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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES

SUPLEMENTO AO N.º 205

ANO DE 1953 24 DE FEVEREIRO

CÂMARA CORPORATIVA

V LEGISLATURA

SESSÃO PLENÁRIA N.° 6, EM 23 DE FEVEREIRO

Presidente: Ex.m° Sr. Marcelo Caetano

Secretários: Ex.mos Srs.

Manuel Alberto Andrade e Sousa

Augusto dos Santos Pinto

SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 30 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi lida e aprovada a acta a última sessão plenária.

Ordem do dia. - Prestou homenagem à memória do antigo presidente Domingos Fezas Vital e à do antigo vice-presidente António Vicente Ferreira

Usaram da palavra os Dignos Procuradores José Gabriel Pinto Coelho e Júlio Dantas e o Sr. Presidente.

O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 15 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada. 15 horas e 15 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Dignos Procuradores:

Adolfo Alvos Pereira de Andrade.
Afonso de Melo Pinto Veloso.
Albano Rodrigues de Oliveira.
Alberto de Aires Mateus.
Alberto Lopes Rodrigues.
Aldemiro da Encarnação Mira.
Alexandre de Almeida.
Alfredo Vidigal das Neves e Castro.
Álvaro da Piedade Abreu.
Álvaro da Silva Sampaio.
Amadeu Guerreiro Fortes Ruas.
António Burnay Morales de los Rios da Silva Leitão.
António Correia.
António da Cruz Vieira e Brito.
António Marques Antunes.
António Passos Oliveira Valença.
António Pedro Pinto de Mesquita.
António de Seixas Soares Júnior.
António Van-Zeller Pereira Palha.
António Ventura Santos Fernandes.
Armando António Martins de Figueiredo.
Armando Coelho de Sampaio.
Augusto dos Santos Pinto.
Aurélio Augusto de Almeida.
Carlos Garcia Alves.
Casimiro Macieira.
Domingos da Costa e Silva.
Edmundo Mão-de-Ferro.
Eduardo de Arantes e Oliveira.Ezequiel de Campos.
Feliciano dos Anjos Pereira.
Fernando Jorge de Azevedo Moreira.
Francisco Marques.
Francisco de Melo e Castro.
Francisco Pereira da Fonseca.
Frederico Jorge Oom.
Frederico de Lemos de Macedo Santos.
Guilherme Augusto Tomás.
Henrique José Quirino da Fonseca.
Inácio Peres Fernandes.
Inocêncio Galvão Teles.
João Baptista de Araújo.
João de Figueiredo Cabral de Mascarenhas.
João Francisco Fialho.
João Gonçalves Valente.
João Pedro Neves Clara.
João Ubach Chaves.

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Joaquim de Sousa Uva.
José Altino Machado Vaz.
José de Almeira Ribeiro.
José Bulas Cruz.
José Gabriel Finto Coelho.
José Joaquim Ferreira da Silva.
José Joaquim de Oliveira Guimarães.
José Maria Dias Fidalgo.
José Moreira Rato.
José do Nascimento Ferreira Dias Jtínior.
José da Silva Baptista.
José Tristão de Bettencourt.
Júlio Dantas.
Lúcio Serras Pereira.
Luís Figueira.
Luís Quartin Graça.
Luís Supico Pinto.
Manuel Alberto Andrade e Sousa.
Manuel Alfredo.
Manuel Cardoso Pinto.
Manuel Duarte Gomes da Silva.
Manuel José Lucas de Sousa.
Manuel Mendes de Almeida.
Manuel Moreira de Barros.
Manuel Rodrigues Carpinteiro.
Marcelo José das Neves Alves Caetano.
D. Maria Joana Mendes Leal.
Mário Gonçalves.
Mário Lobo de Ávila.
Mário Luís de Sampaio Ribeiro.
Mário Miguel Gândara Norton.
Mário Monteiro Duarte.
Narciso Tibúrcio da Silva.
Orlando Ferreira Gonçalves.
Pedro Teotónio Pereira.
Quirino dos Santos Mealha.
Rafael da Silva Neves Duque.
Raul Alves Fernandes.
Rui de Melo Braga.
Samwel Dinis.
Tomás de Aquino da Silva.
Virgílio da Fonseca.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 89 Dignos Procuradores.

Está aberta a sessão.

Eram l5 horas e 30 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à leitura da acta da última sessão plenária.

Leu-se na Mesa.

O Sr. Presidente:- Está em discussão a acta.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Como ninguém pede a palavra, considero a acta aprovada.

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Da antiga Procuradora D. Maria José de Novais e dos Dignos Procuradores Afonso Queiró e Farinas de Almeida a associar-se à homenagem prestada pela Câmara dos Profs. Dr. Fezas Vitale engenheiro Vicente Ferreira.

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Como é do conhecimento geral no passado mês de Janeiro faleceram dois ilustres homens públicos, com grandes serviços prestados a esta Câmara: o engenheiro Vicente Ferreira, antigo Ministro das Finanças e das Colónias e vice-presidente do Conselho Ultramarino, que foi Procurador à Câmara Corporativa desde 1935 até à data do seu falecimento ou seja, portanto, durante mais de dezoito anos, e que desempenhou durante seis sessões legislativas sucessivas as funções de vice-presidente desta Câmara, e o Dr. Domingos Fezas Vital, que, muito embora não pertencesse a esta Casa na data em que faleceu, desempenhou no entanto de 1944 a 1946 as funções de Presidente da Câmara.

A Mesa da Câmara Corporativa incorporou-se no funeral de ambos, mas, entendendo que não ficava saldada a nossa homenagem para com a sua memória resolveu que devíamos testemunhar-lhes por outra forma o nosso reconhecimento pelos grandes serviço que prestaram a esta Câmara, e por isso convoquei para hoje esta reunião plenária.

Vou, pois, dar a palavra, para fazerem o elogio do homenageados, aos oradores inscritos.

Tem a palavra no Digno Procurador José Gabriel Pinto Coelho.

O Sr. José Gabriel Pinto Coelho: - Poderá parece ousadia da minha parte tomar a palavra nesta sessão extraordinária, destinada a prestar homenagem à memória de dois Procuradores ilustres que na Câmara exerceram altos cargos e com os seus trabalhos tanto concorreram para o prestígio por ela alcançado. Na verdade, nesta sala, onde tudo nos evoca a lembrança de eloquentes discursos pronunciados por oradores de raça que enobreceram a tribuna parlamentar, mal parece que levante a sua voz quem, como eu - sem falsa modéstia o digo -, é desprovido dos dotes de eloquência que reclama a índole desta sessão, adequados a imprimir-lhe a grandeza e dignidade correspondentes à categoria daqueles que aqui nos propomos consagrar.

Com efeito, habituado há mais de quarenta anos; falar singelamente a alunos em ambiente familiar, a minha oratória é puramente didáctica, buscando a precisão e a clareza. A minha linguagem é, pois, desprovida de atavios de forma.

Mas entendeu o nosso ilustre Presidente que, sendo eu um dos poucos Procuradores que pertencem a esta Câmara desde os primeiros dias da sua existência, tendo desde o início, feito parte da secção a que pertenci: o Dr. Fezas Vital, tendo-o portanto acompanhado em todos os seus trabalhos - nem ouso dizer que fui seu colaborador -, para mais tendo sido seu vice-presidente durante o período em que ele ocupou a presidência, era eu a pessoa naturalmente indicada para fala da sua obra, podendo fazê-lo com particular conhecimento de causa.

Direi que cedi perante estas razões? Serei mais exacto dizendo que aceitei o encargo por dever de obediência Mas foi com grande sacrifício que o tomei sobre mim penhorado, embora, com a honrosa incumbência. Não que me faltasse o natural impulso do coração para enaltecer os méritos de um colega e grande amigo cujas virtudes bem conhecia e apreciava, mas precisamente porque sentia quanto eram limitados os meus recursos para tarefa de tamanha grandeza.

Dadas estas explicações, espero que a Câmara me escute com benevolência e saiba suprir as minhas deficiências, fazendo justiça às minhas boas intenções e reconhecendo a sinceridade das minhas palavras.

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Poucos Procuradores exerceram nesta Câmara uma acção tão notável como o Dr. Fezas Vital.

Não nos surpreende o facto, se tivermos em atenção, por um lado, a situação que na orgânica da Câmara lhe foi destinaria e, por outro lado, as suas qualidades e dotes pessoais.

O posto que logo de início lhe foi confiado chamava-o a intervir constantemente na apreciação dos mais importantes assuntos da pública administração, para os quais era solicitada a atenção da Câmara.

Quanto aos seus dotes pessoais, todos sabemos que ele os possuía em termos de poder desempenhar-se com brilho e proficiência da alta missão que lhe fora confiada.

Os seus predicados de inteligência, a sua vasta cultura jurídica e a sua dedicação pelo cargo tudo eram qualidades predispostas a garantir-lhe uma acção predominante na actividade desta Câmara.

Conhecia de há muitos anos esses predicados, pois conheci o Dr. Fezas Vital desde a sua e da minha juventude.

Fomos contemporâneos em Coimbra. Era eu quartanista de Direito quando ele se matriculou no 1.º ano do curso jurídico. A breve trecho os estudantes do seu tempo o assinalavam como um dos mais brilhantes espíritos e um dos maiores valores da sua geração académica.

Chegara o Dr. Fezas Vital ao 5.º ano de Direito, e, por qualquer motivo que agora não interessa precisar, assumiu acidentalmente a regência da cadeira de Direito Internacional Privado o Dr. Guilherme Moreira, em substituição do titular da cadeira, Dr. Machado Vilela, que a Câmara bem conhece, pois a ela pertenceu e deixou a sua efémera passagem assinalada por trabalhos de alto merecimento. Um dos assuntos então considerados dos mais delicados, dentro do programa da cadeira, e que constituía como que objecto obrigatório de lição dos alunos mais classificados do 5.º ano era o problema dos conflitos de leis, problema em relação com a qual se debatia então acaloradamente a célebre teoria da devolução. Quis naturalmente o Dr. Guilherme Moreira ouvir sobre o assunto o estudante Fezas Vital.

No dia aprazado Fezas Vital deu a sua lição, preenchendo todo o tempo da aula com a sua exposição bem ordenada e clara. No fim, o Dr. Guilherme Moreira, que não era pródigo em elogios, disse, na presença do curso, ao aluno, que ouviu com toda a atenção: "O Sr. Fezas Vital acaba, não direi de dar uma lição sobre o problema dos conflitos de leis, mas de fazer sobre o assunto uma prelecção que honraria qualquer professor". Não sei de louvor mais expressivo que um professor possa dirigir a um aluno.

Estava consagrado o estudante Fezas Vital como futuro candidato ao professorado universitário.

Mas nessa ocasião, precisamente no ano em que Fezas Vital acabava o seu curso, proclamava-se a República em Portuga], seguindo-se as naturais perturbações políticas que acompanham as mudanças de regime quando elas se operam por meio de revolução armada. Desencadearam-se as paixões, dominava grande irredutibilidade entre os adversários políticos, partidários do novo regime e do regime deposto. Fezas Vital, adepto convicto do regime vencido, não podia respirar neste ambiente. Tomou espontaneamente o caminho do exílio, sacrificando assim de um golpe aos seus ideais políticos as suais mais caras aspirações - o ingresso na Universidade. É esta, para mim a primeira grande revelação da firmeza e nobreza de carácter do Dr. Fezas Vital.

Ninguém podia então saber o rumo que os acontecimentos tomariam. Tudo levava até a crer que durante muito tempo se manteria a atmosfera de irredutibilidade entre adversários políticos, que necessariamente vedaria aos inimigos do novo regime o acesso a certos postos mais elevados. A renúncia de Fezas Vital era, pois, definitiva.

Os acontecimentos, porém, evolucionaram, felizmente, de forma diferente daquela que seria de prever.

Com o decorrer dos anos acalmaram-se as paixões; o ambiente tornou-se menos tenso, e deve até dizer-se que a jovem República deu nessa ocasião um exemplo de grande tolerância.

Com esta mudança das circunstâncias políticas renasceram no espírito do Dr. Fezas Vital as suas antigas esperanças, sorrindo-lhe novamente a possibilidade de realizar a sua antiga aspiração de ascender ao magistério da Universidade de Coimbra. E assim começou logo a cuidar da sua preparação para as provas académicas, a prestar.

Iniciou essa preparação ainda no exílio, instalado numa pequena aldeia da Galiza, fronteira a Caminha, sua terra natural, onde o cuidado dos amigos fazia chegar os numerosos livros que lhe eram necessários.

E depois da amnistia de 1914 Fezas Vital pôde felizmente regressar à sua pátria. Prestada a prova de doutoramento, apresentou-se pouco tempo depois ao concurso para assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Concorreu então juntamente com João Maria Telo de Magalhães Colaço, estudante laureado de um curso posterior ao seu, mas que por virtude do atraso sofrido por Fezas Vital no exílio se apresentava com ele ao mesmo concurso.

Prestaram juntos as suas provas e houveram-se com igual brilho. E assim, pelo mesmo concurso, a Universidade enriquecia os seus quadros com dois dos mais valiosos elementos do seu corpo docente.

A Magalhães Colaço arrebatou-o há já longos anos a morte, na plena pujança do seu talento.

Seria agora descabido registar miùdamente o que foi a carreira de Fezas Vital na Universidade de Coimbra e na de Lisboa, onde desde há cerca de vinte anos se encontrava em comissão de serviço. Se evoco alguma coisa do seu passado universitário, faço-o apenas na medida em que isso pode interessar ao exame da sua obra nesta Câmara.

O Dr. Fezas Vital concorrera ao grupo de Ciências Políticas e Administrativas, sector da ciência jurídica pelo qual sempre mostrara decidida predilecção.

Depois do seu concurso, foi-lhe confiada na Faculdade de Direito de Coimbra a regência da cadeira de Direito Político e Constitucional, e na regência dessa cadeira se conservou na Faculdade de Direito de Lisboa.

Deste modo, e sobretudo se tivermos em atenção o objecto dos vários projectos e propostas de lei sobre que a Câmara Corporativa foi chamada a emitir parecer, logo nos primeiros anos do seu funcionamento, reconheceremos facilmente que o Dr. Fezas Vital estava especialmente apetrechado para orientar a Câmara, devendo naturalmente conquistar no seu seio uma posição proeminente.

Foi o relator de grande número de pareceres, e pode reivindicar inteiramente para si a glória desses trabalhos, dadas as condições em que foram produzidos.

Com efeito, é bem sabido por todos os que trabalham nesta Casa que, em regra, é o relator que toma sobre si o encargo de examinar e estudar a matéria dos projectos e propostas submetidos à apreciação da Câmara. É, portanto, o relator quem fundamentalmente esclarece e orienta a Câmara sobre o assunto destes, versando a discussão, no seio das secções convocadas, sobre o projecto de parecer elaborado pelo relator.

Ora foi este o sistema de trabalho regularmente adoptado nos casos em que o Dr. Fezas Vital era relator. Se quanto a alguns dos projectos ou propostas foram chamadas a pronunciar-se outras secções, além daquela

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a que Fezas Vital pertencia, a verdade é que foi sempre ele, com o seu seguro critério, o inspirador da opinião seguida.

Vinte E um pareceres redigiu o Dr. FeZas Vital no período da sua permanência na Câmara Corporativa, que pouco excede uma década.

Mas não é propriamente a quantidade, senão antes a qualidade desses pareceres, o seu valor intrínseco que se impõe à nossa admiração.

Versam esses pareceres sobre os mais variados assuntos e sucedem-se num ritmo impressionante, de tal forma que parece milagre que o Dr. Fezas Vital, cuja atenção era solicitada por outras ocupações, designadamente pelo ensino universitário, encontrasse tempo material para os elaborar.

Este milagre só foi possível duvido ao entusiasmo com que se dedicava aos problemas submetidos ao seu estudo na Câmara Corporativa. Absorviam-no completamente, vivia-os com interesse inexcedível, tendo sempre em mira acreditar a Câmara perante a opinião esclarecida do País e proporcionar-lhe uma demonstração palpável da excelência da instituição.

Seria fastidiosa, além de descabida, a enumeração desses pareceres, e sobretudo a sua apreciação especificada, para que me faltaria a necessária autoridade.

Mas devo destacar de entre eles alguns que melhor dão a ideia do alto valor da colaboração por ele prestada na Câmara Corporativa.

Referirei em primeiro lugar os emitidos sobre propostas ou projectos de alterações à Constituição.

De 4 a 21 de Fevereiro de 1935 apresentou o Dr. Fezas Vital nada menos de quatro pareceres sobre este assunto, pois, relatando em primeiro lugar a proposta ido Governo destinada a modificar certos artigos da Constituição, elaborou a seguir pareceres sobre dois projectos, um do Deputado Manuel Fratel e outro do Deputado Vasco Borges. E por último, tendo a Câmara sido consultada nos termos do artigo 30.º. & único. do Regimento da Assembleia Nacional sobre a proposta inicial do Governo, foi naturalmente ainda ao Dr. Fezas Vital que coube o encargo de estudar o assunto e redigir o respectivo parecer.

Em Dezembro de 1936 novo parecer sobre alterações à Constituição.

Assunto retomado em l937, ano em que novamente, com curto intervalo, relatou a nova proposta do Governo n.º 185), seguida de um projecto de lei sobre funcionamento da Assembleia Nacional, incompatibilidades parlamentares e intimidares dos Deputados.

Mas não terminaria ainda o seu trabalho sobre alterações à Constituição, pois em Junho de 1946, sendo já presidente da Câmara, foi novamente relator do parecer sobre a proposta de lei n.° 110 referente a alterações á Constituição e ao Acto Colonial.

E basta o enunciado do objecto da proposta para se avaliar da delicadeza e gravidade do assunto a que teve de consagrar a sua atenção.

Mas, se são já notáveis os trabalhos sobre reformas constitucionais, tema que era pertinente aos assuntos da sua predilecção e para cujo exame se encontrava especialmente preparado, merece ainda ser posto em relevo o seu parecer sobre a autorização legislativa para a publicação do novo Código Administrativo. Trabalho extensíssimo. em que se estudam as bases dessa autorização; e uma simples vista de olhos sobre as numerosas notas que acompanham o parecer nos permitirá avaliar do trabalho despendido e da riqueza da documentação compulsada.

Nesse mesmo ano foi ainda apresentada pelo Governo uma proposta de alteração às bases para o novo Código Administrativo e mais uma vez teve o Dr. Fezas Vital o encargo de estudar a proposta e redigir o parecer.

Mas agora nos domínios de direito administrativo não fica por aqui a valiosa contribuirão prestada pele professor do grupo de Ciências Políticas e Administrativas, pois, em 21 de Fevereiro de 1938, relata a proposta de lei n.º 183, sobre o regime Administrativo das ilhas adjacentes, e, em Março de 1939, a proposta de lei sobre a reorganização dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa.

Mas não apenas sobre assuntos do direito político e administrativo, que lhe deveriam ser especialmente familiares, redigiu o Dr. Fezas Vital os seus pareceres.

Com a mesma proficiência e o mesmo brilho versou assuntos de ordem económica, para o que basta citar o memorável parecer sobre o projecto de lei n.º 31, apresentado pelo Deputado João Garcia Pereira, sobre concentracões económicas.

Neste e noutros pareceres Fezas Vital teve ensejo de revelar a extensão e solidez da sua cultura geral. O professor de Direito Político não relegara para o rol das coisas inúteis a sólida cultura económica adquirida a Universidade, mercê do admirável ensino de Marnoca e Sousa, que deixava sempre marcada por trabalho notáveis a sua passagem pelas várias cadeiras que lhes eram confiadas, desde a História do Direito Português até ao Direito Eclesiástico.

Antes de escrever o parecer sobre as concentrações económicas já Fezas Vital se ocupara do projecto da lei em que se preconizava a criação de um conselho destinado a fixar os preços máximos dos géneros de primeira necessidade. Aí se ocupa, com a segurança com que o faria um economista, do problema do tabelamento, referindo, com largueza de documentação doutrinal e prática, os inconvenientes do tabelamento ou da intervenção directa do Estado na fixação dos preços, e a inutilidade das tentativas para, por simples expedientes legislativos, interferir no movimento natural do preços, comandado essencialmente por simples factor de natureza económica. Mostra-se conhecedor da mais recente bibliografia, sobre o assunto, sem esquecer os trabalhos de autores nacionais.

A mesma erudição se revela no parecer referido sobre as concentrações económicas, em que, com método irrepreensível e clareza inexcedível, depois de estabelecido um quadro geral, resumido, das diversas formas de concentrações ou coligações económicas, se procura determinar qual a espécie ou espécies que particularmente se consideravam no projecto examinado. Assim o delimita o campo de acção; e, depois do lançar um golpe de vista sobre as vantagens e inconvenientes destes organismos, nem sempre nocivos ou prejudicais à economia, Fezas Vital, referindo os diversos processos que a experiência estrangeira fornece para reprimir os abusos atribuídos a alguns deles, com admirável senso prático mostra o condicionalismo especial que sob este aspecto oferece a economia portuguesa, de base corporativa.

Não lhe são adaptáveis os processos concebidos para uma economia capitalista pura ou de feição plutocrática; e considerando então o problema, no nosso condicionalismo nacional, mostra-nos como a própria legislação corporativa proporcionava já os meios de obvio aos males que se procurava prevenir ou remediar com as medidas novas do projecto.

E justamente, aludindo a este traço peculiar do parecer, não posso deixar de acentuar especialmente os passos, dignos de especial interesse, sobre a orientação geral que o sábio relator preconiza para o corporativismo nacional, que ele entende não dever tornar-se demasiadamente estatista, exagerando o dirigismo e a intervenção dos poderes públicos na vida das actividades nacionais. A acção do Estado deve ser de simples fiscalização; e porque esta estava já suficientemente.

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se distraem para obras pouco úteis, e ao cabo de uns anos conclui-se um plano que sustentará o aumento demográfico, tão pronunciado nos últimos tempos.

Esta é das questões que não tem outra solução humana. O homem que vive na terra à terra fica pertencendo, e o Estado elevará suas receitas no fim de anos e estabelecerá a paz social numa zona onde está ameaçada.

A solução para o problema consta do programa económico nacional que se descreve nu apêndice deste parecer.

Foi estudada em conjunto com especialistas. Tenta aproveitar a água que cai no Alentejo susceptível de ser armazenada e a água que se eleva do Tejo na época em que ela é abundante, usando para este efeito a energia de Inverno deste rio e possivelmente de outros, e, finalmente, procura utilizar os lençóis subterrâneos onde existirem e onde praticamente puderem ser aproveitados.

Os esteios da economia nacional no futuro

9. Mas o caso do Alentejo, arrastado, discutido, falado há tantos anos, não é mais do que uma viga no edifício portentoso das possibilidades nacionais. Para que as vastas províncias do sul do Tejo desempenhem na economia interna o papel que lhes cabe é necessário olhar este rio com olhos de ver. As suas águas, que suo volumosas, podem, em parte, ser desviadas para o sul e ir no Verão fecundar zonas secas. A ligação das bacias hidrográficas do Tejo, do Sado e do Guadiana é o natural corolário de qualquer plano de transformação agrária do terço da área do País que se debate em crises periódicas, conhecidas e insolúveis.

Ninguém, contudo, imagine que este magno problema possa ser cabalmente resolvido sem o simultâneo aproveitamento das vastas possibilidades energéticas do Douro e, consequentemente, sem o aproveitamento dos ricos jazigos de minérios de ferro das suas margens.

O conjunto destas três grandes riquezas nacionais - o Tejo e o Douro, os vastos recursos de ferro do Norte e as possibilidades de rega a Sul - constitui o elemento fundamental da estrutura económica portuguesa.

Com a produção de mais de três biliões de unidades de energia e de duas ou três centenas de milhares de toneladas de ferro e aço e com a rega de duas centenas de milhares de hectares Portugal europeu pode marcar definitivamente a sua posição na vida económica do Mundo e, simultaneamente, com a execução do seu programa, lançar os alicerces de uma industrialização equilibrada, que, dispondo de energia e matérias-primas adequadas e essenciais, tem mais largo mercado para a colocação dos seus produtos.

A importância da economia ultramarina

10. Mas nenhum programa económico nacional pode esquecer que, como a metrópole, o ultramar português é Portugal. As terras de além-mar, por virtude de suas condições geográficas e económicas, têm diante de si um papel de primeira grandeza a desempenhar na vida da Nação. Angola e Moçambique são duas pérolas engastadas no anel brilhante que é a comunidade portuguesa e ocupam ambas, em termos estritamente económicos, um lugar de relevo, que tudo indica poder vir a ser cada vez maior. Por definição está-lhes reservado, nos tempos mais próximos, abastecer a metrópole de muitas matérias-primas essenciais ao seu consumo - e poucas são aquelas que, com proveito, não possam ser por elas fornecidas.

O programa económico nacional reserva a uma e outra destas províncias um lugar importante.

A utilização dos recursos financeiros

11. Neste, como noutros assuntos, a mentalidade nacional necessita do evoluir consideravelmente. Em matéria económica, sobretudo, temos vivido muito de palavras e, infelizmente, em certos casos, de gostos individuais.

A primeira coisa que é fundamental que todos compreendam de maneira definitiva é o seguinte:

O que se gasta em obras reprodutivas, ou não reprodutivas, provém de uma fonte única. Essa fonte não é inesgotável, como, aliás, se comprovou recentemente na actividade pública e privada.

Não sendo inesgotáveis os recursos financeiros, há que desviar os disponíveis para as obras mais úteis - e não servir este ou aquele esquema, que agrada a esta ou àquela entidade, ou satisfaz este ou aquele desígnio.

O conjunto dos recursos financeiros disponíveis, quer provenham de fundos externos, ou de reservas da previdência, ou de excessos orçamentais, ou de economias privadas, ou de empréstimos, é um depósito sagrado que pertence à Nação e tem de ser utilizado, nesta conjuntura difícil da vida nacional, com inteligência e parcimónia.

Reduzidas, por circunstâncias pouco felizes, as grandes disponibilidades, que ainda há dois ou três anos se amontoavam no erário e nos cofres do banco emissor, é mister defender o que resta e o que poderá ser obtido pela redução de despesas e de consumos.

A defesa só pode ser obtida eficazmente pela sua utilização nas empresas mais reprodutivas, naquelas que com menos ou idênticas inversões financeiras produzam maiores rendimentos económicos.

Os apuramentos provisórios do comércio externo de 1949 mostram que, apesar do travão aplicado os importações e da grande redução no poder de compra através de fortes restrições do crédito, o déficit da balança comercial atingiu 5 milhões de contos, números redondos. A diminuição verificada no déficit, em relação ao ano anterior, foi mais devido à baixa nos valores unitários e dos preços do que no peso importado, que ainda subiu de cerca de 126:000 toneladas, 3:037 mil em 1948 contra 3:163 mil em 1949.

Isto significa que os consumos aumentam, apesar das forças opostas que tendem a restringi-los. A pressão sobre os consumos só pode ser neutralizada por apreciáveis aumentos na produção interna, no sentido de os satisfazer tanto quanto possível e melhorar as exportações.

A responsabilidade que impende, por isso, sobre todos, e especialmente sobre aqueles que directamente intervêm na distribuição ou utilização dos recursos financeiros disponíveis, é muito grande e muito grave. Não é coisa para ser encarada de ânimo leve; terá de seguir as normas, aliás seguidas em toda a parte, de conveniente discussão e estudo dos diversos planos que são propostos para realização, tendo em conta as suas finalidades de natureza política, social e económica, sem esquecer quo a população aumenta na razão de mais de l milhão de almas por década, que a natalidade se mantém e a mortalidade tende a diminuir, que o nível de vida precisa de ser melhorado em certos aspectos, que a remessa de recursos invisíveis se torna cada vez anais precária, que o ultramar tem sede de capitais para se desenvolver em escala cada vez mais acelerada, quanto mais não seja para permitir emigração suficiente da metrópole, e que nuvens internacionais indicam tempestades futuras.

12. O programa económico nacional adiante enunciado baseia-se nos princípios acabados de expor: concentração de recursos financeiros, redução de consumos supérfluos, critério utilitário nas empresas a executar,

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Não interessa saber-se o que então lhe disse, preso da inquietarão que me causava o quadro das graves consequências que uma resposta afirmativa acarretaria para a sua vida pública e particular, pois o Dr. Fezas Vital logo me revelara o seu propósito de, se aceitasse o encargo, abandonar, por naturais melindres (próprios do seu nobre carácter), os cargos públicos de confiança que então ocupava: um deles era o de Procurador à Câmara Corporativa, onde ocupava então a presidência.

Importa apenas testemunhar que me apercebi bem, nesse momento, do drama que se passava no íntimo da sua consciência, pois, inclinado já a aceder à honrosa solicitação, como que hesitava ainda perante o sacrifício quase sobre-humano que para ele representava o apartar-se da Câmara Corporativa e quebrar para sempre um labor a que consagrara tantos anos da sua vida e a que se dedicara com tanto entusiasmo.

A sua resposta foi, como se sabe, afirmativa. E assim a Câmara se viu, com surpresa e desgosto, privada não apenas do seu Presidente, mas de um dos seus maiores valores.

Não exagero dizendo que foi ele o principal obreiro do renome alcançado por esta Câmara, pois, dotando-a logo de início com sucessivos trabalhos de alto nível intelectual, foi ele, a bem dizer, o criador do padrão por que tinham de ser aferidos todos os trabalhos que saíssem desta Casa. Assim criou para todos um estímulo, que perdurou mesmo após o seu afastamento.

E afinal, volvidos poucos meses após a sua renúncia, começou o calvário dos sofrimentos físicos, a série de intervenções cirúrgicas com que a ciência o disputou à morte.

A partir dessa data curtos foram os períodos de tempo em que o Dr. Fezas Vital pôde ainda regressar às suas actividades. E com que alegria o fazia sempre! Mas não tardava que sobreviesse nova decepção, de cada vez mais cruel. Submeteu-o a providência a uma longa provação. Dir-se-ia que para santificar a sua alma pelo sofrimento. E na verdade não conheço exemplo mais vivo de resignação cristã e de coragem perante o martírio que foi o final da sua vida. Extinguiu-se por fim, minado pela terrível doença.

Paz à sua alma. E se àqueles que desta vida se apartam é permitido conhecer e dar valor aos sentimentos que deixam nos que cá ficam, conforte-o a certeza de que, pela sua inteligência, pelo seu carácter, pelas suas virtudes e, sobretudo, pelo exemplo edificante da sua vida particular e pública deixou em todos quantos o conheceram um forte sentimento de saudade, de simpatia, de admiração e de respeito.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Digno Procurador Júlio Dantas.

O Sr. Júlio Dantas: - Sr. Presidente e Dignos Procuradores: o prestígio das instituições deve-se quase sempre ao zelo dos primeiros homens que as serviram. Quem fez esta Câmara foi um pequeno grupo de homens de boa vontade que desde a primeira hora encarnou o seu espírito, assegurou a sua unidade, definiu a sua função. Três desses homens insignes desapareceram já na morte: o general Eduardo Marques; o Prof. Fezas Vital; o engenheiro Vicente Ferreira. Sejamos gratos à sua memória. Ao primeiro - homem de guerra - prestou oportunamente a Câmara o preito do seu reconhecimento e da sua saudade. Ao segundo - homem de leis (e um gentil-homem!) - acaba de referir-se em termos lapidares o Digno Procurador Pinto Coelho, reitor da Universidade Clássica de Lisboa. Do terceiro - homem de Estado - quis V. Ex.ª, Sr. Presidente, que me coubesse a honra de falar agora. Queira V. Ex.ª aceitar os meus agradecimentos e as minhas homenagens.

António Vicente Ferreira pertenceu à Câmara Corporativa, como eu, desde que ela se constituiu. em 1935. Fez, como eu também, parte, do Conselho da Presidência. Embora pertencêssemos a secções diferentes, pude acompanhar de perto a sua acção notabilíssima, ouvir o conselho da sua experiência e da sua autoridade, ler os seus pareceres magistrais, ricos de doutrina e de linguagem, admirar o seu bom senso, a sua serenidade, a sua fina e penetrante ironia - forma superior do seu desdém por certas coisas. Aqui trabalhámos durante dezoito anos. Como eximir-me, nestas circunstâncias, ao encargo de falar de Vicente Ferreira? Como recusar este pequeno serviço à sua memória, sabendo, como todos nós soubemos - e com que amargo travo de comoção! -, que o eminente homem público levou a sua dedicação por esta Casa até ao ponto de relatar, quase moribundo, a última proposta de lei que lhe foi distribuída? Eu não podia deixar de aceitar o convite de V. Ex.ª para ocupar hoje esta tribuna. Por todas as razões que aduzi e por mais uma ainda. Não tenho a honra de ser Procurador por escolha ou nomeação pessoal do Governo; sou-o por inerência do cargo de presidente da Academia das Ciências, ao qual a lei atribui a representação, na Câmara, das academias e institutos de alta cultura. O engenheiro Vicente Ferreira - um sábio, além de um estadista- não foi apenas meu colega nesta Câmara; foi meu confrade na Academia a que presido e, título que sobre todos me obriga, foi meu amigo desde os bancos das escolas.

Com efeito, conheci-o há cinquenta e seis anos, quando, na antiga Escola Politécnica, frequentávamos ambos as cadeiras preparatórias - ele de Engenharia, eu de Medicina, Rien, dans l'homme de ringt ans - disse Balzae - ne peut faire préroir la ralcue de l'homme de trente ans. Não sucedeu assim com Vicente Ferreira. Pertencente, como eu, a uma geração que - não sei porquê - não teve mocidade, o ilustre homem público era, já então, simples estudante, o mesmo homem calmo, prudente, reflexivo, ponderado, silencioso, meticuloso, tão parecido com aquele que a Câmara conheceu - a mesma modéstia, a mesma gravidade, o mesmo cachenez. Os mesmos olhos claros e vivíssimos a cintilar por detrás dos cristais da luneta -, que a minha memória já não sabe distinguir, uma da outra, as duas imagens. Os homens que nunca foram moços têm. pelo menos, a vantagem de envelhecer mais devagar. Fomos companheiros e amigos. Depois a vida separou-nos e cada qual seguiu o seu caminho. Só nos encontrámos nas cadeiras do Poder, em 192, ele Ministro das Colónias, eu, pela segunda vez, titular da pasta dos Negócios Estrangeiros. História antiga? Sem dúvida. Mas. Meus senhores, a história antiga também é história. António Vicente Ferreira viveu bastante tempo para ter conhecido duas épocas políticas diferentes; e a sua estatura mental e moral foi suficientemente grande para as ter honrado a ambas. Quando assinámos o compromisso na sala dourada, do Palácio de Belém, abraçámo-nos afectuosamente, como se nos tivéssemos deixado na véspera. Começámos então a viver - ele, com singular brilho; eu, como pude - um dos mais agitados momentos da vida política portuguesa. Tivemos saudades dos bancos, da Escola. Eram muito mais cómodos do que as cadeiras do Poder.

Vicente Ferreira não foi, portanto, apenas um homem do presente; foi um homem do passado. Mas não exageremos o sentido desta expressão. Homens do passado somos, afinal, todos nós - porque o presente começa hoje. A vida pública do saudoso vice-presidente desta

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Câmara abrange, pois, dois períodos distintos. O primeiro - período de actividade política - vai desde Junho de 1912, data em que Vicente Ferreira assumiu pela primeira vez a gerência da pasta das Finanças, até Novembro de l928,- exonerou do cargo de alto-comissário de Angola. O segundo - período de colaboração técnica, burocrática e doutrinária - decorre desde 1928 até à sua morte, e nele avultam (além do munus decente, comum a ambos os períodos) as suas participações valiosas nos trabalhos da Conferência Económica Imperial, do Conselho do Império e da Câmara Corporativa. Vicente Ferreira não é apenas o político activo de 1912-1928, nem apenas o pensador, o filósofo, o didacta, o conselheiro técnico de l928-1953. Não anos daria de maneira fiel a personalidade íntegra. afirmativa e coerente deste homem público quem procurasse apagar na sua biografia qualquer destes períodos. O primeiro foi de luta áspera e difícil. Duas vezes Ministro das Finanças, em 1912 3 3m 1921. Vicente Ferreira assumiu a gerência da pasta das Colónias, no Ministério nacionalista de I923, resultante da concentração das direitas republicanas. Ministério que, sem maioria parlamentar e sem unidade na sua frente interna, procurou, com louvável espírito de sacrifício, encontrar para a crise grave em que se debatia a política portuguesa a solução constitucional que ela não chegou a ter. Sobraçava então a pasta da Guerra - não posso neste momento esquecê-lo - uma nobre figura de militar, alto, louro, esbelto, modelo de elegância e de distinção, que nem Vicente Ferreira nem eu conhecíamos ainda e que nos deu a todos, quando lhe apertámos a mão pela primeira vez, a impressão aristocrática de um Douglas da Escócia ao carur sanglant que viera assentar-se connosco na bancada ministerial. O general Óscar Carmona começava então a fulgurante carreira política que havia de levá-lo, não apenas à mais alta magistratura do Estado, mas ao coração de todos os Portugueses. Não foi longa a vida deste Governo. Mas. por breve que fosse, deu-me tempo bastante para admirar as qualidades políticas de Vicente Ferreira, a firmeza das suas atitudes, a prudência dos seus juízos, a vastidão da sua cultura. Homem de Estado lhe chamei eu no inicio destas palavras. Julgo de inteira justiça classificá-lo assim. Estadista é, por definição, aquele mestre da política prática cuja capacidade de governo abrange e domina todo o complexo de problemas do Estado e que ao mesmo tempo possui a informação exaustiva, a acuidade de percepção, a destreza de raciocínio, o poder de penetração psicológica, a facilidade de expressão verbal necessárias para falando ou escrevendo pôr em equação qualquer desses problemas. Vi o engenheiro Vicente Ferreira nos Conselhos de Ministros abordar sem estorço todas as questões que se apresentavam ao seu exame, fosse qual fosse a pasta por onde elas corriam. Exige a concepção do homem de Estado a rapidez de decisão, a integridade de carácter, a envergadura moral, a fidelidade aos princípios e a si mesmo, a tolerância, a abnegação, a austeridade - a "virtude", enfim, palavra tão grata à antiguidade clássica e tantas vezes repetida, junto da loba de bronze, pêlos oradores da velha Roma. Quem duvidará de que Vicente Ferreira foi um homem de bem? Goëthe, de cuja memória resplandecente Thomas Manu fez a divindade tutelar do novo Humanismo, escreveu um dia: "Governar é fácil; pensar ê mais difícil; mas muito mais difícil ainda é governar e pensar coerentemente de acordo com os ditames da nossa consciência". Estas palavras definem moral e mentalmente o estadista. Vicente Ferreira poderia tê-las aplicado a si próprio.

O que há de particularmente doloroso nesse agitado período da nossa história política é a falta de harmonia e de proporções entre o mérito real de certos homens de Governo e a relativa pobreza da obra que eles produziram. Não tem o direito de queixar-se de que não possuiu valores uma época que tão prodigamente os desperdiçou. O mal - sejamos justos - não estava tanto nos homens como nas condições em que eles eram chamados a governar, dada a impermanência do Poder e a falta de continuidade da acção governativa. Vicente Ferreira (possuiu indiscutivelmente a capacidade; mas não dispôs da oportunidade. Todo o plano de governo exige um mínimo de tempo para a sua execução. Governar é, cada vez menos improvisar. As duas gerências de Vicente Ferreira na pasta das Finanças foram efémeras; a sua gerência na pasta das Colónias breve também. Só no cargo de alto-comissário de Angola, em cujo exercício permaneceu desde Maio de 1936 até Novembro de 1928, se demorou o tempo suficiente (e não foi muito: apenas ano e meio) para deixar uma obra digna do seu nome. Começou então. com o regresso de Angola, o segundo período, voluntariamente apagado, mas não menos notável, da vida pública de Vicente Ferreira. Perante a marcha dos, acontecimentos consequentes do acto militar de 1936 - de começo hesitante quanto aos princípios que informariam a ordem futura, depois claramente orientada em determinado sentido - Vicente Ferreira, que já abandonara os compromissos partidários, renunciou definitivamente a toda a actividade política. Não se considerava, em consciência, responsável pêlos erros do passado; mas estava demasiadamente ligado a ele para deixar de sentir-se também, como os seus colegas da véspera, vencido pelas circunstâncias, mais do que pêlos homens. Renunciar ã política não era, porém, voltar as costas à Nação. Continuou a servi-la, não já no Poder, que por vezes discretamente recusou, mas em (posições de segundo plano, em "lugares de sombra", como ele próprio dizia, em funções técnicas de informação, representação ou consulta, a que a sua experiência e a sua competência não podiam eximir-se. Data deste período a sua nomeação para o Conselho do Império e para a Câmara Corporativa. Os seus, pares naquele alto corpo consultivo sabem bem de que autoridade se revestiram sempre as intervenções de Vicente Ferreira, admiráveis de clareza, de desassombro e de probidade mental. Quanto à sua colaboração nesta Câmara, poderia eu dispensar-me de falar dela, tão de perto os Dignos Procuradores a conhecem. Vicente Ferreira - ainda há pouco o acentuei - fez parte do núcleo de homens que, desde a primeira legislatura, não só honraram a Câmara Corporativa, com o seu saber e com o seu talento, mas que (positivamente a "criaram", que tornaram possível a sua existência, que converteram em realidade viva o esboço tímido, do legislador, e que depois, no decurso de quatro presidências prestigiosas, asseguraram a sua eficiência, a sua unidade e a sua personalidade. Nenhum de nós sabe, naturalmente, que futuro estará reservado a esta Câmara; o que se pensará amanhã da sua organização e do seu funcionamento: como se projectará no tempo esta experiência, que tem, aliás, fundas raízes na nossa história. O que todos nós sabemos e o que o País sabe também - porque não se pode negar a evidência - é que ao fim de dezoito anos a Câmara Corporativa tem uma obra; que essa obra é constituída por alguns milhares de páginas de excelente doutrina em que se reflectem, esclarecem e informam alguns importantes problemas da administração pública portuguesa; e que entre os homens, que relataram os respectivos pareceres - na maior parte juristas - tem lugar de merecido relevo, pela independência do seu espírito, pelo rigor do seu método, pela luminosa precisão da sua prosa didáctica, o Procurador Vicente Ferreira.

Uma das características desta Câmara, Sr. Presidente, está em ser, não a Câmara em que se fala (o luxo da eloquência é para nós excepcional), mas a Câmara em

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que se escreve. Para se escrever é, em regra, necessário pensar; e para se falar não é rigorosamente indispensável. Scripta manent: nisso reside s nossa garantia - e também a nossa dificuldade. Vicente Ferreira - inolvidável amigo! - foi, nesta Casa, um dos homens que pensaram bem - e que escreveram melhor. Antes de vir falar-lhes dele passei pêlos olhos os seus pareceres modelares. O que acima de tudo me impressionou foi a variedade dos assuntos versados. Agora (1935), relata a proposta de lei da "Reconstituição económica"; logo (1936), a louvável iniciativa do Governo sobre o "Regime de importação e destilação de petróleos brutos e seus derivados", primeiro diploma em que se esboçou a "política portuguesa da energia". Ao seu exaustivo relatório acerca do "Plano de Estudos e Obras de Hidráulica Agrícola" {1938) sucede outro, não menos notável, sobre o "Plano de Fomento da colónia de Angola" (1938). Com a mesma segurança com que se ocupa da "Navegação para as colónias" (1939) e do problema político-social das "Casas de renda económica" (1944), traça, a dois passos da morte, com mão trémula mas com firme critério, o parecer relativo aos "Impostos sobre excessos de cotação de alguns produtos ultramarinos exportados" (1953). Dominar, na mesma extensão e profundidade, tão diferentes problemas de governo - às vezes com nota de urgência e sempre em condições precárias de tempo - só poderia fazer quem, como Vicente Ferreira, possuísse a preparação de um homem de Estado. A série dos seus pareceres e a bibliografia que deixou - obras sobre engenharia, comunicações, economia geral, política monetária, fomento ultramarino - constitui documento de uma sólida formação e de uma mentalidade forte e original. Não a mentalidade dialéctica do jurista; nem a mentalidade dogmática do teólogo; nem a mentalidade digressiva e circular do diplomata; nem a mentalidade pragmática do economista e do homem de negócios - mas a mentalidade própria do matemático, simples, clara, lógica, precisa, rectilínea, exacta. Há quem entenda que na época em que vivemos, saturada de tecnicismo, de geometrismo, de simbolismo, a "atitude matemática", quer dizer, o espírito matemático e os seus métodos, é a que melhor se ajusta à expressão do pensamento político. O facto, aliás, não é novo. O matematismo informava já, há vinte e quatro séculos, a vida mental grega; e desde a Renascença que o pensamento moderno tende para uma concepção matemática da ciência universal, sem excepção das ciências da vida - morais, políticas e sociais. Hoje, cada vez mais, governar é prever, saber é medir, raciocinar é calcular. O engenheiro Vicente Ferreira representou, na literatura política do nosso tempo e, em especial, nesta Câmara, esse espírito matemático, apriorista, analítico, dedutivo e eminentemente lógico que, com incomparável nitidez, define, precisa, esclarece, conclui, demonstra as proposições e resolve os problemas.

Eis, Sr. Presidente e Dignos Procuradores, em rápido conspecto, a imagem - como eu a vi - do homem ilustre de que me foi dado falar-lhes. Vicente Ferreira bem mereceu da Nação pêlos seus serviços como professor, como estadista, como patriota, liem mereceu desta Câmara pela competência, pela dedicação, pelo zelo com que a serviu nas funções de vice-presidente, de membro do Conselho da Presidência, de assessor, de relator. Homem modesto e simples, sentiu-se bem no ambiente de silêncio e de obscuridade em que se trabalha nesta Casa. Liberal convicto, houve uma só liberdade que ele reivindicou sempre, intransigentemente, durante toda a sua vida pública: a liberdade de cumprir o seu dever. Não foi buscar às cadeiras do Poder nem nome, nem riqueza, nem situação pessoal. Fez-se exclusivamente pela sua inteligência e pelo seu esforço: o que foi deveu-o apenas a si próprio; e na hora em que se votou à política tudo generosamente lhe deu - e nada lhe pediu. Mais ainda do que a lição política da sua obra, Vicente Ferreira deixou-nos a lição moral da sua vida. A melhor das heranças é o exemplo. Aproveitando o ensejo para me associar também ao pesar da Assembleia Nacional pelo falecimento de um dos seus preclaros membros - o nobre Deputado Linhares de Lima, cidadão exemplar, modelo das mais altas virtudes cívicas e políticas -, curvo-me, respeitoso, perante a memória de dois grandes servidores que a Nação perdeu - e de dois amigos que eu próprio perdi.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: -Ouviram VV. Ex.ªs as orações que acabam de ser proferidas, em que foram evocadas as duas figuras cuja comemoração nos reúne hoje aqui.

Ficou tudo dito; e ninguém poderia dizei-lo melhor.

Um e outro dos nobres oradores da sessão têm títulos de sobra para falar da Câmara Corporativa, das suas memórias e das suas glórias.

Ambos fazem parte daquele grupo inicial que fez o prestígio desta Câmara desde a primeira hora, tal como - recordou-o há momentos o Digno Procurador Júlio Dantas - sucedia com Fezas Vital e com Vicente Ferreira. O Digno Procurador José Gabriel Pinto Coelho, depois de ter relatado alguns dos mais, árduos pareceres até hoje aqui discutidos, exerceu com inexcedível a intuição a Presidência desta Câmara, sucedendo a Fezas Vital, de quem foi colega na Universidade, companheiro de secção na Câmara e amigo de toda a vida. Do Digno Procurador Júlio Dantas - que dizer senão que nos dezoito anos de existência desta Câmara não se encontrou nunca ninguém mais pronto para trabalhar, mais disposto para colaborar, mais dedicado a tudo quanto interessasse à dignidade e ao renome dela?

Os Procuradores Júlio Dantas e Pinto Coelho pertencem, pois, àquele escol que nada veio buscar a Câmara e que soube dar-lhe, com o prestígio dos seus nomes, com o fulgor das suas inteligências e com o afinco das suas dedicações, a sagração definitiva como instituição fundamental do Estado Novo.

Ninguém melhor do que os dois Dignos Procuradores podia, pois, exprimir o sentimento da Câmara relativamente a outras duas figuras cujos nomes ficarão inscritos entre as mais legítimas glórias desta Casa.

Domingos Fezas Vital e António Vicente Ferreira foram do número daqueles que em l935 deram forma a concepção constitucional da Câmara Corporativa, traçando os rumos e definindo os processos que por ela haviam de ser seguidos.

Todos quantos acompanhámos os primeiros passos, necessariamente incertos, da nova instituição recordamos certa inevitável perplexidade da maior parte dos Procuradores, nos quais a enorme boa vontade e uma iluminada esperança não podiam suprir a falta de experiência.

Reuniam-se aqui homens das mais diversas proveniências sociais e até ideológicas. Antigos parlamentares da Monarquia e da República emparceiravam com operários, professores, empresários e técnicos que pela primeira vez cruzavam os umbrais de S. Bento. E todos eram chamados a colaborar na realização de uma nova forma de Estado à luz de uma doutrina nova também, a doutrina corporativa, acolhida com firme confiança por todos, mas cuja prática era para todos uma experiência a tentar.

Duas concepções se defrontavam entre as personalidades mais representativas da nova Câmara: a que atribuía a esta um papel predominantemente técnico, vendo

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nas suas secções o substitutivo das antigas comissões parlamentares, mas com a nova função de esclarecerem os políticos sobre os aspectos que a preparação profissional e a actividade especializada dos Procuradores lhes permitiria analisar com especial competência; e a que queria ver na Câmara desde logo, talvez impacientemente, um órgão dotado também de uma função política, a de no seu seio se caldearem as corporações, a de estabelecer relações constantes das corporações entre si e com a administração pública, a de representar a Nação organicamente estruturada perante os restantes órgãos do Estado e que assim fazia da Câmara Corporativa um elemento activo, e não apenas acessório, da transformação social que se pretendia levar a cabo.

Estas duas concepções chocaram-se logo na comissão eleita para elaborar o Regimento interno da Câmara e a que presidia Vicente Ferreira. Lembro-me da perfeita imparcialidade e isenção com que procedeu o presidente da comissão, que reconhecia provir de outro tempos e de outros climas ideológicos, mas que abriu o seu espírito, com a largueza e a compreensão dos homens superiormente inteligentes, ao debate que ali se travou. Venceu uma orientação mais próxima da técnica do que da política e assim se optou por um trabalho quanto possível feito em pequenas secções isoladas, propício a evitar os debates de opiniões e os choques de interesses, convertendo a Câmara num favo laborioso em que cada célula tivesse vida e conteúdo distintos dos das restantes.

Foi segundo esta orientação que a Fezas Vital coube redigir o primeiro parecer emitido pela Câmara. Quando outras razões não houvesse para ligar o nome de Fezas Vital à história da nossa instituição para sempre, esta bastaria para fazê-los foi ele o autor do primeiro parecer da Câmara. Versando sobre as modificações propostas pelo Governo à Constituição, subscrevem-no apenas os três Procuradores da 18.ª secção. Fora pedido, com urgência, pela Assembleia Nacional, que concedera dez dias para a sua elaboração. Felizmente, Fezas Vital colaborara na redacção da proposta e pôde, com facilidade, cumprir o difícil encargos em 2 de Fevereiro de 1935 estava pronto o parecer e iniciava-se com ele a produção da Câmara.

Era o primeiro de uma série que o digno Procurador Pinto Coelho hoje aqui recordou e em que Fezas Vital se ilustrou como relator, revelando-se em todos eles o jurisconsulto escrupuloso, o técnico exigente e o político de firme orientação que sempre foi. O seu espírito de análise comprazia-se em procurar, esmiuçar e resolver dificuldades, não se contentando rum as primeiras impressões ou com as primeiras soluções, que submetia, por sistema, a um demorado e por vezes torturado exame.

Mas no que não hesitava era no rumo político: tendo dado o seu apoio ao Estado Novo. trabalhara na revisão do projecto da Constituição de 1933, como na redacção de algumas das propostas de revisão constitucional, não apenas como jurisperito, mas como verdadeiro crente nas virtudes da solução dada pela nova ordem aos problemas do momento.

São suas as seguintes palavras, escritas no parecer que relatou acerca da proposta de lei de revisão constitucional de 1945 e que tem a data de 10 de Junho desse ano: "O Governo . . . não descobriu na crise que o Mundo atravessa razões para uma mudança sensível de posição ideológica ou institucional, e, porventura, antes nela encontrou motivos para permanecer fiel aos grandes princípios que nortearam o legislador constituinte de 1933. E se assim é, crê a Câmara Corporativa estar o Governo na verdade política e social".

Não era efectivamente o Dr. Fezas Vital homem que não procurasse a verdade para a amar e a servir.

E, durante os primeiros onze anos da existência, desta Câmara, Fezas Vital relatou muitos pareceres em que pode dizer-se que foi a voz mais autorizada para exprimir o pensamento político que a informo, defendendo os princípios do que chamou a "verdade política e social" de l933.

Mas não é apenas ao relator de alguns dos mais notáveis pareceres da sua já hoje volumosa colecção que é devida a homenagem da gratidão desta Câmara: 2.º vice-presidente na sessão legislativa de 1935-1936. 1.º vice-presidente. sucessivamente, nas sessões legislativas de 1936 e 1943, Fezas Vital foi nesse período o principal conselheiro do saudoso presidente Eduardo Marques, que o ouvia em todas as dificuldades regimentais e que pela sua opinião mostrava especial deferência nas reuniões do Conselho da Presidência. Ninguém, como esse experiente e austero militar, tinha o culto da legalidade e o respeito pelo Direito: sem abdicar nunca da sua autoridade (e posso depor, porque tive a honra de trabalhar bastantes anos sob a sua presidência no Conselho do Império e de servir com ele como vice-presidente nesta mesma (Câmara), Eduardo Marques estudava e ouvia cautelosamente antes de decidir. E, por isso, na presidência da Câmara Corporativa, o general e o professor de Direito completavam-se: a idade não tolheu nunca a Eduardo Marques a firmeza na decisão, como a confiança do seu presidente não dispensou também em nenhum caso Fezas Vital de demoradamente reflectir e ponderar todas as dúvidas que por ele lhe fossem submetidas.

Lembro-me, como se fosse hoje, da noite de Junho de 1944, em que (exercia eu então o lugar de 2.º vice-presidente) nos foi comunicado o falecimento de Eduardo Marques, Juntos, Fezas Vital e eu, dirigimo-nos ao Instituto Português de (Oncologia e aí com o coração amargurado pela perda do amigo respeitado e venerado, tomámos as primeiras disposições sobre os funerais. Passava da meia-noite quando resolvemos vir a S. Bento para onde o féretro devia ser conduzido: aqui penetrámos sozinho, a acordar os ecos do palácio adormecido, para que tudo fosse preparado quanto antes, a fim de receber, horas depois, o corpo do 1.º presidente da Câmara Corporativa.

A partir dessa noite a sucessão de Fezas Vital na presidência da Câmara era um facto indiscutido: dentro e fora desta Casa todos a consideravam imposta por si mesma, consequência lógica e necessária da posição pessoal de Fezas Vital e do papel que, como 1.º vice-presidente, desempenhava havia oito anos. A eleição de aqui o colocou meses depois foi mera formalidade: a escolha estava unanimemente feita desde que a vaga se abrira.

Nunca Fezas Vital exerceu funções, salvo talvez a reitoria da Universidade de Coimbra, cujo exercício lhe proporcionasse tamanho prazer de espírito. A presidência desta Câmara era o seu desvelo e o seu orgulho: nela culminava a dedicação, votada desde a primeira hora, à jovem instituição, e através dela se exprimia a sua ânsia de colaboração na tentativa de novo ordenamento do Estado conduzida por Salazar.

Sei, por isso, o sacrifício que representou para ele abandonar este cargo, quando tudo fazia esperar que o exercesse durante muitos anos mais.

Como a Fezas Vital, o que caracterizava dominantemente a personalidade de Vicente Ferreira era a sua vocação de professor. Este engenheiro era acima de tudo um intelectual. Técnico, adquirira hábitos admiráveis de ordem, de método, de rigor, de medida, de disciplina, de clareza; universitário, não se confinou nunca, na sua especialidade, e quer por via da política, que o lançou nos estudos de economia, de finanças e de colonização, quer por amor desinteressado à cultura,

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possuía um cabedal vastíssimo de conhecimentos, que procurava insaciavelmente alargar.

Também Vicente Ferreira foi, como relator nesta Câmara, um modelo. O primeiro parecer que relatou tem a data de 7 de Fevereiro de 1930 e versou a célebre proposta de lei de reconstituição conómica. O último foi de há dias, acabou-o já no leito da morte: é de 22 de Janeiro de 1953. Neste período de dezoito anos. contados quase dia a dia, o trabalho de Vicente Ferreira foi, como o digno Procurador Júlio Dantas acabou de recordar, extraordinário. Não se sabe que mais admirar nos seus pareceres: se a limpidez da prosa, se a ordem das matérias, se a riqueza de informarão, se a elegância, dos juízos, se o primor das conclusões! E em tudo isto o último não difere do primeiro. O decreto-lei que tributou a sobrevalorização de alguns produtos do ultramar suscitara, como VV. Ex.ª se lembram, acesas discussões. Ao chegar o diploma à Câmara, votada a ratificação com emendas pela Assembleia Nacional, não faltou quem se atemorizasse perante a magnitude e o melindre do problema. Foi a sua dedicação a esta Casa que levou Vicente Ferreira, muito doente embora, a tomar sobre si a redacção do parecer, quando de todos os Procuradores pressentidos para o efeito era o que mais razões tinha para se escusar. O serviço que com a aceitação do encargo nos prestou só eu estou em condições de o avaliar. Mas aceitou com a intenção e com a preocupação de cumprir. E ninguém dirá ao ler o seu derradeiro parecer, que foi relatado por um ancião de quase 80 anos. nos últimos meses da sua vida, já ferido sem remédio pelo mal que havia de matá-lo.

Vicente Ferreira foi, pois, um grande relator em cujos pareceres há modelos de forma e tratados de doutrina que ficarão para sempre como monumentos do labor desta Câmara.

Mas outros serviços prestou ainda a esta Casa. Presidente da Comissão do Regimento, logo no início da Câmara, pertenceu ao Conselho da Presidência desde 1936 até à sua morte. E o Conselho da Presidência como que um senado dentro da Câmara, cujos membros aconselham e auxiliam o presidente na difícil tarefa de conduzir as vinte e tantas secções especializadas que aqui temos. Guardião das tradições que se vão criando, síntese e consciência de uma assembleia compartimentada e tão poucas vezes reunida em plenário, o Conselho da Presidência desempenha um papel de primeira importância na nossa orgânica.

Nele tinha Vicente Ferreira voz sempre escutada com veneração, voto sempre acatado com respeito.

Em seis sessões legislativas consecutivas, de 1935 a 1941, também Vicente Ferreira exerceu as funções de 2.° vice-presidente. Coube-me suceder-lhe nesse cargo. Depois de ter estado alguns anos ausente dos trabalhos da Câmara regressei a eles, a convite do Sr. Presidente do Conselho, em Novembro de 1942, e fui surpreendido logo pela minha eleição para a vice-presidência. Ouvi então dizer que se julgava conveniente não imobilizar demasiadamente todos os cargos da Mesa e proporcionar certa rotação de pessoas. Se me lisonjeou a escolha, penalizou-me a substituição. Tive depois ensejo de manifestar ao meu ilustre antecessor a alta consideração e apreço em que o tinha, nomeando-o, quando Ministro das Colónias, vice-presidente do Conselho do Império Colonial, órgão prestigioso e que ambos pertencemos durante bastantes anos e onde eu tanto aprendi com homens da têmpera, da formação e do valor de Eduardo Marques e de Vicente Ferreira.

Meus senhores: o Doutor Domingos Fezas Vital não fazia parte desta Câmara desde 1946: mas não deixámos nunca de considerá-lo membro da sua família espiritual.

O engenheiro António Vicente Ferreira, esse continuava no exercício das funções que, nas secções de Obras públicas ou de Política e economia coloniais, desempenhava desde o primeiro dia da existência da Câmara: e com a sua perda a Câmara ficou mais pobre.

As instituições políticas vivem da utilidade da sua função no presente e do prestígio das suas tradições no passado. A Câmara Corporativa impôs-se primeiro pelo interesse dos seus, estudos, a cuja colecção já é impossível deixar de recorrer quando se queira versar qualquer problema fundamental da administração pública portuguesa; impôs-se pela genuinidade, da sua composição, pela alta qualidade dos seus juristas e pelo teor dos seus trabalhos, legislativos. Mas o tempo vai correndo sobre ela ... A autoridade que lira do seu préstimo actual - que se procura aumentar sempre - vai acrescendo assim a que lhe vem da obra realizada e da constelação de valores intelectuais e morais que, em representação de todos os sectores da vida portuguesa, tem passado pelas salas discretas onde se realizam as suas reuniões.

Aí, sob a égide dos superiores interesses da Pátria. se têm juntado homens das mais diversas proveniências, pela classe social, pela profissão, pelas actividades, pela ideologia, pela cultura, pela religião . . . Pois é essa diversidade, voluntariamente procurada por força da própria natureza e estrutura da Câmara, que faz o encanto do seu ambiente, enriquece as suas discussões a força a elevar o nível dos seus trabalhos.

A junção de hoje na nossa homenagem, na nossa memória e na nossa saudade de dois homens na aparência em posições tão opostas como Vicente Ferreira e Fezas Vital corresponde assim ao próprio carácter da instituição que profundamente se honra em contá-los ambos, tais como foram, no número dos que mais contribuíram para que a experiência por ela representada vingasse de modo a tornar-se a explêndida realidade de que todos nos orgulhamos e de que espero ainda mais se orgulhem os vindouros.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Está encerrada a sessão.

Eram 17 horas e 20 minutos.

Dignos Procuradores que entraram durante a sessão:

Albano de Sousa.
Francisco José Vieira Machado.
João Mendes Ribeiro.
Dignos Procuradores que faltaram à sessão:
Afonso Rodrigues Queiró.
Alfredo Augusto de Almeida.
Álvaro Salvação Barreto.
Álvaro Valente de Araújo.
António Avelino Gonçalves.
Carlos Pereira da Cruz Cardoso.
Fernando Emídio da Silva.
Isidoro Augusto Farinas de Almeida.
Joaquim Moniz de Sá Corte-Real e Amaral.
José Custódio Nunes.
Luís Maria da Câmara Pina.
Manuel Augusto José de Melo.
Reinaldo dos Santos.
Raul da Costa Couvreur.

O REDACTOR - Luís Pereira Coutinho.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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