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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 33

ANO DE 1950 18 DE MARÇO

V LEGISLATURA

SESSÃO N.º 33 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 17 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro

SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou alerta a sessão às 15 horas e 55 minutos.

Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.

Ordem do dia. - Prosseguiu e terminou a discussão do aviso prévio do Sr. Deputado Sousa da Câmara acerca da maneira como tem sido considerada a investigação cientifica em Portugal. Usaram da palavra os Srs. Deputados Sarmento Rodrigues, Délio Santos, Mendes Correia, André Navarro, Sousa Rosal, Cortês Pinto e Sousa da Câmara, que apresentou uma moção, a qual foi aprovada por unanimidade.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 20 horas.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 40 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Joaquim Simões Crespo.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António Sobral Mendes de Magalhães Ramalho.
António de Sousa da Câmara.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Avelino de Sousa Campos.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Délio Nobre Santos.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gastão Carlos de Deus Figueira.

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Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Cardoso de Matos.
José Dias de Araújo Correia.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José .Maria Braga da Cruz.
José Soares da Fonseca.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Colares Pereira.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Maria Vaz.
Manuel de Sousa Meneses.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortas.
Vasco Lopes Alves.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 79 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 15 horas e 55 minutos.

Antes da ordem do dia

Expediente

Telegramas

Vários de apoio às considerações do Sr. Deputado Melo Machado acerca da carteira profissional dos empregados de escritório.
Outros em desacordo com as mesmas considerações daquele Sr. Deputado.
Exposição
«Sr. Presidente da Assembleia Nacional - Excelência. - Está em plena execução a Lei n.º 2:030, que tão profundamente alterou o regime ido inquilinato, e com ela uma das suas mais importantes disposições: a que determina a avaliação dos estabelecimentos comerciais para fixação de novas rendas, em normas que o Decreto n.º 87:021 veio depois regulamentar.
Em boa verdade se pode dizer que os efeitos dessa disposição já produziram profundo abalo, quer no meio comercial, quer mesmo no meio político e social, abalo devido não só à inovação do sistema, como, e muito principalmente, pelas desigualdades e injustiças resultantes da dificuldade de se conseguir uma orientação generalizada para o funcionamento das comissões de avaliação, tanto mais que estas são apenas constituídas por representantes dos Ministérios das Finanças e da Justiça.
Esses avaliadores, sem embargo do seu bom desejo de acertar, poderão não ter iguais critérios e faculdades de apreciação, estando sujeitos, portanto, quer a erros na determinação ide valores a atribuir, quer a enganos nos cálculos ou no aproveitamento dos «diversos factores», na expressão vaga que tanto a lei como o decreto regulamentar empregam para indicar um dos elementos que a avaliação deve ter em conta.
Só a aplicação prática de uma medida legislativa pode fazer sentir verdadeiramente os inconvenientes que dela resultam, as falhas não previstas, bem como as suas consequências benéficas.
Assim, a entrada em vigor da Lei n.º 2:050 e sua subsequente aplicação deu motivo à verificação de graves inconvenientes no tocante ao capítulo «avaliações», que mão haviam sido conjecturados, nem as injustiças que originaria.
Àqueles que não tiveram oportunidade de ouvir um amigo, um parente ou um conhecido contar o seu caso bastará que tenham conhecimento de alguns casos colhidos adrede paru sentirem a razão das inúmeras queixas formuladas contra o sistema.
Avaliação se chama ao processo de fixação de novas rendas para partes de prédios ocupadas por estabelecimentos comerciais.
Avaliações pré-orientadas e conducentes a inevitáveis erros por sugestão lhes chamaremos nós, uma vez que os avaliadores têm de actuar sobre valores previamente fornecidos pelas partes interessadas, cujos fundamentos de apreciação são antagónicos.
Esse antagonismo, portanto, nunca poderá produzir efeitos aproveitáveis, visto que a, sua indicação, na generalidade dos casos, obedecerá mais a critérios pessoais interessados e a reacções indesejáveis do que à intenção de fornecer elementos aproveitáveis.
Muitos são os senhorios que desejam tirar das suas propriedades o máximo rendimento e muitos são os inquilinos que, pelo contrário, pretendem pagar o menos possível.
Contudo, existem bastantes proprietários que se mostrara, comedidos nas suas pretensões, como numerosos são os inquilinos comerciais dispostos a chegar a um entendimento razoável.
Pelo que a lei determina, temos os avaliadores a apreciarem elementos de natureza tão díspar em relação ao valor a atribuir que se chega à conclusão da desnecessidade ou mesmo inconveniência da existência de tais elementos.
E pode mesmo acrescentar-se que a indicação dessas verbas, de um e outro lado, para pouco mais serve do que para embaraçar a boa apreciação e ajudar a desumir duas classes conservadores, ambas valiosos esteios da paz social e económica.
Consequentemente, julgam estas Uniões que tais elementos ide informação, em nada auxiliando o trabalho das avaliações que queiram fazer-se na verdadeira acepção da palavra, tornam-se, pelo contrário, absolutamente dispensáveis e perigosas, pois naturalmente tendem a encaminhar os resultados das avaliações para soluções injustas, sendo de desejar que desapareçam do quadro das formalidades a preencher para que as avaliações tenham lugar.
E de defender, portanto, e assim se sugere, que, não tendo o senhorio e o inquilino chegado a acordo sobre a renda, ao proprietário fique o direito ide requerer a avaliação com a indicação de todos os elementos informativos, excepto o da renda, e o inquilino o mesmo fará,

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elementos que a respectiva comissão ponderará, atribuindo o valor conforme os normas estabelecidas.
Surge agora um projecto de alteração à Lei n.º 2:030, versando precisamente o capítulo dias avaliações, e que, se outras virtudes não tivesse, tinha a de desassombradamente afirmar o que muitíssima gente pensa e sente e de (provocar a revisão de um ponto que indubitavelmente carece ser revisto.
Os diversos casos com que ilustramos esta exposição podem bem servir para justificar as razões que apresentamos em defesa do nosso ponto de vista, que tem o fundamento moral de apaziguador de paixões que não convém exacerbar.
Muitos de nós também somos senhorios e como tal sabemos, por própria experiência, a parte de razão que a propriedade tem pana ansiar por uma melhor compensação.
Simplesmente, aqueles de nós que também são proprietários não fazem disso profissão, empregando a sua actividade construtiva no comércio, e daí o sentirem em condições diferentes esse anseio, porventura em proporções de maior equilíbrio.
Ora, ao apreciarmos a finalidade que parece ter em vista o novo projecto de alteração, verificamos que, sob tal aspecto, a modalidade proposta não melhora a situação, antes a vem agravar, porquanto cria uma nova função para as comissões de avaliação, e que seria a de poderem apreciar e determinar o grau de possibilidades de qualquer ramo de comércio ou indústria.
Contestamos em absoluto essa faculdade, que só os técnicos de cada actividade, vencendo inúmeras e quase insuperáveis .dificuldades, poderiam usar com certa propriedade.
Além disso, aluída o projecto estabelece turno, nova variante - a de o senhorio poder ter direito à renda integral actualizada desde que notifique o inquilino, autorizando-o a utilizar ou fazer cessão do local para qualquer ramo de comércio ou indústria.
Isto quer dizer que para o senhorio não deixar de receber um máximo o inquilino comercial ou industrial teria de liquidar o seu negócio ou indústria, ou aventurar-se na exploração de qualquer outra actividade para ele desconhecida e sofrer os consequentes riscos.
Certamente o ilustre Deputado proponente não considerou estes aspectos do problema, ou então, como muitos outros, julga que a arte de comprar e vender não tem ciência nem carece de conhecimentos especiais, que só uma longa, experiência permite adquirir, e que um indivíduo que passou a sua vida a negociar com solas e cabedais poderá facilmente obter êxito comercial se passar a transaccionar com sedas, bijutarias, máquinas ou antiguidades, etc.
Em nome das actividades comerciais que representamos, fazemos o mais veemente reparo a tal afirmação e solicitamos a essa Exma. Assembleia se digne considerar a falta de fundamento para tal asserção.
Porém, se a intenção do proponente foi encontrar de facto uma solução que permitisse um regime de renda mais favorável para uma ou outra actividade que na realidade não possa suportar mais este agravamento na proporção em que o seria pela aplicação rigorosa do princípio geral, e se essa ideia tiver ambiente, será preciso, nesse caso, eliminar no projecto a parte que se refere à faculdade de a renda integral poder ser exigível, circunstância que, nesse caso, ficaria ao alcance de todos os proprietários, fazendo assim diluir-se o aparente benefício consignado no n.º 1 do artigo 1.º do projecto.
A renda integral só devia passar a ser paga se o arrendatário concordasse, ficando nesse caso com a faculdade de utilizar o estabelecimento ou fazer a sua cessão para outro ramo de comércio ou indústria.
O regime da avaliação passou a ser o sistema de que depende a fixação das rendas que hão-de vigorar para estabelecimentos que não estão desocupados e cujo aluguer é consequência de um contraio oportunamente celebrado a contento das duas partes interessadas.
Se foi um contrato que, entre outras condições, fixou a renda a satisfazer pelo inquilino ao senhorio, e apenas cata condição se atendeu dever alterar, é porque os factores determinantes da sua fixação se alteraram.
Ora esses factores outros não podem ser do que um valor diferente da monda, parecendo que nada mais haveria a fazer do que procurar achar os diferentes coeficientes de desvalorização, tendo em atenção as datas dos arrendamentos ou, quando anteriores a 1928, as rondas que o Decreto n.º 15:289, de 30 de Março desse ano, fixou por valorização.
A utilização de outros elementos, como indicam a Lei n.º 2:030 e o Decreto n.º 37:021, tais como a área do prédio, o tipo de construção e a localização, significa o aproveitamento forçado de circunstâncias que fundamentalmente não podem contribuir para o fim em vista.
Que importância poderão ter para a alteração de renda de um estabelecimento factores como a área do prédio e o tipo de construção? O prédio deve ter a mesma, área e ser do mesmo tipo de construção que tinha quando se fez o arrendamento das lojas. E, se se modificou, não foi decerto para valorizar as lojas que já tinha.
Quanto à localização, julgamos que só deve ser de considerar a localização comercial, e este factor é consequência da acção desenvolvida pelo comércio local.
Logo, a utilização de tais factores como elementos de valorização das remiu s representa um critério de efeitos unilaterais, visto que, por outro lado, não entram em linha de conta, as importâncias que os inquilinos comerciais satisfizeram por traspasses, e em muitos casos até por indemnizações aos proprietários para a fixação de determinada renda, ou pelo consentimento de obras que fizeram nos estabelecimentos para os valorizar, e ainda o trabalho constante, e persistente para acreditar as suas lojas e criar-lhes clientela.
Raro é o estabelecimento comercial lojista de qualquer parte do País o-m que estas circunstâncias não tiveram lugar; e, contudo, não nos consta que tais factores tenham contribuído para aliviar o agravamento das rendas que uma grande parte das avaliações feitas tem determinado.
Não é nossa intenção verberar a actuação das comissões de avaliação, as quais, sem terem de limitar os seus pareceres, julgam como entendem, mas sempre sem terem em atenção o único elemento concreto que, em nossa opinião, devia ser utilizado: a renda em curso, determinada por um contrato voluntariamente celebrado pelas duas partes, ou a sua valorização em virtude de leis que taxativamente a determinaram.
Afirma-se, em defesa do aumento das rendas, que as condições económicas se alteraram, de modo que a sua importância não corresponde ao valor real do dinheiro que os proprietários recebem e de que dão quitação.
Mas este argumento apenas pode sor invocado em favor do nosso ponto de vista - a desvalorização da moeda em virtude da última guerra -, pois nada concorre para que a sua consistência venha a abranger outras condições, como seriam as da apreciação do valor das partes dos imóveis arrendados para a fixação de uma nova renda, como se se tivessem de estabelecer novos contratos.
Nunca podemos perder de vista que, salvo raríssimas excepções, sempre os arrendamentos de lojas dizem respeito apenas ao espaço dos prédios ocupados por essas lojas, isto é, as paredes inteiramente desguarnecidas e as aberturas das portas e das montras, e que tudo o que as torna utilizáveis e as embeleza, é consequência

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da aplicação da vontade e gosto dos inquilinos comerciais, que nisso têm investido, progressivamente, capitais importantes.
Devemos também recordar que nas grandes cidades do País os proprietários dos prédios nem sequer têm que despender quaisquer importâncias com as periódicas obras de limpeza e conservação das parcelas dos seus prédios ocupadas por esses estabelecimentos, as quais, segundo determinam os regulamentos camarários, competem aos respectivos inquilinos, que para tal são em tempo oportuno devidamente intimados.
Todos esses estabelecimentos estão arrendados, e estão-no nas condições que os proprietários dos prédios julgaram convenientes na oportunidade em que firmaram os respectivos contratos.
Apenas há, pois, a contar com o valor da moeda em que as respectivas rendas são pagas, e cuja desvalorização não pode recuar-se a uma data anterior à da última guerra, visto que até essa data esse valor não tinha sofrido alteração sensível, exceptuando-se a proveniente da guerra de 1914-1918, já corrigida pelos diplomas promulgados até 1928.
Poderá acrescentar-se que depois desta data, e até à última guerra, o valor da moeda, de um modo geral, se manteve, apenas se verificando desnível após ela, desnível cuja proporção o próprio Governo determinou à medida que foi actualizando os vencimentos do funcionalismo.
Essa percentagem atinge actualmente 80 por cento, e, embora com propriedade se possa afirmar que há um ou dois anos estaria um pouco abaixo da realidade, presentemente já o não está, em virtude das circunstâncias actuais, que têm feito baixar o índice dos preços, o que se verifica mais sensivelmente no que se refere à construção civil.
Solicitam, pois, as Uniões de Grémios de Lojistas signatárias que o limite das rendas dos estabelecimentos comerciais, como consequência das avaliações determinadas por virtude da aplicação da Lei n.º 2:030, não possa exceder o resultado da multiplicação da importância das rendas em vigor pelo coeficiente 1,80, o que, mesmo assim, ainda determinará pesado sacrifício para estas actividades, a que se têm imposto agravamentos sucessivos dos respectivos encargos, sem contrapartida de ganhos, que as circunstâncias actuais, e ainda as disposições legais, impedem que aumentem, e antes, em vários casos, forçam a restringir.
Na, sua qualidade de representantes do comércio lojista de Lisboa, Porto e Coimbra, e podendo convictamente afirmar que também assim pensa o restante comércio de todo o País, julgam estas Uniões que de tal sorte se encontraria, dentro de justos limites, uma solução conveniente em que os interesses legítimos das duas partes seriam devida e equilibradamente considerados.
As razões atrás expostas, como fundamentos essenciais dos reparos destas Uniões, tendem a demonstrar a inconsistência dos princípios estabelecidos para orientação das comissões de avaliação, cuja aplicação determinou já bastantes soluções que agravaram profunda e injustificadamente a economia dos respectivos inquilinos comerciais.
Para melhor elucidação e confirmação do que asseveramos, junta-se a esta exposição nota de alguns casos bem flagrantes de tal aplicação que chegaram ao nosso conhecimento, quer por via directa, quer por relatos de publicações interessadas no esclarecimento da questão, e em que se pode verificar que essa percentagem, em geral, é em muito excedida nas rendas atribuídas pelas avaliações.
Não são neste momento objecto de apreciação por parte dessa Exma. Assembleia dois outros pontos da Lei n.º 2:030, que, contuudo, também carecem de ser urgentemente revistos, porque a sua aplicação fere interesses cuja legitimidade é indiscutível e põe em perigo a vida das actividades comerciais, que são partícula valiosa e respeitável da Nação.
Porque assim o entendemos, ousamos fazer os respectivos reparos, esperançados em que o seu conhecimento por parte dos ilustres componentes dessa Assembleia permitirá a sua revisão, de modo a fazer desaparecer da lei disposições que brigam com princípios de justiça.
Trata-se da faculdade de despejo:

a) Nos termos da alínea c) do artigo 69.º;
b) Conforme os artigos 41.º, 42.º e 43.º da mesma lei.

1.º caso. - No capítulo VII da Lei n.º 2:030 determinam-se algumas condições em que os proprietários podem requerer o despejo, entre as quais a de se propor o senhorio ampliar ou substituir totalmente o prédio por forma a que possa resultar aumento do número de inquilinos, e se, por vistoria camarária, se verificar impossibilidade de executar as obras continuando os arrendatários no prédio.
Estabelecem-se na lei as condições em que a questão tem de ser posta aos inquilinos e em determinada altura fixa-se que, no caso de desejar voltar a ocupar o estabelecimento, o arrendatário terá de notificar o senhorio no prazo de quinze dias, a contar da data da licença camarária para ocupação.
Pergunta-se primeiro: como pode o arrendatário saber quando a câmara dá a licença para ocupação ou evitar ser iludido nessa informação e assim deixar passar o prazo para a notificação?
Segunda pergunta: se o senhorio resolver alterar totalmente a planta do prédio e em lugar de lojas fizer residências, como se há-de dar cumprimento à disposição da lei que dá ao arrendatário - e para os arrendatários comerciais esta circunstância tem uma importância capital - o direito de ocupar a parte do novo prédio que substituir a que anteriormente ocupava?
Porque certamente não foi intenção do Poder Legislativo deixar estas disposições de modo a não poderem ser utilizadas no verdadeiro sentido, solicitam estas Uniões:

1.º Que aos prédios com lojas de comércio arrendadas não seja permitida a sua substituição ou reconstrução sem que fique com o mesmo número de lojas que tinha anteriormente e cada uma com área igual ou aproximada à que tinha a correspondente;
2.º Que passe a ser obrigação do senhorio notificar o inquilino para que este declare se deseja reocupar o estabelecimento - ou a casa - o que, no caso afirmativo, terá de ser feito nos termos expressos na lei.

2.º caso. - Os despejos por caducidade do arrendamento, nos termos dos artigos 41.º, 42.º e 43.º
1 Pelo que nesses artigos se dispõe, todos os prédios cujos arrendamentos tenham sido celebrados por usufrutuários, fiduciários e administradores legais de bens alheios estão em risco constante de ser objecto do despejo imediato.
Compreende-se e aceita-se, até certo ponto, que o arrendamento feito por um usufrutuário ou fiduciário não obrigue o proprietário, quanto à renda nele fixada, quando assuma a posse plena do prédio.
É contudo conveniente que se imponha legalmente a obrigatoriedade de nos arrendamentos constar a qualidade de usufrutuário ou fiduciário, pois em muitos casos sucede o arrendatário desconhecer que foi nessa qualidade que alguém assinou os arrendamentos como proprietário.

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Se é, pois, de admitir o aumento da renda quando se extingue o usufruto ou o fideicomisso, não se compreende que, por tal facto, caduque o arrendamento, com o competente despejo, podendo representar a ruína do arrendatário comercial, que culpa alguma tem das circunstâncias em que o prédio se encontra, isto é, com um proprietário temporário e outro definitivo (chamemos-lhe assim), como se nada entre eles houvesse de comum, esquecida até a origem única dessa propriedade agora dividida.
Já, porém, o mesmo não é admissível nos casos de administradores legais, em que estes, para todos os efeitos, representam aqueles cujos bens administram, em
cujo nome actuam e cujos interesses têm obrigação de defender.
E igualmente no caso de bens dotais, no qual basta que os cônjuges se desavenham, efectiva ou aparentemente, para que nos prédios fazendo parte desses bens o risco de despejo passe a ser iminente.
Solicitam, portanto, as Uniões signatárias que nos casos de usufruto e fideicomisso o arrendamento subsista, conferindo-se contudo aos proprietários o direito de pedirem a avaliação da renda pelas comissões permanentes.
Resolver-se-ia assim, de facto e de direito, uma situação que, nas condições actuais, dá origem a uma profunda injustiça, e resolver-se-ia salvaguardando-se simultâneamente os direitos dos proprietários e inquilinos.
Nos outros dois casos - administradores legais e bens dotais - solicitam estas Uniões:
Que todas as condições dos arrendamentos se mantenham:

a) Porque os administradores são legítimos e legais representantes dos proprietários, obrigando estes e respondendo por essas obrigações;
b) Porque os maridos que assinaram arrendamentos fizeram-no no uso pleno dum direito e sujeitando-se às correspondentes obrigações, assim como os seus cônjuges em cujo nome conjuntamente outorgaram.

Excelência:

A exposição que aqui se faz, assim como a citação de razões e invocações de argumentos, poderão não ter beleza, de prosa e carecer de fundamentos jurídicos.
Mas reveste-se de grande sinceridade, a. que a dura realidade dos factos empresta dolorosa nota de ansiosa expectativa.
Reconhecida a necessidade de uma lei que viesse normalizar e actualizar situações e circunstâncias que o careciam, a Lei n.º 2:030, aprovada pela Assembleia Nacional em 1948, constituiu diploma cuja importância e valor são inegáveis.
Em documento de tal complexidade, natural é que, no terreno da aplicação, algumas disposições se mostrassem menos convenientes ou necessitadas de revisão.
É o caso dos pontoa que estas Uniões de Grémios de Lojistas citam nesta exposição, e para cuja solução solicitam a atenção dessa Exma. Assembleia.
Algumas sugestões se apresentam, elaboradas com preocupações de justiça e do maior respeito pelos direitos e interesses legítimos das partes interessadas.
Mas, aproveitadas ou não nem por isso deixam os problemas que se lhes referem de carecer de urgente revisão, que a essa Ex.ma Assembleia Nacional incumbe fazer e com que muito se honrará, contribuindo para o aperfeiçoamento de um importantíssimo instrumento de harmonia e paz interna.
Confiados no esclarecido espírito de justiça dessa Exma. Assembleia Nacional, pedimos a V. Ex.ª se digne aceitar, com os mais respeitosos cumprimentos, os protestos da nossa muita e elevada consideração.

A bem da Nação.

Março de 1950. - Pela União de Grémios de Lojistas de Lisboa, Virgílio Fonseca. - Pela União de Grémios de Lojistas do Porto (assinatura ilegível). - Pela União de Grémios de Lojistas de Coimbra (assinatura ilegível).

Alguns casos de avaliações já efectuadas em aplicação da Lei n.º 2:030

[Ver Tabela na Imagem]

(a) Casos citados - embora não se trato de estabelecimentos comerciais - por constituírem protótipos da falta do critério de uniformidade o injustiça de avaliação.
A Policlínica da Estefânia é uma casa antiga, composta por pequenas e irregulares divisões, sem instalações sanitárias, e cuja área de ocupação foi erradamente Indicada pelo proprietário.
A Policlínica do Intendente está situada em local muito mais movimentado, com uma área de ocupação que deve regular pelo triplo da da Estefânia, com grande cozinha, instalações sanitárias o espaçosas salas.
(b) Caso citado para estabelecer confronto.
(c) Estes três casos determinaram recursos já julgados e que fixaram as rendas, respectivamente, em 600$, 550$, e 500$.

Chama-se a atenção para a localização de alguns estabelecimentos em artérias manifestamente excêntricas, e cujo valor comercial não justifica o agravamento de rendas que as respectivas avaliações fixaram.

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O Sr. Presidente: - Estão na Mesa uns esclarecimentos enviados pelo Instituto Nacional de Estatística acerca das considerações produzidas nesta Assembleia pelo Sr. Deputado Manuel Domingues Basto. Estes esclarecimentos vão ser mandados publicar no Diário das Sessões.

São os seguintes:

«Exmo. Sr. Director. - O Diário das Sessões n.º 24, de 3 do corrente, anexo a esta exposição, transcreve a p. 349 certas afirmações do Exmo. Deputado Sr. Manuel Domingues Busto, que, por dizerem respeito a serviços a cargo desta Repartição - nomeadamente os da estatística agrícola -, se entende dever trazer ao conhecimento de V. Ex.ª, bom assim como algumas considerações que sobre o caso parece oportuno fazer. Nestas considerações visa-se esclarecer o assunto quanto à parto objectiva das críticas feitas, deixando-se de lado, por não parecer que possa ou deva este Instituto tê-la em atenção, a parte subjectiva contida nas mesmas críticas.
1. O número estimado pelo Instituto Nacional de Estatística para a produção de milho no ano agrícola findo representa corça de 60 por cento da produção média do último decénio. Esta avaliação - que se considera provisória, porquanto não dispõe o Instituto Nacional de Estatística ainda nesta altura do ano de todos os elementos de informação que lhe permitam os seus cálculos definitivos - resulta das informações que, mensalmente e segundo um plano estabelecido, são fornecidas ao Instituto pelos técnicos da Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas espalhados pelas quinze regiões agrícolas em que se encontra dividido o País e que com ele colaboram neste serviço.
Portanto, cada estimativa ou avaliação é resultante da conjugação de todas as estimativas parcelares, entre as quais se contam certamente as relativas ao Minho, com o peso que a sua importância relativa impõe. E por natureza, como é óbvio, os técnicos responsáveis pelas informações terão considerado nas suas avaliações todos os casos, desde os de produção nula ou negativa aos de produção mais compensadora.
Estes são as elementos de informação com que conta o Instituto Nacional de Estatística como base para as suas previsões ou avaliações provisórias. Ignora-se quais as fontes de informação que permitiram ou permitem as correcções feitas ou que se pretendem fazer às estimativas do Instituto Nacional de Estatística.
2. Como atrás ficou dito, existe um plano e uma rede de informação e as previsões ou outras avaliações feitas são-no de acordo com as normas internacionais aconselhadas pelo Instituto Internacional de Agricultura, representando cada avaliação mensal a produção que se supõe vir a verificar-se se nada de extraordinário ocorrer até à altura da colheita, pelo que não podem estar dependentes de qualquer optimismo ou pessimismo do Instituto Nacional de Estatística, mas apenas da observação dos técnicos que trabalham in loco.
O Instituto é um organismo técnico, de observação, registo e interpretação, e não um órgão de propaganda. Mesmo em casos em que as suas informações não são baseadas em números, a sua conduta tem-se mantido fiel a esta norma. Como exemplo citamos as informações constantes nas Folhas acerca das palhas de milho do ano findo, que são também objecto de afirmações contidas nas considerações a que esta exposição se reporta:

Folha n.º 7 (31 de Julho de 1949):

A palha de milho é curta, o que vem agravar ainda o estado de carência alimentar dos gados.

Folha n.º 9 (30 de Setembro de 1949):

Nos milhos ... as suas palhas apodreceram, perdendo-se em grande parte para o gado.

3. Quanto às afirmações que se lêem no Diária das Sessões relativas ao preço dos gados, elas devem ter origem certamente num desencontro de datas. Assim, afirma-se ali que «o gado baixou mais de 50 por cento do preço e os lavradores mão têm comprador», de ande parece depreender-se - o que está de acordo com o conhecimento que do facto tem o Instituto - que a afirmação se referiu ao momento actual; e simultâneamente critica-se o Instituto Nacional de Estatística por ter afirmado que «o negócio do gado no fim do ano passado tinha sido excelente». E, embora a interpretação das afirmações do Instituto Nacional de Estatística contida na última frase se possa considerar puramente pessoal - tendo em vista os comunicados dados a público) -, dos sublinhados ressalta bem o desfazamento das observações tomadas para termo de comparação.
Para melhor se ajuizar dos factos apontados, a seguir se transcrevem as informações acerca do preço do gado contidas nas Folhas publicadas desde o último trimestre do ano findo. E, muito embora essas informações pretendam condensar o que se passa no País, e não particularizar regiões ou províncias, paralelamente se transcrevem as informações que a respeito do mesmo assunto se receberam dos serviços - Posto Agrário de Braga - que a seu, cargo têm a I região agrícola, coincidindo aproximadamente com a província do Minho.

31 de Outubro de 1949:

Posto agrário:

Os preços dos produtos agrícolas não sofreram alteração; apenas os preços do gado bovino e do milho aumentaram ligeiramente.

Folha Agrícola:

Os preços subiram ligeiramente, ... quanto aios gados, pelo que as tarefas da época e a exuberância idos pastos e promessa, idos montados de azinho justificam.

30 de Novembro de 1949:

Posto agrário:

O gado bovino aumentou sensivelmente.

Folha Agrícola:

... às feiras tem concorrido bastante gado. Os preços continuam mostrando tendência para subir, sobretudo os dos gados, devido à abundância de pastos, temido nalgumas regiões do Norte havido subidas notáveis, com grande e imediata repercussão mós preços das carnes.

31 de Dezembro de 1949:

Posto agrário;

Os prados, que se mostraram muito prometedores, mercê das últimas e intensas geadas sofreram bastante. As cotações dos outros produtos não sofreram alterações sensíveis.

Folha Agrícola:

Os preços dos gados mantêm-se ma alta, com regular procura, em consequência das apontadas ex-

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cepcionais condições da alimentação em que a pecuária hoje se encontra. Apenas o gado gordo - de montanheira - encontra dificuldades na sua colocação, o que a lavoura atribui a manobras dos habituais compradores.

31 de Janeiro de 1950:

Posto agrário:

Não dá informações sobre preços de gados.

Folha Agrícola:

Os mercados mantiveram-se relativamente concorridos e os preços dos produtos agrícolas apresentam, tendência estacionaria, excepto os preços do gado, que mostram tendência para descer nas regiões onde se começam a verificar dificuldades na alimentação animal. No sul houve regular animação, mesmo nas transacções de gados, excepto dos suínos de montanheira, cuja baixa de preços a lavoura atribui a manobras especulativas dos habituais compradores.

Instituto Nacional de Estatística, 9 de Março de 1930. - O Chefe da 3.ª Repartição, Pinto de Magalhães.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua em discussão o aviso prévio do Sr. Deputado Sousa da Câmara acerca da investigação científica em Portugal.
Tem a palavra, para concluir as suas considerações, o Sr. Deputado Sarmento Rodrigues.

O Sr. Sarmento Rodrigues: - Sr. Presidente: quero agradecer muito reconhecidamente a V. Ex.ª a generosa atenção que teve para comigo reservando-me a palavra para esta sessão e ao mesmo tempo pedir a todos desculpa das contrariedades que a minha saúde abalada ontem lhes causou e que me valoram tantas provas de simpatia desta Assembleia, tantas que não poderei esquecer.
Sr. Presidente: nas minhas considerações de ontem ocupava-me de demonstrar que, só para os problemas do saúde no ultramar se poderia encontrar completa solução dentro do Ministério das Colónias e quanto aos problemas de exploração do mar se deveria recorrer ao Ministério da Marinha, uma terceira solução se recomendava quanto aos problemas da agricultura.
Neste último caso afigura-se recomendável conjugar as actividades próprias do ultramar e do Ministério das Colónias com as dos organismos do investigação já existentes na metrópole.
Pelos exemplos que apresentei sou levado a concluir que a evolução dos problemas de investigação no ultramar não deverá ser dirigida num único sentido, rígido, mas sim de uma. forma variável conforme as circunstâncias.
Não deveremos desprezar as organizações próprias, tais como o Instituto do Medicina Tropical; mas não deveríamos também incorrer na tentação de criar serviços centrais privativos do ultramar, de eficiência duvidosa, quando já dispusermos na metrópole de institutos abalizados.
Mas isto não pode de maneira nenhuma significar a dispersão das diversas actividades científicas pelos vários departamentos metropolitanos.
Os problemas do ultramar apresentam particularidades, sobretudo de natureza administrativa, social e económica, que escapam a quem não esteja neles iniciado. Além disso não se pode dispensar um plano geral, de modo que todas as investigações sejam objectivadas e completamente aproveitadas, sem haver duplicações de esforços. Por exemplo: os trabalhos de entomologia, que tanto podem aproveitar à zoologia como à agricultura, à pecuária ou à higiene e sanidade, não seriam repetidos em cada uma destas secções, mas sim unicamente levados a cabo por uma delas.
Por isso penso que é indispensável um organismo que administre, oriento e coordene todas essas actividades, dentro do plano ultramarino.
Esse organismo já existe: a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais. A sua meritória actividade foi anteontem aqui largamente assinalada. Herdeira da prestimosa Comissão de Cartografia, de tão ilustres tradições, é de esperar que a mais largos horizontes só possa estender ainda a sua acção.
No decorrer da minha exposição tive ocasião de fazer algumas referências a um aspecto que não pode ser descurado. As províncias ultramarinas são ciosas, e muito justamente, da sua individualidade. Tom personalidade, que cada dia mais se afirma. Não seria razoável, nem justo, nem bem recebido, cercear de qualquer maneira o progresso e desenvolvimento das actividades científicas locais. Todas as ameaças que neste sentido têm surgido para monopolizar a Ciência aqui na metrópole encontraram a mais consciente oposição no ultramar.
Por todas e pelas mais elementares razões, desde as de natureza económica às de civilização, deveremos interessar a gente do ultramar na criação o funcionamento dos seus próprios centros de estudo. As suas iniciativas não podem ser tolhidas. E para que se sintam apoiados e não oprimidos pelos organismos da metrópole tornar-se-á necessário regular as respectivas relações de unia maneira flexível, de modo que a interferência metropolitana, através dos organismos técnicos, seja essencialmente de assistência.
Tenho na minha mente a lição que recebi na Guiné. Nessa terra de menos de 10:000 civilizados, entre os quais, de rosto, existe uma forte maioria sem grandes preocupações de natureza cultural, fundou-se um centro de estudos, publicaram-se dezenas de trabalhos de séria investigação, organizaram-se delegações que participaram em conferencias científicas internacionais, com toda a honra para o nosso país, e aos delegados da Guino chegou a ser confiada a representação de Portugal. Tudo isto foi para nós uma surpresa e uma nova esperança.
Por isso entendo que devemos promover e ajudar a criação e desenvolvimento de centros de estudo no nosso ultramar. Tais centros, apoiados, como se disse, em organismos superiores metropolitanos, darão completa satisfação às aspirações dos territórios e através deles poderão ser canalizadas para a metrópole todas as dúvidas de natureza científica que no ultramar se apresentem e que doutra forma poderiam ser levadas para os institutos dos territórios estrangeiros vizinhos, com grave ofensa do prestígio nacional.
E esta alusão leva-me ao último ponto que me propunha ventilar: a nossa posição perante a investigação cientifica nos territórios estrangeiros do ultramar.
A realidade, Sr. Presidente, é que há uma febre de instalar organismos de investigação cientifica em toda a África. Os franceses, depois de terem criado o Office de Recherches Scientifiques d'Outremer, em França, ligaram-no aos diversos institutos espalhados pelos vários territórios, na África Ocidental Francesa, na África Equatorial Francesa e em Madagáscar. Foi a França que pagou as instalações desses institutos africanos. A sua manutenção corre depois por comparticipação de des-

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posas. Tudo neles é orientado no- sentido de utilização prática. Por exemplo, nas secções de geografia humana, os problemas que mais interessam são os que dizem respeito ao êxodo e fixação das populações, à mão-de-obra, etc. A própria pró-história é uma fonte de ensinamentos de natureza prática.
A Bélgica criou o Instituto Belga de Investigação Científica na África Central, além do outros organismos especializados, como o Instituto Nacional pura o Estudo Agronómico do Congo Belga. A Universidade de Lovaina tem centros sons no Congo Belga.
Eu próprio, numa última reunião de uma comissão intercolonial, tive ocasião de colaborar na organização do Conselho Científico para a África ao Sul do Saara, organismo que, embora tenha participação nossa, não deixa de ter a sua sedo na União da África do Sul.
Na verdade estamos rodeados por uma rede de estabelecimentos de investigação, o que deve merecer a nossa atenção vigilante. Ainda há pouco tempo, na reunião da Conferência Científica de Joanesburgo, na qual se preconizou a organização do conselho científico de que acabo de falar, um ilustre cientista francês, do qual não temos nenhuma razão especial de queixa e de quem, pelo contrário, temos recebido provas de interesse e de apreço pelos nossos investigadores do passado - esse eminente cientista, ao propor uma divisão da África para efeitos de organização científica, incluía as nossas províncias ultramarinas em zonas de influencia estrangeira, alegando, além de razões geográficas, a falta de organizações científicas nas nossas províncias do Sul da África. Essa proposta foi dignamente rebatida e rejeitada pelo chefe da delegação portuguesa, o ilustre Prof. Mendes Correia.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Confio em que a situação possa cada vez mais melhorar.
Porque nós temos homens o temos meios para realizar muito mais. à altura de nós próprios. Criar missões não basta, é preciso criar uma mentalidade científica, preparando os homens. Nada de instalações grandiosas, que nada significam.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nada de proventos escandalosos, que induzem em erros.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas também não se regateiem as justas remunerações, nem os indispensáveis elementos: sejamos modestos, mas dignos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: vou resumir em duas palavras as minhas considerações.
Considero urgente impulsionar a investigação científica no nosso país, começando por: preparar os cientistas; recolher os ensinamentos já adquiridos por outros; investigar onde nos for possível, e sobretudo nos problemas locais; orientar toda a actividade de investigação no sentido de utilização prática; tomar responsabilidades.
Quanto a investigação no ultramar: promover a criação de centros ou estacões experimentais no ultramar, recorrendo, sempre que possível, aos elementos locais e garantindo-lhes independência; preparar os institutos metropolitanos, dentro ou fora do Ministério das Colónias, para apoiar e assistir os centros no ultramar; criar o Instituto de Hidrografia e Oceanografia, para todo o Império, e integrar nele as missões hidrográficas e oceanográficas do ultramar; preparar a Junta das Missões Geográficas e do Investigações Coloniais como organismo de planejamento, superintendência e ligação de toda a actividade científica do ultramar, além da execução directa que entenda dever assumir.
Sr. Presidente: com os meus simples comentários nada pretendi acrescentar às doutas considerações aqui produzidas, nem contrariar de qualquer maneira as justas aspirações manifestadas pelos ilustres Deputados que me precederam. Foi, pelo contrário, no desejo de as apoiar, de dar a minha contribuição para o estabelecimento de reais, sólidas e práticas condições de êxito que me decidi a intervir.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Délio dos Santos: - Sr. Presidente: suponho não existir no espírito de nenhum dos membros desta Assembleia dúvidas acerca da grande importância da investigação científica na vida material e espiritual de qualquer nação moderna. Neste ponto todos estaremos de acordo com o Sr. Deputado Sousa da Câmara e, pelo que me diz respeito, não posso deixar de aplaudir, com o maior entusiasmo, a iniciativa de S. Ex.ª apresentando o aviso prévio.
Na verdade, um puís que não mantenha hoje a investigação científica num nível conveniente tende fatalmente a empobrecer, a degenerar e, por conseguinte, degradar-se.
Pelo contrário, o estudo dos problemas de um país à luz de uma séria investigação científica pode levar os seus habitantes a um alto padrão de vida económica, social o imoral. O caso da Dinamarca, quando nos princípios deste século operou uma mudança radical da sua estrutura económica em bases científicas; o caso da França após a guerra de 70, e o caso verificado na região do Tenessee, nos Estados Tinidos da América do Norte, são bem flagrantes, por mostrarem a importância económica, social e espiritual e, portanto, política da investigação científica, para ser necessário gastar anais tempo a provar o interesse e a oportunidade deste debate.
É evidente, porém, que antes de concebermos as medidas práticas adequadas ao conveniente progresso da investigação científica entre nós, precisamos esclarecer com toda a nitidez o que se deve entender por investigação científica. De outro modo poderemos correr o risco de ser vítimas de uma certa retórica científica, a pior de todas as retóricas, levando muitas vezes à deformação dos valores e forçando muitos a aceitar como sábios os faladores e barulhentos ou a inverter a importância hierárquica das diferentes operações da investigação, chamando sábios aos simples repetidores de experiências feitas ou a exploradores de arquivos, cautelosamente postos fora do alcance dos investigadores estranhos, mas sinceramente interessados em pesquisas.
O ilustre colega Sousa da Câmara referiu-se também ao perigo desta propaganda pseudo científica, quando afirmou que sem a investigação científica se vêem «pulular num país os técnicos incompetentes».
Que devemos entender, portanto, por investigação científica?
Julgo ser necessário distinguir, pelo menos, dois níveis diferentes dessa investigação, discriminados adianto, muito desiguais pela sua importância e pelo seu valor. Só ao primeiro deveríamos, com propriedade, chamar investigação científica.
Por vantagens de ordem prática, não vou, porém, tão longe no exclusivismo do critério. Concedo a de-

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signação de investigadores científicos aos homens da segunda categoria, mas marcando claramente a sua grande inferioridade em relação aos primeiros.
O primeiro grupo de investigadores científicos é em meu entender constituído por aqueles homens de génio, que, num golpe de audácia intelectual, abrem domínios novos no campo do conhecimento, como Galileu, Descartes, Leibnitz, Pasteur, etc., ou os que realizam sínteses admiráveis de vastos domínios do conhecimento, até aí estranhos entre si, como Newton, Maxwell, Einstein, etc. Cito no campo das ciências positivas, por ser o mais aludido neste debate, mas poderia e deveria talvez citar também do campo das ciências do espírito, onde não seria difícil encontrar exemplos, quer na História, quer na sociologia, quer nas artes, de homens reveladores do mesmo pendor genial e da mesma capacidade criadora talentosa.
Estes investigadores são figuras internacionais, são os que projectam as consequências teóricas e práticas do seu pensamento, através de muitos séculos. Na sua produção científica, filosófica ou artística, eles não dependem das circunstâncias do meio ambiente, porque trazem dentro de si força bastante para vencer todos os obstáculos, todas as dificuldades, e tirar, quase do nada, os meios capazes de demonstrar, pela razão e pela experiência, a legitimidade das suas doutrinas. Tenhamos presente o que aconteceu com Lavoisier, Pasteur, Madame Curie, Ramón y Cajal e, entre nós, com o próprio Prof. Egas Moniz.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Os portugueses são levados, por vezes, a consolar-se facilmente das suas inferioridades momentâneas, inventando justificações que são falsas justificações.
Assim, afirmamos não termos produzido suficientemente no campo científico, por não se encontrarem melhor apetrechados os nossos laboratórios e os nossos gabinetes de investigação científica. E ficamos muito satisfeitos com a ideia de que, se tivéssemos esses laboratórios bem apetrechados, teríamos génios às dúzias.
Não pretendo com isto significar que não sejam absolutamente indispensáveis para o País esses laboratórios bem apetrechados, mas não tenhamos ilusões: eles são condições auxiliares vantajosas, nem sempre necessárias aos grandes génios, e muito menos suficientes para o aparecimento dos talentos. Àqueles que possam ter dúvidas sobre esta afirmação lembrarei o caso da investigação matemática.
Neste campo especial não são necessários laboratórios nem grandes bibliotecas; para se realizarem as mais extraordinárias descobertas basta papel, lápis, conhecimento, bons livros e revistas e ... genialidade. Os exemplos de Pedro Nunes e de Gomes Teixeira, para não falar senão de glórias passadas, ilustram com clareza o que pretendo dizer.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O segundo nível de investigação científica também tem a sua importância, mas muitíssimo menor do que aquela a que acabamos de fazer referência. Constituído por produções monográficas versando a aplicação a domínios particulares nossos de técnicas e doutrinas criadas por outros cientistas, é verdadeiramente aplicação da Ciência e «não a rigor investigação científica.
A colaboração desses homens no edifício da Ciência é muitíssimo útil, em certos casos mesmo indispensável, porque as suas contribuições constituem uma espécie de alpondras sobre as quais passa o homem superior, para atingir a margem da genialidade. Mas não são, de modo nenhum, a grande investigação científica, nem os investigadores desta categoria devem desejar para si as honras e as possibilidades que só os primeiros merecem.
Outra distinção muitíssimo importante, para podermos chegar a algumas conclusões úteis, é a que separa investigação científica de organização científica das actividades de um país no sentido de obter o máximo de rendimento dos seus recursos e a maior coordenação e harmonia de todas aquelas actividades; e ainda a que separa investigação científica de organização científica do trabalho intelectual.
Não sei até que ponto estas distinções estão presentes no espírito do VV. Ex.ªs
Penso, contudo, que sem elas nós corremos o risco de tudo confundir e de propor pseudo-soluções para um problema extremamente grave, pseudo-soluções essas que só servirão para criar maior desapontamento e redobrada incredulidade, num futuro próximo, acerca das possibilidades de criação científica mo nosso país. Não tenho dúvidas quanto à necessidades de melhorar muitíssimo o existente.
Estou convencido, porém, de que o rendimento dos nossos organismos de investigação científica pode facilmente multiplicar-se havendo uma melhor compreensão por parte das esferas governativas relativamente aos verdadeiros problemas, acompanha dia apenas de um anão muito excessivo aumento de encargos financeiros.
Também não pretendo afirmar seja essa multiplicação de rendimento de trabalho o único ideal a atingir. Será necessário mais, muito mais.
Todavia, penso que é absolutamente indispensável começar por aí: reorganizar e financiar mo que for necessário, para que os organismos existentes dêem o máximo rendimento possível.
Quais são esses organismos?
Em primeiro lugar as Universidades, isto é, todas as escolas e institutos de ensino superior.
Em segundo lugar todos os outros institutos e organismos de investigação científica pertencentes a todos os Ministérios.
E por fim, o Instituto para a Alta Cultura, que tão bom trabalho está realizando, mas que pode ainda, se for conveniente reformado e ampliado, como é de interesse nacional, prestar muito maior serviço ao País do que aquele que já se lhe deve.
O ilustre colega Magalhães Ramalho propôs criar-se uma organização de investigação científica dependente da Presidência do Conselho e onde se concentrassem todos os institutos criados para esse fim. Eu receio muito sinceramente que nona organização desse género venha sobrecarregar os recursos limitados do nosso país com duplicações inúteis e inevitáveis.
Julgo que, em primeiro lugar, deveríamos tirar o máximo partido, em conformidade com a linha de pensamento atrás exposta, das instituições actualmente existentes, por meio de reformas adequadas, de modo a tornar essas instituições capazes, por um lado, de fornecer aos estudiosos um conhecimento científico verdadeiramente actualizado e, por outro, de dar-lhes a maleabilidade (necessária para que as investigações no sentido das novas de cobertas possam ser feitas sem dificuldades desnecessárias e com o indispensável espírito de audácia intelectual.
Pelo que respeita às escolas universitárias não podemos compreender a sua verdadeira missão como centros de investigação cientifica, sem compreender a saia função total na economia intelectual do País e sem conhecermos um pouco das condições que têm presidido ao desenvolvimento da investigação científica na civilização europeia desde o Renascimento até aos nossos dias.

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Comecemos, Sr. Presidente, por este último aspecto do problema.
No Renascimento e no período que imediatamente se lhe seguiu a investigação científica foi obra de homens isolados, mas geniais.
Em breve, porém, a necessidade de uma troca de ideias, de convivência intelectual, se fez sentir, e é testemunho desse facto a abundantíssima correspondência que ocupa muitos volumes das obras desses grandes homens. A partir de certa altura o trabalho isolado não bastou. Foi necessário uma cooperação mais íntima.
A investigação científica deixou de ser o trabalho de homens isolados e passou a ser o trabalho de homens fazendo parte de agremiações - as academias. Estas imperaram durante mais de cem anos. Porém, no século XIX, as academias revelaram-se insuficientes para a nova amplitude da investigação científica. Esta passou a fazer-se em especial nas Universidades e passou a ser obra, em muitos ícaros, de professores universitários.
No século XX, com o extraordinário desenvolvimento do conhecimento teórico e da sua aplicação prática, as próprias Universidades deixaram de poder conter em si todo o trabalho de investigação científica. Este passou a fazer-se de preferência nos institutos preparados intencionalmente para os diferentes ramos da investigação a fase em que nos encontramos hoje.
Quando as Universidades passaram a ser o centro principal da investigação cientifica nem por isso as academias deixaram de ser úteis e o trabalho continuou em grande parte como resultado de uma harmonia que naturalmente surgiu entre as duas instituições.
Do mesmo modo, quando surgiram os institutos especializados, a Universidade não deixou por isso de ser útil, porque o verdadeiro trabalho de investigação científica realizado actualmente nos países mais progressivos e avançados é sempre o produto de uma cooperação estreita entre as Universidades e esses institutos especializados.
Consideremos agora o primeiro aspecto do problema que tínhamos posto: o da função nacional da Universidade. Que espera o País da sua Universidade?
Em meu entender, comete-se um erro gravíssimo quando se afirma ser a investigação científica a principal função da Universidade. N ao nego que essa seja uma das funções fundamentais da Universidade, mas não é a única nem a principal.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Simplesmente com esta observação: dificilmente no nosso país se pode fazer investigação cientifica fora do ambiente da Universidade. Isto sem prejudicar o que V. Ex.ª acaba de dizer.

O Orador: - Inteiramente de acordo.
Para mim, a Universidade tem por missão, em primeiro lagar, a formação de portugueses conscientes do valor humanistico da sua cultora, conscientes da sua responsabilidade na vida social, de indivíduos responsáveis, capazes de constituir um escol digno das tradições da Pátria e capazes de lhe garantir a perenidade no futuro.
A primeira função da Universidade é, portanto, uma função educativa e formativa, no sentido mais alto e mais nobre destas expressões.
Em seguida, a Universidade deve ser capaz de transmitir às gerações novas um saber universal actualizado. Neste ponto devo dizer que nem sempre a nossa organização universitária permite a professores e a alunos realizar eficientemente este importante objectivo da sua missão. Estes, devido aos currículo, mal organizados, pela necessidade que têm de estudar muita coisa inútil, não têm tempo de aprender tudo o que é necessário e fundamental para a sua formação. Aqueles, pelo péssimo regime de acumulações ainda subsistente, não podem com facilidade tornar-se especialistas sérios e competentes em qualquer matéria.
É certo que muito se melhorou com a reforma do Prof. Gustavo Cordeiro Ramos e com a do Prof. Mário de Figueiredo, mas é indiscutível que andámos só meio caminho e que o quadro dos professores do ensino universitário é ainda insuficiente para permitir uma verdadeira e autêntica especialização e que a nossa orgânica universitária não é bastante maleável para permitir aos professores orientarem também o seu ensino no sentido da investigação original e criadora. Em terceiro lugar, mas só em, terceiro lugar, compete à Universidade realizar investigação científica.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Isso é rigorosamente assim. Só me permito fazer este apontamento: é que mesmo com quadros pobres se tem verificado não ser possível com a nossa massa académica ou estudantil preenchê-los razoavelmente.

O Orador: - Estou convencido, tal como V. Ex.ª, de que se trata duma grande dificuldade, mas também estou convencido de que não é uma dificuldade insuperável.
Podíamos fazer muito mais do que aquilo que temos feito até agora.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Aceito como um puro acto de fé. É possível que nós não saibamos procurar na massa da população portuguesa todos os melhores. Asseguro, no entretanto, a V. Ex.ª que, do meu contacto com uma Faculdade resulta a possibilidade de afirmar que nunca se consentiu que fugisse alguém em quem pudesse depositar-se perfeita confiança. Foram-se alguns porque os não seduzia a Universidade. Suponho que com as outras escolas terá acontecido o mesmo e, contudo, nós temos os quadros incompletos, não por culpa de quem está, mas por culpa da massa que devia chegar e não chega.

O Orador: - E às vezes por culpa do sistema do que se usa na selecção, até ao ponto em que a massa entra nas Universidades.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Estou de acordo, nas os processos que temos adoptado até aqui, e que são utilizados para ver se só não perde ninguém, não t6m conduzido a que se encontrem os suficientes.

O Orador: - Isso é exacto. Simplesmente continuo a pensar que muitas vezes isso resulta de não repararmos em certos pormenores que parecem à primeira vista insignificantes, mas que anulam as medidas postas em execução.
Posso, a este respeito, citar um. exemplo típico passado na minha Universidade.
Instituíram-se os exames de aptidão para seleccionar os melhores na entrada nas Universidades o na Faculdade de Letras de Lisboa aconteceu que, como duma maneira geral os rapazes preferiam ir para Direito, porque o Direito tem atrás de si uma fama de possibilidades maior na vida prática do que a Faculdade do Letras...

O Sr. Jacinto Ferreira: - Fama e proveito.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Hoje essa fama e esse proveito estão nas Ciências Económicas e Financeiras.

O Orador: -... como o Direito tem atrás de si uma tradição ainda muito forte de maiores possibilidades e como, infelizmente, a Faculdade de Letras, à semelhança do que acontece com u Faculdade do Ciências, prepara

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quase só para o professorado, o que é uma coisa paradoxal.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Nessas Faculdades o que importa é o sacerdócio e não o futuro imediato da população estudantil.

O Orador: -... no que diz respeito ao caso especial da Faculdade de Letras, o sistema montado para seleccionar deu o resultado contrário ao que se pretendeu. Os alunos podiam concorrer simultaneamente aos exames de aptidão a Direito e a Letras, sobretudo na secção de Filosofia, e como uma prova era mais fácil de vencer do que a outra, visto o latim ser mais difícil que o português e não haver um critério igual na preparação dos pontos de exame, tornava-se mais apertado o ingresso na Faculdade de Direito que na Faculdade de Letras ...

O Sr. Mário de Figueiredo: - A razão não é bem essa. Eu tenho medo de a dizer, mas sinto necessidade de dize-la. A razão está na necessidade de recrutamento para Faculdades que têm pouca frequência, ao contrário do que acontece para as outras Faculdades cuja frequência é muito mais larga.

O Orador: - Não posso acompanhar inteiramente V. Ex.ª no seu pensamento porque verifiquei que não era rigorosamente essa a causa que levava às consequências que estou a apontar, visto a Faculdade de Letras de Lisboa ser muito frequentada.
O que acontecia era isto: os alunos faziam dois exames, um mais fácil, e o outro, o de latim, muito mais difícil, havendo ainda uma diferença de bitola nas provas a que os alunos estavam sujeitos ...

O Sr. Mário de Figueiredo: - Só a propósito de certas disciplinas, que são frequentadas mesmo fora do quadro normal das Faculdades de Letras, fora do ambiente dessas Faculdades.

O Orador: - Tenho a impressão de que nesse ponto não estamos de acordo.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Não posso afirmar, mas tenho a convicção que o alargamento da frequência das Faculdades de Letras era devido às cadeiras de Pedagógicas.

O Orador: - Tenho a impressão de que V. Ex.ª está enganado.

O Sr. Mário de Figueiredo: - É possível.

O Orador: - O resultado foi este: os alunos eram reprovados em Direito e passavam em Letras; logo, entravam em Letras.
Quando, em regime de liberdade de frequência, o número de alunos era aproximadamente trinta na secção de Filosóficas, passou num ano a ser de cento e vinte e noutro de cento e setenta, em regime de exame de aptidão, porque eram os reprovados em Direito que, não querendo perder o ano e não tendo outro recurso, se matriculavam em Letras.
Numa secção em que é necessário um verdadeiro escol, como é a de Filosofia, encontravamo-nos na situação de ter como alunos muitos dos piores, devido à má aplicação de uma técnica e à má interpretação da intenção do legislador, que não tinha por objectivo trazer para as Faculdades de Letras os alunos inúteis.

O Sr. Mendes Correia: - V. Ex.ª dá-me licença? Para mim, é um facto que as Faculdades de Letras e de Ciências, ou sejam as Faculdades de Ciências Puras,
na acepção mais lata destas, sofrem, na sua frequência das licenciaturas e na qualidade dos licenciados (salvo algumas excepções) uma grave crise, por virtude da atracção que as carreiras profissionais consideradas mais lucrativas ou mais convenientes exercem sobre a juventude escolar. O resultado, a meu ver, é que, se não for dado um remédio a esta situação, aquelas Faculdades se encontrarão em breve em tremendas dificuldades para renovar satisfatoriamente os seus quadros docentes, dada a escassez do escol em que poderão fazer o recrutamento respectivo.

O Orador: - E não podemos esquecer que as pessoas não vivem só do ar.
Retomando as minhas considerações: a investigação científica, porém, não pode efectuar-se, em relação ao conhecimento positivo, nos laboratórios universitários correntes; tem de ser realizada nos tais institutos especializados, que convém possam ser frequentados por professores e por grupos muito escolhidos de alunos, que constituam com aqueles verdadeiras equipes de investigação. Mas, para podermos tirar o máximo rendimento do trabalho dessas equipes e do esforço despendido nesses institutos de investigação especializados, convém que neles domine o verdadeiro espírito universitário, de que as nossas Universidades, infelizmente, são relativamente pobres, o qual consiste em compreender que existe entre os diferentes ramos do saber humano uma grande interpenetração e dependência.
Sem o reconhecimento deste facto (que leva, quando sentido, a convivência na mesma agremiação dos especialistas dos mais variados domínios) me podem abrir-se novos horizontes no campo do conhecimento nem podem realizar-se obras verdadeiramente notáveis na criação científica.
O verdadeiro espírito universitário subentende, em certo sentido, ser o conhecimento humano universal e unitário. A atitude filosófica é essencial neste espírito, não só pela universalidade das preocupações da filosofia, como porque ela- nos mostra par um lado a necessidade de um respeito escrupulosíssimo pelas exigências da razão na metódica do investigador e por outro nos revela que apesar de todo o seu poder, de todas as extraordinárias "possibilidades da razão humana, esta tem as suas limitações próprias, tem a sua relatividade, chega sempre no campo científico a resultados provisórios e mostra que .para avançar no conhecimento é preciso àquele investigador guardar dentro do seu coração uma confiança absoluta nas «possibilidades formais da, inteligência, mas uma desconfiança constante em relação aos resultados concretos a que se tenha porventura chegado, numa determinada altura, «pelo uso dessa mesma inteligência.
Não há investigadores sem este espírito de confiança e de dúvida simultâneas.
Não há criadores científicos sem o vislumbre da possibilidade de novas ultrapassagens e de novas correcções ao saber adquirido. Este sentimento de insatisfação é a verdadeira alavam a da investigação científica.
Nós podemos de facto tirar maior rendimento das organizações existentes e daremos prova de um admirável senso «político se soubermos adaptar essas organizações às verdadeiras e profundas necessidades nacionais.
Reconheço, talvez, vantagem na criação junto da Presidência do Conselho de um organismo coordenador de todas as actividades de investigação científica, destinado a coordenar esforços e a evitar duplicações de trabalho, mas não vejo vantagem em transferir para a Presidência do Conselho as funções do Instituto para a Alta Cultura, mesmo na hipótese de elas serem devi-

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«lamente ampliadas e desenvolvidas. Nem sequer sinto a necessidade de lhe mudar o nome, a não ser talvez na troca da preposição, porque me parece mais em conformidade com os seus fins e com a índole da mossa língua, chamar-lhe Instituto de Alta Cultura.
Sr. Presidente: não desejo fatigar demasiado a atenção de V. Ex.ª e desta Assembleia. Vou, pois, terminar, mas não o farei sem emitir o meu parecer acerei das relações que suponho justais entre o homem de ciência e o político.
Já tenho afirmado muitas vezes que o homem não é constituído apenas por valores racionais. Ele não sente só as necessidades da razão; tem sensibilidade e tem ideais, tem necessidades de ordem material e espiritual, que não se reduzem nem àquelas que são satisfeitas pela técnica nem às que são satisfeitas pela inteligência.
A razão e a racionalidade são facetas importantíssimas e indispensáveis do homem, mas não são as únicas. A razão, a sensibilidade e os valores morais constituem os três principais aspectos de todo aquele que é normal.
O cientista, como cientista, provê às exigências da razão humana no conhecimento, na interpretação e no domínio dos fenómenos da natureza.
Mas no cientista pode coexistir também o político, porque a atitude do político faz apelo a uma outra esfera, que não invalida nem impede aquele. Ao político é essencial o conhecimento de todas as facetas do homem. E, depois de ter ponderado o seu valor relativo, procurará criar condições de vida que permitam, em sociedade, dar a todas essas facetas expressão natural e harmónica.
E por isso que faz parte da política uma certa filosofia da vida, porque sem ela não podem fomentar-se as condições sociais favoráveis a essa expressão completa dos valores da, pessoa humana.
Não devemos lamentar, portanto, que um grande valor científico «e consagre às actividades políticas, se ele for também um grande valor político. Lamentável é o grande cientista que tenha o senso político atrofiado querer servir-se da sua autoridade como cientista para tentar impor ao outros concepções infantis e anticientíficas no campo da política.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quando assim acontece estamos em presença de uma extrapolação ilegítima e de um autêntico abuso de confiança, pelo respeito que os outros nos devem merecer.
A autoridade que nos cabo em cada domínio deve resultar sempre da competência revelada nesse domínio, e não da fama, merecida embora, que w» possa ter alcançado numa esfera completamente diferente.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O cientista não se torna bom político só com o simples «aprofundar do poço» que nos obrigue «a alargar o seu diâmetro à medida que descemos». A imagem apresentada pelo ilustre colega Sousa da Câmara não me pareceu nem convincente nem satisfatória para traduzir esta relação. Trata-se, sim, de uma nova perspectiva, uma perspectiva de totalidade, que não pode ser jamais alcançada pelo alargamento, embora ilimitado, de uma só das facetas, qualquer que ela seja.
Em minha opinião há, pelo contrário, toda a vantagem em os verdadeiros homens de ciência dotados de altíssimo senso político entrarem afoitamente no campo da política.
Deste modo teremos possibilidade de evitar muitos erros, talvez trágicos, resultantes do mau emprego de um senso político hipertrofiado, que não tomou em linha de conta as exigências da técnica científica e da razão humana, que a verdadeira formação científica tanto robustece.
O País necessitou sempre e necessitará cada vez mais de cientistas fortemente dotados de senso político e de políticos profundamente possuídos de espírito científico, porque só eles poderão corresponder às necessidades cada vez mais complexas e prementes do País. Só eles poderão manter-se fiéis ao espírito da nossa história, que nos ensina deverem a inteligência e a técnica servir sempre os verdadeiros ideais cristãos.
Foi com esse espírito que realizámos os descobrimentos marítimos. E esse espírito deve dominar-nos, hoje como ontem, para que os resultados da investigação científica sirvam para libertar, e não para escravizar, os corpos e as alunas dos homens e dos povos.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: mais do quarenta anos de contacto com estabelecimentos e actividades de investigação científica no País e no estrangeiro levam-me a intervir nesta discussão, trazendo despretensiosamente aqui o meu testemunho e algumas sugestões.
Antes de 1929 a investigação científica em Portugal reduzia-se, nos últimos tempos, a iniciativas isoladas. Recordo-me, quanto à concessão de bolsas de estudo no estrangeiro, da iniciativa meritória do estadista da monarquia João Franco, mas, infelizmente, essas bolsas não deram, por falta de continuidade e outros motivos, o rendimento que seria de esperar e de desejar. Evoco com admiração as iniciativas individuais de figuras como Barbosa du Bocage, como Júlio Henriques, como Ricardo Jorge, como o meu saudoso e querido mestre Ferreira da Silva e tantos outros, felizmente.
Foi no Laboratório Municipal de Química, de Ferreira da Silva, que, com 18 anos de idade, realizando uma reacção química, experimentei a antevisão da emoção gruta de haver feito uma descoberta.
A reacção deu um precipitado imprevisto. Não a encontrei descrita nos livros correntes de análise.
Comuniquei a minha experiência aos preparadores e investigadores que se encontravam no laboratório: nenhum conhecia aquela reacção!
Ousei ir ao gabinete do mestre. Este ouviu, com a deferência que os grandes mestres devem ter sempre para com os novos, a minha exposição cheia de ingenuidade o disse-mo: K Vá lá para dentro; daqui a pouco o chamarei».
Passados uns instantes, chamou-me; abriu uma grande enciclopédia química estrangeira e mostrou-me a descrição, do que eu supusera haver descoberto ...
E inesquecível, apesar do insucesso da minha suposição juvenil, o sentimento que então experimentei.
Devo dizer que para os trabalhadores autênticos e honestos da Ciência o que vale acima de tudo é a satisfação de ter encontrado qualquer coisa de novo - nisso está o seu maior prémio, um prémio que vale mais para eles do que todos os tesouros do Mundo!
Em 1929 o Prof. Gustavo Cordeiro Ramos, então Ministro da Instrução, cria a Junta de Educação Nacional, antecessora do actual Instituto para a Alta Cultura.
Era a primeira organização do conjunto para a investigação científica no País, e muito se lhe deve já.
Simplesmente os seus princípios foram demasiadamente modestos, porque a primeira verba anual da organização foi de 300 contos.
No entanto, a dotação tem aumentado incessantemente; em 1950 ela é de 7:000 contos.

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É muito? Não. É pouco. Muito pouco, sobretudo se atendermos à vastidão imensa das necessidades indeclináveis e a que o Instituto para a Alta Cultura não estimula e não apoia apenas tareias de investigação, desempenha muitas outras actividades de ordem cultural.
Mas a progressão, a partir dos humildes 300 contos iniciais, mostra um louvável empenho, no Estado, de intensificar e desenvolver a acção do Instituto.
Tem-se discutido, até mesmo dentro desta Casa e em mais de uma oportunidade, se a repartição das bolsas de estudo e de subsídios por centros de estudos, que é feita pelo Instituto para a Alta Cultura, é justa e adequada às necessidades e conveniências nacionais, no ponto de vista das disciplinas preferidas.
Devo dizer que, com os escassos recursos de que aquele Instituto dispõe, é difícil, senão praticamente impossível, fazer melhor aplicação do que aquela que ele faz.
Para, sobretudo, um queixume frequente: o de um predomínio de estudos de carácter especulativo; mas a verdade é que o Instituto não tem descurado as ciências aplicadas ou chamadas utilitárias. Sinto uma grande repugnância em falar de ciências utilitárias, porque, para mim, todos os conhecimentos científicos, sejam eles quais forem, são úteis.
Ora vou mencionar algumas das disciplinas de ciência aplicada que tem sido escolhidas para temas de trabalhos de alguns dos bolseiros do Instituto para a Alta Cultura: microbiòlogia do solo, mecânica dos solos nas suas relações com a agronomia, química agrícola, agronomia e melhoramento de plantas, fitopatologia, microbiòlogia e tecnologia agrícolas, entomologia económica, virulogia, parasitologia veterinária, bacteriologia veterinária, zootecnia geral, farmacognosia, vitaminologia, nutrição, metalurgia e mineração, construção de motores e turbinas, electroquímica, corrosão dos metais, análise espectro-química aplicada a águas minerais ou minérios, problemas de urbanismo, etc.
Em 1936 o então Ministro das Colónias, Sr. Francisco Vieira Machado, fez publicar um diploma que instituiu a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais. Essa iniciativa tinha sido antecedida de uma campanha activa em favor da investigação científica ultramarina, levada, sobretudo, a efeito pelo saudoso professor da Universidade de Coimbra, Luis Carriço, prematuramente falecido em pleno deserto de Moçâmedes e ao qual rendo aqui a minha homenagem de saudade.
Em 1940 a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais era remodelada por iniciativa do Ministro Marcelo Caetano.
Os quantitativos das dotações atribuídas àquela Junta foram já aqui referidos pelo nosso ilustre colega Prof. António de Almeida, mas recordarei que da dotação anual de 3:700 contos, atribuída em 1940, se atingiu progressivamente, em 19õO, o quantitativo de 20:000 contos.
É muito? É o máximo talvez que no momento se pode conseguir, e perante as nossas condições financeiras é de louvar um tamanho esforço, apesar da sua insuficiência para a magnitude da tarefa a realizar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Na última Conferência Científica Regional de Joanesburgo foram estabelecidos cerca de sessenta sectores diversos de ciência e tecnologia que se entendeu imprescindível cultivar intensamente no território africano a sul do Saara. Quase todos esses sectores requerem trabalhos de portugueses na nossa África. Avalia-se da vastidão da tarefa.
Embora a Junta das Missões e o Instituto para a Alta Cultura tenham surgido como organizações de conjunto para intensificação da investigação científica em Portugal metropolitano e ultramarino, nem por isso deixaram, felizmente para nós, de surgir, neste lapso de tempo, outras iniciativas do mais alto merecimento. Das do Estado cito uma, à frente da qual se encontra o nosso ilustre colega que promoveu, em momento de feliz inspiração, este debate: é a Estação Agronómica Nacional.
Mas há mais: já aqui se mencionou o Instituto de Medicina Tropical, cuja actividade na metrópole c no ultramar é digna de todo o apreço e do mais intenso apoio.
Poderia citar outras iniciativas do Estado. Mas, para não alongar demasiado estas considerações, restringir-me-ei à menção de iniciativas para estatais e privadas, como, entre as primeiras, as da Junta de Exportação do Algodão Colonial, que tem em Moçambique um magnifico instituto - o Centro de Investigação Científica Algodoeira, ou Cica -, dirigido pelo Prof. A. Quintanilha.
Tive ocasião de visitar esse instituto, que não é de grandiosas instalações, mas onde se trabalha hoje duma maneira séria, após as naturais dificuldades iniciais. Trabalha-se duma maneira honrosa para a cultura portuguesa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E não é o único instituto científico existente em Lourenço Marques. Visitei outros há pouco: a missão contra as tripauossomíases, a missão antimalárica, o Hospital Miguel Bombarda, com os seus laboratórios e o seu belo museu do anatomia patológica, o laboratório do estudo da resistência dos solos, o de patologia veterinária, etc.
Destacarei o magnífico Museu Álvaro de Castro, exemplo de apontar, com desvanecimento da nossa parte, aos próprios estrangeiros.
Foi recordado nesta Assembleia o esforço realizado, infelizmente sem prosseguimento, durante o período da guerra pela Legião Portuguesa, num gabinete de investigação científica, como objectivo de bem servir a defesa civil do território.
Quanto às empresas privadas, o nosso colega Prof. António de Almeida recordou cora justo elogio o que está sendo feito na Lunda pela Companhia dos Diamantes de Angola quanto à investigação científica em matérias que não estão ligadas aos interesses imediatos e directos dessa empresa. É qualquer coisa que altamente nobilita a mesma empresa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - No conjunto do País estamos, porém, meus senhores, ainda longe do nível desejável em amplitude, intensidade e sequência quanto ao esforço nacional que se impõe, especialmente nos objectivos de salvaguarda e utilização racional das riquezas naturais e humanas da metrópole e do ultramar.
A máquina pode dizer-se que foi montada, e isso merece louvores. Mas ainda não está perfeitamente articulada. Ainda não está em pleno funcionamento. Ainda não atingiu, sobretudo, o satisfatório rendimento que deve ter. Muito longe disso.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Subscrevo o que foi dito aqui pelo Sr. Deputado Sousa da Câmara quanto ao exemplo magnífico dado pelo Conselho Superior de Investigações Científicas, de Espanha. Uma instituição como essa é, realmente, um modelo para os outros países. Dignifica, honra e nobilita o Estado Espanhol e a cultura do país vizinho.
Não seriam, todavia, indispensáveis entre nós instalações tão grandiosas, mas são necessários os meios de

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trabalho, a alma, a intensidade de vida e o entusiasmo que existem na maior parte dos sectores ou das disciplinas cultivadas no Conselho Superior de Investigações Científicas. Não posso deixar de pedir aos homens cultos do nosso país que desconhecem a actividade do dito Conselho que tomem, ao menos, conhecimento da simples lista ou resenha de revistas de cultura e ciência que o Conselho subsidia e edita. Pode haver um centro do actividade científica ou cultural sem órgão» de divulgação dessa actividade?
Mas há outros excelentes exemplos em países estrangeiros que conviria tomar em consideração entre nós e seguir. Não nos ficará mal adoptar esses modelos, por mais dignificadora que seja, como é, a nossa posição noutros sectores, em face dos restantes países.
Entre as instituições estrangeiras de investigação cientifica, julgo também conveniente citar o Office Francês do Investigação Científica Colonial, o qual para o seu funcionamento teve o orçamento de no milhões de francos em 1947, além do 26o milhões de francos do orçamento de investimento. A França tomou há alguns anos a feliz iniciativa da fundação de numeroso grupo de estabelecimentos de investigação no seu ultramar. Entre eles cito,, com conhecimento directo, o belo Instituto Francos da África Negra, em Dacar; mas há outro em Brazza-ville o Instituto de Madagáscar há o da Oceânia, etc.
A Bélgica tem há muito a Fondation Universitaire e outras organizações de investigação. No Congo, além do Ineac, criou há pouco o Irsac, que teve como fundo inicial 400 milhões do francos belgas, sob a forma de títulos do Estado de 4 por cento, e recebe de subsídios do Estado e outras entidades quase outro tanto como o rendimento anual daquele fundo. O Irsac tem já em funcionamento ou em organização cinco ou seis centros de investigação científica.
A Grã-Bretanha, além de possuir o British Council, Commitee de Investigação Científica Colonial e outros estabelecimentos, como os de Kew, Rothamsted, etc., destina à investigação científica colonial 10 por cento do Fundo de desenvolvimento e bem-estar colonial. Esse Fundo é constituído por 10 milhões de libras anuais, dos quais 1 milhão é para a investigação.
A Holanda, apesar da grave crise do seu domínio colonial, criou há pouco em Leiden o Afrika Institut e todos conhecem o grandioso Instituto Colonial de Amsterdão.
É inútil citar os Estados Unidos no que respeita a organizações e institutos de pesquisa científica ...
Evidentemente, não precisamos nem devemos entregar a estrangeiros a tarefa de estudar os nossos territórios, de inventariar os recursos e possibilidades destes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nós temos capacidade para realizar esses estudos integralmente, quer na metrópole, quer além-mar.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Délio dos Santos: - Se não tivermos homens, devemos prepará-los.

O Orador: - Mas se não quisermos realizar essa tarefa, não poderemos fechar a porta aos estrangeiros que queiram, em nome da Ciência universal, efectuar tais estudos.
A investigação cientifica não é apenas uma questão de leis e de dinheiro. Há uma confusão frequente entre investigação científica e outras actividades científicas de carácter que poderemos dizer rotineiro. Tem carácter cientifico os serviços de saúde, actividades industriais, actividades agro-pecuárias, escolas, etc. Mas uma enorme parte das actividades destas entidades pode não ser de pura investigação científica, pode ser de aplicação corrente de conhecimentos adquiridos.
Há que distinguir entre a investigação que representa invenção, descoberta, incursão no domínio do ignoto, criação original, e,, por outro lado, a rotina na aplicação da ciência feita. Às vezes não se estabelece perfeitamente essa diferença; e, assim, fazem-se confusões que são prejudiciais quer para uns quer para outros sectores.
Devo dizer que a maior parte dos serviços técnicos tem toda a vantagem em possuir departamentos de investigação científica e em estar em ligação estreita com os organismos da investigação propriamente dita. Uma nova aquisição do saber humano pode conduzir aos mais fecundos e luminosos resultados práticos.
Quanto aos investigadores, é necessário fazer justiça aos que verdadeiramente o são, rodeá-los dum ambiente de carinho e de simpatia.
Repetiu ontem aqui o nosso ilustre colega comandante Sarmento Rodrigues uma frase cuja paternidade me concede e que volto a pronunciar: «nem todos podem ser génios». Para a investigação científica não é mesmo necessário que todos sejam génios.
Os verdadeiros investigadores resultam de uma selecção o de ,um progresso constantes. Já Ramón y Cajal dizia haver perdas inevitáveis. Há indivíduos que, tendo planeado seguir o caminho da investigação, se desviam do curso dessas actividades, revelando que não tinham dentro de si as qualidades indispensáveis para prosseguir na tarefa.
A formação dos investigadores é o problema que está nos primeiros planos de quem se interessa pela investigação científica. Tem de assentar sobre um recrutamento larguíssimo, prevendo-se que muitos candidatos ficam pelo caminho, que muitos não chegam ao fim. Para se ser investigador é preciso uma chama interior sempre acesa, é preciso uma vocação como são as vocações religiosa ou artística, é precisa perseverança, continuidade, dedicação, competência.
O grande químico alemão Ostwald foi, no fim de uma sua aula, abordado por um estudante japonês que lhe perguntou, em nome do seu governo, quais eram as qualidades pelas quais se reconhecia um futuro investigador. Ostwald, colhido de surpresa, não pôde responder logo e reservou para o dia seguinte a resposta, a qual foi, aproximadamente, a de que os futuros investigadores estão entre aqueles estudantes que se não contentam com a ciência fornecida pelos compêndios e pelas aulas e cuja curiosidade não tem limitações.
Mas os investigadores são homens, e a própria Ciência tem as suas exigências materiais. É necessária aparelhagem, são necessárias remunerações e garantias cuja falta muitas vezes desanima alguns indivíduos que poderiam ser investigadores de valor.
E verdade que se tem feito grandes coisas em ciência com escassos meios materiais. Cito constantemente aos meus alunos os exemplos de Fabre e Pasteur; o primeiro tendo como utensilhagem quase apenas uma palheirinha e uma lupa para os seus trabalhos sobre insectos. Quanto a Pasteur, eu próprio vi, em Lille, o material reduzido de que dispôs para as suas descobertas: um microscópio sem coluna articulada, rudimentar, de inferior qualidade, muito inferior aos usados hoje entre nós nos trabalhos práticos dos- alunos dos preparatórios médicos, por exemplo.
Isto não quer dizer, de modo algum, que para o investigador não seja necessário um mínimo de condições materiais, quer para a sua sustentação económica quer para o seu labor cientifico. É exigem-se também condições morais.

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E necessário um ambiente moral, um clima favorável para o seu trabalho. O vulgo chama, por vezes, pitorescamente, «coca-bichinhos» aos indivíduos que se dedicam à investigação, e isso se perdoa. Mas há pessoas cultas, ou soi-disant cultas, e com responsabilidades, que não têm pelos verdadeiros investigadores a consideração que deviam ter. Isso é que se não desculpa. É necessário que os investigadores recebam um apoio constante e efectivo por parte do Estado e do público. É necessária continuidade nos seus empreendimentos e exige-se que a crítica do valor científico dos seus trabalhos, realizados ou em curso, seja feita por quem tenha idoneidade suficiente para a fazer. O labor científico não pode ser justamente avaliado por quem nada percebe do assunto nem do papel e das possibilidades dos investigadores, aos quais se exige frequentemente uma rapidez inadmissível nas suas conclusões e nas suas publicações.
É lamentável a superficialidade leviana de juízos emitidos em certos meios da metrópole e do ultramar sobre algumas actividades sérias de cientistas.
Estes não devem considerar-se, a eles próprios, enfatuada e ridiculamente, como detentores exclusivos dos meios de aperfeiçoamento e felicidade dos homens, mas não devem ser amesquinhados pelos seus rivais ou por quem nada entende das suas actividades.
A eficiência das organizações portuguesas de investigação requer muitas condições:

1.º Que possuam, além do clima e dos meios materiais indicados, um escol de investigadores. A formação destes é a primeira preocupação de todos.
2.º Um critério equilibrado na hierarquização dos temas de estudo.
Dei há pouco uma lista de disciplinas aplicadas e utilitárias relativamente às quais foram concedidas bolsas de estudo pelo Instituto para a Alta Cultura, mas devo dizer que não devemos despreocupar-nos da cultura das ciências puras e especulativas. Aliás, as despesas com muitas destas são relativamente reduzidas.
Cito a propósito uma das minhas preocupações como director da Escola Superior Colonial. E o caso do Instituto de Línguas Africanas e Orientais, em boa hora criado na última remodelação dessa Escola.
Eu peço desta tribuna ao Sr. Ministro das Colónias todo o interesse e apoio para o desenvolvimento dos estudos de linguística indígena. Sinto-me envergonhado, como português, quando comparo a escassez dos nossos modernos trabalhos na matéria com a vastidão dos trabalhos de outros países. As línguas indígenas nos nossos territórios de além-mar são uma das expressões da alma de populações portuguesas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Temos indeclináveis responsabilidades na matéria. Por outro lado, também sinto a necessidade da investigação científica em sectores de evidente aspecto económico e utilitário, como, por exemplo, no que se refere à conservação do solo, ao aproveitamento do potencial hidroeléctrico, etc.
A África sofre uma grave crise de utilização de fontes de energia. As reservas de carvões em África são apenas de 1 por cento da totalidade mundial, enquanto que nos Estados Unidos essas reservas atingem 40 por cento, segundo Meyerhoff.
O aproveitamento do potencial hidroeléctrico como fonte de energia tem de ser estudado cientificamente com largueza em África, onde, podendo ser explorados mais de 270 milhões de cavalos-vapor, são apenas explorados 175:000, quer dizer, menos de 1 por mil, enquanto que a proporção da utilização no resto do Mundo é de quase um décimo: 64 milhões para 675 milhões.
Nos territórios portugueses de África a situação a tal respeito corresponde a estes números gerais, que julguei de toda a conveniência citar, na esperança de ver surgir um indispensável entusiasmo no estudo e aproveitamento dessas fontes de energia. Ainda recentemente um cientista belga fez o cálculo do potencial utilizável do Zaire.
Os estudos agronómicos, o desenvolvimento da pecuária e das pescarias, a protecção das populações, tudo tem sido já aqui ventilado como de alta importância. Ora esses problemas, como também os da indústria, transportes, etc., não devem ser resolvidos sem uma larga contribuição da Ciência.
Para mim, todos os conhecimentos científicos são necessários e úteis e, quanto a algumas matérias, como a linguística indígena, já citada, pouco dinheiro bastaria, lia outras disciplinas muito mais caras, embora tão ou, mesmo, mais importantes, como a conclusão do levantamento cartográfico dos nossos territórios de além-mar e o desenvolvimento dos serviços estatísticos.
Sei que há trabalhos preparatórios para o recenseamento da população de 1950, quer na metrópole quer no ultramar. Foram publicados a esse respeito diplomas legais e há instruções relativas à matéria.
Devo dizer que o assunto me preocupa seriamente, porque nós não podemos, quer na metrópole quer nas colónias, fazer em 11 50, sem grave prejuízo moral e material, recenseamentos que não sejam melhores do que os de 1940.
Todos os elementos estatísticos são indispensáveis. Não se pode seriamente trabalhar em administração, fomento, economia, etc., sem dispor de um largo manancial de séria informação estatística.
3.º Outra condição que se requer é a autonomia mais ampla possível das organizações da investigação científica, com as responsabilidades concomitantes e naturalmente dentro dos princípios éticos e sociais que caracterizam a nossa melhor tradição, o nosso papel histórico.
De momento, urge: aumentar o número de investigadores, formando-os devidamente e fornecendo-lhes as condições necessárias de trabalho; individualizar e engrandecer o Instituto para a Alta Cultura e designar as respectivas subsecções.
Pelo que respeita à Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, torna-se necessário constituir a sua comissão executiva. Esta Junta está há muito sem comissão executiva, funcionando apenas com um membro desta, o secretário, Dr. Luís Silveira, a cuja dedicação e inteligência aproveito o ensejo para prestar a minha homenagem.
Torna-se imprescindível nesta Junta designar comissões especializadas para orientação dos trabalhos dos vários sectores e para apreciação dos trabalhos realizados ou em curso. Devo esclarecer a este propósito que todos os investigadores e centros de estudos, quer do Instituto para a Alta Cultura, quer da Junta das Missões Geográficas, são obrigados a apresentar relatórios das suas actividades. Portanto, há sempre uma base de apreciação do valor da tarefa levada a efeito.
É preciso ainda fundarem-se nos territórios africanos de Portugal institutos polivalentes de investigação, análogos aos que já referi como existentes na África Ocidental Francesa, no Congo Belga, em Madagáscar, Oceânia, etc. Esses institutos são destinados a manter uma maior e preciosa colaboração entre os elementos da metrópole e os do ultramar que se ocupam da investigação ultramarina. Até agora esses elementos têm estado quase isolados, pois não existem sequer revistas nem boletins bibliográficos que estabeleçam entre eles um imprescindível intercâmbio de informações.
É necessário intensificar ao máximo essa colaboração, como outras: Universidades, Instituto para a Alta Cultura, Junta, serviços técnicos metropolitanos e ultrama-

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rinos, a do todos os elementos úteis para o efeito. Todos não somos demais!
Não endeusamos unia ciência destituída duma elevada intenção moral, mas proclamamos a benemerência duma actividade científica séria, inspirada em nobres intuitos de progresso e bem humano.
Não nos confinamos também numa visão de exclusivo imediatismo utilitário. A posteridade, se subordinássemos a tal imediatismo todo o nosso esforço, não nos perdoaria jamais havermos desprezado filões da alma humana mais preciosos do que todos os filões de minérios ambicionados, do que todos os tesouros das entranhas da terra.
E, quando a acção governativa e a vida moral e cultural das nações mais civilizadas se manifestam num crescente reconhecimento do alto valor material, social e espiritual da Ciência, não nos deixemos ficar lamentavelmente para trás como velhos fidalgos arruinados de outrora, que não sabiam ler nem trabalhar utilmente.
Confio, Sr. Presidente, nas altas intenções do Estado e na boa vontade da gente portuguesa para o prosseguimento feliz, orientação e intensificação da grandiosa e complexa tarefa que urge levar a cabo.
Não partilho a opinião de que entre a política e a especialização científica há antagonismo ou diversidade fundamentais. Uma das bases da política, entendida esta no seu justo sentido, é a Ciência. E temos no nosso país um glorioso exemplo dado por alguém que, em vez de procurar a fácil popularidade sentimental das improvisações espectaculosas, destituídas de séria base de estudo e ponderação, aplica ao Governo de Portugal a elevação, a prudência, a crítica, a calma, a perseverança, o escrúpulo, a lógica, o cuidado de rigorosa objectividade que são, afinal, a atitude, o método do cientista na pesquisa da verdade e do bem colectivo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A investigação científica em Portugal espera confiadamente de Salazar o seu indispensável desenvolvimento, para serviço da verdade, da Pátria e da cultura universal.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. André Navarro: - Sr. Presidente: subi a esta tribuna com o fim de dar o meu modesto concurso não apoiados à análise do problema posto a esta Câmara, em aviso prévio e por forma magistral, pelo ilustre Deputado Sousa da Câmara.
Cerca de vinte anos ao serviço do ensino e da investigação científica permitem-me, de facto, fazer já uma ideia clara do valor dos resultados conseguidos, no ambiente universitário, pela íntima comunhão do investigar e do ensinar. Teremos já conseguido na escola o óptimo? Teremos ficado pelo bom, ou pelo contrário, estaremos hoje convictos de que trilhamos caminho errado? Devo declarar, posso dizê-lo hoje, que me sinto satisfeito e que foi mesmo com grande alegria que ouvi há dias da boca de um ilustre professor reitor de uma Universidade americana, hoje trabalhando nas organizações do Plano Marschal, que a Escola que tenho a honra de dirigir representa destacado exemplo nesta Europa de tão longa cultura e mesmo uma posição de realce quando comparada com estabelecimentos similares do Novo Mundo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Eis por que não sou pessimista quanto ao clima que nos rodeia, pois este é, de facto, de horizontes bem claros de optimismo. Eis também por que, embora seja modesta a contribuição que possa dar a esta assembleia política, me julgo no dever, para a esclarecer, de vos vir falar.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: a investigação científica nasceu da própria vida humana. É investigador, embora muitas vezes sem o saber, todo o homem, desde o mais modesto, oriundo de qualquer recôndita aldeia, ao mais culto ornamento do uma Universidade ou de um instituto de investigação. Os ignorados transmontanos e os beirões, que utilizam, há séculos, o bolor do pão de milho ou do de centeio para ajudar a sarar as suas chagas não teriam sido, por exemplo, os grandes-pequenos fachos que iluminaram Fleming na descoberta do precioso antibiótico a penicilina? Não terá sido o estudioso hortelão dos arredores de Lisboa, que guia a época das sementeiras pelos minguantes e crescentes, o primeiro a lançar um raio de luz nos novos horizontes da forçagem baseada nos modernos conhecimentos do fotoperiodismo, hoje largamente considerado nas técnicas de obtenção de primores hortícolas e florais? ...
E, assim, uma multidão imensa de exemplos que podíamos destacar em apoio da tese que estas pequenas verdades, conseguidas por homens desconhecidos, constituem, de facto, a forte argamassa que consolida a construção do grande edifício da Ciência. Mas como este, pelo seu volume, é minúsculo perante o incomensurável monumento da verdade absoluta, podemos fazer ideia de como terá de continuar, no espaço e no tempo, o trabalho insano desses modestos obreiros da verdade. É este o âmbito que separa o finito do infinito, isto é, o do somatório das pequenas verdades do da Verdade Eterna, que nos leva a afirmar que a seiva, para que a investigação continue, não poderá, na realidade, nunca estancar.
Teremos, pois, sempre dúvidas para investigar na dúvida e construções maiores para realizar na fé.
Digamos assim, a investigação científica brota e nasce, ela pode ser cultivada, mas não a podemos a nosso belo talante matar, porque isso seria aniquilar a própria vida.
E o clima que a vivifica terá sido e será neste abençoado torrão verdadeiramente criador?
Façamos um pequeno esforço olhando o trabalho do passado, daqueles do mesmo sangue e oriundos da mesma cepa.
Foi em pleno clarão medieval que nascemos. E não tardou muito que o Fundador e Conquistador do que somos tivesse dado viço ao que tem sido, em todos os tempos, factor de real progresso - a procura das verdades.
Ele próprio, no intervalo de canseiras de árduas batalhas, acompanhado pelo culto superior da Ordem do Cister, marcava na ubérrima região de Alcobaça os alicerces do templo que tinha a coroá-lo não só o símbolo. sagrado da alta missão como também o da Ciência que a ajudaria a erguer e a realizar através o Mundo.
Numerosas granjas-modelos foram assim criadas no coração do território nacional. Nelas fazia-se ciência e extensão cultural. Eis como possuíamos, já no século XII, muito antes de outros países, verdadeiras estações agrárias. Estes os primeiros passos. Mas, dados eles, nunca mais, até hoje, acabámos de marcar novas conquistas no campo da investigação científica.
Um rei lavrador em tempos igualmente recuados foi responsável pelo primeiro trabalho de larga projecção no campo florestal - o célebre pinhal do Rei.
Conquista da terra, combate à erosão, criação do madeiro das descobertas-três degraus com que antecedemos, em muitos séculos, outros que se seguiram na mesma esteira. A tradição continua. Progresso incessante das ciências geográficas, astronómicas e náuticas, de perto estimulado por essa notável plêiade de figuras reinantes, é o continuar da caminhada,

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Depois um sonho antigo transformado em realidade por um sábio infante. E depois ainda todo o nosso período áureo que dos descobrimentos se denomina. Durante ele difundimos pelo Mundo a civilização de que éramos expoente máximo, chamando para as nossas hostes humanidades doutras terras e doutras paragens.
Assim também brotou, da nossa Pátria, uma nova pátria. Todo esse incomensurável esforço científico da Renascença, quando começou a frutificar do recolhimento medieval, teve como substracto fecundo as descobertas de quinhentos. Física, química, botânica, zoologia, astronomia e tantas outras paisagens desbravadas pelo pensamento, são flores do nosso sangue, criadas por essa multidão de homens sabedores que vão desde os Pedro Nunes aos Anchietas. Esta a verdade - esta uma tradição científica que nunca se interrompeu.
Chamou-nos o mar, e o mar foi descoberto. Chamou-nos depois a terra, e, então, ao que assistimos?
Grandes pensadores e realizadores são então postos ao serviço da grei e a terra portuguesa, pobre e ingrata, é desbravada, de lês a lês, com ciência. E da mesma forma que no mar, antecedemos muitos, de alguns séculos, na esteira do bom caminho.
Construímos um gigantesco anfiteatro jóia preciosa entre duras montanhas - e nele criámos a cepa das virtudes. Sofrendo, comendo pedras e bebendo sol, na frase de Junqueiro, destilou néctares que constituíram e constituem hoje só por si uma das maiores conquistas que o engenho e o espírito humano foram capazes de tirar da rocha estéril. E vemos inúmeros povos franceses, ingleses, sul-africanos, americanos do norte e do sul - ávidos de imitar o que foi há muito produto exclusivo do labor e do saber de gente portuguesa.
Plantados por encostas e turras áridas de montanhas arvoredos valiosos - olivais, montados de sobro e azinho, gigantescos soutos, que hoje são multi-seculares, porque foram, decerto, há muitos séculos plantados ou semeados.
Esta outra verdade, que não devemos ignorar, especialmente quando povos vizinhos não tiveram o mesmo cuidado em povoar território igualmente agreste.
Continuamos, pois, através dos séculos, a investigar e realizar no sentido de dar mais fecundidade à terra portuguesa. E o que não fizemos? Possivelmente aquilo que fizeram povos mais novos - cultura mineira da terra - exploração activa e total, numa geração, o que é pertença de inúmeras, e depois levantar acampamentos para explorar outras paragens enquanto as houver.
É fácil pois dizer mal, mas é muito mais difícil pesquisar com ciência as razões históricas do muito que possuímos. Eis por que continuo e continuarei a ser um optimista. E não posso deixar de o ser. Nestes tempos que todos vivemos e assistimos, quando o Mundo se desmorona, quando caem impérios, quando se perde o amor às pátrias, o nosso património valoriza-se, e, para que pudéssemos caminhar com o ritmo do passado, foi necessário apenas não perder de todo o fio da tradição.
Devemo-lo à Providência e ao seu Fruto, o grande Chefe que nos deu - Salazar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Foi neste clima de franco optimismo que Portugal, por intermédio de um dos seus mais destacados cientistas, penetrando profundamente nos mais recônditos segredos da biologia, chamou, mais uma vez, a atenção do Mundo culto. É neste clima, em que tudo germina e cresce, que continuaremos a assistir a novas e brilhantes vitórias.
Infelizmente, não sabemos muitas vezes fazer o ponto e julgam-nos inferiores ou caminhando para o abismo. A geração dos velhos do Restelo não pára. Não pode
parar, exactamente como o bem exige o mal para florescer com esplendor.
Isto o passado longínquo e o muito próximo. E o futuro? Apenas algumas palavras mais e perdoem-me se não for ainda mais breve.
Estamos, de facto, em presença de um momento assaz difícil. Menos de um hectare de terra cultivável por indivíduo. Províncias de bom clima e solo regular, com densidades de população que ultrapassam as de muitos países industriais, e territórios de clima africano com mais gente de que a que podem sustentar. Isto com realismo total é o panorama que se nos apresenta. Para o resolver só teremos uma solução. Água. e mais água, enquanto houver água para regar as leivas ressequidas.
Para o resto das terras, encostas e mais encostas delgadas ou descarnadas, medianas ou pobres de fecundidade, só nos resta continuar a política de florestar, e esta com ciência e consciência. Mas é este na realidade o caminho que estamos seguindo, e a passos tão largos quanto as forças nos permitem.
Para acompanhar devidamente este progresso só ousamos pedir que sejam dotados suficientemente, mas sem luxo, as unidades que trabalham, Universidades, institutos e estações de aquém e além-mar e que se criem com largueza de vistas dentro do apertado das nossas posses o que falta para podermos continuar.
São estas as minhas últimas palavras. Continuemos hoje a seguir as pisadas que não são só de ontem e que não serão certamente também só as de hoje porque serão também as de amanhã.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sousa Rosal: - Sr. Presidente: impelido por preocupações de ordem profissional, venho juntar algumas breves palavras às que aqui tem sido proferidas, com tanta eloquência e saber, acerca da investigação científica em Portugal.
A investigação científica é uma actividade que interessa à defesa nacional e só por isso é justificável a minha intervenção, muito modesta (Não apoiados) e apenas com intuito informativo e de aplauso.
A defesa nacional é um problema premente para todas as nações, nesta hora alucinante, em que as forças do mal andam perturbando as boas relações dos homens e a paz entre as nações.
É nosso dever colaborar sincera e activamente na consolidação desta precária paz
esta precária, em que vivemos. A isso nos obriga a nossa civilização e interesses no Mundo e está conforme com o preceito constitucional que indica a cooperação com os outros Estados, na preparação e adopção de soluções que interessam à paz entre os povos o ao progresso da Humanidade.
E porém obrigação imperiosa não descurar e manter em dia a mossa preparação para a guerra.
O problema da defesa nacional tem de ser estudado à luz fria das realidades e obrigações presentes. Nele têm de ser devidamente consideradas todos os nossos recursos naturais, industriais e científicas. Não se deve esquecer na sua concepção o seguinte pensamento de Clausewitz «a arte da guerra não é mais do que o resultado da reflexão ponderada sabre todas as situações susceptíveis de ocorrer num conflito».
A guerra passada foi uma guerra de máquinas, a futura ainda o será, em muito mais alto grau, a técnica terá de intervir de maneira preponderante, condicionando, até certo ponto, os planos estratégicos e tácticos. As novas armas actuando mais longe e com maior poder de destruição, a grande mobilidade dos meios de transporte e a mecanização de funções próprias do homem

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exigem, alem de mais disciplina e preparação, maior capacidade intelectual dos componentes das forças armadas, desde o alto comando até ao simples soldado.
Na arte da guerra o braço vai cedendo cada vez mais o lugar à inteligência
O homem é ainda o elemento mais precioso das forças armadas. Temos de continuar a olhar para ale com o carimbo e cuidado que merece, dedicando especial atenção u sua instrução militar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A instrução militar é no fundo um problema de educação, ma adaptação dias suas qualidade físicas, intelectuais e morais ao clima em que tem de viver nas instituições militares paira melhor compreender e cumprir para com a Pátria a sua dupla missão de cidadão e solidado em todas as situações e circunstâncias em que se encontre. A educação que recebe nas instituições militares melhora essas faculdades, permitindo dar-lhe maior resistência física, domínio nervoso, personalidade e melhor moral.
Para uma instrução militar mais eficiente é indispensável um plano de educação nacional que acompanhasse a juventude desde a escola primária à idade militar, com o propósito de dar cultura física e inspirar o amor da Pátria, o culto da honra e da lealdade e o cumprimento do dever, desenvolvendo e intensificando a acção da Mocidade portuguesa.
Assim se facilitava em muito a missão educacional dos organismos militares, reservando-se a permanência dos homens nas fileiras para lhes dar os conhecimentos tácticos e técnicos indispensáveis ao automatismo que é preciso ter para integral aproveitamento dos engenhos de guerra e do terreno em frente do perigo. Na elaboração desse plano teriam de intervir, aliem dos organismos superiores da defesa nacional, as Universidades e as escolas, com os seus especialistas em assuntos de instrução, reunidos num centro de investigação e experimental que, acompanhando a evolução do social e as exigências da técnica, seria como que um grande laboratório psíquico posto ao serviço da Nação, na defesa, do seu património mais querido e valioso - a Juventude -, alvo tão procurado pelas ideias dissolventes.
Aí terá a investigação científica meio e instrumento apaixonante para um vasto e útil labor.
Os apóstolos da Ciência têm sido forçados a desviar a sua acção e pensamento do caminho da paz e do bem para que Deus os fadou para o das lutas e do ódio, numa deformação de sentimentos compreensível e necessária, quando encaminhada para combater os maus desígnios e dar segurança. Isto porque todos os. esforços e boas vontades para se chegar a um sincero entendimento que leve à verdadeira paz se exerce em vão e se projecta no vácuo. Parece que a Humanidade anda empenhada na sua própria destruição.
Os homens responsáveis pelos destinos do Mundo, sabendo que o uso da força redundará num suicídio colectivo, (procuram, com alianças e pactos regionais, que se fazem e desfazem, e na aceitação de riscos colectivos adiar a catástrofe, já que não conseguem encontrar o meio de a evitar. Tudo aconselha a estruturar a defesa nacional de modo a prepará-la para todas as eventualidades.
A colaboração da Ciência com a arte da guerra é indispensável exercer-se num entendimento perfeito, para resolver os problemas que forem postos pela defesa nacional.
A investigação científica nos seus trabalhos para a defesa nacional não se orienta apenas no sentido de procurar os meios de destruição e morte. Tem também objectivos construtivos no estudo para evitar ou contrariar esses meios e no que se destina a melhorar as condições económicas e sociais.
Coincidem, geralmente, com os períodos de guerra ou de preparação para ela as épocas de maior desenvolvimento científico.
Os Estados, que em períodos normais se mostram avaros e descuidados, sentem, em períodos de emergência, a necessidade de mudar de rumo para se defenderem.
Os homens da Ciência, estimulados pelo patriotismo e apoio sem limites que o Estado lhes presta, redobram então de actividade. Aceleram os estudos em curso. Renovam as experiências arquivadas com outras finalidades. Trazem para o campo experimental ousadas ideias.
Desta onda de actividade nascida da segunda guerra mundial e da sua preparação grandes benefícios foram trazidos para a Humanidade na medicina e higiene, já aqui referidos, nos transportes, nas transmissões e na alimentação.
Os transportes aéreos adquiriram maior velocidade, raio de acção, segurança e capacidade de transporte.
As transmissões deram-nos o radar, um dos mais líeis inventos que a guerra nos legou e cujos princípios básicos foram descobertos em 1925 por dois físicos da marinha americana; só fez a sua aparição no campo prático na batalha de Inglaterra, contribuindo grandemente (para a brilhante vitória da R. A. F. sobre o então poderoso poder aéreo da Alemanha.
A maior actividade científica desenvolve-se presentemente em volta da utilização da energia atómica, nu exploração dos seus efeitos químicos e biológicos, no desejo de tirar dela bens que possam ser postos à disposição da Humanidade, que ela própria ameaça destruir.
Procura-se neste momento descobrir, se já não foi descoberto, o segredo da clorofila na influência da vida das plantas, no seu contacto com o Sol, com o ar e com u água. Está a ser tentada, por contrôle genético, a criação de novas plantas. A América estuda a obtenção de uma árvore da borracha que possa dar-se e produzir nos seus terrenos e clima. Resta-nos ainda a esperança de que os homens a empreguem apenas neste sentido e que o seu poder maléfico nos fique na memória apenas coimo um pesadelo.
Os trabalhos realizados durante a guerra e em curso para a defesa nacional estão a fazer-se sentir também na alimentação ida população civil, pondo à sua disposição melhores alimentos sob o ponto de vista higiénico. Uma alimentação suficiente e agradável, comida a tempo e horas, é factor importante para a moral do Exército e paz social.
Na sua vasta e complexa actividade há a considerar uma série de problemas que carecem do carinho da investigação científica. Quero referir-me à produção, aos acondicionamentos, ao transporte, à conservação, distribuição e valor fisiológico. Até no psíquico o temos de considerar, pois o medo e monotonia influem na aceitação de certos alimentos pelo homem.
Na América do Norte trabalhavam, mesmo depois da guerra, sobre investigação ligada aos assuntos de alimentação, além do Instituto de Rações para as Forças Armadas, oitenta e cinco Universidades e escolas técnicas e ainda quinhentas empresas industriais. Conseguiu-se, também já depois da guerra, aperfeiçoar os processos de conservação e desidratação de produtos.
No que se refere a embalagens foi possível conseguidas para permitir a exposição de produtos alimentares ao ar livre em todas as condições atmosféricas sem que sofram alteração. Estuda-se a construção de invólucros destinados a manter alimentos congelados por longo tempo, sem necessidade de nova refrigeração. Foi feita

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uma experiência em que se conseguiu conservar carne congelada num desses invólucros durante trinta dias, à temperatura de 27º C.
Estes estudos estão orientadas para isolar camiões, vagões e navios com dispensa do emprego do gelo ou de refrigeração mecânica. Se esta experiência for. concluída com êxito, podem ser construídos novos tipos de geleira e novas possibilidades serão encontradas para o isolamento térmico dos prédios. Estas descobertas satisfazem preceitos higiénicos, poupam transportes e dispensam instalações, o que em campanha é muito importante para a vida das tropas.
Há dois ramos da Ciência - a geologia e a meteorologia que têm de dar às forças armadas, além da sua contribuição no campo da investigação científica, a de acompanhá-las tecnicamente quer nos períodos de planeamento quer nos períodos de desenvolvimento das operações.
Para que os elementos a fornecer sejam eficientes é necessário que os geólogos e os meteorologistas também conheçam a ciência militar, para que não resultem, inúteis as informações na sua aplicação e oportunidade. Hoje não basta conhecer os elementos topográficos do terreno; é também necessário saber a sua natureza geológica.
Da descrição científica sob o ponto de vista geológico tiram-se conclusões de ordem militar. A sua praticabilidade interessa à circulação. A sua consistência à organização do terreno. Destas indicações podemos concluir acerca das possibilidades de actuação fora das estradas e de instalação do organizações defensivas e subterrâneas.
Os alemães, na aplicação de um dos princípios imutáveis da arte da guerra -economia de forças -, conseguiram em Itália, com inferioridade de efectivos, manobrar com êxito utilizando com perfeição o terreno.
Dispunham para isso nesse teatro de operações de cerca de 600 geólogos. Apesar de tudo, só a partir da primeira guerra mundial é que apareceram nalguns países beligerantes as primeiras necessidades de investigação científica organizada para o serviço da defesa nacional.
A segunda a guerra mundial revelou-mos uma Alemanha equipada com uma poderosa organização científica, servida por grandes homens de ciência, o que lhe permitiu combater com grande inferioridade de recursos, durante cinco anos, contra inimigos poderosos. O valor das suas aplicações científicas impressionou de tal maneira as Nações Unidas que estas fizeram seguir na peugada das tropas de invasão missões encarregadas de pesquisar a ciência alemã.
Por este processo puderam tomar conhecimento de valiosas descobertas, reveladas nos patentes de invenção e nos documentos que apreenderam. O que representou um valor incalculável para a economia das Nações Unidas, nos ensinamentos e no tempo e dinheiro que pouparam nas investigações.
Entre o que foi apreendido encontrava-se o processo para a síntese da gasolina pela hidrogenação do carvão e o processo completo para a síntese da borracha. Esta última apreensão representou para a América do Norte uma economia, de dois biliões de dólares, que se destinava à investigação para o referido fim e que foi cancelada pelo Congresso e teve repercussões de ordem estratégica, mudando a orientação dais operações do Pacífico, por ter deixado de ser urgente obter ali a, borracha.
Presentemente, é a América do Norte que exerce a investigação científica, no mundo conhecido, em maior escala e profundidade. A investigação científica está a cargo de vários organismos governamentais, particulares e privativos do Exército, agrupados para efeito de coordenação e exploração das suas actividades, com vista à defesa nacional. Estão classificados em quatro categorias e a cada um cabe serviu um determinado escalão; o presidencial, ou ministerial, o do gabinete do comandante das forças armadas, o da estratégia e o da táctica. Assim, a Ciência está presente em todos os domínios que orientam e interessam à defesa nacional. Para lhe dar comando único foi apresentada ao Congresso uma proposta para criar a Fundação Nacional das Ciências.
Evidentemente não podemos ter a veleidade de nos colocarmos a par idos grandes países, no que respeita à organização e apetrechamento da investigação científica, por serem diferentes as mossas possibilidades e necessidades. Constatamos, parem, que estamos ma presença de um alto problema que é preciso resolver no quadro nacional a bem da Humanidade e do nosso prestígio ao Mundo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A nossa estrutura financeira, económica, industrial e militar não recomenda a exploração de indústrias pesadas especializadas na construção de material bélico; temos que considerá-la, contudo, naquilo que é capaz de contribuir para a defesa nacional em períodos normais e na sua adaptação a períodos de emergência, e para esta hipótese temos de chamar a atenção da investigação científica.
As forças aromadas devem dispor de um órgão que superintenda e coordene a acção dos seus organismos privativos e estabeleça o contacto com os organismos similares dos outros departamentos do Estado e, entidades particulares, com o fim de saber das possibilidades que a Ciência oferece mo domínio da defesa nacional e transmitir, controlar e receber o que é conveniente investigar em seu proveito.
Com os elementos de que a investigação científica dispõe presentemente em Portugal julgo que seria possível fazer desde já alguma coisa em proveito da defesa nacional. Trabalhar .no sentido de descobrir e saber que meios técnicos podem ser utilizados para elevar ao máximo a nossa produção industrial, agrícola e pecuária e avaliar da nossa independência económica, elemento importante a ter em conta na concepção da defesa nacional. Trabalhar sobre medicina, veterinária, higiene, alimentação, fardamento, equipamento individual e de estacionamento, com particular interesse para as tropas que se tem de deslocar, estacionar e combater nas nossas colónias, tomando em linha de conta as diferenças de clima e os aspectos financeiros e económicos dos nossos recursos em todo o Império.
A investigação científica não deve confiar-se nos limites das exigências da nossa estruturação económica, industrial e militar, por ser uma actividade que se tem de desenvolver num ambiente de plena liberdade intelectual para atingir o seu alto objectivo de servir o bem geral.
O senso prático e o patriotismo recomendam que no seu desenvolvimento seja considerado devidamente o interesse nacional, o necessário e o urgente.
O contacto com as fontes de investigação científica de outros países tem, além do interesse subsidiário para a sua actividade, interesse político-militar, pelas indicações que pode fornecer acerca das suas intenções bélicas. Estamos na presença de um dos mais altos problemas nacionais, pelo domínio que exerce sobre todos os ramos de actividade humana.
A inteligência e a imaginação poderosa e audaciosa da gente portuguesa, tantas vezes afirmadas em empreendimentos de projecção universal, constituem capital precioso e seguro para movimentar tão grande empreendimento.

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Termino, desejando que ele se possa inscrever no quadro de honra das grandes realizações nacionais da nossa época de ressurgimento.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Cortês Pinto: - Sr. Presidente: tenho ouvido com o maior interesse os ilustres Deputados que se têm ocupado da investigação científica. Se subi a esta tribuna foi para dar sinal de que a investigação científica interessa a todos. Aos sábios porque são sábios, aos outros, como a mim próprio, porque através dela se sente mais próxima a presença intelectual de Deus.
Em face do tema da investigação científica, desdobra-se a nossos olhos, como num caleidocóspio, toda a vasta paisagem da sensibilidade da inteligência e do saber humano, que anais mão são do que o sinal do espírito em face da criação divina.
Pairam os sentidos sobre as maravilhas do Mundo. E a alma, comunicando através deles com o esplendor do Universo, já se não satisfaz nem com o prazer sensorial, nem com o arroubo espiritual, nem com a ciência das realidades objectivas de apreensão directa.
Anseia por fundir o mundo subjectivo mo mundo objectivo. E por virtude da investigação científica, os dois mundos começam a interpenetrar-se, estabelecendo-se uma zona de transição que irá ... até onde Deus quiser.
Conduzidos pelo espírito, os sentidos, munidos de novos elementos de investigação, alcançam uma capacidade de radiação penetrante, para valorização da qual o homem passa de observador a criador. No anseio de transcender a natureza sensível, dá origem a engenhosos dispositivos, a delicadíssimos aparelhos, a especializadíssimas técnicas e munido de meios da maior subtileza entra deliberadamente no mistério. Olha à sua roda e penetra na íntima estrutura do Universo. Ergue os sentidos até aos astros e, como um Prometeu dessgrilhoado por Fausto, ávido e inquieto, sonda o mistério das essências.
E o ininteligível torna-se inteligível, o indefinível entra na categoria do definível e o inefável começa a poder ser dito!
O Verbo ganha assim a potência bíblica do seu significado no início tão conciso e profundo do Evangelho de S. João, quando explicando que ao princípio era o Verbo o Apóstolo fundia na essência da palavra a potência e o acto, aliando o inteligível ao exequível.
A investiga cão científica torna-se a maior ansiedade da nossa época, esta época em que o homem, olhando a matéria, aparentemente densa e inerte, verificou que a sua densidade em menor do que sua atmosfera interior; que dentro do que se assemelhava inerte gravitavam em «nas órbitas novas constelações; e onde parecia haver um estado de inteira passividade surgia uma vida oculta estuante de energia.
Cerca de dois mil e quinhentos anos levou o homem a completar pela investigação científica o que Empédocles de Agrigento, Epicuro, Demócrito e outros haviam maravilhosamente concebido na claridade quase divinatória da inteligência helénica!
Como não há-de deixar-se arrebatar pela investigação científica o homem que entra na civilização justamente quando troca a flecha e a aljava de primitivo caçador de feras pela complexidade de uma aparelhagem infinitamente delicada, para cumprir o seu novo impulso de eterno caçador, de caçador de enigmas!
É ao serviço deste destino superior, que Deus lhe marcou ao fazê-lo rei da criação, que cada vez se torna mais imperiosa a necessidade da investigação científica.
Porém, no intenso labor de abarcar o Universo em extensão e em intimidade, o indivíduo torna-se cada vez mais insuficiente para acompanhar a grandeza do empreendimento. Torna-se imprescindível conjugar esforços, agregar energias, acoplar, sintonizar colaborações.
O individualismo entra novamente em crise. A partir de certo ponto, o indivíduo nada pode sem o auxílio do grupo e o grupo nada alcança sem o auxílio do Estado.
Por sua vez, o Estado, em meio do tumultuar da vida científica das outras nações, sente a necessidade de que a nação se afirme perante a sua própria consciência moral e intelectual, porque só a partir desse estado de consciência poderá impor o respeito pela sua própria dignidade e manter sempre actual o direito histórico da sua existência.
O que até certo momento poderia ser considerado como uma dilecção do espírito passará num novo estádio da vida social a ser um mandamento imperativo da própria existência. No domínio do progresso nada existe de supérfluo paira a, nação.
Se é sina do indivíduo que, paira evoluir no sentido da civilização, se torne cada vez mais escravo daquilo mesmo que era ontem prazer supérfluo da sua sensibilidade ou simples curiosidade do seu espírito, muito mais é condição de vivência do próprio Estado mo concerto das nações o acompanhá-las no seu eterno dever, submetendo-se à imperiosa necessidade de fomentar as afirmações de inteligência operante do seu povo. Não apenas a sua inteligência no campo especulativo, mas ainda em acto eficiente no campo das ciências puras e no das ciências biológicas e naturais.
De resto, não existe ciência pura que não esteja em vias de ser ciência aplicada. As próprias actividades especulativas desinteressadas, ao grupo das ciências culturais, cabe-lhes a glória de serem na verdade a fonte espiritual de todas as outras, pelo seu imprescindível influxo criador.
Mantém-se a absoluta necessidade do- seu estímulo para lançar a inteligência mas grandes empreendimentos conseguidos para além de todas as técnicas.
A investigação científica não deve. pois esquecer o. campo das actividades culturais ou nosológicas, embora o seu apetrechamento se torne, sobretudo, indispensável mos vastos campos laboratoriais das ciências de experimentação material ou cosmológicas.
Postas as coisas nestes termos, em que a investigação científica abrange na verdade todos os campos, será conveniente insistir em que há alguma coisa de fundamental em todo o trabalho e desenvolvimento científico. Alguma coisa de que as próprias ciências "de observação hão-de continuar eternamente dependentes-o Livro.
JÉ dele que particularmente nos ocuparemos ao intervir na discussão deste problema, porque não há ciência que possa eximir-se de ser, em certa medida, ciência livresca, recorrendo de cada vez mais frequentemente ao vasto mundo material e intelectual do livro.
O livro e o laboratório completam-se. A própria investigação histórica lança mão de todas as ciências para se aperfeiçoar e penetrar na noite do passado, erguendo na sua mão, cada vez com maior certeza, a lâmpada da verdade. E assim se socorre da colaboração das ciências físico-químicas e biológicas para percorrer com segurança todos os sectores deste munido material onde decorre a vida espiritual do homem e onde persistem através das idades os vestígios das suas actividades sociais, morais, intelectuais, e artísticas.

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Numa palavra, todas as ciências, se tornaram, subsidiárias para a investigação de tudo quanto, por interessar mais profundamente ao sentido humano e sobrenatural da existência, mereceu a mais nobre classificação que até hoje um grupo de estudos usufruiu: Ciência das Humanidades.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Seja qual for o campo das ciências, é pois o livro o elemento sempre imprescindível a qualquer investigação científica. Porque de cada vez menos a Ciência permite que o homem se baste a si mesmo. E, supondo que uma cerebração privilegiada pudesse em certo momento caminhar sem o auxílio dos outros e dispensar os livros que lhe deram a formação e a informação, não poderia ainda assim dispensou-se de fazer o seu livro. O livro dos seus próprios apontamentos. O registo das aquisições realizadas, a que necessita de recorrer a cada momento à procura de inúmeros, de tabelas, de normas orientadoras, fixadas a cada passo para servirem de apoio ao prosseguimento do trabalho mental e material.
E o que principiou por ser um livro particular passará em breve a ser necessàriamente um livro de todos.
Imprescindível à economia do esforço, sem auxílio do livro não se conseguiria avançar um passo no campo da inteligência. O trabalho mental tornar-se-ia inoperante e obrigaria a inteligência a esgotar na manutenção das aquisições o que devera utilizar mo progresso da sua marcha. Em cada dia que avança o saber ocupa anais lugar.
No campo das investigações históricas e das humanidades impõe-se particularmente, além do trabalho especulativo da hermenêutica, o trabalho de investigação científica da diplomática e a bibliografia. A análise intrínseca e extrínseca do documento. E tanto neste sentido como no do progresso das ciências físico-químicas e bionaturais impõe-se a organização das bibliotecas e ficheiros, de forma a corresponder às necessidades actuais de qualquer investigação científica, o que, digamo-lo desde já, está muito longe de acontecer nas nossas bibliotecas. E porque o problema do livro é de interesse fundamental para a investigação científica é que me proponho hoje chamar a atenção de VV. Ex.ªs para os cinco aspectos seguintes:
1.º A identificação do documento;
2.º A conservação do documento e do livro;
3.º O restauro;
4.º Instalação de bibliotecas e arquivos;
5.º A sua organização.

Para os três primeiros aspectos, diplomática, conservação e restauro, existem já hoje em vários países laboratórios e oficinas mais ou menos importantes, dotados do que se considera já hoje indispensáveis requisitos.
Entretanto, nenhuma instituição atingiu ainda em todo o Mundo a perfeição, que parece inexcedível, do Instituto de Patologia dei Libro, em Roma.
E esta uma das mais significativas entre as grandes obras que a Itália deve a Mussolini, que a fundou no ano de 1938, sob a direcção do cientista Afonso Gálio.
Organização complexa, de carácter científico e técnico, enfrenta pela primeira vez em toda a sua extensão o vasto problema da bibliologia, numa perfeita colaboração de sábios, de artistas e de artífices.
A par do estudo e tratamento do livro, restauram-se e ressuscitam-se verdadeiramente preciosos cimélios, incunábulos, códigos, pergaminhos, papiros, poritulanos, cartas geográficas, estampas artísticas, miniaturas, papéis de crédito, notas de banco, tudo enfim quanto representa um valor, quer simplesmente de ordem material, quer principalmente de ordem espiritual. Que são afinal os documentos de alto valor espiritual os mais preciosos, muitas vezes até sob o ponto de vista material!
Dedicam-se ao livro, enfim, todos os cuidados de que tanto carecem as nossas bibliotecas e arquivos, aos quais não podem valer só por si a competência e dedicação dos nossos bibliotecários.
Ali se faz a análise microscópica da composição das pastas, do tecido das fibras, o estudo das marcas de água, da homogeneidade dos velinos, da estrutura das vergaturas e pontusais, natureza e sistema das encadernações, massas empregadas, etc.
Radiografam-se pergaminhos para exame dos palimpsestos. Analisam-se tintas, restauram-se autógrafos cujos escritos o sol descorara, o tempo sumira, a água desvanecera ou confundira. Fortificam-se papiros, investiga-se enfim tudo quanto permita identificar, restaurar, revelar textos literários, descobrir falsificações, acautelar a História, proteger a investigação.
Todas as doenças do livro são analisadas e tratadas. A lepra do papel, chagas e pústulas provocadas pela humidade e pelos agentes biológicos desenvolvidos à sua custa, a friabilidade das pastas, feridas e lacerações provocadas por traumatismos em folhas doentes, perdas de substância, tudo é cuidadosamente tratado e encontra a sua cura no Instituto de Patologia do Livro.
A acção dissolvente da humidade sobre as substâncias empregadas para a colagem no fabrico do papel provoca a aderência das folhas, pela fusão das superfícies das páginas, tornadas viscosas, amalgamando-as em espessuras mais ou menos profundas.
Dentro dessa massa os caracteres impressos ficam perdidos. Livros nossos se tem perdido assim.
Pois bem: análises e operações físico-químicas, tratamentos médicos associados a uma hábil cirurgia, tratam, operam, recompõem e chamam de novo à vida o livro havido como morto.
Pigmentações, manchas mais ou menos extensas, todas as alterações da delicada epiderme do papel são diagnosticadas, cuidadas, restauradas. E volta a restituir-se-lhe o assetinado ou o grão primitivo, a flexibilidade natural, a solidez adequada, numa palavra, a juvenilidade perdida.
As doenças infecciosas do papel são estudadas num laboratório de microbiologia e noutro de entomologia. No primeiro fazem-se culturas de gérmenes colhidos em livros doentes, com a anais rigorosa técnica microbiológica, para classificar os fungos e as bactérias em causa, antes de sujeitar o livro ou documento aos respectivos tratamentos específicos.
No laboratório de entomologia são classificadas as diversas larvas, ovos, insectos. Quando vivos, cultivam-se, para reproduzir os diversos ciclos vitais e estudar os diversos meios profilácticos a usar nas encadernações e nas bibliotecas.
Num laboratório de óptica física utilizam-se aparelhos de raios X, de raios infravermelhos, de radiações ultravioletas e um epidiascópio, e ali se procede também à especialidade de denúncia de falsificações para os servidos judiciários e de diplomática.
Compõem-se as instalações para as investigações científicas do Instituto de Patologia do Livro, além dos laboratórios de biologia e de opto-física, de um laboratório de tecnologia do papel, outro de química, outro de fotografia, além de celas de isolamento e desinfecção. Como finalidade de todos estes laboratórios de investigação, um laboratório de restauro de todos os materiais do livro e do documento escrito: papiro, pergaminho, papel c cabedal.
Para uso deste laboratório possui o Instituto uma pequenina fábrica de tipo medieval, para o fabrico de todas as variedades de papel que sejam necessárias para o restauro. Possui também uma imprensa privativa,

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com um prelo primitivo, destinado a impressões de textos xilogravados ou de composição tipográfica, com todos os caracteres arcaicos conhecidos. Por último, uma estampagem primitiva de xilografias artísticas.
Ali acorrem hoje de todas as partes do Mundo, desde a América no Japão, ais maiores preciosidades bilbliográficas existentes: cimélios, documentos, gravuras preciosas e papéis de valor, pana serem tratados, restaurados e valorizados.
Seria descabido querer expor a VV. Ex.ªs o valor dos serviços que um instituto de investigação científica desta natureza poderia prestar entre nós ao mais imprescindível doa instrumentos para a cultura das ciências e para a cultura em geral - o Livro.
E não posso deixar de lembrar que dificilmente se encontrará na Europa ou no Mundo culto uma nação que tanto como a nossa necessitei de se ocupar deste capítulo das ciências dedicado à profilaxia, patologia e tratamento do documento e do livro.
É que, Sr. Presidem-te, o estado, pelo (menos, de muitas das nossas bibliotecas e arquivos é verdadeiramente de arrepiar. E tenho em mente principalmente o estado da mais preciosa das mossas bibliotecas - a Biblioteca Nacional.
Dia a dia, inexoravelmente, o bicho, o insecto, a bactéria, o fungo vão corroendo, devastando, inutilizando, o melhor testemunho do «nosso passado de intelectuais e o mais procurado centro de estudos dos nossos estudiosos.
Não sabemos o que mais predomina, se as larvas de necrotério, se o próprio pão de espírito que de amo a ano se vai lançando noa vastos armazena de S. Francisco da Cidade, para pasto de insectos, e cultivo de fungos. E por esse País fora estão imensas preciosidades mal instalada», como, por exemplo, na Biblioteca Erudita de Leiria, tão necessitada também de instalações convenientes.
Todas as bibliotecas, e não só a nossa Biblioteca Nacional, todos, os arquivos, e não só o da nossa Torre do Tombo, representou o maior património espiritual duma, pátria. Os mais nobres pergaminhos da aristocracia mental de um povo.
Foi por intermédio do livro ou do documento gráfico que as gerações que nos precederam foram erguendo ao aflito o próprio destino, como oferenda votiva consagrada aos céus, para que os filhos pudessem avançar de cada vez mais mo raminho da perfeição. Cada livro escrito é uma oferenda à eternidade. Cabe-nos a nós o encargo moral de os preservar da morte.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Anos sobre anos, gerações após gerações, as almas dos que individualizaram o espírito da nossa raça entre as almas representativas das diversas nações do Mundo foram compondo para nós este escrínio mais precioso do que todos os tesouros relampejantes de metais preciosos e de pedrarias.
Porque o fulgor destas jóias é fulgor de espírito; as suas cintilações são lampejos de almas; os seus lumes são lumes de inteligência; o brilho de que se iluminam não reflecte a luz do Sol na cristalinidade cromática das pedrarias, mas a própria essência luminosa de Deus reflectida na substância diáfana e mil vezes mais preciosa da alma.
Por virtude do poder transcendentalizador da palavra escrita, cada livro guarda no silêncio discreto das suas páginas, onde tanto se diz, esta vivência dos grandes momentos em que o Homem, sábio ou santo, artista ou amoroso, supera a condição terrena e se eleva no caminho da perfeição, erguendo para Deus as asas liberadoras do espírito.
Não sei de espectáculo mais soturno do que este festim macabro em que noite e dia se vai refocilando a bárbara fauna dos vermes das bibliotecas.
Vezes sem conto me foram fornecidos livros preciosos com as lombadas de carneira totalmente corroídas, as capas completamente soltas, várias folhas desprendidas da lombada, p todo atado com grosseiros cordéis que laceravam os bordos das páginas. Ao abri-los, quantas vezes se nos deparam casulos metidos nos canalículos perfurados pelos vermes através das folhas!
E o mal vem de há anos sem conto. Já passaram dez anos depois que nesta Assembleia se ergueu a voz autorizada e brilhante do Prof. Mário de Albuquerque I denunciar a destruição anual de uma quantidade enormíssima de espécies, cujo valor, segundo o cálculo de um alto funcionário, devia oscilar pelo próprio valor das aquisições anuais! Mas, senhores, isto é mil vezes pior do que o tomei das Danaides. Porque ali apenas se perdia o valor da água corrente e aqui perde-se o valor de torrentes de espírito.
E o que é desanimador é que o ilustre professor tivesse sido interrompido pelo Deputado Vasco Borges para o esclarecer de que havia trinta amos, sendo Ministro da Instrução, fora ele próprio interpelado nesta Câmara pelo mesmo motivo.
Livros recentes, alguns com dois anos apenas de entrada, encontram-se contaminados. E como um escrúpulo não isento de um natural receio de responsabilidade impede que os livros, embora completamente inutilizados, sejam destruídos pelo fogo, porque representam bens nacionais, o foco de infestação constituído pelas obras amontoadas torna-se dia a dia miais aflitivo.
As coisas não melhoraram. Informam-me de que nem sequer já existe uma câmara de formol, que, aliás, não funcionava não sei porquê.
Utilizam-se ao menos as pulverizações de D. D. T.? «Coisa nenhuma», foi a resposta à minha pergunta.
Para completar o quadro, mais esta nota alarmante: a secção mais preciosa da nossa Biblioteca, a dos reservados, onde se encontram os mais preciosos incunábulos, os mais valiosos cimélios, manuscritos únicos, iluminuras, estampas e raridades bibliográficas insubstituíveis de todas os espécies, representando um conjunto de inestimável valor cultural e de um valor material de muitos milhares de contos, encontra-se colocado, não direi em precárias condições de segurança, porque diria pouco, mas sim em condições tão terríveis que de um momento para o outro todas aquelas preciosidades insubstituíveis poderão desaparecer.
E que todo esse enorme e frágil tesouro se encontra situado entre dois perigos: por cima o posto de rádio da Polícia e no rés-do-chão as suas garagens, com depósitos de gasolina. E não sei mesmo se já foram removidos os explosivos que se encontravam no andar imediatamente inferior!
Claro que a Polícia não pode prescindir de nada disto. O que apenas significa que a Biblioteca não pode continuar nesta situação.
Como se tudo isto ainda fosse pouco, as instalações eléctricas encontram-se feitas por forma o mais precária possível. Há infiltrações que por aqui e por ali ressumam através das paredes e de vez em quando interrompem a iluminação. Há alguns anos o ilustre engenheiro Fausto Carreira, então engenheiro chefe dos serviços electrotécnicos da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, de tal maneira se impressionou com os defeitos da instalação eléctrica dos reservados que procedeu imediatamente ao seu arrancamento, pasmado de que tudo aquilo não tivesse ainda sido destruído por um incêndio!
Foi na Biblioteca Nacional que se concentraram os espólios de inúmeros conventos.

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A destruição destas raridades concentradas seria assim irreconstituível.
De resto, não é apenas a Biblioteca inteira que, por motivo das suas deficiências e das suas perigosas vizinhanças, se encontra em perigo total em caso de incendia. O mesmo se poderá dizer da Escola de Belas-Artes e do Museu de Arte Contemporânea, com todas as suas insubstituíveis obras plásticas, cuja destruição representaria II perda das melhores criações artísticas da alma portuguesa nos últimos tempos.
E, independentemente deste perigo, a Biblioteca Nacional nem sequer já hoje possui espaço para abrigar mais livros. E eles aumentam de dia para dia, de ano para ano. Já se acumulam nos corredores, tapam as cimalhas e começam a trepar na base das abóbadas.
Deus permita que deste grito angustioso de alarme, que mais irmã vez se eleva nesta sala a denunciar o perigo, possa resultar a execução de um edifício próprio, construído com os imprescindíveis requisitos modernos, irão só para salvaguarda dos livros, anãs ainda para o aperfeiçoamento da sua orgânica no sentido de uma eficiência imprescindível no campo da investigação e da cultura literária, artística c científica.
Ouso esperar da profunda cultura, da inteligência o da sensibilidade de SS. Exas. os Srs. Ministros da Educação Nacional e das: Obras Públicas e do altíssimo espírito do> Sr. Presidente do Conselho, a quem tão altas serviços deve a valorização do património material e espiritual do nosso país, que o problema, angustioso da nossa Biblioteca Nacional entro rapidamente no caminho da solução definitiva.
E passarei agoira a ocupar-me de um outro ponto, que é o da necessidade da reorganização das nossas bibliotecas e arquivos no sentido de serem realizadas as necessárias investigações o classificações de documentos para a valorização do seu rendimento cultural.
Antes disso, porém, e como questão prévia, convém definir o que entendemos por investigação no simples sentido de pesquisa, conhecimento e leitura de documentos, e avaliar o seu justo valor, o seu exacto significado em relação ao trabalho cultural da obra realizada pelo escritor sobre o documento descoberto.
E reparemos desde já em como a insuficiência de organização e a falta de execução de um trabalho desta natureza, que devera ser atribuição dos nossos bibliotecários, produziu entre nós uma inversão de valores na apreciação do trabalho histórico, inversão que poderá ato intervir deformadoramente na própria orientação do espírito do estudioso.
O trabalho de investigação, ordenação e leitura de documentos antigos deveria ser efectivamente um dos encargos essenciais do bibliotecário-arquivista. Não nos faltam paleógrafos distintos, peritos inteligentes e hábeis para o fazer.
Esta necessidade fundamental para valorização de mina biblioteca sentiu-a há cerca de cinco séculos El-Rei D. Manuel I ao proceder à compilação e cópia de documentos nessa preciosa colecção denominada. Leitura Nova.
Na, altura em que tão notável trabalho foi feito dávamos nós um exemplo ao Mundo realizando «a mais honrada coisa de semelhante calidade que em parte algua do mundo se possa ver», como o próprio monarca recordava, desvanecido, ao escrever o seu testamento.
Infelizmente semelhante obra não teve continuadores para além de D. João III e muitas das nossas bibliotecas e arquivos permanecem a grande selva obscura, quando não são uma densa e imbrincada floresta de enganos.
Não nos esquecemos, evidentemente, dos nomes ilustres de Gabriel Pereira, Esteves Pereira, Sousa Viterbo, António Baião e de tantos outros beneméritos, que tiveram eles próprios, para escreverem as suas obrais, d c esgotar longuíssimos anos na rebusca e leitura de documentos, com sacrifício do muito mais que poderiam ter realizado sobre manuscritos devidamente conhecidos, classificados c ordenados.
O sabermos que em pleno século XX, neste ano de 1950, permanecem ignorados milhares de documentos cujo desconhecimento conserva obscura grande parte da nossa história (não obstante existiram, por aí amontoados em precárias condições) impressiona de tal maneira o público interessado pela cultura portuguesa que o, leva a apreciar maré a descoberta de um documento do que a elaboração intelectual de uma obra de profunda interpretação ou correcção histórica, sem se lembrar de que tal descobrimento pode ser obra de mero acaso ou resultar apenas de uma aplicada o longa paciência.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quer dizer que se admira mais o artífice que carreia os materiais do que o arquitecto que realizou com eles a reedifica cão do passado!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E o próprio historiador se desgosta ao ver que lhe admirariam mais um achado de pesquisa do que a própria interpretação crítica, trabalho de análise e de síntese, coordenação e integração numa sólida cultura, que realizam a ressurreição de uma época, revelando uma nova visão histórica de factos incoordenados e, portanto, incompreendidos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Tal é o fruto desta falta de um trabalho de organização dos nossos arquivos.
Já o ilustre Deputado Dr. Rodrigues Cavalheiro, com brilho e profundo conhecimento do problema, se referiu numa sua notabilíssima intervenção nesta Câmara à confusão de valores que faz que entre nós um simples pesquisador possa ser considerado um erudito e que o erudito possa ser considerado historiador ou cientista, o que tudo se reflecte desastradamente no conceito de cultura em Portugal.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A verdade, meus senhores, é que as duas personalidades podem andar juntais. Mas, sob o ponto de vista das actividades culturais, a descoberta de um documento nos nossos arquivos é facto que apenas desprestigia a organização e extensão dos estudos portugueses. Tais descobertas são impossíveis nos países que têm devidamente organizadas as suas bibliotecas e arquivos.
Torna-se, pois, necessário retomar a iniciativa de D. Manuel I e realizar oficialmente estes trabalhos de investigação e cópia, para continuação da Leitura Nova, sobretudo no que diz respeito aos documentos escritos nessa terrível letra encadeada, que, por vezes, só excelentes peritos conseguem interpretar, e de encontro aos quais tantas vezes soçobram os esforços de quem necessita alargar as suas investigações em importantíssimos sectores obscuros da nossa história.
E, depois de expresso este voto sobre a mova escrita de uma Leitura Nova, ocupemo-nos da reforma da catalogação.
Bem necessitados estamos, porque, se em muitas das nossas bibliotecas e arquivos a catalogação é insufi-

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ciente, na Biblioteca Nacional é simplesmente confrangedora!
A organização dos ficheiros, pelo que diz respeito à didascália alfabética, é uma autêntica desumanização, realizada sob critérios insustentáveis e únicos no Mundo»! Por vezes tem de se correr todos os nomes e apelidos de um, autor, por não se saber por qual deles se fez a catalogação. E até às vezes acontece, que ela foi frita por um apelido do meio do nome, apelido que nos era totalmente desconhecido.
Um exemplo: o nome do Prof. Moses Amzalack. VV. Ex.ªs procurá-lo-iam naturalmente na letra A - não o adiavam. Iam à letra M. Também o não encontravam. Onde procurá-lo então? Na letra B, porque o Prof. Amzalack também se chama Bensabat!
Os verbetes escritos em frágeis, envelhecidas e leves folhas de papel fazem perder um tempo precioso para evitar que, por aderência, possam passar despercebidos à consulta. Completamente soltos, quando um se coloca inadvertidamente fora do seu lugar o livro fica praticamente perdido por tempo indeterminado.
Ainda nos vale em tudo isso um excelente empregado do catálogo, de uma memória prodigiosa, que sem perder tempo na pesquisa preenche e dita aos outros grande parte das quotas dos livros requisitados.
Depois basta aguardai que o livro nos seja entregue. Mas sem pressa. Porque se o livro não for de requisição frequente e estiver muito longe, esperaremos por ele meia hora, numa hipótese bastante favorável ... Muitas vezes ali esperei eu, em dias seguidos, três quartos de hora e mais, chegando muitas vezes o livro quase à hora da saída, sem me dar tempo de fazer a desejado, consulta, que tinha de ser adiada para o dia seguinte ou vários dias depois ... Quanto tempo perdido!
Por outro lado, não existem ficheiros por assuntos, min por obras. Sem elementos de orientação, sem ter sequer possibilidades de uma consulta bibliográfica, a Biblioteca reduz-se apenas a um grande armazém de livros. E o pretenso catálogo não passa de um anal organizado inventário.
O estudioso que pretenda orientar-se vê-se perdido num mare magnum, sem bússola nem rumo. Quando, afinal, mais do que uma arrumação de volumes mas estantes, a Biblioteca deve ser considerada como um conjunto de leitores em meio de livros fàcilmente e prontamente nobilizáveis.
O acesso dos leitores à consulta dos catálogos é outro progresso a introduzir nos nossos serviços. Quanta vez, ao requisitarmos uma obra, não sucede fornecerem-nos uma determinada edição, que nós estudamos, sem poder suspeitar de que numa edição posterior o próprio autor corrigiu afirmações erróneas em virtude do conhecimento de novos dados ...
Estamos então em plena floresta de enganos ...
Também falo por experiência própria. Estes e outros inconvenientes seriam evitados se o estudioso pudesse manusear as respectivas fichas.
Tal como nas bibliotecas estrangeiras, em que se procura dar a maior eficiência aos serviços de cultura, as fichas deveriam ser inscritas em cartões perfurados, deslocáveis ao longo de um fio metálico, para impossibilitar um ocasional desvio de colocação, e facultadas à consulta direita do estudioso.
A par da reforma da catalogação e dos serviços de investigação a que já nos referimos, necessário se torna organizar convenientemente o serviço permanente de bibliografia com bibliotecários especializados nas diversas ciências, para a actualização diária dos índices respectivos.
As dificuldades actuais são de tal maneira tremendas que o director da Hiapanic Foundation da Biblioteca do Congresso de Washington - a maior biblioteca do
Mundo -, vindo a Portugal e a Espanha em missão do importante departamento que dirige, viu-se obrigado a desistir de trabalhar na nossa Biblioteca Nacional. Constitui a Hispanic Foundation, como o seu nome indica, um centro especializado de estudos portugueses e espanhóis e de cultura latino-americana.
Mais de 120:000 volumes se destinam aos estudos de cosmografia, náutica e história dos descobrimentos portugueses e espanhóis e, particularmente, aos da colonização da. América do Sul.
Pois, referindo-se à nossa Biblioteca Nacional, o Dr. Lewis Hanke teve esta apreciação:

Infelizmente vejo-me obrigado a considerar o seu valor igual a zero. E não obstante fiquei convencido de que ali existem documentos preciosos como em nenhuma parte do Mundo!

Vem a propósito referir, embora apenas de passagem, as dificuldades que os estudiosos estrangeiros têm para penetrar no sanctus sanctorum da nossa Biblioteca, dificuldades que os deixam verdadeiramente surpreendidos e confusos e que os Portugueses não encontram lá por fora.
Torna-se necessário remover este estado de coisas, começando por proceder ao estudo do processo de catalogação, adoptando possivelmente um dos sistemas baseados na classificação decimal. Algumas bibliotecas, como a do Laboratório de Engenharia Civil, a da Inspecção-Geral dos Produtos Agrícolas e Industriais e todas as dos institutos de cultura estrangeiro» em Lisboa, usam o sistema decimal, que torna provavelmente mais fácil a intercolaboração entre os diversos centros de estudo.
Ocupemo-nos agora da distribuição dos livros por diversas bibliotecas.
Em nosso entender haveria que proceder a essa distribuição, de forma a constituir livrarias especializadas em filiais da Biblioteca ou mesmo em certos centros do cultura.
Esta formação de filiais impõe-se. Por um lado, para fugir ao excessivo pejamento do edifício, cujas estantes estão repletas, cujas salas estão pletóricas, e onde, invadidos os corredores e todos os espaços disponíveis, acaba por se tornar impossível a arrumação útil dos livros.
Por outro lado, tinha a vantagem de desviar das bibliotecas eruditas a afluência de uma classe de leitores que se dirigiria para as bibliotecas populares, as quais seriam distribuídos os livros de simples distracção ou de vulgarização científica elementar. Livre desta afluência mais numerosa e perturbadora, o serviço seria naturalmente aperfeiçoado.
Depois constituir-se-ia naturalmente em cada biblioteca de especialidade uma selecção natural de indivíduos de cultura especializada em diversos grupos de ciências.
E é evidente a altíssima importância do natural estabelecimento de relações entre estudiosos da mesma especialidade, que uns aos outros se poderão esclarecer sobre qualquer assunto.
O estudioso trabalha confiado em que tem a seu lado quem poderá naturalmente elucidá-lo sobre alguma, dúvida que surja, auxiliando-o com qualquer esclarecimento necessário à sua investigação.
Afluem à nossa Biblioteca Nacional numerosíssimas obras.
Existe um sistema de trocas internacionais, beneficiando de portes reduzidos, que foi estabelecido pela Convenção Internacional de Berna em 1886, a qual, embora prestando-nos relevantes serviços, não funciona com perfeita normal idade no que diz respeito a Portugal, pois o nosso puís parece de tal maneira desinteressado que, segundo me informam, nem sequer compare-

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céu na última reunião destes serviços realizada pela Unesco.
Entretanto, continuamos a ser contemplados com numerosas obras, embora sem prestarmos retribuição. E pena. Porque esta é uma das mais nobres propagandas que uma nação pode fazer.
Recebe a nossa Biblioteca Nacional numerosos volumes e por virtude desta necessidade de espaço com que luta acontece que vão parar à Biblioteca Popular numerosas obras científicas, as quais por ali ficam inutilizadas, enquanto a sua falta se faz sentir em tantas bibliotecas eruditas, onde serão inutilmente procuradas.
Uma distribuição judiciosa por várias filiais permitiria uma organização mais perfeita, tanto neste sentido descentralizador, como ainda, inversamente, num sentido centralizador, estabelecendo uma biblioteca geral de estudos científicos. Esta biblioteca poderia constituir-se no Instituto para a Alta Cultura, dirigido pelo sábio Prof. Cordeiro Ramos e onde, graças à perfeita competência do Dr. Zeferino Paulo, proficientíssimo director do centro de documentação, se encontra já hoje organizado um serviço bibliográfico exemplar, que procura abranger todas as bibliotecas e vem prestando serviços preciosos ao estudioso que não saiba como orientar-se.
Publica o Instituto uma bibliografia médica portuguesa. Para poder estar em dia anda o seu organizador de livraria em livraria a tomar nota de quanto vai surgindo diariamente no mercado português.
A exemplo do que já faz a Biblioteca Municipal do Porto, deveria também a Biblioteca Nacional publicar, até em simples ciclostilo, um boletim mensal com a indicação dos livros recebidos, em lista organizada segundo a classificação conveniente.
Seria ainda de desejar que se realizasse um trabalho que a nossa Academia Real da História Portuguesa, iniciou no século XVIII, e no qual trabalhou activamente o célebre conde da Ericeira, inventariando as nossas bibliotecas e arquivos particulares mais ricos de fundo histórico e publicando em boletim as suas existência? Lembremos que é a esta diligência do conde da Ericeira que se deve o podermos hoje estabelecer um facto que honra sobremaneira a cultura portuguesa de Quatrocentos: a precocidade da introdução da imprensa em Portugal - seis anos apenas depois do seu aparecimento na Alemanha. Tal facto pôde ser demonstrado a partir da leitura de um incunábulo referido pelo conde e depois disso desaparecido no terramoto de 1755. Sem tal referência e a do académico Soares da Silva a outro exemplar igualmente desaparecido, a história de tal facto não poderia jamais ser reconstituída. Quantos documentos de notável valor não estarão ignorados por essas livrarias e arquivos e sujeitos a perderem-se antes de serem conhecidos dos nossos investigadores?
Digamos agora algumas palavras sobre a utilidade de uma colaboração interbibliotecas.
É óbvio que o estabelecimento de um serviço interno de intercâmbio das nossas bibliotecas poderia valorizar e fomentar extraordinariamente a cultura portuguesa, fazendo utilizar os nossos livros em todos os pontos do País. Assim se procede em várias nações, nomeadamente na América. E o processo tem dado as melhores resultados.
Há numerosíssimos estudiosos na província que se vêem obrigados a desistir dos seus estudos pela impossibilidade de consultar determinadas obras.
O empréstimo a particulares de obras científicas ou de obtenção difícil, tal como se vem fazendo nas mais importantes bibliotecas do Mundo, completará esta organização de fomento intelectual.
Sr. Presidente: não desejo delongar-me por mais tempo, e julgo que já disse o bastante para dar uma ideia do panorama geral das nossas insuficiências e necessidades num capítulo de altíssima importância para a cultura e investigação científica em Portugal.
Permita-me V. Ex.ª que, em sumaria geral, sintetize as aninhas palavras no seguinte esquema, onde compendiei várias das necessidades que me parece urgente remediar, para prestígio e fomento da cultura portuguesa e de um ramo importante da investigação cientifica:
1.º Estudo da patologia, prevenção profiláctica e restauro do livro e do documento.
2.º Medidas urgentes de defesa para os perigos de sinistro a que está sujeita a actual Biblioteca Nacional.
3.º Início dos trabalhos para a sua instalação em edifício novo, a constituir com todos os requisitos modernos de segurança e funcionamento.
4.º Reorganização de serviços de todas as nossas bibliotecas e arquivos, constando essencialmente de:
a) Organização dum trabalho sistemático de inventariação, leitura e cópia dos documentos preciosos e de conteúdo desconhecido existentes nos nossos arquivos, em continuação da iniciativa levada a cabo por El-Rei D. Manuel I com as cópias da chamada Leitura Nova existente na Torre do Tombo;
b) Organização dum serviço permanente de bibliografia geral e especial em todas as nossas bibliotecas;
c) Adopção dum sistema perfeito de ficheiros, tanto quanto possível comum a todas as nossas bibliotecas, contendo verbetes por autores, abras e assuntos;
d) Adopção de fichas cativas de cartão, facultáveis directamente aos estudiosos;
e) Estabelecimento dum serviço de empréstimos entre bibliotecas para, poder ser utilizado por estudiosos ma província;
f) Serviço condicionado de empréstimo a particulares;
g) Descentralização da Biblioteca Nacional com filiais populares e científicas e organização duma biblioteca geral de estudos científicos, sob os cuidados do Instituto para a Alta Cultura.
Toda esta reorganização seria estabelecida com um espírito de facilitação não eivado de dificuldades burocráticas desanimadoras. As maiores facilidades, conjugadas com as maiores responsabilidades.
Não nos preocupemos com a ideia de correr o risco dalguns prejuízos. Eles serão bem menores do que a soma dos benefícios prestados à cultura portuguesa o insignificantes comparados com as devastações autuais causadas pelas traças e outros elementos nocivos.
Resta-me dizer que as diversas críticas às insuficiências e defeitos das nossas bibliotecas e arquivos não envolvem o menor menosprezo pelos seus dedicados e competentes funcionários, que, anais do que ninguém, estou certo disso, serão os primeiros a apoiá-las.
Se não realizam a obra perfeita que se torna necessário realizar e que o próprio espírito lhes pede, é por carência de meios e imposição de uma orgânica de há muito cristalizada e impossibilitada de acompanhar as necessidades da vida mental, em constante e palpitante evolução.
Menos ainda esqueço, ao proferir as minhas palavras, quanto a Cultura portuguesa deve ao Estado Novo em matéria da política do espírito.
E recordando o impulso dado à cultura científica pelas numerosas bolsas de estudo concedidas de há já longos anos, é pensando nas enormes despesas realizadas com o nosso património artístico, é pensando nos vários trabalhos de investigação científica já tornados possíveis, é pensando mesmo no muito que se tem feito no auxílio e criação de várias bibliotecas e arquivos do País, no auxílio prestado pelo Instituto Nacional do Trabalho

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à cultura popular e em tantas outras realizações do maior interesse nacional que animo a erguer a minha voz nesta Assembleia, certo de que o Governo da Nação cuidará com o maior interesse de atender a um problema que está no primeiro plano das necessidades espirituais da nossa pátria.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sousa da Câmara: - Sr. Presidente: é com muito agrado que volto a esta tribuna, usando da faculdade que me confere o Regimento, para usar da palavra sobre o aviso prévio que tive a honra de efectuar. Ao encerrar-se o debate, tenho a grata possibilidade de agradecer a iodos os Srs. Deputados que quiseram participar desta discussão as valorosíssimas contribuições que tiveram por bem fornecer. Ainda devo manifestar o meu reconhecimento pela atenção que a Assembleia dispensou ao tratamento do assunto.
Julgo que a circunstância de termos absorvido quatro sessões da nossa actividade parlamentar na cuidada consideração de vários aspectos da investigação científica em Portugal - quatro sessões, quando o tempo nos escasseia e se avoluma uma massa considerável de trabalhos - tem um profundo significado. Prova-nos, antes de mais nada, que existe já hoje, em certas esferas, uma profunda consciência do valor da investigação científica. Mostra-nos ainda que não há desânimos, por parte de quem quer que seja, e que todos, mesmo os mais experimentados, mesmo os que têm conhecido o travo amargo das decepções, continuam cheios de entusiasmo o esperança, convencidos de que a Situação saberá e podará encontrar as soluções desejadas.
O facto de eu haver apresentado o aviso prévio é bem demonstrativo dessa confiança. Se a não tivesse, decerto não iria perder o seu tempo nem me atreveria a causar a paciência de V. Ex.ª com esta matéria. Se o fiz, deliberadamente, sem peias na linguagem, falando com. a máxima sinceridade -essa sinceridade que a Assembleia Nacional há-de reclamar sempre -, é que no meu coração não existe ainda a sombra de um desalento; pelo contrário, pressinto que os nossos sonhos hão-de ser realidade.
Regozijo-me, Sr. Presidente, com a maneira como decorreu este debate. À parte a minha participação, que ficou muito longe da que eu queria que fosse, todas as outras se revestiram de excepcionais galas de linguagem e de fornia, cheias de pensamentos elevados, densas de conceitos, fortemente impregnadas do melhor espírito patriótico, mostrando bem a importância da investigação científica, o valor dessa poderosa alavanca de progresso, em suma, pondo a grande altura o nível da nossa Assembleia Nacional, a (propósito de um assunto tão actual e de tão vasta projecção, ma defesa de uma cultura e de uma civilização.
O Sr. Deputado Magalhães Ramalho, com larga cópia de informações, numa seriação lógica e convincente, mostrou-nos o que é a utilidade dessa investigação em vários problemas, em especial nos da engenharia. Com brilho e intensa vibração fez desfilar ante nossos olhos uma série curiosíssima de aspectos. Foi uma demonstração positiva, irrefutável, do valor decisivo da investigação científica e da indispensabilidade de Portugal lhe imprimir uma grande e nova vitalidade.
O Sr. Deputado António de Almeida, numa enumeração feliz, apontou-nos a série de conquistas que a investigação científica tem efectuado nos domínios ultramarinos. Referiu todas as organizações que a Situação tem criado, não só dependentes dos Governos dias províncias, mas da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, e ainda por iniciativa das várias organizações da máquina corporativa com actuação no ultramar português.
O Sr. Deputado Vitória Pires, conhecedor, como poucos1, dos problemas agronómicos portugueses, investigador reputado da Estação Agronómica Nacional, criador entusiasta e eficiente da Estação do Melhoramento do Plantas do Elvas, pôde mostrar-nos, com a autoridade do seu saber e da sua experiência, várias o interessantíssimas facetas da investigação científica ao serviço da agricultura, tanto na metrópole como no ultramar.
O Sr. Deputado Sarmento Rodrigues, numa exposição brilhante, cheia de equilíbrio e de bom senso, descreveu-nos vários casos de problemas científicos das colónias. Pôs em relevo, comi forte argumentação, a importância da investigação científica no ultramar, e até esse propósito citou a série dei estabelecimentos, de grande riqueza, que outros países colonizadores tem criado em África. As suas palavras, claras e expressivas, com «marca» inconfundível, causaram forte impressão em todos que as escutaram.
O Sr. Deputado Délio dos Santos, num discurso persuasivo, atraindo as atenções gerais, indicou a vasta importância da investigação científica em várias modalidades. Aludiu às investigações matemáticas efectuadas em Portugal, que, como se «sabe, têm sido motivo d«e orgulho para as ciências portuguesas. Realmente, as investigações matemáticas, efectuadas nas nossas três Universidades, dão a Portugal um lugar de merecido relevo nesta importantíssima matéria.
O Sr. Deputado Mendes Correia deu-nos, em relato eloquente, uma visão da importante obra realizada em vários domínios, principalmente nos de projecção colonial. Com muita oportunidade, referiu-se à Junta da Educação Nacional, criada pelo Ministro Dr. Cordeiro Ramos, que depois se converteu no actual Instituto para a Alta Cultura. Ainda com linguagem muito convincente, demonstrou a necessidade de Portugal actualizar as suas organizações de investigação científica.
O Sr. Deputado André Navarro, num discurso cheio de interesse, revelou, entre vários aspectos, a importância que pode ter na investigação científica a cultura adquirida através dos séculos pelos homens do campo. Provou mais uma vez que há muito saber acumulado nas tradições populares e que em muitas delas há valiosas e interessantes linhas de investigação.
O Sr. Deputado Sousa Rosal trouxe ao debate um novo problema: a importância da investigação científica na defesa nacional. E numa exposição ciei crescente interesse mostrou como a investigação teve já grande valor e muito mais há-de ter no futuro, não só no invento e construção das novas armas, como no abastecimento dos exércitos, na guerra» química, e ainda na guerra biológica.
Por fim, o Sr. Deputado Cortês Pinto aludiu ao importantíssimo aspecto, fundamental para a investigação científica organizada, do ordenamento das nossas bibliotecas. Com grande actualidade, referiu vários aspectos deste problema.
Era, na verdade, indispensável que este assunto das bibliotecas fosse tratado, no nosso debate, com a competência e elevação com que o apresentou o ilustre Deputado. Sabemos, efectivamente, que já em 1930 o Instituto para a Alta Cultura apontava, num dos senti relatórios, as grandes deficiências encontradas no domínio da bibliografia científica. E é-nos grato verificar que, nestes vinte anos, o mesmo Instituto, com uma persistência digna dos melhores elogios, conseguiu organizar o seu Centro de Documentação Científica, instrumento necessário, que será, sem dúvida, do mais largo alcance nas organizações portuguesas da cultura.

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Todos os oradores foram concordes em que a investigação científica era indispensável. A .esmagadora maioria exprimiu o parecer de que a investigação científica nacional está longe se corresponder às necessidades da Nação. Essa mesma poderosa maioria demonstrou a urgência de o País atender a esta situação, confiando-se em que o Governo determine as medidas que o caso requer.
Numa grande maioria, os oradores defenderam a necessidade de impulsionar já a investigação científica.
Pode dizer-se que só numa exposição a do Sr. Deputado Jacinto Ferreira -, aliás muito interessante, testemunho curioso da [mentalidade de um professor universitário português, exposição que, diga-se de passagem, me deu bastante que pensar, se afirma que de momento não precisamos mais de investigação científica. Não é que duvide da sua importância, repito as suas próprias palavras: «Não precisamos mais de ciência?», faz a interrogação. E logo responde peremptoriamente: «Precisamos, sim!».
O que imagina o Sr. Deputado Jacinto Ferreira é que nestes tempos, de manifesto atraso creio que se infere das suas palavras que reconhece plenamente o nosso atraso -, o que importa, antes de mais nada, é «inventariar as nossas possibilidades, os nossos recursos, tomando consciência perfeita dos males que nos afligem D.
E, ainda segundo as suas afirmações, só depois, quando se tivesse criado o ambiente propício, se poderia trabalhar frutuosamente na conquista da melhoria das condições de vida da população portuguesa. «Será então a nora da investigação científica, no sentido mais elevado da, expressão».
Ë uma opinião muito respeitável. Original, sem dúvida, partindo de um professor universitário de Bacteriologia - uma ciência que está em desenvolvimento vertiginoso, carecendo de um esforço enorme, gigantesco, por parte de todos que a praticam, para se manterem actualizados. Uma ciência, enfim, em que se não vê a possibilidade de trabalhar sem investigar.
O Sr. Deputado Jacinto Ferreira, decerto por extrema modéstia, declarou que não era investigador científico.
Nas afirmações, ouvidas com toda a atenção, com a consideração devida a um colega, a um professor e a um veterinário não posso esconder a simpatia que tenho dedicado u classe dos médicos veterinários -, VI uma série de considerações que suscitam alguma análise. E colhi a impressão de que o Sr. Deputado Jacinto Ferreira, corajosamente, as tinha arregimentado de propósito para permitir, com a sua refutação, uma argumentação mais sólida aos que defendem, a necessidade imediata da organização científica.
Sinto assim, sinceramente, que, se da nossa actuação alguma coisa conseguirmos, a maior quota-parte nesse triunfo pertencerá ao Sr. Deputado Jacinto Ferreira, pois foi ele quem, tomando, aparentemente, a oposição, soube dar anais relevo ao assunto.
O volume das coisas muitas vezes só se ajuíza quando há sombras. A sombra ou o claro-escuro dum quadro - talvez a categoria da exposição do Sr. Deputado Jacinto Ferreira seja mais dum claro-escuro que de sombra - com grande frequência são a razão de ser da sua beleza e do seu valor durável.
Mas vamos às afirmações produzidas: em primeiro lugar, o Sr. Deputado Jacinto Ferreira disse que durante os vinte ou trinta anos mais chegados nos bastava o uso inteligente e honesto daquilo que conhecemos.
Aceita muito naturalmente que em Portugal se não trabalhe cientificamente durante estes tempos mais próximos, mas que nos outros países se trabalhe, se lute, se congreguem todos os esforços, para bem da Humanidade. Cá estaremos nós, os Portugueses, para aproveitar depois os resultados das conquistas.
Colheremos o proveito e o lucro. Para alguns seria vantajoso. Mas não o era com certeza para a Nação.
Eu, Sr. Presidente, sou francamente contrário a tal sugestão. A ciência não se improvisa dum momento para o outro. Quero dizer que aquela ideia do Sr. Deputado Jacinto Ferreira de manter a «marcar passo» a nossa ciência, durante vinte ou trinta anos, para depois, de súbito, se sair deliberadamente das torres de marfim» na exploração do desconhecido na conquista de verdades, não é de aplicar.
Não vejo, realmente, como os homens de ciência poderiam proceder, quando soasse das esferas do comando a ordem: desfilar para a frente ...
Que marcha seria essa? É exactamente porque se terá de marchar com vigor nesses vinte ou trinta amos próximos que os homens de ciência não se podem manter inactivos ou um inquéritos esterilizantes das suas técnicas e dos seus métodos. É justamente porque esse grande esforço há-de ser requerido que é indispensável recrutar já numerosos jovens, educando-os, disciplinando-os e preparando-os para a marcha do futuro.
Sr. Presidente: os Americanos dizem que um homem de ciência, para chegar a ser elemento valioso para o progresso em dado ramo do saber humano necessita de sete anos de aprendizagem, de noviciado duro. Isto passa-se num país onde a investigação científica se conhece, onde as Universidades estão activas, onde há bibliotecas eficientes, tem organizadas, onde mão há dificuldades de material, nem de instalações, nem de verbas, onde não faltam os chefes de fila, os guias, os exemplos a que no outro dia me referi. Sete anos! Pois não parece demais que, nas nossas condições, se levasse ao dobro o tempo requerido pela preparação dum cientista. Vá que contássemos com a qualidade apurada pela necessidade, pelo valor dos nossos rapazes; vá que reduzissemos para dez anos tal preparação - aliás dez anos é o tempo que por lei um investigador leva a fazer-se em Portugal -, mesmo assim eram dez anos.
Quero dizer que depois desses vinte ou trinta amos de «marcar passo», quando soasse a voz «ordinário, marche», se teria de ouvir unia voz, muito apaisanada, a dizer lá das fileiras: «Espere lá um bocadinho, ainda precisamos de mais dez anos para fazer gente investigadora!».
Paisanice em coisas anilitares, paisanice em coisas científicas! E creio que as coisas estão a pôr-se de tal modo, senhores, que essa espera de trinta ou quarenta anos corresponderia a um autêntico suicídio!
É provável que me considerem suspeito, incapaz do olhar as coisas com inteira objectividade. Dirão talvez: este homem apaixonou-se pela investigação científica e agora está convencido de que tudo é investigação científica. É natural. Mas perguntem a outros, perguntem, por exemplo, a um suíço, a um dinamarquês, a um sueco, a um holandês, a um belga - já não digo a um americano, inglês ou alemão - se as organizações científicas não carecem imediatamente de grande desenvolvimento científico.
E perguntem, também, se é possível haver hoje, em qualquer Universidade, um professor de Bacteriologia que não seja investigador, que se contente, para o ensino, com a ciência alheia, com os lixos, os textos, as revistas, sem a curiosidade de apurar factos por si mesmo.
Era muito provável que essa pergunta excêntrica obtivesse como resposta outras perguntas: É que um professor de Oratória seja mudo? Que um professor de Trabalhos Manuais seja maneta? Que um professor de Dança seja manso?
Não. E é por isso que eu digo que o Sr. Deputado Jacinto Ferreira se mostrou aqui com a máxima modéstia.

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Com isso deu uma demonstração pública de humildade - a condição sine qua non do verdadeiro investigador; mais, do mestre que forma discípulos, continuadores, a virtude essencial para se caminhar na senda da investigação científica.
Eu também o digo, Sr. Deputado Jacinto Ferreira!
Declarei aqui, nesta Assembleia, perfilhando a opinião de que a petulância está na razão inversa da documentação, que só o homem indocumentado se sente superior.
Mas tenho receio de que pregue como Frei Tomás! E temo que estes devaneios políticos, a que fui obrigado por um dever de reconhecimento de português, me prejudiquem, ainda mais do que já prejudicaram, fazendo-me perder em dado amamento essas qualidades de simplicidade, que tanto aprecio, e de modéstia, que gostaria de ter sempre! É evidente que, se assim suceder, nesse dia estarei perdido paira a camisa científica.
Agora outro ponto de vista: ser dispensável dotar fortemente os organismos científicos, pois em todos os tempos muitas conquistas se alcançaram com meios acanhados.
A afirmação de que basta dar meios suficientes, merece inteira aprovação. Também eu penso que dar dinheiro a mais é detestável.
Concordo inteiramente quando diz que muitos laboratórios tem a mania dos materiais caros e que poderiam trabalhar muito bem com recursos mais modestos. Isso mesmo o tenho afirmado de maneiras diversas e há muitos anos, insurgindo-me com o desperdício de dinheiro que se faz por tanta parte deste país, em instituições que não têm espírito científico, nem gente preparada, nem técnicas, nem métodos.
Num modesto livro, que teve a honra de ser prefaciado pelo Prof. Dr. Marcelo Caetano, escrevi:
Chega a imaginar-se que um laboratório que dispõe do material mais dispendioso acusa logo, e só por esse facto, competência. Assim como há gente «culta» de lombada, que apenas conhece os livros pelo aspecto exterior, há muitos homens, entre supostos técnicos e cientistas, que só conhecem a aparelhagem que possuem pelas indicações que leram nos catálogos e pelas diligências que uma vez tiveram de efectuar para a adquirir. Não será ciência de lombada, mas será certamente ciência de vitrina ou de redoma.
Isto foi escrito há nove anos. Mas a doutrina ainda é verdadeira, pelos vistos ...
Podemos falar à vontade, cheios de razão, porque esse feitio é desconhecido na Estação Agronómica, que tenho a honra de dirigir. Há dezasseis anos que trabalhamos em raios X, em estudos que talvez ofereçam algum interesse - pelo menos o Prof. Muller, prémio Nobel da Medicina do ano de 1946, tem-lhes prestado, generosamente, alguma atenção. Pois ainda não solicitámos um aparelho de raios X, bastando-nos com as instalações de raios X dos amigos radiologistas.
Começámos a sentir, a necessidade de um microscópio electrónico há já uns dez anos.
Alguns trabalhos nossos precisavam dessa contribuição. Mas como vimos que ainda não seríamos capazes de tirar pleno rendimento de um (microscópio electrónico, sabendo que ele custaria meio milhar de contos - quase metade da nossa dotação anual! -, não o pedimos.
Nesse livro, já citado, eu dizia que, se amanhã o pedíssemos, tinha a certeza de que S. Ex.ª o Ministro das Finanças nos daria a verba precisa. E essa convicção ainda não se abalou!
Mas havia outros laboratórios que necessitavam mais do que nós do electrónico, em especial o Instituto de Oncologia e o Instituto Câmara Pestana. E estávamos certos de que, assim que os nossos trabalhos necessitassem, logo encontraríamos como, aliás, temos encontrado sempre o melhor espírito de cooperação. Assim essas instituições pudessem formar pessoal científico, treinado nas investigações da microscopia electrónica. Aqui está um ponto para que valia bem a pena solicitar superiormente toda a ajuda: que bolsas de estudo se concedessem, tanto para o País como para o estrangeiro, a fim de que as investigações com o microscópio electrónico se desenvolvessem na melhor cadência.
A bacteriologia, a histologia e os estudos do cancro reclamam o emprego de tal ferramenta.
Cada desenvolveu toda uma ciência da histologia do cérebro. Egas Moniz deu a sequência lógica a este trabalho. Agora impõe-se, pela actividade doa sábios peninsulares, o estabelecimento de uma nova histologia - a revelada pelo microscópio electrónico -, que possa ser a continuação da obra memorável de Ca j ai.
A bacteriologia e a virulogia carecem de trabalhos aturados, servindo-se dessa nova arma para o avanço da ciência - o microscópio electrónico. Estamos numa encruzilhada interessantíssima da história das ciências. Os microscópios ópticos não permitem ver mais. O electrónico abre novo caminho, rasga vastos horizontes, com as maiores ampliações que proporciona.
Nos tais vinte ou trinta anos próximos deve assistir-se n. descobrimentos sensacionais, de influência enorme para o estudo da vida no mundo dos infinitamente pequenos!
Mas eu estava a falar da economia. Acompanho todos que a apregoam. Creio que- a minha vida, tanto em Portugal como noutros países onde tenho trabalhado, tem sido uma demonstração de que respeito o princípio salutar da economia.
Tenho vivido, no meu trabalho, com muito pouco. E, quando sei que, não há dinheiro, vou, mau grado meu, mergulhado mais e mais ma ciência pura, por ser a ciência aplicada incomparavelmente mais dispendiosa.
Quer; dizer: sempre que faltam os recursos, de homens - os que querem, trabalhar, entenda-se - têm de se entregar de preferência às investigações especulativas, relegando para um plano secundário - que deveria ser primário em muitos casos- as aplicadas, aquelas que se podem traduzir mais rapidamente em consequências práticas, de valor económico visível.
Muita gente ignora isto, cuida que a ciência aplicada é mais barata ... Pois é justamente ao contrário.
Não se cuide que o poupar é evitar todas as despesas ou escolher o mais barato. Os Americanos declaram que the cheapest is the most expensive. O barato sai caro, dia o nosso povo.
E também não se cometa esse erro, que esteve muito em moda, de supor que a ciência se faz só com cérebros ...
Proclamava Dautry que o progresso técnico exige geralmente imaginação, que não custa nada, mas que esta, para ser excitada - e tem de sê-lo, se acaso se quer que seja produtiva -, reclama meios materiais potentes, que custam sempre caro.
A expressão é velha e revelha! Cajal deu-lhe pela primeira vez a forma que havia de marcar. Mas não se caia no exagero de imaginar ainda hoje que a moda é a do saguão, a do Cantinho do corredor, da cave imunda, da barraca a cair aos bocados.
Fala-se sempre dos exemplos clássicos de Pasteur, de Curie, etc. Quase sempre franceses! O Sr. Deputado Jacinto Ferreira refere-se ao caso de Fleming, extraindo a penicilina de uma placa de Petri. Mas foi só para ter ensejo de dizer uma frase de espírito, pois ele sabe tão bem como eu, ou melhor ainda, que a penicilina não se obteve com essa simplicidade e exigiu uma aparelhagem dispendiosa. São de tal forma caris-

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simas as instalações que o fabrico dos antibióticos reclama, que essa é a razão por que muitos laboratórios farmacêuticos, embora bem apetrechados, em vários pontos do Mundo, ainda não puderam começar a produzi-los.
Fala-se dos exemplos franceses. Seria curioso ouvir a opinião de um francês sobre se estava de acordo com os hábitos do seu país de mão dar condições de trabalho aos homens de ciência. Este hábito de copiar modas de França pode ter seu(r) perigos ...
A verdade é que esse grande país, do qual temos recebido tão forte influência na nossa cultura, tem muita coisa que está longe de ser aconselhável.
As ciências em França não têm aquele ambiente que os seus génios mereciam. Muito no contrário. E a história é já velha.
lios tempos da Revolução Francesa um senhor representante do povo, em plena Convenção, ao julgar-se o grande Lavoisier, declarou: «A Revolução não precisa de homens, de ciência». E Lavoisier foi guilhotinado.
Depois da guerra «de 1870, depois dessa pesada derrota que a França sofreu, um grande sábio e um grande coração, um grande francês, escreveu umas páginas que ficaram célebres. Intitulavam-se «Pourquoi la France na pas trouvé d'hommes supérieurs au moment du péril?». Esse homem era Pas-teur, e demonstrava, nessas páginas, que a França fora batida porque não dera meios de trabalho aos seus cientistas.
Em 1939, como em 1870, a França - cito uma passagem de Deribère -- «toujours occupée de la recherche stérile de la meilleure forme de gouvernement, ne donnait q'une attention distraite à ses établissements d'instruction supérieure».
A afirmação «c'est par la science que nous avons été vaincus» - que se devia a Sainte-Claire Deville - voltou a ter triste actualidade.
E sobre as instalações impróprias, sobre essa triste demonstração de pobreza, em recursos materiais, da ciência francesa, escrevia-se o seguinte: «Laboratórios empoeirados, que requerem limpezas múltiplas e estéreis, em que as balanças perdem a sensibilidade, em que os produtos químicos se alteram. Para que o laboratório tenha verdadeiramente todo o valor é preciso que seja um Jaboratório, e não uma cozinha, uma cave ou um sótão». «A bon ouvrier, il faut de bons outils».
Claro que mesmo na França essa moda passou! E agora já existem ali, mercê do trabalho de muitos, magníficos laboratórios. Não impede, porém, que haja ainda gente que se extasie com as condições em que trabalhava Pasteur, com o hangar onde Pierre e Maria Curie descobriram o rádio.
Mas a resposta dos interessados é categórica.
Quando ofereceram a Pierre Curie a Legião de Honra, o sábio respondeu:

Veuillez, je vous prie, remercier M. le Ministre et l'informer que j'éprouve aucun besoin, d'être décoré, mais que j'ai grandement besoin d'un laboratoire.

E Madaine Curie dizia a este propósito, com amargura evidente, que um dos primeiros sábios franceses nunca teve à sua disposição um laboratório conveniente, quando mostrou as suas altas qualidades desde os 20 anos. Aos 47 anos ainda continuava desprovido de condições favoráveis de trabalho.
Poderemos pensar, sem um sentimento de tristeza profunda, no desperdício irreparável do maior bem entre todos, do maior bem de uma nação: o génio, as forças e a coragem dos seus melhores filhos?
Dirão os que, apesar de tudo, provavelmente desconhecendo estas declarações, se entusiasmam ainda com o quadro soturno onde a grande ciência de Claude Bernard, de Wurtz e de tantos outros nasceu e onde se realizaram os memoráveis trabalhos: «Pois sim, apesar disso eles investigaram e deixaram grandes descobrimentos. De acordo, respondemos nós. Mas que descobrimentos maiores não deixariam, se fossem dotados do outros meios de trabalho?
E, o que é anais importante, que gerações de cientistas não preparariam para o futuro, que escol não formariam?
É evidente que esta situação não poderia manter-se indefinidamente. Mesmo na própria França, que se ia destrocando pouco a pouco pela actividade política, os homens de bom senso conseguiram vencer. E a França há-de, se Deus quiser, ocupar ainda um dos lugares da vanguarda no progresso científico.
Sr. Presidente: a Nação exige investigação científica. E Portugal ainda não a tem com o desenvolvimento de que necessita.
Faltaria à sinceridade se enaltecesse apenas o que possui, dizendo que se fez tudo quanto era possível fazer, que as nossas organizações são já satisfatórias para as nossas necessidades. Se o fizesse, cumpriria um mau serviço!
«Dizer as verdades que os outros dizem - proclamou o nosso Vieira - não é acção que mereça singular amor; mas dizer as verdades que os outros deixam de dizer, quem isto faz merece ser singularmente amado. E quem sabe dizer as verdades que todos os outros calam, ele só merece ser mais amado que todos».
Não é por declarar aqui, publicamente, que Portugal não tem a investigação científica de que necessita que me mostro desanimado. Basta reconhecer que a obra já realizada é considerável para evidenciar confiança. O que actualmente existe, em qualquer ramo que olhemos, nas Universidades e laboratórios, é bastante para animar as melhores esperanças. Mas noblesse olilige. Justamente porque temos essa confiança é que queremos mais o melhor. Justamente porque vemos os passos andados é que queremos passos mais deliberados, mais francos, com melhor aproveitamento das gentes e dos valores.
Eu estou aqui, a falar-vos do alto desta tribuna, porque Salazar existe. Senão posso asseverar-vos que nenhum poder terreno me arrancaria ao laboratório. Mas é evidente que se estou aqui não é para me calar, abstendo-me de dar a minha colaboração no que considero de importância capital para a Nação. E, meus senhores, este é um problema que considero vital.
Sem dúvida, os passos andados são enormes. Basta lembrar-nos do que eram as nossas condições no princípio deste século.
A comente geral de opinião que durante anos dominou no nosso meio pode inferir-se através de uma entrevista que a rainha Sr.ª D. Amélia concedeu há anos a um nosso semanário e onde revelou os obstáculos que teve de remover quando quis se instalasse um instituí» de bacteriologia. Facto estranho ser a rainha a tomar a iniciativa. Facto mais estranho ainda o saber-se que a rainha foi contrariadíssima. O Ministério são queria também se dizia que «i Ciência já chegava ...
Se a rainha venceu foi apenas por força de tenacidade. E, mesmo assim, quando os corifeus da política se decidiram a autorizar a instalação do laboratório foi mais por atenção para com a rainha, como que acedendo a um capricho, do que com a convicção firme de que a saúde da população portuguesa reclamava tal centro de estudos.
E não se cuide que eram só leigos em ciência que contrariavam. Também havia professores que prejudicavam a marcha das ciências. Estou a lembrar-me de que quando esse grande especialista de oftalmologia,

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Gama Pinto, esse extraordinário goês, que deu tanto prestígio à nossa Ciência, quis instalar o Instituto de Oftalmologia, centro de estudos notável, houve um professor que teimosamente o contrariou. Nesse momento foi o Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios do Reino, o «conselheiro José Luciano de Castro, quem fez vencer o ponto de vista da criação do Instituto.
Muito se andou, sem dúvida. Mesmo a actividade particular se mostrou interessada pela investigação científica. Esse Instituto Bento da Rocha, Cabral, que nasceu do legado de um português vivendo no Brasil, é uma página valiosa da nossa história das ciências. Foi o brilho literário das crónicas médicas do Dr. Ferreira de Mira que chamou do outro lado do Atlântico as atenções de um português de lei. E, com acerto indiscutível, ao legar a sua fortuna, quis que assumisse a direcção do Instituto o mesmo ilustre cientista, Prof. Dr. Ferreira de Mira. Foi ele, com o poder das suas qualidades de organização e «de estudo, quem imprimiu a esse novo centro uma vitalidade tão interessante para o nosso meio.
Sem dúvida nenhuma, tem-se andado muito. A pouco e pouco tem-se ido modificando a mentalidade geral do Paia. Os homens de ciência já não se encontram sozinhos, em luta contra a adversidade do ambiente. Há muitos aliados das ciências, mesmo entre os que as não praticam, entre as pessoas inteligentes e cultas.
O que sucedia em outros tempos neste Parlamento - como alcunhar de herbanário o grande Brotero, o famoso botânico português, que levou o nome de Portugal a toda a parte - já não se verifica. Seria numa tal enormidade que até estas paredes tremeriam ...
Apesar disso estamos ainda em posição precária, se atendermos às nossas necessidades e se virmos como é rudimentar a nossa organização de investigação científica.
É certo que já existe uma obra digna ide reparo. Evidentemente, não posso esqueceu nada do que se tem conseguido realizar.
Vejo esse Instituto de Oncologia, em desenvolvimento incessante, aperfeiçoando-se de ano para ano, ganhando novas instalações e novas possibilidades de trabalho; vejo o Instituto Português de Combustíveis, que teve logo de começo uma obra tão interessante; vejo a Estação Agronómica Nacional, o Laboratório de Patologia Veterinária, a Estacão do Melhoramento de Plantas de Elvas e o Laboratório de Engenharia Civil.
Vejo todos esses centros de estudo que se têm erguido nas nossas províncias ultramarinas. Sinto, pela fé que anima vá todos, que essa obra já não parra, antes aumentará «lê cadência, para bem desses territórios, das suas riquezas, do bem-estar dos povos.
Vejo o Cica - o Centro da Investigação Científica do Algodão -, esse centro que nasceu da vontade de S. Ex.ª o Ministro das Colónias, da concepção inteligente, e desempoeirada do presidente da Junta de Exportação do Algodão Colonial. Vejo esse Instituto, para o qual cedemos um elevado número de trabalhadores da Estação Agronómica de Sacavém. O seu ilustre director, por amabilidade connosco, pretendia mesmo chamar ao local onde se deveria erguer o belo instituto Nova Sacavém.
Vejo a Estação de Melhoramento de Plantas de Angola, onde se encontram vários trabalhadores nossos. Vejo todos os outros centros para onde temos enviado em caudal constante a nossa gente, a gente da Estação Agronómica de Sacavém e da Estação de Melhoramento de Plantas de Elvas, com as qualidades ou os vícios
- como interpretarem- com que a investigação científica tem procurado formar esses espíritos.
É evidente que não poderia de modo algum esquecer esses bons companheiros, tão dedicados, tão valorosos, de quem temos tantas saudades e cujos esforços no ultramar seguimos de longe, com bem compreensível e justificado entusiasmo.
Não poderia esquecer o que se tem feito no ultramar nem aqui, pois de muitas maneiras tenho tido possibilidades - que talvez muitos não encontrassem - de seguir atentamente o desenvolvimento das nossas instituições.
Não poderia esquecer, evidentemente, a obra em marcava da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais. Não poderia, decerto, olvidar os magníficos resultados obtidos por algumas das suas missões, que aumentaram a soma de conhecimentos sobre as nossas colónias e trouxeram para a civilização valiosas aquisições de alto significado científico. Bastaria a auréola de guiaria que cobre «alguns dos nossos homens de ciência, que corajosa, e patriòticamente se deslocaram às plagas inóspitas do ultramar, ansiosos por aumentar o prestígio da Nação colonizadora, para desde logo se chamarem as atenções gerais pana o valor de tais missões. O nome do Prof. Carriço, mártir da botânica portuguesa, justamente venerado como mim dos que melhor serviu a ciência nas províncias ultramarinas, é tomado como um verdadeiro símbolo da categoria e da projecção científica das missões.
Não posso esquecer o valor dos centros especializados criados pela Junta. Eles já mostraram quanto valem e decerto muito mais mostrarão no futuro, se se prosseguir sem desfalecimentos nem recuos.
Não poderia esquecer a actividade que a Junta das Missões está a realizar, as aspirações que tem e os projectos que concebe. Não poderia esquecer que estão justamente na forja os institutos de ciência africana, que hão-de ser de extraordinária importância para a ocupação científica dos nossos territórios ultramarinos.
Não poderia esquecer, Sr. Presidente, a obra admirável desse Instituto de Medicina Tropical.
O progresso da medicina tropical entre nós, ciência, aliás, já com tradições de valia internacional, tem sido seguido mais do que com simpatia, mais do que com entusiasmo, com verdadeira ansiedade pelo seu triunfo. Não é só o facto de a ela estarem ligado» alguns dos nomes mais prestigiosos das nossas ciências médicas,, a importância da causa a que se devotam esses investigadores, mas ainda, a maneira eficiente como tal Instituto não só efectua a investigação como tem exercido com brilho indiscutível a complementar extensão.
Não posso esquecer, Sr. Presidente, tudo quanto se tem. feito; mas exactamente porque não esqueço a obra realizada, é que sei quanto estamos longe de satisfazer os nossos ideais!
Não posso esquecer os grandes nomes das ciências da nossa terra. Muitos, nestes últimos trinta anos, tenho tido a sorte de conhecer pessoalmente. Fui honrado com a amizade de bastantes.
Conheço muito bem o que foram os seus dramas íntimos, a sede de trabalhar pelo prestígio de Portugal, pela elevação das Universidades, pelei ciência, quando o ambiente era hostil, desagradável, frio ... Vi com os meus próprios olhos como esses homens sofriam, quando se chocavam com a incompreensão do meio e até das próprias Universidades. Pude admirar a luta tremenda que tiveram de travar contra imponderáveis, contra inimigos de toda a casta, pude admirar a sua coragem, o seu sacrifício.
Por isso, meus senhores, quando escrevi um livro sobre organizações científicas, intitulado. No Caminho, quis que na capa estivesse uma flecha. Alguns supuseram que era apenas a indicar uma direcção, uma vez que o título era. No caminho. Não, Sr. Presidente, a seta recordava-me o martírio de S. Sebastião.

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Que alegrias, Sr. Presidente, não colhi depois com a admiração profunda que fui consagrando a essa gente, pela maneira como se dedicava ao verdadeiro apostolado que é a investigação científica!
Cada triunfo ressoava nos nossos corações como se fosse nosso próprio triunfo.
Ainda há pouco tempo soube-mos que ias determinações do nosso Observatório Astronómico da Ajuda, dirigido por esse homem notabilíssimo que é o Dr. Manuel Peres digno continuador dos grandes e inolvidáveis nomes que passaram por aquele Observatório -, não haviam sido excedidas por nenhum observatório do Mundo. E apenas dois observatórios um inglês e outro americano -, extraordinariamente mais ricos que os nossos, tinham obtido o mesmo grau de rigor das determinações portuguesas. Que alegria foi a nossa, quando soubemos esta mova!
Quando rompeu a notícia sensacional de que fora concedido o prémio Nobel a Egas Moniz, todos nos entusiasmámos. Houve entre nós quem se abraçasse com lágrimas nos olhos por vermos esse triunfo para Portugal.
Não, Sr. Presidente, aqui não se esquecem os valores. Muito ao contrário. Toda a nossa vida tem sido uma demonstração desse facto. Para mim é sagrado o princípio de respeitar o trabalho alheio.
Todos os grandes espíritos estão nu nossa memória.
E é par isso, exactamente por isso, que nos cabe correr mais esta prova, tentar levar o facho mais longe, na marcha para o futuro, para o confiar a mãos anais jovens e mais vigorosas.
Sou modesto e apagado cultor das ciências. Não passo de um estudante. Cada vez me sinto com forças mais limitadas. Os anos têm-se-me consumido em luta inglória, na conquista de moios de trabalho para os meus companheiros.
Devo dizer, porém, que sempre que tenho solicitado ao ilustre Ministro das Finanças qualquer ajuda, sempre, em todas as circunstâncias, encontrei franco e decidido apoio. E tem sido tão generosa a sua maneira de receber os meus pedidos que me acanho de pedir mais.
Não tenho o direito de estar constantemente a importunar quem tem preocupações muito anais importantes. Entendo que isso deve já pertencer aos órgãos secundários da Administração.
Ora, se eu vivo torturas, dificuldades enormes, como não viverão os outros por todo esse país, em luta contra os obstáculos intransponíveis das dificuldades de meios?
É pois, também, para que a nossa Administração se aperceba do valor da investigação científica, que busque a organização mais conveniente, que trabalhe para que os homens de ciência não tenham de se preocupar com as aquisições essenciais, que eu falo.
E posso afirmar: falo mais para os outros do que para mim.
Tenho de fazer ainda uma referência a carta passagem do discurso do Sr. Deputado Jacinto Ferreira, quando se refere aos investigadores.
A classificação do pessoal científico, nos estabelecimentos destinados exclusivamente à investigação, sem funções de ensino, apresenta como último grau o de investigador. Estes foram equiparados a professores.
As categorias são de tirocinante, estagiário, com três classes, e investigador. Como fui eu quem propôs esse regime, regime que estudei por encargo do ilustre Ministro da Agricultura de então, o Dr. Rafael Duque, sinto-me à vontade para falar.
Foi o Dr. Rafael Duque o criador dessa organização, que haveria de ser chamada mais tarde - tal a simpatia que encontrou nos meios intelectuais do País - o «rastilho da revolução nacional em matéria de investigação científica». Foi ele, com a sua inteligência, cultura e poder de realização, quem encontrou a fórmula conveniente para que a investigação científica vivesse em regime de full-time. Segundo as suas palavras, os nossos investigadores deviam estar «bem compenetrados da sua missão e sem outras preocupações ou mister».
E foi por isso que eu tive de une submeter ao pesado sacrifício - saberão avaliá-lo em justa medida os que são professores de abandonar a minha querida escola, os meus colegas e os meus alunos, esse ambiente de fraterna camaradagem, que tinha sido até então a razão primária da minha existência.
Pensou-se que se deveria exigir a todo o candidato a investigador um trabalho aturado em full-time durante dez anos, assim distribuídos: dois amos como estagiário de 3.ª classe, três como estagiário de 2.ª classe o cinco como estagiário de 1.ª classe. Ao concluir-se este último período, o candidato a investigador estava em posição de concorrer, em concurso de provas públicas, às vagas de investigador.
Este é o regime em que vivemos na Estação Agronómica Nacional. E pode dizer-se que os outros estabelecimentos copiaram este regime. Presumo por isso que sejam iguais os métodos de recrutamento e de concurso.
Os nossos quatro investigadores - com essa categoria só temos quatro na Estação Agronómica - são todos professores do Instituto Superior de Agronomia. Não foi, portanto, nenhum benefício especial que eles receberam.
Não me parece que constitua promoção o passar do professor Catedrático, como sucedeu comigo, para investigador da Estação Agronómica, tendo de abandonar a aninha cátedra. Emquanto na Universidade eu poderia consagrar-me a toda a casta de trabalhos que quisesse, na Estação passei a não poder fazer mais ainda. Apenas trabalhar exclusivamente pela nossa causa.
Não julgo, portanto, que os investigadores, como poderia supor-se pelas palavras do Sr. Deputado Jacinto Ferreira, foram beneficiados. E também não conheço - pelo menos connosco isso não se deu - que os investigadores chegassem ao seu posto por antiguidade e promoção. Atingiram esses postos por mérito, e só por mérito, reconhecido por nacionais e estrangeiros.
Não, os nossos são professores! Não devem favores especiais, são pessoas de grande categoria em toda a parte. Estou pronto a admitir que o mais antigo, que sou eu, não tenha envergadura para ocupar esse lugar. Mas não posso admitir, sem veemente protesto, que se diga que os investigadores são uns burocratas que conquistaram os lugares por antiguidade e promoção.
Não, para o nosso caso, da Estação Agronómica, essa informação está errada.
Em realidade, os estagiários que vão este ano concorrer tempo de serviço, pessoa de alto valor científico, com uma folha de serviços notável - tem já treze anos de trabalho.
Não, o acesso é uma prova dura, difícil, obrigando a sacrifícios sem conta. Por isso merece que seja conhecida, para que se lhe faça justiça.
Mas não tenho o direito do estar a importunar mais VV. Ex.ªs Esgotei a paciência da Assembleia o sinto que não se esgotou podia ficar esgotado o assunto. Não era com intervenções relativamente curtas, como as que tivemos, que só poderia levar mais longe o tratamento da matéria. Mesmo assim absorvemos quatro sessões, quando sabemos - repito - que o tempo é escassíssimo para os numerosos trabalhos que há a discutir. Temos, pois, de encerrar o debate.
Creio que não houve discrepâncias vivas entro as mossas opiniões. Todos só mostraram convencidos da investigação científica. Uns querem grandes desenvolvimen-

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tos para já; outros, mais modestos, dizem que é preciso moderar esses entusiasmos, que há que ter em conta a escassez d Em suma, à parte estas diferenças de critério, todos foram concordes em salientar a importância da investigação científica. E, assim, julgo que podemos cristalizar as sugestões aqui propostas apresentando uma moção.
Nessa ordem de ideias, tenho a honra de mandar para a Mesa a seguinte:

Moção

«A Assembleia Nacional, considerando a importância do problema da investigação científica aios seus múltiplos aspectos e a sua projecção ma valorização das riquezas, tanto na metrópole como no ultramar, na defesa da saúde pública, na elevação da cultura e na renovação do escol;
Considerando que a obra realizada mesta matéria, sobretudo nos últimos anos, justifica nana reforma de serviços e dotação capaz de assegurar maior desafogo aos centros de investigação e melhor coordenação de esforços.
Considerando que as Universidades e escolas superiores, o Instituto para a Alta Cultura e a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais devem ser inspiradores e animadores dessa organização:
Emite o voto de que se reorganizem e dotem as instituições de investigação científica, coordenando-as e intensificando a actividade dos centros que existem ou sejam criados dentro ou fora da Universidade, ma metrópole ou mas províncias ultramarinas, conforme as exigências sociais ou económicas do meio».
Tenho dito.

O Sr. Presidente: - Considero encerrado o debate. Vai passar-se à votação da moção que acaba de ser lida pelo Sr. Deputado Sousa da Câmara.
Consultada a Assembleia, foi aprovada a moção.

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. A próxima sessão será na terça-feira 21, tendo por ordem do dia a proposta de lei que cria o Fundo do teatro.
Quero prevenir a Assembleia de que é minha tenção designar para ordem do dia a seguir a proposta de lei em que se converteu o decreto-lei que reorganizou o serviço meteorológico nas colónias.
Peço, portanto, às Comissões a que essa proposta de lei foi mandada - Colónias e Obras Públicas - que intensifiquem o seu estudo sobre ela.
Está encerrada a sessão.

Eram 20 horas.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

António de Almeida.
António Calheiros Lopes.
António Jacinto Ferreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Joaquim Mendes do Amaral.
Jorge Botelho Moniz.
José Luís da Silva Dias.
José Pereira dos Santos Cabral.
José dos Santos Bessa.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque
Ricardo Malhou Durão.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alberto Cruz.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Diogo Pacheco de Amorim.
Domingos Alves de Araújo.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Herculano Amorim Ferreira.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pinto Meneres.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Domingues Basto.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Vasco de Campos.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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