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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 135
ANO DE 1952 13 DE MARÇO
ASSEMBLEIA NACIONAL
V LEGISLATURA
SESSÃO N.º 135, EM 12 DE MARÇO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.
Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro
SUMÁRI0: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 53 minutos.
Antes da ordem do dia. - Deu-se conta- ao expediente.
O Sr. Deputado Amaral Neto mandou para a Mesa nota de um aviso prévio acerca das dividas dos municípios aos hospitais.
O Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu congratulou-se com a regulamentação da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados.
O Sr. Deputado Pimenta Prezado ocupou-se de interesses da vila de Avis e seu termo.
O Sr. Deputado Jacinto Ferreira solicitou do Governo a criação de um novo concelho com sede na vila da Amadora.
Ordem do dia. - Prosseguiu o debate acerca do aviso prévio do Sr. Deputado Armando Cândido relativo ao excesso demográfico português, relacionado com a colonização e a emigração.
Falaram os Srs. Deputados Manuel Domingues Basto e Pinto Barriga.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 8 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam, os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Albino Soares Finito doe Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sonsa Pinto.
António Abrantes Tavares.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Délio Nobre Santos.
Diogo Pacheco de Amorim.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
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João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Numes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Meneses.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Mário de Figueiredo.
Miguei Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arautos.
Vasco Lopes Alves.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 66 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 53 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos fornecidos polo Ministério do Exército em satisfação do requerimento do Sr. Deputado Carlos Moreira, apresentado na sessão do 15 de Fevereiro último, que vão ser entregues àquele Sr. Deputado.
ausa.
O Sr. Presidente: - Está na Mesa o parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de lei de atribuição de responsabilidade civil e financeira em casos de alcance ou desvio criminoso de valores ou dinheiros públicos.
O parecer vai baixar às Comissões de Legislação e Redacção e de Política e Administração Geral e Local.
Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Amaral Neto.
O Sr. Amaral Neto: - Pedi a palavra para enviar para a Mesa o seguinte
Aviso prévio
«Pretendo ocupar-me em aviso prévio do problema dos encargos» dos municípios com os tratamentos de doentes pobres, especialmente nos hospitais do listado.
Proponho-me defender a necessidade de uma revisão profunda do presente regime dos mesmos encargos e mostrar que:
1.º O seu peso se tem tornado insuportável para a maioria dos municípios;
2.º As dívidas aos diversos estabelecimentos hospitalares do Estado atingiram em consequência importância tamanha que torna de todo improvável o seu reembolso a curto prazo;
3.º As cobranças compulsivas por couta destas dívidas ameaçam o equilíbrio das administrações;
4.º A situação, consequência da, inadaptação do sistema a necessidades crescentes, é ainda agravada por circunstâncias hoje em dia injustificadas, que favorecem desproporcionadamente um município só, aliás de todos o mais rico; e, consequentemente,
5.º A redistribuição das dotações do Estado em termos mais equitativos, a revisão correlativa dos encargos municipais e das receitas com que suportá-los e o estabelecimento de um modo praticável de liquidação dos saldos em atraso suo as bases necessárias de uma solução cada vez mais urgente».
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: foi publicada pelas pastas da Justiça e das Corporações a portaria., de 8 do corrente, que aprova o Regulamento da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados.
Trata-se de uma antiga e legítima aspiração da Ordem e a sua realidade é digna lê registo e de aplauso na Assembleia Nacional.
Basta dizer-se que é de cerca de 1:900 o número de advogados do continente e das ilhas adjacentes inscritos na Ordem e, além deste já elevado número de interessados pessoalmente, o âmbito do benefício da Caixa de Previdência será extensivo a número muito anais elevado de beneficiários, ou sejam as famílias dos advogados inscritos obrigatoriamente até aos 50 anos de idade e voluntariamente depois desta idade.
Se se justificam e existem numerosas instituições de previdência em profissões que oficialmente já tinham assegurada, para si e para os seus, a certeza de um montepio, maior razão há para, as terem os que não gozam deste benefício oficial, e, portanto, ficam sem amparo na invalidez, na velhice, e, por sua morte, deixam a família sem recursos.
Era este o quadro que se oferecia aos que se dedicam exclusivamente à profissão liberal da advocacia.
E é pura Lenda a versão de que os advogados enriquecem facilmente.
Contam-se pelos dedos os poucos que fizeram fortuna no exercício exclusivo da profissão.
E, se iam alguns casos isto sucedeu, deve-se aos seus dotes de inteligência, de competência e de saber e a um longo, persistente e exaustivo trabalho, que cedo esgota e queima a vida. Cumprindo o seu dever profissional, honraram a profissão.
A Caixa de Previdência vem tornar efectiva e ampla a acção assistencial da Ordem dos Advogados, que com a disciplinar e a cultural que completa proveitosamente vêm, sendo exercidas forma a sua tríplice função.
É certo que, dentro das suas limitadas possibilidades, a Ordem já suporta, em subsídios e pensões, encargos que em 1950 se elevaram a 233.000$ e em 1951 a 256.000$. É pouco, muito pouco, e dificilmente pode alargar-se ou mesmo manter-se este restrito âmbito da sua assistência.
São do último relatório do Conselho Geral estas palavras:
Comovem os corações mais endurecidos os quadros de verdadeira miséria que chegam ao Conselho. Advogados inválidos, viúvas e órfãos de advogados
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a todo o passo se nos dirigem pedindo socorros pecuniários.
Luta a Ordem com a maior dificuldade para satisfazê-los.
E, referindo-se à Caixa de Previdência, acrescenta:
Dar-se-á assim efectivação a uma grande aspiração da classe; e logo que a veja realizada, ao cabo de uma luta que já se arrasta há anos, o Conselho sentir-se-á compensado dos seus árduos esforços e das horas esgotantes de inquietação e de esperança.
Infelizmente, já pouco pode interessar-me pessoalmente a Caixa de Previdência, agora definitivamente estabelecida; mas, precisamente porque assim sucede, é insuspeita a homenagem que aqui presto a todos aqueles que há muitos anos se vinham esforçando para que esta aspiração se convertesse em realidade. Sem imaginar que refiro todos, indico especialmente os bastonários que, desde 1932, com o Conselheiro Martins Carvalho, até ao Prof. Adelino da Palma Carlos, têm estado à frente da Ordem; e devo especializar ainda o Dr. Arnaldo Monteiro, esforçado paladino desta reivindicação desde a primeira hora.
Finalizando, é-me, pois, grato assinalar a acertada deliberação do Sr. Ministro da Justiça, complementar do seu decreto de 1947 que criara, a Caixa de Previdência e ordenara que a Ordem elaborasse o seu regulamento.
Assim se consumou um acto cuja perspectiva já se encontrava no Estatuto Judiciário de 1933, do Prof. Manuel Rodrigues, e foi reproduzida e ampliada depois no do Prof. Vaz Serra.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Pimenta Prezado: - Sr. Presidente: as pessoas, as famílias, as sociedades, as povoações, as nações estão submetidas a fases de sorte e de desgraça, de progresso e de marasmo, de engrandecimento e de miséria, de alegrias e de tristezas ... sujeitas a curvas de ascensão, e descida, que representam o destino inexorável cuja percepção transcende o cálculo dos homens e a previdência das sociedades.
Todos nos recordamos dos altos e baixos de indivíduos conhecidos; mais longe, aio tempo, famílias que a adversidade perseguiu, seguidas de descendentes bafejados pela sorte.
Povoações progressivas, mercê de condições as mais variadas e inesperadas, descem a povoados sem vida.
Nações da maior grandeza, apenas numa geração, descem a decadência degradante, e, olhando mais além, são os impérios e civilizações ... tudo e todos estão sujeitos a estes altos e baixos, a curvas a marcar étapes.
O homem, no seu destino de lutador, vai tentando modificar o curso da curva, tentando remar contra a maré, pelejando «pelas prosperidades próprias, pelas felicidades da família, progresso das povoações e engrandecimento das pátrias.
Esses os que lutam, porque também os há que caem, "• desanimam, desertam.
Estou com os primeiros.
Na parte alta da bacia hidrográfica do Sorraia, próximo da confluência das ribeiras de Fronteira e de Seda, que formam o Raia, que alguns quilómetros depois se une ao Sor, para formar o Sorrara, um dos mais importantes afluentes do Tejo, alcandorada num penhasco ergue-se a povoação de Avis, nome glorioso ligado ao período áureo da nossa história.
Terra pletórica de recordações, tomada aos Mouros em 1196, depois de encarniçadamente defendida por lhes ficar no caminho das suas expedições militares de Leste para o vastíssimo vale do Tejo, ali se instalou a Ordem, que tomou o nome de Avis, Ordem criada em Coimbra, capital do reino, por D. Afonso Henriques, em seguida ao sucesso da batalha de Ourique (1139), «a pedra angular da monarquia portuguesa», como disse Alexandre Herculano, iniciada, apenas por treze jovens cavaleiros que Viviam em vida comum, juramento, obediência e castidade e defendiam a religião e a Pátria. Grupo de jovens à volta do qual volitam os grandes acontecimentos históricos da Pátria no seu despertar.
Instalada em Avia em 1211, é-lhe concedida vastíssima área, rica e fértil, a que pertenciam Avis, Galveias, Benavila, Seda, Ervedal, Cabeço de Vide, Alter Pedroso, Veiros, Sousel, Cano, Casa Branca, Cabeção, Coruche e Benavente ... Eu repito: a área da Ordem de Avis chegava até Benavente.
Ainda lhe pertenciam as povoações isoladas de Alandroal, Barrancos, Mafra, etc. Avis era a capital do mestrado e todas estas povoações lhe pagavam tributo.
A Ordem foi governada por vários mestres sem grande relevo histórico até ao seu 20.º mestre, o que foi mais tarde D. João I e o último mestre, porque depois passaram a ter o nome de governadores ou administradores e a sua residência não era obrigatória em Avis.
Com a subida de D. João I ao trono, seguido dos grandes da Ordem, inicia-se um período de decadência para Avis, que vivera uma época de prestigioso desenvolvimento, de apogeu histórico; subira assim a curva ascensional a uma extraordinária altura. Depois, como célere fora a subida, vertiginosa é a descida. As obras de um grandioso convento não são terminadas; a sua igreja, de boa traça, fica nua, por acabar; das paredes, dos umbrais, tiram-se mármores, que se encontram aproveitados em muitos edifícios da povoação e até nos montes, e outros foram do longada a paragens bem distantes.
Luís Keil, no inventário artístico relativo ao distrito de Portalegre, diz: «parece impossível que se tivesse deixado chegar a um abandono, a uma desprezível aplicação (cavalariças, celeiros, arrecadações) os restos gloriosos de um monumento que tantas recordações - e das mais notáveis teve para Portugal».
E diz também: «que triste e degenerado fim vai levando o convento de Avis, cuja mole forte e ainda hercúlea, banhada pelos últimos raios de sol, produz uma sensação aflitiva de respeito e de saudade, pensando nesses freires guerreiros, que ajudaram a conquistar e a consolidar o nascente reino de Portugal».
Da igreja são levados paramentos de alto valor, que estão a enriquecer o recheio da sé de Évora; as cadeiras do coro voaram para a Academia de Lisboa.
Avis, qual pelicano simbólico, despojou-se dos seus melhores valores, dos seus naturais mais ilustres, perdeu importância, deixa, de ter decidida influência no caminhar da História.
E esta povoação, que deveria ser visitada por todos os que se interessam pelo passado, situada numa. região riquíssima, com férteis terrenos de cultura, frondosos azinhais, valiosos sobreirais e olivais, várzeas em que se estava a desenvolver a irrigação e muitos gados, e dos melhores do País, atravessa, séculos de decadência, que nem finda com o 28 de Maio, porque uma administração municipal catastrófica despreza, esse período de engrandecimento de melhoramentos espalhados por todo o País.
Surge agora, com os governos de Salazar, a realização dos grandes planos de irrigação.
A região de Avis vai ter uma grande barragem, chamada do Maranhão, para a qual estuo destinados muitos
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militares de contos, barragem feita no curso do Raia, a uns quilómetros abaixo da povoação.
No curso do Sor vai ser também construída outra barragem, um pouco abaixo de Montargil, formando assim a grande obra de irrigação do Sorraia.
Na povoação e seus termos começa a sentir-se o efeito dessa grandiosa obra. Engenheiros e outros funcionários instalam-se, grandes tractores e máquinas percorrem as estradas, constrói-se, uma estrada de acesso à barragem, fazem-se barracões e casas de habitação, empregam-se braços às centenas, resolve-se essa confrangedora crise do desemprego rural, pesadelo horrível que só episodicamente não preocupa.
Avis assiste atónita a este despertar de energias e, eufórica, aguarda nova época, que se lhe afigura progressiva.
As projectadas barragens do Raia e do Sor, fazendo parte do grande plano de indiscutível valor nacional, se as analisarmos em pormenor, sabemos que nas suas zonas beneficiadas, dominadas pela albufeira, há aumento de riqueza, de rendimento, muito maior utilização da mão-de-obra pela intensificação cultural, mas, por outro lado, sabemos que na zona do regolfo, ou inundada pela albufeira, há destruição total da riqueza, há diminuição sensível da mão-de-obra.
Para a região de Avis, que no momento actual vive o iniciar da grande obra., entendo que devo trazer II esta Assembleia o meu receio pelo futuro das suas gentes.
Avis, próspera, feliz com a sua Ordem, com a sua riqueza, com o seu largo domínio até Benavente, num revirar rápido, desce com a elevação ao trono de D. João T e chega a um empobrecimento confrangedor. Agora, Avis, satisfeita, a assistir à grande realização, vivendo uma época de bem-estar e de sonho, virá a acordar em sobressalto se não forem tomadas medidas preventivas urgentes, a evitar nova época de ruína e desânimo.
Ontem, as povoações da baixa do Sorraia, até Benavente, pagaram tributo à capital do mestrado; amanhã será Avis a empobrecer, a arruinar-se para benefício das mesmas regiões, até Benavente.
Parece que o destino marcou Avis inexoravelmente.
Não se pense que eu estou a carregar de sombras o panorama.
Venho expor os meus receios, apresentar as minhas prevenções; se não tenho razão, tanto melhor; se tenho e se se tomarem as medidas necessárias para afastar esses males, então óptimo, e sentir-me-ia compensado e de consciência tranquila.
Permita-se-me que entre um pouco mais em pormenores. O regolfo, área inundada pela albufeira na região de Avis, porquanto a barragem é construída próximo do limite do concelho, inutiliza das suas melhores terras aluviões marginais, onde agora se fazia cultura mais intensiva, quer de sequeiro quer de regadio. A albufeira do Maranhão vai cobrir uma área de 128 hectares de terra de regadio e 299 de semeadura dessas aluviões marginais, 66 hectares de olival e 629 de montado de azinho e cobrirá, segundo os dados que possuo, 1:641 hectares, com uma área que era produtiva de 1:369.
Se no concelho de Avis as crises de desemprego rural se apresentavam com uma periodicidade inquietante e gravidade progressiva, com esta diminuição de área cultivável as crises tenderão a aumentar.
Teremos o progresso e engrandecimento de 31:233 hectares de terra a irrigar no Sor, no Raia e no Sorraia e nas chamadas terras de campo da lezíria, com o empobrecimento dos concelhos de Avis e de Ponte de Sor, quando se fizerem as barragens.
O problema é assim mesmo: uma grande melhoria para muitos, um prejuízo para alguns.
Parece-me então necessário preocuparmo-nos com antecedência com a sorte dos prejudicados.
Quando da inauguração da ponte Marechal Carmona, em Vila Franca, eu ouvi, com a maior simpatia, S. Ex.ª o Ministro das Obras Públicas preocupar-se com a sorte doa desempregados dos barcos que faziam a travessia do chamado Cabo a Vila Franca. Essa nota calou bem no sentimento de muitos portugueses.
Pois bem: peço para os habitantes das regiões inundadas dos concelhos de Avis é de Ponte de Sor as mesmas atenções.
Mas os prejuízos no concelho de Avis - e eu estou a ocupar-me desta região onde se afirma que a barragem estará concluída em quatro ou cinco anos- não se reduzem só às terras de cultura: são as estradas, são as pontes, são os moinhos que ficam sepultados sob as águas. Avis fica sem possibilidades de comunicação para o Norte. As pontes que atravessam as ribeiras de Avis e de Seda ficam cobertas com 10 ou 12 metros de água. Uma das freguesias - Benavila - transforma-se em estreita península; para chegar à sede do concelho, agora a 7 quilómetros, teremos de percorrer uns 22 quilómetros numa região sem estradas, portanto intransitável «o Inverno.
Estamos perante problemas de gravidade, para os quais me resolvi chamar a atenção. Problemas de gravidade lhes chamei, mas mão insolúveis. Habituámo-nos a ver a resolução de tantos deles que teremos apenas de aguardar serena e confiadamente também a solução destes.
E não fica mal - penso eu - levantá-los na Assembleia Nacional, relembrá-los ao Governo, que os pode ter até já considerado, conservando os seus estudos ainda reservados nos gabinetes técnicos. E o meu apelo ficaria apenas «o sentido de não se protelarem as soluções.
Ao pertinente, ao grave problema do desemprego rural vou dedicar ainda algumas palavras.
Avis é um dos concelhos alentejanos em que a crise muito se fazia sentir, sem se divisarem soluções. Com o desaparecimento das suas melhores terras, mais consumidoras de braços, aumentará - passado o período da construção da barragem, levando a uma inactividade perniciosa e anti-social muitos braços válidos.
Será impossível resolver a inutilização dessa mão-de-obra resultante da diminuição da área agricultável?
Julgo que não, e pode ser até que o Governo tenha já considerado as soluções.
Bastava que se desse aplicação às disposições do Decreto n.º 28:6p2, que no seu artigo 61.º diz:
Os terrenos regados ou destinados a rega podem ser reduzidos ao domínio privado do Estado quando, por motivos de ordem económica e social, houver necessidade de modificar o regime de exploração de terras e de proceder ao seu parcelamento ou emparcelamento.
A barragem do Maranhão vai ser precisamente construída num grande latifúndio de mais de 4:400 hectares, propriedade de um absentista que vive no estrangeiro e que, penso eu, seria o primeiro a facilitar o parcelamento da propriedade, com melhores proventos para ele e sem a contrariedade de bulir no arreigado amor à terra, tão vivo nos lavradores alentejanos.
Esse grande latifúndio, ou parte dele, entregue à Junta de Colonização Interna, poderia ter completo e eficaz destino se lhe fosse aplicada a disposição da lei publicada em 16 de Maio de 1938, que tem aposto o nome de Salazar.
E, uma vez aplicada essa disposição de grande alcance, que eu suponho não foi ainda executada uma só vez, seria natural, justo e humano que uma parte
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desse latifúndio fosse entregue a casais dos habitantes das zonas cujas condições de vida ficassem diminuídas com a execução da barragem.
Ficavam assim acautelados os destinos de uma parte da população rural deste concelho-infeliz concelho que vem a sofrer fortes abalos periódicos. Lembrei este latifúndio por pertencer ao concelho, porque o conheço; é provável que outros pudessem ser aproveitados.
Eu visiono as largas campinas marginais do Raia, parceladas, dedicadas a cultura, intensiva bem orientada, trabalhadas por estes óptimos rurais alentejanos, fazendo brotar da terra, agora pouco mais que maninha, tantos produtos bem necessários à nossa economia.
São necessárias, imperiosas, certas medidas que andam retidas nas consciências de todos- quantos se interessam por estes problemas, medidas algumas com legislação sabiamente aplicável.
Quanto a mim, a iniciativa de compensação que deixo imperfeitamente esboçada, somada a outras medulas que foram expostas quando do aviso prévio do meu colega e amigo Dr. Galiano Tavares, terminariam de vez com o desemprego rural, criando-se melhoria de nível de vida, uma atmosfera de paz, tranquilidade, campo onde não medram, sei-o bem, ideias de subversão.
Dê-se ao Alentejano trabalho, um pedacito de terra onde mergulhe as suas raízes sedentas de seiva, que, por condições atávicas, não vai trasvazar em terras longínquas, como tantos outros portugueses, crie-se-lhe um lar, mesmo modesto, e o Alentejano, auxiliado pelas grandes obras de irrigação, virá em muito contribuir para o enriquecimento do País.
Não enfileiro entre aqueles que se atemorizam com os programas de hidráulica agrícola, temendo as dificuldades do consumo dos produtos que venham a produzir-se. A necessária melhoria do nível de vida do povo, alguns aproveitamentos industriais dos produtos, devem ser suficiente escoadouro para o aumento de produção nas terras irrigadas.
Posta assim em grosseiros e ligeiros traços a solução para a população rural, atrevo-me a gastar mais uns escassos minutos, pelo que apresento a VV. Ex.ªs, Sr. Presidente e Srs. Deputados, as minha desculpas; atrevo-me a ocupar mais uns minutos para focar o problema da parte urbana deste concelho.
A interessante vila, «uma das mais interessantes do Alentejo, mão pelas riquezas monumentais, hoje bem modestas, mas pelas notas de pitoresco e cor», diz-se no Guia de Portugal, de Raul Proença, deveria ser visitada por muitos portugueses.
Muitas vezes tenho ouvido a impressão de visitantes, que ficam encantados, admirados, com essa vila de tão gloriosas tradições.
Há uns vinte anos o falecido «professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, então apenas médico e cientista estudioso, numa visita que fez a Avis, disse-me, maravilhado, que era criminoso não conhecer esta terra, não passear as suas estreitas ruelas, visitar os seus recantos, extasiar-se perante a grandeza majestática dos seus arruinados monumentos, ele que era visitante atento de meio mundo.
Há anos, uma tarde, apareceu inesperadamente em Avis S. Ex.ª o Ministro da Defesa, que era então Ministro da Guerra. Visita enigmática, deu azo a Várias conjecturas, e a mais insistente seria, a hipótese de trazer para Avis a sede da gloriosa Ordem a que ligou o seu nome.
E porque não? Seria caso inédito a instalação das Ordens na província? Não. A Ordem Militar de Cristo esteve instalada em Castro Marim e depois foi transferida para Tomar.
A Ordem de Avis, a galardoar milhares dos melhores portugueses, que orgulhosos ostentam a sua venera - sei que no momento actual existem 6:301 processos de agraciamento de portugueses e 746 de estrangeiros -, a cruz da sua Ordem a distinguir os 60:500 inscritos na Legião Portuguesa, atestam a importância histórica, o relevo nacional, dessa, agora bem modesta vila.
Se Salazar, se o Governo da Nação, fixarem um pouco da sua atenção -dispersa por tantos e tantos problemas de alta transcendência na situação de Avis se transformarem o resto dos seus monumentos, ainda belos e a transcender tradição, em monumento nacional, se transformem a sede da Ordem, com o seu consequente movimento, a instalação de uma força, de cavalaria para guarda, do honra dos visitantes do categoria que ali tivessem de ir receber as suas veneras, se medidas urgentes puderem precaver os seus habitantes rurais quando se concluírem as obras da barragem do Maranhão, Avis que foi feliz, depois infeliz, poderia voltar a ser feliz.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Jacinto Ferreira: - Sr. Presidente: paredes meias com esta cidade de Lisboa, logo a seguir às portas de Benfica, vive uma população de quase 20:000 almas, pouco considerada pelos- seus dirigentes municipais, de Oeiras, vila que lhe fica a muitos quilómetros de distância pelas vias ordinárias de comunicação.
Bastará percorrer as freguesias que constituem este concelho para se. verificar que nas da sede todos os arruamentos são alcatroados e se apresentam satisfatoriamente limpos; há parques esmeradamente tratados e até dotados de estufas frias; a assistência é larga e satisfatória. Na Amadora, não obstante ser também zona turística, e, como tal, serem lá as transmissões de terrenos ou as simples construções sobrecarregada com o imposto de maior valia - ainda que ilegalmente, como se diz à boca pequena, por causa do medo -, as ruas são mais caminhos do que outra coisa; o lixo e a poeira abundam no Verão, porque no Inverno as enxurradas a tudo providenciam; os esgotos são rudimentares, e quanto a assistência recebeu a freguesia a esmola de 6.000$, enquanto que Oeiras foi contemplada com 56.000$.
E, no entanto, cerca de 50 por cento das receitas totais da Câmara Municipal de Oeiras são-lhe fornecidos pela freguesia da Amadora, que abrange os aglomerados populacionais da Damaia, da antiga Porcalhota, da moderna Amadora, e o grande centro populacional e industrial da Venda. Nova, onde estão situadas mais dê vinte unidades fabris, algumas da maior importância na economia nacional.
Tem este núcleo de portugueses direito a administrar-se a si próprio, porque possui um número de habitantes superior ao de muitas cidades portuguesas; porque dispõe dos meios suficientes para a satisfação de todas as necessidades, tanto pessoais como sociais, dos seus componentes, e ainda porque dispõe para isso de recursos económicos bastantes, sem que a sua independência possa afectar os meios de existência do concelho a que actualmente se encontra ligado.
Acresce a isto que na sua área se encontram instalados muitos serviços do Estado e outros de grande interesse público e a cidade militar, já em construção adiantada.
Quer dizer: a actual freguesia da Amadora reúne todas as condições legais para ser elevada a sede de concelho e, mais ainda, a de estar situada a considerável distância, da sua actual sede, sem meios directos de comunicação.
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Para, se poder instruir a petição a dirigir ao Poder Central nesse sentido, pedi que a Câmara Municipal de Oeiras me desse conhecimento dos rendimentos das diversas freguesias do seu concelho, uma vez que, segundo a lei, a demonstração desses rendimentos, quer quanto ao desafogo de qualquer novo concelho, quer quanto ao não empobrecimento ilimitado do originário, é condição imprescindível.
A resposta que recebi é mais uma prova a juntar a outras da acção contrariante daquele Município sobre a vontade colectiva de 20:000 dos seus habitantes.
E do seguinte teor, na sua parte essencial:
O pedido formulado pelo Sr. Deputado António Jacinto Ferreira na sessão da Assembleia Nacional de 19 de Dezembro findo não pode, em consequência da mecânica dos serviços, mecânica fixada pela lei, ser satisfeito inteiramente por esta Câmara Municipal.
Pretendem-se relações discriminadas por rubricas e por freguesias das «receitas totais arrecadadas» pior esta Câmara Municipal nos anos de 1948, 1949 e 1950.
Ora. há receitas em que é impossível determinar a freguesia donde provêm. Nelas se compreende a quase totalidade da receita virtual proveniente de impresso, códigos de postura, folhas de fiscalização de obras, etc.
Por outro lado, uma grande parte da receita ordinária - a proveniente das taxas adicionais às contribuições directas do Estado -, que anualmente anda à volta de 1:150.000$, é cobrada pelo Estado na secção de finanças.
O lançamento das contribuições respectivas, em regra, não é feito pior freguesias, e esse facto implica uma devassa a todos os documentos para determinar o rendimento de cada uma das cinco freguesias do concelho.
Nem esta Câmara Municipal e muito menos os seus funcionários tem a faculdade de disporem de tais elementos.
Afigura-se-nos, e salvo o devido respeito, que o pedido, nesta parte, «não pode ser satisfeito por este corpo administrativo.
No tocante às receitas arrecadadas directamente pelo Município, o pedido está em flagrante conflito com a mecânica dos serviços.
Na verdade, nem o Decreto-Lei n.º 22:021, nem o Código Administrativo, impõem que as receitas sejam discriminadas por freguesias.
A determinação importará, portanto, a verificação de todos os documentos, um por um, tanto da receita virtual como da eventual.
Se atendermos que totalizam aproximadamente 80:000, no grande número de rubricas, orçamentais e de que são cinco freguesias, pode ajuizar-se aproximadamente do trabalho necessário para satisfazer o pedido.
Neste momento, e nos meses mais próximos, o trabalho da secretaria é intenso, obrigando a grande número de horas extraordinárias.
Este facto está até agravado com a circunstância de actualmente existirem três vagas no quadro respectivo.
Com o pessoal de que dispõe, a Câmara não pode, sem muito grave prejuízo para o serviço normal, elaborar as relações pedidas, ainda que com as restrições apontadas.
Dois meses foram necessários, Sr. Presidente, para uma negativa, bem aceite pelas repartições competentes, mas que eu não creio justificada, até porque, se deixassemos criar o precedente, mau caminho, teriam os pedidos de informação formulado» nesta Assembleia. Fácil seria a todas a» repartições negarem os elementos solicitados, sob pretexto de falta de tempo e de falta de pessoal para os coligir.
Tenho presente a representação recente da vila do Entroncamento para ser destacada como concelho novo do concelho de Vila Nova da Barquinha, e nela tudo vem discriminado, não só em receitas, como em estatísticas, separadas freguesia por freguesia. E teremos então de concluir que, reguladas pelo mesmo Código Administrativo, a da Barquinha era um primor de organização entre a generalidade em que se situa a de Oeiras, ou, antes, esta é um fenómeno de desorganização entre a generalidade em que se situava aquela.
Mas, Sr. Presidente, se não consegui as informações que pedi, considero-me, pelo menos, satisfeito com. a declaração oficial da Câmara Municipal de Oeiras de que não tem possibilidade material de calcular as suas receitas por freguesias.
Vai ser enviado, pelas vias competentes, o pedido para a criação do concelho da Amadora, cujas receitas podem ser calculadas, aproximadamente, em relação à sua população e às suas actividades económicas, sem ser lícito à actual sede do concelho contestá-las, porque já se declarou incapaz de adquirir conhecimentos relativos aos números respectivos.
Daqui dirijo um apelo às entidades oficiais superintendentes nesta matéria para que não deixe de ser tomada na devida conta, e mesmo resolvida com brevidade, esta aspiração a que tem direito um núcleo populacional insatisfeito.
Que a pouca simpatia que nelas possa haver por este padrinho não constitua óbice à justiça a distribuir, porque todos os que passarem a viver à sombra das suas liberdades locais decerto não esquecerão o benefício recebido.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Chegaram à Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério do Interior em satisfação do requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Abrantes Tavares na sessão desta Assembleia de 10 do corrente. Vão ser entregues àquele Sr. Deputado.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Convido os Srs. Deputados que fazem parte da Comissão de Política e Administração Geral e Local para se reunirem amanhã, pelas 15 horas.
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continua em discussão o aviso prévio do Sr. Deputado Armando Cândido relativo ao excesso demográfico português, relacionado com a colonização e a emigração.
Tem a palavra o Sr. Deputado Manuel Domingues Basto.
O Sr. Manuel Domingues Basto: - Sr. Presidente: o aviso prévio do nosso ilustre colega nesta Câmara Sr. Armando Cândido veio pôr à atenção e estudo dos Deputados da Assembleia Nacional um importantíssimo problema. Intitulou-o S. Ex.ª ao anunciá-lo «o excesso demográfico português, relacionado com a colonização e a emigração». Basta este enunciado para se verificar que com ele se foca um aspecto fundamental da vida da
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Nação e se toca numa questão delicada, de múltiplos aspectos, com o sen fundo essencialmente moral, directamente relacionada com a vida e pessoa humana, de grandes reflexos na vida económica, e de que está mesmo dependente que Portugal continue a ter vida, grandeza e história, ou definhe e pereça, como resultado do suicídio colectivo das suas famílias, no ataque ou envenenamento das fontes da vida.
Porque a questão é melindrosa e nela andam envolvidos problemas diversos, que não podem esquecer-se ou de que não podemos desligar a solução do problema demográfico, não tem faltado no passado, e mais ainda no presente, em que a crise de pensamento trouxe à supuração todos os velhos erros de outrora, embora entrajados em novos modelos e travestidos de aspecto moderno, quem pretenda sujeitar as vidas às subsistências, ou o número de seres humanos com direito à vida às conveniências políticas.
Nesta magna questão, como em tantas outras, inverteu-se a hierarquia dos valores e realizou-se a sujeição do homem, não ao dever moral que o nobilita e exalta, que o dignifica e fax mais homem, mas à economia ou à política ou aos instintos, que, no dizer de Pascal, reduzem o que há de anjo no homem à escravidão à besta, que jaz adormecida na parte menos nobre do ser humano.
Assim se tem caminhado, às claras ou disfarçadamente, para aquela situação desgraçada e desesperada que, no dizer de um escritor contemporâneo, saudàvelmente realista e fino psicólogo,, faz do homem apenas «máquina de gozar ou máquina de matar, carne para o prazer ou carne para o canhão».
Bem haja, pois, o Sr. Deputado Armando Cândido pela sua coragem em trazer para a Assembleia Nacional, com o seu aviso prévio, o magno problema do aumento da população.
Teremos com isso ocasião de o estudar sem o mutilar, de o discutir sem o ver através dum critério apriorístico, de considerar a parte que a economia e a política devem ter no caso, mas sempre ao serviço do homem e da sua dignidade moral. Foi neste critério e com esta orientação que o ilustre autor do presente aviso prévio encarou o momentoso assunto.
Vê-se que S. Ex.ª não é do número dos portugueses medrosos, que receiam o aumento da maior riqueza dum povo - as suas vidas; nem do número dos portugueses cobardes e assassinos, que, em vez de activarem a produção e pugnarem para que a distribuição das riquezas materiais se faça mais de acordo com o número e a riqueza das vidas, preferem, à maneira de Caim, aniquilar as vidas dos irmãos, filhos da mesma pátria, ou envenenar as fontes da vida, crime social maior que envenenar as fontes públicas na sua origem.
Esta concordância, no essencial, com o discurso do Sr. Deputado Armando Cândido não impede que afirme desde já uma pequena discordância quanto ao titulo do enunciado do seu aviso prévio. Fala-se nele em «excesso demográfico português». Por mim preferiria que se dissesse a aumento demográfico português».
O Sr. Armando Cândido: - V. Ex.ª dá-me licença?
É que não concordo com a expressão «aumento demográfico» aplicada ao problema, como eu enunciei. Excesso demográfico, sim, porque então teremos a relação com as disponibilidades económicas. O aumento pode ser comportável.
O Orador: - Eu explico a V. Ex.ª É que temos de estudar o problema em relação a todo o Império, e em relação a ele não pode falar-se de excesso demográfico; mas mais adiante responderei desenvolvidamente a V. Ex.ª
É que, rigorosamente, só pode falar-se em excesso demográfico quando se verifica com exactidão que o território do império português é absolutamente insuficiente, devidamente organizada a emigração de modo a que seja elemento de vitalidade, e não de enfraquecimento económico, moral e social, quando se verifica com exactidão, dizia, que o território do império português está devidamente explorado nas suas riquezas e a distribuição delas se faz no melhor sentido de justiça social e de forma a que toque a sua porção indispensável a todos e a cada um.
Será este o caso português no assunto? Desenvolveu-se de tal maneira a técnica que já não é possível produzir mais e melhor? A exploração do solo no império português atingiu o seu máximo e podem considerar-se realizadas todas as nossas possibilidades e esgotados todos os nossos recursos? A riqueza produzida já é toda riqueza socialmente útil, ou há ainda muita que, apesar da legislação social em vigor e dos esforços generosos empregados no melhor sentido, se assemelha ao caso dos volframistas, que se viram ricos de improviso, sem que tal riqueza aproveitasse afinal à economia da Nação ou trouxesse vantagens sociais para quem quer que fosse? Creio, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que não há, não pode haver, duas respostas para tais perguntas, que envolvem outros tantos problemas Intimamente ligados ao problema do aumento demográfico português.
Até nas regiões do País onde se pratica a cultura intensiva e se aproveita ao máximo a terra, por ser grande a densidade da população, há ainda muito que aproveitar e a cultura e granjeio se fazem por processos que não são os melhores para arrancar à terra o maior rendimento e dar ao trabalho agrícola a melhor recompensa.
Nestes termos, para equacionar devidamente os problemas do aviso prévio do ilustre Deputado Sr. Armando Cândido, e porque pôr mal ou com inexactidão um problema é resolvê-lo mal, deveremos estudar e discutir, não o «excesso demográfico português», visto que tal excesso não se prova que exista, mas o «aumento demográfico português», que é uma consolador a realidade nacional.
Seja isto dito apenas no desejo e na intenção de precisar bem os termos da questão levantada pelo aviso prévio em debate, e sem qualquer intuito de oposição ao discurso do Sr. Deputado Armando Cândido, que me agradou e merece aprovação na intenção e na doutrina.
Sr. Presidente: verifica-se, consoladoramente, de ano para ano um aumento de vidas em Portugal que nos permite encarar afoitamente o futuro e alimentar as melhores esperanças de que, posta a economia e a política de sentido social ao serviço desta realidade, a grave crise, filha de erros que de longe vêm, será definitivamente vencida e Portugal completará a sua obra de resgate, coroando-a com uma obra de glória ...
Sou dos que acreditam que Deus fez curáveis as nações e que um dos mais valiosos elementos da sua cura é o apor à vida dá parte dos seus filhos, quer por esta expressão se entenda o desejo de manter a sua independência e prestígio, quer se pretenda significar que se tem pelas .vidas das novas gerações o maior e mais sagrado respeito.
Ter amor à vida e respeito pelas vidas, que são afinal a maior garantia da vida da Pátria, é crer na missão providencial de cada vida humana e de cada nação; não respeitar as vidas é renunciar a continuar a história de um povo e quebrar os elos da cadeia que liga as gerações num objectivo comum e ao serviço da unidade da Nação.
Longe de ser motivo de tristeza, é o aumento das vidas causa de ufania e glória de um povo, mas obriga-o a enfrentar esta realidade e a servi-la, organizando devidamente a economia e a política.
Se repelimos o pessimismo neomaltusiano, condenamos ainda o optimismo ingénuo, que nada faz para dar lugar na vida ao aumento das vidas do império por-
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tuguês. Mais vidas exigem melhor técnica, mais abundante produção, melhor e mais justa distribuição de riquezas.
Não receemos as vidas, nem nos deixemos arrastar por ideias feitas, falsas e perniciosas ideias, aliás, do que o aumento de vidas pode trazer á fome ou conduzir à insuficiência de alimentação para tanta gente.
O problema é outro e consiste em tornar essas vidas fecundas, habilitando-as a tirar o máximo rendimento do seu esforço e actividade, e em organizar a economia, pondo-a ao serviço dos homens e da vida. Basta de lamúrias de que a população aumenta, porque o que se requer é acção e organização para tirar vantagem deste elemento de vitalidade nacional.
E a vantagem tira-se intensificando e continuando o que de bom se tem feito e está a fazer e prosseguindo, não só na obra de fomento, como na protecção ao mais necessário e no interesse e carinho pelo que se encontra no maior abandono. É preciso que produzamos mais, aproveitando todos os nossos recursos, e torna-se indispensável fazer do que se produz riqueza socialmente mais útil.
Vários factores, a que se não tem dado o decidido combate que era preciso, concorrem para encarecer a vida e torná-la ora difícil, ora impossível a seres humanos, que são vítimas, não de terem vindo ao Mundo além do número, mas sim de o Mundo andar tresloucado e ter caído de joelhos diante do deus prazer ou do deus-milhão, em honra de quem as vidas, umas se desonram e outras tom de ser imoladas em sacrifício.
Tornar a economia humana e dar à política a maior e mais intensa expressão social é o caminho que nos indica o aumento demográfico do império português. A essa riqueza de vidas há-de corresponder o aumento da riqueza económica e unia política que torne as almas mais ricas de sentido e interesse do comum, de amor da justiça, numa palavra, de virtudes cristãs, que são* a alma* de todas as virtudes sociais e de toda a política social.
É esta a política a fazer, ante o facto do aumento das vidas, pelas nações que querem permanecer e continuar gloriosamente a sua história. A política contrária é uma política de suicídio nacional e colectivo, uma política ruinosa, que, depois de* aviltar o homem, apresenta as mãos tintas em sangue de assassinos.
Sr. Presidente: se, passando do abstracto ao concreto, do campo dos princípios ao terreno das realizações, quiséssemos dar um programam esquema do que há a fazer para que, aproveitando a riqueza das vidas, Portugal se engrandeça e valorize, teríamos de embrenhar-nos em tantas questões e problemas tão sérios e importantes que impossível seria deixá-los aflorados num discurso proferido na estreiteza do tempo permitido pelo Regimento desta Câmara.
Como, porém, são vários os oradores inscritos para o debate sobre este aviso prévio, é de crer que cada um deles tome à sua conta certos aspectos especiais do assunto, e por isso me limito, por minha vez, a focar sómente alguns, que se me afiguram, no aspecto económico e social, dos «mais sérios e dos mais graves.
Não deve perder-se de vista que o aumento da nossa riqueza económica, se é um problema de técnica e de produção, é ainda um problema de justiça distributiva.
Frequentes vezes tem sucedido, sobretudo em épocas anormais, em tempos de crise, darem-se simultaneamente dois factos que parecem de sua natureza contraditórios: escassearem os géneros de primeira necessidade no consumo, havendo, contudo, abundância deles.
A ganância e o açambarcamento sonegavam-nos às vistas e procura do público ou à acção das brigadas de fiscalização, ou então queimavam-se ou deitavam-se ao mar, em vez de se distribuírem gratuitamente ou venderem por baixo preço aos que deles precisavam para se alimentar.
Já nesta Câmara ouvi fazer a justificação desta política económica, alegando-se que com as épocas variam os critérios e que umas vezes se ajusta a produção ao consumo, outras vezes se restringe o consumo em homenagem aos direitos da produção.
Considero essencialmente erradas semelhantes afirmações, o não é difícil ver nelas o sacrifício do homem e da dignidade da pessoa humana à matéria e o predomínio do conceito materialista da vida e da história, que por vezes tanto se combate em palavras, a orientar de facto homens que se dizem partidários de uma política nova de sentido humano e social e de base cristã ...
Precisamos de saber se a escola, o quartel e a própria hierarquia dos elementos ou factores da riqueza estão ao serviço da nossa riqueza de vidas ou são praticamente contra ela.
Na sessão de 25 de Abril de 1900 - há portanto quase dois anos eu dizia nesta Câmara, justificando o aviso prévio que anunciei e mandei para a Mesa, o seguinte:
A escola primária na aldeia raras vezes serve o seu meio e concorre para prender os rurais à sua profissão.
Dois anos decorridos sobre esta afirmação, sinto que ela se apresenta ainda com certa gravidade e que, apesar dos generosos esforços do Ministério da Educação Nacional, e em particular do ilustre Subsecretário de Estado da Educação Nacional, Sr. Dr. Veiga de Macedo, em promover entre os professores primários cursos de aperfeiçoamento, estamos ainda muito longe de acertar o passo, para que a escola primária da aldeia seja elemento do mais perfeito serviço ao meio e de integral elevação dos seus habitantes.
Sem deixar de seleccionar as vocações para as carreiras literárias que a escola primária da aldeia possa revelar, e que são em número restrito, o professor primário da aldeia deve estar, por regra, a trabalhar para a maioria dos seus alunos e a prepará-los para a vida no seu meio.
O Sr. Carlos Moreira: - V. Ex.ª dá-me licença?
Creio que não apreendi bem a ideia de V. Ex.ª Parece-me que V. Ex.ª desejava que as escolas primárias fossem meios de selecção logo nas primeiras idades ...
O Orador: - O que desejava era que as escolas primárias, ou, melhor, os professores primários, estudassem as crianças nos seus primeiros anos de idade, em que se podem notar as suas intuições.
Há possibilidade, nas escolas primárias, de encontrar vocações literárias e científicas.
Não quero ser exclusivista e entendo que se deve dar a mão a esses alunos. No entanto, a escola deve viver, no geral, para a maioria dos alunos, a qual não é destinada às carreiras literária ou científica.
Este é que, é o meu pensamento.
É esta a orientação traçada aos professores de ensino primário pelo Ministério da Educação Nacional e determinadamente pelo discurso feito pelo Sr. Dr. Veiga de Macedo, em 24 de Maio do ano findo, na sessão de encerramento do curso de aperfeiçoamento dos professores de ensino primário de Lisboa.
São desse discurso estas claras palavras:
O ensino primário, mais do que teórico, deve ser vivido e prático; mais que livresco, impõe-se seja fundado, tanto quanto possível, na observação directa dos factos e dos fenómenos do meio ambiente.
Sei que estes princípios e normas de ensino se proclamaram para serem executados e que o Ministério da
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Educação Nacional tem insistido, através dos respectivos departamentos, pela sua execução exacta, rigorosa e, quanto possível, completa e perfeita.
Já no discurso citado o ilustre Subsecretário de Estado de Educação dizia, porém: «Seria, por isso, menos justo quem nos acusasse de não encarar de frente o problema, e com o firme propósito de acertar, as múltiplas e variadas questões em que é fértil tão importante sector da educação».
Pode mesmo dizer-se, sem receio de desmentido, que muitos desses problemas se encontram resolvidos ou em vias de solução, embora nos consideremos «ainda afastados de grande numero dos objectivos finais que nos propusemos alcançar».
O Sr. Carlos Moreira: - V. Ex.ª dá-me licença?
V. Ex.ª não desconhece nomes de relevo na educação, na história da educação, que não perfilham esse ponto de vista e que não dão à função da escola primária O sentido que parece deduzir-se das palavras de V. Ex.ª
O problema é sério demais para sentenciosamente ser afirmado e apreciado.
O Orador: - Não desconheço que há nomes de prestígio em matéria de educação que tom opinião contrária à seguida em matéria de ensino primário pelo Sr. Subsecretário de Estado da Educação Nacional.
São opiniões. Por mim acho boa e até a melhor - a orientação dada, e só desejo que a sua realização se aperfeiçoe.
É que realizar é difícil, e na prática encontram-se, por vezes, dificuldades que a rotina do passado e até as circunstâncias do meio aumentam, a ponto de se ir até onde se pode na realização do ideal a atingir.
Estou, contudo, certo de que se chegará ao fim e que o muito que já se fez será estímulo e força a garantir que há-de fazer-se o que ainda falta.
Porque a observação me diz que o Sr. Dr. Veiga de Macedo tem razão quando afirma que nos devemos considerar ainda afastados dos objectivos finais que com a nova orientação do ensino primário o Ministério da Educação Nacional se propôs alcançar, por isso. não se pode levar a mal se apontem as deficiências que ainda existem, e que não são devidas nem a falta do boa orientação nem de esforço e insistência para que ela seja- seguida e executada.
Não se modificam os hábitos num momento, nem se encontram para as reformas salutares a realizar os executores hábeis e adestrados que lhes garantam toda é eficiência.
A vontade de bem servir do professorado primário a manifesta. Não poderá, contudo, o mais integrado na letra e espírito da nova orientação ver-se na prática mal, apreciado, porque, procurando que a escola da aldeia em que trabalha viva para o seu meio e querendo fazer dela o elemento educativo de todos os., habitantes da aldeia, e trabalhar sobretudo para a generalidade dos seus alunos, não brilha tanto, levando a exame um maior número de alunos?
É preciso que o exame não seja o critério exclusivo, nem mesmo o mais importante, para avaliar da competência do professor.
Sabe-se que não são essas as indicações do Ministério da Educação Nacional, mas a vaidade de levar a exame muitos alunos é ainda uma grande tentação ...
Funesta tentação, que dá em resultado serem na prática contrariadas as indicações do Ministério da Educação Nacional, e pelo exame se encherem as aulas de ensino secundário de uma população escolar de baixa craveira intelectual, que só à força de muitos trabalhos chega ao 5.º ano do liceu, para mendigar um emprego ou para dar às escolas do magistério um excesso de candidatos eternamente à espera de vez.
A grande massa rural que frequenta a escola primária ou fica no exame da 3.a classe ou, se vai além, pretende ser tudo menos da lavoura e trabalhar em toda a parte menos no amanho das terras da sua aldeia natal ou na administração das suas propriedades agrícolas.
Urge combater a todo o transe esta tendência, que o Sr. Dr. Veiga de Macedo, no discurso já citado, classificou de «deslocada e prematura superintelectualização das crianças».
Esta falta de completa integração da escola primária no meio em que está e para serviço dele concorre poderosamente para fazer desenraizados os quê a frequentam, quando devia ser afinal um dos melhores factores de valorização do meio e dos elementos que o constituem. Para isso o ensino das primeiras letras na escola primária da aldeia deve ser informado, nos programas e na maneira de os ensinar, de um intenso critério de amor à terra e de apologia da vida e profissão agrícola e admiração pela sua grandeza e importância na riqueza da Nação.
Leituras, problemas, pontos escritos deviam ser, na escola da aldeia, tirados da vida dos rurais, no meio dos quais a escola se encontra, por forma que a criança, ao deixar a escola para entrar na vida, tivesse mais amor à profissão de seus pais e ingressasse na vida segura de que encontrara na escola luz e orientação para ser na família e na profissão um valor maior do que os seus antepassados.
