos outros seres. Mas fomos à Índia por mais altos desígnios ainda, no cumprimento da mais transcendente missão civilizadora que alguma vez coube a uma nação.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Por isso levámos os cosmógrafos, os matemáticos, os botânicos, os cavaleiros, os geógrafos, os naturalistas, os missionários e todos os que tinham em si uma mensagem, que de todos se embarcaram nas naus.
A Índia enchia-se de idealistas e nela se caldearam das maiores figuras da história da Humanidade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - «Em África me nasceram as barbas», dizia o grande D. João de Castro, o esquadrinhador incansável do mar Roxo e golfo Pérsico, de todos os mares e costas, o guerreiro indomável, o varão impoluto. E era como o seu o espírito dos dirigentes.
Como poderiam por interesse ficar em Cochim durante toda a monção setenta e sete portugueses e cem indígenas contra milhares de nativos?!
«... e que preço há com que se pague um só risco de morte, quanto mais tantos quantos são os em que cada dia se vêem, no mar tanta tormenta e perigos, na terra tanto risco entre pelouros e fogo: comendo mal, dormindo pior; pelejando todas as horas por honra do seu deus e do seu rei», dizia o irreverente Diogo do Couto!
Era o negócio?
Talvez outros o fizessem mais tarde, pois, tal como hoje, tal como em todos os tempos, há os que servem a Nação e os que a sugam.
Mas não eram um D. João de Castro - «varão ainda maior que o seu nome» -, um Albuquerque, um Vasco da Grania, um D. Francisco de Almeida, nem Francisco Xavier, nem as cartas de el-rei, que todos tinham em mira o ideal supremo de «cristianizar, colonizar e civilizar».
Foi tal a arrancada, foram tão grandes e tão justos os incentivos, que ainda hoje, passados quinhentos anos sobre as primeiras tentativas e sofrimentos, não esmorecemos, antes prosseguimos, revigorados, na transcendente missão de assimilar.
«Pertinácia assimiladora», lhe chama o Dr. Germano Correia, e assim era. Difundindo o nosso sangue, a nossa língua e a nossa religião, tínhamos apenas em vista o objectivo, alto entre os mais altos, de fazer os outros iguais a nós, nossos irmãos em tudo.
Mas para isto, para transformar as novas terras e os novos povos em prolongamentos da Pátria distante e com ela os fundir, não se recorria a meios violentos. Pelo contrário, desde o primeiro dia que pisámos o território de Goa, conquistado aos Mouros, Albuquerque fazia saber a sua protecção aos nativos, nesse caso os Hindus.
Promove-lhes a administração da justiça e da sua economia segundo os seus usos e costumes e através de autoridades locais. Tudo era tolerado, menos o bárbaro sati, ou sacrifício das viúvas na pira funerária do marido. Liberta-os de todas as tiranias que sobre eles pesavam.
É extraordinário, meus senhores, que sejam hindus as vozes que contra mós impensadamente se levantam. Dessa raça, desse povo que mais lucrou com o advento dos Portugueses na índia. Gentes que não só passaram a viver dentro da tranquilidade que as nossas providências lhes concediam, tomo se viam aliviadas - e aliviadas em todo o continente, por uma acção reflexa do respeito que a presença das nossas armas em toda a Índia impunha - do jugo de governantes que as avassalavam.
Em pouco tempo da mossa dominação, em 1526, podíamos publicar o primeiro Varal dos Usos e Costumes dos Gancares e Lavradores desta Ilha de Goa e outras anexas a ela, documento de inteiro acatamento pelas normas da economia tradicional.
De então para cá sucederam-se as providências, todas as liberdades, todas as regalias.
À medida que as novas províncias «se vão incorporando, novas disposições são outorgadas.
«Lhes concedo o indulto de gozarem de todos os privilégios, isenções e imunidades que lhes mantinha o rei Sundá na sua dominação, aliviando-os de todas as extorsões e outros ónus que sofriam no domínio do maratha...», diz o edital de 5 de Junho de 1763.
E é um não mais findar de medidas cheias de liberalidade, que passam por todas as épocas. O Decreto de 16

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de Dezembro de 1880, com o novo Código dos Usos e Costumes dos Habitantes não Cristãos de Goa, é um verdadeiro, monumento de respeito pelo nosso semelhante, nobre diploma em que estão fixadas regras da maior importância no que respeita à constituição da família hindu, chegando a tolerância ao ponto de se permitirem e legalizarem certas situações de poligamia que os velhos usos impunham.
O grande historiador inglês Henry Major lamentava-se que houvesse na Inglaterra, país de marinheiros, quem mal conhecesse o Infante D. Henrique, que descobrira e desbravara o caminho para, a grandeza imperial britânica; esse homem de «instinto profético» que, nos tempos em que não havia «uma só carta náutica», «nem um farol», à força de «exemplos de constância, sabedoria e trabalho intelectual», tinha conseguido que a sua pátria alcançasse os «resultados grandiosos que em nenhuma idade foram excedidos pelos de qualquer outra nação.
E eu lamento também, que ainda existam hoje aia Índia nativos que menosprezem aqueles a quem devem, mais do que a ninguém, as luzes dia civilização que lhes alumiou o caminho para a liberdade - a liberdade que começou para a Índia com a chegada das naus portuguesas.
Sr. Presidente: nos territórios que civilizámos a nossa presença ficou. Se violências se praticaram, não foram elas ditadas nem pelo rancor nem por leis de excepção ou por preconceitos de cor ou de raça, que nós totalmente desconhecemos. Eram moeda dos tempos.
Transportámos para a Índia tudo o que era nosso, e desta maneira foram também os nossos defeitos e, sobretudo, o nosso temperamento, ardente e generoso. Se um dia lá houve, como cá, a Inquisição, também lhe levámos a caridade das nossas Misericórdias. Para Goa foram famílias inteiras, nobres e plebeias.
Albuquerque, teimosamente e através dos sarcasmos e acusações, promoveu todos os casamentos dignos entre os metropolitanos e os nativos.
Formava-se assim, usando dos mais humanitários processos, o núcleo de expansão, aliciante, que se espalhou por todo o Oriente, que floresceu em magníficas messes de fulgurantes espíritos, de verdadeiros talentos.
Goa é ainda hoje, não só a metrópole do Cristianismo no Oriente, como da própria civilização ocidental.
Todo o Oriente em geral, e muito especialmente a índia, aufere os mais incalculáveis benefícios civilizadores desse pequeno ponto luminoso que é Goa, donde incessantemente irradiam os homens e as ideias que a todo o continente chegam com o seu reflexo benfazejo.
Goa é um sacrário de relíquias e um viveiro de valores.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Dos seus habitantes mais de metade está perfeitamente integrada pela língua e pela religião, possuindo, em vários graus, ligações de sangue com a metrópole. Para esses, os novos estados da Índia nada significam, senão como vizinhos estimáveis, cujas boas relações seria agradável manter.
As pequenas fracções étnicas de Maometanos e ainda outros grupos nunca formularam outros desejos senão os de viverem em paz dentro da casa comum, como bons portugueses.
E a comunidade hindu, essa, não tem quaisquer motivos de se arrepender da sua nacionalidade. Duvidar da lealdade dos seus membros seria ofender-lhes, o patriotismo. Muitos dos seus filhos, alguns dos quais queridos amigos meus, exercem funções da maior responsabilidade na administração pública portuguesa, no Oriente, em África e na metrópole.
São magistrados, economistas, detentores de títulos nobiliárquicos portugueses, engenheiros, funcionários de todas as repartições.
Médicos hindus curam as doenças dos nossos filhos; professores hindus ensinam nos nossos liceus; hindus têm. tido assento nos Conselhos do Governo e Conselhos Legislativos; jornais hindus, associações hindus, para a formação de carácter e para difusão da instrução, florescem desde há muito tempo na Índia Portuguesa.
Os hindus participaram calorosamente nos acontecimentos políticos da Nação. O Centro Hindu Dr. António José de Almeida, a Biblioteca Manuel de Arriaga, também hindu, são provas bem claras desse entusiasmo.
Existe unia verdadeira comunhão de interesses, do afectos e de dedicações entre os Hindus e os outros Portugueses, como bem. observou o insuspeito testemunho do Dr. António de Noronha.
A sua religião e a sua moral, nascidas na índia, foram benèficamente influenciadas pela presença do credo que pregamos, libertando-se de muitas das suas nocivas limitações. Por isso a alma dos hindus portugueses é também verdadeiramente portuguesa.
A sua pátria não se confina à Índia Portuguesa, porque não há restrições territoriais para um português dentro da vastidão do nosso império.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Se eles têm interesse e simpatia por todas as coisas da Índia!
Pois também eu tenho!
Como se poderia ser indiferente a tão belas expressões da alma humana como são os poemas de inigualável doçura lírica de Tagore; aos elevados conceitos morais de Bhagavad-Gita, o hino maravilhoso de Krishna; ou a nobreza heróica do Ramayana!
Como se poderia ser indiferente à tragédia da evolução das massas empobrecidas, perseguidas por pragas, por misérias e, sobretudo, por alucinações que chegam a transformar ia bondade nativa da sua alma simples aias mais pavorosas cegueiras D desvarios que a história regista!
Nem eu nem os meus amigos e compatriotas hindus de Goa seremos indiferentes a tais belezas, e a tais infortúnios dos nossos estimados semelhantes.
E tudo o que dê melhor lhes desejaríamos era que vivessem em paz e felicidade, como nós vivemos na nossa modesta casa portuguesa da índia; onde não há intransigência de espécie alguma; onde os Hindus, Maometanos e Cristãos mutuamente se respeitam, se compreendem, se estimam como filhos da mesma pátria, como verdadeiros portugueses.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: mais do que nenhuma outra parcela de Portugal no ultramar, a nossa Índia tem sido um verdadeiro alfobre de portugueses ilustres.
Por toda a parte, e através de todas as épocas, os temos visto ocupar os mais altos corgos, desempenhar as mais importantes funções. Foram juizes, professores, generais, almirantes, engenheiros, médicos, cientistas de toda a ordem.
Trabalham na Índia Portuguesa, em Angola, em Moçambique e na metrópole.
Têm-lhes sido entregues as mais delicadas funções na governação pública, nos governos do ultramar, na alta magistratura, no seio do próprio Governo da metrópole. No entanto, eles não sua uma excepção.

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Tem sucedido o mesmo com todos os outros territórios de além-mar, embora em escala muito menor. Quando em tempos me referi a essa insigne figura de português, o negro guineense Honório Pereira Barreto, que foi um grande governador da Guiné e um altíssimo patriota, pude dizer:

Mas ele, sendo um exemplo, não é de modo algum um caso singular no vasto processo da assimilação. Das massas ignaras de todas as províncias portuguesas todos os dias se destacam figuras de relevo; e as províncias ultramarinas têm produzido, em escala apreciável, nomes verdadeiramente fulgurantes em todos os campos, nas ciências como nas letras, e até nos mais altos postos da administração nacional.
Juizes e professores vindos da África, da Índia ou da China ministram justiça e ensino às gentes e nas terras metropolitanas: poderá haver mais alto e claro exemplo de uma total comunhão? Como negar esta evidência? Como apedrejar um tão belo padrão?

E hoje acrescento: como poderiam os naturais da Índia Portuguesa, todos, sem limitação, ser mais honrados? Como poderiam ter maiores privilégios?

