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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARÍA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 154
ANO DE 1952 19 DE ABRIL
V LEGISLATURA
SESSÃO N.º 154 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 18 DE ABRIL
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Ex.mos Srs. Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro
SUMÁRI0: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 11 horas e 30 minutos.
Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.
Ordem do dia. - Continuou a discussão das Contas Gerais ao Estado para o ano de 1950.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Matos Taquenho e Pacheco de Amorim.
O Sr. Presidente encerrou a sessão eram 13 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente:-Vai proceder-se à chamada. Eram 11 horas e 20 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Finto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Finto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António de Sousa da Câmara.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Délio Nobre Santos.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Lima.
Herculano Amorim Ferreira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
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Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Dias de Araújo Correia.
José Diogo de Mascarenhas Galvão.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel de Sousa Meneses.
Manuel de Sousa. Rosal Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
O Sr. Presidente: -Estão presentes 67 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 11 horas e 30 minutos.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegrama
Da Junta de Freguesia de Silvalde, do pároco e da União Nacional a apoiar calorosamente as afirmações produzidas pelo Sr. Deputado Elísio Pimenta sobre o abuso de altofalantes.
Exposição
Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Excelência. - Os signatários, que todos são concessionários de transportes em automóveis no regime de carreiras de serviço (público, muito respeitosamente vêm expor e requerer o seguinte:
1. Em Fevereiro de 1945 o Governo enviou à Assembleia, Nacional uma proposta de lei dita da «coordenação dos transportes terrestres», visando a disciplina dos transportes terrestres em automóveis e por caminho de ferro (Diário das Sessões n.º 138, de 10 de Fevereiro de 1940, p. 317).
E nessa proposta se previa que as empresas concessionárias de carreiras automóveis fossem agrupadas e a sua actividade limitada a determinadas zonas., dentro de cada uma idas quais a iniciativa do estabelecimento das «diferentes carreiras ou o seu eventual cancelamento pertenceria às respectivas, empresas concessionárias (bases IV e v).
Por outro lado, a mesma proposta admitia a possibilidade de ser autorizada a cessação temporária ou definitiva da exploração de linhas férreas secundárias com rendimento insuficiente para compensar as despesas de uma exploração normal, ficando a empresa ferroviária, nesses casos, com o direito de, durante o prazo restante da concessão, explorar carreiras- automóveis
Ora, estas e outras disposições, significavam necessariamente a total subordinação dos transportes em automóveis ao caminho de ferro, e, como assim, a ruína dos primeiros, que sempre prestaram inestimáveis serviços ao País.
Deste modo, a economia de tal proposta, porque contrária ao interêsse público, mereceu gerais protestos, que a própria imprensa, com louvável energia, revelou.
Assistiu-se, então, a um largo movimento de opinião, que na Assembleia Nacional encontrou eco e decidido apoio.
Recordemos algumas fases do debate parlamentar.
2. O Sr. Dr. Antunes Guimarães, primeiro orador que fez a apreciação (na generalidade da proposta em referência, depois de a criticar acerbamente, verberando as suas tendências nitidamente monopolistas, conducentes à sujeição ou até mesmo à absorção dos transportes em automóveis por parte do caminho de ferro, apresentou uma contraproposta prevendo não só a eliminação de zonas de actividade para os transportes rodoviários, como também a impossibilidade de vir a ser autorizada a cessação ida exploração de quaisquer linhas férreas e de se negar a concessão de carreiras automóveis concorrentes onde e quando as necessidades as justificassem (Diário das Sessões n.º 167, de 5 de Junho de 1945, pp. 522 a 529).
A seguir, o Sr. Capitão João Duarte Marques, após haver igualmente criticado a economia daquela proposta, condenando-a no tocante às severas restrições estabelecidas para a camionagem, afirmou ter justificados receios ide ver o interêsse público oprimido entre zonas, atrofiado pela repartição do tráfego e subjugado ao horário único da não multiplicação de transportes e às exigências e arbítrios que se não evitam e são próprios da exploração única (citado Diário, pp. 529 a 531).
Depois, o Sr. Dr. Ulisses Cortês, actual Ministro da Economia, num discurso brilhante, fez uma crítica judiciosa ida mesma proposta e declarou:
Não se considerou o legislador apenas dispensado de assumir qualquer encargo relativamente à formação e desenvolvimento de um bom sistema de transportes por estrada.
Limita, onera e dificulta por tal forma o exercício dessa indústria que eu receio justificadamente a sua decapitação ou, apelo menos, a sua subalternização completa aos transportes ferroviários, cuja hegemonia, no estado actual da técnica, está longe de constituir para mim, e creio que para o público em geral, uma verdade incontroversa.
Não é esta manifestamente a atitude que imporia o justo respeito por todos os interesses em causa nem e, forma mais indicada de servir a colectividade num país de rede ferroviária reduzida e cujos caminhos de ferro, insuficientemente apetrechados, não podem corresponder como seria de desejar ao aumento de tráfego que lhes é atribuído, em prejuízo da camionagem - actividade igualmente legítima e que tantos serviços tem prestado à economia da Nação (Diário das Ressoes n.º 168, de 6 de Junho de 1945, p. 539).
O Sr. Dr. José Nosolini, por sua vez, também condenou a doutrina da proposta que vimos referindo ao afirmar:
A leitura da proposta, a base IV, a constituição de zonas criando fronteiras impeditivas de uma
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circulação una e útil,- limitação de percursos contra os carros ide aluguer, a criação e a concessão de facilidades aos caminhos de ferro no caso de percursos deficitários, sem correspondente contrapartida a favor da camionagem e, direi até -isto não é argumento, mas sintoma- a reacção pública quanto à proposta, agradável e benévola por parte dos caminhos de ferro e alarmada por parte da camionagem e das povoações que ela serve, mostram que o sentido dessa proposta de lei na política de defesa dos caminhos de ferro promete ser de subordinação do transporte por estrada ao transporte ferroviário (Diário das Sessões n.º 169, de 7 de Junho de 1945, p. 552).
O Sr. Engenheiro Araújo Correia, de seu lado, disse:
As carreiras de automóveis, que tão profundamente afectaram o caminho de ferro desde a outra guerra, sobretudo em pequenos percursos, vieram para ficar. Estou convencido de que não há hoje qualquer possibilidade de as afastar ou até de diminuir a intensidade da sua utilização. Elas constituem um grande instrumento de progresso, sobretudo em distâncias curtas e no desenvolvimento de regiões atrasadas. E o nosso país, por sua configuração e área, adapta-se facilmente a este meio de transporte. Ele é necessário à vida económica nacional e responde em muitos aspectos à comodidade do público. O caminho de ferro não o poderá destronar. Julgo - o futuro o dirá - que os transportes por automóveis hão-de ainda desenvolver-se mais dentro do País, sobretudo se se materializarem os progressos já anunciados em motores de combustão interna (Diário das Sessões n.º 170, de 8 de Junho de 1945, p. 170).
O Sr. Dr. Clemente Fernandes, discutindo, também na generalidade, a proposta de lei sobre coordenação dos transportes terrestres, ponderou:
Ao carril compete o seu lugar e tem de lutar actualizando-se; à camionagem compete o seu lugar e tem de trabalhar desempenhando a função que a colectividade lhe reclama.
Sair deste dilema e dar preferência legal a qualquer deles significaria dar-lhe uma protecção que a Nação repudia, significaria comprometer o desenvolvimento da economia nacional.
De facto, um olhar retrospectivo mostra-nos que não vai longe o tempo em que a maior aspiração local se traduzia em caminho de ferro à porta, e nesse sentido se orientaram a política, forças vivas e realidades económicas de então.
Hoje é outra a aspiração das gentes.
O progresso demonstrou que um outro meio de transporte, mais rápido, mais cómodo e, até certo ponto, tão eficaz, era capaz de substituir o velho mastodonte, a ponto de ao público proporcionar a vantagem de, com menor risco e mais celeridade, satisfazer as necessidades presentes.
E à aspiração do carril sucedeu-se a da boa estrada, porque ela, melhor do que aquele, lhe dava estímulo a que se desenvolvesse a agricultura, o comércio e a indústria (cit. Diário, p. 561).
O Sr. Prof. Dr. Mário de Figueiredo, por sua vez, reconhecendo que nem todas as soluções da proposta eram correctas, apresentou uma contraproposta, donde se destacavam os princípios seguintes:
Inexistência de zonas de actuação para as empresas concessionárias de transportes em automóveis (base IV);
Preferência das mesmas empresas na exploração das carreiras estabelecidas para substituir linhas férreas secundárias cuja actividade cessasse, e só no caso de essas empresas não quererem efectuar aquela exploração é que a empresa ferroviária a poderia realizar (base XII);
Não reconhecimento de natureza excepcional ao acto de concessão de carreiras concorrentes (base XIV, alínea b) (Diário das Sessões n.º 171, de 9 de Junho de 1945, pp. 582 e 583).
Quer dizer: a contraproposta do Prof. Dr. Mário de Figueiredo naqueles pontos apresentava soluções exactamente contrárias às que constavam da proposta do Governo.
Em seguida, o Sr. Dr. Soares da Fonseca, actual Ministro das Corporações e Previdência Social, disse:
... as medidas preconizadas na proposta envolvem a ideia de dar aos caminhos de ferro uma verdadeira hegemonia, subalternizando-se-lhes em vasta medida os transportes por estrada.
Salvo melhor critério, por enquanto não está provada a necessidade do, para proteger os caminhos de ferro, restringir, e restringir excessivamente, a camionagem.
... os transportes colectivos por estrada assumiram, no quadro dos interesses gerais do País, um lugar de alto relevo, que não é inferior aos dos caminhos de ferro e se mostra, pelo menos, tão indispensável como o destes.
Efectivamente, pode com inteira afoiteza proclamar-se que, em relação aos caminhos de ferro, não são menores na camionagem, e até nalguns casos bastante maiores: nem os quantiosos valores monetários nela investidos; nem o grosso volume dos impostos que paga ao Estado; nem o numeroso pessoal nela ocupado; nem a alta importância dos seus serviços para as necessidades militares; nem o extraordinário desenvolvimento económico por ela trazido ao País.
... os transportes por estrada estão longe de merecer, quanto a mim, quer a subalternização em que parece colocá-los a proposta, aliás animada dos melhores propósitos, quer o plano secundário a que parece fazê-los descer o parecer da Câmara Corporativa ...
De todo o exposto ... quero concluir que os transportes colectivos por estrada devem ser tratados no mesmo pé de igualdade dos transportes ferroviários. Demais, não foi aqui dito que a proposta os considera serviço público e que é obrigação do Estado assegurar a realização dos serviços públicos? Porquê então um regime desigual para os dois serviços? Porquê adoptar, como forma de realização do transporte colectivo por automóvel, um processo que leva à sua diminuição? (Diário das Sessões n.º 172, de 12 de Junho de 1945, pp. 587 e 588).
Finalmente, como é por demais sabido, foi a contraproposta do Sr. Prof. Doutor Mário de Figueiredo que fundamentalmente obteve a aprovação da Assembleia Nacional (Diário das Sessões n.º 190, pp. 778-(l) e seguintes).
Por aqui se vê que a proposta do Governo, onde dominava o princípio da hegemonia dos caminhos de ferro, com a consequente subalternização dos transportes por estrada, mereceu inteira reprovação, e, em vez de tão odioso princípio, outro, absolutamente justo, se consa-
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grou - o tratamento, em plano de igualdade, dos dois sistemas de transportes.
E tão justo foi esse tratamento que até se repudiou a restrição, estabelecida no direito anterior (regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 23:499, de 24 de Janeiro de 1934, artigo 36.º), segundo o qual as empresas ferroviárias tinham preferência absoluta na exploração de novas carreiras concorrentes do caminho de ferro.
Portanto, e em síntese, a Assembleia Nacional votou a Lei n.º 2:008, de 7 de Setembro de 1945, em termos de colocar em situação de igualdade plena os transportes ferroviários e rodoviários, sem subalternização destes em relação àqueles.
Porém, a triste realidade actual é a de que o Governo, olvidando a letra e o espírito daquele diploma, está sancionando medidas que determinam a completa submissão do automóvel ao carril.
Vejamos:
3. Em 9 de Maio de 1951 foi publicado o Decreto-Lei n.º 38:246 atribuindo competência ao Ministro das Comunicações para, em nome e representação do Estado, contratar com a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, nos termos das bases anexas a esse diploma, a substituição do arrendamento das linhas férreas dó Estado e de todas as concessões existentes, pela concessão única prevista na Lei n.º 2:008.
E, de acordo com tal, aquele contrato foi concluído em 14 de Junho seguinte, encontrando-se o respectivo texto publicado no Diário do Governo n.º 156, 2.º série, de 9 de Julho de 1951.
Notemos agora alguns passos desse contrato que abertamente ofendem a Constituição Política e a demais legislação vigente sobre transportes em automóveis.
O seu artigo 7.º, além do mais, consigna:
A Companhia pode, independentemente de autorização, fazer transportes por via terrestre, afluentes ou de ligação entre os elementos da sua rede ...
Depois o seu artigo 8.º diz:
A Companhia é autorizada a organizar, por si ou associada, empresas destinadas a transportar por qualquer dos meios de transporte referidos no artigo anterior pessoas ou mercadorias em serviço combinado com o caminho de ferro ou em substituição deste ...
Finalmente, o seu artigo 9.º reza:
... poderá ser autorizada (à Companhia) a cessação ... da exploração (de linhas férreas secundárias), desde que, em vez desta, seja estabelecido pela Companhia, o a por esta contratado com outra empresa, um serviço de transportes por estrada com percurso equivalente ...
Ora, como ficou dito, a letra do articulado em referência desrespeita uma regra constitucional e viola o direito vigente.
Assim o demonstraremos.
4. Segundo o contrato questionado, a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses poderá, quando e onde quiser, com o pretexto de fazer ligação entre as respectivas estações, ainda que estas muito afastadas fiquem umas das outras, estabelecer carreiras automóveis, não carecendo, para tanto, de prévia autorização do Governo.
Somente lhe será necessário requerer, simplesmente, a aprovação de horários e tarifas à Direcção-Geral de Transportes Terrestres, em observância do disposto nos artigos 140.º e 146.º do Decreto n.º 37:272, de 31 de Dezembro de 1948.
Contudo, a verdade é que a base VII da Lei n.º 2:008 determina que todos os transportes colectivos em automóveis dependem de prévia autorização do Governo, dada através do Ministro das Comunicações e ouvido o Conselho Superior de Transportes. Terrestres, quando se trate de carreiras regulares, como dizem os artigos 72.º e 98.º e seu § l.º do citado Decreto n.º 37:272 e o artigo 3.º, alínea d), do Decreto-Lei n.º 35:196, de 24 de Novembro de 1945.
Quer dizer: o estabelecimento de transportes colectivos por estrada, em automóveis, obedece à (regra uniforme de prévia autorização do Governo, concedida pelo Ministro das Comunicações, que deve ouvir aquele Conselho no caso de concessão de carreiras regulares.
E esta regra uniforme não pode sofrer quaisquer desvios, salvo em questões de pormenor, e, evidentemente, não constitui questão de pormenor a regulamentação do estabelecimento ou concessão de novas carreiras.
Com efeito, o artigo 60.º e seu n.º 1.º da Constituição Política mandam obedecer a regras uniformes, salvo em pontos secundários, o estabelecimento ou transformação das comunicações terrestres, qualquer que seja a soía natureza ou fins.
Ora o novo contrato de concessão celebrado com a dita Companhia, prevendo, no seu artigo 7.º, a possibilidade de esta estabelecer, independentemente de autorização do Governo, transportes colectivos por estrada, em automóveis, não só transgride o disposto na base VII da Lei n.º 2:008 e nos artigos 72.º e 98.º do Decreto n.º 37:272, como também viola o preceito do artigo 60.º e seu n.º l.º da Constituição.
Por outro lado, reconhecendo à Companhia, como reconhece, o direito de explorar carreiras automóveis quando e onde quiser, para ligação dos elementos da respectiva rede, permite-lhe estabelecer carreiras em toda a parte, ainda que em percursos já servidos por outras empresas, sem exclusão das próprias carreiras de longo curso.
E tanto assim é que a Companhia já solicitou a aprovação de horários e tarifas para carreiras de ligação entre estações ferroviárias afastadas umas das outras por muitas dezenas de quilómetros, em percursos já servidos por outras empresas, e prepara-se para explorar várias outras, mas mesmas condições, sem prévia autorização do Governo.
Assim, aquele princípio, que tão debatido foi, e que mereceu a aprovação da Assembleia Nacional, da não subalternização de um sistema de transportes ao outro, a menos de seis anos ida data da promulgação da Lei n.º 2:008 encontra morte inglória num simples contrato de concessão!
E para tanto nem sequer faleceu coragem para, mesmo por simples via contratual, se desrespeitar a Constituição e se ofender aquela lei e o Decreto n.º 37:272, publicado à guisa de seu regulamento!
Não será demais?
Em 1945, quando tornado público o texto da proposta de lei do Governo, dita da, «coordenação dos transportes terrestres», a camionagem cerrou fileiras e vivamente protestou contra o que constituiria a sua total decapitação.
E teve a satisfação de ver que em seu apoio se levantou o País inteiro e que na Assembleia Nacional os seus protestos foram compreendidos.
O perigo agora não é menor e pode dizer-se mesmo que se apresenta em maiores proporções.
E que na proposta do Governo, apesar de bem marcado o princípio da subalternização dos transportes rodoviários, não se previa contudo, em termos expressos, como se prevê no contrato em causa, que a camionagem
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um dia ficasse inteiramente à mercê da empresa ferroviária:
Mas isto não é tudo.
O contrato que vimos criticando é rico em restrições doutra espécie.
Apontemo-las.
5. O artigo 8.º assegura também à Companhia o direito de ela própria organizar os serviços combinados com a sua rede de caminhos de ferro, estabelecendo, para o efeito, os indispensáveis transportes por estrada.
Ora a verdade é que tanto a base VI da Lei n.º 2:008, como o artigo 84.º do Decreto n.º 37:272, ambos prevêem que os contratos de serviço combinado sejam celebrados entre a empresa ferroviária, de um lado, e as empresas concessionárias de transportes em automóveis, de outro lado, quando uma e outras sirvam simultaneamente a mesma localidade.
Desta maneira, aquele artigo 8.º está em manifesta oposição com estas disposições legais, e o seu objectivo, contrariamente ao que resulta da letra e do espírito das leis vigentes, não é outro senão o de alargar, em favor do caminho de ferro, a possibilidade de estabelecimento de transportes rodoviários, ainda que com ofensa de direitos legitimamente adquiridos pelas empresas concessionárias respectivas.
É sempre a preocupação de aniquilar a camionagem que domina o contrato em referência, num propósito de fazer reviver a doutrina constante da proposta de lei do Governo para a coordenação dos transportes terrestres, que tão severas críticas mereceu e que acabou por ser rejeitada, visto contrariar as necessidades e aspirações do País inteiro.
6. Por último, o artigo 9.º do novo contrato de concessão da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses estabelece que, no caso de cessação autorizada de linhais férreas de importância secundária, a Companhia ficará com o direito de servir o mesmo percurso com carreiras automóveis.
Era esta exactamente a doutrina constante da base XII da proposta de lei do Governo, mas que, por iniciativa do Sr. Prof. Doutor Mário de Figueiredo, foi inteiramente modificada no sentido de serem, as empresas de transportes em -automóveis que devem explorar as carreiras estabelecidas ou a estabelecer naquelas circunstâncias, e só no caso de estas as não pretenderem é que a empresa ferroviária poderá explorá-las, como diz a base X da referida Lei n.º 2:008.
Quer dizer: neste ponto o contrato em questão também desrespeitou abertamente aquela lei.
7. É tempo de concluirmos.
Ao longo desta exposição demonstrou-se, sem possibilidade de contestação séria, que a Assembleia Nacional votou a Lei n.º 2:008 com a preocupação dominante de colocar em justo plano de igualdade os transportes rodoviários e os transportes ferroviários, e, designadamente, com a preocupação de nunca consentir que os transportes por estrada fossem subalternizados pelo carril.
E o Decreto n.º 37:272, publicado como regulamento dessa lei, respeitou este princípio.
No entanto, o novo contrato de concessão que o Governo concluiu com a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses fez letra morta dessa orientação e, submetendo a camionagem ao jugo do caminho de ferro, sujeitou-o inteiramente à sua vontade soberana, permitindo que a empresa ferroviária estabeleça, quando e onde lhe aprouver, transportes colectivos por estrada, sem dependência de autorização; consentindo que a mesma empresa organize transportes combinados com a rede de caminhos de ferro utilizando viaturas próprias e reconhecendo-lhe ainda o direito de explorar carreiras para substituição de linhas férreas secundárias cuja exploração venha a cessar.
E tudo isto com flagrante violação do artigo 60.º e seu n.º 1.º da Constituição Política, das bases VI, VII e X da Lei n.º 2:008 e dos artigos 72.º, 84.º e 98.º do Decreto n.º 37:272.
Tal como em 1945, e agora por forma bem mais grave, a camionagem foi atingida por um golpe mortal, desferido através de um simples contrato de concessão, que quase desapercebido ia passando.
Mas porque estamos perante disposições que contrariam a opinião geral do País e que colidem com o pensamento que determinou a Assembleia Nacional na aprovação da Lei n.º 2:008 e que, por outro lado, ofendem o direito vigente, designadamente um princípio constitucional, os signatários vêm protestar contra aquele contrato, reclamando, em termos respeitosos, no sentido de ser chamada a atenção do Governo com vista à revogação imediata dos respectivos artigos 7.º, 8.º e 9.º, na medida em que os mesmos atingem os seus direitos legitimamente adquiridos e reconhecidos por diplomas legais que permanecem em vigor.
Para tanto requerem e confiadamente esperam deferimento.
(Seguem as assinaturas).
O Sr. Presidente:-Estavam inscritos três Srs. Deputados antes da ordem do dia, mas, como a hora vai já adiantada, usarão da palavra na sessão da tarde.
Vai passar-se, pois, à
Ordem do dia
O Sr.Presidente: - Continuam em discussão as Contas Gerais do Estado de 1950. Tem a palavra o Sr. Deputado Matos Taquenho.
O Sr. Matos Taquenho: - Sr. Presidente: mais uma vez a Assembleia Nacional é chamada a analisar as Contas Gerais do Estado e a fazer a sua aprovação. Habituou-se o País a contas claras, que permitem verificar plenamente como se arrecadaram as receitas, as suas proveniências e o destino que tiveram.
As contas de 1950, agora em discussão, satisfazem inteiramente aqueles que queiram debruçar-se sobre elas e permitem tirar conclusões sobre tendências que se vêm confirmando há já alguns anos.
O total das receitas elevou-se a 5.145:143 contos, sendo 4.825:519 de receitas ordinárias e,319:624 de extraordinárias.
Comparando o total arrecadado em 1950 com iguais verbas de 1948 e 1949, verifica-se que se cobraram a menos, respectivamente, 616:064 e 560:928 contos.
Vêm, portanto, decrescendo os réditos do Estado, o que é importante, quando a actual conjuntura mesmo que se considere apenas o quadro nacional- carecia de maiores rendimentos para fazer face a imperiosas necessidades, sempre crescentes. Juntemos-lhe o que resulta da situação internacional e teremos o quadro real ante os olhos.
Se confrontarmos as receitas ordinárias apenas relativas a cada um daqueles anos encontraremos que em 1950 se cobraram a mais 397:047 contos que em 1948 e mais 135:915 que em 1949.
Comparando agora as receitas extraordinárias, verifica-se que em 1950 se cobraram apenas 319:624 contos, contra 1.332:735 em 1948 e 1.016:467 em 1949.
A grande baixa da cobrança global tem sua origem na receita extraordinária, e, se se não verifica maior desnível, é pela circunstância de a receita ordinária ter tido um acréscimo da ordem dos 136:000 contos.
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Vejamos agora como se comportaram as despesas: a ordinária elevou-se a 4.034:459 contos e a extraordinária a 1.081:097, o que permite, em confronto com a receita, verificar que se pagaram de despesas extraordinárias 761:473 contos, saídos do saldo entre as receitas e as despesas ordinárias.
O quadro seguinte é explícito:
Contos
Receitas ordinárias ......... 4.820:519
Despesas ordinárias ......... 4.034:459
Diferença para mais . 791:060
Receita extraordinária....... 319:624
extraordinária .............. 1.081:097
Diferença para menos..... 761:473
As contas foram fechadas com um saldo positivo de 29:587 contos.
A verificação ido saldo positivo é pouco para nos dar tranquilidade quanto ao futuro. A forma como se realizaram as despesas extraordinárias revela grandes dificuldades para o prosseguimento de uma obra que se baseou sobre uma euforia de rendimentos que deixaram de existir.
Todos os gastos do Justado têm de ser subordinados às receitas se se quiser manter o equilíbrio das contas, como tem acontecido desde que se iniciou a restauração financeira. No entanto, quer se queira, quer não, há que verificar um desvio em relação ao programa rígido que o Ministro das Finanças Doutor Oliveira Salazar traçou na sala do Conselho de Estado, em 27 de Abril de 1928, no acto de posse daquele cargo. Não será descabido recordá-lo:
a) Que cada Ministério se compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que lhe seja atribuída pelo Ministério das Finanças ;
b) Que as medidas tomadas pelos vários Ministérios, com repercussão directa nas receitas ou despesas do Estado, serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças;
c) Que o Ministério das Finanças pode opor o seu veto a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinária e às despesas de fomento para que se não realizem as operações de crédito indispensáveis;
d) Que o Ministério das Finanças se compromete a colaborar com os diferentes Ministérios nas medidas relativas a reduções de despesas ou arrecadações de receitas, para que se possam organizar, tanto quanto possível, segundo critérios uniformes.
Sr. Presidente: o relator da Comissão de Contas Públicas desta Assembleia há anos que, com clareza impressionante, vem chamando a atenção do Governo para a política de gastos, para a forma como se aplicaram os saldos de gerências e o produto de empréstimos. Se é certo que as contas têm sido sempre aprovadas, não é menos certo que se tem feito notar que se alargou bastante o âmbito do que deve ser entendido, pelo que prescreve o artigo 67.º da Constituição, que diz:
O Estado só pode contrair empréstimos para aplicações extraordinárias em fomento económico, amortização de outros empréstimos, aumento indispensável do património nacional ou necessidades imperiosas de defesa e salvação pública.
Passada a euforia, que para tantos era a consequência do aumento efectivo do rendimento nacional, apareceu a primeira estimativa deste em apêndice ao parecer sobre as Contas Gerais do Estado de 1949. Estimava-se para 1950 uma capitação de 4.400$. Tornou-se então mais evidente para todos como tinha sido imprudente o dispêndio de quantiosas verbas em obras fracamente reprodutivas, ou mesmo apenas de significado sumptuário.
E sabido que em meados de 1949 foi necessário decretar medidas restritivas, que são visíveis nas contas de 1950, que incluem despesas referentes à gerência de 1949.
Não se negam, evidentemente, vantagens às grandes obras que transformaram o aspecto do País, de norte a sul.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - São tantas e tão evidentes, algumas tão grandiosas, que ficam para sempre a atestar a época de um despertar, depois de um adormecimento tão longo, que tinha permitido uma conformação generalizada, com o círculo vicioso em que se entrara, de não haver progresso por não haver meios que o permitissem e não haver meios por não haver fomento que os produzisse. O que se põe em dúvida é se a ordem de prioridade seguida teria sido a mais necessária ao interêsse nacional.
Ninguém esqueceu ainda as dificuldades que surgiram em 1950, e a sua influência na utilização de créditos, que tão profundas amarguras causaram em todos os sectores da vida nacional. Ressentiu-se o ritmo das obras do Estado e das autarquias locais; as actividades privadas viram-se, também em sérios embaraços.
Atravessou-se então uma época de mal-estar, que recordou a quem a viveu uma outra época que foi o epílogo da nossa entrada na primeira grande guerra, que só encontrou solução nas medidas promulgadas pêlo Ministro das Finanças Doutor Oliveira Salazar.
A propósito das dificuldades nacionais que encontrou e teve de vencer, disse Salazar na visita que fez ao quartel-general de Lisboa em 9 de Junho de 1928:
Atravessámos uma grave crise económica, cujas principais causas foram a instabilidade monetária, a alta de juros do dinheiro e a escassez de capitais; esta escassez provocada pela desvalorização da moeda, que ao mesmo tempo que opera na sociedade transferências de fortunas consome em geral grandes somas de capitais.
O comércio e a indústria tiveram durante algum tempo disponibilidades enormes; parecia que os comerciantes não acabavam de enriquecer. Todas as empresas pareciam prósperas; afinal muitos vieram a verificar que se tratava de riqueza ilusória e estavam na verdade empobrecidos; tinham distribuído e gasto o próprio capital. Salvaram-se apenas aqueles que em dada altura conseguiram converter os lucros em valores estáveis. E o Estado, que perdeu muito, ganhou também alguma coisa - a diminuição da sua dívida, correspondente ao valor em que lesou os seus credores.
Todos estes males tem sómente uma cura - a estabilização da moeda, e esta é impossível independentemente do problema financeiro.
Da não resolução do problema financeiro e económico resultam, como não pode deixar de ser, graves perturbações sociais.
Há classes que principiam a viver das traslações de valores ocasionadas pela desvalorização da moeda. Ganha o devedor, perde o credor. Elevam-se questões irritantes a um alto grau de acuidade: vede por exemplo a questão entre senhorios e in-
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quilinos. Há uma tal ou qual desorganização familiar, e a corrupção alastra na vida particular e na administração pública.
O problema social é o da distribuição da riqueza, que não tem solução vantajosa sem o aumento da produção. Salvo o caso de parasitismos económicos, que devem ser evitados e corrigidos, só o aumento de riquezas pode favorecer a questão social.
Para que o trabalho possa ser mais bem retribuído é, pois, necessário organizar, intensificar, valorizar a produção e obter nesta mais elevado rendimento; numa (palavra, resolver o problema económico, aumentando as riquezas, para que a todos caiba maior quinhão. Sem isso, a legislação de carácter social e de protecção operária será quase inútil ou poucas vantagens trará.
Sr. Presidente: as palavras que acabamos de reproduzir e que foram pronunciadas há quase vinte e quatro anos, têm hoje completa actualidade e podem servir de guia para se encontrarem os desvios a que já nos referimos.
Restauraram-se, é certo, as finanças, mas a economia não se restaurou, ou pelo menos não se aproveitaram os meios que já houve à disposição para se assegurar o aumento da riqueza nacional, que é absolutamente necessária para se elevar o nível de vida e, consequentemente, melhorar o problema social. É certo que este se não resolverá apenas por meios materiais, mas o outro aspecto não cabe no âmbito da aplicação dos dinheiros públicos; é de outra ordem, embora com ele também valesse a pena, e bem, gastar alguma coisa.
Deve tirar-se mais uma vez a conclusão de que o País não se pode entregar a largas despesas que não sejam de carácter reprodutivo sem que a sua economia esteja na verdade fortalecida, pois episódicos aumentos das receitas públicas não são garantia suficiente e corre-se o risco de que se desvirtue a verdadeira causa do abrandar do ritmo dos trabalhos iniciados ou anunciados e se leve à conta de inviabilidade o sistema político. Mas ainda isto não é tudo, e o que mais importa é a influência que tem sobre as gerações futuras.
Não se pode esquecer - e ainda há pouco foi demonstrado nesta tribuna - que a população continua a crescer em ritmo muito superior ao da produção de bens de consumo e do aumento da riqueza nacional. Com uma população acrescida os problemas sociais hão-de necessariamente complicar-se e as medidas já tomadas para a colonização interna e ultramarina mostram-se insuficientes.
Há que reconhecer que se perdeu muito tempo e se gastou muito dinheiro que poderiam antes ter sido aplicados em fomentar riqueza que facilitaria a colocação do nosso excesso demográfico. Não vale a pena insistir, a não ser para que da lição se colha algum proveito.
Portugal continua a ser um país essencialmente agrícola, mas em que as condições agro-climáticas ciclicamente são desfavoráveis. Mas da terra se vivia e só da terra quando abrimos as rotas marítimas que nos deram as glórias que o Épico cantou e assombraram o Mundo.
Éramos então poucos, como poucos fomos durante o tempo em que houve terras para conquistar ao árabe. Lentamente fomos aumentando e quando as especiarias se transformaram em ouro, por milhares, em cada ano, demandávamos o lonquínquo Oriente. Na mira do ouro, das pedras ou das especiarias, que tudo ouro era, ou ouro valia, abandonávamos a terra, conquistada com tanta glória e tanto sangue. Nas fúrias dos mares revoltos deixámos vidas e fazendas, primeiro nos caminhos da lendária índia, depois no do auspicioso Brasil, que el-Rei D. João VI, com a sua presença e a sua corte, valorizou.
Para se chegar ao apogeu, o grande Infante isolou-se no árido promontório, debruçado sobre o mar, a tentar desvendá-lo, a procurar arrancar-lhe os segredos. Não lhe chegou a vida para poder receber os louros da floria, mas também não viveu a época da decadência, atávamos reduzidos a bem poucos para podermos segurar a vastidão que tínhamos descoberto e senhoriado. Mais depressa ido que as tínhamos conquistado, delapidámos riquezas imensas, e, com as riquezas, foram-se as fontes.
depois, mais tarde, principiámos a aumentar, e em menos de um século no último- dobrámos a população do continente e ilhas. Vivemos na mesma faixa continental, agora que somos cerca de 9 milhões, com a mesma terra para nos alimentar como quando éramos apenas 2 milhões de almas; a terra, que é a mesma, menos a que, por virtude da erosão, os rios carrearam para o mar, continua ciclicamente a ser ingrata ou a desfazer-se em abundantes colheitas, como prémio pelo esforço heróico doa que a tratam, a trabalham, a acarinham.
E da terra que ainda hoje vive mais de metade da população portuguesa do continente, e é à terra que o fisco vai buscar uma alta percentagem do total que arrecada em cada ano. Por estas duas circunstâncias, importa que mais uma vez nos detenhamos no seu exame.
Os problemas sociais em Portugal, quer se queira, quer não, só terão possibilidade de se desagravarem quando a maior parte da população vir elevado o seu nível de vida, e a maior parte é a que anda ligada directa ou indirectamente à terra.
Verifica o relator das contas públicas, como já o fizera em 1949, o lento progresso nos rendimentos colectáveis rústicos e o consequente fraco aumento de contribuição predial rústica.
Outro tanto se não observa no que diz respeito à contribuição industrial, que vem aumentando razoavelmente.
Nos concelhos já cadastrados verifica-se um aumento substancial dos rendimentos colectáveis. São vinte e dois os concelhos já em regime de cadastro, tendo havido aumento de rendimento colectável em vinte e diminuição em dois. Os aumentos traduzem-se em percentagens que variam entre 19,93 em Almodôvar e 233,74 em Mértola. As diminuições verificaram-se em Cascais e Oeiras, respectivamente de 25,77 e 20,32 por cento em relação ao rendimento das antigas matrizes.
As matrizes cadastrais principiaram a funcionar em 1944 e os concelhos onde elas já funcionam viram aumentar o rendimento colectável em 80,46 por cento, correspondentes a 63:063.752$. Por outro lado, em outros vinte e oito concelhos procedeu-se à avaliação geral da propriedade rústica, subindo, em consequência, o rendimento colectável em 57,4 por cento, representando 56:236.732$.
Não obstante estes aumentos consideráveis, como já se disse, o progresso da contribuição predial rústica é bastante lento, pois entre 1938 e 1950 apenas rendeu mais 23,42 por cento.
Desejaríamos que os aumentos do rendimento colectável correspondessem, na verdade, a uma valorização efectiva da propriedade privada, mas julgamos que se não trata verdadeiramente de uma maior valia em consequência de maior produtividade, que é o que interessa atingir.
Por uma determinação dos respectivos valores, feita por métodos diferentes, subiram os rendimentos colectáveis, mas o cadastro geométrico em si não aumenta o valor absoluto da propriedade rústica.
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Para o físico resulta, não há dúvida nenhuma, uma melhoria ; para o proprietário, um aumento dos encargos fiscais na contribuição predial rústica, que vem a reflectir-se também mo imposto sucessório, no imposto de sisa, nas cobranças para a Casa do Povo e grémio da lavoura e ainda nos adicionais para as autarquias locais. Na verdade a terra não produz mais e a descapitalização a que a lavoura tem estado submetida, pela política de preços dos produtos da terra e da pecuária, ocasiona largas perturbações na economia do lavrador, que tinha a sua vida montada dentro daquilo que considerava o seu rendimento líquido, agora muito reduzido por aqueles factores.
Excluem-se, naturalmente, aqueles que, constituindo excepção, formam uma minoria, que é a que dá nas vistas pelos seus gastos fora do meio rural.
E não se deve esquecer que os preços que servem de base para a determinação dos rendimentos colectáveis, em grande parte, estão muito abaixo dos do mercado. Se assim não fora, os encargos seriam verdadeiramente incomportáveis.
O cadastro tem em vista uma avaliação técnica que deverá resultar em maior justiça e, portanto, melhor posição moral para o fisco. Mas os resultados práticos serão, na verdade, realmente menos empíricos que as avaliações feitas a olho apenas e segundo o critério pessoal dos avaliadores?
Conhecemos de perto um caso que ilustra razoavelmente a resposta a dar àquela pergunta.
Trata-se de duas herdades, em concelhos diferentes mas vizinhos, que distam cerca de 6 quilómetros e pertencem ao mesmo proprietário.
A herdade A tem uma parte de bom barro, foi classificada toda ela em terra de 3.ª classe, da classificação do concelho a que pertence. A herdade B não tem barro, são terras mais leves, com alguma pedra, que foi classificada parte em 2.º e parte em 3.ª classe, da classificação do concelho onde se encontra. A herdade A tem a superfície de 191 ha,10 e o rendimento colectável de 21.213$; a herdade B tem a superfície de 118ha,44 e o rendimento colectável de 21.836$.
Pela avaliação cadastral, a herdade A tem mais 72ha,66 e um rendimento colectável inferior em 623$ que a herdade B. Poderia muito bem assim suceder; porém, a herdade A foi em todos os tempos reputada melhor e sempre valeu mais que a herdade B. Em avaliação recente, por práticos, para fins de uma partilha amigável, à herdade A foi atribuído o valor de 3:200 contos, enquanto que à herdade B foi atribuído apenas o valor de 2:000 contos.
O falecido proprietário não se sentiu lesado pela contribuição predial rústica que pagava. Os novos proprietários é que sentem o embaraço para a partilha, visto que os encargos da herdade A, sub avaliada para o fisco, tem uma maior valia, pela redução dos encargos fiscais.
Haverá erro na determinação dos rendimentos colectáveis?
A anomalia resulta de que não há relação entre, as courelas-tipo de concelhos diferentes. Se se fizer o confronto entre herdades do mesmo concelho, é possível que não haja diferenças a assinalar, mas entre concelhos diferentes o caso que apresentamos é típico.
Já que nos ocupamos de anomalias cadastrais, vale a pena referir uma outra, que também é importante, embora de natureza bem diferente. Um indivíduo possui o domínio útil de um prédio rústico sobre o qual incide um foro com laudémio de vintena. Comprou o prédio confinante, que era livre e alodial. Na matriz velha existiam dois artigos diferentes, que correspondiam a registos difere ates na respectiva conservatória. O cadastro, uma vez que se tratava de dois prédios do mesmo proprietário, confinantes por um dos lados, unificou-os e actualmente há na matriz apenas um prédio, que corresponde à soma dos dois antigos. Ambos estão descritos na conservatória, mas o prédio novo não o está.
Se amanhã o seu proprietário quiser vender o prédio tal como se acha inscrito na matriz, quando o comprador for pagar o laudémio ao senhorio directo, este, se for pessoa séria, terá grande dificuldade em cobrar o laudémio, que neste caso é de 5 por cento sobre o valor de parte apenas do actual prédio, que se acha confundida no todo. Se não for sério, limita-se a cobrar a referida percentagem sobre o todo, lesando necessariamente o comprador e futuro enfiteuta.
Sr. Presidente: segundo os números publicados no parecer a que nos vimos reportando, diminuiu o número de prédios rústicos em catorze distritos e aumentou em oito. Poderá considerar-se que se está em presença de uma maior concentração? Não conhecemos elementos oficiais onde o fenómeno possa ser estudado; no entanto, ele é de particular importância, especialmente quando se trate de concentração de grandes propriedades, e por isso mesmo julgamos de vantagem que estatisticamente haja elementos para determinar a natureza das alterações que vão ocorrendo.
Como já vimos, nos concelhos já cadastrados baixou o número de prédios, mas, na realidade, mais não aconteceu que acertar as matrizes com o que de facto já existia; transmissões que não estavam regularizadas e que passaram a estar e ainda unificações de prédios confinantes, que em certos casos não deveriam ter sido agrupados.
A concentração, aconselhável onde a propriedade está muito dividida, só pode trazer vantagens para constituir unidades de exploração com significado económico, que terá benéficos efeitos no campo social. Estas vantagens são grandes onde se faz cultura intensiva, onde há água que a torne possível.
Nas regiões onde se cultiva extensivamente porque não há água, a propriedade muito fraccionada tem também grandes vantagens e de perto conhecemos alguns concelhos do distrito de Beja onde existem grandes áreas muito fraccionadas. O concelho de Cuba é característico, ocupando esta propriedade cerca de 25 por cento da sua área. É um dos concelhos mais pobres do distrito e sempre temos filiado a pobreza existente na divisão excessiva da propriedade, que, é bom repeti-lo, é explorada em sequeiro.
Na sua maioria mais não são que um mealheiro de salários dos seus proprietários, que, nos anos pouco favoráveis, nem sequer sào capazes de restituir o valor do trabalho acumulado durante o ano. Pela sua exiguidade não permitem a exploração de pecuária e portanto toda a valorização é impossível. Se a água para rega não chegar àquele concelho, por forma a transformar a natureza da exploração, seria possivelmente de vantagem que os espíritos fossem sendo preparados para um emparceiramento que permitisse uma exploração de agro-pecuária com significado económico. É possível que estas palavras surpreendam muitos por se referirem a uma região do Alentejo, onde se presumem em geral apenas grandes herdades e grandes riquezas.
Sr. Presidente: não possuímos dados que nos habilitem a estabelecer separadamente o número de contribuintes da contribuição predial rústica e urbana, o que dificulta em certa medida o estudo da evolução de cada uma destas propriedades. Importaria conhecê-lo, visto que nos pequenos aglomerados rurais se continua a verificar falta de habitações e o número destas parece com lógica não poder aumentar, porque, em consequência do baixo nível de vida das populações rurais, as rendas tem naturalmente de ser baixas e não animam a construção civil, que não vê possibilidade de rendimento compensador ao capital investido, acrescendo a circuns-
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tância de que a maioria dos prováveis locatários, dada a conhecida instabilidade e baixo nível dos salários, não assegura um regular pagamento da renda.
Entre 1936 e 1950 o número de contribuintes rústicos e urbanos aumentou de 304:370. O número de prédios urbanos aumentou, nos distritos do continente e ilhas, entre 1936 e 1950 de 165:641 prédios. Ao contrário, no mesmo espaço de tempo, o número de prédios rústicos baixou de 595:989 unidades.
Como atrás dissemos, não se pode concluir por uma concentração da propriedade rústica. Por outro lado, não se pode perder de vista que a legislação promulgada entre 1360 e 1863, extinguindo os morgadios e vínculos, vem exercendo lentamente a sua acção e que as transmissões por mortes ocasionando uma partilha igual por todos os filhos, levará necessariamente a uma mais rápida divisão e ao aumento do número de contribuintes.
A esta divisão natural contrapõe-se, hoje como em todos os tempos, um reagrupamento resultante dos casamentos e de aquisições por título oneroso. O que resulta dos casamentos não vale a pena ser analisado; será aquilo que tiver de ser. Outro tanto não acontece com as transmissões por compra, que merecem alguma análise, pelo menos no que respeita a possibilidades.
Por mais de uma vez nesta tribuna temos procurado dar o nosso contributo para o estudo das dificuldades que avassalam a economia alentejana; sem o propósito de nos repetirmos, mas porque os problemas se mantêm , sem solução e se não vislumbra ainda a abertura dos caminhos que a ela poderão levar, continuamos, com a teimosia própria do homem que na terra luta com a Natureza, a tentar dar algumas achegas, convencidos, como estamos, de que é esse o nosso dever.
Retomemos, portanto, o fio das nossas considerações.
Quem pode comprar terras? Apenas aqueles que disponham de meios para tal ou de crédito disponível para esse fim. Estes últimos, antes de resolverem um investimento em propriedade rústica, terão de verificar se o rendimento do prédio em vista é capaz de assegurar o pagamento da amortização de capital e juros, pois de outra forma nunca poderão solver o encargo assumido, a não ser que de outras fontes tenham rendimentos que facilitem a amortização.
E certo que se obtém capital amortizável em dez ou mais anos e que o rendimento do próprio prédio e o proveniente de outros bens podem assegurar a amortização do empréstimo contraído e portanto a viabilidade da operação.
Sabe-se, pelo crescente recurso ao crédito, que se conhece, embora em parte apenas -visto que a banca particular é quase muda e quando fala é nos tribunais, em execuções-, que a lavoura se empenhou, em consequência de causas várias, repetidas vezes expostas nesta tribuna por muitos Srs. Deputados e em várias épocas. Sabe-se que tiveram de ser concedidas moratórias, porque foi oficialmente reconhecida a impossibilidade de pagar nos prazos previstos; sabe-se que foram postas restrições na utilização anual dos créditos da Campanha do Trigo, tanto no montante do crédito a cada interessado como no alargamento a outros novos necessitados que as circunstâncias foram avolumando.
Nada disto se teria dado se na verdade não tivessem surgido graves dificuldades na actividade agrícola. A natureza aleatória da exploração, a repetição anual dos mesmos riscos, leva o homem da terra a um conservantismo que constitui posição diametralmente oposta a largas iniciativas para obras de fomento com capital obtido a crédito. A própria incerteza dos resultados da exploração leva quando muito a moderada utilização e é necessário que haja uma causa imperiosa que obrigue. Em conclusão, a grande parte dos capitais utilizados não foi para obras de fomento, não foi para novas aquisições, foi apenas para continuar a viver, para sustentar o vício de fazer produzir a terra. A maioria portanto dos que a exploram não tem condições de há muito para alargar a exploração em terras próprias.
Fica a minoria, entre os que exploram a terra, que, como em qualquer outra actividade, existe para demonstrar que são os únicos que se podem permitir um alargamento do seu nível de vida, enquanto a maioria com dificuldade vegeta. Entre esta minoria há, decerto, quem possa comprar terras, quem possa alargar a sua actividades em terras adquiridas por compra.
Reduzidos, como já estão, a uma minoria, já é possível fazer o seu estudo, e este importa que se faça, para evitar confusões que têm ocasionado o aviltamento da vida da grande maioria dos produtores agrícolas, excluindo mesmo aqueles muitos milhares que se não bastam a si próprios.
É hoje possível fazer a prova de quanto vimos afirmando; interessa mesmo que se faça, pois sobre esta prova se poderiam lançar os alicerces de uma nova construção jurídica. O imposto complementar, lançado sobre declarações dos interessados e devidamente comprovado, como hoje é, fornece elementos completos. Por ele se pode saber quais os grandes lavradores que apenas vivem da lavoura e aqueles que têm outras importantes fontes de rendimento, que em tantos casos servem para cobrir os prejuízos dos anos deficitários.
Talvez este estudo levasse finalmente a compreender que muitos dos automóveis que lavradores possuem, quando de preços que ofendem tanta gente que não vive da lavoura, não foram pagos com o rendimento da terra, mas sim de outras proveniências.
Tanto no campo social como no económico estamos longe de ter conseguido os progressos que se desejavam e que o aumento demográfico exige que se alcancem quanto antes. Falhou-se, não por falta de vontade de acertar, mas por falta de bases suficientemente fortes e por se ter partido de certos pressupostos que não correspondiam à realidade.
Nesta magnifica urbe em que se transformou a velha capital, do Império -graças ao Fundo de Desemprego e a muitas outras facilidades obtidas de outros fundos - ainda perdura a ideia de que, na zona do País a que nos reportamos, «alentejano» é sinónimo de «rico» e que «herdade» significa «latifúndio» e que este está na base dos males sociais que a época que vivemos obriga a resolver.
Nada menos verdadeiro, ou, pelo menos, em quantidade tão diminuta, que nem chega a valer a pena considerar para medidas de correcção, visto que as sucessivas transmisões por morte as ocasionarão. Mais ainda, estamos em absoluto certos de que toda a divisão feita o régua e esquadro em repartições, tendo como base uma determinada capitação em hectares, levará à mais desastrosa das situações, como já se verificou na serra de Mértola e em outras tentativas.
E a propósito de sugestões que têm vindo a lume, não podemos deixar de fazer breve referência ao artigo «As crises do Alentejo» assinado por Rusticus, em Brotaria, vol. LII, fasc. 5, p. 590, de Maio de 1951.
Ao seu autor desejamos endereçar os maiores louvores, pelo que transparece de bons desejos, para que se obtenha uma solução justa, verdadeiramente cristã. Não é este o momento próprio para uma apreciação completa do vasto problema tratado, mas algumas referências vêm a propósito daquilo que está no nosso pensamento.
Recortamos a seguinte passagem:
E um facto que as condições climatéricas e geológicas do Alentejo exigem, em terrenos de sequeiro, o regime da grande propriedade. Mas uma
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coisa é o regime de grande propriedade e outra é o regime de propriedade excessiva. Ora, em grande parte da província existe, infelizmente, o regime de propriedade excessiva.
No distrito de Portalegre, metade da grande propriedade - acima de 60 hectares - está nas mãos de noventa e seis pessoas. E essa metade da grande propriedade corresponde a 32,7 por cento da superfície da propriedade total, não excluindo que esses noventa e seis proprietários possuem muitas vezes outras parcelas de terreno inferiores a 60 hectares.
No distrito de Évora, 43,4 por cento da sua área pertence a cento e cinquenta e um proprietários. Nos dois distritos, 518:092 hectares (área pouco menor que o distrito de Portalegre) estão divididos por duzentos e quarenta e sete proprietários (que certamente possuem também propriedades inferiores a 60 hectares) o que dá, para cada um, a média de mais de 2:000 hectares. A lavoura queixa-se, em geral, da crise agrícola. Entretanto subsiste, entre muitos dos seus componentes, o que alguém chamou uma verdadeira fome de terra.
Tal orientação não pode manter-se. É necessário enveredar pelo caminho da desconcentração da grande propriedade agrícola.
Sr. Presidente: reconhece o autor que no Alentejo as condições agro-climáticas exigem o regime da grande propriedade, mas discorda da existência daquilo que classifica como a propriedade excessivas.
Não sabemos o que significa propriedade excessiva, pois a classificação é apenas quantitativa e não está referida a qualquer unidade económica ou social. Pela parte transcrita, e sem pretendermos, truncando o artigo, dar-lhe interpretaçâo diferente daquela que o seu autor lhe quer emprestar, só podemos referir a ideia de quantidade à mencionada «fome de terra ».
Na tendência cada vez mais generalizada de vidas estandardizadas e com planificações sistematáticas que põem em risco a existência do homem com personalidade que o distinga do seu semelhante e ainda da máquina, é possível que se possa, sem mais cerimónias, falar em quantidade de terra excessiva pela simples alusão a hectares.
Partindo do princípio constitucional de que a terra tem uma função social, se o seu proprietário dela fizer o uso conveniente, isto é, se por muito grande que ela for a explorar completamente, procurando através de culturas racionais, empregando os processos da moderna ciência agronómica, utilizando a máquina no possível para baratear e o braço do homem, respeitando a sua dignidade, nada há que possa levar à conclusão de propriedade excessiva.
As grandes áreas na posse de um só proprietário podem ter significado diferente, segundo o total for uma só propriedade ou vários prédios, ligados ou afastados, e a distância a que se encontrem.
O exame das matrizes, quando feito sem a presença da planta cadastral, nada diz, a não ser o total do rendimento colectável e dos hectares possuídos.
Aceitamos a inconveniência económico-social do latifúndio, mas até onde vão os nossos conhecimentos sobre a divisão da propriedade em Portugal julgamos que os latifúndios não são de considerar, a não ser no distrito de Castelo Branco, embora nos faltem elementos como os que só o cadastro pode fornecer para uma ideia clara e definida. Ora o cadastro do distrito de Castelo Branco ainda está por fazer.
O autor do artigo a que nos reportamos diz, e a nosso ver muito bem, que em terrenos de sequeiro é necessário o regime da grande propriedade. Por outra palavra, enquanto a exploração tiver de se fazer com culturas dessa natureza, não há possibilidade de parcelamentos, a não ser em casos muito especiais, mas esses por certo serão tão poucos que não poderão satisfazer a fome de terra.
O argumento da fome de terra, salvo o devido respeito pelo significado em que foi aplicado, não é corrente no Alentejo, pois fome de terra tem todo aquele que nela nasceu, que lhe conhece por experiência própria a produção avara ou pródiga. Todos têm fome de terra, principalmente quando os anos correm favoráveis e a política de preços é animadora desta ingrata actividade.
Tal como o marítimo, tal como o pescador, que não toma aversão ao mar porque nele deixou o pai ou o irmão e a fazenda; também o homem da terra quando se deixa por ela escravizar é incapaz de lhe tomar aversão. Não sente fome de terra o absentista, mas sim o pequeno, o médio e o grande proprietário que explora directamente, o rendeiro, o parceiro e o seareiro.
Admitimos como justo o objectivo de tornar a terra acessível a um maior número, como maneira de fixar gente à terra, de contrariar o urbanismo, mas com significado económico-social, e não apenas para conseguir teóricos proprietários; proprietários que vejam da sua actividade um resultado compensador do esforço e capital aplicado, e não vergados por uma política de preços que se abre na medida apenas em que é necessário para que a actividade não estiole de vez. E necessário partir de realidades, e não de meras concepções teóricas, que a prática se encarrega de desmentir.
Todo o objectivo de melhoria social tem de ter uma base económica, mas para não alimentar exigências desmedidas, e portanto impossíveis de satisfazer, há que admitir a existência de uma preparação, que é espiritual. Sem esta última nunca se terá conseguido o equilíbrio que se procura.
A área em hectares pouco ou nada diz, mesmo quando seja a média de 2:000, imputada aos felizes proprietários dos distritos de Évora e Portalegre. Para que o facto tenha algum significado é necessário que se conheça a sua produtividade média; então sim. Até lá pouco significa uma indicação de área.
Salvo o devido respeito pela opinião que vimos comentando, não será necessário enveredar por aqueles difícies caminhos.
As culturas de sequeiro não são da escolha do lavrador ; são o que as sementes conhecidas consentem na terra alentejana, com o clima do Alentejo. E cultura extensiva porque não há água que baste para a transformar e ainda porque a produção de matéria orgânica também é insuficiente para tornar possível a transformação de grandes áreas em cultura intensiva.
Há, portanto, dois problemas básicos para a transformação da cultura extensiva em intensiva: água e matéria orgânica. Do custo de cada um destes elementos fundamentais depende a transformação, que se torna imperioso se realize antes de se poder pensar em resolver problemas sociais. Para conseguir estes objectivos é ainda necessário que se considere a necessidade de energia barata.
Em seguida vem um problema não menos transcendente, que é o da educação, que permita a adaptação das populações habituadas- ao sequeiro para se aclimatarem ao regadio. Este importa ainda uma transformação do regime alimentar, que anda directamente ligado à produção local de bens da mesma natureza.
O alentejano do sul vive de pão de trigo, azeite, queijo, azeitonas, alguma carne fresca e ensacada, toucinho, legumes secos e pouco mais. Não é esta a ali-
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mentação da Beira ou do Minho. Ao norte do Tejo o caldo verde é alimento fundamental, ao sul não se consome.
Sr. Presidente: pessoas responsáveis, que não nós, afirmam há anos, em estudos que se vêm aperfeiçoando e que têm visto a luz da publicidade, pelo menos, em apêndices aos pareceres sobre as Contas Gerais do Estado, que há possibilidades de aproveitamento de águas, hoje desperdiçadas e a causar estragos, que poderiam transformar bastante uma parte do Alentejo, onde se prevê a possibilidade de pôr em regime de regadio 98:000 hectares de terrenos ricos, dos quais 64:000 em terras de Beja e os restantes em Sousel, Vimieiro, Arraiolos e Campo de Mira, em Évora.
Julgam os técnicos que se tornam necessários para a rega destes terrenos 765 milhões de metros cúbicos de água, que teriam origem, em parte, desviando excedentes do Tejo e aproveitando as bacias hidrográficas do Sorraia e do Dejebe, admitindo ainda a possibilidade de utilizar para os terrenos de Beja água do Guadiana.
Na impossibilidade de discutir tão complexo problema, mas confiando neste plano, mais que na famosa irrigação do Alentejo, admitimos, sem repugnância, antes com entusiasmo, que os 64:000 hectares de regadio, possível nas terras de Beja, modificariam substancialmente o problema crucial do Baixo Alentejo.
A melhoria de rendimento desta importante área, quando regada, a maior fixação de rurais mais bem pagos e com menor intermitência de dias de trabalho, levaria a uma divisão da propriedade, que hoje se não vê possível no sequeiro, e sem imposições que em determinados casos tomariam o aspecto de odiosas.
Sr. Presidente: não queríamos fechar esta longa dissertação com uma ideia pessimista sobre o que transparece das contas de 1950, que não são realmente animadoras no aspecto de cobranças ,que assegurem ao Estado o prosseguimento em ritmo acelerado do que está principiado para melhorar a economia nacional e consequentemente favorecer o problema social.
É impressionante a série de fundos em que assenta a nossa economia e interessa saber se eles poderão continuar a ser alimentados, ou se, de tão fundos que alguns vão estando, não se transformarão em precipícios onde se afunde a vasta obra financeira realizada.
Por outro lado, continua-se sem um novo plano de fomento, que bastas vezes já tem sido reclamado nesta tribuna, o qual, fora de dúvida, se não pode dispensar, para podermos caminhar com critério definido.
Na introdução ao Decreto n.º 38:586, com a clareza que lhe é peculiar, o Sr. Ministro das Finanças aborda francamente este importante problema e dá-nos uma esperança de que em breve estará concluído o novo plano de fomento. Mais ainda: vem a indicação de que o futuro plano compreenderá também empreendimentos no ultramar, o que satisfaz necessariamente todos os Portugueses e é uma esperança de coordenação entre as economias metropolitana e ultramarina.
Já nesta tribuna tentámos mostrar que o País não é pobre em riquezas naturais, que não temos sabido ou podido aproveitar, e, em consequência, continuamos com fracas receitas para o Estado e não logramos aumentar o nível de vida, em especial nas classes rurais, que são as que sempre sofreram mais duramente, mas sempre também com o maior estoicismo.
Esperamos, confiadamente, que o novo plano de fomento possa, embora mais modesto e de menor duração, enveredar abertamente pelos caminhos por onde se possa fortalecer a economia nacional. Confiamos em que o Sr. Ministro das Finanças, que nesta Assembleia deu provas evidentes da sua forma de pensar em
matéria económica, possa concorrer largamente para que se alcance aquele objectivo. Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Pacheco de Amorim: - Sr. Presidente: um longo e pertinaz complexo de doenças trouxe-me, vai para três anos, senão ausente completamento desta sala, pelo menos afastado dos seus trabalhos.
Quis Deus que eu vencesse, pelo menos em grande parte, mais esta crise e readquirisse forças para subir a esta tribuna, a mais alta e a mais difícil a que me tem sido dado ascender.
Disto resultou, Sr. Presidente, ser esta a primeira vez que uso da palavra nesta legislatura, e por isso começarei por saudar V. Ex.ª, Sr. Presidente, com a mais sentida veneração e por fazer minhas quantas palavras de encómio, de respeito e homenagem aqui foram proferidas em honra de V. Ex.ª pelos Srs. Deputados que me precederam no uso da palavra.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Noutros tempos em que a discussão do Orçamento do Estado se fazia ponto por ponto no Parlamento, os Srs. Deputados tinham ocasião de analisar dum modo sistemático a política governamental em todos os seus aspectos.
Agora que a Lei de Meios está reduzida a uma escassa meia dúzia de artigos (e ainda bem que assim é para que possa ser discutida e publicada sem atrasos), é na discussão das contas públicas que a Assembleia Nacional se pode pronunciar sobre esses mesmos problemas, que dantes se ventilavam na discussão do Orçamento. E, aliás, o que vem fazendo o ilustre relator das contas públicas, Sr. Deputado Araújo Correia, nos seus pareceres, tão proficientes, tão sinceros, tão trabalhosos e tão úteis.
Essa mesma orientação está sendo seguida pelos oradores que têm intervindo nestes debates, e eu farei hoje o mesmo, seguirei a mesma orientação, fazendo incidir a minha análise, não sobre todos os pontos importantes das receitas e das despesas, mas apenas sobre um ou outro aspecto que me pareça de maior relevo ou de maior actualidade.
Sr. Presidente: já uma vez pus em evidência nesta tribuna a semelhança formal que há entre b Direito e a Matemática, resultante do facto de ambas estas disciplinas serem estudadas e expostas pelo método dedutivo.
Como ciências de razão, é este o método que lhes é próprio.
E, como tais, não podem admitir contradição interna, isto é, não podem ao mesmo tempo dizer sim e dizer não num mesmo assunto e a um mesmo respeito.
E isto é tão verdade no Direito como na Matemática, quer se trate de ciência pura, quer de ciência aplicada. Simplesmente, à ciência pura basta que não haja contradição interna; à ciência aplicada, não.
A ciência pura requer o acordo consigo mesmo; a ciência aplicada exige também o acordo com os factos, com as realidades do Universo a que diz respeito. Ao Direito puro basta a harmonia interna. O Direito aplicado, ou seja, a legislação, precisa de estar de acordo com a realidade.
No nosso caso: é preciso que as contas públicas estejam legais, que o Estado não tenha cobrado receitas ou feito despesas não autorizadas por lei. Isso é necessário, mas não basta.
Também não é suficiente que as contas públicas apresentem superavit. Nem suficiente nem mesmo necessário,
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embora seja altamente conveniente. O equilíbrio das contas públicas é condição necessária da independência dos governos a respeito da finança.
Necessária, e por isso mesmo altamente louvável. E entre nós, que só tivemos boas contas no tempo dos Afonsinos, e não de todos, porque o último -D. Fernando- foi o primeiro a estragá-las, entre nós não só louvável mas altamente honrosa.
E digamos as coisas como elas são: o equilíbrio das contas públicas durante quase um quarto de século, ainda que mais longe não fosse, bastaria para ficar na história das finanças, não só do nosso pais, mas do nosso tempo, como glória indiscutível dos homens que o conseguiram e das instituições que o tornaram possível.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Em política tudo é discutível, tanto no presente como no passado, com excepção dos factos e principalmente daqueles que se traduzem em números. O equilíbrio das contas públicas é um desses factos indiscutíveis, mas isso não basta para que ele se projecte na consciência nacional com a nitidez que merece.
Para tanto é preciso que o ponhamos bem alto, tão alto que lhe não cheguem nem os ódios políticos nem as antipatias pessoais.
Mas, como dissemos, o equilíbrio das contas públicas, acrescentado à legalidade das mesmas contas, ainda não basta para que sejam julgadas boas no sentido pleno da palavra. É preciso também que receitas e despesas estejam de acordo com as realidades nacionais, isto é, que sejam o que devem ser no ano em que se efectuam. E este o aspecto que vou especialmente focar na minha intervenção de hoje.
Sr. Presidente: toda a conta tem uma data e está por isso vinculada ao tempo. As contas públicas não escapam a esta regra, pois estão integradas no ano económico a que respeitam. Mas não é apenas esta a aderência que as prende ao tempo. Há outra e bem mais significativa. É que as contas públicas são o resultado duma evolução. E é à luz dessa evolução que temos de as apreciar; melhor, só essa evolução nos permitirá penetrar no seu âmago. A evolução das contas e a evolução dos factos a que eles respeitam.
A evolução das contas públicas tem de acompanhar a evolução dos factos, para que não se desenvolvam tensões sociais perigosas. É portanto pela evolução dos factos que temos de começar.
A chamada revolução industrial, iniciada nos fins do século XVIII, teve consequências profundas na vida política, económica e social dos povos cultos e por isso se chama, com propriedade, revolução.
No aspecto demográfico, as consequências imediatas mais visíveis foram o aumento desmedido da população, acompanhado da emigração dos campos para as cidades e da Europa para os países ultramarinos.
Diga-se de passagem que nenhum destes fenómenos era novo.
A revolução industrial apenas os acelerou, dando-lhes proporções que nunca tinham tido antes.
Mas não foi só o número e a distribuição geográfica dos homens brancos que foram alterados pela revolução industrial.
Houve alterações mais profundas e por isso mesmo menos visíveis. Uma delas incidiu sobre a distribuição da população activa pelas profissões, digamos sobre a alteração da estrutura profissional da sociedade, insofismavelmente revelada pelas estatísticas.
Assim, a percentagem da população agrícola, que no começo da revolução industrial se calcula em 80 por cento, foi baixando progressivamente em todos os países cultos. Na América do Norte, que é a nação com estatísticas mais antigas a este respeito, a percentagem da população activa ocupada na lavoura era de 69 por cento em 1840; em 1850 descera para 65 por cento; no fim do século estava em 37 por cento; em 1920 ficara em 27 por cento; em 1940 em 17 por cento, e em 1947 descia a 14 por cento !
Aqui está o que nos dizem as estatísticas no que respeita à população agrícola norte-americana.
Os economistas e, sobretudo, os estatistas (perdoe-mo, Sr.Presidente, o neologismo) dividem as actividades económicas em três sectores, a que chamam primário, secundário e terciário.
No sector primário incluem a agricultura, pastorícia, pesca, caça e silvicultura.
No sector secundário metem as minas, as manufacturas, a construção civil, as obras públicas, o gás e a electricidade. É o sector industrial por excelência.
No sector terciário agrupam o comércio, transportes, funcionalismo, profissões liberais, serviços domésticos e as restantes actividades que produzam bens não materiais.
Pois bem, mostram as estatísticas norte-americanas que a percentagem da população activa ocupada no sector primário tem baixado sempre, desde 1820, em que era de 72,3 por cento, até 1940, em que descera a 19,3 por cento.
Por sua vez, a porcentagem da população ocupada no sector terciário tem subido sempre: era de 15,3 por cento em 1820 e atingiu 49 por cento em 1940.
No sector secundário, que é o que compreende as indústrias, como já dissemos, as estatísticas norte-americanas revelaram ao economista inglês Colin Clark uma evolução inesperada. A parte da população activa ocupada neste sector, que era de 12,3 por cento em 1820, subiu sempre até 1920, isto é, durante um século, atingindo o máximo de 32,9 por cento, para em seguida começar a descer lentamente até à segunda grande guerra.
Estes números dizem respeito aos Estados Unidos, mas a evolução da estrutura profissional dos povos cultos parece ter sido a mesma em todos eles, tanto quanto as estatísticas permitem conjecturar. Apenas varia a velocidade com que esta evolução se realiza e, por consequência, a data em que a percentagem da população ocupada no sector secundário atinge o máximo.
Assim, no Canadá a percentagem da população activa ocupada no sector primário caiu menos rapidamente do que nos Estados Unidos; e a percentagem da população industrial ainda não chegou ao máximo, segundo parece.
Na Inglaterra a população ocupada na agricultura era já menos de um quarto da população total em 1841.
O máximo da percentagem da população ocupada nas indústrias manufactureiras parece ter sido atingido em 1861. A baixa subsequente foi muito vagarosa.
Infelizmente a falta de estatísticas apropriadas não permitiu a Colin Clark fazer para os outros países o estudo minucioso que fez para a América do Norte; não obstante pôde apurar o suficiente para concluir que a evolução foi e continua a ser em todos os povos cultos no mesmo sentido: baixa de percentagem da população ocupada no sector primário; alta da percentagem no sector terciário, e alta seguida de baixa no secundário.
É claro que a baixa do sector primário não poderá continuar indefinidamente e há-de chegar um momento em que se atinja um mínimo incompressível.
O mesmo sucederá no sector secundário, o que nos leva a admitir, com o economista francês Jean Fourastié, que chegará um dia em que a estrutura profissional dos povos cultos atingirá o equilíbrio, tal como sucedia antes da revolução industrial.
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Reflectindo sobre estes resultados postos em evidência pelo já citado economista inglês Colin Clark em 1940, Jean Fourastié foi levado a atribuí-los a uma causa - o progresso técnico, medido pela produtividade do trabalho humano.
o passo que os povos cultos se iam industrializando, aperfeiçoando os seus meios de transporte e melhorando os processos de fabrico, a produtividade por habitante aumentava. Este acréscimo de produtividade te vê como consequência imediata o aumento da população. E como este foi mais lento do que aquele, o nível de vida aumentou, bem como o volume dos capitais.
Ao mesmo tempo que as nações cultas se enriqueciam de homens e bens, o nível de vida dos seus habitantes subia.
As subsistências e a riqueza, no geral, cresceram mais rapidamente do que a população, ao contrário do que sucedera no passado e do que supusera Malthus. Foi esta a feição mais relevante da revolução industrial.
Todavia este aumento de produtividade não foi uniforme, isto é, não foi igual tem todos os ramos de actividade humana. Dum modo geral pode dizer-se que foi máximo no sector secundário, ou seja nas indústrias; médio no sector primário, que é o sector agrícola, e mínimo no sector terciário ou dos serviços.
Mas isto só dum modo geral, que admite excepções. Por exemplo, antes de 1800, para segar, atar e malhar um quintal de trigo eram precisas três horas de trabalho humano; actualmente bastam dez minutos, ou soja dezoito vezes menos tempo. Grande progresso, apesar de se tratar duma actividade do sector primário.
Por sua vez a fundição de sinos faz-se hoje exactamente como na Idade Média. Nesta actividade, apesar de incluída no sector secundário, não houve progresso.
Os transportes, que estão no sector terciário, ou seja, de progresso mínimo, são dos ramos de actividade onde o avanço se tornou mais evidente.
Estas anomalias levaram Jean Fourastié a propor que as actividades se agrupassem segundo o grau de progresso técnico atingido, ficando no sector primário as de progresso técnico médio; no secundário as de progresso técnico máximo e no sector terciário as de progresso técnico mínimo ou mesmo nulo. O panorama de conjunto não é muito alterado, mas as características de cada um dos sectores ficam definidas com mais precisão e as suas propriedades tornam-se mais acentuadas.
O progresso técnico, entendido no sentido em que Jean Fourastie o definiu, lança muita luz sobre o urbanismo e a emigração para o ultramar, mas ainda não explica tudo. Há nos efeitos da revolução industrial um elemento psicológico com que não contamos ainda e que é também possível pôr em evidência pelo método estatístico. Refiro-me à estrutura do consumo por níveis de rendimento.
Colin Clark, servindo-se de estatísticas norte-americanas, inglesas, alemãs, irlandesas, suecas, canadianas e australianas, fez um quadro muito elucidativo da estrutura média do consumo por pessoa ocupada, segundo os ganhos anuais. Tomou para moeda de conta a unidade monetária internacional, I. U., que se define pelo poder de compra médio do dólar americano no período de 1920-1934. O quadro é o seguinte:
Relação funcional entre os níveis do rendimento real e a estrutura do consumo
[ver quadro na imagem]
Diz-nos este quadro que um trabalhador que ganhe 100 unidades monetárias, digamos, 100 dólares por ano, gasta 60,5 em comida; 7,5 em vestuário; 11 em renda de casa; 7,5 em luz e aquecimento, e 13,5 nas restantes despesas.
Um trabalhador que ganhe 200 dólares por ano, ou mais, gasta mais dólares em todos estes capítulos, mas nem sempre as percentagens correspondentes variam do mesmo modo.
Assim, na série de salários que vai de 100 dólares anuais a 1:200, a despesa com a alimentação sobe sempre, mas a percentagem dessa despesa a respeito dos ganhos desce. Quanto mais um trabalhador ganha, menos gasta em comida relativamente.
É evidente que, se um trabalhador ganhar tão pouco que mal lhe chegue para comer, andará esfarrapado e meterá tudo à boca. Mas, se for melhorando de sorte, chegará um momento em que tratará de se vestir melhor e de viver com mais conforto. Chamaremos a este momento ponto de saturação.
Podemos dizer, pois, que o ponto de saturação do consumo de géneros alimentícios está abaixo de 100 unidades internacionais de rendimento anual por pessoa ocupada.
No que respeita à luz e aquecimento, as coisas passam-se do mesmo modo. A parte da despesa correspondente desce desde 7,5 por cento para o ganho de 100 dólares, até 3,5 por cento para um ganho de 800 dólares. Daí em diante mantém-se a mesma percentagem, pelo menos até ao ganho de 1:200 dólares.
Com o vestuário as coisas passam-se doutro modo. A parte desta despesa, que começa em 7,5 por cento, sobe até ao máximo de 14 por cento, atingido o nível de 500 dólares; fica a mesma até ao nível de 600 dólares; em seguida começa a descer até 12,5 por cento, ao nível de 1:200 dólares.
A saturação neste capítulo da despesa atinge-se ao nível de 500 dólares anuais.
Na renda de casa a percentagem sobe sempre, desde 11 por cento a 15 por cento a que chega ao nível de 1:000 unidades. Mantém-se constante até ao nível de
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1:200 dólares. É possível, e até provável, que em seguida decline.
Destes quatro capítulos da despesa, é a renda de casa o que atinge o ponto de saturação a nível mais alto. A alimentação, a luz e aquecimento, as que mais rapidamente se saturam.
Há, portanto, uma estreita relação entre a estrutura do consumo e o nível dos ganhos. E como esta estruturação dos consumos, pela ordem de urgências das necessidades, é fenómeno de ordem psicológica, o que sucede hoje sucedia também no principio da revolução industrial e deve ter sucedido sempre.
Compreende-se agora que o progresso técnico tenha alterado, não só a estrutura da produção, mas também a do consumo, visto que aumentou o rendimento médio por habitante.
Compreende-se também que fosse o sector primário o primeiro a atingir a saturação, talvez já ultrapassada quando começou a revolução industrial, visto que nele estão incluídas as actividades que fornecem as substâncias alimentícias.
Compreende-se também por que motivo o sector secundário, onde estão incluídas as indústrias manufactureiras e a construção civil, e portanto o vestuário e a renda da casa, tivesse um largo período de desenvolvimento durante a revolução industrial.
Em resumo: saturação no sector primário; expansão no secundário. Consequência lógica: movimento da mão-de-obra do sector primário para o secundário, designadamente da agricultura para as indústrias transformadoras.
E como estas se instalaram de preferência nas cidades, êxodo dos campos para as cidades - urbanismo. E como, por outro lado, o nível de vida subia, por a produtividade por habitante aumentar, maior procura de serviços de toda a ordem e, portanto, expansão do sector terciário, que, por sua vez, tornava o urbanismo ainda mais intenso.
E, quando estes dois sectores em expansão não bastavam para absorver a mão-de-obra que não tinha lugar nos campos, ficava aberto o caminho da emigração para os países de além-mar.
Assim se estabeleceu uma espécie de equilíbrio dinâmico, que só podia perpetuar-se se o Mundo fosse ilimitado.
O rescaldo da primeira grande guerra veio mostrar que o Mundo era finito e que os limites fixados ao expansionismo da revolução industrial estavam atingidos.
Foi o aparecimento do desemprego permanente em Inglaterra, em 1920, e, depois da crise de 1929, em todos os países mais ou menos industrializados, que deu o sinal de alarme.
É moralmente certo que o progresso técnico, consequência do progresso científico, continuará como até aqui, senão com maior intensidade.
A revolução industrial continuará, portanto. Mas para que possa dentro dela haver equilíbrio político e social, condição necessária de todo o progresso, é preciso que a sociedade se adapte às condições criadas por esse mesmo progresso. Se não for possível essa adaptação, o mundo civilizado naufragará num tremendo cataclismo, que o atirará de novo para a barbárie.
Vejamos o que nos dizem a este propósito as estatísticas coligidas por Colin Clark.
No princípio da revolução industrial, dizem as estatísticas, que na América do Norte a mão-de-obra ocupada no sector primário cresceu menos rapidamente do que a população, ao passo que a ocupada no sector terciário tem crescido sempre mais do que proporcionalmente à população. A ocupada no sector secundário cresceu mais que proporcionalmente até 1920 e de então para cá começou a crescer menos que proporcionalmente. Hoje pode dizer-se que metade da população norte americana vive dos sectores primário e secundário e a outra metade vive do sector terciário. Quer dizer: metade da população americana vive da produção propriamente dita e a outra metade vive dos serviços, incluindo neles o comércio e os transportes. E o movimento da mão-de-obra dos sectores primário e secundário para o terciário continua.
O que se passa na América do Norte repete-se em todos os países cultos com maior ou menor intensidade, mas com o mesmo sentido. Nós não escapamos à regra.
A percentagem da população activa ocupada na lavoura e, dum modo geral, no sector primário, será cada vez mais baixa e o mesmo acabará por suceder à ocupada no sector secundário, nas indústrias.
Consequentemente, a percentagem da população activa ocupada no sector terciário, nos serviços, terá de ser, e é, cada vez elevada. Esta tem de crescer mais rapidamente do que a população.
Note-se de passagem que este movimento da população do 1.º sector e do 2.º para o 3.º é independente do aumento da população, porque é exclusivamente devido ao progresso técnico. Ainda mesmo que a população se tornasse estacionária, o movimento interprofissional continuaria: cada vez haveria menos gente ocupada na produção e mais teria de ser ocupada nos serviços até se atingir um novo equilíbrio. Estes os factos, e factos inegáveis, provados pelas estatísticas mais autorizadas do Mundo.
Ora, sendo assim como é, o fenómeno da repartição dos produtos tende a ser profundamente alterado pelo progresso técnico, visto que, sendo nos sectores da produção a mão-de-obra cada vez menor relativamente, cada vez menor será também o seu quinhão no bolo. Se as coisas seguissem pelo caminho da livre concorrência, como sucedeu na primeira fase da revolução industrial, todas as vantagens do progresso técnico redundariam em favor do capital, como então se deu.
Mas supondo mesmo que o capital se contentava com menos lucros e dava à mão-de-obra sempre a mesma percentagem do valor do produto, nem assim cessaria a injustiça, porque os frutos do progresso técnico reverteriam em proveito exclusivo dos produtores de bens materiais, que constituem uma fracção cada vez menor da população.
Ora é da História que o progresso técnico resultou do progresso cientifico e este, por sua vez, não é de ninguém, porque é de todos. É portanto em proveito de todos que devem reverter os frutos do progresso técnico.
Se assim não for, se a repartição desses frutos se não fizer com justiça, privando do quinhão devido grande parte da população activa, os produtos não terão saída por falta de poder de compra das massas e a produção terá de afrouxar ou de destruir os stocks.
Foi deste dilema que o capitalismo não conseguiu sair nunca.
Foi por terem sentido instintivamente esta necessidade que os trabalhistas triunfaram na Grã-Bretenha.
E foi por as não terem compreendido os conservadores, não só na Inglaterra, mas em todos os povos cultos, que de há um século para cá têm sido sistematicamente vencidos pelas esquerdas. Não é impunemente que se fecham os olhos a uma necessidade inelutável.
São pois simultâneos e de certo modo complementares o problema da distribuição dos produtos e o do emprego da população activa, que não pode ter lugar na produção dos bens materiais, mas que tem de o ter no seu consumo.
Ora, no fenómeno da repartição não intervém só o capital e o trabalho.
O Estado tem também um papel a representar e uma parte a receber. É pois o Estado, e só ele, que pode e
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deve restabelecer o equilíbrio da repartição, perturbado pelo progresso técnico.
Só ele pode fazer com que o progresso técnico redunde em proveito de todos, só ele pode tornar justa a repartição e com isso tornar possível o escoamento dos produtos. Nisto estão de acordo neoliberais, socialistas e comunistas. No modus faciendt é que está a diferença.
Sendo fatalidade do nosso tempo que o pessoal ocupado na produção seja uma parte cada vez menor da população activa, que pede o bem comum que se faça do pessoal que sobra?
Evidentemente que se empregue em serviços úteis.
Está arreigado no espírito público o preconceito de que o comércio é uma actividade parasitária. É preciso combater este absurdo.
O comércio desempenha uma função utilíssima, tanto para o produtor, como para o consumidor.
O comércio e os transportes empregam numeroso pessoal e contribuem por isso grandemente para dar trabalho útil a muitos que o não podem conseguir na produção.
São por isso mesmo merecedores da simpatia do público e da protecção do Estado.
De igual antipatia é vítima o funcionalismo, não só cá, como lá fora. E aqui, diga-se de passagem, há certa razão para isso, porque nem sempre nas repartições o público é tratado com as atenções que lhe são devidas.
Mas isso nada fez ao nosso caso.
A verdade é que o desenvolvimento do funcionalismo público em escala mais que proporcional ao aumento da população é uma imperiosa necessidade do nosso tempo em todos os povos civilizados. Mas há funcionalismo e funcionalismo. Funcionalismo útil e funcionalismo inútil.
É do útil que falamos e ainda assim com ordem de preferências quanto às funções.
Ora, entre os serviços públicos contam-se os de saúde, assistência e educação. São estes que estão no alto da escala das utilidades e, consequentemente, os que devem ser desenvolvidos, ampliados, em proporção muito maior do que a da população.
Do que fica exposto se conclui que o progresso técnico, causa eficiente da revolução industrial, não só torna possível, mas exige imperiosamente que as receitas e as despesas públicas cresçam em proporção maior do que a da população.
Se assim não suceder, o escoamento dos produtos far-se-há com dificuldade por falta de poder de compra do público e o desemprego atingirá todas as classes de trabalhadores, principalmente os intelectuais.
Ora vejamos se as receitas e as despesas públicas têm crescido em Portugal nos últimos decénios na proporção devida.
Tomemos, para fixar ideias, o período quê se seguiu à reforma financeira, ou seja de 1930-1931 para cá. Nesta data, a população do continente e ilhas era de 6.825:887 habitantes. Em 1950 está provisoriamente calculada em 8.490:455.
O aumento da população foi, portanto, de 24 por cento. Se o poder de compra da moeda se tivesse mantido constante de então para cá, bastaria multiplicar as receitas e despesas desse ano económico por 1,24 para ter o valor que umas e outras devem ceder, segundo a evolução económica e demográfica do nosso tempo.
Mas a moeda desvalorizou-se e por isso é preciso fazer nova correcção. Para tanto servir-nos-emos dos números-índices dos preços de retalho e por três razões:
l.ª Porque são os preços de retalho os que mais ligados estão ao custo da vida e por isso os que melhor representam o sacrifício pedido à grande massa dos contribuintes;
2.ª Porque dos preços de retalho temos índices que vêm desde 1914 e por meio deles podemos calcular o poder de compra do escudo em qualquer data posterior;
3.ª E, finalmente, escolhemos os preços de retalho porque subiram menos do que os de atacado e damos assim mais força à nossa argumentação.
Ora, o índice médio dos preços dos anos de 1930 e 1931 é de 2:117 em relação ao ano de 1914 = 100 (alimentação, aquecimento e higiene doméstica, no continente).
O índice para 1950 é de 3:756. O aumento foi de 77 por cento desde 1930-1931 até 1950. Para reduzir escudos de 1930-1931 a escudos de 1940 basta multiplicar por 1,77.
Portanto, para reduzir as receitas e despesas de 1930-1931 a 1950 ter-se-á de as multiplicar por 1,24 X 1,77 = = 2,1948, ou seja, por 2,19, números redondos.
Calculado o coeficiente de redução, vamos agora fazer a análise das receitas e das despesas, a começar por estas.
Em 1930-1931 as despesas ordinárias remontaram a 1.755:286 contos. Aplicando-lhes o coeficiente que acabamos de calcular, obtemos o valor de 3.844:000 contos, números redondos.
As despesas ordinárias de 1950 foram de 4.034:459 contos. O aumento sobre o valor calculado foi de 190:000 contos, números redondos, ou seja de 4,9 por cento.
Para maior segurança façamos agora a comparação com o ano económico de 1913-1914, que foi também ano de superavit, o segundo e o último do Dr. Afonso Costa.
A marcha do cálculo é a mesma. Nesta data, a população portuguesa era muito aproximadamente de 6 milhões de habitantes.
O acréscimo até 1950 foi de 41,5 por cento.
O número-índice dos preços de retalho em 1950 em relação a 1914 foi, como já dissemos, de 3:756. Para obter o coeficiente da redução bastará multiplicar 1,415 por 37,56, o que dá 53,1474, ou seja 53,15 aproximadamente.
Ora, as despesas liquidadas no ano económico de 1913-1914 foram de 70:146 contos, que podem tomar-se para despesas efectivas, visto que as despesas anuladas foram relativamente insignificantes.
Multiplicando este montante pelo coeficiente de redução achado, obtemos 3.728:260 contos.
O excesso das despesas em 1950 sobre as, que acabamos de calcular é apenas de 8,2 por cento.
Não deixa de ser impressionante a concordância entre os números calculados, pois que só diferem de 3 por cento, embora se refiram a bases tão distantes, como seja 1914 e 1930-1931, separadas como foram pela primeira grande guerra e pela derrocada económica de 1929.
No que respeita às despesas ordinárias, o aumento, quer o consideremos em relação a 1913-1914, quer em relação a 1930-1931, foi insignificante. Podemos afirmar, sem receio de prova em contrário, que, pelo menos em alguns serviços públicos, o aumento não correspondeu às exigências do tempo, nem no Estado Novo, nem no Estado Velho.
É verdade que parte da compressão das despesas resulta de os vencimentos do funcionalismo não estarem actualizados.
Mas não é só daqui que vêm as economias.
Vejamos o caso da instrução pública, que é talvez o mais clamoroso. Como se vê imediatamente pelo quadro publicado a pp. 85-86 do parecer das contas públicas, respeitante à evolução das despesas ordinárias por Ministérios, aquele que apresenta maior coeficiente de au-
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mento é justamente o Ministério da Educação Nacional. Mostra isto insofismavelmente a especial atenção prestada pelo Estado Novo aos problemas da cultura.
Não obstante, era tal o atraso que de longe vinha, que estamos muito aquém daquele nível próprio do nosso tempo.
Os dois anuários estatísticos publicados pelas Nações Unidas depois da segunda guerra mundial trazem uma inovação muito útil, que é a estatística dos índices culturais utilizáveis, a saber: analfabetismo; estabelecimentos de ensino e seu pessoal docente e discente; consumo de papel de jornal e jornais diários.
No que respeita à percentagem de analfabetos de 10 anos ou mais, o lugar mais baixo é ocupado pela Suécia, com 0,1 por cento. Segue-se a Finlândia, com 0,9 por cento; a França, com 3,8 por cento; a Checoslováquia, com 4,1 por cento; a Bélgica, com 5,9 por cento; a Hungria, com 6 por cento; a Itália, com 21,6 por cento; a Polónia, a Roménia e a Espanha, com 23 e tal por cento; a Bulgária, com 31,4 por cento; a Grécia, com 40,8 por cento; a Jugoslávia com 45,2 por cento.
Por fim vem Portugal, com 48,7 por cento, a mais elevada percentagem de analfabetismo acusada entre os países europeus.
Estamos abaixo dos países balcânicos - Grécia, Bulgária, Jugoslávia.
Na estatística do analfabetismo por classes de idades Portugal ocupa também o pior lugar da escala.
No grupo das idades que vão dos 10 aos 14 anos, e compreende os nascidos entre 1926 e 1930, a percentagem de analfabetos é ainda de 36,7. Estamos muito atrasados neste sector ... É com a maior ansiedade que aguardo os resultados do último recenseamento a este respeito.
Na estatística do consumo de papel de jornal estamos um pouco melhor do que antes da guerra de 1935-1939, com a capitação de lk,200; estamos acima da Jugoslávia (0k,700) e da Polónia (0k,900), mas abaixo de todos os outros países europeus. E há os que gastavam por cabeça 26k,100, como a Inglaterra; 14k,400, como a Dinamarca; 12k,600, como a Suécia; llk,500, como a Holanda; 9k,300, como a Bélgica, etc. Na estatística dos jornais diários nem figuramos.
Isto basta para pôr em evidência o nosso estado de incultura e a insuficiência do nosso ensino primário.
É elucidativo comparar o número dos nossos mestres, alunos e população com o pais que neste particular nos pode servir de modelo - a Suécia:
Ensino primário
[ver quadro da imagem]
Proporções:
c) e a) =7,3% Portugal; 8,7% Suécia.
b) e c) =43,4 Portugal; 20,8 Suécia.
Estes números esclarecem completamento a situação. Não só a frequência escolar é em Portugal bastante inferior à da Suécia, mas ainda por cima cada professor português tem de ensinar mais do dobro de crianças que o colega sueco.
Falemos agora do ensino superior, visto que as estatísticas das Nações Unidas nos não parecem comparáveis no que respeita ao ensino secundário.
Como no ensino superior os dados utilizáveis são bastante incompletos. Todavia, alguma coisa pudemos apurar.
É sabido que a população escolar dos cursos secundários e superiores aumentou vertiginosamente depois da primeira grande guerra em todos os países cultos.
Esta afluência criou para estas escolas embaraços e problemas novos que muitos governos julgaram transitórios, mas que de facto se tornaram permanentes e estão perfeitamente na lógica das consequências do progresso técnico.
O numerus clausus foi uma das soluções apresentadas lá fora e vê-se como é falsa e desumana.
A solução é só uma: alargar os quadros e as instalações porque toda essa gente faz falta para ser empregue naqueles serviços de saúde, assistência e instrução pedidos pela própria economia moderna. A Inglaterra é exemplo típico a mais este respeito.
De todos estes problemas, o mais difícil é o do alargamento dos quadros do pessoal docente. Mas não é insolúvel. Vejamos o que se passa. A nação que figura com maior número de professores em relação aos alunos é a Suíça, que, em 1938, tinha uma média de 1 professor por 7,6 alunos. Vem depois a Inglaterra com uma média de 7,9; a Itália, com 8,6; a Hungria, com 10,7.
Portugal aparece com uma média de 1 professor por cada 16,1 alunos.
Mas se considerarmos em separado as Universidades Clássicas, vê-se que a situação é pior.
No ano lectivo de 1920-1921 frequentaram as três Universidades Clássicas 2:980 alunos, com o ensino ministrado por 445 professores e assistentes.
A média era, pois, de 6,7 alunos por cada membro do pessoal docente. Em 1949-1950 frequentaram as três Universidades 9:614 alunos, com 496 professores e assistentes, 1 professor ou assistente para uma média de quase 20 alunos (19,4).
Considerando a Universidade de Coimbra isoladamente, acha-se a proporção de 1 professor ou assistente por cada 22 alunos (21,6).
E esta situação não é nova. Já assim era nos últimos anos da monarquia e foi isso que tornou impraticáveis os estatutos pombalinos.
Na Faculdade de Direito havia turmas com 100 alunos, e não era uma nem duas; eram quase todos os cursos.
A seriedade daqueles estatutos era incompatível com a ficção de um mestre para tantos discípulos.
Claro que o remédio não era o que se aplicou - era alargar os quadros. Mas era remédio caro e optou-se por outro mais barato - cursos livres.
Outro problema se punha para a Universidade de Coimbra: o das instalações, que eram quase as mesmas do tempo de Pombal.
A Cidade Universitária veio satisfazer essa necessidade e ficará sendo no futuro uma das obras mais meritórias do Estado Novo.
A falta de professores, que esmaga os nossos ensino primário e superior embaraça e inutiliza igualmente o ensino secundário. Embaraça-o, inutiliza-o e desacredita-o.
Mas não é agora a ocasião de nos alargarmos mais sobre este assunto. Não deixarei contudo de afirmar que o desemprego intelectual cessaria entre nós se os quadros do professorado fossem alargados na proporção da população escolar e se aos serviços de assistência e de saúde fosse dado o necessário desenvolvimento.
Passemos agora às receitas ordinárias, que são as que interessam ao nosso ponto de vista.
Em 1930-1931 foram cobrados 1.932:732 contos de receitas ordinárias. Multiplicando pelo coeficiente de redução a 1950, acha-se o valor de 4.232:683 contos.
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As receitas cobradas em 1950 foram de 4.825:519 contos. O excesso sobre aquelas é dez 13,5 por cento.
A receita liquidada em 1913-1914 (diminuída da receita anulada) montou a 73:820 contos. Reduzindo esta importância a 1950, acham-se 3.923:433 contos.
O aumento da receita cobrada em relação a esta calculada foi de 22,4 por cento.
Foi muito? Foi pouco? Se tivéssemos o cálculo exacto do rendimento nacional em 1914 e 1931, poderíamos dar uma resposta directa a esta pergunta. Assim, não.
Acresce ainda que o orçamento não inclui grande parte das despesas de ordem puramente burocrática feitas pelos organismos corporativos o do coordenação económica, que são importantíssimas.
Pelo que se diz, e em parte se vê, há nesses serviços muita burocracia inútil, quando não prejudicial, que é preciso reabsorver, para dar lugar à ampliação dos serviços úteis mais urgentes.
Para terminar, comparemos a evolução das receitas ordinárias com a das despesas do mesmo nome.
Mostra o quadro publicado no parecer das contas públicas, a p. 82, que tem havido entre umas e outras um desequilíbrio sistemático em favor das receitas.
O excesso destas, que em 1929 foi de 249:167 contos, chegou a 1.000:982 em 1943, descendo até 572:985 em 1945, para em seguida se manterem em volta duma média de 800:000.
Este recurso às receitas ordinárias para saldar despesas extraordinárias, com prejuízo de serviços permanentes indispensáveis, é que me parece política que não pode seguir-se por muito mais tempo.
É insustentável a opinião de que podemos cobrir grande parte das despesas extraordinárias a fazer com obras públicas e de fomento por meio do imposto. Para os países econòmicamente atrasados como o nosso isso é uma utopia.
Essas obras têm de ser pagas com empréstimos cujo juro será o que o mercado determinar. Disto não poderemos fugir, pelo menos durante muito tempo.
E ainda bem que para tanto bastará recorrer ao mercado interno, pois que não faltam nele cambiais disponíveis para pagar as importações necessárias.
E não percamos tempo, que os homens não são eternos. Lembremo-nos sempre de que enquanto a África do Sul foi governada pelo general Smuts afluíam lá, em média, 200 milhões de libras por ano. Mal aquele prestigioso político abandonou o Poder, nem mais uma libra lá entrou. Pior do que isso: todos os capitais estrangeiros que ainda lá estavam disponíveis trataram de fugir a sete pés, com medo do que viria.
A margem agora existente entre as receitas ordinárias e as despesas do mesmo nome dará algum espaço para o alargamento dos serviços públicos de maior urgência e para a actualização dos vencimentos do funcionalismo, que é imperiosa necessidade. E depois?
Depois será forçoso aumentar as receitas ordinárias, porque assim o exige o próprio equilíbrio económico.
Dizem socialistas e comunistas que será praticamente impossível aos governos burgueses arrancar aos produtores aquele quinhão de bens necessário ao escoamento dos produtos, e por isso têm como certo que o Estado se verá obrigado a nacionalizar todos os bens de produção para que dos dons da Natureza o homem possa tirar o maior proveito.
Há neste raciocínio uma boa parte de verdade. O capitalista entregue à sua própria avareza -a avareza humana- acabaria por tornar impossível o direito de propriedade. Foi por isso que o capitalismo naufragou. Mas hoje, ao lado do capital, outras forças se alevantam - a inteligência e a técnica.
É a estes que compete restabelecer a ordem económica e social, tão profundamente abaladas pelo progresso técnico. E para tanto não é preciso instaurar no Mundo o socialismo nem o comunismo. Estas duas soluções não restabeleceriam a ordem material e subverteriam completamento a ordem moral, aquela ordem que tornou possível ao homem branco realizar esta maravilha que é o nosso século.
É preciso, sim, restabelecer uma ordem espiritual que sirva de fundamento à ordem social e à económica.
Mas essa não é nem a socialista nem a comunista. É a ordem cristã - católica, apostólica, romana.
Dentro desta ordem todos os problemas se podem resolver sem atropelar a pessoa humana nem aviltar os sagrados direitos que lhe são inerentes.
Para que o Estado cobre a parte que lhe compete nos frutos do progresso técnico não precisa de se apropriar da riqueza adquirida basta-lhe tomar a porção devida da riqueza nascente, daquela que não é fruto do trabalho deste ou daquele, mas que deriva directa e espontaneamente do progresso. É da mais valia das fontes naturais de energia e dos produtos do subsolo que o Estado deve exaurir o suplemento das receitas ordinárias necessárias ao desenvolvimento do poder de compra exigido pelo equilíbrio económico.
É aí que o Estado pode e deve ir buscar aquela parte, das receitas ordinárias que tem de crescer mais que proporcionalmente à população e à riqueza pública.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: -Vou encerrar a sessão. A sessão da tarde terá por ordem do dia a discussão do decreto-lei sobre as mais valias ultramarinas.
Está encerrada a sessão.
Eram 13 horas e 15 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
José Luís da Silva Dias.
Ricardo Malhou Durão.
Tito Castelo Branco Arantes.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Américo Cortês Pinto.
António Calheiros Lopes.
António Júdice Bustorff da Silva.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
Jorge Botelho Moniz.
José Cardoso de Matos.
José Gualberto de Sá Carneiro.
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760 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 154
José Pinto Meneres.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Marques Teixeira.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Vasco de Campos.
Vasco Lopes Alves.
O REDACTOR - Luís de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA