Página 327
REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 129
ANO DE 1952 31 DE JANEIRO
V LEGISLATURA
SESSÃO N.° 129 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 30 DE JANEIRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs. Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente de duro n aberta a sessão às 16 horas e 10 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foi concedida autorização para os Srs. Deputados França Vigon e Nunes Mexia deporem como testemunhas no 3.º juízo criminal de Lisboa.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Simões Crespo, para agradecer as condolências da Câmara pelo falecimento de sua mãe; Pinto Barriga, para enviar um requerimento à Mesa, dirigido ao Ministério da Justiça; Galiano Tarares, sobre a próxima reunião do Pacto do Atlântico, c Marques Teixeira, para agradecer a concessão de um subsidio para o prosseguimento das obras do Palácio da Justiça de Viseu.
Ordem do dia. - Iniciou-se a discussão, na generalidade, do projecto de lei sobre abandono de família,. Usaram da palavra os Srs. Deputados Cancela de. Abreu, Maria Leonor Correia Botelho e Miguel Bastos.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 15 minutos.
Texto da Comissão de Legislação e Redacção. - Decreto da Assembleia Nacional, sob a forma de resolução, acerca do Protocolo Adicional ao Tratado do Atlântico Norte.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 50 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sonsa Pirata.
Américo Cortes Pinto.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calheiros Lopes.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António de Sousa da Câmara.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Délio Nobre Santos.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Página 328
328 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 129
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Liana.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Luís Augusto das Neves.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Garcia Numes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
José Finito Meneres.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Meneses.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 76 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 10 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está na Mesa um pedido de autorização do 3.° juízo criminal de Lisboa para que os Srs. Deputados França Vigon e Nunes Mexia possam depor naquele tribunal como testemunhas no dia 1 de Fevereiro próximo, pelas 14 horas.
Submetido o pedido à Assembleia, foi concedida autorização.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Simões Crespo.
O Sr. Simões Crespo: - Teve V. Ex.ª a bondade de trazer ao conhecimento da Câmara o falecimento de minha mãe. A V. Ex.ª, pelos seus sentimentos, e à Câmara, que a eles se associou, a expressão do meu reconhecimento.
O Sr. Pinto Barriga: - Pedi a palavra para enviar para a Mesa o seguinte requerimento:
Roqueiro, nos termos regimentais, que pelo Ministério da Justiça me sejam indicados os nomes e habilitações dos dez motoristas cujo provimento foi autorizado pêlos despachos publicados no Diário do Governo n.° 98, 1.ª série, de 1950 e n.° 26 de 1951.
O Sr. Galiano Tavares: - Sr. Presidente: vai efectuar-se em Lisboa, no decorrer do próximo mês, a reunião do Pacto do Atlântico. Permita-se-me formular um voto:
A crescente e progressiva pressão da população no Mundo sobre os recursos e meios de vida, a ameaça da guerra mundial e a incessante preparação para lhe fazer face são presentemente - dizem-no e escrevem-no economistas e políticos - os maiores inimigos da liberdade.
Três quartas partes dos 2:200 milhões de habitantes do Mundo não têm o bastante para comer. E de admitir que nos fins do, nosso século se a catástrofe da guerra se não evitar- a população atinja 3:300 milhões, escreve A. Huxley.
A erosão do solo tem diminuído a fertilidade doa 16 milhões de quilómetros quadrados, da terra produtiva de que se dispõe. Nos países essencialmente industriais os recursos mineiros parece que acusam prenúncios de se esgotarem. A tremenda pressão da população sobre os recursos ameaça a liberdade.
E preciso trabalhar intensamente para obter meios de vida. A situação é tão precária que bastam, por vezes, condições meteorológicas desfavoráveis para provocar catástrofes e hecatombes.
No decorrer do século XIX o Novo Mundo abasteceu com abundância o Velho (Mundo. Hoje é duvidoso que o próprio Novo Mundo continue a dispor de excedentes para alimentar os 3:000 milhões do Mundo Velho.
As dificuldades aumentam, multiplicam-se em espantoso grau!
As guerras têm defraudado as riquezas acumuladas e as fontes de produção.
Este estado de crise suscita problemas políticos, que por sua vez impõem a necessidade de escolher verdadeiros homens de Estado para os debelar, mas de homens esclarecidos pelo pensamento e heróis pela conduta.
O receio de uma nova guerra, que ninguém prevê como se desenvolverá, leva os governos a investir enormes capitais em instrumentos de defesa, que serão, inevitavelmente também, instrumentos de destruição.
Há claros sintomas em todo o Mundo de corrupção de costumes, de desprezo de certas e eternas regras morais de convivência, que, qualificando os homens, os tornavam, praticamente, solidários entre si. As nações mais ricas gastam mas investigações das técnicas da guerra somas fabulosas.
Dois milhões de dólares se despenderam na produção da bomba atómica.
Os minerais úteis estão distribuídos com notória desigualdade. Uns os têm em abundância, outros deles são totalmente desprovidos.
Daqui resultam apetites e instigações a falsas «pacíficas expansões», em busca do petróleo, o mais precioso dos combustíveis, do carvão, do urânio, ou ainda dos imateriais plásticos para substituir o cobre, o zinco, o níquel ou o «estanho.
A ciência aplicada criou indústrias monopólicas, que geram surpreendente concentração de poder económico, instrumentos valiosos de guerra.
Ao homem de ciência será fácil servir a causa da paz ou da cooperação voluntária. Tudo depende da concepção ética a que se subordine, mas tudo leva a crer
Página 329
31 DE JANEIRO DE 1952 329
que a Ciência, dominando, é por sua vez dominada - porque os problemas de consciência se subverteram -, mais número, menos qualidade.
No desenvolvimento da vida dos homens sempre surgiram através dos tempos novos valores e novos ideais, porque, com efeito, só o homem livre é criador, mas no mundo actual parece não preponderarem os seres humanos e antes expandirem-se cada vez mais e em maior grau os homens fanatizados-a intolerância e a desconfiança, numa palavra. Na verdade, a liberdade exige a virtude, isto é, o hábito de proceder consoante o dever, pela repetição frequente de actos moralmente bons.
Como é que sem virtude pode haver justiça social, aspiração veemente a condições de vida feliz sem o respeito dessa espiritualidade, apanágio de uma vida boa?
Há quem estimule, com premeditada crueldade, a perturbação, a instigação ao crime impune, fomentando e suprimindo todas as liberdades, os alheias e até as próprias. Onde as leis permitem que um homem em determinados casos deixe de ser pessoa para converter-se em coisa mão existe liberdade, proclamava Beccaria, e até a própria vida se lhe torna intolerável. Na história não se conhece o maior talento do mal, perversidade que se disfarça e que utiliza os povos sob a sua influência para os dividir e enfraquecer, lançando-os em guerras de aparente emancipação -(a Coreia, a Indochina, a Pérsia e o Tibete), abrindo caminho para outros - mas violando-lhes o território, a fim de, sob a falsa intenção de os ajudar, os escravizar aos seus métodos, ao seu sistema, impondo o direito de dispor do produto íntegro do trabalho de cada um'- a tirania totalitária, o comunismo de guerra.
Eu sei, Sr. Presidente, que a função da palavra, como escreve Maritain, tem sido de tal modo pervertida que são insuficientes e duvidosas hoje as declarações mais solenes, mas permita-se-me emitir, repito, o voto de que acabe por triunfar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, constante da proclamação da Assembleia Geral das Nações Unidas, combatendo as correntes de pensamento que desconsiderem os princípios essenciais em que se enquadra e emoldura a sua própria existência.
O rearmamento ocidental é inteiramente justificado. Possuir um forte potencial industrial não é bastante. É necessário haver forças armadas disponíveis, treinadas e aptas. A coesão e a unidade de propósitos serão a única garantia de sobrevivência, porque se a evolução política da Europa depende de múltiplos factos, económicos e psicológicos, o rearmamento, sendo também psicológico, não deixa de ser dos mais importantes para realizar no plano internacional um modus vivendi tanto para os povos como pana os indivíduos; comunidade de um pensamento e acordo quanto à acção.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Marques Teixeira: - Sr. Presidente: apenas duas singelas palavras para, na qualidade de Deputado pelo círculo de Viseu e com o agrado e o significado que derivam, de ter comigo o merecimento da atitude concordante dos meus queridos colegas também eleitos por este círculo, fazer a afirmação de que mie é imensamente grato testemunhar ao Sr. Ministro da Justiça o mais profundo júbilo,, sinceras congratulações e Tendidos agradecimento pelo subsídio substancial de 750.000$, a que outros seguramente se seguirão, que S. Ex.ª acaba de consignar à continuidade das obras de edificação do Palácio da Justiça da capital do meu distrito.
Tal deliberação, que tamanhamente nos desvanece e é legítima causa de justificado regozijo, é, com certeza, a resultante do contacto directo que o ilustre estadista recentemente tivera com as obras referidas e, assim, nos dá a redobrada nota e medida da permanência de atenção e acrisolado interesse que S. Ex.ª desde a primeira hora lhes consagra, não afrouxando, como é evidente, durante o ritmo da sua execução, e por essa forma condicionando indudivelmente o seu termo para breve.
Viseu, Sr. Presidente, dentro de escasso tempo, terá grande prazer em verificar que do quadro das lamentáveis deficiências e lacunas existentes nas instalações de algumas repartições públicas um mancha escura desaparecerá, exactamente no tocante àqueles serviços que, pela sua intrínseca estrutura e elevada dignidade de que se revestem, mais careciam, na verdade, de um enquadramento e de uma ambiência perfeitamente correspondentes e adequados aos altos fins que prosseguem.
O Estado Novo continua, não cessa de assinalar também por diversos modos e exuberantemente a sua presença no distrito e cidade de Viseu.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A gente da cidade de Viriato, Sr. Presidente, orgulha-se do seu novo Palácio da Justiça, não ignora que o próprio Sr. Presidente do Conselho
- obreiro providencial do resgate da Pátria, que infatigavelmente se debruça sobre todos os problemas respeitantes ao bem público - não deixou nunca de ver repetidas vezes e, como é seu timbre, cuidadosamente observar as obras em curso, conhece e jamais esquecerá os nomes das personalidades ilustres a quem deve melhoramento tão grandioso, e, porque tem nobreza de espírito, cultiva em elevado grau os sentimentos da gratidão, é galharda nas atitudes e franca no sentir, é tão ciosa dos seus direitos como pronta no exacto cumprimento dos seus deveres, dá o seu a seu dono, tem sempre o coração ao pé da boca e, desta feita, saberá também dizer sinceramente, espontaneamente, em seu jeito habitual: bem haja, Sr. Presidente do Conselho; bem haja, Sr. Ministro da Justiça.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador fui muito cumprimentado.
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Vai entrar em discussão, na generalidade, o projecto de lei sobre o abandono de família.
Tem a palavra o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: devem V. Ex.ª e a Assembleia estar interessados em saber a causa deste projecto de lei sobre o abandono de família ou, melhor, o motivo que me levou a elaborá-lo e apresentá-lo à sua apreciação.
Di-lo-ei em duas palavras.
Não foram um ou mais casos particulares do meu conhecimento e muito menos que me tivessem sido revelados no exercício da minha profissão, e que, por sistema, repilo como fundamento de qualquer intervenção parlamentar.
Originou-o, sim, uma troca dê impressões com um digno, ilustre e prezado colega, antigo membro desta Assembleia, que exerce distintamente funções directivas em instituições tutelares de menores abandonados ou delinquentados, e portanto é testemunha directa e insus-
Página 330
330 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 129
peita do que se passa, especialmente nos grandes centros populacionais, no que diz respeito à desagregação das famílias, à perversidade da sua vida íntima e ao abandono e corrupção especialmente dos menores adolescentes.
Ouvi-lhe confrangido referir casos de verdadeira tragédia, especialmente provenientes daquele abandono, que se têm revelado perante os seus olhos e torturado o seu coração; abandono que, numa consequência lógica e matemática, passa à miséria, impele para o abismo, estimula depois a corrupção e o crime e, quantas e quantas vezes, a perdição irremediável!
Mal que carecia de remédio; e de remédio urgente, porque, em consequência das duas guerras, das propagandas subversivas, do nível de vida ainda baixo, da miséria em muitos lares, etc., estava - e está - alastrando assustadora e irremediavelmente.
Daqui surgiu a ideia de trazer à Assembleia Nacional o cruciante problema, ou seja este alarmante fenómeno social, que, é triste reconhecê-lo, não foi entre nós encarado devida e completamente no âmago das suas raízes fundamentais, pois se cuidou especialmente de remediar ou atenuar um mal que antes não se cuidara de prevenir na origem.
Foi esta, e só esta, a proveniência deste projecto de lei, apresentado há longa data, é certo, mas ainda oportuno, ou, antes, cada vez mais oportuno, porque cada vez se tomam mais urgentes providências, que denomino cautelares, para opor um dique à vaga de corrupção que está subvertendo a família e que, geralmente, só quando já está consumada, o Estado procura dominar através de institutos, sem dúvida modelares, de correcção ou internamento, mas impotentes para restabelecer o lar, e, por vezes, inoperantes na regeneração das almas corrompidas.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Dado este esclarecimento necessário, quero, antes de prosseguir, cumprir o grato dever de agradecer a V. Ex.ª ter-se dignado atender o meu pedido para, sobre o projecto, mandar ouvir com brevidade as comissões respectivas e tê-lo incluído na ordem do dia na primeira oportunidade que se lhe ofereceu. Não me surpreende, por ser habitual, esta generosa solicitude de V. Ex.ª, mas isto não impede que o facto mereça registo especial, e muito gostosamente o cumpro.
Não vou defender o meu projecto. Está confiado ao estudo e decisão da Assembleia e sobre ele incidiram um douto parecer da Câmara Corporativa e o estudo das nossas comissões, que habilitam VV. Exas. a pronunciarem-se.
Não vou fazer a sua defesa, repito. Vou justificá-lo, o que é diferente - e faço-o no propósito de dar ainda uma quota-parte de colaboração para que dele resulte uma lei quanto possível perfeita, útil e eficaz, como recomenda a importância e a delicadeza da sua matéria.
Tão-pouco quero tomar já posição sobre o caminho que julgo dever adoptar-se, isto é,- se deve tomar-se para base da votação o meu projecto ou o texto da Câmara Corporativa. E não o faço para não poder atribuir-se-me a deselegância, aliás inoperante, de pretender influir na resolução da Assembleia ou antecipar-me às nossas ilustres comissões, que, certamente, sobre o assunto dirão uma palavra.
Num caso ou noutro, afigura-se-me que a economia e o texto do projecto, com ou sem as alterações da Câmara Corporativa e aquelas que resultarem da discussão, merecem a atenção da Assembleia Nacional pelo interesse e pelo valor do seu conteúdo. Procurei demonstrá-lo -, com singeleza mas com verdade, no respectivo relatório, cuja leitura solicito aos meus colegas também para base da discussão e para evitar-lhes a demora e o incómodo de repetições.
Duas objecções podiam, porventura, opor-se à utilidade ou à oportunidade do projecto: são a de que ele é restrito a um limitado número de casos, quando é certo que muitos outros ocorrem nos deveres e relações de família, e a de que as sanções propostas hão-de constar um dia de um código ou de qualquer outro diploma completo a surgir.
Ora os discordantes têm resposta no próprio relatório do projecto, onde diz que se visou apenas o preenchimento de algumas lacunas mais graves da lei relativamente a sanções contra os infractores dos deveres conjugais e paternais mais importantes e a actualização e compilação de outras dispersas e, por vezes, deslocadas nos códigos e em múltiplos decretos. E o projecto será limitado na sua extensão, mas, julgo eu, é muito importante no seu conteúdo.
Não se trata de modo algum de uma medida de emergência ou de circunstância, nem tão-pouco de resolver especificadamente um número restrito de casos pendentes ou conhecidos; e até, para as «boas almas» não se atormentarem ... ou entreterem, proporei que esta lei não tenha efeito retroactivo quanto ao início dos prazos e talvez quanto aos factos determinantes da sua actuação.
Será, porventura, um diploma que se destina mais a prevenir do que a remediar, embora sem dúvida vá resolver, no futuro, muitos casos graves, para cuja solução até agora as leis eram impotentes precisamente por falta de sanções. Digamos: sem deixar de, em muito, ter relevância prática, o projecto tem também um largo alcance subjectivo.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não é tudo; sim, não é tudo, mas, a meu ver, é um grande passo em frente e com evidente reflexo na defesa e na moralização do lar.
Não sou portador do elixir da salvação, que em meia dúzia de artigos resolva este importante, vasto e transcendente problema. Pretende-se avançar um pouco. Nada mais.
E quanto ao argumento de que um dia há-de vir um código ou outro diploma que abarquem, no seu conjunto, tudo o que diz respeito às relações de família, basta-me responder que se aguarda este há muitas décadas ..., apesar de ter havido muitas manhãs de nevoeiro. Temos sabido esperar; mas os acontecimentos precipitam-se, e a onda de perversão e imoralidade provenientes, como disse, das duas últimas guerras, das propagandas do Oriente e a das dificuldades da vida presente, etc., são tais que, se permanecermos de braços cruzados, corremos o risco de soçobrar perante a grave crise moral que assola o Mundo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas, seja como for, a lei que votarmos não estorva o caminho; antes o abre e aplana num dos aspectos mais importantes e que, repito, não se compadece com delongas; e, depois, esta lei, integralmente ou com alterações que a experiência tiver aconselhado, pode ser incorporada nesse diploma geral, tão necessário e desejado.
Aliás, a Câmara Corporativa - e isto sobrepõe-se ao que eu possa dizer - não se manifesta contra a iniciativa e oportunidade do projecto. Antes, com a sua autoridade, depois de salientar que ele se destina a, no aspecto criminal, dar satisfação ao preceito do artigo 12.° da Constituição e que se trata de efectivar parcialmente um dos mais salutares princípios da nossa lei fundamen-
Página 331
31 DE JANEIRO DE 1952 331
tal, acrescenta que a intenção que anima o projecto é, por isso, merecedora do maior louvor e aplauso; e mais adiante presta homenagem ao seu alto objectivo. E basta saber quem é o relator deste parecer, qual a esplêndida formação do lúcido espírito do Prof. Gomes da Silva e quem são os restantes Procuradores que o subscrevem e as suas profissões e categoria para, sem constrangimento, mesmo os mais cépticos ou derrotistas concluírem que o projecto passou a ser revestido da autoridade e do valor que o seu autor não podia nem sabia emprestar-lhe. Sinto-me assim muito à vontade para confirmar a vantagem da sua conversão em lei, quer se tome para base o texto inicial, quer outro.
Reservando-me para, depois de ouvidos outros oradores, ou na especialidade, manifestar-me a respeito de uma ou de outra solução, quero agora apenas apreciar resumidamente as reservas que a Câmara Corporativa põe sobre o intervencionismo do Estado, pela via criminal, na vida da família e focar alguns dos aspectos mais salientes do parecer que se relacionam com os casos a submeter às sanções penais.
Dispenso-me, por desnecessário e brevidade, de divagações sobre aquela teoria, que aliás não merece reparo quando se refere ao exagero no intervencionismo do Estado. Basta-me objectar que a intervenção do Estado pela via criminal é, em geral, a consequência natural, lógica e necessária da intervenção do Estado pela via civil, que a sua própria função impõe; e esta, especialmente na parte que se refere aos cônjuges e aos menores, é completa, como sucede nos deveres recíprocos e nó regime de defesa e conservação do património dos primeiros; e, quanto aos segundos, no que diz respeito ao pátrio poder, à tutela, ao sustento, educação e vestuário, jurisdição orfanológica, tutorias, institutos tutelares e de correcção, etc.
É certo que a lei estabelece determinadas soluções de natureza civil naquilo que pode ser objecto de uma acção directa, como sejam divórcio, separação de pessoas e bens, inibição do poder paternal, etc.; mas as obrigações de alimentos, sustento, educação e outras tornam-se praticamente irrelevantes quando os cônjuges ou pais são insolventes ou ocultam o património (caso frequentíssimo), pois sabem de antemão não haver forma de efectivação compulsiva da lei ou das sentenças, e as consequências funestas dos seus erros e desvarios são indiferentes à sua sensibilidade moral.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Finalmente, o intervencionismo do Estado nos casos desta natureza, digamos na vida familiar, não tem como objectivo principal resolver este ou aquele caso concreto de desarmonia ou de conflito conjugal ou de abandono de um filho, embora já, por si, o justifique a protecção que o Estado lhes deve. O objectivo Vai mais alto.
Intervindo, pelas vias civil e penal, o Estado assegura a organização e a defesa da família como fonte da conservação e desenvolvimento da Raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social e como fundamento de ordem política e administrativa. Intervindo, o Estado providencia no sentido de evitar a corrupção dos costumes. Isto é: o Estado cumpre e faz cumprir o artigo 12.° e o n.° 5.° do artigo 14.° da Constituição.
Numa palavra: intervindo pela via civil e pela via penal, que àquela dá eficiência, o Estado defende a família, isto é, a sociedade, a Nação.
Apoiados.
Ora é exactamente porque reconheceu ser assim que o Estado sempre teve necessidade de intervir pela via criminal, estabelecendo penas corporais ou pecuniárias.
Referi no relatório do projecto vários exemplos desta indispensável intervenção. Não os repito porque a eles me reporto.
Ela vem das velhas Ordenações, onde até a pena de morte era aplicada aos adúlteros e raptores, e tinha degredo em África e perda da fazenda o que se atrevesse a casar com mulher de ,25 anos sem licença de quem a tivesse u sua guarda. Vê-se que há três séculos a mocidade não era precoce... E o Código Civil - o próprio Código Civil -, no seu artigo 141.°, manda punir os pais que abusem do poder paternal.
Várias são as penas criminais instituídas para os casos em referência no velho Código Penal e em outros diplomas posteriores também citados no relatório do projecto. E até o novo Código de Processo Civil, desgarradamente, manda, pelo seu artigo 1465.°, aplicar a pena de prisão correccional até seis meses, não convertível em multa, aos cônjuges e pais quando, por outro modo, não seja possível conseguir o pagamento dos alimentos, pensões e encargos a que estejam obrigados.
Lá fora, por toda a parte, o intervencionismo do Estado nestes casos, pela via criminal, é regra geral.
O Brasil, no recente Código Penal de 1940 - mais novo cinquenta e quatro anos do que o nosso... e de que eu, pune, nos artigos 244.° e seguintes, com penas de três meses a um ano e multa, os crimes «contra a assistência familiar», como sejam os dos que, sem justa causa, deixarem de prover à subsistência do cônjuge ou dos filhos menores ou ineptos para o trabalho, e à sua educação primária, ou permitirem que eles frequentem casas de jogo ou de má nota e espectáculos impróprios da sua idade, ou convivam com pessoa viciosa ou de má vida, etc.
E a falta de manutenção da família, em especial da mulher, ó nos Estados Unidos da América do Norte um crime sujeito à pena de extradição entre os diferentes Estados; e a mulher assim abandonada pode contratar para prover às suas necessidades, responsabilizando o marido por tais contratos, sem este os subscrever.
Não menor é o rigor em Inglaterra. A condenação do que se negar a socorrer as necessidades da família são trabalhos forçados; e o que abandona a mulher e os filhos é considerado vagabundo e condenado também naquela pena.
O intervencionismo do Estado dá-se também na França, na Espanha, na Bélgica, na Suíça, na Alemanha', na Itália, na Holanda, na Dinamarca, no Canadá, etc. Tenho em meu poder a demonstração.
Salvo o devido respeito, o receio da Câmara Corporativa não se justifica também porque, no artigo 4.° do projecto, houve o cuidado de estabelecer que, além do Ministério Público, a participação dos delitos previstos nos n.08 1.°, 2.° e 3.° do artigo 1.° só compete ao outro progenitor ou ao curador dos menores, e, nos casos dos n.ºs 4.° e 5.° do mesmo artigo, aos interessados, ou seja ao cônjuge e ao ex-cônjuge.
O texto da Câmara Corporativa é até, porventura, mais vago, pois, quanto à falta de pagamento de alimentos, torna a acção penal dependente da acusação (deveria bastar participação) das pessoas que tenham legitimidade para exigir os alimentos (§ 1.° do artigo 1.°), e, em referência ao abandono e falta de assistência moral e económica ao cônjuge, a intervenção judicial depende da participação deste (§ 3.° do artigo 2.°).
Mas nada diz sobre a competência para participar os delitos dos n.ºs 2.° e 3.° do artigo 2.°, e não podemos ser levados a concluir que é só o cônjuge ou outros representantes do menor no primeiro caso e o cônjuge no segundo.
Há mais.
Afinal, o douto parecer, apesar das reservas que põe, considera legítima e necessária a intervenção do Estado,
Página 332
332 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 129
e, embora nuns casos mais limitadamente, concorda com os pontos fundamentais do projecto; mas noutros casos vai bastante mais longe, com as alterações que introduz, como são, sem falar nas latas disposições que substituem os artigos 405.° e 406.° do Código Penal, a que também permite ao ofendido privar da legítima o ofensor e ainda a que torna a-«punição extensiva ao abandono do lar sem filhos, quando o projecto a estabelece só para o abandono pêlos pais, embora sem as restrições que o parecer sugere.
Ainda outro apontamento relacionado com a intervenção do Estado.
O parecer discorda do projecto na parte em que atribui ao Ministério Público competência para promover procedimento criminal em referência 'aos delitos contra menores, pois diz: a este não faz, antes recebe as participações» ; e, alarmado, vê o Estado a infiltrar-se na vida íntima 4a família, a polícia a pesquisar o interior e a intimidade dos lares, a coscuvilhar sobre as razões do procedimento recíproco dos cônjuges, a apreciar o comportamento dos pais para com os filhos, etc., a exercer assim uma devassa forçosamente indiscreta e impertinente.
Mas, valha-nos Deus!
Pode ser que o artigo 4.° e seu § único do projecto não estejam bem claros, mas a intenção foi dar ao Ministério Público a iniciativa só quando as vítimas sejam pessoas a que ele, pela lei civil, deve assistência.
E não é de estranhar, como o faz o parecer, que se lhe atribua esta função, pois, não obstante lhe caber realmente a atribuição de receber participações, cabe-lhe também a iniciativa. De outro modo seria ineficaz a função de representante e da assistência dos incapazes e até de parte principal nos processos que a estes digam respeito, e lhe atribuem os artigos 103.° e 119.°, n.° 1.°, do Estatuto Judiciário e que na alínea d) do § 1.° chega a conferir-lhe poderes para intentar acções e usar de quaisquer meios judiciários em defesa dos interesses dos incapazes ou equiparados. Isto sem falar dos poderes que, de modo particular, lhes competem nas tutorias de infância e ainda no Código de Processo Penal, cujo artigo 1GÕ.°, como outros, lhe atribui competência para requerer procedimento criminal.
E seriam necessárias aquela profanação do domicílio, aquela devassa do lar simplesmente para provar que um pai o abandona ou não paga à mulher e aos filhos os alimentos a que está obrigado?!
Havia razão para reparos se realmente se atribuísse à polícia, a outros parentes ou a terceiros, que não exercem a tutela ou a curadoria dos menores, a iniciativa da acção criminal. Neste caso, sim.
Isto tudo quer, afinal, dizer que estamos todos de acordo: é inconveniente o intervencionismo exagerado do Estado na vida íntima da família, mas é indispensável que o haja na justa medida, quando o exige a defesa da própria integridade do lar e a necessidade de fazer cumprir os deveres legais para com os cônjuges e menores, que, no caso contrário, seriam irrelevantes, nomeadamente, repito, quando os infractores não forem solventes ou ocultarem os bens.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E podemos acrescentar que, além da necessidade de actualizar, coligir e completar a legislação anterior, existe agora a de adaptá-la ao nosso moderno conceito constitucional da família e à altíssima função social que ali lhe foi atribuída como célula primária da Nação. Creio que pouco se realizou neste sentido desde que a actual Constituição foi promulgada, a não ser,
sob o aspecto do património familiar, a excelente Lei n.° 2:202, de 22 de Maio de 1947, em cuja discussão
tive a satisfação de intervir. Isentou de imposto sucessório as quotas hereditárias até 100 contos a favor dos descendentes e fez grande redução das custas nos inventários orfanológicos. Isto sem esquecer que, no aspecto especial de instituições de tutela e de jurisdição sobre menores, regime prisional, etc., não se esteja trabalhando muito bem no Ministério e nos serviços da Justiça.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ora o projecto em discussão tem aquela finalidade; e houve a preocupação de limitá-lo ao mínimo indispensável ao fim em vista: a defesa do lar, a moralização da família, base da Nação.
É só um passo? Sem dúvida, repito-o. Mas é um passo em frente, e, se for certo, não erramos o caminho para uma solução mais larga e completa, que bem desejávamos ver próxima.
Este projecto, desde que foi apresentado, terá sido vítima ora da ignorância dos que, lá fora, não quiseram estudá-lo, ora da exigência dos insatisfeitos, que desejam sempre mais e melhor, quando não desejam tudo, ou seja o impossível, de uma só vez!
A outros dois pontos do texto da Câmara Corporativa convém ainda referir-me desde já, numa rápida síntese, por, a meu ver, serem os mais importantes.
Um refere-se à introdução nele dos dois artigos novos, destinados a substituir os artigos 405.° e 406.° do Código Penal, e dizem respeito ao incesto e ao lenocínio; o primeiro - diz-se - porque, ao contrário da maioria dos códigos penais estrangeiros, o nosso não o pune autonomamente, e o segundo porque o Código e o Decreto n.° 20:4)31 contêm deficiências que é conveniente suprir nesta oportunidade.
Embora seja assim, afigura-se-me, todavia, que esta importante matéria fica aqui um pouco deslocada, pois não diz propriamente respeito ao «abandono de família», traduzido em actos contrários só a preceitos da lei civil, que aqui se pretende tornar eficientes, e não em actos que, não obstante perturbarem a dignidade e existência do lar, constituem crimes públicos dos mais graves e repugnantes, que têm melhor colocação no Código Penal.
Vem a propósito recordar que, um dia, o nosso sempre lembrado colega Dr. Antunes Guimarães - a personificação do bom nortenho -, ao apreciar aqui determinado preceito, salvo erro, da lei do subsídio ao cinema nacional, se insurgiu contra esse preceito porque ele a sujava. É o caso.
Sem embargo, não deixo de reconhecer que estes artigos, propostos no brilhante parecer, contêm disposições justificadas e dignas de ser ponderadas no novo Código Penal, que um dia há-de chegar.
Outro ponto:
Como VV. Exas. viram, o projecto pune o simples abandono do lar, além de certo tempo, pêlos pais de menores, embora continuem a cumprir os outros deveres inerentes ao poder paternal, as passo que a Câmara Corporativa sugere que se verifiquem cumulativamente os dois requisitos, isto é, que o desertor também infrinja gravemente o dever de socorrer e ajudar o outro cônjuge ou os deveres inerentes ao poder paternal. Não me parece esta a solução melhor. Desejo acentuar que me propus punir, por si só, o abandono do lar, por considerá-lo como a raiz, a base, o pecado original de todos os outros. Da deserção do lar derivam normalmente o desprezo pela família, a recusa da assistência moral e material a ela, á mancebia, a corrupção da mulher e das filhas provocada pela miséria, a perversão dos filhos, ou, na hipótese mais suave, aquela infracção dos deveres que o n.° 1.° do artigo 2.° do texto da Câmara Corporativa impõe como requisito da
Página 333
31 DE JANEIRO DE 1952 333
penalidade. Em resumo: o lar desfeito, seguindo-se todo o cortejo de desgraças e misérias. Miséria e lama!
Em última análise, a minha ideia é punir a causa antes do efeito; numa palavra, é antes prevenir do que remediar. É, enfim, atacar o mal pela sua raiz.
E não trouxe nenhuma inovação. É certo que a Câmara Corporativa seguiu na esteira da legislação francesa, conquanto nesta se considere a deserção do lar como a causa de toda a desagregação familiar: mas já, entre outros, o Código Penal italiano, no artigo 570.°, castiga o simples abandono com a pena de reclusão até um ano e multa de 1:000 a 10:000 liras.
E, meus senhores, não esqueçamos que a nossa Constituição, no n.° 5.° do artigo 14. °, não obriga o Estado apenas a punir a corrupção dos costumes: manda-o «tomar todas as providências no sentido de evitá-la». É diferente, e é o que pretendemos fazer.
Sr. Presidente: por último, outro aspecto mais:
A Câmara Corporativa quer punir apenas os infractores que estiverem judicialmente obrigados a prestar alimentos a menores.
O parecer não indica, nem vejo motivo para esta restrição, porventura inspirada também na lei francesa. As obrigações instituídas na própria lei são, pelo menos, tão imperativas como as impostas pelas sentenças que as mandam cumprir.
A lei vale e impõe-se por si, subjectiva e objectivamente considerada, e obriga sem que uma sentença o diga e decrete. Depois, a lei é objectivamente certa, e uma sentença não é infalível.
E, prevalecendo a distinção que aquela Câmara pretende, toda a infracção, para cair na jurisdição criminal, teria de ser precedida de acção cível, com todo o seu cortejo de despesas, empates e demoras usuais e muitas vezes inevitáveis; quer dizer: sanção quase absolutamente platónica.
Todos os que lidam nos tribunais sabem o que se passa geralmente com as acções de alimentos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E quando terá início o prazo de sessenta dias após os quais o infractor cai na alçada penal? Muitas vezes depois de a miséria bater à porta ou quando já for inevitável o desmantelamento do lar. Dir-me-ão que pode suceder o pai ou a mãe não serem, por qualquer motivo especial, obrigados a prestar os alimentos; mas, neste caso, o acusado pode fazer a prova desta desobrigação no próprio processo criminal, pois o motivo justificado está expressamente ressalvado nos artigos do projecto.
Pelas razões expostas, eu entendia que a condenação prévia só devia ser necessária quando muito na prestação de alimentos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge.
Sr. Presidente: a Câmara Corporativa não diz, mas pode haver quem pergunte se tudo ou o essencial não estará prevenido já na lei anterior. Respondo que não.
Disse e tentei demonstrar no relatório e confirmo-o:
Não existem, portanto, sanções penais para a falta de cumprimento de vários deveres matrimoniais ou paternais, nomeadamente:
Para os pais que abandonem voluntariamente o domicílio comum;
Para os pais ou tutores que voluntariamente faltarem a outros deveres materiais ou morais inerentes ao exercício do poder paternal ou à tutela;
Para o cônjuge ou ex-cônjuge que não paga ao outro as pensões a que estiver judicialmente obrigado antes de esgotados todos os outros meios coercivos para consegui-lo;
Para o marido que faltar ao cumprimento dos seus deveres de assistência moral e económica, originando assim a miséria ou a corrupção da mulher.
Sim: uns destes casos estão regulados na lei civil, mas não existe sanção contra eles, outros estão incompletos e os restantes constituem inovação.
E mais adiante acrescentei:
Como resulta do exposto, o projecto visa especialmente a tornar extensivas à deserção do lar com filhos, e a casos ainda não incriminados de abandono material e moral dos filhos e da mulher, sanções penais semelhantes às que já existem na nossa lei para outros casos.
E depois:
Para limitar a dispersão existente de regras de natureza penal sobre estas relações de família, julguei oportuno reproduzir no projecto a punição de falta de pagamento de alimentos e pensões.
Fica assim esclarecido o seu âmbito.
Eis, meus senhores, as considerações preliminares que julguei conveniente fazer, não para orientar ou limitar a discussão, mas para exprimir o pensamento e as razões que inspiram o projecto, pequeno e restrito - repito - a casos mais essenciais, e tornado não só oportuno mas necessário pela própria estrutura da Constituição, expressa no artigo 12.° e no n.° 5.° do artigo 14.°, e pela essência rudimentar de uma sociedade civilizada e cristã.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - É natural que muitos de VV. Exas., inspirados no legítimo desejo de mais e melhor, tenham ideias, sugestões ou alterações a apresentar. Isto só mostra interesse perante um assunto que, pela sua projecção social, o merece.
Em todo o caso, parece-me que o projecto ou o texto da Câmara Corporativa, com as alterações que surgirem da discussão, vão satisfazer o mais essencial.
Todavia é à Assembleia que compete decidir.
Para finalizar, vale ainda a pena reproduzir estas passagens de um relatório do ilustre provedor da Casa Pia, Dr. Campos Tavares, que, além da competência própria, tem os conhecimentos que resultam do exercício daquela alta função:
O número das crianças que encontramos desamparadas a bater à porta dos estabelecimentos de assistência vem sempre aumentando ...
Todo o ser que vem ao Mundo reclama o direito de ser educado segundo as exigências da natureza humana - isto é, uma família normal e sã. Ao Estado cumpre assegurar-lhe esse direito e só na total impossibilidade é legitima a substituição pelos internatos.
Mais adiante:
A natureza dos casos que se têm apresentado à nossa consideração nestes cinco anos denota a existência de uma grave crise familiar, corroída por um mal que alastra extraordinariamente à medida que se expande a exteriorização sensual.
As famílias desfazem-se ao saber das paixões tanto do pai como da mãe, reunidos por ligações efémeras, sem qualquer sanção legal ou religiosa.
A piedade pelas dores e sofrimento dos filhos, o sentimento do amor paterno e materno, flores do
Página 334
334 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 129
coração humano, desfazem-se no ambiente do pan-sexualismo.
O número das mães abandonadas de 10, 17 e 18 anos alastra progressivamente ...
A nossa sociedade está a ser avassalada por uma multidão de crianças atiradas para o abandono por uma vida familiar em crise individual e social e a que se perdeu o sentido. Está-se a permitir a criação de um, ambiente moral com obliteração total das responsabilidades de geração. As medidas legais existentes apresentam-se insuficientes e parecem impor a criação de uma nova ordem jurídica que possa travar este pendor em que se está caminhando contra as exigências da natureza humana e os direitos naturais da criança.
E, por fim, transcreve de outro autor:
A constituição irregular dos casais e leveza como se formam e a frequência com que se dissolvem para se tornarem a formar com outras combinações é tão corrente que o facto já não assume carácter de imoralidade. É simplesmente amoral, mas dela resultam as mais nocivas consequências.
Os pais não tratam dos filhos, não os sustentam nem os educam e, como dessa espécie de paternidade não resulta qualquer vínculo, a proliferação campeia infrene e desabusada.
É este o quadro, o quadro horrível, sem tintas carregadas, pois foi traçado à luz clara de uma triste realidade irrecusável.
Eu não saberia esboçá-lo melhor, e por isso resta-me, de alma limpa e mãos lavadas, expô-lo ao elevado e nobre pensamento da Assembleia Nacional.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
A Sr.ª D. Maria Leonor Botelho: - Sr. Presidente: no serviço social, e anais ainda nesta vida que tenho vivido em contacto com a» maiores dores e misérias humanas, aprendi que uma disposição legislativa deve destinar-se sempre a satisfação de uma necessidade da vida social.
E aprendi também que, para que essa mesma disposição legislativa seja aceite sem sobressaltos e produza integralmente OH.SCUS efeitos, é necessário que seja construída sobre aquilo a que podemos chamar as constantes da vida social.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - O projecto que se discute é basilar para a Nação, mas só resultará útil se as disposições votadas respeitarem - e não só respeitarem mas valorizarem também - os princípios fundamentais da nossa organização, ou seja as mesmas- constantes da vida social, conforme vem expresso, de resto, na Constituição Política.
Mulher e assistente «social, pretendo abordar agora apenas os aspectos do projecto que ferem a minha sensibilidade, e mais ainda aqueles que julgo indispensáveis à reconstituirão ida família portuguesa.
Por isso, uso da palavra neste momento, quando se discute o projecto na generalidade, deixando para os técnicas o estudo ida especialidade, em .que mais profundamente têm de ser tomados em conta os aspectos jurídicos, e particularmente os de ordem penal.
Antes de iniciar as minhas considerações quero, porém, render homenagem ao autor do projecto, felicitá-lo, como portuguesa e como mulher, pela coragem com que aborda problemas que considero fundamentais - que todos - consideram fundamentais-, mas que nunca se ousou equacionar completam ente.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - Há que arrepiar caminho em certa matéria social.
Temos de encarar de frente, com serenidade e realismo, certos aspectos da decomposição social que ameaça subverter-nos.
Isto se quisermos, evidentemente, sobreviver à onda de dissolução que cresce em tempestade, apoiada nos sentimentos e paixões que mais frequentemente arrastam o homem para o caminho da indignidade.
Sr. Presidente: a Constituição Política da Nação considera a família como a célula fundamental da mossa vida de sociedade.
Já tive ocasião de o dizer aqui desta tribuna, depois de o ter repetido todas as vezes que sou chamada a depor sobre estes problemas, que Portugal é a grande Pátria da Família. Aqui ela tem direitos de cidade. Teórica e doutrinàriamente, assim é. Infelizmente, na prática não só não se dá execução ao conteúdo de algumas dessas disposições pró-família que nos vêm desde a Constituição u mais simples disposição regulamentar, como se contrariam e até inutilizam! É certo, na verdade, o comentário que há dias li num diário da capital:
Tem-se feito muita política com a família e muito pouca política pela família.
É que estão ainda por solucionar problemas que influem tão directa e incisivamente na vida* dos agregados familiares que da sua solução depende a possibilidade de as famílias desempenharem cabalmente os seus fins naturais e sobrenaturais. E sabemos que o nível moral de uma nação deve medir-se, antes de tudo, pelo respeito e pela atenção que se dedica à instituição familiar.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - As nações só prosperam na medida em que se compõem de famílias sãs, numerosas, bem constituídas, capazes de manter e valorizar os recursos nacionais. A diferença entre indivíduo, colectividade familiar e colectividade nacional reside precisamente na possibilidade que têm estas últimas de serem, em parte, senhoras da sua existência.
O indivíduo, enquanto indivíduo, vive num presente limitado e só age em função desse presente. A família tem um fundo de perenidade: herdeira do passado, assegura o futuro, e o presente é para ela apenas o traço de união entre o passado e o futuro.
A família é a única força que vence a morte!
Ela é por excelência a representação viva do princípio da continuidade social e da conservação das tradições humanas. Conserva, transmite e assegura a estabilidade das ideias e da civilização. Por isso se explica que aqueles que querem derrubar a organização tradicional da sociedade, e que pretendem, desenraizar as suas crenças hereditárias, se empenhem no ruir dos alicerces dessa muralha da tradição.
Facilmente se conclui, pois, pela necessidade imperiosa que o Estado tem de se apoiar, não sobre os indivíduos, mas sobre as famílias.
As famílias, e não os indivíduos, são a base da sociedade.
O Estado Novo tem realizado obra de relevo em defesa da família. Não podemos esquecei as habitações
Página 335
31 DE JANEIRO DE 1952 335
económicas, os bairros operários e as mil e uma outras medidas que neste e naquele sector se destinam ou se repercutem favoravelmente na defesa dos aspectos materiais da vida da família.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - A verdade, porém, é que poucas têm sido as providências destinadas a defender a família dos elementos de desagregação e decomposição internas, a defendê-la contra os desvarios, as irregularidade» ou as baixezas daqueles que a compõem, e nomeadamente daqueles aquém Deus confiou a nobre missão de a guiarem e protegerem.
E não raro se verifica que o listado protege, com a falta de disposições, autênticos actos de espoliação ou de indignidade a que um membro da família sujeita os outros.
Ou então, a pretexto de salvaguardar a liberdade e os direitos do indivíduo, despreza ou contraria os direitos da família.
Muitas vezes a lei visa nitidamente defender à família na sua unidade e na sua essência, é certo, mas o exercício dos direitos que confere aparece de tal modo rodeado de formalidades e de obstáculos que as disposições legislativas resultam praticamente ineficazes.
Que objecções de toda a ordem para uma declaração judicial de indignidade .paterna, mesmo quando é notória uma vida de promiscuidade e desmoralização, que todas as leis humanas e divinas condenam!
Que dificuldades para obter a inibição do poder paternal, mesmo quando se sabe, até através de organismos oficiais e de assistência, que ele é exercido com desprezo dos direitos essenciais dos filhos ou com abuso manifesto de direitos que Deus conferiu e, que, por isso, deveriam ser exercidos quase religiosamente!
Que dificuldades para se obter a concessão de uma pensão alimentar!
E para que citar mais, se todos VV. Exas. melhor do que eu poderão recordar casos espantosos de desmoralização familiar que não podem remediar-se por carência de meios legais ou excesso de formalidades?
Sr. Presidente: nós que andamos mergulhadas nas realidades da vida, nós que por vocação vamos de encontro às misérias, nós que por missão as temos de ouvir e lhes temos de dar solução não podemos calar os clamores de tanta fome, de tanta necessidade, de tanta desordem que vai por essas famílias! Perdoe, Sr. Presidente, que eu venha sempre com a nota triste dos casos sociais, mas não sou capaz de alhear-me de mini própria. Aliás, todos nós queremos mais e melhor; todos aqui estamos para dizer ao Governo onde é necessário acudir, onde é urgente melhorar.
Apesar de não ser capaz de apontar com minúcia todos os males que afligem lá fora a família portuguesa, creio, Sr. Presidente, que, adentro desta Casa, serei dos que mais profundamente sentem as lacuna(r) que ainda existem na nossa vida social e que afectam a vida dessas mesmas famílias. Como posso esquecer as necessidades, os problemas que encerram os 24:500 processos que passaram de há quatro anos para cá no Instituto de Assistência à Família! Que me seja, pois, perdoada a impertinência, pelo bem que desejo fazer-lhes.
O projecto de lei em discussão vem, sem dúvida, ajudar a fortalecer os direitos da família. E é necessário que os coloquemos no seu lugar próprio, para que se não diga que perfilhamos encobertamente as doutrinas individualistas, que condenamos às claras.
A nota que pretendo ferir é esta: o Estado necessita, se quiser defender a família, de protegê-la também contra si própria, de protegê-la contra a inércia, a incúria, o relaxamento, o impudor, a devassidão e, em resumo, a indignidade moral dos seus membros responsáveis.
Pouco servirá dar garantias económicas: à família, pouco servirá rodeá-la, de cautelas, de comodidades ou de garantias de segurança, se ela não for defendida contra as suas próprias irregularidades e disfunções.
É necessário não esquecer que aquelas garantias existem para as famílias normais ou, melhor, que só as famílias normais podem aproveitá-las integralmente. Mas
não podem servir de remédio, de efeitos seguros, para a recuperação do unia família indigna ou em que um dos seus membros padeça dessa mesma indignidade.
Também a acção educativa a exercer pelo serviço social é tão limitada e tão incompreendida, neste país que não pode ter só por si efeitos decisivos na matéria.