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Na Índia Portuguesa não temos senão algumas dezenas de indivíduos metropolitanos nas funções públicas ou profissões liberais.
Praticamente, toda a actividade oficial está nas mãos dos naturais daquele Estado. Não recebam a metrópole ou as restantes parcelas do Império qualquer benefício de ordem imaterial da nossa Índia, nem mesmo por intermédio de relações comerciais, que infelizmente quase não temos.
Mas, polo contrário, milhares de portugueses naturais da Índia, de várias procedências étnicas e religiosas, trabalham na metrópole e por todo o Império, onde ocupam as mais desvanecedoras e honrosas situações.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas há mais! Numerosos indivíduos, súbditos da União Indiana e do Paquistão, ganham tranquilamente a soía vida à sombra da mossa bandeira - na África Portuguesa, sobretudo -, sem que, reciprocamente, haja talvez um único português metropolitano que se aproveite da hospitalidade da Índia estrangeira.
Como pode, decentemente, considerar-se uma nação como a nossa, tão claramente desinteressada dos aspectos materiais, uma opressora de povos estranhos?

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Temos, sim, por toda a Índia estrangeira e atiravas do Padroado difundido os mais benéficos preceitos morais, pregado o bem e ajudado a elevação de grande parte da sua população.
Padroado que nós aceitámos como um dever, embora ele representasse para a Nação um pesado encargo material e em sacrifícios de vidas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Missões que só Portugal poderia ter sustentado; iniciativas e responsabilidades que, nesses tempos remotos, excediam a capacidade da própria Santa Sé. Por isso Goa foi a Roma do Oriente, foi o seu braço mais forte, mais ousado, mais sofredor, na propagação da doutrina cristã nas terras orientais. Serviços esses que só por si nos acreditariam perante os homens de boa fé desses territórios e outros e nos tornariam credores do seu perene reconhecimento. Na Índia nada mais temos feito do que servi-la!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: não venho levantar de modo nenhum qualquer problema nesta Assembleia. A nossa posição, quer seja perante este incidente, quer perante as mais graves emergências, está de há muito claramente definida. É da própria essência da Constituição e não admite dúvidas: a Índia é Portugal. E sobre isso nada mais há que dizer.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas agora, Sr. Presidente, sempre me lembro de perguntar: que representa a Índia para a Nação Portuguesa?
Sr. Presidente: encontro-me felizmente entre portugueses e ilustrados, portanto que sentem e compreendem a nossa atracção do ultramar.
Ela vem dos primeiros dias da nacionalidade. No primeiro grupo, cheio de energia, transbordante de energias, que sonhou a independência, havia certamente a intuição de uma missão a desempenhar. Sem ela não se justificaria o próprio anseio de independência. Essa missão cedo se definiu e concretizou: o mar primeiro e o ultramar depois.
A tal ponto que apara mim não existem dúvidas quanto às razões essenciais da própria independência: esse império que construímos e continuamos a edificar».
Nem para mim nem certamente para nenhum de nós.
Portugal não é uma nação continental europeia, mas sim uma potência marítima e missionária.
A expansão ultramarina pelos portugueses, iniciada há quinhentos anos, é a mais sólida razão de ser da nacionalidade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Tudo isto nós o sentimos - é um sentimento inato -, e por isso nenhum de nós duvida que a garantia da nossa independência, o futuro da nossa vida, não estão na Europa, mas sim além do mar.
A independência não se consolidou na Europa. Foi o Infante D. Henrique que nos talhou o futuro e que nos acreditou no Mundo e através dos séculos.
A nossa independência não se defende só com pólvora. Mais forte do que todas as armas está o respeito que a Humanidade nos deve pelos serviços que lhe prestámos e lhe estamos prestando.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E o nosso principal campo de acção está no ultramar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: penso que no incidente que deu origem às minhas considerações não haverá motivos especiais de preocupações para nós.
Todos sabemos que o Governo está atento e intransigente na defesa dos sagrados direitos e da dignidade da Nação. Por isso não hesito em manifestar-lhe, como estou certo de que todos lhe manifestamos, sem reservas, a nossa incondicional confiança.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Sabemos ainda que todos os portugueses da Índia sentem a maior repulsa por todas as manobras atentatórias da soberania portuguesa. A todos eles, sem distinção, Cristãos, Hindus, Maometanos e de outras religiões; descendentes, nativos ou metropolitanos; de Goa, de Damão ou de Diu, desejaria que lhes fosse dito, por intermédio do seu governador-geral, legítimo representante da soberania nacional, que nós estamos com eles e os saudamos com entusiasmo e emoção.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: ao encerrar as minhas considerações, apenas um sentimento de mágoa me domina.
Não posso, nem desejo, afastar do meu coração, nem do meu espírito, a maior simpatia pela martirizada índia, que se orgulha das belas tradições védicas da bondade e da justiça.
Mas olho pura o seu atribulado caminho; e, apesar de o Maatma Gandhi ter dito: «a não-violência é o primeiro artigo da minha fé»; de condenar todos os crimes e ultrajes; de praticar a não-cooperação como única arma de convencimento, vejo com tristeza que nenhum dos quatro belos pilares do swaraj ainda foi erguido. Pelo contrário, os desvarios percorrem a dolorida terra onde viveram, amaram e deixaram o seu encanto a iluminada Soraswati, a apaixonada Parvati é a maravilhosa Lakahmi; onde pregou Buda e batalhou Crisna.
E, nesta irresistível sedução que sinto pela índia, nesta admiração imensa que nutro pela humildade do seu povo, de alma religiosa e simples, eu penso que seria verdadeiramente chegado o tempo, de surgir na terra eleita, cavalgando o seu cavalo branco, a tão esperada incarnação de Visno, para escorraçar a maldade e as trovas do coração dos homens e restaurar para sempre o reino da justiça e da compreensão.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: os apoiados calorosos que ouvi de toda a sala dão-me a certeza da adesão da Câmara ao pensamento que dominou fundamentalmente as intervenções dos ilustres oradores que com as suas palavras oportunas quiseram levantar o espírito nacional e reconfortar o nosso sentimento patriótico, justamente magoado pela injustiça de que foi vítima o nosso esforço civilizador, a nossa missão cristã no Mundo. Só a unanimidade dos sentimentos da Câmara mo permite associar-me a eles; e, para de qualquer maneira lhes dar uma expressão mais prática, pedirei ao Sr. Ministro das Colónias que, por intermédio do governador da Índia Portuguesa, transmita a todos os nossos irmãos daquela província de Portugal que, nesta provação da nossa solidariedade, a Assembleia Nacional e toda a comunidade portuguesa estão inteiramente com eles, como sabe que eles estão mais do que nunca integrados indissoluvelmente nessa comunidade.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão, e designo para a ordem do dia do amanhã a discussão da proposta apresentada hoje pela Comissão de Legislação e Redacção sobre a antecipação da revisão constitucional.
Como VV. Ex.ªs sabem, essa proposta só pode ser submetida à apreciação da Assembleia se estiverem presentes pelo menos dois terços do número de Deputados em efectividade de funções, e por isso solicito a comparência de todos VV. Ex.ª Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 25 minutos.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alberto Cruz.
António Carlos Borges.
Armando Cândido de Medeiros.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Herculano Amorim Ferreira.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Pinto Meneres.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Vaz.
Manuel de Sousa Meneses.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Tito Castelo Branco Arantes.
Vasco de Campos.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

Proposta de lei e parecer a que se referiu o Sr. Presidente no decurso da sessão de hoje:

Oportunamente foram adoptadas para a protecção do cinema português medidas de carácter efectivo e que se espera venham a dar maior desafogo à nossa produção de filmes. Desde logo se pensou que para o teatro haveria que tomar, na altura própria, uma iniciativa que conduzisse a idêntica finalidade.
As dificuldades que neste momento notoriamente se verificam nas explorações de teatro em Portugal, em manifesto prejuízo dos géneros de nível superior, que não contam com tão larga audiência quanto se desejaria, sugere a necessidade urgente de actuar naquele sentido.
A essa intenção obedece o presente diploma, cujas soluções Essencialmente se aparentam àquelas que se adoptaram para o cinema.
Cria-se, à semelhança do que se fez para o cinema, um Fundo do teatro, cujas disponibilidades serão aplicadas essencialmente à concessão de subsídios às empresas cujo plano de exploração se coadune com a finalidade de estimular o gosto pelo bom teatro, favorecendo a sua penetração no público.
A estrutura da actividade teatral não permite que, à maneira do que se fez com o cinema, seja ela própria a proporcionar os meios suficientes para o funcionamento desse fundo. O Governo reconhece que o teatro, quando exerce verdadeiramente a sua missão de cultura, não deve desaparecer nem definhar numa sociedade civilizada.

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Porque se atende que nesse nível o teatro serve o interesse público, plenamente se justifica que seja o próprio Estado a suportar o encargo principal de protecção concedida. Para este efeito mobilizam-se precisamente receitas que provêm do espectáculo e que assim encontram aplicação em benefício do próprio espectáculo. E também pareceu justo que aqueles teatros que exploram cinema contribuíssem para o Fundo, como compensação de um palco que deixou de utilizar-se, embora por virtude de unia permissão regularmente concedida. Mas não seria possível consentir na multiplicação de situações semelhantes, porque o teatro não pode viver sem dispor de palcos suficientes. De futuro os cine-teatros terão de ser efectivamente cine-teatros, ao serviço comum das duas modalidades, para tanto se lhes impondo a obrigação de um mínimo anual de espectáculos teatrais, fixado em harmonia com o condicionalismo de cada um.
A administração do Fundo é atribuída ao Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, que terá como órgão consultivo um Conselho Teatral, de composição paralela à do Conselho de Cinema.
Artigo 1.º É criado o Fundo do teatro, que se destina a assegurar protecção ao teatro, com o fim de estimular a sua acção na cultura geral e elevar o seu nível artístico.
Art. 2.º Constituem receita do Fundo do teatro:

a) As taxas a cobrar de empresas que explorem cine-teatros nos termos previstos por este diploma;
b) A contribuição cobrada pelo Fundo de Desemprego das empresas que explorem espectáculos públicos e do pessoal ao seu serviço;
c) As dotações especiais consignadas no Orçamento do Estado, nunca superiores às importâncias cobradas de vistos e licenças concedidos pela Inspecção dos Espectáculos e suas delegações;
d) Os subsídios concedidos por quaisquer entidades;
e) Os donativos e legados de que vier a beneficiar;
f) O produto das multas aplicadas por infracção das disposições do presente diploma;
g) Os juros dos fundos capitalizados.

§ único. A arrecadação das receitas do Fundo do teatro será feita pelo Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, mediante guias passadas pela Inspecção dos Espectáculos para as verbas a que se referem as alíneas a) e f) deste artigo.
Art. 3.º As disponibilidades do Fundo do teatro serão aplicadas:

a) À concessão de subsídios a empresas singulares e colectivas que explorem espectáculos de teatro declamado e, excepcionalmente, comédia musicada e opereta;
b) A subsídios destinados a auxiliar os estudos e investigações que visem ao estímulo e aperfeiçoamento da actividade do teatro português.

Art. 4.º O Fundo do teatro será gerido por um conselho administrativo, constituído pelo secretário nacional da Informação, que presidirá, pelo inspector dos Espectáculos e pelo representante dá Junta Nacional da Educação no Conselho Teatral.
Art. 5.º O Conselho Teatral funcionará no Secretariado Nacional da Informação e será constituído:

a) Pelo secretário nacional da Informação, que presidirá;
b) Por um representante da Junta Nacional da Educação, designado pelo Ministro da Educação Nacional de entre os vogais da secção de belas-artes;
c) Pelo inspector dos Espectáculos;
d) Por um representante do Grémio Nacional das Empresas Teatrais e outro do Sindicato Nacional dos Artistas Teatrais;
e) Por um escritor de teatro, autor ou crítico de reconhecido mérito, designado (pelo respectivo sindicato ou, na falta deste, por despacho do secretário nacional da Informação;
f) Pelo chefe da 3.ª Secção da 3.ª Repartição (etnografia, teatro e música) do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular o Turismo, que exercerá as funções de secretário.

§ 1.º O Conselho poderá, além disso, convocar, sempre que o julgue necessário, representantes de outros organismos oficiais ou de interesse público por qualquer forma relacionados com o desenvolvimento do teatro em Portugal.
§ 2.º Por cada sessão a que assistirem terão direito a unia senha de presença de 100$ os vogais a que se referem as alíneas d) e e), a satisfazer pelo Fundo.
Art. 6.º A concessão dos subsídios a que se refere a alínea a) do artigo 3.º depende de concurso aberto em cada ano, até 31 de Maio, pelo prazo de trinta dias, perante o Secretariado Nacional da Informação, que os atribuirá sobre parecer do Conselho Teatral.
Art. 7.º As entidades que se candidatarem aos subsídios deverão instruir os seus requerimentos com a seguinte documentação:

a) Escritura pública de constituição de sociedade, sempre que se trate de uma empresa colectiva;
b) Título de propriedade da casa dê espectáculos em que se pretenda fazer a exploração ou documento de que constem as condições em que essa casa se encontra à sua disposição;
c) Repertório e plano geral do espectáculos da época;
d) Declaração expressa das obrigações assumidas quanto à representação de originais portugueses durante a época de exploração, tanto em estreia como em reposição;
e) Relação do elenco artístico, incluindo o director da companhia e o ensaiador, responsável pela encenação;
f) Certificado, passado pela Inspecção dos Espectáculos, comprovativo, para as empresas já inscritas, de terem liquidado todos os compromissos resultantes de explorações anteriores e, para as novas empresas, de serem consideradas idóneas, de acordo com o preceito do artigo 92.º do Decreto n.º 13:564, de 6 de Maio de 1927;
g) Documento demonstrativo de se encontrarem inscritas no Grémio Nacional das Empresas Teatrais e de haverem integralmente satisfeito todas as obrigações emergentes dessa inscrição.

Art. 8.º Ao Conselho Teatral é reservado o direito de exigir das empresas que foram subsidiadas em cada época a representação de um mínimo de dois originais portugueses inéditos, cuja escolha deverá ser homologada pelo mesmo Conselho.
§ único. As épocas a considerar na exploração teatral são duas: época de Inverno, que abrange os meses de

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Setembro a Maio, e época de Verão, que abrange os meses de Junho a Agosto.
Art. 9.º Compete ao Secretariado Nacional da Informação fiscalizar aã explorações subsidiadas, a fim de garantir o escrupuloso cumprimento das obrigações assumidas perante o Conselho Teatral.
Art. 10.º Os proprietários de casas de espectáculos com palco são obrigados a assegurar, directamente ou através de entidades para as quais transfiram os seus direitos e encargos, a exploração regular de teatro em cada período anual, dando o número mínimo de espectáculos que for fixado, para cada uma dessas casas, pelo Conselho Teatral e nas épocas por este designadas.
§ 1.º Apenas se exceptuam da doutrina constante deste artigo os cine-teatros de Lisboa e Porto, aos quais haja sido concedida, a título definitivo e sem limitações, autorização para a exploração de espectáculos de cinema.
§ 2.º Desde que as empresas proprietária ou exploradora dos cine-teatros a que se refere o parágrafo anterior não dêem espectáculos teatrais no mínimo de noventa dias em cada ano ficarão adstritas ao pagamento de uma contribuição para o Fundo do teatro, contribuição que será fixada anualmente para cada uma pelo Conselho Teatral.
§ 3.º Aos cine-teatros aos quais haja sido concedida autorização condicionada para espectáculos de cinema não poderá ser fixado período de exploração teatral inferior a duzentos e quarenta dias em cada época de Inverno.
Art. 11.º As empresas dos teatros de Lisboa e Porto que conservem estes encerrados durante o ano por período superior a sessenta dias, salvo o caso de imposição da Inspecção dos Espectáculos, ficam sujeitas, por cada dia além daquele período, ião pagamento para o Fundo do teatro da multa que lhes Jor aplicada pela mesma Inspecção e correspondente a 3 por cento da receita bruta da venda de bilhetes aos preços normais.
Art. 12.º Os contratos de exploração teatral deverão ser submetidos à aprovação da Inspecção dos Espectáculos, a qual arbitrará no caso de a empresa exploradora considerar excessivas, em relação à justa remuneração da propriedade, as exigências da empresa proprietária ou casa de espectáculos.
§ 1.º Não são de admitir contratos de exploração em que figurem bilhetes cativos vendáveis a favor de proprietário ou arrendatário, ou mais do que um camarote, frisa ou cinco lugares de plateia invendáveis para sua utilização gratuita.
§ 2.º As receitas resultantes da exploração de panos de anúncio, publicidade no teatro, mostruários, bufetes, bengaleiros, programas e outras receitas eventuais revertem a favor da empresa exploradora, devendo esta respeitar em tudo o anais os contratos em vigor entre o proprietário ou arrendatário do teatro e os adjudicatários daquelas explorações, cláusula que deve figurar expressamente nos contratos de exploração.
Art. 13.º Todas as receitas do Fundo do teatro serão escrituradas em receita orçamental e consignadas à realização das despesas previstas neste diploma.

Presidência do Conselho, 10 de Janeiro de 1950. - O Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar.

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CÂMARA CORPORATIVA

V LEGISLATURA

PARECER N.º 2/V

Proposta de lei n.º 503

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 105.º da Constituição, acerca da proposta de lei n.º 503, que cria um Fundo de teatro destinado a subsidiar, em determinadas condições, o espectáculo teatral, emite, pelas suas secções de Ciências e letras, Belas-artes, Interesses espirituais e morais e Finanças e economia geral, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. É digna de todas as homenagens a iniciativa do Governo, que se integra num vasto plano de protecção às actividades artísticas nacionais. Depois da arquitectura, cujas criações monumentais definem já, entre nós, uma época; depois da escultura, que mormente na sua expressão heróica -a estatuária- tem sido nos últimos tempos notavelmente estimulada; depois da pintura; depois do cinema, chegou a vez do teatro, cujas condições de vida, há muito tempo difíceis, reclamavam dos Poderes Públicos urgentes providências. As intenções que ditaram esta medida governamental merecem o reconhecimento da Nação. Com efeito, o teatro não é apenas um divertimento público. E um poderoso instrumento de cultura; o índice - bem o disse George Meredith - do grau de civilização de um povo; o veículo de um género de literatura - a literatura dramática - que há vinte e cinco séculos enriquece o património espiritual e moral da humanidade; o agente vivo da difusão e expansão imperial das línguas; o seu para
digma prosódico; instituição universal que, tendo nascido do sentimento religioso e das práticas litúrgicas dos povos, ainda hoje se mantém, e manterá, como expressão da sua alma colectiva, como repertório das suas tradições nacionais e - mesmo quando não tenha a perfeita consciência disso - como penhor da permanência dos grandes valores da culturalatina e cristã. Há iniciativas que carecem de ser justificadas. Esta impõe-se por si própria. A Câmara Corporativa, no exercício da sua função tantas vezes delicada, procurou, na medida dos recursos de que dispõe, corresponder ao alto pensamento do Governo, estudando com individuação a proposta submetida ao seu exame, esclarecendo-a em muitos pontos, sugerindo as alterações consequentes da visão de conjunto do problema (diferente da visão unilateral que dele possa ter determinado serviço) e contribuindo, enfim, pela apresentação de uma nova redacção, para melhorar o texto e tornar mais acessíveis os objectivos de tão interessante documento.
2. Vejamos qual é a posição actual do problema. Diz-se que o teatro está em crise. Esta expressão não corresponde inteiramente à verdade. Houve crise do teatro no século XVII, em que quase se não representava em Portugal senão teatro espanhol; houve-a no século XVIII, em que vivemos sob a influência absorvente do teatro italiano. O período de esplendor da literatura dramática e das artes cénicas no nosso país principiou no segundo quartel do século XIX e prolongou-se por este século, até à data em que as consequências económicas da primeira guerra mundial fizeram sentir os seus efeitos e em que o progresso das técnicas moder-

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nas, verdadeiramente ofuscante, criou actividades novas que uns supõem sucedâneas, outros apenas concorrentes do espectáculo dramático. Apesar, porém, das suas vicissitudes, o teatro integral, com todos os elementos constitutivos - autores, actores, ensaiadores, cenógrafos, coreógrafos, figurinistas-, subsistiu até hoje entre nós, em condições de quantidade e de qualidade que lhe permitem, pelo menos, afirmar a sua existência e manter a sua personalidade nacional. As suas condições de vitalidade são tais, que tem resistido a tudo - até à lamentável indiferença e prodigalidade com que temos esbanjado alguns dos seus valores, deixando-os partir, desalentados, para países estrangeiros. Espectáculos como aqueles que, com superior dignidade e apurado senso estético, nos tem oferecido o Teatro Nacional de D. Maria II (o relatório dos seus últimos vinte anos de actividade é documento notável), e, não só o teatro do Estado, mas o brilhante grupo dos Comediantes de Lisboa nas poucas épocas em que obteve um palco para representar, e algumas outras companhias e organizações, aliás efémeras, de comédia ligeira e de teatro musicado não temem por vezes confronto -haja a fácil coragem de o reconhecer - com as realizações congéneres de muitos países europeus. Não nos encontramos propriamente em presença de uma crise de teatro, mas - como acentua o relatório da proposta de lei em estudo- perante «dificuldades que se verificam na sua exploração». Essas dificuldades são de vária natureza. Não há teatro sem teatros; quer dizer, sem palcos onde se represente, visto que há muito tempo se perdeu o uso do espectáculo ao ar livre, como na skene grega, no adro das catedrais ou nos pátios de comédias do século XVII. O cinema invadiu a quase totalidade dos teatros de Lisboa e do País, perante a imprevisão dos Poderes Públicos, que não condicionaram em devido tempo a sua actividade e a sua expansão, com sensível prejuízo do livre desenvolvimento do teatro português. O cinema não roubou apenas o espaço vital necessário ao teatro; desviou dele a corrente do público, criando um espectáculo a baixo preço - o «teatro exportado em latas», na expressão de Robert Florey-, com o qual o verdadeiro teatro, .nada vez mais caro, não podia competir. Por seu turno, a rádio, que levou a música e a literatura aos domicílios, fixou as famílias no lar (o que, aliás, sol) outros aspectos é excelente) e desabituou-as do teatro; ao passo que o entusiasmo crescente pelas actividades desportivas e o culto imoderado e pagão da força, criando nas gerações uma nova mentalidade -a mentalidade do homo velox, do «homem metálico» do século XX, cada vez mais atenuava nelas o interesse pelo teatro, em especial pelo grande teatro, manifestação do espírito. Parte considerável do público abandonou o espectáculo teatral, ou porque sentia menos a sua falta (quem se lembra de teatro, depois de uma tarde triunfal de futebol?), ou porque esse espectáculo, pela elevação dos preços de entrada, se tornou para ele inacessível. Mas como baixá-los, se os teatros, quase todos de pequena lotação, não têm defesa; se os artistas pedem ordenados cada dia maiores (e é compreensível que os peçam, porque o teatro deixou de oferecer-lhes, como outrora, garantias de estabilidade); e, sobretudo, se sobre a indústria do teatro, que nunca foi rica, pesa hoje (entre nós, como em toda a parte), não só uma tributação excessiva, mas uma soma de obrigações de tal modo onerosas, que dificilmente pode respirar e viver? Imposto único; câmaras municipais; socorro social; adicional da Caixa de Previdência dos Profissionais de Espectáculos; impostos sobre propaganda; licenças de exploração e vistos; organismos corporativos e de previdência; contribuição para o Fundo de Desemprego; polícia, bombeiros, até socorros a náufragos (que não serão, evidentemente, os náufragos do teatro), todo este penedo de
Sessão pesa sobre o espectáculo, ou sobre o público que o frequenta, de maneira tão aflitiva, que é realmente motivo de admiração verificar que ele existe ainda. Não. O Governo viu bem o problema, tal como ele na realidade se apresenta. Se alguma coisa está em crise, não é propriamente o teatro como instituição; é a sua economia, gravemente atingida, não tanto pelos inevitáveis erros administrativos das empresas, mas por circunstâncias que se opõem ao seu livre desenvolvimento e de quê o teatro não é de modo nenhum responsável. Podia uma sábia política de cultura, orientadora, coordenadora e prudente, ter até certo ponto modificado a situação. Não houve, porém, ao que parece, nenhum organismo do Estado especialmente qualificado para exercê-la. A antiga Direcção-Geral de Belas-Artes, de precária existência, foi suprimida. Os serviços da educação artística, teatros, conservatórios, museus, escolas de belas-
artes ficaram a cargo da Direcção-Geral do Ensino Superior, que não podia consagrar-lhes, como é natural, senão uma parte, sem dúvida a menor, da sua zelosa actividade. Não se sabe bem porquê, ao passo que os teatros do Estado e os conservatórios permaneciam no quadro de serviços do Ministério da Educação Nacional, os restantes teatros passavam para o Secretariado da Informação, entidade oficial múltipla e (polivalente já incomportàvelmente sobrecarregada com a imprensa, a rádio, o cinema, a propaganda, o turismo, a etnografia, o mecenato literário, a arte popular - o protocolo de recepção dos estrangeiros ilustres. Daí, porque o mesmo problema dependia de estações oficiais diferentes e, portanto, de diferentes critérios e concepções, nunca foi possível adoptar medidas que correspondessem a uma visão geral do problema do teatro. Essa unilateralidade, proveniente da carência de uma visão de conjunto, nota-se também em certos pontos da proposta de lei que estamos apreciando. A criação do Conselho Teatral, tal como o artigo 5.º o concebe, é um deles. Far-lhe-emos referência na altura própria. Basta acentuar, por agora, que à crise, não tanto artística, não tanto profissional, mas económica do teatro, se alia uma crise de orientação e de coordenação superior. O facto não é apenas nacional - é europeu.
3. Mas - convém adverti-lo - o presente diploma não se propõe, de modo nenhum, oferecer-nos unia solução geral do problema. Não queiramos que ele seja o que o Governo não quis que ele fosse. Um «estatuto de teatro», como já alguém, com manifesta carência de sentido das proporções, chamou a esta proposta governamental, é outra coisa e envolve outras responsabilidades. Para se resolver «em grande» o problema do teatro no nosso país seria preciso, antes de tudo, «arruinar a casa», pôr as coisas no «eu lugar próprio, criar uma direcção-geral de belas-artes que se consagrasse apenas (e não é pouco!) às belas-artes, transferir para o Ministério da Educação Nacional a Inspecção dos Espectáculos (organismo incansável, que tem já passeado muito, de uma para outra Secretaria de Estado) e a superintendência no serviço de todos os teatros públicos. Na verdade não se percebe bem que no Ministério da Educação Nacional exista uma Direcção-Geral dos Desportos, que melhor ficaria no Secretariado da Informação e Cultura Popular, e que do Ministério da Educação Nacional se exclua, para o entregar ao Secretariado da Informação, o problema dos teatros - intimamente ligado aos destinos da arte e da literatura dramática nacional. Haverá qualquer vantagem em que fique de um lado o espectáculo público e do outro o Conservatório, escola de formação dos artistas profissionais? Reorganizar é, antes de mais nada, reunir o que anda disperso, a fim de que os serviços do Estado se não convertam num vasto sistema de isolamentos e

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de incompreensões. Mas - repetimos - tal não foi o propósito do Governo, nem seria porventura esta a melhor oportunidade de o levar a efeito. Trata-se apenas de uma medida de emergência - nem por isso menos de agradecer e de louvar - destinada a atacar a questão nos seus aspectos económicos urgentes, e não, evidentemente, no domínio mais alto e mais complexo da orgânica dos serviços ou da política geral da cultura. O que praticamente se pretende é, por um lado, facilitar a vida administrativa das empresas que o desejem, subsidiando, em determinadas condições, entidades idóneas e explorações teatrais qualificadas; e, por outro (questão fundamental), arranjar desde já palcos livres onde essas explorações possam normalmente realizar-se. A estes objectivos temos de limitar as nossas considerações. Evidentemente, desde que esta última condição - a existência de palcos - se não verifique, o subsídio por si só nada resolve, porque não há de momento palcos livres (e a situação vai agravar-se ainda com a demolição iminente de um teatro de Lisboa) onde possa realizar-se, em condições de estabilidade, uma exploração teatral de categoria. Um dos objectivos desta proposta de lei está, pois, dependente de se atingir o outro. Admitamos, porém, que se arranjam palcos. Bastará o subsídio para resolver o problema? Se o bom teatro fosse apenas questão de dinheiro, todas as nações prósperas possuiriam teatro florescente. E, por exemplo, nem a Bélgica nem a Suíça o têm. Evidentemente, o dinheiro não basta para que haja bom teatro; mas, sem capitais suficientes que se invertam na exploração teatral e que lhe assegurem a permanência, a continuidade e a ordem, o bom teatro dificilmente existirá. Ontem ainda eram possíveis as explorações de aventura, feitas por empresários milicianos, que viviam apenas da bilheteira; hoje não. A carestia das montagens, os ordenados fabulosos de certos artistas, o pesado ónus fiscal, a versatilidade do público, os encargos de toda a natureza que sobrecarregam tão caprichosa indústria, não permitem já que se brinque com o teatro. É preciso que as empresas responsáveis possuam, além de tino administrativo, a necessária capacidade financeira. O subsídio que o Estado se propõe conceder não se destina naturalmente a custear a aprendizagem de empresários improvisados, nem pensa esta Câmara- a subvencionar a simpática inexperiência de autores que cultivam o insucesso e que entendem que ele deve ser generosamente protegido. Não valeria a pena. E, sobretudo, se o subsídio ao empresário for condicionado pelo encargo de representar compulsòriamente peças verificadamente más, ou de suportar fiscalizações insistentes e intervenções coercivas, o Estado tirará comi uma das mãos o que dá com a outra. O subsídio, para ser útil, tem de ser rasgada e generosamente oferecido; mas deve entender-se que o Estado o concede no propósito de assegurar a continuidade e a estabilidade da exploração teatral; de melhorar quanto possível as realizações cénicas, não só na riqueza, mas, sobretudo, no rigor, na exactidão e na propriedade; de baixar o preço das entradas, única maneira eficaz de combater a concorrência do cinema. Nesse mesmo espírito os industriais do teatro inglês se dirigiram ao seu governo pedindo-lhe que «lhes desse apenas aquilo que lhes tirava». Os subsídios que, nos termos deste diploma, o Estado vier a atribuir ao teatro português têm compensação em receitas que do espectáculo, senão rigorosamente do teatro, provêm: taxas de visto, licenças de exploração, contribuições para o Comissariado do Desemprego. Revestem-se do carácter de uma restituição. Esta Câmara, concordando com a proposta na generalidade, entende, porém, que, para que dela resultem os benefícios que é lícito esperar, sem a contrapartida em inconvenientes que a experiência aconselha que se evitem, convirá introduzir no seu texto alterações tendentes a harmonizá-la quanto possível com o teor das considerações que acabam de ser expostas e com aquelas que teremos a oportunidade de produzir ao examinar agora a proposta na especialidade.

4. O diploma afecto ao nosso estudo é precedido de um breve relatório, talvez demasiado sucinto, pobre de informações sobre o montante das verbas com que se conta e porventura pouco nítido na maneira por que define a posição actual tio problema teatral português. Em primeiro lugar convém observar que as soluções do problema do teatro de modo nenhum «se aparentam àquelas que há dois anos se adoptaram respectivamente ao cinema». Labora em erro, segundo nos parece, quem suponha que se truta de problemas idênticos susceptíveis de soluções paralelas. O cinema é uma gigantesca indústria, uma prodigiosa técnica mais do que uma grande arte, a fenómeno de explosão», na justa expressão de Delluc, mundo de imagens caminhando no tempo e no espaço, bandeira deslumbrante -como a aviação e a rádio- da revolução das técnicas e da trepidação dos espíritos na primeira metade do século XX. O teatro, pelo contrário, é, substancialmente, uma arte, uma literatura, uma língua, unia alma. Literatura das mais belas de que algum dia se orgulhou o génio dos povos; fonte viva da tradição, em que se tempera e fortalece a armadura moral das nações que querem viver; padrão de vernaculidade; instrumento das culturas históricas que procuram defender e exaltar os grandes valores espirituais da humanidade. Cada uma destas actividades - teatro e cinema- tem a sua função no mundo contemporâneo e, naturalmente, os seus problemas, que, sendo diferentes, não podem ser resolvidos, nem com o mesmo espírito, nem pelos mesmos métodos. Basta citar, no que respeita ao teatro: um problema literário (o do teatro comparado); um problema pedagógico (o da formação estética dos artistas); um problema filológico (o do padrão prosódico); um problema político (o da expansão da língua). Em 1947 criou-se um figurino para tratar do cinema; não procuremos vesti-lo agora ao teatro, porque não lhe serve. Outras afirmações se fazem no relatório que precisam de ser esclarecidas. Diz-se, por exemplo, que o objectivo do subsídio é, em última análise, a estimular o gosto pelo bom teatro, favorecendo a sua penetração no público». Gosto pelo bom teatro, há. O pior é que, como se diz numa comédia de Goldoni, «a Providência põe o apetite de um lado e o alimento do outro». Há ainda muito público de bom gosto que iria mais ao teatro se os bilhetes não fossem tão caros. O que verdadeiramente justifica o subsídio é a possibilidade de com ele, fazer baixar o preço das locações toa- trais. O essencial, pois, não é «favorecer a penetração do teatro no público»; é «favorecer a penetração do público no teatro». Nunca, como hoje, no enunciado não apenas deste, mas doutros problemas, foi tão necessário pôr em ordem as ideias e (como na anedota chinesa que Gonzague de Reynold vulgarizou) dar às palavras a significação que elas realmente têm. Passemos ao texto da proposta. São os seguintes os seus pontos principais e, de certa maneira, também os seus pontos nevrálgicos: 1.º Fundo de teatro e suas receitas; 2.º Distribuição dos subsídios; 3.º Providências atinentes a obter palcos para tornar possíveis as explorações teatrais. Examinemos cada um deles.

II

Exame na especialidade

5. Fundo de teatro. - Diz-se no artigo 1.º que o Fundo se destina á assegurar a protecção do teatro, com

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o fim, ou com os fins, de estimular a sua acção na cultura e de elevar o seu nível artístico. Estimular a sua acção na cultura não se percebe bem; cultura é o próprio teatro, e da melhor. Elevar o seu nível artístico, que não é aliás baixo, talvez se não consiga apenas com o subsídio; o que se consegue, com certeza, é melhorar as condições da sua exploração. O artigo 2.º descreve as receitas do Fundo. Sobre ele se concentram algumas das principais dúvidas desta Câmara. As receitas descritas são em número de sete, alíneas a) a g); mas, na realidade, só contam as três primeiras, porque o resto (subsídios de outras entidades, donativos, legados, multas) é puramente aleatório. Vejamos de que provêm estas três receitas. Alínea a): a as taxas a cobrar de empresas que explorem cine-teatros nos termos previstos por este diploma». Que taxas são estas? Os §§ 1.º e 2.º do artigo 10.º esclarecem-nos. Trata-se de uma nova contribuição a que ficam sujeitas as empresas proprietárias ou exploradoras dos cine-teatros de Lisboa e Porto, «às quais foi concedida, a título definitivo e sem limitações, autorização para a exploração ide espectáculos de cinema», se não derem, no mínimo de noventa dias em cada ano, espectáculos teatrais. Esses cine-teatros são: S. Luís, Éden, Politeama e Capitólio, em Lisboa; S. João, Águia de Ouro, Rivoli e Carlos Alberto, no Porto Semelhantes disposições sugerem alguns reparos, Não se percebe bem a razão por que se lança nova «contribuição» (e a palavra que encontramos no § ,2.º do artigo 10.º) sobre as empresas daqueles cine-teatros pelo facto de não cumprirem unia obrigação de que se encontravam legalmente isentas. Se a própria proposta de lei reconhece (§ 1.º do artigo 10.º) que essas empresas se encontram na possa de um direito legitimamente adquirido, será justo que as multem por usar desse direito? Pagam por ter palco f e não o utilizar? Mas, quando foram autorizadas a explorar livremente cinema, já se sabia que o tinham e que o não utilizavam. Mas, admitamos que esta preterição de direitos é justa. Quem fixa a taxa a pagar pelo cine-teatro que não cumpre? É o secretário nacional de Informação, ouvido o Conselho Teatral. Em obediência a que critério? A nenhum. O Secretariado fixa a quantia que bem lhe parece. É o inspector dos Espectáculos quem o diz, na sua informação complementar de 12 de Dezembro à Presidência do Conselho:

Estabeleceu-se em princípio que, muito justamente e em compensação do direito concedido (compensação?) deveriam os cine-teatros de Lisboa, S. Luís, Éden, Politeama e Capitólio, contribuir cada um com a verba anual de 50 contos, e os do Porto, S. João, Águia de Ouro, Rivoli e Carlos Alberto com a de 40 contos.

E porque não 100 ou 200? Nenhum limite se opõe na proposta ao arbítrio do Secretariado. E para quê, afinal? Para se obter uma receita? Mas, se todas as empresas dos cine-teatros visados cumprirem, quer dizer, se todas derem noventa dias de teatro por ano, a receita, praticamente, anula-se. E que ganhará o teatro com essas explorações episódicas de três meses, sem. preparação, sem continuidade, levadas a efeito de sobreposse por empresários de cinema que improvisam, Deus sabe como, uma temporada teatral? Mais ainda: se os oito cine-teatros em causa resolvessem todos cumprir a obrigação que lhes é imposta, onde encontrariam eles artistas, dignos de tal nome, para essa verdadeira crise de fartura de palcos? Vejamos as outras alíneas. Quanto à alínea b), «contribuição cobrada pelo Comissariado do Desemprego das empresas que exploram espectáculos públicos e do pessoal ao seu serviço», a Inspecção dos Espectáculos, no seu citado ofício à Presidência do Conselho, computa-a, por palpite, em 150.000$, declarando, aliás, não possuir elementos exactos de informação. Quer dizer: coutou-se com determinadas receitas sem saber, ao certo, o seu montante. Felizmente, é mais do que se supunha. Esta Câmara requisitou do Comissariado do Desemprego nota das reversões respectivas aos últimos cinco anos, e recebeu já informações precisas quanto a 1947 (749.579$50), a 1948 (833.468$60) e a 1949 (726.492$90). No que concerne à alínea c), foi a Câmara informada de que as receitas, em selos fiscais, estabelecidas pelos Decretos-Leis n.ºs 34:560 e 35:165, de 11 de Maio e de 23 de Novembro de 1945, foram no ano de 1947 de 1:833.742$ e no ano de 1948 de 2:182.637$, tendo-se posto de parte, por deficientes, os elementos de 1946. Nestas verbas globais incluem-se licenças de funcionamento, vistis para espectáculos, taxas de censura e taxas respectivas à apresentação de projectos de construção. Daqui se conclui, pois, que, só as receitas descritas nas alíneas b) e c) realizam, cerca de 3:000.000$, o que nos permite dispensar a receita descrita na alínea a). A Câmara é de parecer de que a alínea a) deve ser suprimida e substituídas, na alínea e), as palavras: «nunca superiores às receitas cobradas», pelas palavras: «equivalentes às receitas cobradas». Conhecemos já as receitas: sabemos com que se pode coutar. Passemos agora à aplicação das disponibilidades do Fundo. Essas disponibilidades, nos termos do artigo 3.º da proposta, devem aplicar-se: d) a subsídios concedidos «a empresas que explorem espectáculos de teatro declamado e, excepcionalmente, comédia musicada e opereta»; b) a subsídios destinados a auxiliar estudos e investigações que visem ao estímulo e aperfeiçoamento da actividade do teatro português. Porquê só «excepcionalmente» operetas? A opereta não é um género menor. E, porquê, «declamado»? O teatro moderno não deve ser declamado, mas, ao contrário, esforçar-se por não o ser. Quanto à alínea b), esta Câmara é de parecer de que não devem distrair-se verbas para investigações e trabalhos didácticos, que mais pertencem aos institutos de qualquer das Faculdades de Letras e que não oferecem, para a solução dos problemas pendentes, nenhuma utilidade prática./Se houver disponibilidades no Fundo, devem de preferência aplicar-se à concessão de subsídios extraordinários (para digressões de companhias dramáticas, quer a (países estrangeiros (Brasil, Espanha, núcleos portugueses nos Estados Unidos da América), quer ao Império Colonial Português. O teatro - não devemos esquecê-lo - é poderoso instrumento de expansão das línguas e de fixação da sua norma ortoépica. Podem também destinar-se, como diremos adiante, pequenos subsídios a tentativas de «teatro de experiência». O Secretariado, porém, enquanto for o instrumento distribuidor, deve guardar-se de pulverizar as verbas, não se esquecendo de que os subsídios se destinam sobretudo à grande exploração teatral, de carácter estável, regular e permanente.

6. Organismos distribuidores dos subsídios. - A proposta de lei entrega o Fundo de teatro ao Secretariado da Informação, criando, para esse efeito, um conselho administrativo de três membros, presidido pelo secretário nacional (artigo 4.º). E, como organismo adjuvante, institui, para funcionar no Secretariado sob a presidência do mesmo funcionário, o Conselho Teatral (artigo 5.º), cujas funções, descritas na proposta, são: emitir parecer nos processos de concessão de subsídios (artigo 6.º); homologar a escolha dos originais portugueses inéditos que as empresas subsidiadas são obrigadas a fazer representar em cada ano (artigo 8.º); fixar, para cada cine-teatro, conforme entenda, o número de meses e a época do ano em que devem ser rea-

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lizados nos vários cinemas os espectáculos de teatro (artigo 10.º); fixar a contribuição a que, nos termos da proposta, ficam sujeitas as empresas dos cine-teatros já definitivamente autorizados a explorar apenas cinema, na alternativa de noventa dias de espectáculos teatrais por ano (§ 2.º do artigo 10.º). A atribuição dos subsídios não e feita pelo Conselho Teatral, mas pelo secretário nacional (artigo 6.º); e toda a fiscalização fica a cargo do Secretariado (artigo 9.º). Parece à Câmara, em primeiro lugar, que tão delicadas funções deviam caber, não ao Secretariado .da Informação, que tem outras missões a cumprir e cuja competência se define noutros sectores (imprensa, rádio, turismo), mas ao Ministério da Educação Nacional. Foi já essa a opinião da Câmara Corporativa quando, no seu parecer n.º 22 (IV legislatura), de 15 de Março de 1947, se ocupou da protecção ao cinema; com maior razão o deve ser agora tratando-se do teatro, que envolve problemas de outra natureza e que não parece admitir nem tratamento igual, nem soluções paralelas. Já acima o dissemos. «Mas -objectar-se-á- os subsídios correm pelo Secretariado, porque já por lá corria o serviço dos teatros e da respectiva Inspecção. É certo. Afigura-se à Câmara, porém, que seria preferível corrigir o erro cometido a trazê-lo à colação para justificar um erro novo. Perante as circunstâncias de urgência que se invocaram para o cinema, a Câmara Corporativa concordou em que a administração do respectivo Fundo ficasse a cargo do Secretariado até que, pela reorganização inevitável do Ministério da Educação, fosse criada uma direcção-geral privativa das belas-artes, em cujo amplo quadro coubessem os serviços e a orientação superior do cinema nacional. O mesmo motivo de urgência coage agora esta Câmara a não opor dúvidas a que o novo Fundo de teatro fique também no Secretariado da Informação; mas - como sucedeu para o cinema, e ainda por mais fartes razões- apenas a título provisório, enquanto se não arrumarem devidamente os serviços, tendo em vista a melhor sistematização das actividades e a mais perfeita definição da competência. Com o que a Câmara lamenta, não poder concordar é com a criação do Conselho Teatral, tal como a proposta o institui, funcionando no Secretariado da Informação sob a presidência do secretário nacional, com a constituição modesta, e as funções subalternas e comprometedoras que na proposta lhe são atribuídas. O Conselho Teatral, ou Conselho Dramático, tem tão brilhantes tradições nu história do teatro português e da educação artística nacional, que mão nos parece aconselhável ir buscá-lo «o museu das recordações do passado, a não ser para o restituir à dignidade da sua função superior. Há pouco mais de um século instituiu-o, sob a égide da rainha D. Maria II, o grande Garrett, seu primeiro presidente. Funcionava no Conservatório e eram-lhe afectos todos os problemas da arte, da literatura, da didáctica, e, até, da política, do teatro, porque os seus membros -notáveis autoridades literárias- eram os censores oficiais, Renovou-o depois, em 1902, o Governo Hintze Ribeiro, também .no quadro do Conservatório, com a presidência do Ministro do Reino e a vice-presidência do inspector daquele estabelecimento de ensino, então um dramaturgo de alto mérito: Eduardo Schwal-bach. O Conselho de agora - mercê da invencível tendência ,de depreciação e de nivelamento inferior que caracteriza infelizmente o nosso tempo - é bastante diferente. Mas não se trata apenas do prestígio de uma instituição a que estão ligados tão gloriosos nomes das nossas letras. O pior é o carácter unilateral e organicamente deficitário daquilo a que na proposta se chama «Conselho Teatral». Com efeito, como se compreende que um conselho teatral, instituído por uma lei do País, desconheça e exclua do âmbito da sua jurisdição, não
só o Conservatório Nacional, seminário de artistas profissionais, não só os Teatros de S. Carlos e de D. Maria II, este último considerado normal pela sua função de modelo estético e de paradigma prosódico, mas todos os problemas superiores de ordem educativa, de ordem literária, de ordem filológica, de ordem moral, de ordem política, inerentes a um organismo de orientação, de coordenação, de difusão da literatura e da língua, como deve ser em qualquer país, e como foi já entre nós, o Conselho Teatral? Esta Câmara é de parecer que o Conselho, instituído por Garrett, renovado por Hintze, inexplicavelmente suprimido em 1911 pelo Governo Provisório da República, deve a seu tempo ressurgir, porque lhe cabe importante função. Não, porém, desta forma, como instrumento do Secretariado da Informação, Cultura Popular e Turismo, mas no quadro do Ministério da Educação Nacional (a secção respectiva da Junta Nacional da Educação é, segundo parece, praticamente inoperante), quando for possível reunir, numa organização unitária, as peças que andam dispersas pelo puzzle doutros serviços, aliás dignos de toda o apreço. Enquanto, porém, isto não puder fazer-se, e o Fundo de teatro tiver de permanecer a cargo do Secretariado da Informação, bastará uma comissão ou conselho de gerência para o administrar, prover à distribuição dos subsídios mediante concurso e realizar todos os actos indispensáveis ao novo regime de funcionamento dos cine-teatros - cinemas de todo o ano e teatros nas horas vagas. Essa comissão administrativa pode ter constituição semelhante àquela que a proposta atribui ao Conselho Teatral, apenas com uma substituição e um aditamento: em vez de um escritor de teatro, ou crítico, nomeado em última análise pelo secretário nacional, um autor dramático, cuja designação será feita pela direcção da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses; em vez de um só representante da Junta Nacional da Educação, dois, nomeados pelo Ministro da Educação Nacional, um -pertencente a secção das belas-artes, outro na secção de educação moral e cívica. Isto quanto ao organismo ou organismos distribuidores dos subsídios. Vejamos agora as condições em que, nos termos da proposta, se faz a distribuição. O concurso é aberto, anualmente, até 31 de Maio, perante o Secretariado da Informação. Quanto à documentação com a qual os candidatos devem instruir o seu requerimento, suscitam-se algumas dúvidas a esta Câmara, mormente no que respeita às alíneas d) e e) do artigo 7.º, ao corpo do artigo 8.º e ao artigo 9.º É de recear, quanto à alínea e), que o candidato, ao apresentar-se em Maio ao concurso, não possa ter ainda organizado o elenco com que há-de começar a trabalhar em Setembro ou Outubro. No que respeita ao «ensaiador responsável pela encenação», deve advertir-se que «ensaiador» é uma coisa e «encenador» outra. Encenar uma obra é diferente de ensaiá-la, embora as duas funções possam ser desempenhadas pelo mesmo indivíduo. Diz o artigo 9.º que o Secretariado da Informação «fiscalizará» as explorações para garantir o exacto cumprimento das obrigações assumidas. Entende esta Câmara que à empresa subsidiada, deve ser assegurada a máxima liberdade dentro da máxima responsabilidade. Não se pode dirigir uma exploração de teatro, sempre difícil, sob a vigilância incómoda dos cem olhos de Argus, tanto mais impertinente e mais indesejável quanto mais zelosamente for exercida. O subsídio - dissemo-lo já neste parecer-deve ser ampla, e generosamente concedido, sem preocupações mesquinhas de fiscalização diuturna, a quem possua, idoneidade, afirme competência e apresente, no acto do concurso, um plano de realizações sério, prático e elevado. No fim da época de exploração - assim o entendemos - a empresa subsidiada

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deve apresentar o >seu relatório. Se cumpriu, poderá renovar-se o subsídio; se não cumpriu, não voltará a receber, para efeitos de teatro, qualquer auxílio do Estado. O disposto no corpo do artigo 8.º, em «correlação com a alínea d) «do artigo 7.º, não parece aceitável. O Conselho Teatral (praticamente, o Secretariado) «exigirá» - diz-se no artigo 8.º- que as empresas subsidiadas representem, em cada época, um mínimo de a dois originais portugueses inéditos, cuja escolha deverá ser homologada pelo mesmo Conselho». Homologada, para quê? E se a época subsidiada for de três meses (§ 1.º do referido artigo), haverá a mesma obrigação de dois originais inéditos? E se a empresa levar à cena dois originais em um acto, cumpriu? Tudo isto é impreciso e imperfeito. Mas o que no artigo 8.º importa não são os pormenores; é a exigência em si. Pretender que a empresa represente, numa época subsidiada de oito meses, dois originais portugueses, parece-nos pouco; exigir que os represente inéditos parece-nos demais. Manuscritos de peças novas, haverá sem dúvida muitos à disposição do empresário; manuscritos de peças boas, que convenha fazer representar, não surgem, infelizmente, todos os dias. A exigência - insistimos na palavra -, tal como a proposta de lei a apresenta, pode levar o empresário a representar «quaisquer peças», as primeiras que lhe apareçam, «seja o que for», para cumprir «seja como for» a obrigação assumida. Duas peças más bastam, às vezes, para estragar irremediavelmente uma época, não tanto pelo prejuízo material, mas pelo prejuízo moral que causam desviando do teatro a corrente do público. Com semelhante encargo, não vale talvez a pena receber o subsídio. Perde-se por um lado o que se recebe por outro. A experiência do Teatro Nacional, no que respeita à escolha, de peças pelo júri, dá-nos bem a medida do que representa, para a vida administrativa de um teatro, a «dramaturgia dirigida», quer dizer o «repertório imposto». Mas -perguntar-se-á- a empresa subsidiada não deve levar, à cena peças originais portuguesas? Deve, evidentemente; e mais ainda do que a proposta exige. Mas não com o compromisso de inéditas, porque pode não as haver em condições. Desde que as haja, a empresa, tendo de representar originais, será a primeira a preferir o inédito ao já conhecido, mesmo que o Estado lho não recomende. Onde está o empresário que recuse uma peça original boa? O Fundo de teatro não pode ser uma obra de assistência ao mau teatro, mas uma possibilidade de realização do teatro bom. Esta Câmara entende e sugere que não seja adjudicado qualquer subsídio pelo referido Fundo, nos termos da presente proposta de lei, sem que a empresa beneficiária se comprometa expressamente a fazer representar, em cada época, pelo menos 50 por cento de peças originais portuguesas em três ou mais actos. Novas? Tanto melhor. Mas, se forem reposições (veja-se o que se está fazendo em França, não apenas pelos teatros do Estado, mas pelas empresas privadas!) não será menor o serviço que a empresa subsidiada presta, contribuindo para que se mantenha vivo e de pé o repertório dramático nacional. Se porventura o empresário candidato se comprometer a levar à cena durante a época só peças portuguesas, deverá, em igualdade de condições, ser-lhe concedida sempre a preferência. Não é Legítimo distinguir, na protecção ao teatro português, o novo e o velho. Tem de se proteger tudo, desde que seja bom teatro português. Quanto, mesmo, às aspirações modernistas, entende a Câmara que convém dar-lhes quanto possível satisfação, subsidiando-se pequenos teatros de experiência (enquanto não puderem ser grandes) em que se façam tentativas de renovação de técnica, de processo e de espírito - porque renovar e tão necessário e tão respeitável como conservar. O Estado não pode nem deve tomar partido em arte, como em teatro, como em literatura. O teatro, como o concebeu Tairoff, sem humanidade; como o concebeu Gordon Craig, sem actores; como o concebeu Bragáglia, sem palavras - pode, à primeira vista, parecer insensato. Mas, das suas aspirações - como das concepções do teatro sintético de Pitoeff, de Gaston Baty, de tantos outros - alguma coisa ficou: o culto, no teatro, da arte pura, da poesia pura, da acção pura, do drama concentrado, profundo e humano, ao qual bastam, para que seja teatro e do melhor - um clarão de talento e um pano de veludo.

7. A crise dos palcos. -Passemos ao exame da parte mais delicada da proposta de lei em estudo, que é aquela em que se contêm as medidas julgadas necessárias para que se restituam ao teatro português os palcos de que o cinema o desapossou. Evidentemente, ainda há teatros que funcionam como teatros. Os melhores, porém, foram, por menos previdência das autoridades respectivas, deixados ocupar pelo cinema, ou «definitivamente e sem limitações», criando-se uma situação jurídica que suscita agora dificuldades, ou mediante autorizações condicionadas, quer dizer, obrigando-se os proprietários ou empresários a dar durante alguns meses espectáculos teatrais. Há em Lisboa - dissemos - definitivamente autorizados a funcionar apenas como cinemas, o S. Luís, o Éden, o Politeama e o Capitólio; e, em regime de autorização condicionada, o Trindade e o Ginásio. Este último, por exemplo, foi, por despacho ministerial de 25 de Agosto de 1943, autorizado a dar oito meses cinema e quatro teatro. Como alegasse que perdia nos quatro meses de exploração teatral o que ganhava nos oito de cinema, o Ministro da Educação, por despacho de 18 de Junho de 1945, reduziu os quatro meses a dois, daí a um ano elevados de novo a quatro pelo Secretariado da Informação. Segundo se infere da representação da Mundial Filmes, L.da, a esta Câmara, o prejuízo suportado pela empresa durante o tempo em que funcionou como teatro, de 1944 a 1949, eleva-se a 1:573.211$. Admira, realmente, que tivesse perdido tão-pouco. Com efeito, é preciso nada saber de teatro, para não se reconhecer à primeira vista que uma exploração teatral de dois meses apenas, encravada (encravada, é o termo) numa extensa época de cinema, decorrendo em geral nos meses do Verão, sem estabilidade, sem continuidade, sem preparação, sem plano, sem bons artistas (não há quem aceite contratos efémeros sem se fazer pagar caro), sem boas peças (quem as escreverá para tão reduzido tempo de exploração?), está de antemão votada, pelo menos do ponto de vista administrativo, a um insucesso total. Eis a situação dos chie-
-teatros de Lisboa. No Porto também os há (S. João, Águia de Ouro, Rivoli, Carlos Alberto) autorizados, definitiva e ilimitadamente, a explorar cinema. E no resto do País existem igualmente cinemas com palco, que a Câmara não sabe, nem tem tempo para averiguar, em que regime vivem. Com estes esclarecimentos é já possível compreender a matéria, ininteligível à primeira vista, do artigo 10.º e seus parágrafos. Temos, pois, segundo parece: teatros que se converteram definitivamente em cinemas, alguns dos quais (como o S. Luís, de Lisboa) desmontaram já os seus palcos cénicos; teatros que, em virtude de uma autorização condicionada, funcionam quase todo o ano como cinemas (casos do Ginásio e do Trindade); cine-teatros (cinemas que dispõem de palcos e nos quais podem exibir-se companhias dramáticas); e cinemas, tout court. Esta classificação - esta ou outra - parece-nos que deveria ter sido feita, a seu tempo, pela Inspecção dos Espectáculos. Os cine-teatros, na verdade teatros-cinemas, classificados na primeira categoria (tipo S. Luís), adquiriram direitos porque se encontram na posse de autorizações do Go-

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verno, a definitivas e sem limitações»; por mais que as novas tendências reconheçam a função social do direito e de certo modo distingam entre os contratos com o Estado e as obrigações contraídas entre particulares, a Câmara entende que os direitos adquiridos pelas empresas destes cine-teatros devem ser respeitados, não parecendo legítimo que se lhes imponham contribuições ou apliquem sanções, por não cumprimento de obrigações de que estão definitivamente dispensadas. A situação dós teatros de Lisboa que se encontram no uso de autorizações condicionadas é diferente. Não há direitos adquiridos quando as concessões são feitas a título precário. Esta Câmara ponderou devidamente o assunto e é de parecer de que estes dois teatros-cinemas devem regressar à sua função de teatros, o que não quer dizer que não possam ser autorizados, na época de Yerão, a funcionar como cinemas (§ 3.º do artigo 10.º). O Ginásio e o Trindade constituem a chave do problema que a presente proposta de lei pretende resolver. Duas companhias dramáticas subsidiadas, funcionando nestes teatros durante oito meses (Outubro a Junho), bastam para que a situação criada pela crise de palcos se atenue consideràvelmente. O artigo 10.º refere-se de maneira geral aos cinemas que têm palcos, os que já existem e os que vierem a existir, sem distinguir entre cine-teatros de Lisboa e Porto e cine-teatros da província; e entrega o seu destino ao arbítrio do Conselho Teatral (leia-se do Secretariado Nacional), que determinará, não só o número de meses, mas a época do ano em que cada um deles pode funcionar como cinema ou deve funcionar como teatro. Em primeiro lugar, esta Câmara entende que o preceituado no corpo deste artigo deve limitar-se aos teatros de Lisboa e Porto, porque os cine-teatros da província não só não têm facilidade em obter companhias dramáticas (só quando eventualmente utilizem grupos itinerantes em trânsito), mas não possuem público que lhes assegure uma exploração contínua e regular de teatro, muito mais caro do que o cinema. Em segundo lugar, não parece legítimo que uma empresa, qualquer que ela seja, pagando as suas licenças e encontrando-se em dia com os seus compromissos, fique a cada momento dependente, para a marcha e orientação da sua exploração, das intromissões e do arbítrio de uma entidade que não partilha com ela a responsabilidade jurídica e económica da exploração. Desde que a Câmara sugeriu a eliminação da alínea à) do artigo 2.º, deve, naturalmente, desaparecer também o § 2.º do artigo 10.º, que cria a receita suprimida. No artigo 11.º -que impõe a multa de 3 por cento da receita bruta por cada dia em que a empresa tiver fechado um cine-teatro além do tempo autorizado de dois meses- haverá que ressalvar os casos de obras ou de força maior, cuja legitimidade a Inspecção dos Espectáculos julgará. Quanto ao artigo 12.º, parece-nos que a Inspecção só deverá intervir como árbitro quando ambas as partes o solicitarem. Convém, outrossim, defender a exploração teatral subsidiada do ónus que para ela pode resultar da intervenção abusiva de intermediários. Finalmente, no que respeita ao disposto AO § 2.º do mesmo artigo, não se vê bem como os panos de anúncios, os mostruários, os bufetes, os bengaleiros ou os lavabos dos teatros poderão contribuir para o desenvolvimento da arte e da literatura dramática nacional.
Parece-nos que falta um artigo nesta proposta de lei. É o seguinte:

Artigo 14.º No prazo máximo de noventa dias, a contar da data da promulgação desta lei, será publicado o respectivo regulamento.

A Lei n.º 2:027, de protecção ao cinema, concluía por artigo semelhante, que fixou, para o efeito, igual prazo de noventa dias. O regulamento, porém, só foi publicado decorridos catorze meses. Conviria, dada a urgência das medidas propostas, que não demorasse tanto a elaboração do regulamento da presente lei.

III Conclusões

Na generalidade, a Câmara Corporativa concorda com a proposta de lei n.º 503. Sem prejuízo, porém, do princípio que enunciou já no seu parecer n.º 22 (IV Legislatura) sobre a proposta de lei n.º 119, e que mantém, de que não devem continuar dispersos por diferentes secretarias de Estado os elementos do mesmo serviço público. Só a visão de conjunto de um problema pode conduzir a soluções práticas e eficazes. A Câmara faz votos para que, logo que seja possível, se reunam no Ministério da Educação Nacional, onde parte deles já estão, os serviços de teatro que se encontram a cargo do Secretariado Nacional da Informação, incluindo a. administração do Fundo de teatro criado pela presente proposta, se ela vier a converter-se em lei. O lugar próprio desses serviços é, por definição de competência, a Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes.
Na especialidade, e pelas razões que no relatório se aduzem, a Câmara opõe dúvidas e suscita alterações no texto da proposta, que são, em resumo, as seguintes:
1.º Dar outra redacção ao artigo 1.º, de harmonia com a verdadeira função do Fundo (não do teatro, mas de teatro): melhorar as condições de vida do teatro português, assegurando a continuidade das explorações teatrais, a estabilidade dos conjuntos artísticos, a maior utilização e prestígio do repertório dramático nacional, tornando mais acessíveis ao público, pela baixa dos preços de locação, os espectáculos de teatro qualificado (melhor maneira de lutar contra a concorrência do cinema) e promovendo, sempre ,que seja possível, a difusão do teatro português, instrumento de cultura e padrão da língua.
2.º Eliminar a alínea a} do artigo 2.º, pelas razões expostas no relatório e repetidas em resumo adiante, a propósito do § 2.º do artigo 10.º, cuja eliminação se sugere também. As receitas descritas nas alíneas b) e c) daquele artigo, realizando quase 3:000.000$ anuais, bastam, enquanto não se criam outras, para ocorrer às necessidades mais urgentes determinadas pela situação actual do teatro português. Aliás, se todas as empresas visadas no § 2.º do artigo 10.º cumprissem, a receita da alínea a) do artigo 2.º deixaria de existir.
3.º Substituir, na alínea c) do mesmo artigo 2.º, a nunca superiores» por «equivalentes».
4.º Eliminar a alínea b) do artigo 3.º, porque a aplicação das verbas à remuneração de trabalhos de investigação e de estudos didácticos desvia o Fundo de teatro da sua verdadeira função. Aditar a este mesmo artigo dois novos parágrafos. O Fundo deve concentrar a maior parte dos seus recursos na obra de auxílio às explorações teatrais de carácter permanente e de espécie superior. Sempre, porém, que haja disponibilidades, elas poderão aplicar-se:
a) Ao subsídio de pequenas companhias de «teatro de experiência», organizadas para dar satisfação às modernas correntes de renovação estética;
b) Ao subsídio eventual de organizações de teatro itinerante, com o fim de difundir, no País e fora dele, a literatura dramática nacional.
5.º Só a título provisório, como foi dito acima acerca da generalidade da proposta, esta Câmara pode concordar em que se entregue a administração do Fundo de teatro ao Secretariado Nacional da Informação, cuja

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competência se define noutros sectores de actividade (imprensa, rádio, turismo). Na nova redacção do artigo 4.º deve ficar expresso o carácter precário da função que, por este diploma e por motivo de urgência, é atribuída ao Secretariado.
6.º Nem mesmo a título provisório a Câmara pode concordar com a criação ou renovação do conselho teatral, tal como o artigo 5.º o institui, no quadro do Secretariado da Informação e com atribuições coercivas e policiais que repugnam à sua tradição brilhante, abrangendo apenas um sector das actividades do teatro e excluindo do seu âmbito e jurisdição os teatros do Estado, o Conservatório Nacional e todo o conjunto de problemas de ordem literária, artística, filológica, pedagógica, moral, social e internacional que o teatro suscita. Basta, para administrar o Fundo e prover às respectivas operações e encargos, um simples conselho administrativo.
7.º A constituição desse conselho poderá ser a mesma que o artigo 5.º propõe, com ligeiras alterações: em vez de um só representante da Junta Nacional da Educação (alínea b), dois, nomeados pelo Ministro da Educação Nacional, respectivamente de entre os vogais das secções de belas-artes e de educação moral e cívica; em vez de um escritor de teatro, ou crítico, nomeado em última análise pelo secretário nacional (alínea e), um autor dramático de reconhecido mérito escolhido pelo Governo de uma lista de três nomes apresentada pelo conselho director da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses.
8.º Eliminar o § 1.º do mesmo artigo 5.º O § 2.º passa a § único.
9.º Substituir, na alínea d) do artigo 7.º, «tanto em estreia como em reposição», por «em harmonia com o disposto no artigo 8.º», cuja substituição, aliás, se propõe adiante. Alterar no seguinte sentido a redacção da alínea c): a relação do elenco artístico, incluindo o director da companhia e o ensaiador, quando estas funções não forem exercidas pelo mesmo indivíduo».
10.º Na opinião desta Câmara, as empresas que se constituírem candidatos à concessão de subsídios pelo Fundo de teatro devem assumir o compromisso de fazer representar em cada época um repertório de pelo menos, 50 por cento de peças originais portuguesas em três ou mais actos, inéditas ou em reposição, entendendo-se que, em igualdade de condições de idoneidade e capacidade artística, e exceptuada a hipótese prevista no § 1.º do novo artigo 9.º, terá a preferência o candidato cujo plano de exploração compreender maior número de peças originais portuguesas.
11.º Substituir o texto do artigo 9.º por outro em que se preceitue que a empresa subsidiada apresentará ao conselho administrativo do Fundo, no fim de cada época teatral, um relatório circunstanciado acerca da maneira por que decorreram os respectivos trabalhos. Aditar três novos parágrafos, determinando:
a) Que nenhuma empresa subsidiada poderá ser admitida a novo concurso se não tiver cumprido as obrigações que assumiu no exercício antecedente ou justificado cabalmente o seu não cumprimento;
b) Que, a fim de assegurar quanto possível a continuidade da exploração, terá sempre a preferência, em igualdade de condições, no concurso aberto para cada época teatral, a empresa beneficiária do Fundo que na época anterior haja realizado a sua exploração com dignidade, geral agrado e vantagem para a arte e para a literatura dramática nacional;
c) Que, nos casos de insolvência, de carência artística, de incapacidade administrativa evidente ou de manifesto escândalo público, poderá o conselho administrativo do Fundo, em qualquer tempo, chamar à responsabilidade as respectivas empresas.
12.º O § 2.º do artigo 10.º deste diploma estabelece a obrigação de que resulta a receita descrita na alínea a) do artigo 2.º, cuja eliminação foi sugerida acima. Esta Câmara entende que os teatros de Lisboa e Porto já autorizados, «a título definitivo e sem limitações», a funcionar apenas como cinemas, não podem, sem preterição de direitos adquiridos, ficar sujeitos ao pagamento de novas contribuições, com carácter de multa, por não funcionarem também como teatros. Deve manter-se o § 1.º, que consigna a excepção ao preceituado no corpo do artigo; mas eliminar-se o § 2.º, que aplica à sanção. Igualmente se deve manter a doutrina do § 3.º, porque os dois teatros de Lisboa a que ele se refere (Trindade e Ginásio), funcionando como cinemas no uso de uma simples autorização condicionada, quer dizer, de uma concessão precária que a todo o tempo pode ser-lhes retirada, se encontram em situação diferente daqueles a que se refere o § 1.º Regressam, pois, à função de teatros, porque assim o exige a economia geral do teatro português, devendo realizar regularmente espectáculos teatrais pelo menos durante os oito meses da época de inverno, e podendo ser autorizados, durante os meses do Verão, a explorar cinema. Quanto às obrigações impostas, no corpo do artigo 10.º, «aos proprietários de casas de espectáculos com palco, ou às entidades para as quais transfiram os seus direitos e encargos», entende a Câmara que delas devem, de maneira geral, ser exceptuados os cine-teatros da província, quer dizer, todos menos os de Lisboa e Porto, a não ser quando, nos termos da nova alínea b) do artigo 3.º e na medida da capacidade de interesse das populações, se organizarem companhias itinerantes patrocinadas pelo Secretariado Nacional da Informação ou subsidiadas eventualmente pelo Fundo de teatro. Deve acrescentar-se, neste sentido, um novo parágrafo ao artigo 10.º
13.º Convém ressalvar, no texto do artigo ]1.º, os casos de força maior, cuja legitimidade a Inspecção dos Espectáculos julgará.
14.º Não é de aceitar que se obriguem os proprietários a ceder os seus teatros às empresas exploradoras pelos preços e nas condições que a Inspecção dos Espectáculos muito bem entenda. A Inspecção só arbitrará quando ambas as partes, proprietário e arrendatário, o solicitarem. Deve, porém, intervir de autoridade sempre que »o verifiquem abusos de intermediários, porque não foi, evidentemente, para lucro e benefício destas entidades que o Governo resolveu subsidiar o teatro português. Dar nova redacção ao artigo 12.º e eliminar o § 2.º pelos motivos já expostos.
15.º Incluir, como ficou dito no relatório, in fine, um novo artigo, que será o 14.º, mandando organizar, no prazo de noventa dias, o regulamento desta lei.

Nova redacção da proposta de lei

Artigo 1.º É criado o Fundo de teatro, destinado a melhorar as condições de vida do teatro português, assegurando o seu funcionamento regular, a sua maior acessibilidade ao público, a estabilidade dos seus elementos artísticos, a continuidade, difusão e prestígio do espectáculo nacional de teatro, instrumento de cultura e padrão da língua.
Art. 2.º Constituem receitas do Fundo de teatro:
a) A contribuição cobrada, pelo Fundo de Desemprego, das empresas que exploram espectáculos públicos e do respectivo pessoal;
b) As dotações especiais consignadas no orçamento do Estado equivalentes às importâncias cobradas por vistos e licenças que a Inspecção dos Espectáculos e suas delegações concedam;

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2 DE MARÇO DE 1950 345

c) Os subsídios de outras proveniências;
d) Os donativos e legados;
e) O produto das multas aplicadas por infracção das disposições do presente diploma;
f) Os juros dos fundos capitalizados.
§ único. A arrecadação das receitas do Fundo de teatro será feita mediante guias passadas pela Inspecção dos Espectáculos, para as verbas a que se referem as alíneas b) a e) deste artigo.
Art. 3.º As disponibilidades do Fundo de teatro serão aplicadas à concessão de subsídios:
a) A empresas singulares ou colectivas que explorem, com carácter de permanência e regularidade, espectáculos de drama, comédia ou opereta;
b) Excepcionalmente, a companhias itinerantes, devidamente organizarias, que se proponham difundir no País e fora dele a literatura dramática nacional;
c) Quando as circunstâncias o permitam, a pequenas companhias de teatro experimental destinadas a dar satisfação às modernas correntes de renovação estética.
Art. 4.º Até que a Inspecção dos Espectáculos e respectivos serviços possam reorganizar-se no quadro do Ministério da Educação Nacional, a administração do Fundo de teatro ficará provisoriamente a cargo do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, que arrecadará as respectivas receitas e proverá à sua administração e aplicação.
Art. 5.º É criado, para esse efeito, um conselho administrativo, que funcionará no Secretariado Nacional da Informação, e que será constituído:
a) Pelo secretário nacional da Informação, que presidirá;
b) Pelo inspector dos Espectáculos;
c) Por dois representantes da Junta Nacional da Educação, designados pelo Ministro da Educação Nacional, respectivamente, de entre os vogais das secções de belas-artes e de educação moral e cívica;
d) Por um representante do Grémio Nacional das Empresas Teatrais;
e) Por um representante cio Sindicato Nacional dos Artistas Teatrais;
f) Por um autor dramático, escolhido pelo Governo de uma lista tríplice apresentada pela Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses;
g) Pelo chefe da 3.ª secção da 3.ª Repartição (etnografia, teatro e música) do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, que exercerá as funções de secretário.
§ único. Por cada sessão para que forem convocados terão direito a uma senha de presença de 100$ os vogais do conselho a que se referem as alíneas c), d), e) e f).
Art. 6.º A concessão dos subsídios a que alude a alínea a) do artigo 3.º depende de concurso aberto em cada ano, até 31 de Maio, pelo prazo de trinta dias, perante o Secretariado Nacional da Informação, que os atribuirá mediante parecer do conselho administrativo.
§ único. A concessão dos subsídios eventuais descritos nas alíneas b) e c) dependerá da iniciativa do conselho, quando para isso haja disponibilidades e nunca com prejuízo dos subsídios da alínea a), destinados a explorações teatrais de carácter estável, regular e permanente.
Art. 7.º As entidades que se constituírem candidatos aos subsídios a que se refere a alínea a) do artigo 5.º deverão instruir os seus requerimentos com a seguinte documentação:
a) Escritura, pública de constituição de sociedade, sempre que se trate de uma empresa colectiva;
b) Título de propriedade da casa de espectáculos em que pretenda fazer a exploração, ou documento do qual constem as condições em que essa casa se encontra à sua disposição;
c) Repertório e plano geral dos espectáculos da época;
d) Declaração expressa das obrigações assumidas quanto à representação de originais portugueses, em harmonia com o disposto no artigo 8.º deste diploma;
e) Relação do elenco artístico, incluindo o director da companhia e o ensaiador, quando estas funções não forem exercidas pelo mesmo indivíduo;
f) Certificado, passado pela Inspecção dos Espectáculos, comprovativo, para as empresas já inscritas, de terem liquidado todos os compromissos resultantes de explorações anteriores e, para as novas empresas, de serem consideradas idóneas, de acordo com o preceito do artigo 92.º do Decreto n.º 13:564, de 6 de Maio de 1927;
g) Documento demonstrativo de se encontrarem inscritas no Grémio Nacional das Empresas Teatrais e de haverem integralmente satisfeito as obrigações emergentes dessa inscrição.
Art. 8.º As empresas que se apresentarem a concurso para a concessão de subsídios pelo Fundo de teatro deverão assumir o compromisso de fazer representar, em cada época, pelo menos 50 por cento de obras dramáticas portuguesas em três ou mais actos, inéditas ou em reposição, entendendo-se que, em igualdade de condições de idoneidade e de capacidade artística, e exceptuada a hipótese prevista no § 1.º do artigo 9.º, terá a preferência o candidato cujo plano de exploração compreender maior número de peças originais portuguesas.
Art. 9.º No fim de cada época teatral a empresa subsidiada apresentará ao conselho administrativo do Fundo um relatório circunstanciado acerca da maneira por que decorreram os respectivos trabalhos.
§ 1.º Nenhuma empresa subsidiada poderá ser admitida a novo concurso se não tiver cumprido as obrigações que assumiu na época antecedente ou justificado de maneira cabal o seu não cumprimento.
§ 2.º A fim de assegurar quanto possível a continuidade da exploração, terá sempre a preferência no concurso aberto para cada época teatral a empresa beneficiária do Fundo que na época anterior haja realizado os seus trabalhos com dignidade, agrado público e manifesta vantagem para a arte e para a literatura dramática nacional.
§ 3.º Nos casos de insolvência, de carência artística, de incapacidade administrativa evidente ou de manifesto escândalo público, poderá o conselho administrativo do Fundo, em qualquer tempo, chamar à responsabilidade as respectivas empresas.
Art. 10.º Todos os proprietários de casas de espectáculos com palco existentes em Lisboa e no Porto são obrigados, por si ou por intermédio das entidades para as quais transfiram os seus direitos e encargos, a assegurar a exploração regular de teatro em cada ano, na época e pelo número mínimo de espectáculos que pelo conselho administrativo do Fundo for determinado, em . harmonia com as circunstâncias de cada uma e no limite das suas possibilidades.
§ 1.º Exceptuam-se do disposto no corpo deste artigo os cine-teatros aos quais haja sido concedida, a título definitivo e sem limitações, autorização para a exploração de espectáculos de cinema.
§ 2.º Os cine-teatros de Lisboa e Porto, que se encontram apenas no uso precário de autorizações condicionadas para a realização de espectáculos de cinema, são obrigados a um período de exploração teatral não inferior a duzentos e quarenta dias em cada época de Inverno.
§ 3.º Os restantes cine-teatros do Pais só podem ser obrigados a realizar espectáculos de teatro, na medida da capacidade de interesse das populações, quando, nos termos da alínea b) do artigo 3.º, se organizarem companhias itinerantes patrocinadas pelo Secretariado Na-

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cional da Informação ou subsidiadas pelo Fundo de teatro.
Art. 11.º As empresas de Lisboa e Porto que conservem os seus teatros encerrados durante o ano por período superior a sessenta dias, salvo caso de imposição da Inspecção dos Espectáculos ou motivo de força maior devidamente justificado, ficam sujeitas, por cada dia além daquele período, ao pagamento para o Fundo de teatro da multa que lhes for aplicada pela mesma Inspecção e correspondente a 3 por cento da receita bruta da venda de bilhetes aos preços normais.
Art. 12.º Os contratos de exploração teatral deverão ser submetidos à aprovação da Inspecção dos Espectáculos, que intervirá no caso de divergência entre o proprietário e a empresa arrendatária, se ambas as partes solicitarem a sua arbitragem, ou de autoridade própria quando se verifiquem abusos de intermediários.
§ único. Não são de admitir contratos de exploração em que ha j u bilhetes cativos vendáveis a favor do proprietário ou arrendatário, ou mais do que um camarote, frisa ou cinco lugares de plateia para sua utilização gratuita.
Art. 13.º Todas as receitas do Fundo de teatro serão escrituradas em receita orçamental e consignadas à realização das despesas previstas neste diploma.
Art. 14.º No prazo máximo de noventa dias, a contar da data da publicação desta lei, será publicado o respectivo regulamento.

Palácio de S. Bento, 1 de Fevereiro de 1950.

José Gabriel Pinto Coelho, assessor.
Alberto Lopes Rodrigues.
Alberto Pena Monteiro.
Reinaldo dos Santos.
Samuel Dinis.
Porfírio Pardal Monteiro.
Aurélio Augusto de Almeida.
António Avelino Gonçalves.
Maria Joana Mendes Leal.
Ezequiel de Campos.
Rui Enes Ulrich.
Júlio Dantas, relator.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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