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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 190

ANO DE 1953 22 DE JANEIRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

V LEGISLATURA

SESSÃO N.° 190, EM 21 DE JANEIRO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.
Gastão Carlos de Deus Figueira
José Luís da Silva Dias

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou, aberta a sessão às 16 horas e 10 minutos.

Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.
Foi autorizado o Sr. Deputado Sá Carneiro a depor como testemunha no 2.° juízo criminal de Lisboa.
O Sr. Deputado Pinto Barriga apresentou nota de um aviso prévio sobre os princípios e técnica de uma boa política de protecção da saúde dos Portugueses.
O Sr. Deputado Jacinto Ferreira referiu-se ao despejo, que o Município de Lisboa esta a promover, de vãos de escada.
Sobre este assunto falou, para explicações, o Sr. Deputado Américo Cortês Pinto.

Ordem do dia. - Continuou o debate na generalidade da proposta de lei relativa à lei orgânica do ultramar.
Falaram os Srs. Deputados Duarte Silva, Manuel Múrias e Sócrates da Costa, que ficou com a palavra reservada.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 10 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 10 horas.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Cruz.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoim Borges do Canto.

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João Ameal.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Oliveira Calem.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Guilherme de Melo o Castro.
José Luís da Silva Dias.
José Pinto Meneres.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Arantes.
Vasco de Campos.
Vasco Lopes Alves.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 73 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em reclamação o n.° 189 do Diário das Sessões.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Não havendo nenhum Sr. Deputado que peça a palavra sobre este Diário considero-o aprovado.
Deu-se conta do seguinte

Expediente

Exposição

Do presidente da Junta dos Produtos Pecuários a prestar esclarecimentos respeitantes ao discurso do Sr. Deputado Borges do Canto na parte em que se refere aos atrasos no pagamento de leite e de lacticínios aos produtores do distrito autónomo de Angra do Heroísmo.

Telegramas

Vários, pedindo para ser posto na ordem do dia o aviso prévio do Sr. Deputado Pinto Barriga sobro a defesa dos interesses dos industriais de transportes em automóveis.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa um ofício do 2.° juízo criminal de Lisboa pedindo autorização para o Sr. Deputado Sá Carneiro depor naquele juízo.
Este Sr. Deputado não vê qualquer inconveniente para a sua acção parlamentar em que a Câmara lhe conceda esta autorização.

Posta à votação, foi concedida a referida autorização.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Pinto Barriga para enviar para a Mesa um aviso prévio.

O sr. Pinto Barriga: - Pedi a palavra para enviar para a Mesa o seguinte

Aviso prévio

«Depois de prestar a devida justiça ao Governo, destacando, como mínimo de equidade, a acção dos Ministros do Interior, das Obras Públicas, da Educação Nacional e das Corporações, e render homenagem, com patriótico orgulho, à competência do corpo docente das nossas Faculdades de Medicina e ao extraordinário zelo e excelente técnica dos quadros médicos e de enfermagem dos hospitais, apesar da modicidade comparativamente inexplicável dos seus vencimentos, desejo tratar urgentemente em aviso prévio dos princípios e técnica de uma boa política de protecção da saúde dos Portugueses, em face das novas descobertas e progressos científicos da biologia, da medicina e das respectivas técnicas instrumentais, em presença das transformações sociais nas actuais condições económico-corporativas. No desenvolvimento deste aviso prévio insistirei predominantemente:

1.º Na reafirmação da imperiosa necessidade de, depois de termos devidamente tratado de um plano de fomento para Portugal, sincrònicamente nos ocuparmos também dos Portugueses, dando-lhes uma organização bem planificada e financiada de política de saúde, mas sem dirigismos sanitários que venham desrespeitar a liberdade e a dignidade sagradas do doente e do médico;
2.° A reliberalização da profissão médica, um tanto funcionalizada e quase desumanizada, embora não a desprendendo de um certo moderado e equilibrado institucionalismo que permita às classes médias, sacrificadas e abandonadas medicamente, tratamentos clínicos e cirúrgicos, mas ao alcance de suas diminuídas possibilidades materiais;
3.° Condenar a excessiva estatização da medicina de segurança social, que acarreta, mais do que uma saturação fiscal, outra, nos mesmos efeitos, contudo de origem social, mas continuando a dispensar a sua protecção legal e técnica ao sinistrado profissional contra os possíveis desmandos de um critério demasiadamente lucrativo no sector privado desses seguros, que cristãmente a desumanizam por completo;
4.° Nos hospitais escolares, marcadamente no de Lisboa, pronunciar-me-ei:

a) Pela necessidade de reorganizar, melhorando e ampliando, o serviço e recrutamento dos assistentes universitários com mais amplas provas de selecção e um pouco para longe da simples escolha feita ao sabor da vontade, ainda que bem intencionada, dos titulares das cadeiras e dos serviços;
b) No de Lisboa, a distribuição das camas e equipamentos tem sido relacionada menos pela importância nacional dos

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respectivos serviços do que pelo prestígio e influência dos seus dirigentes, ainda que merecidos, sucedendo, por isso, que a clínica médica tem apenas 96 camas, a neurologia e a psiquiatria 222, a obstetrícia e a ginecologia 79 e a pediatria 125. Não lhe parece ao apresentante deste aviso esta desproporção, felizmente, como visivelmente para augurar, ou simplificar um recrudescimento assustador e demasiadamente expressivo de doenças mentais, nem tão-pouco se justifica a hipertrofia deste serviço escolar, quando a dois passos do novo hospital se encontra outro devidamente apetrechado e especializado, ficando, pela natureza das coisas, essa clínica universitária, no futuro, provàvelmente reduzida a preocupar-se com a categoria de doentes a que os franceses bizarramente chamam les petits montaux e mais destinados a uma consulta externa bem vigiada e conduzida do que propriamente a um útil internamento;
c) Pela forma antieconómica como se electrificaram alguns serviços, como o do aquecimento.
5.° Numa desejável planificação de saúde haverá que atender aos outros hospitais, de modo a, tecnicamente, os não desnivelar dos escolares, pois apareceriam então na assistência hospitalar como uma espécie nova de parentes pobres».

O Sr. Jacinto Ferreira: - Sr. Presidente: pelo artigo 143.° do Regulamento das Edificações Urbanas, publicado em Agosto de 1951, foi interditado «qualquer aproveitamento ou pejamento, mesmo temporário, das saídas de prédios susceptível de afectar a segurança permanente da edificação ou dificultar a evacuação em caso de incêndio». E às câmaras municipais foi cometido o encargo de, por meio de posturas, regulamentarem a execução desta disposição.
Acontece que a Câmara Municipal de Lisboa, no seguimento de uma mentalidade que se vai radicando desde a publicação do último Código Administrativo - e que se resume em se considerarem estes órgãos empresas comerciais e industriais, para a exploração dos munícipes e talvez para seu flagelo, em vez de retomarem a sua antiga e veneranda tradição de defensoras dos povos e zeladoras dos seus direitos -, a Câmara Municipal de Lisboa, dizíamos, pela sua resolução de 14 de Junho de 1952, aplicou aquelas disposições a casos existentes, criando um ambiente de ansiedade e de inquietação entre muitas centenas de famílias da capital.
Se não se tratasse de um caso sério, apetecia fazer um pouco de ironia com o zelo da edilidade em livrar os habitantes dos perigos de hipotéticos incêndios, não se importando, para a execução desse zelo, de lançar na penúria e na miséria reais esses mesmos de cujas queimaduras imaginárias tanto parece apiedar-se.
São aberrações de que já as fábulas dão noticia, referindo certos abraços de mães extremosas que acabam por sufocar os filhos inocentes e descuidados.
Escreveu-se nos- jornais que foram mandadas encerrar muitas centenas de estabelecimentos instalados em vãos de escada - sapateiros, engraxadores, capelistas, tabacarias, etc. -, pequenos comerciantes e industriais,
mesmo pobres artesãos, os quais, a cumprir-se a determinação municipal, serão lançados na miséria e na ruína e obrigados a atirar para o desemprego com uma legião de empregados, aos quais dão a ganhar o pão de cada dia.
Também já se escreveu que a ordem não é geral, mas apenas dirigida aos estabelecimentos instalados depois de 1935, com licença a título precário, e que, multados, primeiramente, em 675)5, são agora intimados a desocupar os vãos de escada, dentro do prazo, já a decorrer, de quarenta e cinco dias.
Embora a precariedade da autorização concedida concorra para criar um motivo de despejo, parece-nos que uma situação provisória já há dezoito anos não pode fazer-se desaparecer dentro de um período tão curto sem grave prejuízo para uma parte da população da capital.
E dizemos por duas vezes «já se escreveu» porque a Câmara ainda não deu explicação alguma e fez orelhas moucas aos clamores dos munícipes, permanecendo, sem a nada se mover, impávida e serena.
Naturalmente não vou preconizar que deixe de ser cumprido o citado regulamento. Apenas apelo para que na sua aplicação se olhe a situações criadas, a direitos adquiridos - adquiridos mesmo a titulo precário -, e se procurem evitar prejuízos incomportáveis para as famílias e para a sociedade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não tenho dúvidas em afirmar que, no caso de incêndio, dois encontrões de qualquer morador mais aflito ou dois golpes de machado dos bombeiros são, na generalidade dos casos, mais do que suficientes para remover o pequeno obstáculo à evacuação representado pela banca do sapateiro ou pelo estrado do engraxador.
Na minha qualidade de Deputado por Lisboa, peço ao Governo que intervenha no sentido de suavizar as disposições municipais, manifestamente desumanas, impolíticas, e - bem vistas as coisas - desnecessárias.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Cortês Pinto: - Sr. Presidente: pedi a palavra a V. Ex.ª para esclarecer, embora imperfeitamente, visto que não estou pormenorizadamente preparado, as considerações que acabam de ser feitas pelo Sr. Deputado Jacinto Ferreira, ao qual procurarei responder.
Observei que S. Ex.ª falava de existência de estabelecimentos em vãos de escada e da actuação da Câmara Municipal de Lisboa relativamente a esses estabelecimentos, e depreendi das suas palavras que S. Ex.ª disse existirem estabelecimentos com licença, a titulo precário, desde unia determinada data.
Ora, quero dizer que não existem estabelecimentos com licença a título precário. O que há é estabelecimentos autorizados e estabelecimentos não autorizados, o que modifica por completo o aspecto do assunto.
Não obstante a Câmara ter conhecimento da existência de estabelecimentos não autorizados, tem sido tão humana - contrariamente ao que supõe o Sr. Deputado Jacinto Ferreira - que esses estabelecimentos continuam a existir, contra o que está prescrito e sem autorização alguma da Câmara.

O Sr. Manuel Lourinho: - Apesar disso, alguns têm sido despejados.

O Orador: - Não posso responderão caso de «alguns». O que posso dizer é o seguinte: existem uns serviços

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de incêndios, a que o Sr. Deputado Jacinto Ferreira agora se referiu, e que tem a seu cargo a fiscalização e inspecção dos prédios de Lisboa, verificando quais são aqueles que correm perigo, cabendo-lhes, portanto, propor os trabalhos necessários para que não estejam sujeitos a perigo de fogo os inquilinos dos prédios. Naturalmente, esses «alguns» correspondem àqueles que a inspecção dos serviços de incêndios entendeu estarem perigosamente instalados.
Quando há serviços técnicos que garantem existir a necessidade de se acautelar a população inteira de um prédio, ó a esse organismo que cabe a responsabilidade presente e futura.

O Sr. Jacinto Ferreira: - Quer dizer: existe uma tecnocracia.

O Orador: - Trata-se de uma organização técnica, que é a competente para dar o seu parecer sobre a existência ou não de um perigo.

O Sr. Jacinto Ferreira: - Há outros perigos, que não são só os de incêndio, a que é preciso atender.

O Orador: - Existe uma postura que impede que se montem estabelecimentos dessa natureza sem licença da Câmara, e, apesar disso, há por aí centos deles, o que denota que :i Câmara tem seguido essa tal política de humanidade, que a levou a permitir que eles existam, exactamente por comiseração. Porém, não se pode ir até ao ponto de se ser perfeitamente insensível, permitindo que não se cumpra o que está determinado. Assim nenhum» câmara poderia administrar convenientemente.
Nem. além das outras razões existentes, seria admissível que por humanidade para com uns se sujeitassem os outros indefinidamente aos perigos dum incêndio.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta da lei orgânica do ultramar.
Tem a palavra o Sr. Deputado Duarte Silva.

O Sr. Duarte Silva: - Sr. Presidente: é bem evidente a oportunidade da proposta de lei submetida à nossa apreciação.
Ao rever-se a Constituição, em 1901, nela foram introduzidas numerosas modificações respeitantes ao ultramar, as quais se não limitaram, como supõem alguns, a simples alteração de nomenclatura.
Algumas disposições novas se estabeleceram, merecendo especial relevo o do § único do artigo 158.°, que marca a tendência para a livre circulação das pessoas, dos produtos e dos capitais dentro de todo o território nacional; a do artigo 171.°, que submeteu ao mesmo regime de julgamento e apreciação das contas públicas da metrópole as coutas anuais das províncias ultramarinas, e ainda a do artigo 153.°, que permite a unificação de alguns serviços ultramarinos com os correspondentes da metrópole, dando lugar à interferência de outros Ministérios em serviços que até então estavam unicamente subordinados ao Ministério do Ultramar.
Como salientou S. Ex.ª o Presidente do Conselho no discurso pronunciado na sala da biblioteca desta Assembleia em 12 de Dezembro de 1950, as alterações introduzidas ao Acto Colonial não representaram de modo algum mudança de orientação, antes reforçaram nitidamente uma linha já bem vincada no nosso pensamento a da integração cada vez mais perfeita e completa de todas as províncias dispersas na unidade da Nação Portuguesa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Segundo a referida disposição nova do artigo 153.°, o Governo superintende e fiscaliza o conjunto da administração das províncias ultramarinas, nos termos da Constituição e da lei ou leis orgânicas a que se refere a alínea a) do n.° 1.° do artigo 150.°, por intermédio dos órgãos que as mesmas leis indicarem.
E porque, nos termos da citada alínea a) do n.° 1.° do artigo 150.°, é à Assembleia Nacional que compete legislar sobre o regime geral de governo das províncias ultramarinas, é submetida à nossa apreciação a presente proposta de lei.
Cuidadosamente elaborada dentro dos cânones da técnica jurídica, com o conhecimento perfeito não soados princípios da ciência da administração colonial, como das realidades existentes nas províncias ultramarinas, e que não podiam deixar de ser consideradas pelo legislador, a proposta merece a nossa aprovação.
Isto, porém, não significa que concordemos com todas as suas disposições e que se lhe mão possam fazer reparos, alguns, aliás, já constando do bem elaborado parecer da Câmara Corporativa, que analisa pormenorizadamente a proposta, com a seriedade, a competência e o brilho que distinguem o dou-to procurador que o relatou.
Poderia supor-se, pelo que acabo de dizer, que a apreciação do assunto é tarefa que não oferece dificuldades, em face dos dois valiosos trabalhos que nos são apresentados.
Mas, precisamente porque ambos se impõem à nossa admiração e solicitam a adesão do nosso espírito, é que, perante as suas divergências, por vezes hesitamos e a decisão torna-se trabalhosa e difícil.
Felizmente para nós, as discordâncias que se manifestam não respeitam a matéria doutrinária, podendo mesmo dizer-se que se limitam à forma e à sistematização a dar aos princípios que estão no espírito do Governo, da Câmara Corporativa e, posso dizê-lo, de todos nós.
Intervenho no debate porque penso que não podia subtrair-me a isso, dado que represento aqui uma província ultramarina com interesse indiscutível na lei um elaboração.
Não trago ideias novas e penso que a minha colaboração só será útil na medida em que eu possa elucidar a Assembleia acerca do que pensa a gente cabo-verdiana do seu enquadramento no sistema que estamos estudando.
Pouco mais farei do que resumir o que disse quando se discutiram as alterações à Carta Orgânica de 1933 e a reforma da Constituição.
Não me alongarei, pois; mas nem por isso quero deixar de pedir a V. Ex.ª, Sr. Presidente, e aos Srs. Deputados que me desculpem prender-lhes a atenção por alguns minutos.
Sr. Presidente: antes de expor aquilo que julgo de minha obrigação dizer sinto-me tentado, talvez por vício de formação, a fazer algumas considerações acerca da apreciação da proposta de lei feita no douto parecer da Câmara Corporativa.
A primeira questão diz respeito ao título a dar ao diploma em discussão.
Denominou-o o Governo Lei Orgânica do Ultramar. O parecer, porém, declara preferir a designação, já em vigor, de Carta Orgânica do Ultramar, não só em homenagem ao imediato passado legislativo, como porque

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entende ser mais adequada a expressão «carta» para designar documentos normativos programáticos e fundamentais, como Carta Constitucional, Carta das Nações Unidas, etc.
Par mim, declaro que prefiro a designação proposta pelo Governo, primeiramente porque «lei» é a expressão própria para designar normalmente os diplomas ema nados do órgão legislativo e, em segundo lugar, porque já a Constituição assim a denomina, no aludido artigo 153.°
Voto, pois, «pela designação de Lei Orgânica do Ultramar.
Outro problema que o douto parecer levantou e largamente discute é o da extensão que deve ter o diploma a elaborar.
Dever-se-á organizar um texto único e pormenorizado, que ao lado das disposições aplicáveis a todos os territórios, contenha igualmente nos lugares adequados as disposições especiais exigidas pelo condicionalismo próprio de cada uma das províncias, ou convirá antes fixar num primeiro diploma somente as bases gerais que estabeleçam apenas o que de comum se possa dispor uniformemente para todas as províncias ultramarinas, deixando para os estatutos especiais de cada uma delas a determinação das particularidades que a sua administração exija?
Neste ponto creio não haver discordância entre a proposta e o parecer, que adoptam ambos a segunda solução, atribuindo a cada província ultramarina um estatuto próprio, a elaborar do harmonia com as bases gerais que forem estabelecidas na lei presentemente em discussão.
O problema, que parece ser apenas uma questão de sistematização, não é tão despiciendo como poderia supor-se.
Ao elaborar as bases importa considerar que, como diz o douto parecer, o regime geral deverá a consistir apenas em directrizes ou cânones esquemáticos, convenientes e adequados a todas as províncias sem distinção, tendo-se em conta que «ao muito diversas as condições económicas, étnicas, sociais e culturais e o meio geográfico de cada. um desses territórios».
«Uma organização político-administrativa uniforme (acrescenta, o mesmo parecer) há-de sempre constituir um colete de forças para todas ou algumas das províncias ultramarinas», todas diferentes umas das outras, esta densamente povoada, aquela carecendo de povoamento, umas ricas, outras pobres, nem todas de população igualmente civilizada, umas formadas de territórios dispersos em ilhas, outras de natureza continental.
A organização que convém a uma não é, evidentemente, a que melhor se adapta a outra, e «só com prejuízo para a eficiência, dos serviços e para os interesses das populações se pode levar longe o princípio da uniformidade, do padrão único político-administrativo».
Em atenção ao que fica exposto, e que exprime uma realidade a considerar, parece fora de dúvida que as normas comuns deviam ser em reduzido número, em obediência, àquele princípio da filosofia me ensina que as ideias são tanto mais extensivas quanto menor for a sua compreensão ou conteúdo. Tudo o que é geral tem de ser necessàriamente simples.
Ora é precisamente aqui que se verifica a crise da proposta e do texto sugerido pela Câmara Corporativa.
Ambos são demasiado minuciosos para se adaptarem convenientemente a todas as províncias ultramarinas. A proposta do Governo, tem 82 longos artigos e o texto da Câmara Corporativa consta de 93 bases, e quer uma quer outro contêm numerosas referências especiais a esta ou àquela província.
Perde-se, assim, toda a vantagem que poderia apresentar um diploma geral.
E se nas bases gerais descemos a minudências, os estatutos privativos de cada província ficam sem conteúdo próprio.
Caímos, desta forma, na situação que se descreve no preâmbulo do Decreto n.º 4 627, pelo qual o Governo de Sidónio Pais revogou em 1918 as cartas orgânicas publicadas no ano anterior.
Ali se dizia:

Parece, em boa lógica, que a publicação destas leis dispensava a publicação das cartas orgânicas privativas de cada colónia, tanto mais que as bases anexas a cada uma dessas leis são suficientemente numerosas e minuciosas para. orientar a administração colonial, e quaisquer questões de pormenor e regulamentares seriam resolvidas em diplomas parciais e especiais para cada serviço, elaborados nas colónias à medida que a sua administração se fosse transformando, como resultado já do novo regime descentralizador.
De facto, as cartas orgânicas privativas posteriormente publicadas são o decalque das bases, acrescentado de uma série de disposições regulamentares fragmentárias e incompletas dos serviços de cada colónia.
Há cartas orgânicas, como, por exemplo, a de Timor, que desorganizaram alguns serviços públicos já criados por diplomas anteriores, e são vários os telegramas recebidos das colónias apontando disposições de execução impossível e outras inconvenientes.
As cartas orgânicas privativas descem por vezes a minúcias de carácter regulamentar difíceis de conceber, minúcias que em muitos casos inutilizam a descentralização que se pretende introduzir na administração colonial, e, contudo, essa parte regulamentar é ao mesmo tempo tão incompleta que não dispensa a regulamentação de cada serviço em cada colónia em diplomas especiais.
As leis orgânicas não podem por forma alguma ter a pretensão de fixar e muito menos de regulamentar os serviços públicos, e isso claramente se afirma e se justifica nas seguintes palavras do já citado relatório:

De resto, as leis agora votadas, no Congrego têm de deixar uma larga amplitude, não só para que a cada colónia seja aplicada a modalidade mais adequada, mas também para que os regulamentos orgânicos adoptados possam sofrer modificações quando o progresso da colónia ou outras, circunstâncias o aconselhem, sem que, para esse fim, haja necessidade de o Congresso novamente se pronunciar sobre bases fundamentais.

Salvo melhor conceito, parece-nos evidente que, tendo-se evitado nas leis básicas um mau critério, nele se veio a cair com a publicação das cartas orgânicas privativas, porque são estas, afinal, e não as leis básicas, que regem a administração colonial, e assim se perdeu aquela larga amplitude e elasticidade necessárias para que os serviços e regulamentos coloniais possam acompanhar o progresso e natural evolução das colónias, sem necessidade de alterações constantes dos diplomas orgânicos, que, de leis de descentralização, se transformaram, com a publicação das cartas privativas, em acanhados e incompletos regulamentos dos serviços públicos.
Do exposto resulta que ou se reduzem as bases à enunciação dos princípios, comuns a todas ou à maior parte das províncias ultramarinas ou deixam de ser necessá-

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rios os estatutos de cada uma delas, por falta de matéria específica.
Sou chegado, Sr. Presidente, ao ponto principal da minha intervenção no debute: a apreciação do que poderá resultar para Cabo Verde da disposições constantes da proposta do Governo ou das alterações sugeridas pela Câmara Corporativa.
Dispenso-me, para não abusar da gentileza dos Srs. Deputados, de reproduzir as considerações que sobre o assunto fiz quando se discutiram as alterações à Carta Orgânica e à Constituição.
Não quero, todavia, deixar de recordar que então afirmei ter o arquipélago de Cabo Verde retrogradado em matéria de administração, justificando a minha afirmação com os seguintes factos:
No decurso dos últimos vinte anos foram suprimidas e substituídas por juntas locais várias municipalidades, entre elas a da Ribeira Grande, criada por decreto de D. João V em 1731, a do Fogo, de existência também secular e com receitas ordinárias que montam a 800 contos, e a da ilha de S. Nicolau, que foi até há poucos unos a sede do bispado e durante muito tempo importante centro de irradiação de cultura.
No tocante à administração da justiça, o retrocesso não foi menor: a ilha de Santo Antão, durante, longos anos sede de comarca, viu esta substituída por um julgado municipal especial, que pouco durou, e hoje é apenas servida por um juízo instrutor.
Em todas as outras ilhas onde existiam julgados municipais foram estes igualmente suprimidos, a pretexto de compressão de despesas, e substituídos por julgados instrutores, em que os administradores funcionam como juizes.
Assim, na grande maioria das ilhas, o administrador do concelho, além das funções do seu cargo, é presidente do corpo administrativo, juiz instrutor, oficial do registo civil, encarregado das obras públicas, delegado da assistência, presidente da junta local de instrução, presidente da junta do recrutamento, presidente da comissão do recenseamento militar, e tem ainda o título, suponho que meramente honorífico, de presidente da comissão técnica de automobilismo. E não garanto que tenha feito uma enumeração completa das suas várias e importantes atribuições.
Ora uma tal concentração de funções só se compreende nas circunscrições administrativas que constituem um grau transitório da divisão administrativa ultramarina, adequado às regiões de população atrasada, como se diz no artigo 33.° da proposta de lei.
A acumulação de funções resulta quase sempre ao deficiente cumprimento, se não de todas, pelo menos de algumas delas, e no atraso dos respectivos serviços.
Por outro lado, se a concentração de poderes é de aconselhar e até mesmo necessária na administração das populações atrasadas, não há dúvida que é inconveniente e mesmo perigosa para os povos com personalidade e plena consciência dos seus deveres e direitos.
A pouca atenção para a comodidade dos povos é tal que à ilha de Santo Antão, onde D. João III, na carta de doação da ilha, determinou que funcionasse um tabelião, não o possui hoje, e quem tenha de recorrer aos respectivos serviços necessita de se trasladar à ilha de S. Vicente, numa viagem incómoda, por vezes, demorada e nem sempre isenta de perigos. Por outro lado, e em relação a todos os julgados, entendem muita vez os magistrados da respectiva comarca que há necessidade de inquirição directa das testemunhas, e estas são obrigadas a viagens por mar, com demoras prejudiciais fora do seu domicílio.
Tudo isso, sem dúvida, representa um retrocesso.
Em relação a Cabo Verde a tendência legislativa tem sido para fazer política de assimilação, mas ao inverso.
A província que há sessenta anos o Ministro do Ultramar Ferreira do Amaral julgava em condições de, num futuro próximo, passar à categoria de ilhas adjacentes tem sido sistematicamente afastada desse objectivo, submetendo-a cada vez mais ao sistema legal aplicável às populações atrasadas. Tem-se feito uma assimilação regressiva, e não progressiva.
Importa contrariar essa tendência, que é a negação da nossa missão civilizadora, solenemente proclamada no artigo 133.° da Constituição.
E, ao elaborar a nova lei orgânica, nós não podemos sancionar uma tal política. Temos a palavra de ordem de Salazar, e a única política que temos de seguir é a da integração cada vez mais perfeita e completa na unidade da nação portuguesa».
Cabo Verde tem vivido acorrentado ao sistema administrativo colonial, que se não coaduna com o seu estado actual.
Quer geogràficamente, quer do modo de ser, nos costumes e nível de cultura da sua população, Cabo Verde está mais próximo da metrópole e das ilhas adjacentes do que das outras províncias ultramarinas.
Da aprovação da proposta do Governo ou do texto sugerido pela Câmara Corporativa resulta que o arquipélago ficará submetido ao «colete de forças» a que se refere o douto parecer da mesma Câmara.
A Cabo Verde não convém o sistema que se preconiza.
Não lhe interessa a existência de um conselho legislativo com atribuições deliberativas, pois não necessita de legislação especial, sendo-lhe aplicáveis as leis da metrópole.
Em todo o seu território e a toda a sua população se aplicam o Código Civil, o Comercial, o Penal, os de Processo e, no que respeita a administração no sentido restrito, são-lhe mais aplicáveis as disposições do Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes do que qualquer outra legislação.
Tão-pouco lhe interessa o modo de designação dos vogais do Conselho. Dada a natureza insular da província, nunca, como se tem visto até agora, poderão os interesses das diferentes ilhas, pela dificuldade de comunicações e pêlos incómodos e prejuízos que as deslocações acarretam, fazer-se representar convenientemente no mesmo Conselho.
Nenhum benefício lhe advirá, pois, da existência de um pequeno parlamento, sem função a desempenhar.
Também lhe não interessa, a meu ver, o alargamento das atribuições do governador, que, podendo ser, por vezes, muito vantajoso, é outras tantas vezes inconveniente e perigoso.
Interessa-lhe, sim, uma verdadeira descentralização administrativa, em que a prossecução dos interesses regionais e a realização das obras necessárias se façam com a intervenção directa dos elementos locais, que são, em regra, os que melhor conhecem o que convém à terra.
O que lhe, interessa é a constituição de órgãos de administração local, como as juntas gerais dos distritos autónomos, com campo de acção e meios para realizarem uma obra administrativa conveniente.
Como exercício de acção política propriamente dita, satisfaz-me a intervenção que temos nas eleições do Chefe do Estado da Assembleia Nacional dos corpos administrativos.
Por isso, entendo que a organização que se alvitra para as províncias ultramarinas, e que é, segundo me parece, a que lhes é mais adequada, não é a que convém a Cabo Verde.
O problema foi posto quando se reviu a Constituição e, como se poderá ver do Diário das Sessões n.° 103, a p. 943, a Comissão de Colónias entendia ser muito especial a situação de Cabo Verde tal como a entendia

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a Câmara Corporativa. E só não se chegou a por li votação a proposta de aditamento do ilustre Deputado Dr. «Mendes Correia, que estabelecia, que o arquipélago de Cabo Verde seria oportunamente integrado no sistema da administração metropolitana, foi porque da intervenção do nosso ilustre leader, Dr. Mário de Figueiredo, resultou a convicção de que o artigo 29.º da proposta, (hoje artigo 133.º da Constituição) dava satisfação à ansiedade que dominou em certo momento a Comissão de Colónias e a fez tender para perfilhar a sugestão da Câmara Corporativa, retirando o Deputado Dr. Mendes Correia o seu aditamento.
A situação agora é, porém, diferente.
Uma vez aprovada a Lei Orgânica tal como se apresenta na proposta ou do texto da Câmara Corporativa, ficam mais apertados os laços que prendem, o arquipélago ao sistema ultramarino.
Se não se acrescentar a proposta em discussão uma disposição semelhante à que o Deputado Dr. Mendes Correia então sugeria, Cabo Verde continuará imobilizado no «colete de forças» em que tem vivido, ou antes, continuará retrocedendo, como tem sucedido nos últimos anos.
A adopção de um regime geral não exclui a possibilidade de uma excepção e muito menos a simples enunciação dessa possibilidade.
Com a aprovação da disposição que sugiro poderá o Governo, ao elaborar o estatuto de Cabo Verde ou ao fazer-lhe, de futuro, modificações, dar ao arquipélago o regime que a sua situação e o seu estado de adiantamento exigem. Fica o Governo juiz da questão, quando e como entender conveniente. E ninguém com mais elementos do que ele para a resolver de harmonia com o superior interesse da Nação.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Manuel Múrias: - Sr. Presidente: a própria integração do Acto Colonial no texto da Constituição Política obrigaria à revisão da Carta Orgânica: em voz de dois textos, que todavia se completavam, um único texto.
Sabe-se, porém, como é difícil - como se torna quase impossível - debruçarem-se sobre um texto alguns homens para o analisar sem irem cedendo à tentação de o melhorar: do o modificar, por consequência.
O Governo entendeu que se não deveria procederá revisão da Carta Orgânica, sem levar em conta a experiência obtida no decorrer dos vinte anos da sua execução. Os tempos são outros; e não se pode negar que, em matéria de governo e administração do ultramar, o sejam até, o sejam principalmente, por terem sido executados honestamente os preceitos legais que se reflectiram do Acto Colonial (Decreto n.° 18 570, de 8 de Julho de 1930, na sua primeira publicação), em toda a legislação especialmente consagrada ao governo o administração do ultramar. Mais directamente, mais proximamente, mais visivelmente, na Carla Orgânica, que havia sido estudada, e elaborada já na ideia e, digamos, como que conjuntamente, com a Reforma Administrativa Ultramarina. (Repare-se: tanto é assim que a Carta Orgânica foi aprovaria pelo Decreto-Lei n.º 33 228, de 15 de Novembro de 1933, e a Reforma da Administração Ultramarina foi aprovada, pelo Decreto-Lei n.° 23 229, da mesma data, embora ambos publicados depois da I Conferência dos Governadores Coloniais, reunida em Lisboa especialmente para ser ouvida sobre os diplomas fundamentais.
Pensando bem, contudo, e relendo agora o texto do Acto Colonial de 1939, não custa a perceber que nele se definia juridicamente o pensamento que haveria de impregnar a Constituição de 1933. E não pareceria mal, mesmo agora, que tenha sido assim, que o processas de reordenação constitucional de um país, que tomara para si na história, ou recebera da Providência a missão de descobrir, ocupar e civilizar terras desconhecidas e de evangeliza r os povos que as habitavam, principiasse assim, precisamente com os olhos no ultramar; e que fosse destinado ao ultramar o seu primeiro texto constitucional.
É verdade que já então se haviam exprimido as linhas mestras do que seria o regime saído da Revolução, cujas aspirações eram principalmente anseios ainda confusos na dificuldade de assentar nos princípios que, arredando inales anteriores, promovessem para além da Revolução o Ressurgimento.
Os discursos de Salazar nessa época ou antes, e não apenas o discurso chamado da Sala do Risco, contribuíram eficazmente para educar e esclarecer uma opinião pública que julgaria de começo estar condenada a situação política, saída da Revolução de Maio ao mesmo destino que fez esvaírem-se todos os movimentos (Pimenta de Castro, Sidónio Pais) que haviam tentado libertar a Nação da desordem nas ruas, do mal-estar económico, da barafunda financeira, da inquietação social o que, ao fim de meses, sucumbiam perante a conjugação dos partidos, só para a revolta disciplinada.
Ouvindo Salazar, meditando os conceitos, que todos julgavam interpretar o próprio anseio de cada qual, foi-se pouco a pouco formando o estado de espírito geral, que serviria de apoio firme ao processo constitucional do regime, a que se tentava dar estrutura e doutrina.

Assim se foi formando o agrupamento das- boas vontades que haviam de tornar possível, algumas vezes quase fácil, a ascensão dolorosa do Calvário, que Salazar anunciava logo nos seus primeiros tempos de Governo, ainda sòmente no Ministério das Finanças.
Isso mesmo o reconheceram os saudosistas, do passado recente, de cujos malefícios mal começava a Nação a refazer-se. A reacção contra o Acto Colonial era principalmente dirigida contra o pensamento constitucional, que principiava a definir-se.
Daqui a reacção violenta que se manifestou no momento da publicação no Acto Colónial, e que fizeram frente, com a juventude nacionalista do então, os sobreviventes das campanhas da ocupação na imprensa e nas sessões organizadas para esclarecer a abrir caminho. Ainda assim triunfou-se, levando adiante a tarefa de transfigurar a Nação, por se ter encontrado o rumo novo e, apesar de todos os esforços da acção reaccionária dos sobreviventes do velho regime de partidos - o País entendeu o que se pretendia e talvez mais depressa os analfabetos, que nem sempre são os mais incultos, no sentido profundo da palavra, do que certo falso escol, tumultuário e barulhento, que tinha dificuldade em afastar-se dos preconceitos dominantes, ou por preguiça mental ou por incapacidade.
É incontestável (e julgamos que realmente se tem mantido incontestado) que graças ao conjunto de providências adoptadas a partir de 1930 com o Acto Colonial - que desde logo se mandava incorporar na Constituição, em substituição do capítulo V -, diploma, na verdade, fundamental e sobre o qual assentaram, além da Carta Orgânica e da Reforma Administrativa Ultramarina, em 1934, dentro do conceito unitário que deveria vir a determinar também a reforma do Ministério das Colónias, em 1936.
Graças à legislação em que se estabeleciam as regras gerais no Acto Colonial, na Carta Orgânica e na Reforma Administrativa Ultramarina, bem como na Reforma do Ministério, imprimiu-se à administração do

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ultramar um vigoroso sentido de coordenação, que, tornando possível uma inspecção e direcção mais atenta e vigorosa do Governo, nem por isso se negava a atender às naturais aspirações das populações, que, pelo contrário, muito mais facilmente do que era, antes disso, normal, viram Governo e governadores inclinarem-se sobre as suas necessidades para as satisfazerem, na medida em. que satisfaziam interesses gerais das províncias.
É verdade que foi preciso algumas vezes, e ao menos de começo, ser inflexível na aplicação das regras adoptadas; e que essa inflexibilidade suscitou animadversões já agora felizmente diluídas.
Tanto o Acto Colonial como a Constituição Política e a Carta Orgânica têm sido submetidos a revisões, na medida em que a experiência com a execução o aconselhava, quanto ao texto constitucional e quanto à Carta Orgânica, aproveitando o ensejo de terem de se fazer reflectir nela as modificações introduzidos na Constituição para conclusões da experiência de alguns anos.
Foi o que sucedeu agora; e, como se sabe, não o foi pela primeira vez. A própria Carta Orgânica trazia em si a ideia de que se não considerava inalterável o texto inicial - nem se entenderia que fosse doutra maneira.
Simplesmente, desta vez, a circunstância de o Governo ter apresentado à Assembleia Nacional a sua proposta de lei para revisão alterando a própria designação («lei orgânica» em vez de «carta orgânica») deixou logo a impressão de que se pretendia modificar a orientação adoptada desde 1933, apesar de todas as revisões.
Será assim?
Não o julgamos; não vemos que o proponha o Governo ou o sugira a Câmara Corporativa. Não pensamos que o venha a aceitar esta Assembleia.
Efectivamente, através da proposta de lei:

a) Não se diminui, nem constitucionalmente se poderia diminuir, a competência da Assembleia Nacional;
b) Não se diminui a competência do Governo nem a do Ministro do Ultramar;
c) Não se diminui a competência executiva dos governadores-gerais ou de província.

Que traz de novo a proposta capaz de impressionar e, acaso, de dividir os pareceres de quem esteja atento às condições do ultramar, às suas necessidades e às aspirações da sua gente?
Pois bem: a criação, junto dos governos-gerais, além do Conselho de Governo, de um conselho legislativo, constituído por membros no todo ou em parte eleitos.
Quis dar-se, por esta maneira, maior intervenção nas actividades de ainda província na administração, pondo para certos problemas à disposição do governador uma representação mais larga dos mais directamente interessados nas decisões.
Mas como funcionará esse conselho? E até que ponto será possível assegurar-lhe o trabalho, na ordem e no respeito dos interesses superiores da unidade nacional? Como será constituído?
Este parece ser o ponto crucial do problema, o que, menos na Comissão do Ultramar, mais controvérsias e dúvidas suscitou.
Será constituído- apenas por membros eleitos? Poderão participai- do Conselho Legislativo vogais nomeados pelo governador? Alguns vogais natos pelo cargo que desempenham?
Em meu parecer deverão participar, e com direito de voto, no Conselho- Legislativo os chefes ou directores ao de serviço que façam parte do Conselho de Governo, pelo menos. Mas se o pensamento do Governo é criar um organismo, como parece ser, que dê mais larga representação às actividades das respectivas províncias, a maioria dos membros deste Conselho deverá naturalmente ser eleita.
E como o governador-geral mantém o direito de recorrer para o Ministro do Ultramar, o problema consiste já apenas em saber se o diploma proposto entrará ou não em vigor imediatamente ou se ficará suspensa a sua execução.
Parece que em certos casos, ao menos, por exemplo, em votações como a do orçamento da província, não poderá deixar de se executar o texto preparado pelos serviços e já aprovado pelo governador-geral.

O Sr. Melo Machado: - Porque não se adopta no caso que V. Ex.ª citou um sistema análogo ao que se usa nesta Assembleia para os decretos chamados à apreciação da Assembleia? Essas disposições deviam continuar em exercício, embora pudessem ser alteradas pelo Ministro.

O Orador: - E, evidentemente, essa a solução que naturalmente ocorre.

O Sr. Melo Machado: - Em todo o caso seria bom acautelar os inconvenientes que nessa modalidade têm aparecido na Assembleia. Julgo que nós temos reconhecido que em determinadas circunstâncias isso pode ter inconvenientes: podia usar-se uma solução pela qual pudesse ser suspensa até que houvesse determinação superior.

O Orador: - Isso seria mesmo talvez mais fácil para o Ministro, que, por simples telegrama, podia mandar ou não suspender, consoante o que parecesse melhor às conveniências da província.

O Sr. Melo Machado: - Julgo que tivemos aqui vários exemplos, nos quais se verificaram estes inconvenientes.

O Orador: - Estão a lembrar-me alguns dos casos II, que V. Ex.ª alude, mas penso mais fácil a solução quanto ao Conselho de Governo, visto aqui a decisão depender sempre apenas do Ministro do Ultramar.

O Sr. Melo Machado: - Peco desculpa a V. Ex.ª de fazer estas observações.

O Orador: - Pois eu as agradeço ao Sr. Deputado. Posto isto, que parece ser realmente a inovação mais audaz da proposta, não haveria mais nada, por minha parte, a dizer na generalidade, se não me parecesse dever voltar a considerações já há pouco feita, para repetir que a proposta não corresponde a um desvio na orientação seguida até agora.
Reconhecendo-se que as províncias ultramarinas, especialmente as províncias de Governo-Geral, possuem um escol que lhes permite recrutar, de entre os seus «homens bons», uma representação efectiva junto do governo provincial, chegou o momento de lhes serem atribuídas novas responsabilidades, satisfazendo, assim, a aspiração que em algumas províncias se tem manifestado.
Conta-se evidentemente com o seu zelo e com o seu patriotismo.
Não creio que tal aspiração se houvesse tornado conveniente e aceitável, se, entretanto, o progresso de cada uma das províncias durante a vigência da Carta Orgânica não convidasse a promover um passo em frente na

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colaboração efectiva de colonos e naturais nas soluções que, de certa maneira e em princípio, poderão conhecer melhor do que ninguém!
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sócrates da Costa:-Sr. Presidente e Srs. Deputados: nas reformas ultramarinas que se sucederam a partir da proclamação da República até à última revisão constitucional os territórios ultramarinos de Portugal denominaram-se «colónias», designação que se dá, em moderna ciência de administração colonial, aos territórios e populações sob o senhorio da metrópole.
Pelas disposições do Acto Colonial o conjunto das «colónias» constituía, política e administrativamente, um bloco distinto da metrópole, denominado «Império Colonial Português».
Certo ó que o termo «império» não foi empregado na acepção romana que exprime «um estado composto de elementos complexos, um dos quais domina os outros».
E neste sentido foi esclarecido o pensamento legislativo, afirmando-se que «Portugal europeu e ultramarino forma uma unidade política, administrativamente diferenciada nas suas parcelas, pois cada uma deve ter a organização e as leis que mais convierem à sua posição, à sua economia, à sua população, ao seu desenvolvimento social».
Mas as palavras exprimem geralmente com grande força as ideias que as criaram, excluindo outras diferentes e novas que com elas se procuram designar.
Oriunda do sistema do direito público romano, a palavra «império» não podia excluir a da ideia de patriciado que lhe está ligada.
Se, por um lado, no sistema imperial português, altos funcionários, agindo em conformidade com as tradições nacionais e num clarividente espírito de compreensão, revelavam, pelo seu cavalheiresco trato com os naturais das províncias do ultramar, o verdadeiro pensamento legislativo do Governo Português, não faltava, pelo outro, quem, tomando ares de pessoa que exercia um «patriciado», viesse comprometer e desvirtuar os altos ideais que inspiraram o Acto Colonial.
Como observa o director da Escola Colonial de Paris, Georges Hardy, um funcionário na metrópole confunde-se com toda a população e neutraliza-se no seu procedimento.
Ao passo que nas colónias mesmo o mais modesto ocupa uma situarão central, e por isso é à face do seu proceder que as populações medem as intenções do Governo da metrópole.
De modo que as atitudes de patrício romano de um ou outro funcionário que passariam despercebidas, noutros tempos, nos territórios ultramarinos, logo que os mesmos, sob a designação de «colónias», passaram a ser parcelas ou partes integrantes do «Império», e sem embargo do correcto e patriótico procedimento da maioria, desfiguraram o sentido português daquele termo, porque as palavras também têm a sua lógica.
Este foi o primeiro inconveniente da nomenclatura usada nas reformas' ultramarinas dos últimos vinte anos.
A Carta Orgânica única, ou seja a Carta Orgânica do Império Colonial, agravou o mal-estar.
O artigo 25.° do revogado Acto Colonial determinava que as colónias se regessem por diplomas especiais.
Conjugando este preceito com o do artigo 26.°, que garantia às colónias a descentralização administrativa e a autonomia financeira que sejam compatíveis com a Constituição, o seu estado de desenvolvimento e os seus recursos próprios, era lícito concluir que podia haver mais de uma lei orgânica, e não uma só, visto que a especialidade de diplomas prescrita pelo citado artigo 25.° não pressupõe apenas uma diferenciação entre a metrópole e o império, mas também entre as parcelas que o integram.
Podia o Estado da índia, por exemplo, ter uma carta orgânica própria.
Apesar disto, a Carta Orgânica única, inspirada num ideal de uniformidade administrativa do império, não obstante ter ressalvado especialidades de mero pormenor, forçou inegáveis diferenças.
Daqui, Sr. Presidente, nasceu a convicção, muito generalizada, de que o império não é unitàriamente português, mas de natureza colonial, ao serviço da metrópole, o que tanto feriu a dignidade e o patriotismo de muitos cidadãos portugueses do ultramar.
Dir-se-á que tal convicção promana de um estado meramente psicológico ou sentimental.
Talvez. Mas é necessário admitir-se que o que é sentimentalmente certo também o seja politicamente.
É inegável, todavia - e registo com satisfação -, que sob as reformas ultramarinas promovidas pelo Estado Novo, isto é, à sombra do Acto Colonial e da Carta Orgânica, alcançaram um espantoso grau do prosperidade muitos territórios de além-mar ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- ... designadamente aqueles que tinham vastas extensões por desbravar, populações em regime tribal e pequenos núcleos de europeus ainda não congregados em sociedades estáveis, isto é, aqueles territórios em que era necessário desenvolver uma intensa actividade colonizadora.
Deste modo, Angola e Moçambique, por exemplo, viram multiplicada a sua população branca e civilizada, que incorpora élites e valores sociais do nível dos metropolitanos, como bem se reconhece no douto parecer da Câmara Corporativa acerca da proposta de lei em discussão.
Eu próprio, com alvoroçado entusiasmo, observei, de perto, esse ingente progresso de que tanto beneficiam os Indo-Portugueses e a Nação se orgulha.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Presto, por isso, a minha sincera homenagem ao Governo, e especialmente aos Ministros das Colónias e, hoje, do Ultramar, e aos governadores-gerais daquelas províncias, que devotadamente foram os agentes daquele progresso, envolvendo na mesma homenagem todas as províncias em que se verifica igual recuperação económica e social.
E chego mesmo a sentir que esse progresso, que elevou a Nação, foi de algum modo compensação bastante para as contrariedades do Estado da Índia, ao ver-se integrado juridicamente no bloco dos territórios portugueses a colonizar, sem que de facto houvesse em Goa, Damão e Diu indígenas, no sentido colonial do termo, vastos territórios a desbravar, possibilidades de fixação de população branca, em suma, campo para uma actividade colonizadora.
Mas como os problemas de administração ultramarina não podem ser resolvidos independentemente da consideração de tempo e de lugar, decorridos vinte anos sobre o regime do Acto Colonial, havia necessidade de ser revisto.
O que foi óptimo para Angola e Moçambique pode ser hoje péssimo - até por certas transformações políticas operadas na vizinhança - para outras províncias que suportaram o regime e aguardaram, patriòticamente, que o Governo o modificasse.

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O Sr. Presidente: - Como a hora vai adiantada o V. Ex.ª ainda tem mais considerações a fazer, ficaria V. Ex.ª com a palavra reservada.

O Orador: - Perfeitamente, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Nesse caso vou encerrar a sessão. Amanhã, haverá sessão, à hora regimental, com a mesma ordem do dia. O Sr. Deputado Sócrates da Costa, que fica com a palavra reservada, continuará as suas considerações.
Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 10 minutos.

Exmos. Deputados que entraram durante a sessão:

António Calheiros Lopes.
Délio Nobre Santos.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Miguel Rodrigues Bastos.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alberto Henriques de Araújo.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Júdice Bustorff da Silva.
António de Sousa da Câmara.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Henrique Linhares de Lima.
Herculano Amorim Ferreira.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
José Cardoso de Matos.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José dos Santos Bessa.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Meneses.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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