Há tanto o tenho sentido - necessidade por vezes de recorrer ao respeito ou ao temor das sanções para conseguir aquilo que a brandura, a persuasão e o sentimento da dignidade própria não conseguem.
Aprovo por isso - «minora pareça estranho que eu, mulher e assistente social, o faça - o objectivo do projecto em quanto ele pretende estabelecer sanções para as irregularidades e desvios funcionais do, vida do lar.
Em várias passagens do parecer da Câmara Corporativa transparece, e afirma-se- até, haver receios da ineficácia do projecto, já pela intervenção do Estado Jia vida da família, que por ele torna possível, já pela dificuldade prática da aplicação idas sanções penais prescritas, porquanto o recurso a essas sanções «repugna - como lá se diz- aos nossos costumes». Mas pergunto: não repugnarão mais os factos que lá se condenam?
São realmente ide tomar em conta umas e outras reservas apresentadas pela Câmara Corporativa relativamente ao (projecto e à sua orientação. Aliás, esta prudência é condição indiscutível e fundamental de eficácia sempre que, como neste, caso, as leis dizem respeito, tão de perto, aos mais sagrados problemas humanos. Mas daí a acusar-se o Estado de, pelo facto de, através do tribunal, tomar uma atitude contra a corrente de desmoralização que penetra nas famílias, se imiscuir na intimidade familiar vai longa distância. Não me parece que seja argumento bastante para minimizar o valor e a oportunidade do projecto.
Na missão que compete ao Estado de assegurar à Nação as condições de prosperidade moral e material, missão preconizada nas Encíclicas e muito especialmente na de Leão XIII, parece-me que está incluída a tutela social da família. O inegável dever de a proteger e defender contra os seus inimigos externos e contra a sua decomposição interna implica necessariamente um certo poder, não só de controle, mas de remédio para os vícios que a família não possa suprir por seus próprios meios naturais. Portanto, deve o Estado vedar para que se cumpram os deveres de ordem familiar. Sempre se admitiu que, em casos extremos - como os focados no diploma em discussão -, o Estado declare os pais indignos ou inibidos dos seus direitos paternais, com suas consequências.
Existe um conjunto de direitos e deveres que dimanam, naturalmente, da vida comunitária e prevalecem sobre os direitos do indivíduo. O Estado, guardião da ordem, tem o dever de harmonizar todos estes direitos e de os subordinar a um fim mais alto. No que respeita à família, já o dissemos, o seu papel reveste unia delicadeza particular, mas nem por isso ele deve aqui renunciar à sua vocação de defesa do agregado social.
Assim, um dos deveres essenciais do Estado é o de proteger, ajudar e educar a família, nunca procurando imiscuir-se nela e muito menos substituí-la.
No parecer da Câmara Corporativa descrê-se ainda da influência do Estado no caso particular do projecto.
Página 336
336 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 192
porque aquele só pode influir directamente nos aspectos extrínsecos da instituição familiar, e não pode nem deve actuar nos seus aspectos morais e psicológicos.
Mas não vejo que seja imiscuir-se «na vida da família, nem substituí-la ou perturbá-la, impor a observância de um mínimo de regras de conduta, essenciais à sua vida.
Nunca foi considerado elemento perturbador a imposição de normas que são essenciais à vida do indivíduo e do Estado!
Porque hão-de ser considerados como tais os preceitos que impõem um mínimo de comportamento moral e social indispensável à conservação da família?
Mas este é precisamente o defeito da actual orgânica do direito da família.
Atende-se aos aspectos materiais e externos apenas. O Estado procura garantir salários mínimos e habitações convenientes. Mas quando se põe o aspecto moral, quando a família se decompõe, se dissolve, na imoralidade e no vício, então o Estado alheia-se e alega que não pode intrometer-se na vida moral e psicológica da família ... Como se chama, isto, Sr. Presidente?! Ora a verdade é que a corrupção dos aspectos psicológicos e morais da vida familiar constitui mal de muito mais gravidade do que outros, que são apenas materiais.
Quando a família está moralmente estruturada, quando está dotada dos caracteres de unidade e integridade que Deu» atribui às famílias perfeitas, resiste com mu mínimo de inconvenientes às desordens de carácter material.
O serviço social procura influir directamente na vida da família. Mas influir não é intrometer-se. Aconselhar, persuadir, não é impor nem violentar. E que de encantadoras «surpresas, graças a Deus, o serviço social pode e tem conseguido junto de casais desavindos, maridos tentados por outras miragens, que sei eu? ... E isto porquê? Porque o serviço social, que é por excelência educação, amparo, orientação, entra a resolver os problemas, procurando-os na sua origem, na sua causa determinante. E fá-lo por virtude própria, sem ferir direitos de ninguém; por isso ele é a ponte entre a lei e os seus efeitos; por isso já em tantos países o vemos junto dos tribunais, da indústria, do exército e da marinha até!
Sr. Presidente: desejaria ver também no nosso país o serviço social a servir em todos os sectores da vida e da estrutura social da Nação. Embora pareça ousadia, não tenho receio de afirmar que onde ele existir com meios de poder actuar haverá menos dor, menos revolta, anais paz e compreensão, embora sem desaparecer aquela pobreza que Cristo disse haverá sempre no meio de nós.
O Estado pode e deve criar as condições necessárias para o. recuperação moral das famílias decaídas e deve fazê-lo de harmonia com a melhor doutrina social, moral e humana. Se o Governo conceder ao serviço social possibilidades de expansão e os meios de actuação que a sua técnica exige, estou certa de que verá resolvidos muitos dos problemas sociais que só por si as leis não conseguem solucionar e que encontrará mesta forma de educação e amparo um poderoso elemento para o saneamento e equilíbrio social das famílias portuguesas.
Sr. Presidente: duas palavras apenas para focar ainda um outro aspecto do problema.
A fraude no cumprimento dos deveres inerentes à vida da família reveste aspectos numerosos, em que a fraqueza, a desorientação ou a indignidade se dão as mãos, em prejuízo dos fins que a família deve realizar normalmente.
Desde a recusa de alimentos, desde o incitamento à corrupção e ao vício, até ao abandono total, há uma gama infinita de modalidades em que a torpeza se alia. aos mais baixos instintos, para dar como resultado a perversão social e moral da família. E esta traz consigo, como uma fatalidade, a decadência da Nação.
Com o divórcio, com a união livre e o reconhecimento de uma mal entendida igualdade de direitos veio um estado de coisas que, não respeitando a maneira de ser nem o destino natural da mulher, a transformou ou procurou transformar num ser em que a matéria domina todos os aspectos da vida, com desprezo dos superiores interesses sociais e espirituais, de cuja defesa Deus a incumbiu.
As grandes nações viveram as suas épocas heróicas quando se fundamentavam na grandeza e numa fortíssima e sadia estrutura das suas famílias.
Infelizmente os tempos mudaram e a mulher, a guardiã do lar, na frase tão comum, tão banal, mas tão grande, começou a perverter-se, e daí há-de necessariamente derivar a decomposição da família e, com ela, o dessoramento das nações.
Isto são efeitos a distância, mas que podem valorizar-se desde já por um exame, que não é necessário ser muito atento, das nossas è alheias realidades no momento presente.
O abandono não constitui a, forma mais comum de dissolução da vida de família.
Acidental ou permanente, as suas causas são essencialmente as mesmas do divórcio, acrescidas ainda de mais facilidade legal de o conseguir, da falta mais agravada, de meios materiais, da falta de franqueza, de dignidade, da miséria, enfim, em todos os seus aspectos.
Mais frequente do que ele é a recusa de alimentos, a recusa de meios materiais, indispensáveis para a manutenção da família.
Jornaleiro, empregado de escritório ou funcionário, rico, remediado ou pobre, não raro a féria, os vencimentos ou os rendimentos são gastos em prazeres diversos, com detrimento dos encargos normais com a sustentação da família.
Pelo projecto atribui-se ao cônjuge ofendido a faculdade de provocar a intervenção dos tribunais nos casos previstos no mesmo projecto.
Esta circunstância constitui fundamento das observações que tenho ainda a fazer.
É que o contacto com casos de dissolução e abandono familiar ensinou-me que a mulher só em casos excepcionais vem a juízo ou poderá vir a juízo a participar contra aquele que Deus e o seu coração lhe deram por companheiro da vida.
A contrariar a orientação do projecto nesta matéria existe a tradição de que o homem é o chefe, de que pode fazer adentro da família o que entenda, sem que à mulher ou aos filhos caiba fazer a menor das objecções.
Lembro que este sentimento está tão vincado na nossa gente que não há ninguém que conheça a vida do campo, das fábricas ou do mar que não conheça também alguns casos em que a mulher maltratada pelo marido se revolta contra aqueles que pretendem protegê-la contra o seu próprio infortúnio.
Depois vem a parte afectiva, vem sempre a esperança de melhores dias, vem sempre a esperança de uma conversão que traga o marido rendido pela razão, pelo sentido de dignidade e pela afeição da mulher e dos filhos ao lar que abandonou, tantas vezes à procura de mitos que não conseguiu realizar.
Depois ainda há a esperança, há o desejo mesmo, e não só o desejo, há necessidade de não dar algum passo precipitado que definitivamente impossibilite a reconstituição do lar decomposto.
É necessário que a mulher e os filhos continuem a ser um caso de consciência para aquele que os abandonou, que estes continuem a ser como o remorso vivo e a lembrança permanente de uma atitude moral que arraste consigo o sentimento da indignidade própria e
Página 337
31 DE JANEIRO DE 1952 337
com ela a necessidade de reparar o mal feito. Que não vá o homem encontrar numa atitude de dureza da mulher, em defesa de si mesma e dos filhos, pretexto de justificação para não voltar.
Quer isto dizer que não deve dar-se ao cônjuge abandonado ou ofendido a faculdade de participar em juízo? Por forma alguma!
O que é necessário é atentar que em grande parte dos casos que vêm aos serviços de assistência ou que o serviço social topa 110 seu caminho «e encontram situações desta ordem.
Não há remédio porque a mulher lhe não quer dar remédio, mesmo a custo do seu bem-estar e do dos filhos, nem mesmo que ela se sujeite a todas as privações, ao trabalho, a canseiras e a vexames.
Não lhe quer dar remédio porque aquele que a abandonou é o seu marido e pode voltar.
Recorrem então ao auxílio público e pesam largamente nos serviços de assistência, como encargo em pessoal e, sobretudo, com encargos pecuniários.
E o problema surge em 90 por cento dos casos com esta acuidade: os serviços de assistência social têm de auxiliar a mulher e os filhos abandonados, mas não podem promover a aplicação de quaisquer sanções contra o marido, sobretudo quando ele não tenha bens materiais.
Repito: dar a faculdade de participar só ao cônjuge é torná-la praticamente inútil.
Existe na lei, porém, um instituto a que é preciso dar realidade e vida, se quisermos que ele seja eficaz e desempenhe a função para que foi criado.
Quero referir-me à tutela social dos assistidos mencionada «na base XXIV da Lei n.° 1:998, n.° 2.°, alínea c).
A representação legal dos assistidos precisa de ser definida, incluindo nela a faculdade de participar aos tribunais competentes e até de promover a aplicação de sanções penais ou civis sempre que a decomposição da família o justifique.
Quando o próprio interessado está perturbado por elementos de carácter afectivo ou má compreensão dos dados do problema e quando esgotados todos os meios ao seu alcance para reorganizar a família, parece que, na verdade, deve ser substituído por alguém não isento de compreensão, tem de espírito, nem de poder de persuasão.
Será então a altura de trazer o caso a juízo, para ser apreciado por quem de direito e como for de direito.
De resto, se as infracções apontadas constituem ataque nítido contra a vida de família, se a vida de família é elemento indispensável para que a vida da Nação seja sã, para que o Estado (progrida no desempenho da sua missão, é lógico concluir que a. defesa de todos e de cada uma das famílias que o constituem seja para o mesmo Estado, questão de interesse público.
E deste modo deve entender-se que o atentado à vida de família é mais grave que o atentado à vida do próprio indivíduo, por seus efeitos mais vastos. Porque não hão-de pois sujeitar-se estais infracções ao regime jurídico que regula os crimes públicos ou as questões civis de interesse colectivo?
Sr. Presidente: vou terminar as minhas considerações, que outro fim não tiveram senão o de trazerem aqui mais em testemunho de quanto é necessário defender o agregado familiar, sem devaneios políticos ou doutrinários, mas omites com medidas práticas e exequíveis. Queria, no entanto, ao dar o meu voto ao projecto em discussão, formular oratório, que, creio, terá a concordância de muitos dos que andam empenhados na defesa da família. Trata-se da promulgação de um código da família que inclua o código da infância, cujo projecto foi já perfeita e pormenorizadamente estudado, e referido até no parecer da Câmara Corporativa de 6 de Janeiro de 1939, pelo distinto jurista Dr. Artur de Oliveira Ramos, Deputado na anterior legislatura.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
A Oradora: - Ficaríamos assim com todas as disposições jurídicas atinentes à família codificadas, estruturadas, constituindo um todo único, «harmónico, com princípio, meio e fim. Vota-se com este decreto mais uma medula para defesa da família, sem dúvida. Mas grande parte da eficácia da na acção há-de perder-se pela falta de suporte de outras disposições legais, até de carácter económico. Entende-se que se estude e vote o projecto do abandono de família quando ainda está longe de ser uma realidade de facto o do abono de família?
Vozes: - Muito bem, muito bem!
A Oradora: - E podemos afoitamente dizer que a deficiência deste não interfere na gravidade daquele?
Se se aumentasse o abono de família não diminuiria a gravidade e frequência daquele abandono? Estão tão intimamente concatenados todos estes problemas!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
A Oradora: - Faço votos, Sr. Presidente, para que o Governo, considerado o complexo das necessidades da defesa da família, promulgue em breve aquele código. Só assim se fornecerá à Nação instrumento de acção indispensável à defesa da família e à sua recuperação.
E só assim também a Revolução Nacional será coerente consigo mesma.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
A oradora foi muito cumprimentada.
O Sr. Miguel Bastos: - Sr. Presidente: o ilustre Deputado Paulo Cancela de Abreu trouxe à Assembleia Nacional um problema ido mais vivo interesse e da maior oportunidade: o da defesa da família -, agora tratado no aspecto de se fazer a incriminação de alguns dos factos que, na linguagem jurídica, se têm designado por abandono da família.
Não é de estranhar ou admirar. Estamos já habituados a saber de antemão que sempre que o nosso distinto colega Cancela de Abreu sobe a esta tribuna um problema de interesse nacional vai ser posto à nossa consideração e ao nosso estudo.
Intervenho ateste debate certo de que não lhe trago valorização ou lustre, mas tão-sòmente para dar público testemunho da minha concordância com o projecto em discussão e aproveitar a oportunidade que se me oferece para erguer um ou outro dos problemas que tenho como intimamente ligados à matéria que ora discutimos c faz parte «Io projecto submetido à nossa apreciarão.
Eu penso que a instituição familiar precisa, para a sua defesa e revigoramento, mais da presença do almas do que de leis.
Direi, talvez, melhor: o que é essencial nela é que os seus membros não a considerem como um dever que se cumpre no mero jogo das relações sociais, mas como um dever que se enraíza mais alto, na certeza, entendida e vivida, de princípios que em si próprios explicam
Página 338
338 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 129
o justificam a própria linha de rumo ida vida do Homem.
Há aqui, portanto, e essencialmente, um problema de doutrinação que envolve o compreender-se justamente a grandeza do acto da constituição da família e o subordinar-se a vida desta a princípios que, transcendendo a própria matéria, se destinam a alcançar bens .puramente espirituais. A não se entender assim, fraca será toda a regra humana que no conflito da vida tente opor-se aos factos que enfraquecem hoje a instituição familiar e que se preconiza sejam punidos no presente projecto de lei.
Esta uma questão fundamental.
Mas não só ela deve preocupar-nos nesta hora em que se pretende produzir novo esforço de contribuição efectiva para a defesa da família.
Se não se oferecer â esta meios normais de se conservar, sustentar e defender, a ela se tornará impossível sobreviver como fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social, como fundamento da ordem política e administrativa.
Julgo, por isso, que a verdadeira acção na defesa da família se deve exercer mais na criação do clima normal em que a instituição deve viver do que na promulgação de leis que, em certa medida, podem a gravar um odioso que já hoje, e infelizmente, vai ganhando tantos corações. Esclareço por outras palavras o meu pensamento. Hoje a incerteza da garantia do trabalho é tão grande, são tão precárias as condições económicas que se garantem ao agregado familiar, são ainda tão penosas as condições em que se alojam tantas das nossas famílias, que já há quem pense em heroísmo quando se contemplado lar em que integralmente se vive vida cristã.
Daí a razão do meu dizer que a instituição será mais defendida se todos sinceramente quisermos lutar contra aquelas circunstâncias que exteriormente enfraquecem a família, do que se nos limitarmos a punir factos, que são realmente horríveis, mas que nascem naturalmente de uma sociedade que por suas mãos se está envilecendo dolorosamente.
Quer isto dizer que rejeito e reprovo o projecto por inútil? Certamente que não. Tenho-o como necessário para reprimir abusos que todos nós conhecemos. O que eu afirmo é que ele não representa, no drama actual da vida da família, a solução para a sua crise, o remédio para o seu mal. Votando-o, não devemos pensar que fizemos tudo. Pelo contrário, este projecto de lei deve ser entendido como um toque de alarme na inteligência e no coração dos homens responsáveis e deve reforçar a vontade de todos para nos decidirmos a atacar na sua verdadeira origem a raiz do próprio mal.
De resto, é o próprio Deputado Paulo Cancela de Abreu quem diz, ao terminar o relatório do seu projecto:
Não é suficiente, bem sei. Mas constitui parcela de um conjunto que, como disse Casanova, se manifestará pela propaganda de ideias e de doutrinas sãs, pelo afervoramento dá moral cristã, pela luta contra as teorias e os sofismas perniciosos e contra todos os outros flagelos morais e sociais que enfraquecem a família.
E logo o parecer da Câmara Corporativa acrescenta, pela pena do distinto Prof. Gomes da Silva:
... cumpre reconhecer-se, antes do mais, que, se os factos que o projecto pretende incriminar se tornaram modernamente frequentes e graves, isso deve-se ao grande incremento da corrupção de costumes verificado depois da primeira guerra mundial; ora de nada servirá cominar penas para certa infracção se se deixarem actuar livremente as causas que a originam.
Parece, pois, que estamos todos de acordo ao reconhecer, como uma realidade da vida, que acima do esforço legislativo que este projecto de lei representa existem causas que necessitam de ser seriamente atacadas para que se possa eficazmente combater e vencer o mal.
Ao votar, pois, este projecto faço-o assinalando que, se realmente queremos defender e revigorar a instituição familiar, temos de pisar outros terrenos e procurar o mal noutros lugares, em paragens diferentes.
Creio que, em boa verdade, podia ficar por aqui, visto ter definido com a clareza que me foi possível a linha do meu pensamento ao votar este projecto de lei. Mas se não canso demasiadamente a atenção de Y. Ex.ª, Sr. Presidente, peço licença para acrescentar duas palavras. Com elas eu desejava definir muito rapidamente os problemas cuja solução tenho como muito urgente no sentido de se defender eficientemente a instituição familiar.
Deixo de parte o problema a que chamei de doutrinação - sentir interior e convicto dos participantes na comunidade familiar -, porque me parece não ser este o lugar próprio para a sua explanação, e vou referir-me esquematicamente aos que, julgo, devem especialmente interessar uma assembleia política:
1) O desemprego;
2) O salário familiar;
3) O lar próprio.
E impossível desejar-se defender a família sem que se organize uma luta inteligente e oportuna contra o desemprego. Só quem um dia teve necessidade de trabalhar para viver e não encontrou facilmente onde empregar os seus braços e a sua inteligência pode verdadeiramente sentir quão longe podem levar as. misérias do desemprego. Até agora esta luta tem-se desenvolvido no sentido de acorrer ao desemprego com trabalhos públicos, normalmente abertos pelo Estado ou por outras entidades em comparticipação com aquele. A organização, porém, dos planos de trabalho - como é natural - obedece a certas necessidades públicas e às possibilidades financeiras das entidades que vão comparticipar. E, dentro do regime actual, não há que fazer qualquer restrição ou censura. O que eu penso é que a luta contra o desemprego tem de ser uma faceta do serviço social, e deve, por conseguinte, estar apta a acorrer, com perfeita maleabilidade, ao local onde surja a necessidade, onde deflagre o perigo. E a sua presença não deve ter apenas um sentido estritamente* material. Deve realmente matar uma inquietação precursora de graves perigos, mas deve simultaneamente abrir logo novos caminhos, traçar seguros rumos. Este trabalho não se obtém só recrutando homens, precisa duma técnica própria, dum sentido social definido e pronto.
Talvez não exagere sugerindo a urgência de termos -, como tantas outras nações, o Ministério da Saúde Pública e da Previdência Social, onde englobaríamos os serviços do desemprego, do seguro social, da saúde e da assistência, e através do qual poderíamos, com utilidade, enfrentar muitos dos problemas sociais que nesta hora fundamente nos afligem. Todos hoje compreendem e aceitam a criação dos Ministérios da Defesa Nacional. As circunstâncias do Mundo os explicam e justificam. Mas não sei - sinceramente o digo - se são mais graves as razoes de (preocupações externas que há a vencer, se aquelas que no interior das nações todos os dias ateiam
Página 339
31 DE JANEIRO DE 1952 339
a labareda dos inquietantes problemas sociais. Um ministério nos moldes do que sugiro creio que em muito auxiliaria a luta que se trava nos nossos dias, no conflito irredutível de duas civilizações, e em que a família é o primeiro e o principal alvo ide ataque.
O problema do salário familiar foi já aqui tratado por tantos oradores, a propósito do debate sobre a Lei de Meios, que não tenho coragem para acrescentar qualquer palavra ao que foi então tão larga, e proficientemente dito. Só lamento que nada de efectivo tenha surgido daquele debate e que, praticamente, continuemos parados ao caminho do estabelecimento entre nós do salário familiar, de que o actual regime do abono dó família parecia ter sido um primeiro passo no caminho certo.
O problema é realmente sério. Será loucura pensar que pudesse ser resolvido, com poderes de mágica, dum momento pana o outro. Mas, se tantas comissões são nomeadas para estudar tantos e tão diversos problemas, porque não nomeia o Governo uma para estudar este?
Escreveu o nosso ilustre colega mesta Assembleia Dr. Diais da ... o trabalho do chefe de família não tem apenas um fim individual, mas ainda um fim familiar, e por isso o seu valor social tem por medida as necessidades fundamentais da família, em harmonia com a própria condição social e atendendo ao meio ou lugar de residência.
Dentro destes princípios não seria possível fazer-se alguma coisa em defesa da família? Estou convencido de que teria muito interesse um esforço especial a fazer pelo Governo nesta matéria.
E, finalmente, o problema do lar próprio:
Seria injustiça esquecer o que neste campo se tem feito nos últimos anos em Portugal. Desde 1928 que se vem desenhando uma luta activa neste campo, mas, assim como é justo afirmar-se o muito que se tem feito, e se cifra em muitos anilhares de habitações construídas, também é justo dizer que estamos ainda bem longe de ter solucionado o problema.
E ele é de tão grande importância para a vida da família que não me canso de insistir na necessidade de se prosseguir, criando-se novas possibilidades, além das existentes, na chamada «política da habitação própria».
O Dr. Manuel Vicente Moreira., num trabalho recente que publicou, diz:
Os casebres contribuem para a falta de pudor, prostituição, nascimentos ilegítimos, desaparecimento do desejo de instrução e diminuição das aspirações nobres, atracção para fora da família (para a taberna ou clube), predispõem ao alcoolismo e à criminalidade.
Não sou dos que pensam ser a moral apenas questão de metros quadrados, mas afigura-se-me inegável a influência dos casebres para a maioria dos indivíduos que vivem semi possibilidade de isolamento, com todas as suas funções patenteadas aos vizinhos, a família, aos menores.
Mas não só os casebres exercem sobre a boa marcha da instituição familiar nefasta acção. Muitas das nossas famílias vivem hoje em comunhão de fogo com outras, e neste ambiente perdida está a intimidade própria de cada família. As suas conversas, os seus planos, os seus sonhos, ao pertencerem a todos, vão perdendo, pouco o pouco, o valor de coisa própria e de tudo se tem de desatar, por impróprio e inoportuno. Fica a conversa frívola, a intriga, o solução ...
O Dr. José Sebastião da Silva Dias, num trabalho que apresentou ao I Congresso Nacional dos Homens Católicos, em Dezembro de 1950, cita que em Lisboa, segundo o censo de 1940, havia ainda 10:000 famílias sem lar próprio, 6:17 com lar constituído por unia só divisão e 10:340 com lar constituído por duas divisões. O número das primeiras deve ainda ser aumentado com parte apreciável das 8:061 pessoas que compõem o grupo de hóspedes que vive em casas particulares. E, se atendermos a que Lisboa e Leiria são as cidades cujas casas têm divisões de dimensões menores e que é frequente viverem no .mesmo lar duas e até mais famílias, deve considerar-se ainda mal instalada uma parte das 50:981 famílias (cerca de 200:000 pessoas) que habitam fogos de três a quatro divisões.
Se deixarmos Lisboa e pensarmos no resto do País, onde a habitação acanhada, e sem conforto é a normal, as perspectivas do problema hão-de com certeza piorar e agravar-se.
A obra que se vem realizando a este sector da vida nacional é já, sem dúvida, notável. 'Cumpre, no entanto, aperfeiçoar os regimes estabelecidos, nomeadamente rever as bases económicas e financeiras inicialmente estabelecidas, melhorando-as e actualizando-as, em face das circunstâncias actuais e do valor da moeda, e alargar, multiplicando as realizações já empreendidas, pois estamos ainda em face de quantidades insuficientes.
Se para a solução dos três problemas postos nos dispusermos a dar uma efectiva contribuição, estamos, efectivamente e na própria essência das causas, a trabalhar para uma real defesa da família.
Termino, Sr. Presidente, com dois votos: um é dado alegremente a favor da aprovação da proposta que se discute; o outro é o desejo de que a extinção das verdadeiras causas que perturbam a estabilidade da família torne cada vez em menor número as oportunidades que vão ser dadas aos Srs. Advogados para invocarem no pretório que se cumpram as disposições desta lei.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão.
A ordem do dia da sessão de amanhã é o continuação da discussão do projecto de lei sobre abandono da família e a apreciação do texto da Comissão de Legislação e Redacção relativos ao decreto da Assembleia Nacional, sob a forma de resolução, acerca do Protocolo Adicional ao Tratado do Atlântico Norte relativo à adesão da Grécia e da Turquia ao mesmo Tratado.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 15 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Sobral Mendes de Magalhães Ramalho.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
João Mendes dia Costa Amaral.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Maria Múrias Júnior.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Ricardo Malhou Durão.
Página 340
340 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 129
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Arantes.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Alberto Cruz.
António Júdice Bustorff da Silva.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos de Azevedo Mendes.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
João Cerveira Pinto.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
José Cardoso de Matos.
José dos Santos Bessa.
Manuel Cerqueira Gomes.
Vasco de Campos.
Vasco Lopes Alves.
O REDACTOR - Luís de Avillez.
Texto aprovado pela Comissão de Legislação e Redacção
Decreto da Assembleia Nacional, sob a forma de resolução, acerca do Protocolo Adicional ao Tratado do Atlântico Norte
A Assembleia Nacional, considerando o debate acerca do Protocolo Adicional ao Tratado do Atlântico Norte, relativo à adesão da Grécia e da Turquia ao mesmo instrumento diplomático, resolve aprovar, para ratificação, o referido Protocolo Adicional, conforme ó texto oficial já assinado.
Sala das Sessões da Comissão de Legislação e Redacção, 29 de Janeiro de 1952.
Mário de Figueiredo.
António Abrantes Tavares.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Dinís da Fonseca.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel França Vigon.
Manuel Lopes de Almeida.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA