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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 119

ANO DE 1952 12 DE JANEIRO

V LEGISLATURA

SESSÃO N.º 119 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 11 DE JANEIRO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.Castão Carlos de Deus Figueira
João Ameal

SUMARIO:-O Sr. Presidente declarou aberta a, sessão às 16 horas e 17 minutos.

Antes da ordem do dia. - O Sr. Presidente anunciou estarem na Mesa os elementos solicitados pelo Sr. Deputado Jacinto Ferreira ao Ministério da Economia, os quais lhe foram entregues.

O Sr. Deputado Calheiros Lopes foi autorizado a depor como testemunha no juízo da 1ª para cível da camara de Lisboa,
Usaram da palavra ou Srs. Deputados Dinís da Fonseca, para se referir à última nota oficiosa do Conselho de Ministros; Sousa Meneses, que enviou para a Mesa um requerimento, e Paulo Cancela de Abreu, que tratou do seu projecto de Lei nobre abandono de família e chamou a atenção da Mesa para_ o facto de muitas vezes os Deputados não receberem convite, para a.» mais importantes solenidade oficiai.
O Sr. Presidente deu explicações II este Sr. Deputado acerca dos seus reparos.

Ordem do dia. - Continuou o debuta na generalidade da proporia de lei relativa ao condicionamento industrial. Usaram da palavra os Srs. Deputados Pinho Brandão e Magalhães Ramalho.

O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 25 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Cazaes.
Albino Soares Finito dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Talares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calheiros Lopes.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Raul Galiamo Tavares.
António doe Santos Carreto.
António Sobral Mendes de Magalhães Ramalho.
António de Sousa da Câmara.
Armando Cândido de Medeiros.
Avelino de Sousa Campos.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero BeLard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Délio Nobre Santos.
Diogo Pacheco de Amorim.
Elisão de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.

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Francisco Cardoso de Maio Machado.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Fenreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Lima.
Herculano Amorim Ferreira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoion Borges do Canto.
João Amaral.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amarai.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Cardoso de Matos.
José Dias de Araújo Corredia.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Garcia Nunes Mexia.
José Luís da Silva Dias.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Mauel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Meneses.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Arantes.
Vasco Lopes Alves.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 77 Srs. Deputados.

Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 17 minutos.

Antes da ordem do dia

Deu-se conta do seguinte

Expediente Telegrama

Do Grémio da Lavoura de Loures a pedir a aprovação da base VI da proposta de lei sobre condicionamento das indústrias.

O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos solicitados ao Ministério da Economia pelo Sr. Deputado Jacinto Ferreira, os quais lhe vão ser entregues.
O juízo da 1.ª vara cível da comarca de Lisboa pede autorização à Câmara para que o Sr. Deputado Calheiros Lopes possa depor no dia 6 de Março próximo, pelas 14 horas, naquele tribunal, em audiência de julgamento nos autos de acção especial em que é autora a

Federação Nacional dos Produtores do Trigo e ré Xavier António Rosado, L.da

Informo a Câmara que aquele Sr. Deputado não vê inconveniente na autorização da Câmara para aquele acto.

Consultada a Assembleia, foi concedida autorização,

O Sr. Presidente: - Tem o palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Dinis da Fonseca.

O Sr. Dinis da Fonseca: - Sr. Presidente: a última nota oficiosa emanada do Conselho de Ministros deu conhecimento duma malograda conjura contra a ordem pública.

Pareceu-me que o facto, tanto considerado em si mesmo como nas suas possíveis repercussões na ordem interna ou na internacional era susceptível de prender por alguns momentos a atenção desta Assembleia.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-Nos tempos em que estas perturbações da ordem eram. periódicas costumava o velho Parlamento abater bandeiras políticas para oferecer aos governos do então o seu apoio político e autorizá-los u tomarem todas as medidas que achassem convenientes a um de meterem nu ordem os perturbadores.

Na orgânica actual o Governo não carece do nosso apoio político nem da nossa autorização para tomar as medidas que julgo convenientes ao inteiro restabelecimento da ordem pública e de acção contra os que a perturbam, mas creio que se de tal carecesse encontraria nesta Câmara o apoio unâdime e indiscutível.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-A Nação, Sr. Presidente, repudia, no mais fundo da sua consciência política, todas as agitações subversivas e todas as perturbações da tranquilidade e do trabalho, de que tanto precisamos para viver.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador:--Aguardando esclarecimentos mais completos sobre a extensão e possíveis intuitos da conjura que veio a público, não podemos deixar de lamentar, com mágoa patriótica, o momento escolhido para as actividades subversivas.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-Na altura em que se aproxima a reunião de uma, conferência internacional nesta cidade ...

O Sr. Botelho Moníz: - Por isso é que o momento foi escolhido. Seria o segundo acto de Bogotá.

O Orador:-No momento em que o País aceita os sacrifícios necessários para que possamos alinhar honrosamente na frente exterior, os inimigos externos podem contar com uma frente interna que, embora não se declare aliada deles, infelizmente procede como se de facto o fosse.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-E é ainda certo que a luta na frente interna se torna bem mais difícil e perigosa do que na frente exterior. Na frente interna os adversários procuram reforço na própria preparação defensiva. Procuram destruir, e não conquistar -o que é sempre mais fácil -, procuram atingir as fontes da vitalidade espiri-

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tual e os fundamentos morais da própria sociedade, e por isso era bem possível que a batalha pudesse perder-se na frente interna ainda quando fosse ganha na frente exterior.

Consta ainda que a conjura procuraria servir-se de meios terroristas para impedir as energias defensivas de actuarem oportunamente.

Quer isto dizer que temos de despertar a consciência cívica de todos os portugueses, de estimular a sua coragem moral, de pôr de parte todas as causas de dissídio ou de enfraquecimento da unidade nacional que, porventura, possam ser exploradas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-Atrevo-me, para terminai, a dizer uma última palavra: creio que neste momento a invasão subversiva bate às portas de cada uma das nossas consciências a suplicar um pouco de fraqueza ou um momento de transigência.

Da resposta que soubermos dar-lhes, frouxa ou decidida, dependerão porventura novas audácias dos conjurados ou o triunfo definitivo da ordem e, com esta, a garantia da independência e grandeza da Nação.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O orador foi cumprimentado .por todos ou Srs. Deputados.

O Sr. Sousa Meneses: - Sr. Presidente: pedi a V. Exª a palavra para mandar pura a Mesa o seguinte requerimento:

Requeiro que me sejam fornecidas pelo Ministério da Economia, com u possível urgência, os seguintes dados:

1.º Cópia e data do despacho ou outra providência havida que determinou o sequestro do gado açoriano;

2.º Cópia e data do parecer, relatório ou informação que determinou essa providência;

3.º Informação detalhada sobre todas as investigações e procedimentos de ordem científica e suas causas determinantes que deram origem ao parecer e despacho a que se referem os dois números anteriores ;

4.º Informação sobre as investigações científicas postas em prática nas ilhas para confirmar a suspeita da doença que deu motivo ao sequestro e quais as providências adoptadas para combater essa doença, caso ela se tenha verificado;

5.º Informação se no despacho do ano findo de S. Ex.ª o Subsecretário de Estado da Agricultura que levantou o sequestro do gado holandês suspeito de peripneumo-nia se incluía o levantamento do sequestro em que permanecia o gado açoriano ou se houve despacho especial que o determinasse, e nesse caso requeiro a respectiva cópia;

6.º Em qualquer das hipóteses, indicação da data em que esse levantamento do sequestro para o gado açoriano entrou em execução; informação precisa sobre o número de cabeças importadas das ilhas a partir dessa data, quais as ilhas de procedência dos animais, destino de cada uma das reses à sua chegada ao conti-nente e relato circunstanciado de qualquer ocorrência verificada na saúde desses animais e qual o procedimento adoptado;

7.º Esquema indicando a área de disseminação da doença declarada nos bovinos do continente a, que se referem os editais do Governo Civil de Lisboa de 17 de Setembro o 12 d» Outubro do ano findo, indicando o ponto de partida da epizootia e a sua marcha, número de casos verificados e diagnosticados de peripneumonia e quais os meios adoptados no combate a essa doença.

O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: na sessão de 1 de Abril de 1949 tive a honra de enviar para a Mesa um projecto de lei sobre abandono de família, que mereceu à Assembleia o voto de urgência, tendo V. Ex.ª fixado o prazo de doze dias para a Câmara Corporativa dar o seu parecer. E este parecer foi emitido em 26 do referido mês e, portanto, num dos últimos dias do período de prorrogação da sessão legislativa.

Terminou simultaneamente a legislatura, e, por isso, o meu projecto deixou de ter relevância. Era mister renová-lo na nova legislatura: e assim procedi na sessão de 21 de Abril de 3900, tendo exposto então as razões por que o não fizera mais cedo.
Voltou o projecto à Câmara Corporativa, e. tendo estranhado a demora do novo parecer e procurado informar-me, foi-me dito que aquela Câmara entendera não haver lugar a novo parecer, ou limitava-se a confirmar o anterior.

Obtido este esclarecimento, fiquei aguardando melhor oportunidade para voltar ao assunto, e esta não surgiu durante a anterior sessão legislativa, por virtude do número, da importância e da urgência dos outros trabalhos que a ocuparam; e, por outro lado, não quis que fosse havida por impertinente a insistência da minha parte, embora, como sempre, pudesse contar com a solicitude e boa vontade de V. Ex.ª

Manter, porém, indefinidamente a mesma atitude podia ser levado à conta de arrependimento ou renúncia, quando é certo que nada o justificava.

Bastam para demonstrá-lo as razões em que, no relatório do projecto, o baseei e o acolhimento que lhe deram, a Câmara Corporativa e a opinião pública, não obstante o Âmbito do projecto ser restrito a sanções objectivas sobre determinados casos mais urgentes, enquanto não é promulgado o novo Código Civil, ou o Código da Família.

Seria ocioso voltar a demonstrá-lo hoje; basta reservar-me para fazê-lo quando o projecto for designado para ordem do dia.

Limito-me, pois, a solicitar de V. Ex.ª que se digne mandar agora ouvir as comissões competentes sobre o projecto, e, em seguida, com a possível brevidade, submetê-lo à apreciação da Assembleia Nacional.

Aproveito a circunstância de estar no uso da palavra para ocupar-me de outro assunto.

Quero referir-me ao facto notório e estranho de, salvo raras excepções, as instâncias oficiais se absterem de dirigir aos Deputados convites ou cartões de acesso que lhes permitam marcar a sua presença nas solenidades oficiais mais importantes, nomeadamente quando só trata da inauguração de grandes melhoramentos públicos de interesse nacional.

É legítimo que nessas cerimónias comparticipe, por intermédio dos seus representantes, toda a Nação, n. Nação que paga esses empreendimentos, embora possibilitados pelo rasgo das iniciativas e por uma administração finan-

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ceira modelar, que teve um grande mestre e realizador, e vai prosseguindo.

Sei que para essas cerimónias tem sido convidado - e deu-lhes o realce da sua presença- o Sr. Presidente da Assembleia. Mas isto não deve obstar a que se torne extensivo aos Deputados, ...

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador:- ... como aliás aos Procuradores à Câmara Corporativa, aquele imperativo dever das entidades oficiais; dever que é também de elementar cortesia.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Há factos e atitudes que têm a aparência de insignificantes; mas, por vezes, as aparências iludem.

Pode ser este o caso.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu apresentou na legislatura passada um projecto de lei sobre o abandono da família. Esse projecto obteve parecer da Câmara Corporativa, mas, porque terminou a legislatura, teve de ser renovada a sua iniciativa.

A Câmara Corporativa confirmou o seu parecer anteriormente dado, e, portanto, o projecto do Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu está nas condições regimentais de ser submetido à apreciação da Assembleia.

Nestas circunstâncias, vou deferir o pedido do Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu para que esse projecto baixe às comissões respectivas da Assembleia e seja oportunamente incluído na ordem do dia.

Quanto à segunda parte da intervenção do mesmo Sr. Deputado, devo dizer à Assembleia que sempre o Governo e as entidades oficiais têm tido para com a representação da Assembleia Nacional todo o cuidado e toda a correcção, nunca omitindo, nos grandes actos públicos e cerimónias oficiais, a representação da Assembleia, por intermédio da sua presidência.

Preciso de acentuar este facto, que, aliás, o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu não deixou de referir; e ac.entuo-0, porque elo corresponde à verdade, o que não quer dizer que eu não compreenda as observações do Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu quanto ao convite individual aos representantes da Nação.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Agradeço as palavras de V. Ex.ª
Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta de lei relativa ao condicionamento das indústrias. Tem a palavra o Sr. Deputado Pinho Brandão.

O Sr. Pinho Brandão: - Sr. Presidente: a proposta do lei ido Governo sobre condicionamento industrial, agora em .discussão nesta Assembleia, pelos interesses que move e pelos princípios que aplica merece a maior atenção desta Câmara.

Não é novo, como todos sabem, o condicionamento industrial no nosso país. Num momento de crise aguda para a indústria portuguesa, reflexo da crise geral de que o Mundo sofria em 1931, o então Ministro do Comércio, o saudoso Dr. Antunes Guimarães, que foi nosso ilustre colega nesta Assembleia, decretou esse condicionamento com carácter provisório para acudir à situação grave em que se encontrava então a indústria.

Entrou-se desta forma, sob a pressão dos factos da ocasião, em economia dirigida em matéria industrial, embora a medo, com hesitação natural e com a prudência que era de aconselhar.

Porém, os insucessos de algumas modalidades industriada, por falta de técnica e de garantia financeira, e as contigências a que se expunha a classe operária, como se afirma no Decreto n.º 19:354, que instituiu o condicionamento industrial, além de outras razões, justificavam que o Estado interviesse na vida industrial do País, porque, além do mais, estava posta uma grave questão social: o desemprego de grandes massas operárias pela falência eminente de numerosas empresas industriais.

O Estado intervinha na economia da Nação para defesa dos altos interesses, da colectividade. A absoluta liberdade económica que vigorou em todos os países cultos durante o século XIX e nos começos deste século começou a derruir, porque a guerra mundial - a primeira grande guerra -, pelo enormíssimo desenvolvimento da máquina e pelo fabrico em série dos produtos industriais, havia levado a uma superprodução na indústria, por um lado, e era limitada a capacidade de consumo, por outro lado. A agravar a crise, um exagerado proteccionismo alfandegário em quase todo o Mundo, elevadas taxas de juro e mobilização de capitais avultados nos investimentos de uma superutensilagem industrial. A crise arrastava as empresas à ruína irremediável, e por isso eram encerradas as respectivas fábricas e, consequentemente, ficavam ma miséria os operários e suas famílias. Esta era ainda a situação mais grave, que se impunha aos Estados e que os obrigava a intervir em nome dos mais altos interesses do agregado nacional.

Foi debelada a crise de 1931. - Mas a economia liberal sofreu rude golpe na lógica rígida dos seus princípios. A vida social e económica já não pode nem deve ser ordenada exclusivamente pelo sistema absoluto do liberalismo económico e ao conceito de liberdade de trabalho é preciso juntar o conceito do direito ao trabalho, nos termos e condições que a lei defina, garantindo-se ao trabalhador ocupação e salário suficiente.

Não há dúvida de que o Estado pode e deve intervir na vida económica e social da Nação, ordenando-a e regulando-a superiormente, e a legitimidade desta intervenção por parte do Estado Português está hoje garantida pelo artigo 31.º da Constituição Política.

Volvidos seis anos sobre a publicação do Decreto n.º 19:354, votou esta Assembleia Nacional a Lei n.º 1:956, que veio a ser publicada em 17 de Maio de 1937 e que estabeleceu as bases do condicionamento industrial no nosso país. Em relação u legislação anterior, a Lei n.º 1:956 restringiu o campo de aplicação do condicionamento, libertando indústrias que até aí estavam u ele sujeitas. Mas o condicionamento, que até aí era considerado como transitório e ocasional, como uma medida de urgência, necessidade inevitável de uma época de crise, passou, pela referida Lei n.º 1:956, a ser um regime definitivo, embora com carácter excepcional. Com carácter excepcional, insiste-se, porque o Estatuto do Trabalho

Nacional continuava a afirmar no seu artigo 4." que o Estado reconhecia na iniciativa privada o mais fecundo instrumento do progresso e da economia da Nação.

Mas em que termos e condições deve o Estado intervir na vida económica, da Nação e particularmente na actividade industrial do País?

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Lembro, Sr. Presidente, a este respeito o ensinamento de Salazar:

O Estado deve manter-se superior ao mundo da produção, igualmente longe da absorção monopolista e da intervenção pela concorrência. Quando pelos seus órgãos a sua acção tem decisiva influência económica, o Estado ameaça- corromper-se. Há perigo para a independência do Poder, para a justiça, para a liberdade e igualdade dos cidadãos, para o interesse geral em que da vontade do Estado dependa a organização da produção e a repartição das riquezas, como o lia em que ele se tenha constituído presa da plutocracia de um país. O Estado não deve ser o senhor da riqueza nacional nem colocar-se em condições de ser corrompido por ela. Para ser árbitro superior entre todos os interesses é preciso não estar manietado por alguns.

Normalmente o Estado deve tomar sobre si a protecção e a direcção superior da economia nacional pela defesa externa, pela paz pública, pela administração da justiça, pela criação das condições económicas e sociais da produção, pela assistência técnica e o desenvolvimento da instrução, pela manutenção de todos os serviços que são auxiliares da actividade económica, pela correcção dos defeitos que por vezes resultam do livre jogo das actividades privadas, como é o da desigual distribuição da população e de uma inconveniente estrutura da propriedade rural, pela especial protecção das classes menos favorecidas pela assistência, quando não pode conseguir-se, mediante a acção das instituições privadas, a conveniente satisfação das necessidades humanas.

Ideias são estas, Sr. Presidente, ainda hoje inteiramente oportunas, apesar de terem decorrido já perto de dezanove anos depois que Salazar as expôs em discurso magistral.

Não há dúvida de que o «Estado deve manter-se superior ao mundo da produção» e de que, «quando pelos seus órgãos a sua- acção tem decisiva influência económica, o Estado ameaça corromper-se».

Na proposta de lei em discussão começa-se logo por reconhecer à iniciativa particular o direito de promover a instalação de novas unidades industriais e a modificação das existentes e acrescenta-se a seguir que, quando o progresso ou o equilíbrio da economia o exigirem, o Governo regulará, mediante condicionamento industrial, o .exercício da iniciativa privada. Embora o princípio da iniciativa privada constasse já doutras disposições legais, é sem dúvida conveniente que esse princípio se reafirme num diploma que estabeleça o regime em que o Governo intervém na actividade industrial do País e se diga expressamente que esta intervenção tem carácter excepcional. Como se acentua no relatório da proposta, o princípio da iniciativa privada tem andado muito longe do espírito de muitas pessoas, até daquelas que, dada a sua posição dentro do Estado, mais obrigação têm de o reconhecer, e por isso não é demais relembrá-lo em novo diploma legal.

No douto parecer da Câmara Corporativa emitido sobre a proposta de lei em discussão lamenta-se que, de entre todos os princípios (consignados no Estatuto do Trabalho Nacional, se faça na proposta apenas referência ao princípio da iniciativa privada e que não se aluda aí à instauração do sistema permanente que o estatuto teve por objectivo principal, acrescentando-se que na proposta o condicionamento subsiste apenas como regulador excepcional dos direitos soberanos da iniciativa privada, não com fins permanentes a atingir no complexo da nova orgânica económica e social da Nação, mas como intervenção de recurso, e que, assim, a proposta, não prima nem pela concisão nem pela definição dos limites em que podem ter lugar as intervenções do Estado na vida económica.

Ora eu afirmo, Sr. Presidente, que o condicionamento industrial deve efectivamente apenas subsistir como regulador excepcional do princípio da iniciativa privada e que o Estado, fora do condicionamento, ainda tem outros meios eficazes e idóneos para conseguir a realização dos demais princípios consignadas no Estatuto do Trabalho Nacional, que aliás continuam em vigor, sem que a tal respeito possa surgir dúvida séria.

A proposta de lei em discussão destina-se a reger somente a forma por que o Estado intervém, em restrição da iniciativa particular, na vida industrial do País com respeito à instalação, reabertura e mudança do local dos estabelecimentos industriais e às modificações no equipamento industrial e fabril. Parece-lhe que a proposta de lei do Governo tem, assim, em matéria de condicionamento industrial, a necessária concisão e define expressa e claramente os limites em que o Estado pode- intervir.

De resto, embora constituindo mero regulador excepcional do princípio da iniciativa particular, o condicionamento industrial, no uso que do mesmo se faça, subsiste «com fins permanentes a atingir no complexo da orgânica económica e social da Nação», mesmo apenas como intervenção de recurso e somente quando o progresso ou o equilíbrio da economia o exigirem.

Não vemos, pois, que haja lacuna séria ou grave na omissão existente na proposta de lei quanto aos demais princípios constantes do Estatuto do Trabalho Nacional, princípios que, apesar disso, não deixarão de orientar a política do Governo.

Insurge-se a Câmara Corporativa contra a omissão ira proposta de lei da parte final da base II da Lei n.º 1:956, que diz assim:

As actividades que se acharem ou venham a estar organizadas corporativamente ou sujeitas à disciplina dos organismos de coordenação económica de feição corporativa, ou pré-corporativa ficam sujeitas ao condicionamento inerente ao seu regime especial.

Contra o parecer da Câmara Corporativa, entendo, Sr. Presidente, que esta disposição não tem razão de ser e que até é conveniente que a mesma desapareça da lei do condicionamento industrial, pela confusão a que pode dar lugar.

Em que consiste o condicionamento inerente ao regime especial das actividades organizadas corporativamente?

Este condicionamento certamente nada tem com aquele de que trata a presente proposta de lei, ou seja com o que consiste na faculdade de que o Governo fica a dispor (e já dispunha) de autorizar ou não à iniciativa particular, orientado pelos interesses superiores da colectividade, o exercício de certos e determinados actos.

Decerto o condicionamento a que se refere a parte final da base II da Lei n.º
1:956, o tal condicionamento inerente, não substitui, não pode nem deve substituir, o condicionamento industrial, cujo uso deve entrar na competência exclusiva do Estado, como árbitro e juiz supremo dos interesses superiores da economia nacional.

Pois é lá possível, Sr. Presidente, que os superiores interesses dia economia da Nação e da colectividade, interesses que tocam nos próprios meios de vida dos cidadãos, sejam julgados e decididos definitivamente pelos organismos corporativos, aos quais, pela sua estrutura e processo de formação, falta ia isenção e o equilí-

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brio necessários para julgar e decidir daqueles altos interesses?

O Sr. Assis Pereira de Melo: - O Sr. Deputado dá-me licença? V. Ex.ª refere-se aos organismos corporativos primários ou às estruturas superiores da orgânica corporativa ?

O Orador: - Refiro-me a todos os organismos corporativos, seja qual for o seu grau.

O Sr. Assis Pereira de Melo: - Quer dizer: V. Ex.8 elimina o carácter decisório dos organismos corporativos e substitui-o por uma directa intervenção do Estado, de sentido dirigismo puro.

O Orador: - Os organismos corporativos podem, na verdade, ter funções de decisão, mas, em relação ao condicionamento industrial, as suas funções devem ser puramente consultivas, pertencendo exclusivamente ao Estado o poder de autorizar ou não a instalação de estabelecimentos industriais, como representante dos superiores interesses da economia (nacional.

O Sr. Assis Pereira de Melo: - Então V. Ex.ª entende que uma coisa é a
económica em si mesma e outra, sem expressão exclusivamente económica, a permissão de dela fazer parte.

O Orador: - A permissão de fazer parte dos organismos Corporativos não deriva do
acto do Estado em si, que se limita a autorizar ou não a instalação de uma determinada indústria ou modalidade industrial, conforme o exigirem os interesses nacionais, mas sim da situação que deriva do acto do Estado e que lhe permite, porventura, o ingresso no organismo corporativo respectivo.

O Sr. Assis Pereira de Melo: - V. Ex.ª agora esclareceu o seu pensamento e eu dou-me por satisfeito.

O Orador: - Não me parece, pois, que os organismo corporativos devam ter, em relação ao condicionamento industrial de que se ocupa a presente proposta de lei, outra função que não seja a de informação e consulta, embora obrigatórias; mas esta encontra-se plenamente garantida na proposta em discussão.

Condicionamento industrial e organização corporativa são conceitos diferentes, que é necessário não confundir, embora se não desconheça que os organismos corporativos possam prestar e prestem efectivamente auxílios valiosos ao Estado para que o condicionamento funcione com relativa perfeição.

A Câmara Corporativa afirma no seu douto parecer que o Estado Português, ao lançar os fundamentos da nova doutrina económico-social, teve o mérito de querer defender os direitos do indivíduo e da iniciativa privada e que o maior objectivo da organização corporativa foi fortalecer esses direitos com uma estruturação que os tornasse consistentes e lhes permitisse resistir ou conviver com a crescente influência do Estado.

Também assim o cremos de boa vontade, mas é conveniente, é de alto interesse para a colectividade nacional, examinar outras faces, ou, melhor dizendo, outros aspectos da defesa dos direitos do indivíduo e da iniciativa particular, e esses aspectos consistem em analisar, com o espírito despido de preconceitos, se u organização corporativa defende tão-só os direitos dos indivíduos que já fazem parte da respectiva associação e da iniciativa (privada dos já iniciados na Indústria, mas também dispensa protecção e amparo aos direitos dos indivíduos que chegam de novo e desejam iniciar-se na actividade industrial, alguns dos quais com reais qualidades criadoras e de organização; ou se, pelo contrário, a organização corporativa se opõe, na defesa dos pretensos direitos dos já associados, à manifestação legítima dos direitos dos indivíduos que chegam mais tarde, às vezes com grave lesão do progresso industrial do País.

Por outro lado, é necessário evitar de uma maneira geral a formação de monopólios no exercício das actividades industriais, os quais conduzem a maior parte das vezes a lucros exagerados, com graves prejuízos para os consumidores, sem que tabelamentos se possam opor com êxito a esses lucros excepcionais e injustos.

Porque estas situações, Sr. Presidente, merecem também a melhor atenção da parte dos governantes, a cargo dê quem está a defesa do bem comum. E, assim, a base viu da proposta contém doutrina que considero salutar e útil, impedindo que o condicionamento seja desvirtuado dos seus objectivos e, consequentemente, se transforme em obstáculo do progresso industrial ou conduza a monopólios) de lucros anormais para as respectivas empresas.

O Sr. Vaz Monteiro: - Tenho estado a ouvir com o maior interesse a sua bem elaborada intervenção acerca do condicionamento industrial. E peço apenas licença, ao ouvir-lhe falar em monopólio, para um simples esclarecimento.

Tenho ouvido condenar o condicionamento das indústrias, com o fundamento de ser uma lei de protecção monopolista.

Não há dúvida de que assim é. Realmente o condicionalismo conduz ao monopólio. Porém, temos de pensar que o condicionalismo conduz ao monopólio de direito, ao passo que o liberalismo conduz ao monopólio de facto.

E estou certo de que ninguém poderá pôr em dúvida que o monopólio de direito é preferível ao monopólio de facto.
Há ainda um outro esclarecimento a fazer, relativamente à nossa organização corporativa.

Quando o corporativismo estiver completamente aperfeiçoado e concluído, isto é, quando existirem as corporações, quer estas sejam organizadas em sentido restrito ou vertical, ou em sentido lato ou horizontal, ficará então mais aliviado o trabalho do Governo.

O Orador: - Eu entendo que não.

O Sr. Vaz Monteiro: - Quando as corporações estiverem completamente organizadas, o Governo fica aliviado, e a este cumpre apenas sancionar aquilo que as corporações resolverem.

O Orador: - Mas o Governo pode não sancionar essas deliberações.

O Sr. Vaz Monteiro: - Exactamente.

O Orador: - O Governo não pode deixar de ser o árbitro da economia da Nação.

A base VI da proposta isenta de condicionamento os estabelecimentos de trabalho caseiro e familiar nas indústrias consentâneas com o trabalho no domicílio e os estabelecimentos complementares da exploração agrícola destinados à preparação e transformação dos produtos do próprio lavrador ou de vários lavradores associados nas indústrias tributárias da agricultura.

Permite-se, por esta base, a associação de lavradores para a exploração industrial dos (produtos* da agricultura, e entende a Câmara Corporativa que isso não é de vantagem para o interesse comum nem lógico com os princípios da organização corporativa.

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Ora eu creio, Sr. Presidente, que esta permissão vem não só beneficiar a nossa agricultura, pela valorização dos seus produtos - e ela bem precisa de ser beneficiada -, como ainda empregar a mão-de-obra rural, com a consequente vantagem de atenuar os perniciosos feitos do urbanismo. E tudo isto é servir o interesse nacional. De resto, é preciso ter em atenção que a agricultura tem tido pela frente unia indústria fortemente protegida pelo condicionamento, o que diminui a procura dos seus produtos ou conduz a pagar esses produtos por preços inferiores ao que é justo, por vezes por preços aviltantes. Ora isto pode levar à ruína da classe agrícola, o que certamente não constitui vantagem de interesse comum. Pois, Sr. Presidente, as associações de lavradores para a preparação e transformação dos seus produtos por meio de cooperativas agrícolas impedem ou podem impedir que os lavradores atenham a ser vítimas das maquinações gananciosas de certos industriais. Haja em vista o que tem sucedido com as empresas resineiras na exploração dos pinheirais dos nossos lavradores, as quais, para auferirem vultosos lucros, não hesitam em arruinar os pinheirais, com grave dano para os proprietários, e fogem muitas vezes ao pagamento da resina por meio de um engenhoso processo de «tesitas-de-ferro» que nada possuem, para o que essas empresas se esquivam geralmente à redução a escrito dos contratos de resinagem.

Por outro lado não me parece justo que às empresas industriais seja permitida a exploração agrícola como complemento e acessório das suas explorações industriais, sem quaisquer restrições, e à lavoura seja proibida a preparação e transformação dos respectivos produtos como complemento da exploração agrícola.
Este conjunto de razões, Sr. Presidente -e outras mais se podiam aduzir em defesa do que a este respeito se contém na proposta de lei --, leva-me a julgar conveniente a solução proposta.

Pela base IX da proposta torna-se obrigatória a publicação de um regulamento do processo das autorizações, com vista à maior simplicidade e rapidez.

Bem necessário se torna, Sr. Presidente, esse regulamento, no qual se simplifiquem, os processos de autorizações e se estabeleçam prazos curtos de informação e consulta, com as respectivas sanções para os serviços que não cumpram.

Com respeito à audiência dos organismos corporativos, deverá também ser marcado prazo para a respectiva resposta, sob pena de o respectivo processo seguir sem ela. A este respeito todo o cuidado é pouco.

É que, Sr. Presidente, já no parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de que resultou a Lei n.º 1:956, de 17 de Maio de 1937, se afirmava que a decisão dos requerimentos demorava meses e anos. E acrescentava-se aí:

O facto é certamente grave. Por ele não só sé compromete o fim disciplinador do condiciona -, mento industrial, visto serem os serviços públicos os primeiros a dar o mau exemplo, como se anula a função protectora que esta organização deve ter, para a transformar em simples estorvo aborrecido e pouco eficaz.

Passaram-se depois disto perto de quinze amos, e não me parece que as coisas tenham melhorado, se porventura se não agravou ainda o mal ide que enfermava então a organização. Foi-se tão longe, Sr.- Presidente, que os respectivos serviços têm feito obstrucionismo ao cumprimento dos despachos ministeriais e algumas vezes até se têm negado ao cumprimento desses despachos.

Isto é muitíssimo grave, porque, além da indisciplina que revela, representa a inversão de toda a hierarquia administrativa, e tanto mais grave quanto é certo que diz respeito a assuntos que tocam os próprios meios de vida dos cidadãos.

Assim se gera no País aquele estudo de espírito de cepticismo e de aborrecimento contra a burocracia que lido com o condicionamento industrial e se faz destes burocratas aquele juízo a que Salazar se referia nos seguintes termos:

O burocrata é, no simplismo e também por vezes na justeza dos juízos populares, o homem inútil que se compraz em multiplicar as formalidades, encarecer as pretensões, amortalhar em papéis os interesse, embaraçar os problemas com as dúvidas, atrasar as soluções com os despachos, obscurecer a claridade da justiça em nuvens de textos legais, ouvir mal atento ou desabrido as queixas e as razões do público, que são o pão, ou o tempo, ou a fazenda, ou a honra, ou a vida da Nação perante o Estado e a sua justiça; trabalhar pouco, gatunar muito é certo; sem proveito nem utilidade social, parasitàriamente sorve como esponja o produto do suor e do trabalho do povo.

Pela presente proposta de lei será remodelado o Conselho Superior da Indústria, que, além de funções consultivas, estudará por iniciativa própria os problemas respeitantes ao condicionamento e à reorganização e fomento das indústrias.

Será formado por técnicos competentes, por industriais de reconhecida idoneidade e por representantes dos organismos corporativos e obrigatoriamente ouvido pelo Ministro da Economia sobre a instauração ou cessação do condicionamento de qualquer indústria, sobre a disciplina dos preços das mercadorias e a modificação ou revogação das autorizações concedidas.

São complexas e delicadas as funções que ficam competindo a tão importante órgão da Administração Pública. Oxalá ele venha a corresponder à esperança que o Governo, remodelando-o com as mais sérias e elevadas intenções, deposita na sua futura acção e à expectativa do País no que respeita à justa defesa dos mais altos interesses da colectividade e dos mais legítimos direitos de todos os cidadãos.

Estamos, Sr. Presidente, em face de uma proposta de lei da maior projecção na vida nacional, apresentada pelo Governo com as mais elevadas intenções de servir bem o País.

Por mim, não tenho dúvidas em dar-lhe o meu voto.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador fui muito cumprimentado.

O Sr. Magalhães Ramalho: - Sr. Presidente: entre os vários elementos que nos foram fornecidos pelo Sr. Ministro das Finanças para o estudo da Lei de Meios deste ano figurou uma primeira estimativa, provisória, do rendimento nacional, anual, desde 1938.

Não sei até que ponto os respectivos apuramentos virão ainda a ser corrigidos num trabalho definitivo, nem tão-pouco quais as razões que explicam uma certa impressão de constrangimento e estranheza com que se fica ao examinar, cem cuidado, alguns dos números que figuram nessa estimativa, iniciativa da maior oportunidade, como vamos ver e pela qual um muito merecido agradecimento é devido ao Sr. Ministro das Finanças.

Com eleito, quem se der ao trabalho de examinar esse quadro com atenção, de corrigir os respectivos números do valor relativo da moeda antes e depois da-

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guerra e de os confrontar com os elementos correspondentes da população a que dizem respeito creio que será levado a tirar as seguintes conclusões, a primeira das quais muito estranha, de facto, e em contradição com os aumentos substancias verificados em vários sectores da produção nacional.

Estimativa provisória do rendimento nacional português efectuada em cumprimento do artigo 9.º da Lei n.º 2:045
Unidade: 1.000:000 escudos
Rubricas 1938 1047 1048 1949 1900 00

[ver tabela na imagem]

(a) Estimativas baseadas em dados incompletos o sujeitos a correcção.
(b) População estimada para o meio do ano, em função do censo anterior, excepto para 1950, em que se tomou já a população apurada polo censo desse ano.
(c) Segundo os índices anuais médios do custo de Tida em Lisboa.

Rendimento nacional ao custo dos factores em 1938 por cada pessoa empregada ou vivendo da respectiva actividade (asando a distribuição por profissões do censo de 1940):

Agricultura, silvicultura e pecuária-2.350*90: Pesca -3.743*;
Indústrias extractivas e transformadoras - 9.327*70 (ou 12.601*, consoante o que se tiver entendido por indústrias transformadoras e serviços).

Nota. - As duas últimas rubricas do quadro, bom como a observação final fora deste, foram estabelecidas com base em elementos que não sei só serão concordantes com os critérios seguidos na elaboração da estimativa do rendimento. Não pude, porém, adoptar outros por o Ministério das Finança» não ter fornecido com o seu quadro quaisquer pormenores sobre a orientação geral que presidiu à respectiva elaboração.

1.º Que o rendimento nacional parece não só não ter aumentado efectivamente no seu conjunto como ter baixado muito sensivelmente a respectiva capitação de 1938 para cá (cerca de 12 por cento);

2.º Que o rendimento nacional se distribui presentemente quase na mesma proporção pelas seguintes ordens de actividades: agricultura e silvicultura; pesca, indústrias extractivas e transformadoras; outras actividades;

3.º Que, tendo em atenção o número de pessoas que se empregavam nos trabalhos da exploração da terra e na indústria, a capitação do rendimento desta era, pelo menos, cerca de quatro vexes maior que a daquela à data do último apuramento que se conhece das profissões (censo de 1940).

Estas três impressões, além da sua manifesta relevância, julgo bastarem para definir a nossa panorâmica económica actual - em tempo de paz e ainda sem grandes despesas de rearmamento - e nos fazerem meditar, só por si, e muito seriamente, nos cuidados que o aumento da produção nos deve merecer nos anos mais próximos.

Por outro lado, não parecem também ser melhores os horizontes da política internacional, dominada fundamentalmente por dois receios: ou o de uma guerra que tudo arrase, ou o de uma inflação perigosa - como consequência de um rearmamento preventivo, por tempo indefinido -, que acabe por pôr em risco as mais sólidas economias mundiais.

E neste quadro portanto, e quando vemos - como há poucos dias vimos ainda, a propósito da organização da defesa nacional - os próprios peritos militares preocupados com o equilíbrio dos termos do binómio potencial económico-potencial militar, como base indispensável dessa defesa, e afirmar - como se fez no respectivo parecer da Câmara Corporativa- que anda à volta de quatro mil o número de produtos de indústrias de paz que podem classificar-se como estratégicos, que nós vamos decidir - reparem V V. Ex.ªs também, pela terceira vez em menos de quinze anos! - sobre uma matéria de interesse vital para o futuro da indústria portuguesa : o da revisão do seu regime de condicionamento!
Como todos nós sabemos, a economia de um país - e a indústria não foge a essa regra, antes pelo contrário- é algo de muito melindroso e complexo, que se não constrói de um momento para outro, mas ao longo de muitos anos, à custa de um trabalho insano e de uma orientação perseverante, que tenham tido em conta as realidades dos vários condicionalismos que caracterizam esse mesmo país.

Quer isso dizer que sé deve ser sempre muito prudente no estudo dos caminhos que em tal matéria convém seguir e que, escolhidos estes, se devem evitar constantes mudanças de rumo, que muitas vezes pouco resolvem ou resolvem mal, até porque chega a não haver tempo de formar uma ideia, impessoal e desapaixonada, dos benefícios ou malefícios do rumo anterior.

«Estudar na dúvida e realizar na fé» foi conselho que nos deu alguém que muito bem nos conhece nas nossas qualidades e defeitos.

A sombra desse lema e de doutrinas e orientações específicas -claramente definidas e firmemente defendidas contra tudo e contra todos, mesmo nas horas mais críticas - executaram-se tarefas definitivas magníficas em matéria financeira, de política externa, de reer-

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ganização militar, de marinha- mercante, de obras públicas, etc.

Ter-se-á, porém, verificado a mesma sequência e unidade de critérios e de pontos de vista em matéria económica e sobretudo industrial?

Teremos nós já realizado tudo quanto humanamente - e como portugueses verdadeiramente conscientes dos melindres dos problemas da sua pátria- podíamos e devíamos ter feito para atingir esse estado de maturidade orgânica e espiritual tão necessário?

Que resposta, atinai, podemos dar, em consciência, a essas questões prévias tão fundamentais para que possamos, ao menos, começar por saber o que queremos, porque queremos e como queremos?

Lamento muito dizê-lo, mas receio que algo do que temos visto nesse campo, sobretudo nos anos que se têm seguido à guerra de 1945, nos leve a concluir por uma negativa muito pouco reconfortante.

O espírito com que parece haver sido elaborada a proposta que estamos apreciando, em contraste com a doutrina dos outros diplomas que a precederam - a Lei n.º 1:956, sobre o condicionamento industrial, de 1937, e a Lei n.º 2:005, sobre o fomento e reorganização industrial, de 1945 -, julgo mesmo que constitui só por si mais um exemplo desse tactear constante de um rumo que nos satisfaça que apontei.

Esse e outros sintomas, por isso que aqui e ali afloram com frequência no plano da nossa economia, dão-me mesmo às vezes a impressão de que não chegámos ainda a assentar ideias sobre alguns dos seus conceitos basilares, e por maioria de razões sobre certos pormenores da respectiva execução. E, todavia, tal é - nos absolutamente indispensável, por motivos óbvios.

Reparem, por exemplo, VV. Ex.ªs que, a um quarto de século de vida de uma revolução nacional que se disse corporativa, ainda se parece perguntar o caminho no campo das doutrinas gerais económicas: liberalismo ou dirigismo? Dirigismo integral ou mitigado? Corporativismo do Estado ou de associação? Concentração ou dispersão? No campo da própria orgânica e especificamente até no da estrutura do respectivo Ministério não falta mesmo quem discuta - e receio que com certa razão- se a direcção superior da economia deverá estar confiada, como presentemente, só a um Ministério da Economia, com dois Subsecretariados, ou a um Ministério de Coordenação Económica - em plano equivalente ao da Presidência e ao da Defesa -, que, assistido por um Conselho Superior de Coordenação Económica, integrasse em bases imperiais toda a política económica da Nação, conduzida através dos Ministérios das Finanças, Comércio e Indústria, Agricultura, Ultramar, Obras Públicas e Corporações, este último, por sinal, pesando já, só com a sua política de carácter social, com cerca de 25 por cento sobre o custo da mão-de obra empregada nas actividades industriais!

Não faço comentários, mas, registando o que vejo e ouço, sinto-me na obrigação moral - ao tratar concretamente da proposta que aqui me trouxe - de começar por pensar um pouco em voz alta e, guiando-me apenas pela razão e alguma experiência da vida, tentar abrir um caminho, pelo menos para mim, através da divergência manifesta de opiniões que parece ainda existir sobre o tão debatido problema da orientação que mais nos convém seguir na indústria.

Sr. Presidente: ao estudar-se qualquer tema que diga respeito à condução geral da política industrial de um país há que manter constantemente presentes no nosso espirito os seguintes três tipos de questões fundamentais:

Os interesses da sociedade;
Os interesses do indivíduo;
Os condicionalismos da própria indústria.

Só por uma justa ponderação e equilíbrio destes três grupos de sujeições -e não apenas pela consideração exclusivista de alguns deles-, por isso, será possível chegar-se às soluções que mais convenham aos objectivos de ordem superior que toda a política procura ou tem a obrigação de procurar.

Vejamos então o primeiro: os interesses da sociedade. Por definição, indústria é todo o conjunto de operações que visa a transformação de matérias-primas e a produção de riqueza, isto é, de bens que, directa ou indirectamente, interessem ao indivíduo ou à colectividade em que este se integra.

Leva-nos assim o estudo da História facilmente à conclusão de que as primeiras actividades de carácter industrial foram quase contemporâneas, se até as não precederam, das primeiras manifestações milenárias da actividade agrícola do homem, esse ser que, no dizer de alguém, desde que a sua presença se manifestou na Terra, logo se revelou como «técnico» e cuja prodigiosa aptidão para o desenvolvimento de uma vida em sociedade, bem como todo o seu progresso material e moral, estiveram potencialmente contidos na chama da sua primeira fogueira!

Desde então, e como muito bem observa o mesmo autor, «a história da civilização é, em grande parte, constituída pelos esforços alternados destas duas grandes forças que sustentam e dominam o indivíduo: a técnica, que prolonga até ao infinito a sua acção; a sociedade, que prolonga até ao infinito a sua duração.
Umas vezes é o génio industrial, a invenção cientifica e mecânica que parece conduzir toda uma civilização na sua marcha ascendente. Outras vezes é a sociedade que domina o progresso técnico, que o regula e, por assim dizer, o contém, dobrando-o à harmonia dos grandes instintos vitais; mas, enquanto civiliza em extremo, o pensamento técnico adormece-o: as requintadas realizações da Grécia e de Roma, os refinamentos da muito alta cultura chinesa, parece bem terem exigido semelhantes renúncias.

Suponho que muito pouca gente terá hoje já dúvidas sobre que é qualquer coisa como uma época de transição entre essas duas posições extremas que estamos vivendo, ou devíamos estar vivendo, se verdadeiramente quisermos salvar as formas de civilização a cuja sombra nos criámos.

Extraviada, com efeito, durante quase dois séculos por um racionalismo sistematicamente destruidor de tudo o que nos ligava às experiências e disciplinas de um passado secular; tendo-se atribuído o direito de decidir livremente, por si própria, das fronteiras do sobrenatural e da ética; arvorando o pendão do êxito material e da força como única razão de ser, ou fanal, da vida dos indivíduos e das sociedades, era fatal que mais tarde ou mais cedo a humanidade viesse a encontrar-se - qual novo «aprendiz de feiticeiro» - perante o trágico espectáculo de forças diabólicas em colisão, que ela própria afinal desencadeou. Esta a verdade nua e crua.

Ouve-se, no entanto, com mais frequência do que se devia, atribuir à técnica e à ciência a responsabilidade de todos os malefícios da nossa época, como se elas tivessem estado também presentes num período semelhante ao actual - o da queda do Império Romano - e não tivessem acompanhado, em contraste flagrante com essa afirmação, um dos surtos mais maravilhosos da história do Mundo: o do Renascimento!

Tenta-se fugir assim a uma realidade de que só o homem é responsável e pode remediar, e que é a de que não foi a máquina, mas o espírito diabòlicamente egotista com que ela tem sido usada -traindo alguns dos mais sagrados direitos do humano e do sobrenatu-

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ral - , a causa original de quase todas as crises de nossos dias.

É, pois, no sentido da reforma ou recristianização desse espírito, como quiserem -nas leis, na política, nas sociedades, nas famílias como nos indivíduos-, que devemos dirigir todos os nossos esforços e não os perdermos na repetição de erros velhos ou na discussão estéril de méritos ou deméritos de sistemas como os do liberalismo integral, que há muito deram as suas provas nos campos do social e do económico, até na própria nação que mais os defendeu há cinquenta anos: a Inglaterra!

Como muito bem, ainda há poucas semanas, aqui dizia, do alto desta tribuna, o ilustre Ministro da Justiça:

A fé impõe a todos uma tarefa marcada pela hora da sua vida; a contemplação estática da Providência é uma fuga ao dever, pois que a lei moral é uma lei de acção. Importa acatar de boa mente a dura realidade, assumir perante ela responsabilidades e enfrentar o destino, para não entregar o Mundo, entre gritos de alarme, às forças do Mal....................................................

Importa «colaborar na obra de redenção divina, dando forma a um novo Homem, a um Mundo novo, a uma nova Vida».

Começo, por isso, Sr. Presidente, por não poder concordar que no ano da graça de 1951 se abra ainda qualquer lei, muito particularmente relativa à indústria - essa poderosa arma de dois gumes, para o bem ou para o mal-, com bases em que expressamente se não tome posição quanto ao primado de um ideal mais alto que o da simples defesa ou afirmação de direitos meramente individualistas, como se verifica na base I da proposta que estamos estudando.

O homem isolado, independente, senhor todo poderoso de direitos cegos, é ser que só existiu no espírito de Rousseau.

Dependemos cada vez mais uns dos outros, pelo que o equilíbrio social que tanto se busca não tem solução possível sem o aumento da produção, sim, mas sobretudo sem um reinado de verdadeira justiça entre todos os cidadãos.

Como muito bem fez notar Sua Santidade Pio XI, em 1931, na célebre encíclica Quadragésimo anno, a livre concorrência, ainda que dentro de certos limites seja justa e vantajosa, não pode, porém, de nenhum modo,. e só por si, bastar como norma reguladora da vida económica.

Tudo isto, afinal, são verdades há muito demonstradas mas, porque também parecem ainda andar às vezes arredias de muitos espíritos, não ficaria igualmente mal - pelo sim, pelo não - fazer reavivar a sua lembrança em qualquer base, à guisa de pórtico, na nova lei...

Vejamos agora o segundo ponto: o dos interesses do indivíduo.
Tem sido, evidentemente, sempre os interesses pessoais, materiais ou morais, os grandes propulsores de toda a actividade humana.

Sem o seu estímulo, o progresso das sociedades seria impossível e a Humanidade talvez ainda hoje se encontrasse nos primitivos estágios da idade da pedra lascada

Não há, portanto, que discutir, mais ou menos filosoficamente, se essa maneira de ser é um bem ou é um mal.

Há apenas que verificar que ela corresponde a uma característica intrínseca da própria natureza do homem e que como tal não pode, ou não deve, quem governa proceder, ingénua ou eufemísticamente, no desconhecimento dessa realidade.

Deve sim, pelo contrário, aceitá-la francamente e, promovendo a respectiva sublimação, utilizá-la o melhor possível nessa dificílima arte de conduzir os homens que é a política.

Partindo de premissa tão evidente, eu creio, por isso, que dela se poderá deduzir, sem esforço, que não é só ao indivíduo que interessa, mas a toda a colectividade, que, respeitadas as obrigações para com a sociedade a que pertence, o cidadão tenha o direito de aproveitar em seu benefício, e até ao limite das suas capacidades, todas as potencialidades de iniciativa, de trabalho, de inteligência ou de valor que a Providência magnânimamente lhe tiver concedido. Um dos problemas mais sérios, com efeito, com que os Governos deparam em nossos dias - e que mais angustiosamente se lhes há-de pôr no futuro - é o de proporcionar as ambições e as necessidades dos povos às respectivas possibilidades reais de produção.

Estimular, portanto, as primeiras - como tão perigosa e sedutoramente vem sendo feito pelas formas mais diversas - e ao mesmo tempo limitar as últimas, sem razões muito ponderosas -coarctando o livre exercício da iniciativa e actividade individual, agentes fundamentais de toda a produção - não seria já caminhar no sentido de uma colectivização niveladora, que tanto se teme, mas no de um verdadeiro caos económico, de multidões esfaimadas, julgando-se com direito a tudo, mas produtoras de quase nada!

Coerente, portanto, igualmente, com mais essa verdade, eu concordo, Sr. Presidente - mas com as reservas que pus a propósito dos interesses da colectividade -, com a aprovação de qualquer base (que para mini nunca devia ser a lª, mas a 2ª) em que se exprima o princípio de que a iniciativa privada, quando inteligentemente orientada, é ainda uma das melhores alavancas do progresso e do bem-estar geral, e como tal deve ser estimulada e acarinhada.
Vejamos, Sr. Presidente, por último, o terceiro ponto: o dos condicionalismos da própria indústria.

Quem alguma vez se tenha interessado por problemas relacionados com a vida da nossa indústria sabe bem que o fatalismo que basilarmente tem sempre condicionado, e continuará a condicionar, toda a sua laboriosa evolução é a excessiva exiguidade dos nossos mercados de consumo interno e o reduzidíssimo valor do respectivo poder de compra.

Desse fatalismo derivam depois, encadeadamente, como consequência lógica e inevitável, todos os demais traços ou aspectos que caracterizam a indústria portuguesa : a tendência para uma proliferação nociva das unidades deficientes; o atraso técnico; a má qualidade e maior custo dos produtos fabricados; a dificuldade de conquista dos mercados externos; a falta de capitais; a propensão, em suma, para uma vida precária e aleatória.
Este, quase sempre, o ponto de partida, quer o queiramos, quer não, de qualquer providência verdadeiramente construtiva que se deseje tomar sobre a nossa indústria.

Procedermos, portanto, ainda que de boa fé, como se tal realidade não existisse é iludirmo-nos a nós próprios e complicar, ou tornar irrealizável, a existência de uma indústria capaz em Portugal e não darmos conta da gravidade do alarme que ressalta do exame dos números sobre o rendimento nacional a que logo de entrada me referi.

Que orientação se deve então seguir perante um problema que tem tais raízes e se apresenta com aspectos tão melindrosos?

Para mim não se me põe qualquer dúvida no espírito e sobre tal matéria julgo que só há que adoptar a mesma atitude que tomaria um bom médico, conscien-

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cioso e hábil, perante um caso de doença ou anomalia organicamente séria: combate frontal à causa principal do processo patológico e mitigação, por adjuvantes adequados, das respectivas manifestações secundárias.

Por outras palavras: terapêutica integral, e não apenas a de alguns sintomas mais incómodos, teimosa e amorosamente aplicada durante tanto tempo quanto o necessário, mudem ou não mudem os responsáveis pela sua administração.

Este o ponto de chegada, quer o queiramos também, quer não, se efectivamente desejarmos alcançar resultados práticos e concretos em matéria de progresso industrial.

Se V. Exª. me dá, por isso, licença, Sr. Presidente, alongar-me-ei um pouco mais, para não me ocupar só seca e exclusivamente do condicionamento industrial - um dos tais tratamentos de sintomas secundários desagradáveis a que atrás me referi-, mas integrando-o devidamente no quadro geral das providências de conjunto que, a meu ver, convêm ser tomadas simultaneamente com aquele.

Respeitando, portanto, a mesma ordem de encadeamento das anomalias que apontei como caracterizando a indústria portuguesa, vou ocupar-me, ainda que muito rapidamente, como não podia deixar de ser, daquilo que suponho serem os respectivos remédios, a saber:

A expansão dos mercados;

O condicionamento propriamente dito;

O auxilio técnico;

O crédito e a atracção dos capitais.

Expansão dos mercados. - É este, como disse, o problema crucial de toda a indústria portuguesa, pois que sem mercados não há produção, sem produção não há lucros, sem lucros não pode haver progresso, nem técnica, nem bons produtos, nem bons salários, nem, em suma, bem-estar social!

Apesar de se tratar de uma realidade mais do que evidente, tenho a impressão de que ela ainda anda muitas vezes arredia dos nossos espíritos -de governantes e governados -, não sei se pensando que, abandonando à sua sorte o que é nosso e nos há-de sustentar, os outros ou o céu se hão-de encarregar, milagrosamente, de nos dar o pão e velar pelo nosso bem-estar e o dos nossos filhos!

Com necessidades de importação anual de produtos industrializados que pesam ainda em mais de 00 por cento (mais 3,5 milhões de contos) na nossa balança de importações; com o alarme gritante que nos dá o quadro dos nossos rendimentos nacionais, que, ao mesmo tempo, nos aponta uma capitação de rendimento na indústria, apesar de recente e embrionária, quatro vezes superior ao de uma agricultura muitas vezes secular; num mundo em que no campo industrial se está recorrendo aos mais agressivos processos de concorrência - como os da retenção de matérias-primas essenciais e o da prática dos seus duplos preços, que chegam a beneficiar a indústria dos seus países de origem em mais de 100 por cento do preço do custo dessas matérias-primas-, nós ainda hesitamos e nos damos, por vezes, ao luxo de preferir produtos estrangeiros, mesmo em igualdade de condições de preço e qualidade!

Ainda há poucas semanas um grande industrial se me queixava de que, tendo despendido, expressamente, alguns milhares de contos no equipamento de uma das suas fábricas, com vista à produção de certa maquinaria pesada que nos é muito necessária, estava a ver toda a sua arrojada e patriótica iniciativa em terra -depois do fabrico auspicioso de meia dúzia de unidades, uma das quais esteve exposta, com grande sucesso, na ultima Feira das Indústrias - pelos obstáculos de toda a ordem

que se lhe levantavam em certas repartições oficiais, sobretudo do ultramar, para poder ser preferido material de fabrico estrangeiro!

O exemplo é expressivo, mas não único; antes e depois dessa ouvi queixas de natureza análoga a outros industriais. Serve, porém, bem para demonstrar a urgência de uma mais rigorosa actuação governamental e colectiva no sentido da defesa dos produtos do trabalho nacional, tanto na metrópole como nas províncias ultramarinas.

Como muito bem se acentua no relatório da Câmara Corporativa e na declaração de voto do Sr. Prof. Rodrigues Queiró, é, de tacto, cada vez mais instante traduzir-se por actos nu campo da política económica concreta aqueles princípios de coordenação e unidade imperial que há muito se proclamam.

Em quase todo o território nacional, mas sobretudo no de certas províncias ultramarinas, está-se processando hoje, com efeito, um movimento de larga envergadura no sentido do seu equipamento e desenvolvimento, em parte importante, à custa de produtos estrangeiros, que fazem uma guerra de morte aos nossos.

Suportarmos, pois, as responsabilidades e encargos de todo esse esforço e deixarmos aos estranhos um dos mais imediatos benefícios que dele poderíamos tirar - o do progresso efectivo da nossa armadura industrial- é repetirmos o mesmo erro que cometemos, bem. como a Espanha, no século XVI, quando sofremos a inflação brutal produzida pelas riquezas dos Descobrimentos e as não aproveitámos no desenvolvimento das nossas indústrias, deixando esvair essas riquezas a fazer trabalhar para nós os nossos perigosos concorrentes - a Holanda, a Inglaterra, a França, etc. -, os verdadeiros beneficiários de todo esse ouro, como os séculos seguintes bem vieram a demonstrar!

Temos, portanto, de agir e agir depressa.

Não bastam, porém, atitudes passivas, embora também evidentemente úteis, como, por exemplo, as medidas recentemente tomadas sobre a obrigatoriedade de preferência dos produtos nacionais (Decreto n.º 38:504) e sobre o reajustamento das pautas alfandegárias.

Impõe-se, sobretudo, a planificação adequada e a realização esclarecida de uma ofensiva sistemática no sentido da expansão efectiva dos mercados para todos os nossos produtos em geral, e os industriais em particular, aqui, no ultramar e no estrangeiro.

Reparem VV. Ex.ªs que, enquanto países estrangeiros bem mais ricos e poderosos que nós chegam a possuir organizações, oficiais e particulares, expressamente para esse fim - que para tal se servem dos mais variados meios, desde a propaganda ao estudo e informação permanente das necessidades e demais características dos mercados-, nós nem sequer podemos possuir ainda, à falta do comando único de um Ministério de Coordenação Económica, uma orientação convenientemente centralizadora sobre a matéria, dispersa presentemente pelos mais variados Ministérios: Economia, Ultramar, Estrangeiros, etc.

Excepção feita, por isso, de uma ou outra actividade melhor organizada corporativamente, o industrial português tem de contar prática mente consigo - num mundo de concorrência atroz - se tiver a veleidade de muito patriòticamente pensar em colocar os seus produtos no ultramar ou no estrangeiro.

As próprias referências de ordem geral sobre as tendências particulares dos vários mercados em cada momento, que tão facilmente poderiam ser colhidas e divulgadas periodicamente pelos interessados, com o auxílio dos nossos consulados e adidos comerciais, se existem, morrem quase sempre, sistematicamente, no segredo ou nos arquivos das respectivas repartições oficiais.

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Apontam-se a dedo - como modelos de simplicidade, realismo e bom senso prático- as publicações periódicas ao alcance de toda a gente, do género, por exemplo, do Boletim Mensal de Informação Económica, da Direcção dos Serviços de Economia de Angola!

Todavia, e em contraste bem doloroso com essa pobreza de elementos tão úteis, invadem-nos quase todos os dias as nossas casas enxames de publicações oficiais, ou oficiosas, mais ou menos luxuosas e mais ou menos laudatórias - com muitas «excelências» e fotografias à mistura -, que nos chegam, às vezes, a fazer matutar em qual das sete partidas do Mundo teríamos nós ido afinal aprender tão original forma de lutar pela vida e ganhar esforçadamente o pão nosso de cada dia ?!...

Condicionamento industrial. - É este o tema principal da proposta que estamos estudando e por isso me vou ocupar dele mais detidamente.

Sem quaisquer interesses pessoais, directos ou indirectos, na indústria, há muitos anos que me habituei a ouvir serenamente as mais apaixonadas discussões sobre tão palpitante tema e sobre os méritos e os deméritos do liberalismo e do dirigismo no campo industrial.

Ao fim e ao cabo fico geralmente com a impressão desagradável de todos termos estado a perder o nosso tempo, tão evidente me parece sempre, em princípio, mais conforme com a natureza humana o liberalismo do que o dirigismo, e portanto o condicionamento.

A questão, porém, de que se trata no fundo não é a de se decidir filosoficamente se tal ou tal princípio é em pura teoria mais perfeito do que outro e porquê.

Salvo o devido respeito, o problema que essencialmente se põe e importa resolver é este: se as condições técnicas da indústria de hoje e as do ambiente geoeco-nómico em que a mesma se tem de desenvolver nos podem deixar acalentar ou não a esperança de podermos possuir uma indústria capa/em regime de total liberdade, e, caso negativo, se nos interessa ou não também possuí-la em regime de condicionamento.

E não vale a pena perder muito tempo a olhar para o que os outros fazem, porque o nosso caso é, no geral, incomparavelmente diferente do deles -basta o atraso, de quase meio século, verificado na evolução da nossa indústria -, e nem sempre devem muito à coerência com os tais princípios todas as atitudes que nos mesmos se vêem tomar. Cito apenas um exemplo: uma Inglaterra ferozmente liberal há menos de cinquenta anos - quando rica, poderosa e com largos mercados externos - passar com a mesma naturalidade - logo que pobre, enfraquecida e sem a maior parte desses mercados- ao dirigismo mais avançado em que vive muita da sua indústria de hoje: nacionalizações, proibição de trânsito de mercadorias essenciais de umas fábricas para as outras, etc.

Posta a questão neste pé e tal qual ela é, então já talvez nos seja possível chegarmos a qualquer conclusão prática em matéria de decidirmos quais as posições que, afinal, nos convém francamente tomar sobre o assunto.

Senão vejamo-lo:

Convir-nos-á ter uma indústria digna desse nome, que nos sirva capazmente tanto na paz como na guerra?

Só os cegos o não vêem, mas até talvez esses mesmos comecem a sentir agora o problema de outra maneira, quando passarem a dar conta - através de um estudo cuidadoso dos quadros anuais dos rendimentos comparados nacionais - que com uma indústria incipiente fabricamos já produtos que igualam, em valor, os da produção agrícola, com um rendimento mínimo por português, empregado ou vivendo dela, quádruplo do desta!

Poderemos nós então pensar em ter uma indústria nessas condições vivendo em regime de total liberdade?

Não lembrarei que a capacidade económica de produção de certas indústrias que precisamos absolutamente ter -como a siderúrgica- igualam, quando não excedem, a totalidade dos nossos respectivos consumos metropolitanos.

Não contarei mesmo a VV. Ex.ªs a história humorística de um colega meu, técnico de valor e consciencioso, que, enquanto em alguns meses estudava honestamente a produção correcta de um determinado material médico de responsabilidade que ainda se não fabricava entre nós, viu de repente aparecerem-lhe pela frente -por inconfidência de um operário seu- nada menos do que quatro concorrentes a lançarem no mercado material desse, de péssima qualidade e perigoso para a saúde, feito à matroca, mas a preço tão aviltado que teve depois dificuldade em lançar o seu, apesar de fabricado segundo as melhores prescrições estrangeiras da especialidade!

Não citarei igualmente os resultados desastrosos que tiveram para a proliferação do número de unidades insuficientes nas respectivas actividades a libertação súbita do regime de condicionamento, em 1947, de várias modalidades da indústria de cerâmica, de saboaria, de tipografia, etc. Só de 30 de Julho de 1947 a 31 de Dezembro de 1949 foi autorizada a instalação de mais 274 fábricas de barro vermelho, não contando com as do Ministério da Justiça, que tanta impressão fazem ao nosso ilustre colega Sr. Deputado Melo. Machado! ...

O Sr. Melo Machado: - Mus o Estado, através do Ministério da Justiça, continua a fazer concorrência.

O Orador: - Em principio concordo com V. Ex.ª, e já o disse aqui quando V. Ex.ª, há tempos, se referiu ao assunto.

Prosseguindo, porém:

Limito-me apenas a pôr diante de VV. Ex.ªs o seguinte quadro, em que se acham reunidos alguns elementos relativos a diversas indústrias portuguesas, publicados no último Boletim, o n.º 156, da Direcção-Geral dos Serviços Industriais:

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[ver tabela na imagem]

(a) Em 1931 estão praticamente aptas a laborar mais duas fábricas de adubos azotados, cujo valor do equipamento se pode arbitrar em 330:000 contos.

(b) Em 1931 existem cinco, sendo uma de cimento branco, no valor total do 440:000 contos.

c) Esta Importação foi excepcional neste ano. Normalmente não existe.

d) Valores imprecisos.

e) Vinte e duas trabalham em regime caseiro.

Atentem VV. Ex.ªs nos extremos de pulverização a que será preciso ter-se chegado em certas indústrias - mesmo tendo em atenção as pequenas instalações e as indústrias caseiras - para se obterem números médios de uma dezena de operários por fábrica ou oficina e valores de equipamento industrial da ordem de grandeza da meia centena de contos!

Em contraste com essa proliferação doentia - sintoma de uma pressão demográfica tremenda, que outras actividades não absorvem e um condicionamento oportuno não canalizou a tempo - reparem, no entanto, VV. Ex.ªs, como em outras indústrias - como as de cimentos, adubos, fiação e tecidos de algodão, etc. -, mercê de um condicionamento natural -derivado das condições específicas de trabalho dessas fábricas - ou de uma intervenção inteligente do Estado, as mesmas não só tendem a manter-se em níveis técnicos satisfatórios, assegurando convenientemente as nossas necessidades internas, como vão ao ponto de concorrer com as próprias indústrias similares estrangeiras. Exemplo: a de fiação e tecidos, com exportações médias nos últimos anos de mais de meio milhão de contos, não obstante ter chegado até a estar suspensa.

O Sr. Vaz Monteiro: - A proibirão de exportação foi simplesmente no fio, e não nos tecidos, e V. Ex.ª sabe muito bem qual foi a razão disso. Mas ainda bem que o Governo está sempre atento ao interesse nacional.

O Orador: - É porque o algodão nacional era mais barato que o estrangeiro e este faltava como consequência de compras feitas por certos países.

Continuando, porém: a experiência, portanto, julgo já estar suficientemente feita para ainda podermos ter algumas ilusões, sobre o assunto.

Não me parece, por isso, defensável, nem humano, nem conforme com a ética do nosso regime, andarmos neste «vira» constante de indústrias que se condicionam e libertam. Essa mudança pode não ter importância quando se tratar de actividades não saturadas - não são essas, de resto, aquelas para as quais se põe o problema do condicionamento.

Tem, porém, no geral, ou pode ter, consequências muito sérias, quando se trata de indústrias que, bem ou mal equipadas, têm já uma capacidade de produção muito superior às respectivas necessidades de consumo, de momento, do País.

Cito, como sempre, um exemplo, a que assisti há bastantes meses na minha região, sem nada poder fazer, quando à sombra de uma liberalização recente alguém se lembrou de montar uma instalação para o fabrico mecânico de determinado artigo.

As consequências desse gesto foram simplesmente estas e só estas: ruína de uma indústria manual secular e importante numa região pobre e que poucas mais tem; miséria e sofrimentos lancinantes, durante longos meses, em mais de mil pessoas, entre desempregados e suas famílias; encargo total para o Estado e para os particulares - dei-me ao trabalho de fazer as contas! -, representado por perdas de salários, esmolas e subsídios de socorro aos desempregados, cerca de três vezes maior que o benefício colectivo obtido com o abaixamento do preço de venda dos produtos que passaram a sair da nova fábrica; finalmente, e como fecho apoteótico, crise

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financeira gravíssima do próprio industrial causador de tudo isso, que, sendo rico, já depois nem sequer tinha meios para transferir essa fabrica para o ultramar, como era seu desejo e lhe havia sido posteriormente autorizado !

Não se pode deixar de reconhecer que era difícil fazer mais e melhor em tão pouco tempo.

O Sr. Melo Machado: - Parece que na proposta de lei que estamos a discutir se procura dar remédio a estas situações.

O Orador: - Mas o que eu desejo é que se diga, de uma vez para sempre, se sim ou não, para se ficar a saber o que se resolve em definitivo.

O Sr. Caldeiros Lopes: - Não há economia que resista a isso, e as consequências, quer materiais, quer até mesmo sociais, são enormes.

O Orador: - Já lá vamos, mas devo dizer desde já que reconheço que V. Ex.ª tem toda a razão.

Dir-me-ão: é que essa indústria era um caso especial de saturação de capacidade produtiva.

Leiamos então, ao acaso, algumas passagens dos milhares de exposições e relatórios que se têm feito a propósito de crise nas mais variadas indústrias:

Sobre as fábricas de moagem:

Tem-se pretendido que a capacidade produtiva das fábricas actualmente instaladas é insuficiente para as necessidades do abastecimento nas épocas de maior consumo.

Só por superficial análise do problema se pode admitir esta premissa.

É sabido de todos que a indústria portuguesa de farinhas espoadas trabalha no regime normal de nove horas diárias.

Também é do conhecimento geral que esta indústria é inteiramente automatizada e foi concebida pelos construtores das respectivas máquinas para uma laboração contínua, isto é, de vinte e quatro horas diárias.

Como pode, pois, considerar-se insuficiente uma indústria da qual só se utilizam normalmente três oitavos do seu potencial produtivo?

Sobre as fábricas de borracha:

Pena é que o peso das importações, que tão fortemente se faz sentir na indústria da borracha, não seja mais equitativamente repartido por outras actividades industriais, visto as fábricas de borracha existentes, em número já de trinta e seis, estarem a produzir menos de metade do que o necessário ao consumo nacional, quando têm uma capacidade de produção duas ou três vezes superior a esse consumo.

Sobre as indústrias gráficas (reparem VV. Ex.ªs: crise de indústrias gráficas numa terra em que o palavriado escrito está muito longe de estar em crise e de ser mesquinho no trabalho que dá):

A indústria gráfica nacional, regularmente estabelecida, dispõe de capacidade de trabalho suficiente para satisfazer uma população de, aproximadamente, 30 milhões de habitantes.

Não canso mais VV. Ex.ªs com outros exemplos: é assim sempre a mesma toada que se ouve, quer se trate de refinação de azeite (sete vezes o consumo nacional) ou do fabrico de vinagre (três vezes); de sabões ou tintas e vernizes (cinco vezes); de fundições (cinco a dez vezes); de fábricas de pregos e parafusos (seis vezes); de descasque de arroz ou de vidros (duas a quatro vezes); etc.

Pergunto eu então: estaremos nós sinceramente convencidos e seguros de que a liberdade total de cada um montar as fábricas que deseja ou precisa - mesmo a pretexto de laborar produtos de sua lavra - é que vai ser a panaceia milagrosa que nos há-de ajudar a resolver a questão e a termos assim qualquer indústria capaz?

Por mim, devo dizê-lo com aquela sinceridade e franqueza que sempre uso: não o creio. Estou mesmo até convencido de que ao País e à sua economia se prestará um péssimo serviço se a um período de condicionamento - defeituoso, é certo, mas à sombra do qual, é bom também não esquecer, se realizaram os progressos industriais notáveis que se viram nas feiras de 1950 e 1951 - se fizer seguir, subitamente, qualquer regime de liberdade descontrolada.

Não tenhamos dúvidas: se a maior parte das nossas indústrias essenciais não conseguir aperfeiçoar-se e progredir à sombra de uma relativa e inteligente protecção - e ai é que está posto à prova o nosso bom senso e capacidade de ver objectivamente os problemas que nos interessam -, não o conseguiremos também com um sistema de total liberdade, em que só os prejuízos de todos ficarão garantidos, em troca do magro prato de lentilhas de alguns poderem arriscar aquilo que lhes convenha, que não poderá ser muito, porque em matéria de dinheiro, como de muitas outras coisas mais, «amigos, amigos, mas negócios à parte», porque «o seguro morreu de velho!».

Eu sei que, como inteligentemente fazia notar ainda há poucos dias na nossa Comissão de Economia um ilustre Deputado, a Revolução Francesa foi em grande parte fruto da reacção contra os privilégios de certas instituições hermeticamente fechadas ao livre acesso de novos concorrentes.

Desde então, porém, muita água dos rios passou por debaixo das pontes, e hoje já nem mesmo junto ao Sena - que viu nascer essa revolução - muita gente também tem dúvidas de que foram os excessos do liberalismo, aclamado como salvador no século XVIII, que nos conduziram ao comunismo do século XX!

O Sr. Melo Machado: - Tenho ouvido V. Ex.ª com a atenção que merece a sua oração muito interessante, mas devo observar-lhe que muitas vezes se tem pedido protecções para indústrias que dizem que vão fazer muita coisa e afinal não fazem nada. Essas autorizações são dadas, a pauta sobe e quem sofre é a comunidade.

O Orador: - Tem V. Ex.ª razão. No fundo é sempre a mesma coisa: a tal falta de fiscalização a que V. Ex.ª aludiu há pouco.

O Sr. Carlos Moreira: - A culpa não é do princípio, mas da má execução desse principio.

O Sr. Carlos Borges: - Se o princípio era bom, evidentemente que continua a ser bom. O que devemos é corrigir o que está mal.

O Sr. Domingues Basto: - Se ,se cometeu um erro, deve emendar-se esse erro. Não pode sacrificar-se uma classe numerosa e pobre para que os outros enriqueçam à custa dela.

O Orador: - De acordo. Continuamos u estar sempre perante o mesmo problema, que é a falta de fiscalização, a qual, a meu ver, não deve ser suprida com a aplicação

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a esse pretexto de ama medida que pode levar à ruína essas actividades, sem vantagem para ninguém, mesmo para os que muito justamente se queixam de tais abusos.

O Sr. Domingues Basto: - Falta de fiscalização e falta de observância de um princípio fundamental.
Se verificamos um mal, estamos sempre a tempo de o corrigir.

O Orador:-Evidentemente, mas contanto que pelas suas consequências não seja pior a emenda que o soneto.

O Sr. Calheiros Lopes: - É sempre possível rever esses lucros, e nas indústrias dentro da organização corporativa a taxa de laboração, que inclui os lucros, é calculada todos os anos e sancionada pelo Governo. São, portanto, indústrias de lucros controlados, de que as repartições competentes têm o devido conhecimento.

Eis uma vantagem da organização corporativa.

O Sr. Domingues Basto: - Na prática, vemos que quando a lavoura empobrece a
indústria enriquece.
O Sr. Calheiros Lopes: - Devo dizer a V. Ex.ª que conheço lavradores ricos e pobres e igualmente industriais ricos e pobres.

O Sr. Carlos Borges: - Mas se eu, colhendo uvas posso fabricar vinhos, destilar bagaços, etc., porque não hei-de poder fazer isso com todos os produtos?

O Sr. Domingues Basto: - Forque é a invasão da indústria pela lavoura.

O Sr. Calheiros Lopes: - Não se trata de invasões; o que é necessário é diferenciar as actividades.
O. Sr. Carlos Borges: - O que nos parece ilógico é que, desde que a agricultura pode fazer os trabalhos necessários para a colocação dos seus produtos nos mercados de consumo, haja produtos para os quais essa regalia não existe.

O Sr. Calheiros Lopes: - Estou de acordo para certos produtos, mas para aqueles que sofrem industrialização já é diferente.

O Orador:-Em princípio, o que o Sr. Deputado Carlos Borges diz é indiscutível. Tudo depende, porém, da oportunidade de realização e do respectivo modus faciendi.

Para mim, portanto, não se põe qualquer outro problema em matéria de escolha de critérios de orientação geral da nossa indústria que não seja o de sabermos - concretamente e de uma vez para sempre - a lei em que afinal queremos viver e as indústrias que, ao seu abrigo ou deixadas fora dele, desejamos igualmente ver prosperar e serem um instrumento útil de trabalho para a Nação, ou que, feridas de morte por um defeito orgânico intrínseco, não nos importa que, abandonadas à sua sorte, se definhem lentamente, numa luta inglória, sem honra nem proveito para ninguém.

Tenho dúvidas, sim - e aí alinho francamente as minhas críticas com as queixas dos partidários do liberalismo-, sobre se o condicionamento industrial tem estado ou não a ser aplicado entre nós com a orientação que mais convém à defesa dos superiores interesses da colectividade e da própria indústria.

Eu aponto-lhe, principalmente, dois senões muito sérios, não falando já nas insuficiências ou lapsos manifestos e melindrosos da orgânica administrativa por intermédio da qual ele tem de ser executado.
São esses senões os seguintes:

1.º Visível hesitação, tanto na linha geral de orientação do condicionamento industrial, como na própria prática da sua aplicação.
Sem querer trazer à baila o testemunho do labirinto de despachos, portarias e decretos que às vezes se reportam ao mesmo assunto, sem afinal o deixarem resolvido em termos que se não prestem às interpretações de carácter subjectivo de cada um; sem querer invocar os numerosos exemplos de pedidos que -mercê dessa deficiência fundamental- têm sido apreciados e despachados, para bem ou para mal, ao sabor de conveniências ou pontos de vista de ocasião, eu peço apenas a VV. Ex.ªs que meditem nesta instabilidade de critérios que claramente se verifica através dos próprios diplomas básicos que têm regulado o condicionamento industrial de há vinte e um anos para cá, isto é, desde que o respectivo sistema foi estabelecido entre nós:
Considerado medida de emergência para todas as indústrias pelo Decreto n.º 19:354, de 3 de Janeiro de 1931;

Tornado permanente, só em relação a certas indústrias, pela Lei n.º 1:956, de 17 de Maio de 1937;

Generalizada outra vez praticamente a sua aplicação a quase toda a indústria - e até a simples máquinas desta- por diplomas regulamentares diversos;
Tentada a sua aplicação no sentido de se alcançar uma maior concentração industrial pela Lei n.º 2:005, de 14 de Março de 1945;

Finalmente, esboçada a sua redução em 1947, e agora mais outra vez, mas em termos e extensão que se não podem prever ainda, pela proposta de lei que estamos estudando.

O Sr. Melo Machado: - Em todo o raso não esqueça que vivemos um período de guerra.

O Orador:-Eu confio evidentemente que haja bom senso na execução da nova lei, mas, para que não tenha de fazer amanhã acto de me culpa, chamo desde já a
atenção para o caso.

Há-de concordar-se, porém, em face de um tal rudário de critérios, que já é hesitar demasiado sobre um problema só, para mais sendo ele melindroso como é e susceptível de causar os maiores prejuízos à colectividade, se não for manejado com as convenientes precauções.

Já era, de facto, tempo, a meu ver, de termos ideias bem assentes sobre o assunto e de estarmos convencidos de que o condicionamento não é um bem nem um mal, mas uma necessidade dolorosa.

É tempo de já termos percebido que ele é uma espécie de, antibiótico, que se usa como as sulfamidas: pode aplicar-se ou não. Mas, se se aplica, há que fazê-lo com a intensidade e cuidados devidos e pelo tempo que se tornar necessário. De outra forma só servirá para prejudicar o organismo e para pôr em risco a saúde futura e a própria vida do doente que precisamente se quis salvar l...

2.º Confusão séria entre aquilo que são os legítimos direitos de propriedade do titular de um alvará industrial e aquilo que é um direito igualmente sagrado dos restantes cidadãos: a liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho, indústria ou comércio- cuja restrição a nossa Constituição só admite em beneficio do interêssse da colectividade, nunca de particulares.

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É sob este aspecto que eu creio que se podem e devem fazer as mais acerbas criticas ao nosso sistema de condicionamento industrial actual, tal como por vezes tem estado a funcionar.

Eu explico porque:

Como todos VV. Ex.ªs talvez saibam, excepção feita das indústrias que trabalham em regime de exclusivo, os alvarás das fábricas são concedidos, no geral, por tempo indeterminado, mesmo que se trate de industrias condicionadas.
Esta circunstancia, e ainda a de a nossa legislação sobre condicionamento não prever a anulação imediata dos alvarás das fábricas de indústrias condicionadas logo que, passado um período razoável do adaptação no novo regime, os respectivos industriais se não mostrem merecedores de tal privilégio, dá como resultado que se possam utilizar os mesmos com o espírito mais contrário àquele que precisamente os levou a conceder assim: o interêssse colectivo.
Com efeito, sem limitação expressa do seu prazo de validade e com a garantia de que se dificultará, muito eficazmente, a entrada de novos concorrentes na actividade, o alvará de uma indústria condicionada deixa de ser um simples documento comprovativo de que se cumpriram todas as formalidades legais que autorizam esse industrial a poder laborar, para passar a constituir um "valor" ou "propriedade" privada, que se utiliza, traspassa ou negoceia ao sabor de interesses meramente privados.
E então pode chegar-se a este absurdo: um industrial poderá dar má conta de si durante muitos anos; produzir mal e caro; fugir o mais possível a aperfeiçoar a sua fábrica.

Se o souber fazer, porém, ninguém lhe pedirá contas disso e, se algum candidato - mais arrojado ou com melhores ideias - vier a interessar-se pela mesma actividade, ele ainda, tem a probabilidade de vir a aproveitar - o melhor possível e sempre a seu favor - desse trabalho e dessas ideias, invocando os seus direitos de prioridade na concessão de novas instalações ou vendendo o alvará da sua por bom preço!

Este, sim, o outro ponto fraco grave do nosso sistema de condicionamento, lamentável não só pelas situações pouco sérias a que pode conduzir, como pela fonte de resistências e de ónus parasitários que corre o risco de constituir, com manifesto prejuízo para a nossa economia e progresso da nossa indústria.
Não vejo, porém, que na proposta governamental se encare esse problema com o aspecto que acabo de descrever a largos traços.

Diz-se, com efeito, na sua base viu:

O Governo procurará impedir que o condicionamento seja desvirtuado dos seus fins, transformando-se em obstáculo ao progresso técnico das indústrias ou conduzindo a um exclusivismo anormalmente lucrativo das empresas existentes. Para esse efeito autorizará a criação de novas unidades e o desenvolvimento das que laborarem com maior eficiência, podendo também regular as características de qualidade e o preço das mercadorias cujas indústrias estiverem condicionadas e modificar ou revogar as autorizações concedidas.

Ora a verdade é esta:

Providências desse género ou análogas já se achavam também previstas na legislação anterior, mas, ou porque faltaram os meios indispensáveis para as mesmas poderem ser aplicadas com sucesso - não temos ainda sequer um organismo dedicado ao estudo científico e técnico dos problemas da nossa indústria- ou porque se não ofereceu a oportunidade para o fazer, o que é
certo é que ao fim de vinte a tios de condicionamento temos ainda centenas de fábricas manifestamente insuficientes, que há muito deviam ter sido reformadas ou abatidas ao efectivo, mas que todavia subsistem e continuarão II subsistir, enquanto as deixarem dormir o seu sono dos justos.
Afigura-se-me, por isso, da maior conveniência que na nova legislação sobre condicionamento se contemplem também as seguintes medidas mais:
Limitação do prazo de validade dos uivarás a períodos de tempo razoavelmente justos, fixados em função de uma amortização e um envelhecimento normal das instalações e dos processos de trabalho aí usados;
Especificação expressa das características técnicas a que devem obedecer os produtos fabricados, sol pena de encerramento da respectiva fábrica;
Revisão dos alvarás findo aquele prazo, podendo os mesmos voltar ou não a ser concedidos ou alteradas as respectivas cláusulas consoante as provas dadas anteriormente pelo industrial e as novas condições técnicas ou económicas da respectiva indústria no momento dessa revisão.

Em qualquer hipótese, o que não parece aceitável de admitir-se é que as fábricas que já hoje não têm razão de existir, pelo seu anacronismo e péssimas condições de trabalho, venham ainda a poder sobreviver, sem qualquer melhoria, a mais um outro período de vinte anos, em que o ritmo do aperfeiçoamento das várias técnicas tudo indica que virá ainda a ser muito maior que o anterior.

Sr. Presidente: feitas estas considerações .de ordem geral sobre o condicionamento, desejo ainda fazer algumas observações de ordem particular sobre três bases da proposta governamental que me parecem dignas de meticulosa ponderação, tal o espirito com que as vejo redigidas.
Assim:

BASE VI

Nas indústrias consentâneas com o trabalho no domicilio serão isentos do condicionamento e protegidos os estabelecimentos de trabalho caseiro e familiar, autónomo, conforme for determinado no decreto a que alude a base anterior.
Também serão isentos de condicionamento nas indústrias tributárias da agricultura os estabelecimentos complementares da exploração agrícola destinados à preparação e transformação dos produtos do próprio lavrador ou de vários lavradores associados.
Fixam-se nesta base duas orientações merecedoras, em principio, dos maiores louvores e aplausos, por razões óbvias.

Elas já haviam, de resto, também sido previstas, respectivamente, nas bases IV e II da lei anterior sobre condicionamento industrial (Lei n.º 1:956, de 17 de Maio de 1937), e o trabalho caseiro mereceu até atenção especial de vários despachos e do Decreto n.º 36:279, de 15 de Maio de 1947, que regulamentou o competente exercício.

Nada haveria, portanto, a objectar sobre a base a que me estou a referir se não fora a intenção com que parece estar redigido o seu parágrafo final, e que, se bem o interpreto, deve ser a de tornar isentos de qualquer tipo de condicionamento os estabelecimentos complementares da exploração agrícola - que se não define o que seja- destinados à preparação e transformação dos produtos
do próprio lavrador, quaisquer que sejam as consequências que de tal libertação possam resultar para a respectiva indústria.

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Se assim é, devo dizer a VV. Ex.ªs que discordo então da latitude com que tal critério se pretende aplicar, porque, além de tudo o mais, receio até que a sua natural generalização leve, .afinal, à conclusão de que não vale a pena estar a pensar em condicionamento em relação à maior parte das indústrias portuguesas. E se assim é efectivamente, ou se pensa que venha a ser, será melhor dizê-lo desde já, para que ninguém depois se venha a admirar, mais tarde, das respectivas consequências.
Eu explico-me.,:
Preparando ou transformando produtos resultantes da exploração da terra temos já, presentemente, fábricas de moagem, descasque, cortiça, resinosos, cerveja, lagares, refinação de azeite, pelaria e curtumes, álcool, lacticínios, massas e conservas alimentares, madeiras, tecidos de linho, lanifícios, etc.
Com um pouco de jeito não será difícil também vir a demonstrar um dia - sobretudo logo que se verifique a introdução das respectivas culturas no continente ou se caminhe toais afoitamente no sentido de uma coordenação económica de carácter imperial, tão necessária - que trabalham também produtos da terra as indústrias de fiação e tecidos de algodão, do açúcar, da borracha, do tabaco,- dos sabões e oleaginosas, etc.
Ora bem: a maior parte dessas indústrias já hoje possui, como vimos atrás, um equipamento, bom ou mau, que muitas vezes excede, apreciavelmente, a capacidade de absorção dos respectivos mercados nacionais. Autorizar, portanto, indiscriminadamente a montagem de novas unidades nessas indústrias super-equipadas, só porque são de lavradores, é fazê-las correr riscos de vida precária logo desde inicio e caminhar, inexoravelmente, para- a ruína de uns e de outros, sem vantagens para ninguém.
Cautela, portanto, não vamos nós, na miragem aliciante de um liberalismo emocional inconsiderado, alimentar a ilusão a uma lavoura empobrecida por alguns anos de más colheitas e de preços estrangulados de que a salvação das magras economias que ainda lhe possam restar -e que tanta falta fazem também à melhoria das condições de exploração da sua terra- está no exercício de actividades que, a prior, se saiba não estarem organizadas em condições de, sem perigo grave para elas, admitir o trabalho de novos competidores.
Para num, a solução que se impõe não é, pois, essa, mas sim a de, concretizadas as indústrias em que a posição especial da lavoura deve ser tomada em consideração, lhe assegurar a respectiva protecção, conferindo-lhe os justos direitos de prioridade que essa posição merecer na concessão das novas autorizações para o exercício dessas indústrias, ao abrigo de condicionamentos inteligentemente estatuídos.

BASE XV

Refere-se esta base e a seguinte à reorganização e actividade do Conselho Superior da Indústria, organismo da maior relevância para a orientação administrativa das indústrias de qualquer país, mas que tão lamentavelmente foi tratado - como de resto, infelizmente, outras questões também o foram - quando das várias reformas de serviços do Ministério da Economia em 1048.
Eu aplaudo, por isso, muito vivamente, a nova orientação, que parece pressentir-se através dessas bases, de dar ao Conselho Superior da Indústria a orgânica e as prerrogativas mais adequadas a um exercício eficiente de tão altas funções e à manutenção de uma linha ou tradição firme de conduta, de .saber todo feito na experiência da vida real do dia a dia.
Aproveito, no entanto, a oportunidade para lembrar que não basta dar à nossa indústria um bom comando e uma boa orientação administrativa. É cada vez mais
urgente dar-lhe também e pôr ao seu serviço um bom conselheiro técnico, através de um novo organismo - de carácter científico e técnico, de feição análoga ao Laboratório de Engenharia Civil, que já existe entre nós e até com uma belíssima cotação internacional-, que tome sobre si o encargo de velar, expressamente, pelo estudo dos processos de trabalho da nossa pequena e média indústria em geral, de a orientar e informar sobre as possibilidades da respectiva melhoria e do mostrar às condicionadas em atraso o que afinal se pretende delas.
É assunto, porém, que a seguir vou desenvolver um pouco mais, tal a atenção especial que julgo deverá merecer, se verdadeiramente "estamos interessados em ter uma indústria capaz, e não apenas um mostruário de leis e de instalações das mais variadas feições e valor.

BASE XVII.

Num muito louvável desejo de se codificar e sanear todo esse. labirinto de leis, despachos, portarias e decretos que presentemente regulam o condicionamento industrial, esta base XVII da proposta governamental fixa em cento e oitenta dias o prazo para toda essa legislação ser revista e em mais sessenta dias o período após o qual se considerarão livres todas as indústrias em relação às quais não for publicado qualquer decreto confirmando o seu condicionamento.

A experiência anterior mostra-nos, porém, que não são fáceis, nem rápidas, revisões dessa natureza, pelo que a aplicação pura e simples do que se prevê nessa base, com a melhor das intenções, pode levar aos resultados mais contraproducentes: ou o estudo de, afogadilho de diplomas melindrosos, como são sempre os relativos ao condicionamento de qualquer indústria, ou a confusão geral lançada nas actividades que, devendo manter-se condicionadas, não puderem ver publicados a tempo os novos decretos, por não estarem concluídos os respectivos estudos ou inquéritos.

Parece-me, por isso, tratar-se também de doutrina sobre a qual julgo que valeria a pena reconsiderar igualmente um pouco. O célebre inquérito industrial mandado fazer pelo Decreto n.º 19:553, de 9 de Janeiro de 1931 - há vinte e um anos precisos -, pelo saudoso e ilustre Dr. Antunes Guimarães, como base de qualquer condicionamento sério, e que ainda hoje não está feito, talvez nos possa ensinar
alguma coisa a esse respeito ...

Do esquema geral de medidas que apontei logo no começo como devendo ser promovidas conjuntamente com as relativas ao condicionamento, para se tirarem deste todos os efeitos que interessam ao fortalecimento rápido da indústria portuguesa, falta-me ainda tratar do auxílio técnico e do crédito e atracção dos capitais.

Uma das deficiências mais graves que se apontam, e com razão, a uma grande massa da indústria portuguesa é o seu excessivo atraso técnico.

Quase se contam pelos dedos, com efeito, as organizações industriais -mesmo já de certa envergadura - que possuem um quadro de técnicos e instalações laboratoriais adequados à manutenção dos respectivos esquemas de produção em alto nível.
Dou só um exemplo: num inquérito recentemente feito a uma das mais importantes indústrias portuguesas -"a de fiação e tecidos de algodão-, para quatrocentas e vinte e duas fábricas e oficinas existentes, era apenas de trinta e dois o número de técnicos qualificados ao seu serviço, dos quais só seis tinham o título de engenheiro têxtil!
Claro está que numa época como a nossa em que em quase todos os países civilizados se gastam muitos milhares e milhares de contos por ano para manter o progresso das respectivas indústrias e em que políticos de categoria não hesitam já em fazer afirmações como

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esta, que se encontra no intróito do recente plano decenal para o desenvolvimento do Congo Belga:
No mundo moderno o caminho mais curto para a prosperidade passa pelos laboratórios,
a posição da nossa indústria não pode ser agradável com tais premissas, nem, consequentemente - excepção feita de um ou outro produto 011 caso especial-, a mesma pode pensar em concorrer afoitamente nos mercados externos, e até internos, com a indústria dos outros países.
Tal expansão torna-se, porém,, de dia para dia uma necessidade vital, como "já atrás vimos, o que quer dizer que temos de começar a pensar muito seriamente na forma de suprir tal deficiência.
Como fazê-lo então, demonstrado, como parece estar, que nem mesmo muitas das nossas indústrias mais prósperas ou condicionadas auferem lucros, nas condições actuais dos nossos mercados, que lhes permitam fazer face aos encargos de uma organização laboratorial ou técnica privativa adequada?
A Lei n.º 2:005, sobre o fomento e reorganização industrial, pensou consegui-lo através da concentração. Não creio, porém, que com ela valha a pena contar muito para o efeito, uma vez que em quase sete anos de vigência dessa lei apenas se conseguiram pôr de pé, e muito mal, dois ensaios de concentração: o da vidraça e o da cortadoria do polo.
A organização corporativa, que tão valiosos serviços podia ter prestado nesse campo, passado o entusiasmo de certas experiências felizes -como foram as do algodão, dos resinosos, da cortiça, das conservas, dos produtos químicos, etc. -, dá manifestos sinais de não estar disposta a chamar a si essa responsabilidade com a latitude que se impõe, e, mesmo que o fizesse, nunca poderia abranger a indústria toda, como se torna necessário.
Por muito que me custe verificá-lo, ou só vejo, por isso, o Estado como a única entidade com as condições e a autoridade indispensáveis ao bom desempenho de uma tal tarefa.
A conclusão era, de resto, de esperar, mesmo em face de muito daquilo que sobre o assunto se vê em países estranhos - como a Inglaterra, a França, etc.
- outrora paladinos furiosos -nesse como noutros problemas- da liberdade total da iniciativa privada, mas que neste momento estão já entrando francamente J>elo caminho das organizações estaduais, ou fortemente apoiadas pelo Estado, para a realização de uma política de apoio técnico eficiente às respectivas indústrias. (Vide, por exemplo, o livro que aqui tenho à mão e publicado no país vizinho pelo seu Conselho Superior das Investigações Científicas sob o título Ciência e Indústria na Grã-Bretanha.

A própria Espanha, lacerada e arruinada por uma guerra crudelissima, aí nos está dando também o seu exemplo, com o seu Instituto Nacional da Indústria, com as suas empresas e grupos dependentes e o seu Patronato "luan de La Cierva para a Investigação Técnica, do respectivo Conselho Superior de Investigações Científicas.
Nós mesmos possuímos já organismos análogos àquele que precisamos de criar para a indústria, mas funcionando em beneficio de outras actividades, como, por exemplo, a Estação Agronómica Nacional e as várias estações do melhoramentos, o Laboratório de Engenharia Civil, etc. Resta, pois, apenas aplicar igual orientação a uma fonte de riqueza nacional cujo rendimento, como vimos atrás, atinge já anualmente um valor da mesma ordem de grandeza que o da agricultura.
Chame-se-lhe, pois, Instituto Nacional da Indústria - como o fizeram os espanhóis -, Laboratório de Engenharia Industrial -por semelhança com o Laboratório de Engenharia Civil, de finalidade análoga, no Ministério das Obras Públicas- ou qualquer outro nome; o que é urgente é completar a nossa orgânica do Ministério da Economia com um organismo que tenha, pelo menos, como missão:
Estudar e conhecer a fundo das deficiências técnicas e económicas das nossas várias indústrias, sobretudo quando condicionadas, e saber informar -o Estado ou os interessados- dos melhores processos para se remediarem tais anomalias;
Manter em boa forma e ao par dos progressos técnicos realizados nas actividades similares estrangeiras que nos interessem um mínimo de especialistas qualificados a que se possa recorrer com confiança e a todo o momento, na certeza de que -parafraseando uma frase de Salazar- se "nenhum povo no Mundo pode amar mais Portugal do que os Portugueses" nenhuma técnica também pode haver que melhor os defenda do que a técnica portuguesa quando convenientemente preparada !
O que me parece inaceitável é sabermos que somos pobres porque produzimos mal e produzimos mal porque somos pobres e continuarmos a não fazer qualquer esforço para pôr ao serviço da nossa indústria alguém que esteja em condições de ser o conselheiro técnico competente daqueles que o não podem ter nem pagar sozinhos.
O que me parece inconcebível é que mesmo um representante da Nação, que honestamente deseje colaborar na condução dos negócios públicos, começando por estudar com seriedade as bases técnicas de temas vitais relativos à nossa indústria, peça, por exemplo -como eu o fiz há dez meses! - determinados elementos relativos à montagem de uma indústria decisiva para Portugal, e de que tanto se tem falado - a siderúrgica -, e, todavia, ainda não tenha obtido resposta, presumo porque ninguém se deu ainda ao trabalho de uma crítica de conjunto e sistemática desses elementos ou então porque há simplesmente receio das repartições competentes em os fornecer e ver criticados publicamente.
Desculpem-me VV. Ex.ªs o atrevimento da suposição, mas sou a isso levado porque ao mesmo tempo que se me negam esses elementos - e poder-se-ia fazê-lo até, muito bem, por conveniências de sigilo nacional - vejo parte deles figurar numa comunicação recente a um congresso espanhol do ferro e do aço - sob o título "El honro de cuba bajo Humboldt y el problema siderúrgico português" que VV. Ex.ªs vêem aqui- por sinal subscrita não pelo. engenheiro português que primeiramente trouxe a notícia desse processo para Portugal e esteve por conta do Governo a estudar vários meses esse assunto na Alemanha, mas por quatro outros técnicos oficiais - muito ilustres embora -, que desse processo tiveram apenas conhecimento numa rápida visita de alguns dias, quando dos respectivos ensaios finais com minérios e carvões portugueses!
Vê-se isso e não se acredita, mas tem sido, no geral, num ambiente mais ou menos como esse e quase só sobre trabalhos de comissões de estudo, muitas vezes simplesmente improvisadas ao sabor das conveniências e amizades de cada momento - comissões essas em que se gastaram muitas e muitas centenas de contos, algumas delas praticamente em pura perda-, que se tem estado a fundar nos últimos anos a actuação oficial em matéria de reorganização e progresso industrial!

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Há-de concordar-se que é pouco, perigosamente pouco, e oxalá que algum dia ainda nos não venhamos a lamentar de prejuízos d" centenas de milhares de contos em mais alguma indústria-base mal montada, ou ramo fabril mal orientado, só porque não soubemos, ou não quisemos, ver o problema a tempo e com realismo.
Oxalá que um novo período de emergência como o que atravessámos de 1939 a 1945 nos não venha encontrar outra vez tão descalços tecnicamente como na última guerra, com consequências bem sérias para muitas das nossas actividades nacionais.
Oxalá, enfim, que através de maiores facilidades de crédito e duma política fiscal mais justa -que saiba compreender e estimular o emprego dos capitais e seus rendimentos nos empreendimentos socialmente mais úteis - o ano de 1902 venha a ficar assinalado na história da Revolução Nacional como o início de um novo período em que mais fortemente se procuraram valorizar todas as fontes de produção imperial, inclusive, portanto, a nossa indústria, tão incompreendida ainda, infelizmente, por muitos, nos seus problemas, nas suas possibilidades e nos rumos do seu destino ...
Sr. Presidente: alguém me fazia há dias notar que o principal defeito dos portugueses era o de serem inteligentes, querendo com isso significar que, munidos de tão valiosa qualidade, eles se podem dar ao luxo, muitas vezes, de não profundar os problemas que lhes interessam, na certeza de que, a todo o tempo, se sairão sempre airosamente de qualquer erro de apreciação ou de orientação mais sério em que, porventura, venham a cair.
Tenho muita pena de fugir duplamente à regra e de assim ter cansado excessivamente VV. Ex.ªs, mau grado meu, com o estudo de assuntos que, à primeira vista, podem parecer não ter qualquer correlação com o do condicionamento.
Por mim estou sinceramente convencido, porém, de que a vinte e cinco anos de uma revolução em que já se fizeram as mais variadas experiências em matéria económica, e sobretudo industrial, era tempo de aproveitar .toda essa valiosa experiência e assentar ideias, não já propriamente sobre qualquer orientação definitiva em matéria de condicionamento, mas sobre um verdadeiro estatuto da indústria portuguesa, à sombra do qual esta pudesse progredir e singrar, segura de si, das suas possibilidades e da natureza dos problemas e condicionalismos naturais que a limitam.
Não se quis -ou não se achou oportuno - dar-se-nos ainda desta vez a alegria de se estudar e discutir qualquer diploma em. que se contemplassem esses horizontes mais rasgados e prometedores de um futuro melhor.
Registo e louvo essa prudência, mas do mais fundo da minha consciência de técnico e de português há qualquer coisa cuja voz eu não consigo fazer calar em
mini e que cada vez mais me grita essa máxima lapidar de um grande prosador contemporâneo:
É preciso concluir quando se começou a pensar, . da mesma maneira que só torna necessário agir quando já se tem concluído ..
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. O debate continuará na próxima sessão, que se realizará na terça-feira, 15 do corrente, a hora regimental.
Antes de encerrar os trabalhos, quero convocar a Comissão de Legislação o Redacção para se pronunciar sobre o projecto de lei do Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu, acerca do abandono de família.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 25 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

António Pinto de Meireles Barriga.
Artur Proença Duarte.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
António Joaquim Simões Crespo.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Pinto Meneies.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria Vaz.
Miguel Rodrigues Bastos.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de -Sousa.
Vasco de Campos.

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CÂMARA CORPORATIVA

IV LEGISLATURA

PARECER N.º 38

Projecto de lei n.º 288

ABANDONO DE FAMÍLIA

Consultada acerca tio projecto de lei n.º 288, sobre o abandono de família a (Câmara Corporativa, pelas suas secções de Interesses espirituais e morais e dê Justiça, emite o seguinte parecer:

Apreciação na generalidade

Destina-se o projecto em exame a incriminar diversos factos que podem agrupar-se sob a designação genérica - já consagrada na doutrina jurídica - de abandono de família .

O objectivo do projecto é, .pois, dar satisfação, do aspecto criminal, ao preceito do artigo 12.º da Constituição Política, segundo o qual o Estado -assegura a constituição e defesa da família, como fonte- de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social e como fundamento da ordem política e administrativa, pela sua agregação e representação na freguesia e no município. limita-se, assim, de efectivar parcialmente um dos mais salutares princípios da nossa lei fundamental, e a intenção que anima o projecto é, por isso, merecedora do maior louvor e aplauso.
Bem pode dizer-se, com efeito, que a personalidade humana e o Estado só valerem na medida em que valerem as famílias; a grandeza e o enfraquecimento destas isso a grandeza e o enfraquecimento do homem e; do Estado. Se a família forte não é possível a conservação da raça, que não só tende a desaparecer, minada peta chaga da restrição da natalidade, mas enfraquece também fisicamente, como evidencia, entre nós, a estatística dos nados-mortos e da mortalidade infantil, revelando serem estes fenómenos particularmente graves quanto aos filhos legítimos. ,Só com a família é possível a educação, a qual, por dever ser essencialmente individualizada e exigir a intimidade moral entre educando e educador, apenas nos aspectos exteriores e superficiais pode realizar-se fora dela: a percentagem com que figuram os filhos ilegítimos entre os menores julgados nas tutorias (24 por cento em 1944) ilustra este assento com clareza confrangedora. A família é a guardiã das virtudes e tradições que formam a alma nacional e nela nascem e se desenvolvem espontaneamente o respeito pedia autoridade e o espírito de sacrifício e dedicação, sem os quais o próprio Estado mão pode viver. £ ainda a família o melhor estímulo pana o trabalho e para a poupança, e por isso concorre poderosamente para o fomento da economia pública.

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Digno é, portanto, do maior louvor tudo quanto possa contribuir para fortalecer e defender esta instituição. Cumpre, no entanto, ponderarem-se cuidadosamente as providências destinadas a tal objectivo, pois a acção exercida do exterior sobre a família pode ter, em muitos casos, efeitos "contraproducentes; isso mesmo nos impõe fazer algumas considerações gerais antes de analisar o projecto em pormenor.

2. A família não existe por mera criação jurídica, antes é uma instituição natural, que assenta, sobretudo, em vínculos morais, espontaneamente gerados entre os seus membros e relacionados tom q que há ,de mais profundo e recatado na vida humana.

Por esta razão, as acções exteriores exercidas sobre a intimidade familiar, por melhores intentos que as orientem, raro conseguem estreitar e fortalecer a união da família e são-lhe, com frequência, muito perniciosas. Os pequenos atritos e discordâncias que quase sempre acompanham a vida em comum, e que a estima e respeito mútuos dos membros da família vencem normalmente, azedam-se e tornam-se, em alguns casos, irremediáveis com a intervenção de estranhos - muitas vezes até com a de parentes e amigos. A simples .possibilidade legal de lazer intervir na família um tribunal pode precipitar roturas que de outro modo não se dariam; é o que afirmam do divórcio Colin e Capitant e o que, com eles, sustentou entre nós o Doutor J. Tavares: é muitas vezes a perspectiva da dissolução possível, em caso de desinteligência, que dá ocasião aos motivos do divórcio, e muitas desavenças conjugais, que se envenenam na hora actual, ter-se-iam apaziguado no império da antiga lei (ef. Doutor J. Tavares, Os Princípios Fundamentais do Direito Civil, vol. I, p. 773). Finalmente, o amor, que, mesmo por entre dissenções graves, geralmente une os cônjuges e parentes próximos, e o natural pudor, que em regra leva os homens a ocultar as misérias íntimas, tomam odiento o recurso a estranhos e tiram-lhe quase sempre toda a eficácia para resolver os problemas familiares.

Se isto é verdadeiro em geral, é-o especialmente no tocante ao Estado. Sendo pouco acessível aos Poderes Públicos a base psicológica e moral da família, sobre a qual não têm geralmente influência directa, e sendo eles estranhos ao núcleo familiar e desprovidos de título de amizade ou de confiança pessoal que lhes permita intervir tua vida doméstica sem ferir demasiadamente os sentimentos dos interessados, a acção dos órgãos estaduais neste campo é necessariamente muito restrita e cheia de melindre. Ao Estado só é possível influir directamente nos aspectos extrínsecos da instituição familiar, os quais (posto que muito importantes) de nada valem sem os vínculos morais e psicológicos; por isso, se o Estado tenta intervir nesta, zona, que foge ao seu alcance, arrisca-se a criar males maiores do que os que pretende evitar.

Decerto a família não se basta a. si mesma e carece de protecção desvelada por parte do Estado. Este, porém, quase só por meios indirectos pode cumprir essa importante função; pouco mais lhe é possível, na verdade, além de estabelecer bases jurídicas sólidas para a vida normal da família e de velar pelas condições morais e económicas necessárias para a robustecer. Esta foi, aliás, a orientação da mossa lei fundamental, que nos artigos 13.º e 15.º estabeleceu os pilares jurídicos da família, e no artigo 14.º incumbe ao Estado o dever de tomar diversas providências, quase todas indirectas: favorecer a constituição de lares independentes e instituição do casal de família, regular os impostos de harmonia com as necessidades familiares, promover a adopção do salário familiar, estabelecer e desenvolver a educação familiar, combater a corrupção dos costumes, etc. E neste sentido muito está por fazer, quer na legislação, quer, sobretudo, na realidade da vida. Ultrapassar o Estado esta acção extrínseca e indirecta e imiscuir-se na vida íntima da família é caminho que só com extrema prudência pode seguir-se.

Ora esse perigo da acção directa do Estado relativamente à família é especialmente grave em matéria criminal, pois os devassas à vida familiar podem extinguir toda a intimidade e confiança dos membros daquele organismo e ,a punição de alguns deles por causa dos outros dificilmente deixará de semear o ódio entre eles. Quando se pune o homicida ou o gatuno, pretende conseguir-se que, pela intimidação, ele não volte a delinquir e que, pelo exemplo, outros se abstenham de crimes semelhantes, mas não pode esperar-se que a pena gere no criminoso ou noutras pessoas o amor da vida ou da propriedade alheias; ora aquele efeito negativo ou à o basta à família, pois ela não pode viver sem união moral, e esta raro sobreviverá à aplicação de uma pena por causas relacionadas com a vida íntima do lar. Advirta-se ainda que a solidariedade familiar reflecte sobre toda a família a desonra de um dos seus membros, e que, em razão deste facto, a pena facilmente molestará aqueles que em especial se destina a defender; não será de temer, por exemplo, que a prisão de uma mãe, por ter abandonado o marido, venha mais tarde a dificultar o casamento das filhas?

3. Sobre ser, assim, cheia de riscos para a própria família a intervenção do Estado na vida desta por via criminal, tem, segundo todas as probabilidades, eficácia muito restrita.

Com efeito, cumpre reconhecer-se, antes de mais, que, se os factos, que o projecto pretende incriminar, se tornaram modernamente frequentes e graves, isso deve-se ao grande incremento da corrupção de costumes verificado depois da primeira guerra mundial; ora de nada servirá cominar penas para certa infracção se se deixarem actuar livremente as causas que a originam. Decerto alguma coisa se tem feito entre nós para o bem da família. Muito, porém, está por fazer: a acção dissolvente da lei do divórcio continua a manifestar-se com um número progressivo de dissoluções de família, e isto apesar de essa lei não ser aplicável aos casamentos canónicos celebrados após a Concordata de 1940; o melhoramento dos salários e das condições de habitação, embora já sensível, está ainda longe de corresponder às necessidades, e, acima de tudo, assiste-se, de há alguns anos a esta parte, à mais intensa campanha de dissolução de costumes que jamais se viu em Portugal e que, em grande parte, é deliberadamente desenvolvida por elementos comunizantes; multiplicam-se os espectáculos imorais, de que nem os menores estão excluídos, porque a Lei n.º 1:994 continua sem regulamentação (apresentam-se em Portugal filmes que, por imorais, não correm no país de origem!), e vendem-se profusamente livros, jornais e gravuras pornográficas e por muitos outros modos se fomenta, a imoralidade.

Na repressão, severa e implacável, destes factores é que o Estado pode (e deve) desempenhar papel muito eficaz. Se essa defesa dos bons costumes e da família for levada a cabo, a punição das infracções aos deveres familiares pode ter certa eficácia coadjuvante; isolada, porém, é incapaz de superar o influxo intensíssimo da corrupção crescente, que por todas as vias encaminha para a violação dos deveres familiares.

Importa acentuar, por outro lado, que o recurso a sanções penais, no campo da família, repugna intensamente aos nossos costumes, e dificilmente, por isso, se tornará uma realidade prática. Isto, que já em geral é verdadeiro, será especialmente sensível se a acção criminal não puder instaurar-se sem prévia denúncia ou acusação dos interessados; no entanto, veremos que,

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para evitar males maiores, será precisamente esse o caminho aconselhável.

4. Em conclusão, a »Câmara Corporativa, prestando homenagem ao alto objectivo do projecto em exame, não pode ocultar o receio de que a eficácia prática da lei projectada não anule os riscos da intromissão do Estado, por via criminal, na- vida da família.

Não se quer, todavia, tom isto, negar valor ao projecto: quer acentuar-se, (principalmente, que ele só será aceitável se for orientado pela maior prudência.

Infelizmente, vê-se a Câmara Corporativa obrigada a trabalhar sobre matéria tão melindrosa e difícil, em regime de extrema urgência, que decerto não é o mais propício para se atingirem resultados perfeitos. Tem consciência da escassez do tempo - mas a isso não pode dar remédio.

II

Apreciação na especialidade

A) Factos Incriminados

(Artigos 1.º e 3.º)

5. O primeiro tipo de crime previsto no artigo 1.º do projecto é o seguinte:

Os pais ou mães, com filhos legítimos menores, que, voluntariamente e sem motivo justificado, abandonarem o domicílio comum por período de tempo superior a sessenta dias, embora continuem a cumprir os outros deveres inerentes ao poder paternal.

A definição deste crime, porém, tem de ser completada com o disposto no artigo
3.º, onde se estabelece a seguinte doutrina:

O prazo de sessenta dias estabelecido no n.º 1.º do artigo 1.º pode ser contínuo ou interpolado, excepto quando, neste último caso, o regresso ao lar resulte de manifesto propósito de restabelecimento da vida em comum e se prolongar por mais de seis meses consecutivos.

Analisemos este tipo criminal:

a) Cumpre notar, antes de mais, que a incriminação prevista no n.º 1.º do artigo 1.º - abandono do lar conjugal - se destina a proteger os filhos legítimos menores: os sujeitos activos do crime seriam, na verdade, «os pais ou mães com filhos legítimos, menores», e o final do artigo refere-se ao cumprimento dos outros deveres inerentes ao poder paternal. O abandono não seria, pois, punido quando não houvesse filhos menores, salvo se coubesse em outros preceitos do artigo 1.º, os quais têm todos âmbito mais restrito que o do n.º 1.º

Ora é muito perigoso atribuírem-se garantias diferentes aos deveres recíprocos dos cônjuges, consoante têm ou não filhos, tratando com maior rigor a hipótese de haver prole, sobretudo se para tal caso se cominam penas. Es

A aceitar-se a incriminação do abandono, a prudência acima aconselhada leva-nos, conseguintemente, a preconizar que se protejam em iguais termos os filhos e o cônjuge. É essa a orientação de muitas legislações, como o Código Penal Italiano (artigo 570.º), e essa é também a mais conforme à natureza do casamento, que, destinando-se essencialmente à procriação, tem de ter sempre o mesmo tratamento, seja ou não de facto prolífero.

Note-se, aliás, que esta ampliação do tipo criminal é largamente compensada pelo proposto na alínea c).

b) A acção criminosa que constitui o núcleo central deste crime é o abandono do domicílio comum por tempo superior a sessenta dias (contínuos ou interpolados). Várias observações nos sugere este elemento:

1) «Abandono» é expressão algo imprecisa, pois literalmente compreende só a hipótese de um dos cônjuges se afastar, enquanto, no condenso comum dos juristas, abrange na realidade outros casos, como o da recusa ilegítima, por parte da mulher, de seguir o marido para nova residência, etc. Estando, todavia, esclarecido na prática o alcance daquela locução, não vemos necessidade de a substituir por outra, que, fosse qual fosse, poderia «suscitar dúvidas novas.

2) Refere-se o projecto ao abandono do domicílio comum. Parece-nos preferível adoptar a expressão «domicílio conjugal», já consagrada em outras leis.

3) Especifica o projecto que o abandono, para ser incriminado, deve ser voluntário. Em rigor esta característica contém-se na própria noção de abandono, pois este não é o mero afastamento material, mas sim só aquele que é determinado pela vontade de mão cumprir o dever de coabitação, qualquer que seja o fim que o agente pretende atingir com essa infracção.

4) Requer-se, para considerar punível o abandono, que ele perdure por mais de sessenta dias, contínuos ou interpolados.

O prazo de sessenta dias é demasiadamente curto perante a necessidade de se evitar a intromissão do Estado em irregularidade» da vida familiar, quando não tenham acentuada gravidade ou possam ainda remediar-se por meios normais. Afigura-se, por isso, a esta Câmara que o prazo mínimo deve ser elevado para seis meses.

A contagem global de períodos descontínuos de abandono, tal como se apresenta no projecto, não parece aceitável, por idêntica razão. Se se verificam diversos períodos de abandono, intervalados por outros de presença no lar, cada um daqueles constitui, em princípio, um facto autónomo que, se tiver duração inferior a seis messes, não terá gravidade suficiente para ser punível; e é correcto e justo somarem-se esses períodos descontínuos quando, pela intenção unitária de que são animados, na realidade formem, em conjunto, um abandono único.

c) Esclarece expressamente o n.º 1.º do artigo 1.º do projecto que o abandono nas condições referidas é punível, embora o infractor continue a cumprir os outros deveres inerentes ao poder paternal.

Não nos parece aconselhável esta orientação. Decerto o abandono é, em si mesmo, facto grave, e ocasiona, de per si, males importantes, porquanto priva o cônjuge abandonado do exercício de direitos essenciais ao casamento e torna deficiente a educação dos filhos, que exige a acção, com binada dos dois progenitores. Estes efeitos, porém, são tão íntimos e subtis, e o abandono pode ser devido a motivos tão pessoais e ocultos, que a intervenção do Estado seria, nesta hipótese, extremamente perigosa. Não se nega, portanto, a gravidade do facto: entende-se sómente que o abandono, quando não acompanhado de outros sinais inequívocos de falta de cumprimento dos deveres familiares, é um facto em que o Estado não deve intervir, porque se confina naquela zona de profunda intimidade de família que o Poder Público deve respeitar escrupulosamente.

A maioria das legislações estrangeiras, que prevêem este crime, bem como a maioria dos autores, exigem que, por causa do abandono, se deixem de cumprir outros deveres de família, por vezes, até, estritamente o dever de assistência pecuniária (veja-se o relatório geral sobre abandono de família, in Travaux de la Semaine Inter-

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nationale de Droit, Paris, 1937, p. 17). O próprio abandono do lar é geralmente havido por mero sinal exterior, da violação da disciplina doméstica, pois, em si mesmo, pode não ter gravidade superior à de outras infracções que, por falta de suficiente exterioridade, se deixam impunes.

Parece, por conseguinte, à Câmara Corporativa que o abandono só deve punir-se quando envolve violação do dever de socorro e ajuda mútua dos cônjuges ou dos deveres inerentes ao poder paternal.

d) O artigo 1.º, n.º 1.º, exclui da incriminação o abandono devido a «motivo justificado».

Esta expressão é muito vaga e pode dar lugar a grandes dúvidas. Na verdade, «motivo justificado», em rigor, só pode ser aquele que justifica o facto, o que levaria a exceptuar da punição apenas o abandono com o qual concorresse alguma das circunstâncias do artigo 44.º do Código Penal, visto no projecto não se prever nenhuma outra diferente dessas. Entendida assim, porém, a referência ao motivo justificado, seria inútil e deixaria de fora hipóteses em que não parece justo punir o abandono. Se a intenção do projecto é -como se afigura provável- ressalvar precisamente estas últimas, hipóteses, é então necessário adoptar-se redacção diversa, pois a actual é, como se vê, equívoca.

Para esclarecer este ponto convém enunciar rapidamente as diversas categorias de circunstância que, por uma ou por outra forma, são susceptíveis de excluir a aplicação do n.º 1.º do artigo 1." São elas:

1) Circunstâncias que tiram ao neto de deixar o lar as características essenciais do abandono: está neste caso o acordo dos cônjuges, pois o abandono é essencialmente unilateral; é, ainda, o que se dá no caso de o afastamento do cônjuge ser determinado por intenção diversa da de suspender ou extinguir a vida em comum, tal como sucede quando certa pessoa deixa o lar conjugal para fazer uma viagem de negócios, para socorrer um parente doente, etc., mas sem a vontade directa de se subtrair ao cumprimento do dever de coabitação;

2) Circunstâncias «que, sem ,excluírem a ideia de abandono/como tal, o tornam legítimo: são as chamadas causas de justificação, previstas (para a generalidade dos crimes) em diversos números do artigo 44.º do Código Penal, nomeadamente no n.º 4.º (cumprimento de um dever ou exercício de um direito); não abandona o marido a mulher que, por exemplo, não podendo eximir-se à obrigação de prestar certo serviço em determinada localidade, se recusa a seguir o seu- cônjuge para outra povoação afastada, com o fim de poder cumprir aquela obrigação;

3) Circunstâncias que, sem excluírem a noção de abandono, nem legitimarem este acto, lhe tiram a gravidade subjectiva, por não ser de exigir que, perante elas, o agente se comporte de modo diverso.

As circunstâncias da primeira categoria estão ressalvadas automaticamente pela qualificação de abandono atribuída à acção criminosa; as da segunda categoria estão consagradas em regra de aplicação geral e, salvo disposição em contrário, constituem elementos negativos implícitos em todos os crimes com cuja natureza sejam compatíveis, independentemente da referência expressa. Não é necessário, portanto, ressalvar as circunstâncias destas duas categorias.

No tocante à terceira categoria, pelo contrário, podemos encontrar algumas circunstâncias que, para a lei geral, não excluem a culpabilidade, e que, todavia, deveriam produzir tal efeito no crime de abandono. E o que deve afirmar-se, por exemplo, da provocação grave, não obstante, para a generalidade dos crimes, ser mera circunstância atenuante; não seria equitativo, na verdade, punir-se o abandono em casos como o da mulher que deixa o marido por este a maltratar gravemente.

É certo que circunstâncias como esta poderiam em último caso - e a jurisprudência já chegou a fazê-lo - ser incluídas ainda no próprio conceito de abandono; mas a verdade é que só muito forçadamente se admitiria esse alargamento do conceito. E impõe-se, portanto, sem deformar a noção de abandono, deixar bem claro na lei que as circunstância* em referência afastam a punição.

Para ressalvar as circunstâncias deste tipo cumpriria, segundo a técnica habitual das nossas leis criminais, enumerá-las taxativamente. Acontece, porém, que são tão variáveis as condições da vida conjugal e tão esbatidos os cambiantes que pode apresentar que não é fácil preverem-se todas as razões honestas susceptíveis de «desculpar» o abandono. Em virtude da índole especialíssima deste crime, conviria, por isso, adoptar-se uma fórmula genérica, simultaneamente maleável e precisa, a fim de dar ao julgador suficiente liberdade para apreciar os casos concretos, sem, todavia, deixar de lhe marcar a orientação devida, para evitar arbítrio demasiado. Assim, poderia exceptuar-se do disposto no n.º 1.º o abandono devido a razões sérias, perante as quais não fosse equitativo exigir-se comportamento diverso do agente.

Adoptando-se esta solução, conviria apontar, exemplificativamente, as hipóteses mais importantes, não só para, quanto a essas, evitar todas as dúvidas, mas também com o fim de fornecer ao intérprete alguns paradigmas que o elucidassem sobre o espírito da lei. Assim, no entender desta Câmara, deveria exceptuar-se, em especial, do disposto no n.º 1.º o abandono que fosse determinado por alguma das seguintes razões:

1.ª A necessidade, de subtrair os filhos a algum perigo grave, físico ou moral;

2.ª A provocação grave por parte do cônjuge abandonado;

3.ª A necessidade de evitar um mal grave para o próprio agente, quando esse mal não for ocasionado por circunstâncias que imponham .o dever especial de socorrer o cônjuge abandonado; esta restrição destinar-se-ia a manter a punibilidade do cônjuge que, para se eximir a um perigo comum - de guerra, por exemplo - ou ao contágio duma doença do outro cônjuge, abandona, este, privando-o do socorro especialmente exigido pelo mesmo perigo ou doença.

6. O n.º 2.º do artigo 1.º prevê o seguinte crime:

Os pais ou mães e as demais pessoas que, por tempo superior a, sessenta dias, faltarem voluntariamente e sem motivo justificado à prestação de alimentos a que estiverem legal ou judicialmente obrigados para com os menores.

Este crime já se encontra previsto no artigo 16.º do Decreto n.º 20:431, de 24 de Outubro de 1931, e no artigo 1465.º do Código de Processo Civil. O projecto introduz-lhe, porém, algumas alterações que convém examinar:

a) O artigo 16.º do decreto citado refere-se àquele que não prestar alimentos a um menor, decorrido o prazo de noventa dias, a contar do trânsito em julgado da. sentença ou acórdão que os decretou ou da mora do pagamento dos alimentos vencidos; parece referir-se, assim, à violação da obrigação de alimentos declarada por via judicial. O projecto, pelo contrário, refere-se aos que não prestam alimentos a que estejam legal ou judicialmente obrigados.

A nova orientação, consagrada no projecto, daria protecção mais ampla aos menores, mas apresentaria graves inconvenientes: a mera obrigação legal de alimentos recai virtualmente sobre diversas pessoas e tem por isso sujeito algo indeterminado; além disso, é de montante e vencimentos incertos - é até em si mesma incerta, visto depender de circunstâncias que carecem de ser

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provadas. A falta de cumprimento dessa obrigação na» tem, por isso, no parecer desta Câmara, certeza e precisão suficientes para servir de base à incriminação.

E isto aplica-se tanto ao pai ou mãe como a quaisquer outras pessoas sujeitas à obrigação legal de alimentos.

Assim, parece preferível eliminar não só o passo respeitante à obrigação legal de alimentos, como também a referência destacada aos pais ou mães.

b) O projecto incrimina a f adia de prestação de alimentos que se verifique por tempo superior a sessenta dias. O Decreto n.º 20:431 estatuía o prazo de noventa dias, mas o Código, de Processo Civil prevê a punição do devedor remisso logo que decorram dez dias sobre o vencimento da obrigação (artigo 1465.º).

Este último preceito parece-nos exageradamente rigoroso, enquanto o prazo de noventa dias fixado pelo Decreto n.º 20:431 parece pecar pelo excesso contrário. Concorda, por isso, a Câmara Corporativa na fixação do prazo em sessenta dias, que é suficiente para tornar palpável a omissão criminosa, e não se afigura demasiadamente rigorista, sobretudo se se adoptar a doutrina do artigo 17.º do Decreto n.º 20:431, segundo o qual o pagamento dos alimentos vencidos extingue o procedimento criminal e a pena.

c) O n.º 2.º do artigo 1.º do projecto contempla apenas a falta de prestação de alimentos quando não é devida a t motivo justificado».

Já acima mostrámos ser .imprecisa esta expressão, sobretudo par facilmente evocar as circunstâncias que, seguindo o Código Penal, justificam o facto. Ora não convém tornar o preceito tão «rígido e rigoroso, visto que - para não se consagrar a mera prisão por dívidas, repugnante nos tempos actuais é necessário que, em virtude das possibilidades económicas do devedor remisso, conjugadas com a necessidade do menor, a falta de alimentos seja particularmente reprovável, do ponto de vista moral e social. O Decreto n.º 20:431 punia, pelo artigo 16.º, aquele que, podendo, não prestasse alimentos devidos a um menor; com o termo «podendo» este decreto exigia, assim, um elemento que, sendo embora algo impreciso, aio entanto caracterizava suficientemente o crime e permitia ao juiz apreciar equitativamente as circunstâncias de cada caso, sem excessiva margem de arbítrio. Parece-nos preferível adoptar esta solução.

7. O n.º 3.r do artigo 1.º incrimina um facto paralelo ao anterior.

Os pais, as mães e os tutores que faltarem, voluntariamente e sem motivo justificado, ao cumprimento de outros deveres de assistência económica e moral inerentes ao poder paternal e à. tutela, quando daí resulte perigo moral para os menores.

Este crime tem estreita relação com o crime previsto no artigo 25.º do Decreto n.º 120:431, o qual, por seu lado, abrange parte dos factos incriminados como lenocínio pelos artigos 405.º e 406.º do Código Penal. As especialidades mais salientes do projecto são, neste ponto, caracterizar o comportamento criminoso pela falta de assistência económica e moral aos menores (aspecto puramente formal) e contentar-se, para a punição, com o facto de resultar dessa falta perigo moral para os menores, o que ultrapassa o disposto no decreto citado, onde se exige a corrupção efectiva.

A falta de assistência económica e moral é, porém, realidade muito imprecisa para constituir o elemento fundamental de um mero crime de perigo (e, sobretudo, de perigo também muito variável e impreciso, como é o perigo moral). Esta imprecisão é agravada pela ressalva das faltas devidas a «motivo justificado», aqui dificilmente definível.

Para dar precisão a este tipo criminal - respeitando, assim, a legalidade do direito penal e defendendo a intimidade familiar- convém, no entender da Câmara Corporativa, restringir o preceito do n.º 3.º à hipótese de falta habitual de assistência moral e económica devida aos menores que ocasione perigo moral. Por seu lado, a referência aos motivos justificados pode, com vantagem, substituir-se pela restrição daquela falta à assistência que os infractores possam dar aos menores.

8. O n.º 4.º do artigo 1.º do projecto pune «os que, por tempo superior a sessenta dias, faltarem, voluntariamente e sem motivo justificado, ao pagamento ao seu cônjuge ou ex-cônjuge das pensões alimentícias a que estiverem judicialmente obrigados».

Incrimina-se, assim, novo caso de falta de prestação de alimentos, em relação ao qual, mais ainda do que no tocante ao do n.º 2.º, é de temer que a pena assuma o carácter de mera prisão por dívidas. No entender desta Câmara, importa, pelo menos, eliminar-se a referência ao ex-cônjuge, pois, além de exceder a finalidade geral do projecto, visa uma hipótese em que não parece haver gravidade suficiente para a incriminação.

Quanto ao mais, devem recordar-se, acerca deste preceito e na, parte aplicável, as observações acima feitas sobre o n.º 2.º (supra n.º 6.º).

9. O n.º 5.º incrimina «os maridos que faltarem aos deveres de assistência económica ou moral para com suas mulheres, causando com esse procedimento a sua miséria ou corrupção».

À semelhança do que ficou dito quanto ao n.º 3.º, também se afigura útil restringir a incriminação -quando não haja intenção de causar a corrupção ou a miséria - às faltas habituais para evitar intromissões precipitadas do Estado e reservar a punição para os casos que, sendo, aliás, em geral os mais graves e escandalosos, são também aqueles em que o comportamento delituoso é mais característico e palpável e nos quais mais fácil é averiguar-se o nexo de causalidade entre a acção e o evento.

10. No n.º 6.º do artigo 1.º punem-se «os que, por alienação ou ocultação de bens e rendimentos ou por qualquer outro meio, se colocarem voluntária e intencionalmente em condições de não poderem ser coagidos a cumprir os deveres referidos nos números anteriores».

Este preceito é louvável e não sugere a esta Câmara, quanto à sua substância, qualquer observação. No tocante à redacção, parece conveniente eliminar a redundância «voluntária e intencionalmente», conservando só este último termo; na parte final desta disposição convém substituir a referência a o condições de não poderem ser coagidos a cumprir as obrigações ...» por «condições de não poderem ter realização efectiva as obrigações ...». ,

B) Penas, graduação e extinção da responsabilidade criminal

(Artigos 1.º e 2.º)

11. O projecto pune as infracções, que prevê, com a pena de prisão correccional de um mês a dois anos e multa até 10.000$.

Afigura-se a esta Câmara que essa pena é excessiva para alguns dos crimes considerados, sobretudo quanto aos dos n.ºs 2.º e 4.º do artigo 1.º Além disso, não parece justo punir-se com pena igual infracções de natureza e gravidade tão diversas.

No entender da Câmara Corporativa deveriam, distribuir-se os referidos crimes por dois grupos.

1) Os dos n.ºs 2.º, 4.º e 6.º puníveis com prisão de um a três meses;

2) Os dos n.ºs 1.º, 3.º e 5.º puníveis com prisão de três meses a dois anos.

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De um modo geral entende esta Câmara que a pena de multa não deve cominar-se para estes crimes, em razão do encargo que pode representar para a família.

O disposto no § 1.º do artigo 2.º parece aceitável, mas a regra do § 2.º deve, segundo se afigura, ser de preferência aplicada aos casos dos n.ºs 1.º e 4.º

Quanto ao preceito do corpo do artigo 2.º cumpre-nos fazer algumas observações importantes.

A pena de suspensão de direitos políticos, aí cominada, poderia justificar-se pela consideração de que, quem não cumpre os deveres fundamentais, da disciplina familiar, não merece participar na vida política da Nação. Acontece, todavia, que esta pena só é eficaz quando tem duração algo importante (o projecto fixa-lhe o prazo de dois a cinco anos); ora os efeitos acessórios que por lei (artigo 77.º do Código Penal) ela produz (comuns, aliás, à prisão correccional, mas muito mais gravosos em razão da maior duração) ,podem prejudicar gravemente a própria família, quando está a cargo do delinquente: é o que acontece com a suspensão de emprego ou função pública (artigo 77.º, n.º 1.º, do Código Penal) e com a incapacidade para ser procurador em negócios de justiça (Código Penal, artigos. 76.º, n.º 3.º, e 77.º, n.º 2.º).

É preferível, por isso, não estabelecer essa pena nestes casos, em que, especialmente, se quer proteger a família.

12. Em obediência à orientação exposta na primeira parte deste parecer, e para salvaguardar, quanto possível, a unidade e estabilidade da família, afigura-se a esta Câmara necessário estabelecer, relativamente a alguns dos crimes previstos no projecto, cousas da extinção dm responsabilidade criminal que dêem às penas acentuado carácter de meios compulsórios de preferência ao de providências puramente repressivas.

Assim, a responsabilidade pelo abandono previsto no n.º 1.º do artigo 1.º deve cessar com o regresso ao lar do cônjuge delinquente, quando seja animado de manifesta intenção de restabelecer a vida em comum.

Analogamente, deve cessar a responsabilidade pelos crimes dos n.ºs 2.º e 4.º quando se provar estarem pagos os alimentos em dívida. É, aliás, o que, no tocante a alimentos devidos a menores, já se preceitua no artigo 17.º do Decreto n.º 20:431.

Estas causas extintivas da responsabilidade podem, na verdade, contribuir muito para minorar os inconvenientes da punição e intensificar-lhe as vantagens em benefício da família.

C) Condições de exercício da acção criminal
(Artigo 4.º)

13. O artigo 4.º regula um dos aspectos mais importantes e melindrosos do regime estabelecido no projecto: as condições de exercício da acção criminal pelos delitos previstos no artigo 1.º

Não é fácil deduzir-se com segurança a orientação seguida em tal matéria pelo projecto, porquanto se fala no referido preceito em participações feitas pelo Ministério Público, quando este não faz, antes recebe, as participações, visto pertencer-lhe a competência para exercer a acção criminal. Parece, no entanto, que seria a seguinte a solução adoptada: os crimes dos n.ºs 1.º, 2.º e 3.º, e do n.º 6.º quando respeitantes a menores, seriam públicos,- isto é, a acção criminal seria exercida livremente, por mera iniciativa oficial; nos restantes casos o procedimento dependeria de participação dos interessados.

Este sistema pode parecer fundado, por incumbir às autoridades públicas o processamento oficioso, quando estivesse em jogo o interesse de menores, deixando-se a iniciativa privada o desencadear da acção nos restantes casos. Não pensamos, contudo, que seja esta a boa orientação.

Na verdade, neste ponto mais do que em nenhum outro, são de ponderar os perigos, acima apontados, da intervenção do Estado na vida íntima do lar. Se se adoptasse o sistema do projecto e ele lograsse entrar nos costumes, em breve veríamos a polícia a devassar o interior dos lares, a indagar das razões do procedimento recíproco dos cônjuges, a apreciar o comportamento dos pais para com os filhos, etc.; com esta actividade, necessariamente indiscreta, e, quiçá, dura e arbitrária, soçobraria toda a intimidade e confiança do lar. Nesta matéria é especialmente verdadeiro ser mais eficaz prevenir que reprimir, e a prevenção consiste aqui em fortalecer por todos os meios a vida interna da família e em evitar tudo quanto a possa perturbar.

É certo que se invoca, em favor da oficiosidade da acção, o receio de, que os interessados, por pudor ou abnegação, deixem de requerer o competente procedimento; certo é também que pode temer-se que o partir a iniciativa processual dos membros da família torne a punição mais odiosa. A verdade é, porém, que tais inconvenientes (inevitáveis desde que se entra na repressão penal das faltas familiares) são muito inferiores aos que resultariam da mera oficiosidade; é que só os interessados conhecem verdadeiramente as condições da família, e só eles, por isso. podem avaliar devidamente as vantagens e inconvenientes do recurso aos tribunais. Por outro lado, o sistema da oficiosidade envolve o grande risco de levar os interessados a absterem-se de usar de meios cíveis para fazerem valer os seus direitos, com receio de revelarem crimes públicos cometidos por pessoas queridas.

Aliás, a prática demonstra que mesmo em países (como a França e a Suíça) onde se adoptou a acção oficiosa os tribunais raramente procedem sem a denúncia dos interessados (cf. Travaux de la Semaine Internationale de Droit, de Paris, em 1937, p. 21; François Clerc, Cours Élémentaires sur lê Code Pénal Suisse, Lausaua, 1945, vol. II, p..100).

A Câmara Corporativa é, por isso, de parecer de que se atribua aos crimes previstos no projecto o carácter de particulares, a fim de que dependa da acusação particular não só a iniciativa processual, mas também a própria determinação dos factos por que pode acusar o Ministério Público (cf. Decreto-Lei n.º 30:007, artigo 3.º e § único.); devem, porém, ter o carácter de públicos os crimes previstos nos n.ºs 3.º e 5.º, em razão da sua particular gravidade e do maior escândalo e alarme social que geralmente causam os factos que os constituem.

D) Observações complementares

14. O projecto em exame não incrimina alguns actos que são muito graves e que atacam profundamente a família; referimo-nos ao incesto e a certas hipóteses de lenocínio.

O incesto não aparece nas leis modernas sobre abandono da família porque se encontra punido na maioria dos códigos penais. O nosso, porém, só o prevê como circunstância de alguns crimes, e portanto não o pune autonomamente, apesar de se tratar de um dos crimes mais repugnantes - daqueles para que as nossas Ordenações chegavam a cominar a pena terrível de ser «queimado e pelo fogo feito em pó».

No entender da Câmara Corporativa seria incompreensível promulgar-se uma lei para completar a defesa penal da família e deixar por integrar esta lacuna gravíssima. Por isso propõe um preceito sobre este crime.

Quanto ao lenocínio, acontece que o nosso Código tem importantes deficiências, ainda agravadas pela coexistência com ele do preceito do artigo 25.º do Decreto

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n.º 20:431, que só parcialmente revogou os artigos 405.º e 406.º do Código, e que, por ter técnica diversa da deste, não se coordena facilmente com ele. Para pôr ordem nesta matéria, em vez de agravar a dispersão legislativa com um novo diploma isolado, e também para incriminar alguns casos não puníveis, propomos que seja modificada a redacção daqueles preceitos do Código Penal.

15. Para terminar, cumpre fazer as seguintes observações:

a) Como muitos dos factos previstos no projecto podem, em certas hipóteses, constituir crimes mais graves, convém esclarecer-se expressamente que em tais casos se punirão estes;

b) O disposto no artigo 6.º deve eliminar-se, em cumprimento do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 22:470, de 11 de Abril de 1933.

Conclusão

Em síntese, a Câmara Corporativa, ressalvando as reservas feitas ma primeira parte deste parecer, sugere que o projecto de lei n.º 288 seja substituído pelo texto seguinte:

Artigo 1.º Serão condenados ma pena de prisão correccional de um a três meses:

1.º As pessoas obrigadas judicialmente a prestar alimentos a algum menor que, podendo cumprir essa obrigação, deixarem de fazê-lo por tempo superior a sessenta dias;

2.º Aquele que, obrigado judicialmente a prestar alimentos ao seu cônjuge e podendo prestá-los, deixar de cumprir essa obrigação por mais de sessenta dias;

3.º Os que, ,por alienação ou ocultação de bens ou de rendimentos, ou por qualquer outro meio, se colocarem intencionalmente em condições de não poderem ter reabilitação efectiva as obrigações referidas nos números anteriores.

§ 1.º O exercício da acção penal pêlos crimes previstos «neste artigo depende de prévia acusação das pessoas que tenham legitimidade para exigir os alimentos.

§ 2.º Ficam extintos o procedimento criminal e a pena nos casos dos n.ºs 1.º e 2.º deste artigo quando se prove estarem pagos os alimentos em dívida.

Art. 2.º Serão punidos com a pena de prisão correccional de tres meses a dois anos:

1.º O cônjuge que abandonar o domicílio conjugal por tempo superior a seis meses e infringir gravemente o dever de socorrer e ajudar o outro cônjuge ou os deveres inerentes ao poder paternal;

2.º Os pais, tutores ou outras pessoas incumbidas da guarda de menores que habitualmente não prestarem a estes a assistência económica e moral que possam dar-lhes, quando daí resulte perigo moral .para os mesmos menores;

3.º O marido que, faltando habitualmente para com sua mulher à assistência económica ou mural que possa dar-lhe, sem intenção causara corrupção dela.

§ 1.º Quando os factos previstos no n.º 1.º se verificarem repetidamente, nas por menos de seis meses em cada vez, somar-se-ão, para a contagem deste prazo, os lapsos de tempo por que houverem perdurado, sempre que,, por falta, de. intenção de restabelecer a vida em comum, esses factos devam considerar-se cometidos em continuação uns dos outros.

§ 2.º Não haverá crime nos casos do 11.º 1.º e do parágrafo antecedente quando o abandono for devido a rasões serias, perante as quais não seja equitativo exigir-se comportamento diverso do do agente, e, em especial, quando for determinado por alguma das seguintes circunstâncias:

1.ª Provocação grave por parte do cônjuge abandonado;

2.ª Necessidade de subtrair os filhos menores a algum perigo grave, físico ou moral;

3.ª Necessidade de evitar um mal grave e iminente para o próprio agente, quando esse mal não resultar de circunstâncias que especialmente imponham o dever de socorrer e ajudar o cônjuge abandonado.

§ 3.º O exercício de acção penal pelos crimes previstos no n.º 1.º e no § 1.º depende da acusação do cônjuge abandonado.

§ 4.º Ficam extintos o procedimento judicial e a pena pelos crimes previstos no n.º 1.º e no § 1.º deste artigo se o agente regressar ao lar com intenção de restabelecer a vida em comum e não cometer qualquer dos crimes previstos nesta lei nos doze meses seguintes a esse regresso.

§ 5.º As pessoas condenadas por mais de uma vez por algum dos crimes previstos, neste artigo não podem suceder ab intestato à pessoa ofendida e podem por ela ser privadas da legítima.

Art. 3.º A gravidez da mulher, conhecida do marido, será circunstância agravante nos casos do n.º 2.º do artigo 1.º e do n.º 1.º e § 1.º do antigo 2.º

Art. 4.º Os artigos 405.º e 406.º do Código Penal passam a ter a seguinte redacção:

Art. 405.º Serão punidos com a pena de dois á oito anos de prisão maior celular:

1.º Aqueles que voluntariamente excitarem, favorecerem ou facilitarem a prostituição, a corrupção ou a devassidão de seu descendente, ascendente ou afim na linha recta descendente, de um ou de outro sexo, ou de sua mulher ou irmã;

2.º Os tutores ou outras pessoas encarregadas da guarda ou educação de alguma pessoa que voluntariamente excitarem, favorecerem ou facilitarem a prostituição, a corrupção ou a devassidão dela;

3.º Os agentes da autoridade pública que cometerem esses actos contra qualquer pessoa presa;

4.º Os patrões que praticarem os mesmos actos relativamente a algum empregado menor.

§ 1.º Se, no caso do n.º 1.º, o ofendido for menor, a pena nunca será inferior a metade da duração máxima.

§ 2.º Aqueles que forem condenados por algum dos crimes previstos no corpo deste artigo não poderão suceder ai) intestato à pessoa particularmente ofendida e podem por ela ser privados da legítima.

Art. 406. Será punida com prisão correccional de dois a três anos e multa de 20.000$ a 50.000$, independentemente das medidas de segurança que lhe forem, aplicáveis:

1.º A pessoa que, para satisfazer os desejos desonestos de outrem, voluntariamente excitar, favorecer ou facilitar a prostituição, corrupção ou devassidão de algum menor;

2.º A pessoa que, com qualquer outro fim, voluntária e habitualmente praticar os actos referidos no número antecedente.

§ único. E aplicável nos crimes previstos neste artigo o disposto na primeira parte do § 2.º do artigo anterior.

Art. 5.º Serão punidos com a pena de prisão maior celular de dois a oito anos os que tiverem cópula com algum ascendente, descendente ou parente no segundo grau da linha colateral, se conhecerem esse parentesco..

§1.º Aquele que tiver cópula com algum afim na linha recta, na constância do matrimónio que tiver dado causa à afinidade, será punido com prisão correccional de um a três anos e multa até um ano.

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§ 2.º Para os efeitos deste artigo atender-se-á ao parentesco legítimo e ao ilegítimo quando legalmente reconhecido.

§ 3.º Se, nos casos do corpo deste artigo e do § 1.º, só um dos agentes for maior, será, quanto a ele, agravada a respectiva pena.

Art. 6.º O julgamento dos crimes previstos nesta lei é da competência exclusiva dos tribunais de menores, quando forem cometidos por algum menor ou algum dos ofendidos for menor.

Art. 7.º Não se aplicam os preceitos desta lei se os factos neles previstos constituírem crime mais grave punido por outra disposição legal.

Art. 8.º Ficam revogados os artigos 16.º, 18.º e 25.º do Decreto n.º 20:431, de 24 de Outubro de 1931.

Palácio de S. Bento, 26 de Abril de 1949.

Paulo Arsénio Virissimo Cunha, assessor com voto.
António Pedro Pinto de Mesquita.
Amadeu Guerreiro Fortes Ruas.
Aurélio Augusto de Almeida.
Joaquim Manuel Valente.
D. Maria Joana Mendes Leal.
Manuel Gomes da Silva, relator.

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