Porque não hão-de adoptar-se para a escola primária da aldeia, ao menos para as últimas classes, como livros de leitura A Horta do Tomé, O Pomar do Adrião e A Quinta do Diabo, do falecido agrónomo e hábil vulgarizador Mota Prego?
A singeleza e encanto de narrativa destes livros e os factos contados através das suas páginas, todos eles da vida diariamente observada ou vivida pelos alunos, dar-lhes-iam, com grande interesse pela leitura, grande amor pela vida agrícola e ensinamentos rudimentares para vencer a rotina em que a lavoura vive estagnada.
Isto ajudaria a corrigir a tendência para se procurar na escola uma libertação que os antepassados não conseguiram: a libertação dá terra, que dá o pão aos Portugueses, e do trabalho agrícola, que é essencial à vida e prestigio da Nação.
Pode esta tendência ser ainda mais agravada na escola se os professores que ensinam na aldeia não tiverem espírito rural.
Dá-se por vezes o caso de serem destacados para ensinar na aldeia professores e professoras que não conhecem o meio rural e as suas necessidades, não têm espírito rural e são incapazes, por isso, de se porem, e à sua escola, ao serviço das famílias rurais.
Aprendi com um tratadista célebre de assuntos de educação, grande e insigne pedagogo, que há dois grandes meios de criar defeitos nas crianças: o exemplo e a lisonja.
Pelo que sei e conheço da vida de algumas das nossas aldeias do Norte de Portugal, posso afirmar que há em escolas primárias mestres que o são no emprego destes dois meios.
Idos das cidades ou vilas do País, habituados aos confortos, divertimentos e até luxo dos centros urbanos, estranhos na aldeia aos seus usos e costumes, considerando-se desterrados na pequenez e humildade do meio em que se encontra a escola, ansiosos de se libertarem e de fugirem no mais curto prazo, tudo o que dizem e fazem, e até a maneira como vestem e se apresentam, é estímulo aos seus alunos para a fuga da aldeia. Sempre que podem, juntam ao exemplo a lisonja às pretensões
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dos alunos, que, como os seus mestres,, tem outra aspiração mais alta do que viver entre rurais.
O que fica dito não significa censura ao abnegado e heróico professorado primário, classe benemérita a que é devida a melhor e mais agradecida homenagem, pelos seus valiosíssimos serviços. O que se dá está na lógica das coisas e é resultado de não se ter ainda posta completamente a escola ao serviço da Nação e dos seus maiores e primordiais interesses.
O professor que tenha de ensinar na aldeia tem de receber para isso uma formação especializada, som o que a escola nem chegará a interessar o meio em que funciona nem a pôr-se bem ao seu serviço.
Não há nada que estranhar que professores ou professoras com horror à vida da aldeia e sem espírito rural tenham, enquanto se conservam em escolas da aldeia, como única preocupação sair dali quanto antes.
De tudo quanto acaba de dizer-se resulta, Sr. Presidente, que o empobrecimento das nossas aldeias se deve à falta de preparação dos rurais para o exercício da sua profissão.
Se não é missão da escola primária fazer agrónomos nem regentes agrícolas, nem capatazes ou práticos da lavoura, há direito de exigir-lhe que trabalhe para Portugal, não desviando do trabalho da terra e estimulando no amor a ela a quase totalidade dos seus alunos.
Parece que não ficaria mal, antes daria às populações rurais possibilidades de maior domínio da terra e maior resultado do seu trabalho, que junto da escola da aldeia funcionasse um campo de experiências e demonstrações de cultura agrícola, onde a criança, na idade em que é mais olhos e sentidos e imaginação que raciocínio, visse como se faz e aprendesse a fazer.
A poda, a enxertia e outras artes da profissão agrícola constituiriam para as crianças interessantes diversões, que seriam ao mesmo tempo preciosos ensinamentos. E não aconteceria depois o que está sucedendo actualmente: o rapaz que se apanha com o exame da 4.ª classe querer ser tudo menos lavrador e chefe atilado de uma família agrícola.
A isso se deve a falta de amor à terra e de competência para a granjear convenientemente. Este factor, junto a outros mais, concorre para que no trabalho da terra fique apenas quem não serve para outra profissão mais rendosa e para que não seja mais alto o nível económico das populações rurais e se não possa decentemente aguentar nas aldeias uma população densa e rica de costumes e de alegria de um trabalho desejado e suficientemente compensador.
Sr. Presidente: sem o pensar, o quartel une-se, em conspiração, à escola contra o maior rendimento do trabalho agrícola e para o desamor à profissão agrícola e à vida na aldeia. Precisa a Pátria de soldados que, em horas de paz, a defendam do estrangeiro do interior e, em caso de guerra, da ambição o da ameaça de estranhos.
O treino do português para soldado faz-se no tempo do serviço militar, em que deixa a sua terra e o convívio da sua família para os trocar pela vida no quartel.
Embora devam subordinar-se a vida do quartel e o tempo do serviço militar às exigências militares da técnica e prática do manejo das armas, não seria impossível nem mesmo difícil aliar-se a este treino a formação mais completa do português, para melhor defender Portugal e o engrandecer no aumento da riqueza e na valorização económica da Nação. Perdem-se as guerras por falta de soldados, mas também se perdem por falta de pão e à míngua de recursos e de resistência económica.
A melhor preparação e treino do português para a defesa da sua pátria serão os que o fizerem melhor soldado e homem mais capaz de valorizar e enriquecer a vida nacional.
O quartel faz soldados, mas desinteressa-se do outro aspecto de valorização nacional, quando podia favorecê-la e aumentá-la.
Sucede com frequência que os rapazes saem da aldeia para o quartel habituados a uma vida simples, morigerada e honesta, com bom sangue e bons costumes.
Ao terminar o serviço militar, parte deles não regressam ao lar e à sua terra natal, porque a vida das cidades, com os seus prazeres e divertimentos, por tal maneira os fascinou que juraram a si mesmos que haviam de ser da Guarda Republicana ou da Polícia, ou contínuos de um Ministério, mas que ninguém mais os veria na situação deprimente de «fossar» a terra.
Os outros regressam, mas nas horas de folga do quartel frequentaram lugares e adquiriram vícios, que os corromperam e lhes envenenaram o sangue.
A vida do quartel ensinou-lhes o manejo das armas, mas permitiu-lhes que se tornassem menos fortes e sadios para a defesa da Pátria. Quantas povoações rurais de Portugal foram enfraquecidas e envenenadas no seu sangue por estes rapazes, no regresso do quartel e da vida militar! ...
Seria difícil ao quartel defender melhor a saúde dos rapazes durante o seu tempo de soldados e fomentar neles maior amor da Pátria, valorizando-os para melhor e mais entusiástico exercício a sua profissão agrícola?
Creio que não. Bastaria para isso que junto do quartel houvesse para os rapazes vindos da aldeia uma quinta agrícola, em que nas horas vagas alternasse com o manejo das armas o exercício mais criterioso e mais perfeito das fainas agrícolas.
Não teriam assim tempo nem ocasião de frequentar lugares inconvenientes para a moral e para a saúde e, ao sair do quartel, regressavam aos seus lares mais habilitados a tratar da terra e a torná-la mais fértil e mais produtiva.
Desde a enxertia à floricultura, desde o emprego dos adubos até à poda, desde o estábulo e criação de aves e coelhos até à apicultura, quantas coisas interessantes a ensinar ao rapaz durante o tempo do serviço militar.
Se a lei já exige que ele não saia do quartel nem deixe a vida militar sem aprender a ler, escrever e contar, se era analfabeto, porque não estabelecer o mesmo princípio no que se refere ao essencial à sua profissão agrícola?
O quartel daria assim práticos no manejo das armas e práticos agrícolas, tão necessários à economia nacional e ao aumento da população.
Não se intensifica a produção ao ritmo da população sem ensino conveniente, e a maior parte dos que trabalham a terra ninguém os ensinou a trabalhá-la bem. Aproveitem-se ao menos as obrigações da escola e do quartel para os tornar mais úteis a si e à Nação, em sentido atento ao aumento demográfico no Império Português.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: - Faz favor.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Tenho muita pena que V. Ex.ª ignore o que é hoje a vida de um quartel.
O Orador: - Nunca lá estive, não fui militar.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Normalmente conhece-se a vida militar através das suas exibições, que sómente se realizam no sentido em que elas podem servir a disciplina geral.
Mas a vida de um quartel, a vida de trabalho hoje numa unidade, é qualquer coisa de muito importante na vida da Nação.
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Uma unidade é uma pequena cidade, com múltiplas actividades: com vários trabalhos agrícolas, com as suas oficinas de serralharia, carpintaria, alfaiataria, etc. Não há comandante nenhum, cônscio das suas responsabilidades, que não deseje que os soldados encontrem no sen quartel um prolongamento da vida que, sob todos os aspectos, faziam anteriormente.
Hoje, nos quartéis de Portugal reza-se e trabalha-se, cuida-se do espírito e do corpo, realizasse um trabalho social que é pena que V. Ex.ª ignore.
Tenho muita pena que V. Ex.ª, repito, ignore estas actividades.
Os soldados não saem do quartel apenas sabendo ler e escrever, como V. Ex.ª disse. Saem melhor preparados nas habilitações que anteriormente possuíam, robustecidos nos sentimentos que beberam no lar, encaminhados no sentido de tinirem melhor rendimento das suas aptidões.
A vida militar é hoje isto. E o dever de seguir este rumo todos os comandantes o sentem. É que nós, militares, temos tão alta noção do dever que os nossos maiores direitos são os nossos mais sagrados deveres: o dever de confessar a nossa fé e o direito de morrer por ela; o dever de defender a Pátria e o direito de por ela dar a vida; o dever de fazer de cada português um soldado, na verdadeira acepção da palavra, e o .direito de sentir-se o guia seguro de todos.
O Sr. Manuel Vaz: - E, se V. Ex.ª me dá licença, de fazer homens de carácter. É uma escola de formação de carácter.
O Orador: - Confesso que foi com muito prazer que ouvi a interrupção de V. Ex.ª e dou-me por muito feliz pelos elementos elucidativos que V. Ex.ª trouxe ao meu discurso. V. Ex.ª é um distinto militar e eu não queria de maneira nenhuma que as minhas palavras pudessem ter uma errada interpretação.
O meu empenho, no que disse, foi simplesmente apontar falhas, e nunca colocar-me em luta ou combater a acção do quartel na defesa da Pátria. A essa acção presto a minha homenagem.
Mas permita V. Ex.ª que, em amor à verdade, eu diga que as falhas que apontei se notam ainda em grande parte dos rapazes que regressam com mais amor à cidade do que à sua profissão, no que, aliás, o quartel não tem culpa.
É que lhes falta ainda a formação necessária para que os ensaios feitos dêem pleno rendimento e eficiência ...
Acrescente-se a tudo isto a acção dos organismos corporativos agrícolas, fazendo deles escolas práticas dos seus associados, dê-se assistência técnica à lavoura, organize-se devidamente a arrumação da nossa gente, como disse o ilustre autor deste aviso prévio, que as vidas em aumento serão também consolador acréscimo da nossa riqueza e do nosso prestigio.
Sr. Presidente: para que a economia e a política se ponham ao serviço da grande realidade nacional que é o aumento do seu capital humano, não basta empregar todos os meios e realizar um esforço de conjunto, organizando e coordenando, para o engrandecimento da riqueza material; é ainda indispensável providenciar para que dela se faça uma justa distribuição.
Se a escola, o quartel, os organismos corporativos se não puseram ainda, a sério, ao serviço desta realidade, se há ainda muito que fazer para aproveitar melhor o que temos, para explorar o que está inculto, para arrumar a nossa gente, para regular e organizar a emigração, também a insuficiência de meios de subsistência para muitos se deve à deficiência da nossa organização na distribuição justa da riqueza.
O crédito agrícola mal organizado faz com que muitos pequenos e médios lavradores sejam vítimas da usura; as contribuições, que incidem igualmente sobre propriedades livres ou oneradas com hipotecas, tornam aos proprietários destas impossível a vida e proletarizam muitas famílias agrícolas; a falta de organização para a venda a justo preço dos produtos agrícolas obriga o lavrador, ora a cedê-los por um preço inferior ao custo do granjeio, ora a ficar na dependência e a sujeitar-se ao que queiram oferecer-lhe por eles.
As uvas da casta «Alvarinho» de Monção são vendidas ao preço das uvas de qualquer casta ordinária a duas organizações comerciais, que vendem o vinho dessas uvas por preço superior no do vinho do Porto; as laranjas de Amares, apreciadíssimas nos nossos meios urbanos, são em Janeiro vendidas pelo lavrador ao desbarato para pagar as contribuições, com o encargo de as defender dos ladrões até aos meses da Primavera ou do Verão, para que nesses meses o comprador as venda por preço dez vezes superior àquele por que as comprou.
Em face do aumento demográfico do País, aumento que se dá sobretudo nas aldeias e na classe dos trabalhadores rurais e dos pequenos proprietários agrícolas, é necessário não sómente criar riqueza, mas fazer com que essa riqueza seja mais útil ao meio e à classe que a produz.
Temos de evitar que a costureirinha da aldeia ou das nossas pequenas vilas receba 15 pelo feitio de uma camisa, explorada na sua pobreza pelo negociante ambicioso e sem escrúpulos; que a camponesa de Fafe receba $50 por fazer um chapéu de palha, à ordem de qualquer usurário ambicioso.
Sem extremismos escusados, mas por amor à justiça e necessidade de uma política social justa e ao serviço da população, temos de pensar numa reforma agrária e de velar para que o contrato de parceria agrícola se faça por forma a que uma das partes dê o trabalho e execução do seu braço e a outra parte o seu conselho e orientação e a assistência financeira precisa.
Mal nos vai se não travamos a funesta tendência de o proprietário se desinteressar das suas terras e as abandonar ao trabalhador, sem competência para uma exploração cabal nem recursos económicos para a tentar, e se as relações entre os dois se limitarem ao cuidado do proprietário agrícola em receber a renda ou a pensão ajustada, por intermédio do seu feitor ou procurador, na época própria.
É muito mais a esta falta de justiça distributiva do que propriamente à insuficiência do que se produz que se deve a fuga das aldeias e do trabalho da terra para as fábricas, para as cidades ou para o estrangeiro. Só se muda quem está mal. Se o rural mostra desejos e empenho em mudar-se, não obstante o seu grande amor à terra, à família e às tradições, é porque entre os rurais o nível económico de vida é ínfimo e este sector da vida nacional é o que vive mais desamparado e esquecido.
Não sofre confronto com o nível de vida dos trabalhadores da indústria o baixíssimo nível de vida do trabalhador rural ou mesmo do pequeno proprietário agrícola.
Vai-se notando um enorme desprezo do operário das fábricas pelos que ficam na lavoura, ainda mesmo pelos que são proprietários, e eu, que sou pároco num meio vincadamente agrícola mas também fortemente industrial, sei os pedidos que tenho na roda do ano de proprietários agrícolas para conseguir junto dos donos ou gerentes de fábricas que os admitam lá, como assalariados.
Conheço até muitos casais agrícolas abastados em que os filhos são operários das fábricas e a administração do casal está confiada às mulheres.
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Tudo quanto uca dito é importante e indica-nos o que há a reformar e aperfeiçoar para se fazer o arrumo devido da população portuguesa, que aumenta.
Impõe o aumento demográfico mais carinho e protecção à lavoura, para que nas nossas aldeias vivam decentemente ainda mais vidas do que actualmente, e são patentes as funestas consequências sociais e económicas que provirão de não se dar toda a merecida atenção aos factos apontados, de tão íntima relação com o aumento demográfico no império português.
O assunto é vastíssimo e oferece ainda muitos outros aspectos, de importância e valor. Dispenso-me de a eles me referir, pois me diz a consciência que com o que disse dei já um contributo sério ao magno problema em debate nesta Assembleia.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: não tencionava usar da palavra na sessão de hoje, e, por isso, a minha exposição forçosamente se há-de ressentir do improviso. Poucas novidades poderei lançar mo debate, depois de versado o assunto, com mão ide mestre, pelos ilustres oradores que me antecederam nesta tribuna.
Raras vezes um aviso prévio foi realizado com maior cópia de elementos, conduzido com singular profundidade e justeza de conceitos. Os aplausos com que a Assembleia premiou esta tão brilhante intervenção não foram protocolares, antes traduziram a sinceridade de um apreço. Haverá excesso populacional no continente, é o problema vertente que vamos debater.
Nas ilhas adjacentes é mais do que um problema; é uma obsessão que perturba o equilíbrio económico insular e que justificadamente preocupa o seu representante em Cortes. A demografia pode ser apenas um capítulo da economia nacional, mas pode transformar-se também num autêntico e perturbante problema para o nosso conjunto económico.
Há em Portugal saldos demográficos, excessos populacionais que só possam ser eficazmente reduzidos pela emigração! Infelizmente não nos podemos estear directamente em dados estatísticos: o Instituto Nacional de Estatística nunca centrou esse problema, nem o mesmo pode ser deduzido directamente dos censos populacionais.
O Comissariado do Desemprego, seja dito à puridade, que tem realizado uma obra verdadeiramente meritória, não pode alcançar estatisticamente senão aqueles que atinge paratributàriamente. Sem inquéritos sérios, ficamos reduzidos a meras conjecturas, com indeterminação quantitativa desses saldos. A sua apreciação quantitativa tenho-a visto variar de 1 para 5, o que poderíamos pensar na qualitativa !...
Não há inquéritos regionais de comprovada probidade científica, nem a ficha preenchida para o emigrado fornece indicações acerca dos principais motivos que impulsionam a sua emigração: pletora demográfica irrequietude, indesejabilidade, ou inaplicabilidade ou ambição do emigrante.
Há na actual conjuntura económica continental saldos demográficos? Há um problema demográfico ou apenas uma vaga questão de pleno emprego? Essas perguntas ficam sem resposta concreta pela falta de elementos estatísticos.
O Sr. Melo Machado: - V. Ex.ª dá-me licença?
V. Ex.ª não acha que os factos são por si bastante esclarecedores?
O Orador: - Os factos dão uma ideia geral do problema, mas, como faltam essas fontes de segura informação, não podemos equacioná-lo para o resolver.
O Sr. Melo Machado: - Há populações que vivem mal porque a terra não lhes dá o suficiente ...
O Orador: - Os preços agrícolas é que são baixos. Esse é que é o problema crucial, o dos baixos preços dos produtos da terra. Ainda mais: enquanto os países predominantemente industriais sujeitam os seus consumidores industriais aos preços remuneradores, dos seus produtos agrícolas, nós, que somos um país de feição agrícola, que trocamos internacionalmente os nossos produtos da terra por outros produtos essenciais, vimo-nos em sérios embaraços, porque praticamos uma política económica de baixo» preços dos géneros agrícolas.
O Sr. Melo Machado: - V. Ex.ª não deve esquecer que numa parte do País há um tal parcelamento da terra que esta se torna insuficiente para a satisfação das necessidades.
O Orador: - Os defeitos do parcelamento combatem-se pela cooperativização dos produtores.
O Sr. Carlos Moreira: - E para V. Ex.ª, Sr. Deputado Pinto Barriga, valem mais os números que os factos ...
O Orador: - Não estou convencido de tal; todavia, paru analisarmos qualitativa e quantitativamente problemas desta natureza, precisamos de números suficientes; senão, forçadamente, ficaremos em conjecturas.
O que nos interessa é marcar a corografia da nossa emigração. Só um aumento do nível de vida rural pode agarrar o homem à terra. Só depois de termos aumentado mais inegavelmente já aumentou a nossa riqueza agrícola poderemos chegar à conclusão de que se deve fazer a emigração como se pensa. Antes de tudo devemos fazer inquéritos elucidativos.
O Sr. Armando Cândido: - V. Ex.ª quer um inquérito? Nas câmaras municipais da ilha de S. Miguel abriram-se registos para emigrantes, tendo-se inscrito em poucos dias 12:000 pessoas. Aqui tem V. Ex.ª um inquérito prático.
O Orador: - Comecei por dizer que nas nossas ilhas adjacentes a imperiosa necessidade migratória resulta quase do próprio censo populacional, mas os inquéritos a que V. Ex.ª alude, resultantes da inscrição, marcavam o problema, mas não nos davam a minúcia das intenções.
A emigração dirigida, compulsiva, sugestionada, voluntária, livre, tais são as ramificações que o problema poderia ter num largo debate parlamentar. Com uma legislação cocktail como a nossa só o engajador age livremente ... O que se constata é que se emigra mais por lufadas de imitação do que propriamente por indicações de ordem económica.
É evidente que temos uma experiência açoriana de emigração, experiência daqueles que saíram das ilhas adjacentes e encontraram no estrangeiro, nos seus comprovincianos, um apoio natural que ajudou o seu instinto de emigração.
O Sr. Carlos Moreira: - Para sermos juntos, diremos que isso não se passa só com os emigrantes açorianos, mas em relação aos emigrantes de todas as províncias do País, que emigram, muitos deles, por atracção dos que já haviam emigrado.
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O Orador: - O que não tem é o mesmo apoio eficaz dos açorianos.
O emigrante é um pouco abandonado e seria útil dar-lhe uma protecção, e essa protecção é que não vejo esboçada senão de unia forma «mito vaga e teórica.
É preciso dar-se protecção aos emigrantes que têm condições para lutar.
Com alguns dos capitais que nos ficaram das exportações poderíamos auxiliar a nossa emigração para centros onde já é importante a existência de portugueses.
É este um ponto de vista a que eu quero dar o maior relevo.
O Sr. Armando Cândido: - Eu disso isso com referência ao ultramar.
O Orador: - No ultramar é mais difícil, pois o emigrante adaptar-se-á mais dificilmente ali, devido ao clima. Mas a emigração poderia ser mais facilmente canalizada no estrangeiro para os sítios onde temos saldos cambiais utilizáveis com facilidade mima protecção séria aos emigrantes.
Este problema interessa-me muito, repito.
O Sr. Deputado Armando Cândido não se decidiu sobre se deveria canalizar-se mais a emigração para povoamento do ultramar ou para os outros centros estrangeiros onde existem núcleos importantes populacionais de Portugueses.
O Sr. Armando Cândido: - Perdão; mas sobre esse ponto fui até bastante preciso. Coloquei o povoamento do ultramar acima das correntes migratórias para o estrangeiro, e fui mais longe: disse que essas correntes teriam de ser utilizadas menos como processo de escoamento do que como meio de satisfazer necessidades de ordem-social, histórica, política e económica.
O Orador: - Na exposição brilhante do nosso ilustre colega vão se verificou, através de números, qual o excesso da população portuguesa e como deveriam ser coro-gràficamente feitas as distribuições das manchas populacionais.
Precisamos de ver qual a quantidade de emigrantes que é necessário subtrair u população portuguesa para restabelecer o seu equilíbrio demográfico, e só depois de estabelecido esse quantitativo poderemos ver a solução a adoptar.
A minha intervenção foi apenas ocasionada pelo desejo de prestar, com fundada admiração e com absoluta sinceridade, a homenagem que o trabalho do Sr. Deputado Armando (Cândido merece, mas não podemos por o problema com precisão sem conhecermos, através de números, o excesso populacional que existe ou verificar mesmo se é real, e não aparente. Não sabemos se ele é de 100:000 de 500:000 ou de 1 milhão, e esse elemento é indispensável para o exame da questão que estamos a ventilar.
Poderemos fazer uma emigração global ou só a de alguns indivíduos de espírito mais aventureiro e com maiores probabilidades de serem reaproveitados lá fora?
O Sr. Melo Machado: - Sob o aspecto da colonização, tudo o que pudermos fazer nesse sentido já representa uma vantagem para o País, e é evidente que não podemos mandar para fora de uma assentada, 1 milhão de indivíduos.
O Orador: - Isso é uma consideração de bom senso, e aceito a como tal, mas o problema, não se põe sem verificarmos quais os números existentes, porque as soluções variam conforme forem esses números.
O Sr. Melo Machado: - Se pudermos fazer ocupar as nossas províncias ultramarinas com mais 5:000 ou 10:000 indivíduos já teremos ganho alguma, coisa.
O Orador: - Eu não quero, para a resolução do problema, uma mala de caixeiro viajante. Quero uma solução, e, se é certo que o aviso prévio nos trouxe valiosos elementos, precisamos, no entanto, antes de mais, de saber qual o excesso populacional, porque sem números exactos nada podemos fazer.
Um outro problema a que quero referir-me é ao do reapetrechamento intelectual do homem português. Esse aspecto pode ser considerado como fez a Suíça, de uma forma curiosa.
A Suíça tinha alguns excedentes cambiais.
Como temos o Instituto paru a Alta Cultura, eles. criaram um instituto de média cultura e enviaram técnicos pura países onde a indústria estava mais -aperfeiçoada e onde também, existia uma agricultura mais especializada, isto tudo dentro das possibilidades de cambiais. Ainda recentemente um jornal suíço relata vá que os gastos com esses bolseiros, chamemos-lhes assim, andavam em média por 3 milhões de francos suíços. Disse há pouco o Sr. Deputado Melo Machado que todos os emigrantes que suem representam um ganho.
O Sr. Melo Machado: - Não é bem isso. Eu disse que V. Ex.ª tem razão quando deseja que exista uniu preparação para o colono e para o emigrante. No entanto, isso não quer dizer que estejamos à espera de saber quais os números, para depois se começar.
O Orador: - Todas as interrupções de V. Ex.ª são manifestações dum bom senso inteligente, com as quais estou inteiramente de acordo.
O problema tem de ser encarado num aspecto de realização imediata, mas essa realização imediata não é deixar emigrar, sem se verificarem todas as possibilidades.
Deviam fazer-se inquéritos no estrangeiro, mus os nossos cônsules tem demasiado trabalho de representação para poderem preocupar-se com estas ninharias ... Interessam-lhe os emigrantes ricos e não os pobres emigrantes.
Nós verificamos que no, emigração alemã, suíça e austríaca o emigrante é sempre acompanhado a par e passo, para se aproveitarem todas as possibilidades, para o protegerem contra a desnacionalização.
O Sr. Melo Machado: - Mus isso representa uma melhoria nas condições de colonização. Não nos devemos esquecer que em tempos recuados tivemos muita possibilidade de equilibrar a nossa balança, económica com o dinheiro que vinha do Brasil.
O Orador: - Mas, apesar da congelação, ainda agem hoje muito fortemente esses invisíveis.
O que importa, é que em Portugal se faça uma colonização com povoamento, e o Sr. Deputado Vaz Monteiro fiz uma brilhante exposição, mostrando o problema tal qual ele é.
O que não podemos deixar é o emigrante inteiramente abandonado a si próprio: devemos prepará-lo e aconselhá-lo na sua vocação migratória, não o abandonar no porto de desembarque.
Esta minha intervenção no debate tem-se realizado com certo desalinho, e só a improvisação em que foi pronunciada pode dar lugar a uma certa benevolência.
Para terminar, vou resumir: sem dados estatísticos, que não seja o censo, com anotações insuficientes do fenómeno económico do desemprego, com elementos in-
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cipientes sobre o rendimento nacional, com fórmulas de tipo burocrático para o recolhimento dos fenómenos migratórios, sem estatização da distribuição e repartição profissional, sem uma arquitectura estatística social da Nação, sem poder seguir «pelo censo as transformações qualitativas e quantitativas da população portuguesa, atracção urbanística, a interferência das populações agrícolas e industriais, presas às superfícies convencionais ou às unidades administrativas, não é possível demonstrar a rotura do equilíbrio da economia nacional por pressões demográficas.
Atingimos o nosso optimum populacional, «u, pelo contrário, aproximamo-nos mais de uma sobre população relativa? Estas perguntas sobrevoaram o debate, mas não encontraram a sua solução: só a poderiam obter através de um estudo dos níveis de vida, do sistema de distribuição e redistribuição.
É bem alto que o proclamo. Não podemos deixar ao acaso as relações oculturativas dos nossos grandes núcleos emigratórios, deixando-os em pleno isolamento e segregação social, não os protegendo eficazmente contra a atracção da ambivalência.
Temos deixado fazer uma emigração de mentalidade pré-capitalista, sem a preparar para uma emigração tecnicamente integrável num ambiente de industrialismo capitalista.
Para terminar: valorizemos o nosso emigrante e o colono de povoamento ultramarino; porém, tudo isso não se faz com palavras e decretos, mas com muito dinheiro. Temos estado a tratar de Portugal; parecer-me-ia mais útil, por agora, ocuparmo-nos também dos Portugueses:
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. Amanhã haverá sessão, com a mesma ordem do dia da de hoje, na qual deve terminar o debate sobre este aviso prévio.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 8 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Abel Maria Castro de Lacerda.
André Francisco Navarro.
Artur Proença Duarte.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Herculano Amorim Ferreira.
Joaquim Dinis da Fonseca.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Teófilo Duarte.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Américo Cortês Pinto.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António 'Calheiros Lopes.
António de (Matos Taquenho.
António de Sousa da Câmara.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Carlos de Azevedo Mendes.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem..
José Cardoso de Matos.
José Diogo de Mascarenhas Galvão.
José Pinto Meneres.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Vasco de Campos.
O REDACTOR - Leopoldo Nunes.
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CÂMARA CORPORATIVA
V LEGISLATURA
PARECER N.º 29/V
Proposta de lei n.º 182
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca da proposta de lei n.º 182, emite, pelas suas secções de Política e administração geral e Justiça, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
I
Apreciação na generalidade
1. O sistema em vigor em matéria de responsabilidade civil dos que tem por missão gerir e arrecadar dinheiros e valores públicos -, pelos alcances praticados pelos seus auxiliares, vem de longe. Encontramo-lo no Regimento do Tribunal de Contas, aprovado por Decreto de 30 de Agosto de 1886, donde transitou, praticamente sem tirar nem pôr, para o diploma que hoje disciplina, o assunto, o Regimento do Conselho Superior de Administração Financeira do Estado, aprovado pelo Decreto n.º 1:831, de 17 de Agosto de 1915, em vigor, na parte não alterada, por força do artigo 43.º do Decreto n.º 22:257, de 25 de Fevereiro de 1933. Segundo o artigo 45.º deste regimento, aqueles que têm. por atribuição gerir e arrecadar, ou simplesmente arrecadar, valores e dinheiros públicos são, inclusive, responsáveis pelos alcances resultantes de casos de força maior se não tiverem adoptado todas as precauções tendentes a evitá-los (culpa levíssima) e se no prazo de vinte e quatro horas, contadas desde que foi conhecido o facto, não tiverem dado conta à autoridade administrativa de todas as circunstâncias dele. Consequentemente (assim se tem entendido), todos os alcances que e filiem na actuação culposa, ou dolosa dos auxiliares, por boas e razoáveis que tenham sido as suas cautelas, são da responsabilidade desses gerentes e arrecadadores.
2. O regime do Decreto de 1915 (confirmado para os tesoureiros da fazenda Pública pelo Decreto n.º 22:728, de 24 de Junho ide 19.33, artigo 61.º) retira o seu fundamento, por um lado, do facto de o desvio ou alcance do subordinado se tornar presumivelmente possível em consequência de deficiente actuação dos superiores, em especial de deficiente escolha ou de deficiente fiscalização dos subordinados; por outro lado, da necessidade de estimular a diligência dos superiores na vigilância do comportamento dos seus auxiliares; e, frontalmente, das conveniências financeiras do Estado, que soo no sentido de se alargarem, pela co-responsabilidade dos superiores, as probabilidades de reparação integral dos danos sofridos em consequência de facto delituoso 001 quase delituoso dos funcionários ou empregados auxiliares.
Simplesmente, se razões deste tipo explicam, o regime vigente, não se pode dizer, com rigor, que o justifiquem. Tal regime mão é razoável. Traduz-se no sacrifício dos interesses dos gerentes de dinheiros e fundos públicos ou dos seus arrecadadores, em benefício do Estado, sem que se descubra (razão séria que leve a admitir II legitimidade desse sacrifício.
Não se diga, com efeito, que seja normal que os alcances praticados pelos auxiliares 001 propostos, culposa
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ou delituosamente, resultem de culpa dos superiores, e que, portano, se torna compreensível co-responsabilizá-los perante o Estado, sem discriminação entre os casos em que tenha e em que, em boa verdade, não tenha intervindo real culpa sua. O aceitável será antes que se faça recair sobre eles a obrigação de ressarcir só quando efectivamente tenha ocorrido culpa da sua parte na escolha ou na vigilância dos subordinados, já que o normal é que tais alcances tenham lugar não obstante os cuidados dos superiores. Nem, por outro lado, é justo sujeitá-los a responsabilidade independentemente de culpa sua (ou, o que vale a bem dizer o mesmo, com base em culpa levíssima) com vista a criar neles um estímulo à precaução, colocando-os, como se diz no relatório da proposta, em estado de alerta permanente. Se fosse lícito esperar, como consequência de um tal regime, que os alcances se tornassem extremamente improváveis, bem estava; mas a vigilância, ainda a mais acurada, não evitará abusos ou imprudências da parte dos subordinados, evidenciando-se, portanto, a razoável a solução de responsabilizar os gerentes e arrecadadores de dinheiros e valores públicos independentemente da sua culpa no mau exercício ou no abuso de funções por parte dos seus auxiliares. E tanto mais irrazoável quanto é certo que, em muitas hipóteses, os superiores não têm competência para escolher ou propor os seus auxiliares ou só entre número restrito de pessoas, postas sob sua autoridade e direcção, lhes é lícito distribuir as tarefas dos seus cargos; e que, noutras hipóteses, a actividade principal dos administradores está a grande distância da função fiscalizadora, não sendo legítimo, como no relatório também se diz, exigir-se-lhes uma fiscalização financeira perfeita.
Nem se invoque a necessidade de evitar a todo o custo que o [património público deixe de ser restaurado, ante a eventual insolvabilidade dos auxiliares. Não é de moído nenhum defensável que tenham de ser os administradores ou arrecadadores dos dinheiros e valores públicos, isentos, por hipótese, de toda a culpa ou só levìssimamente culpados, a suportar os danos decorrentes do comportamento doloso ou culposo dos auxiliares. Defensável é antes que esses prejuízos venham a ser sofridos pela comunidade, que é quem beneficia com a acrescida eficiência dos serviços, resultante da agregação dos auxiliares à simples actividade dos administradores. A orientação a seguir deve ser naturalmente, aqui, a da socialização dos danos. Se no nosso direito e no francês se tem por justo que, de um modo geral, os comitentes respondam pelos danos causados pelos seus comitidos, é especialmente porque se entende que o desdobramento ou prolongamento da sua actividade só aos comitentes aproveita.
3. Inspirada se deve, pois, considerar a ideia de restaurar nestas hipóteses a orientação clássica em matéria de responsabilidade civil. Só excepcionalmente se deve admitir a responsabilidade civil de alguém sem ter intervindo verdadeira culpa sua; e nenhuma consideração de equidade, das que levam o legislador, num ou noutro caso, a consagrar a responsabilidade objectiva (lato sensu), obriga, em caso de dolo ou de culpa dos propostos, ao abandono dos princípios gerais da responsabilidade aquiliana. Se o sistema da responsabilidade extra-contratual objectiva é severo para os comitentes em geral (e tanto que nalguns códigos modernos, como o alemão e o suíço das obrigações, foi abandonado), é-o particularmente no caso especial dos administradores e arrecadadores de dinheiros e valores públicos, os quais, para se ser razoável, só hão-de ser civilmente responsáveis pelos alcances praticados pelos seus auxiliares na medida em que tais factos se filiem também em real culpa sua. O dolo ou a culpa do lesante directo há-de concorrer com a culpa do administrador ou arrecadador, quer na escolha que do auxiliar tenha feito, quer na vigilância que sobre ele era obrigado a exercer.
4. O sistema que se trata agora de abandonar é, como dissemos, muito antigo na legislação portuguesa e é fácil avaliar como tenha sido fértil em duras aplicações a funcionários inocentes de séria culpa em alcances de auxiliares e subordinados. Terão sido criadas situações penosas e será de bom conselho remediar ao menos as mais recentes. Este propósito encontra tradução, embora frouxa, na proposta em exame, na medida em que se prevê, para determinado caso, a aplicação retroactiva do nove. regime de responsabilidade. Aliás, e de um modo geral, o defeito da proposta está na timidez com que se dia tradução aos princípios perfilhados, que se impõe levar um pouco mais longe, até contemplar hipóteses paralelas: «não devem estas permanecer reguladas péla anómala legislação e jurisprudência anteriores. A Câmara Corporativa dá, pois, a sua aprovação à generalidade das ideias que dominam a proposta de lei, deixando para a apreciação na especialidade os reparos que entende dever fazer-lhe.
II Exame na especialidade
BASE I
5. Nesta base prevê-se apenas a hipótese de alcance ou desvio criminoso de dinheiros ou valores públicos. Ora mão parece que essa deva ser a única para que há-de preceituar-se o novo regime de responsabilidade. O alcance pode ser consequência, não apenas de dolo, não apenas de actuação propriamente criminosa, mas também de conduta culposa ou quase delituosa de quem lida e tem contacto com dinheiros ou valores públicos (cf. o Decreto n.º 1:831, cit., passim). Não é, parece, só para a primeira hipótese que deve prescrever-se o regime comum da responsabilidade civil, segundo o qual a obrigação de reparar recairá em princípio só sobre o agente.
6. A base I refere-se expressamente aos alcances ou desvios de dinheiros ou valores do Estado, dos corpos administrativos, das pessoas colectivas de utilidade pública e dos organismos de coordenação económica. Parece à Câmara que esta enumeração deve ser esclarecida para se evitarem dúvidas e completada para maior rigor, falando-se antes em dinheiros e valores do Estado, de estabelecimentos que ao Estado pertençam, dos serviços públicos autónomos (incluindo os organismos de coordenação económica), das autarquias locais (para englobar os dinheiros geridos pelos seus vários órgãos e serviços, e não apenas pelos corpos administrativos), das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e ainda das instituições ou serviços, mesmo civis, cujas contas sejam por lei submetidas ao Tribunal de Contas ou a quaisquer órgãos especiais de jurisdição de contas.
7. Após consagrar a responsabilidade pessoal dos que praticam alcance ou desvio de dinheiros ou valores públicos, a base em exame dispõe que essa responsabilidade será compartilhada pelos gerentes ou membros dos conselhos administrativos eventualmente culpados, embora estranhos ao facto. Reputa-se a fórmula de insuficiente amplitude, já que só se refere a administradores de dinheiros e valores públicos (e nem talvez a todos, pois parece que ficam de fora algumas formas de administração colegial ou colectiva), e não aos que
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têm por missão simplesmente arrecadá-los - tesoureiros, exactores ou. outros funcionários que, seja qual for a designação que a lei ou o uso lhes dê, tendiam, atribuições desta ordem. Também estes têm vivido sob a lei draconiana da responsabilidade civil (quase) objectiva pelos actos dos seus propostos e auxiliares, o que vale dizer sob a ameaça de serem económicamente fulminados, pelas, consequências dos comportamentos. ilícitos destes últimos, longe de efectiva culpa sua. À Câmara afigura-se dever aproveitar-se o ensejo, para os colocar em pé de igualdade com os simples administradores de dinheiros e valores públicos.
8. Nas três alíneas cia segunda parte da base I indicam-se as modalidades ou tipos que se entende poder revestir a culpa dos administradores de dinheiros públicos nos alcances ou desvios praticados pelos seus auxiliares. Nada há a dizer, de interesse, quanto à primeira. Quanto à segunda, em vez de indicação, deverá talvez falar-se em proposta. A mais do que isso, dado o alargamento do diploma a outros que não as meros administradores, há que redigir a alínea em termos diferentes: a escolha ou proposta de pessoa, inidónea só deve ser considerada culposa se a falta de idoneidade for ou dever ser conhecida do superior. Pelo que à terceira alínea diz respeito, nota-se que se fala em que os administradores serão responsáveis pelos alcances dos seus auxiliares ou subordinados «se houverem procedido com culpa grave no desempenho das funções de fiscalização que lhes estão cometidas». Será que se entendeu dever responsabilizar apenas aqueles administradores que actuaram com indesculpável descuido, com grosseira negligência na fiscalização que era seu dever exercer sobre esses auxiliares ou subordinados? Não se terá realmente querido pôr a cargo dos administradores uma obrigação um pouco mais estrita de fiscalizar a actuação dos subordinados?
É natural que, na redacção da proposta, se tenha sido dominado particularmente pelo propósito de diminuir as responsabilidades daqueles que, sendo gerentes ou membros de conselhos administrativos, acumulam essas funções com outras principais, de diversa índole, e que, assim, se tenha disposto estender-se-lhes a responsabilidade pelos alcances dos seus subordinados apenas quando houverem procedido com culpa grave no desempenho das funções de fiscalização que lhes estão cometidas.
Por um lado, porém, a mesma bem compreensível e bem justificável atenuação de responsabilidade se consegue, ainda que eliminado aquele qualificativo, pelo só preceito do § único, respeitante a determinação da existência da culpa pelo Tribunal de Coutas, de acordo com as circunstâncias do caso e tendo em consideração exactamente a índole das principais funções dos gerentes ou membros dos conselhos administrativos; por outro, há que dispor não apenas para esta hipótese como, também para outras em que é legítimo exigir um grau maior de vigilância e de cautela da parte dos superiores, designadamente dos que têm por principal função arrecadar ou fiscalizar a arrecadação de dinheiros públicos.
O qualificativo da culpa pode ser eliminado, uma vez que a fórmula do § único comporta todas as gradações necessárias. Falar-se-á, pois, de culpa para e simples. Esta, por sua vez, será determinada, não o partir da conduta de qualquer paradigma ou tipo abstracto de funcionário diligente, longe de circunstâncias concretas, antes com base na conduta de tipos concretos e multiformes de funcionários com determinadas atribuições, bons e diligentes, e conforme as circunstâncias do caso. Há, pois, que ver como se comportaria um bom funcionário (e não, como até hoje, um funcionário extremamente diligente e prudente), com as mesmas atribuições em circunstâncias concretas idênticas àquelas em que se encontrava o funcionário cuja responsabilidade se tratar de estabelecer. A hipótese figurada pelo legislador, de um funcionário com mais do que um género de atribuições, principais umas, acessórias outras, não constitui senão uma especificação dentro da série multiforme de tipos concretos de funcionários.
9. A referência que no § único se faz ao Tribunal de Contas deve ser completada, já que as contas de certos departamentos ou organismos são submetidas a entidades julgadoras diferentes, e não há razão para que se não equiparem as suas obrigações.
BASE II
10. A base II da proposta considerou a hipótese especial dos directores da Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra, que, nos termos do artigo 443.º do Decreto n.º 19:908, de 10 de Junho de 1931, são responsáveis pelo regular desempenho das funções do encarregado do cofre, sempre que tais funções sejam confiadas ao primeiro-oficial da secretaria e contabilidade. Tal hipótese já deveria considerar-se contemplada na base I, pois como «gerentes», para este efeito, se têm de havei-os directores dessa Escola. A referência especificada que se lhes faz serviu apenas para introduzir a disposição segundo a qual os preceitos da base anterior tem nessa particular hipótese aplicação retroactiva. A oportunidade desta disposição vem do facto de, como é notório, o Tribunal de Contas ter tido ultimamente que julgar responsáveis para com o Estado dois directores da Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra por avultadas quantias desviadas, durante os períodos em que respectivamente serviram, pelo encarregado do cofre da Escala, não obstante não terem sido realmente culpados dessa fraude. O legislador pretende, ao que se vê, pela aplicação retroactiva da razoável doutrina agora perfilhada, que seja facultada, aos interessados a possibilidade de requererem a revisão do julgamento para efeito de aplicação do que nesta base se prescreve. Concede para isso sessenta dias, a contar da entrada em vigor da lei (e não, como na proposta se diz, do decreto-lei) em que a presente proposta venha a transformar-se.
Tem esta base o defeito fundamental de contemplar um caso concreto, e não um tipo ou espécie de casos. Acresce não ser o caso dos directores da Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra o único a reclamar remédios de equidade, pela aplicação retroactiva dos princípios da nova lei. Justifica-se, portanto, um preceito genérico. Mas em que termos?
Não há dúvida de que é impossível sugerir a consagração da possibilidade de revisão de todo e qualquer julgamento anterior ao início da vigência da lei em preparação. Os julgamentos, não obstante a falta de equidade dos princípios legais em que se fundamentaram, tem, depois de decorrido certo tempo, de considerar-se inatacáveis: o tempo diluiu e quase fez esquecer o que houve de chocante e de injusto nas situações criadas por esses julgados. Com os anos os interessados vieram a conformar-se, deixaram de erguer as suas reclamações e protestos. A injustiça como que adormeceu. Não é estritamente necessário repará-la. Quieta non movere.
As normas do direito positivo a emanar agora não têm assim de ser exactamente moldadas nos paradigmas ideais da justiça. Têm prevalência e convém salvaguardar os valores da estabilidade ou da certeza jurídica.
Cônscia do que pode haver de arbitrário na fixação de um limite, a Câmara entende que só devem poder rever-se os julgamentos pronunciados nos últimos cinco
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anos, tomando o paralelo do que se passa com o recurso de revisão em processo civil (artigo 772.º, § único, do Código de Processo Civil). Quanto aos anteriores, poderão excepcionalmente ser revistos se decorre ainda a sua execução e apenas para efeito de aos interessados se dar quitação pelas prestações ainda em débito. Há funcionários, efectivamente, que vêm, a título de execução, sofrendo descontos nos seus vencimentos para indemnização dos danos sofridos pelo Estado em consequência de fraudes cometidas por subordinados e sem culpa sua e já que continuam a sentir periodicamente a dureza de um regime que houve de ser-lhes aplicado, parece razoável que se estenda a eles o benefício da nova legislação.
III
Conclusões
Em conclusão, a Câmara Corporativa aplaude a orientação geral da proposta do Governo, mas considerou necessário introduzir-lhe aperfeiçoamentos, de modo especialmente a estender as suas muito razoáveis providencias a casos similares aos mela previstos, para os quais de todo se impõe a consagração do mesmo regime. Sugere, pois, para as bases a seguinte inova redacção:
BASE I
1. Em caso de alcance de dinheiros ou valores do Estado, dos estabelecimentos que ao Estado pertençam, dos serviços autónomos, das autarquias locais, das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e das instituições ou serviços cujas contas sejam por lei submetidas ao Tribunal de Contas ou a quaisquer órgãos1 especiais de jurisdição de contas, a responsabilidade civil recairá, nos termos gerais, sobre o agente ou agentes do facto.
2. Estender-se-á, porém, sem prejuízo do seu direito de regresso pelo todo, aos gerentes, membros das juntas, conselhos, comissões administrativas ou quaisquer outros órgãos singulares ou colegiais de administração financeira, e aos exactores, tesoureiros e quaisquer outros arrecado dores de dinheiros e valores públicos, sujeitos a prestação de contas, estranhos ao facto:
a) Se, por ordem sua, a guarda e arrecadação dos valores tiverem sido entregues à pessoa que incorreu em alcance sem ser em virtude de falta ou impedimento daqueles a quem por lei pertenciam tais atribuições; «Se, por proposta ou nomeação sua, pessoa já desprovida de idoneidade foi designada para o
cargo em cujo exercício praticou o facto e essa falta de idoneidade era ou devia ser de seu conhecimento;
Se houverem procedido com culpa no desempenho das funções de fiscalização que lhes estão cometidas.
3. O Tribunal de Contas ou o órgão especial de jurisdição de contas competente decidirão, no seu prudente arbítrio, da, existência de culpa, em harmonia com as circunstâncias do caso e com o grau de diligência que for de exigir aos eventuais responsáveis, tendo em atenção especialmente a índole das suas funções principais.
BASE II
1. São susceptíveis de revisão os casos julgados nos cinco anos anteriores à data da entrada em vigor desta lei, para efeito de lhes serem aplicadas as regras da base antecedente.
2. Os interessados poderão requerer a revisão a que esta base se refere no prazo de sessenta dias, a contar da entrada em vigor da presente lei.
3. Se a decisão condenatória for revogada em consequência da revisão, far-se-á o reembolso das importâncias pagas.
4. Havendo execução pendente, seira suspensa logo que se junte ao processo documento comprovativo do facto de ter sido requerida revisão.
5. Os julgamentos proferidos há mais de cinco anos poderão excepcionalmente ser revistos, nos termos desta base, se ainda estiver em curso a cobrança de prestações para reembolso do Estado, e apenas para o efeito de aos requerentes se dar quitação pelas prestações em dívida a partir da data de apresentação do pedido de revisão.
Palácio de S. Bento, 4 de Março de 1952.
Afonso de Meto Pinto Veloso.
Joga Joaquim de Oliveira Guimarães.
Rafael da Silva Neves Duque.
António Pedro Pinto de Mesquita.
Inocêncio Galvão Teles.
Manuel Duarte Gomes Ha Silva.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA