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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 213

ANO DE 1953 7 DE MARÇO

V LEGISLATURA

SESSÃO N.º 213 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 6 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.

Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 210 e 211 do Diário das Sessões.

O Sr. Presidente anunciou estarem na Mesa os elementos solicitados ao Ministério da Economia feios Srs. Deputados Paulo Cancela de Abreu e Carlos Moreira, que foram entregues àqueles Srs. Deputados.
O Sr. Deputado Vás Monteiro foi autorizado a depor como testemunha no 5.º juízo correccional da comarca de Lisboa.
Foram recebidos na Mesa, para os efeitos do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os Decretos-Leis n.ºs 39 119 e 39120.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Pinto Barriga, que anunciou desistir da efectivação de um dos seus avisos prévios por, sobre matéria afim, ter, entretanto, anunciado um o Sr. Deputado Manuel Cerqueira Gomes; Salvador Teixeira, para agradecer ao Governo melhoramentos levados a efeito na região transmontana, e Manuel Vaz, na mesma ordem de ideias.

Ordem do dia. - Continuou o debate sobre o aviso prévio do Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu, relativo à execução da lei de amnistia.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Carlos Moreira, Sousa da Câmara, Pinto Barriga, Sousa Rosal, Jacinto Ferreira, Botelho Moniz, Ribeiro Cazaes, Ricardo Durão, Mário de Figueiredo e Paulo Cancela de Abreu.

O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 30 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Finto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António de Sousa da Câmara.
Artur Proença Duarte.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.

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João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Gosta Amaral.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Vasco Lopes Alves.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 63 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 210 e 211 do Diário das Sessões.
Pausa.

O Sr. Presidente: - Não havendo nenhum Sr. Deputado que peça a palavra sobre estes números do Diário, considero-os aprovados.
Pausa.

O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia em satisfação de requerimentos fios Srs. Deputados Paulo Cancela de Abreu e Carlos Moreira, que vão ser entregues a estes Srs. Deputados.
Está na Mesa um ofício do 5.º juízo correccional da comarca de Lisboa a pedir a comparência do Sr. Deputado Vaz Monteiro para o dia 10 do corrente, para depor como testemunha. O Sr. Deputado, consultado, não vê inconveniente para a sua acção parlamentar em depor.

Consultada a Assembleia, foi autorizado.

O Sr. Presidente: - Estão na Mesa, para os fins do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os Decretos-Leis n.ºs 39 119 e 39 120, respectivamente publicados no Diário do Governo n.ºs 40 e 41, 1.ª série, de 2 e 3 do corrente mês.
Pausa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Pinto Barriga.

O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: entre os três avisos prévios que me restam efectivar encontra-se um que trata de matérias afins das do que anunciou o nosso ilustre colega Prof. Doutor Cerqueira Gomes.
É, portanto, singelo dever de cortesia e justa homenagem desistir do meu, não só pela qualidade de bastonário da Ordem dos Médicos que tem o apresentante, mas, principalmente, pela invulgar competência e especial conhecimento da matéria que S. Ex.ª vai versar.
Já que estou no uso da palavra, tenho a declarar à Câmara que os dois restantes os desenvolverei, se as condições de saúde mo permitirem, na discussão das contas públicas.
Eleito como independente e sem mesmo pertencer à União Nacional, pude manter-me inteiramente nessa situação, sem o menor atrito ou dificuldade.
Dei à minha modesta acção parlamentar uma tonalidade política, mas sempre com incidências construtivas e um pouco aquém das minhas humildes possibilidades de técnico.
Da parte do Sr. Presidente do Conselho e dos Srs. Ministros da Presidência e de outras pastas foram dadas todas as facilidades para o que requeri; e sempre que os serviços pareciam emaranhar-se numa resistência passiva, por egocentrismo burocrata - e muitas vezes, há que reconhecer, por exiguidade de pessoal, já sobrecarregado -, esses Ministros, uma vez lembrado o assunto, tomavam prontas providências para os elementos requeridos me serem imediatamente facultados.
As interrupções parlamentares, que sofri - e, vamos lá com Deus, não as desanimei - foram, na sua maior parte, originadas e explicadas pelo meu temperamento combativo, e, há que altamente proclamá-lo, contrariadas por V. Ex.ª, Sr. Presidente, numa altíssima e imparcial compreensão do seu papel e no desejo de manter um equilíbrio ordenado nos debates, com a mais ampla liberdade de tribuna.
O Sr. Dr. Mário de Figueiredo, como leader, nunca me agravou nas suas interrupções, procurando sempre clarificar o meu pensamento político, não o deixando embrenhar em ambiguidades, facilmente exploráveis. Mas, uma vez atingido o seu desiderato - e mesmo que as minhas opiniões chocassem os seus pontos de vista -, com uma perfeita lealdade de beirão e com uma
compreensividade bem digna do seu talento e agudeza de espírito, deixava-me tranquilamente prosseguir o rumo das minhas considerações. Republicano, só me manifestei em contraste com opiniões adversas, e fi-lo sempre livremente, como pôde fazer, com a sua habitual galhardia, entre outros, o nosso colega Sr. Deputado Ricardo Durão.
Fui Deputado independente de 1923 a 1926, e não encontrei maior liberdade de movimentos do que agora nesta Casa.
Dos colegas, mesmo dos mais acérrimos adversários dos meus ideais - honra lhes seja -, fui sempre ouvido com a melhor cortesia lusitana.
Estas declarações devo-as a mim próprio, a V. Ex.ª, Sr. Presidente, à Câmara, ao País e ao meu círculo que me honrou com o mandato.
Procurei sempre cumprir com o meu dever, apesar do grave desastre que sofri e cujas consequências ainda me atormentam.
Esse é o meu legítimo orgulho.
Não penso voltar a falar no período de antes da ordem do dia, e por isso rematei assim estas minhas considerações.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

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O Sr. Salvador Teixeira: - Sr. Presidente: porque continua o descobrimento da região do Nordeste trasmontano, não quero deixar de proferir uma palavra de louvor e agradecimento ao Governo:

1.º Pela próxima electrificação daquela região e escrituração da empresa que há-de levar a cabo o aproveitamento hidroeléctrico do Douro, cujas obras deverão começar ainda dentro do corrente ano, como anunciou há pouco o Sr. Ministro da Economia, em conferência havida com os representantes da imprensa;
2.º Pelo prosseguimento, a ritmo rápido, da construção da ponte sobre o Douro, em Barca de Alva, conforme hoje anunciou um dos grandes diários da capital.

Pelo primeiro melhoramento, um especial bem haja para o Sr. Ministro da Economia e, pelo segundo, por cuja efectivação intercedi nesta Assembleia em 13 de Dezembro de 1949, outro, também muito sincero, para o Sr. Ministro das Obras Públicas.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.

O Sr. Manuel Vaz: - Sr. Presidente: pedi a palavra para me associar às palavras de louvor e agradecimento que o ,Sr. Deputado coronel .Salvador Teixeira acaba de proferir, dirigidas ao Sr. Ministro da Economia, pela declaração feita, há dias, na sua conferência com os representantes da imprensa acerca da electrificação da província de Trás-os-Montes, que encheu as suas populações de jubilosa alegria.
Como Deputado pelo distrito de Vila Real, dessa província, estou certo de, manifestando o meu reconhecimento pessoal, interpretar simultaneamente o sentir dos meus ilustres colegas eleitos por aquele distrito e o das suas populações, significando àquele ilustre membro do Governo o mais profundo reconhecimento de todos nós pela medida de electrificar a província, que em breve será tomada, devida à sua enérgica vontade de bem servir, cumprindo assim um dever de gratidão.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: -Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Consta a ordem do dia, na sua primeira parte, do prosseguimento do debate, cuja generalização foi concedida, sobro o aviso prévio do Sr. Deputado Paulo Cancela, de Abreu, relativo à execução da lei de amnistia.
Tem a palavra, o Sr. Deputado Carlos Moreira.

O Sr. Carlos Moreira: - Sr. Presidente: a larga e ordenada exposição feita pelo ilustre Deputado Dr. Paulo Cancela de Abreu dispensa uma extensa intervenção na matéria que se aprecia. Mas, pela natureza do assunto, que não pode, em boa verdade, deixar de considerar-se de real interesse, e pela posição que desde o início venho tomando em defesa do que considero justa atribuição legal e reconhecimento moral de inauferíveis direitos, não posso abster-me de tomar parte na discussão do presente aviso prévio, prestando assim o meu modesto mas dedicado contributo para a obtenção de uma justa e necessária revisão das disposições legais e, sobretudo, das regras da sua aplicação.
Quero, antes de mais, deixar consignado o agradecimento devido aos ilustres membros do Governo pela prontidão com que foram satisfeitos os elementos
pedidos por mim e pelo Sr. Deputado Paulo Cancela do Abreu e pela maneira cativante por que fomos recebidos nos departamentos do Estado onde nos dirigi-mos para efeito de consulta de processos e elementos respeitantes ao assunto.

O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: quando o ilustre Deputado Jorge Botelho Moniz tomou a feliz iniciativa que veio a transformar-se na Lei n.º 2039, de 10 de Maio de 1950, com aprovação unânime desta Assembeia, pensou-se que havia chegado o momento de apagar dissídios e de se restituir às funções civis e militares muitos portugueses que haviam sido afastados por motivos políticos.
Vinham muitos já de longe, grande parte deles precursores das tentativas de salvação nacional e depois directos obreiros e colaboradores da Revolução Nacional. Lutaram para que ela triunfasse e a maior parte deles devotadamente a serviram sem se amesquinharem, no interesse sempre insatisfeito de muitos que apareceram depois.
Outros foram precisamente arredados pela sua hostilidade e actuação armada contra a Ditadura do Exército e, depois, contra o Estado Novo. Mas, porque de amnistia se tratava, pretendeu a lei abranger o maior número possível, sem curar, num louvável exemplo de pacificação política, dos anseios de uns ou das arremetidas de outros.
Não era um perdão, que do sua essência é particular e limitado, mas unia medida geral e com a largueza, conveniente e necessária.
Pois o que veio a resultar da regulamentação da lei pelo Decreto-Lei n.º 38 267, de 26 de Maio de 1951, e da aplicação deste foi, de uma maneira geral, a contemplação dos últimos e a ineficácia em relação à maior parte dos primeiros.
Por intenção do legislador ou do executor das normas legais? E evidente que não. Mas sim pela deficiência na previsão dos casos e das situações diversas, em que entravam coeficientes vários e que não foram considerados devidamente, como a data mais recente ou mais antiga da demissão, da aposentação ou da reforma, a natureza do serviço ou do quadro, a idade dos funcionários (especialmente na vida militar), a forma por que se viram afastados da função pública, elo.
Já tive ocasião de me referir, quando versei o assunto na sessão de 15 de Janeiro do ano findo, ao caso dos oficiais milicianos, que, por força da limitação contida no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 38 267, não foram abrangidos em virtude de nele se ter imposto como condição, para poderem beneficiar das reintegrações, terem feito parte dos quadros permanentes da Administração. Quer dizer: iguais serviços e sacrifícios, diferentes regalias. É injustiça que brada clamorosamente.
Quanto aos dos quadros permanentes, a maior parte, e especialmente os mais antigos, pois foram demitidos ou reformados em postos subalternos, nada ou pouco aproveitaram. Perderam a sua carreira, que haviam abraçado com amor e tantos deles servido com dedicação, sacrifício e heroísmo, e perderam-na precisamente porque se não conformaram com "a apagada e vil tristeza" do tempo.
A outros, modestos mas devotados e sacrificados mantenedores e defensores da ordem pública - base essen-

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cial de segurança, de liberdade e de progresso -, foi negada a sua readmissão com o fundamento de não terem sido afastados ou demitidos individualmente, mas terem sofrido os mesmos efeitos por virtude da dissolução das respectivas corporações. E o caso dos elementos da Polícia de Segurança Pública do Porto.
De facto esta prestante corporação, então denominada Polícia Civil do Porto, foi dissolvida pelo governador civil daquele distrito, ao tempo o Dr. José Domingues dos Santos, com o fundamento alegado de "torná-la uma corporação que mereça a confiança dos poderes constituídos e do povo republicano", conforme pode ver-se do edital da mesma autoridade publicado no jornal O Comércio do Porto de 23 de Fevereiro de 1919.
Posteriormente surdiu uma confirmação pelo Decreto n.º 5 171, do dia seguinte.
Estava-se em tempo de maré alta de euforia democrática esquerdista, em que a ordem era o atentado e a bomba.
No mesmo edital em que a corporação era dissolvida abria-se a inscrição para o novo pessoal. Escusado será dizer que foram somente readmitidos os "bons republicanos", expressão cujo significado conhecemos nós, os que vivemos aquela época de desordem e de descrédito interno e externo.
Pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, cento e cinquenta e sete pedidos de reintegração foram dirigidos ao Sr. Ministro do Interior por parte dos demitidos. Cento e cinquenta, e sete homens demitidos praticamente por força do hábil estratagema do uma dissolução da corporação a que pertenciam, afastados por motivos políticos, por não serem da confiança da democracia esquerdista, de" triste memória, enquanto que os outros lá continuaram, em face da readmissão logo autorizada. Cento e cinquenta e sete indeferimentos com base na seguinte informação da comissão nomeada para estudar o assunto:

Se bem que tivessem sido de natureza política os factos que motivaram a dissolução, o certo é que o carácter genérico de tal medida não permite - antes impede - que se conclua que tenha existido na base do despedimento de cada um dos elementos que compunham o referido corpo um crime ou uma infracção disciplinar de carácter político. A dissolução é uma medida de carácter administrativo que a lei em certos casos possibilita, e todos os indivíduos componentes do corpo dissolvido se vêem forçosamente desligados do serviço, por mais diversa que tenha sido a sua conduta.
Assim, porque o artigo 1.º da Lei n.º 2 039, de 10 de Maio de 1950, e o Decreto-Lei n.º 38 267, de 26 de Maio de 1951, se referem a crimes políticos ou a faltas disciplinares de natureza política, não podendo, no caso em apreciação, fundamentalmente afirmar-se que os interessados hajam sido individualmente incriminados pelos referidos crimes ou acusados das aludidas faltas, não é de lhes aplicar o benefício da amnistia. Nestas condições, a comissão é de parecer que a pretensão não merece deferimento.

É possível que num sentido literal e rigoroso a informação esteja certa. Mas a lei deve ser justa e compreender dentro do contexto das suas disposições os meios de abranger as situações que mereçam ser consideradas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E a situação desses homens parece não deixar dúvidas de que é digna de ser atendida.
Não posso concordar com a referida comissão quando omite o parecer de que a pretensão não merece deferimento. Concederia que no rigor estreme da lei não pudesse ter deferimento, mas nunca com a fórmula de que não merecia deferimento. Atrevo-me, por isso, a pedir ao Governo que ordene a revisão à face de uma interpretação benévola da lei vigente ou modifique esta no sentido conveniente para atingir esse fim, que ninguém poderá deixar de considerar justo.
Demais, os encargos de ordem financeira não serão demasiados para um tão pequeno número de modestos funcionários, que, de mais a mais, dada a sua idade, se irão reduzindo progressivamente em pouco tempo.
Sr. Presidente: com permissão de V. Ex.ª citarei alguns números que tornarão a matéria mais elucidativa.
Entraram no Ministério do Interior novecentos e vinte e quatro requerimentos, dos quais foram deferidos trezentos e quatro. Houve quem requeresse por motivos de natureza não política. Outros quanto aos quais se não provou que tivessem sido afastados por motivos políticos. Houve ainda outros que só por suas declarações se podia concluir que fora pedida a demissão por motivos políticos. Alguns existem que foram demitidos em consequência de algumas faltas disciplinares. Também alguns - poucos - o foram por motivo de actuação contrária à segurança e superiores interesses do Estado.
Parece-nos que teria sido medida de equidade e de justiça que, em relação aos que só por suas declarações se podia concluir que a demissão fora pedida por motivos de ordem política, se tivesse investigado acerca da veracidade da sua alegação, visto que aos mesmos não foi possível obter os necessários elementos de prova objectiva. Não se aceitaram as declarações nem se promoveu por qualquer meio a confirmação ou infirmação das suas declarações e foi-lhes pura e simplesmente indeferido o pedido.
Do número global acima mencionado e respeitante a funcionários dependentes do Ministério do Interior foram indeferidos sessenta e sete requerimentos por terem entrado fora do prazo marcado.
Registe-se que, se não estou em erro, nem a lei nem o decreto estabeleceram como condição de reintegração a precedência de qualquer requerimento dos interessados.
E julgo que o que se passou sob tal aspecto neste departamento do (Estado igualmente se verificou nos outros departamentos.
Em todos eles, com um grau de percentagem maior ou menor, se encontram funcionários que não tomaram parte, directa ou indirectamente, em movimentos de conspiração ou rebelião e apenas afirmaram posições doutrinárias em desacordo com o Estado Novo.
Não quero afirmar nem negar que naquele momento tivesse sido condenável o seu afastamento, mas é certo que posteriormente muitos deles corrigiram as suas posições de hostilidade, sendo elementos conservadores e contrários a qualquer acção revolucionária e muito mais ainda a doutrinas contrárias à segurança e aos superiores interesses do Estado. Ocorrem neste momento ao meu espírito nomes de alguns professores dos diversos graus de ensino que justamente merecem, por sua posição e actuação, ser considerados. De alguns sei até que batalharam no bom combate das ideias e de outros que nunca esqueceram a sua qualidades de cristãos e de portugueses.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Há de todos, Sr. Presidente, e por isso eu dizia ser indispensável uma revisão à face de uma interpretação benévola da lei vigente ou a modificação desta no sentido conveniente para poder abranger casos s situações tão diferentes. Militares esforçados na manu-

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tenção e defesa Já tradição e da ordem, instauradores e colaboradores directos da Revolução Nacional, doutrinadores do bom combate, embora por vezes arredios por discordâncias (concedamos mesmo que injustificadas), opositores da doutrina e acção política a quem o tempo e a grave desorientação do Mundo levaram a corrigir posições de hostilidade - todos esperam ser atendidos por uma medida de justiça ou de largo e compreensivo espírito de pacificação.
Bem sei, Sr. Presidente, que resultam fatalmente para o Tesouro Público encargos mais ou menos volumosos, mas o homem, graças a Deus, para nós, portugueses, e para os nossos mais altos dirigentes, ainda é o primeiro valor a servir e a salvar.
Bens materiais, engrandecimentos, progresso, estão ao serviço do homem, porque ele é a maior criação de Deus.
Confio em que o Governo da Nação, sempre atento à seriação dos problemas, não deixará de promover a revisão deste assunto, que, pela justiça de que se reveste e pela sua projecção, sem dúvida a muitos releva.
Dará, assim, satisfação moral a alguns, a muitos atenuará a dureza e inópia da sua vida material, e contribuirá poderosamente para a pacificação cada vez mais indestrutível dos portugueses.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sousa da Câmara: - Sr. Presidente: subo a esta tribuna com o desejo de apoiar vivamente o ilustre Deputado Paulo Cancela de Abreu.
Faço-o com profunda satisfação e por duas razões: primeira, porque a causa que defende tem o meu inteiro aplauso, e creio que ela traduz bem a linha de conduta nobre e generosa da Assembleia Nacional.
Depois, porque a sua personalidade de paladino incansável, sempre pronto a entrar na liça em defesa de causas justas, batendo-se com entusiasmo por tudo quanto reputa capaz de enobrecer o País, evidenciando-se galhardamente como um bom exemplo de são parlamentarismo, incita-me a formar a seu lado, buscando a honra de ser seu companheiro nestas diligências que faz a bem da justiça e da Nação.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O discurso do Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu, que tivemos a ventura de ouvir ontem, é uma exposição brilhante, traduzindo um trabalho exaustivo, de seriedade intangível, construída com uma laboriosidade paciente e dedicada, não erguida ao acaso sobre factos discutíveis, mas solidamente, irrefutavelmente apoiada em elementos precisos, rigorosos, de veracidade provada.
Muitos e bons serviços tem prestado o Deputado Paulo Cancela de Abreu ao País e à Assembleia Nacional. Creio não exagerar, porém, afirmando que este será um dos maiores, um dos que mais demoradamente se lembrará, que facilitará ao Governo a realização da obra de justiça, que decerto está no coração de todos nós.
As boas e generosas palavras do Deputado Paulo Cancela de Abreu devem ter provocado muitas lágrimas em olhos amargurados. Não lágrimas de tristeza, mas de alegria...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... por haver quem interpretasse os sentimentos de infelizes com tanta compreensão e delicadeza.
Do seu belo discurso deve ter nascido uma nova confiança, esperando-se que o entendimento e a união de todos os portugueses sejam cada vez maiores e melhores.
O discurso do Deputado Paulo Cancela de Abreu colocou-me, porém, em grande dificuldade, para poder dar a minha ajuda. E que aquele nosso ilustre colega esgotou o assunto! Tratou-o tão amplamente, com tal soma de dados, deu-lhe mesmo tão impressionante emoção, que se torna difícil a situação dos que hão-de intervir neste debate.
A situação já era gravo para mini, se eu tivesse falado ontem, logo a seguir à realização do aviso prévio. Mais grave se tornou hoje, depois do discurso do nosso ilustre colega Carlos Moreira. Ao apresentar numerosos factos, de tão grande interesse para a apreciação do assunto que nos preocupa, comentou-os com tanta profundidade e saber que eu sinto não poderei manter o mesmo nível na minha intervenção. Chego a pensar neste momento que andaria acertadamente se me reduzisse ao silêncio. Talvez essa fosse a melhor maneira de dar a minha cooperação, sem correr o risco de prejudicar ou ofuscar, num discurso inábil, infeliz, o brilho de todo o debate.
Não apoiados.
Saibam, Srs. Deputados, que não tenho ilusões a respeito da pouca ou nenhuma força das minhas palavras. E não se cuide que é uma falsa modéstia que dita tal juízo. A verdade é que me vou convencendo, à medida que os anos passam, quando vejo inúteis tantos esforços que tenho realizado, paxá apoiar ideias, obras ou princípios, que Deus não me fadou para dizer as palavras que convencem - que trazem na sua sonância e significado o poder de atrair ou esclarecer, essas que arrasam dificuldades, que, com lógica penetrante, em argumentação cerrada e definitiva, levam os auditórios a concordar.
Evidentemente, não me queixo senão de mim! Ninguém tem culpa de, nessas situações, eu não haver encontrado as fórmulas convenientes, as frases mestras, as palavras límpidas e cristalinas, que saiam fora da banalidade, que possam chamar as atenções, que consigam remover obstáculos e abrir caminho às soluções desejadas.
Poderão afirmar os meus amigos que eu cometo a falta frequente de fugir a falar, de cultivar demasiado o silêncio, de não vir à barra discutir os assuntos que devo conhecer.
Creio não terem razão! Penso que, por muito que abusasse da vossa paciência, pronunciando numerosos discursos, não daria mais virtude ou mais influência às palavras o continuaria a verificar com desgosto a ineficácia das minhas intervenções. Julgo-me afortunado por ter resistido, muita vez, à tentação de falar, quando possivelmente muito pouco poderia dizer com novidade e quando provavelmente não chegaria a elucidar a Assembleia. A Assembleia ganhou portanto com essa minha atitude e eu evitei a sensação penosa de causar um auditório benévolo.

Vozes: - Não apoiado.

O Orador: - Estas breves palavras dirão que, ao subir à tribuna, vencendo a minha relutância para falar, quando sei haver outros, de maior brilho e competência, possuidores de linguagem mais eficaz, tenho ponderosos motivos.
Realmente, um, e bem forte, é prestar homenagem ao Deputado Paulo Cancela de Abreu; outro, o de reconhecer a grande importância do problema em discussão, afigurando-se-me que ele é de tal transcendência, tem tais repercussões, pode ser de tão marcada influência na sociedade, que justifica a mobilização de todas as boas vontades. Devo confessar sinceramente que para o

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debate que se irava pouco mais posso trazer que a minha boa vontade, além, evidentemente, da ânsia de prestar a melhor e a mais leal colaboração para bem do PaíS.
Sr. Presidente, vou falar em especial do caso referente aos professores. Decerto, ao considerar a sua posição, aludirei mais particularmente aos professores-investigadores. Esta última condição explicará, talvez, paru muitos que me conhecem mal, a posição que tomo na defesa.
Quero referir-me, na verdade, aos professores que se dedicam integralmente às suas cátedras, que fazem das suas vidas, no ensino e no estudo, autêntico apostolado, a esses que devotadamente se entregam à educação dos alunos, que vivem para a Universidade e para os seus trabalhos universitários, a esses, enfim, que são capazes de mostrar lá fora, por força do seu labor e da sua dedicação, o que é o Portugal científico.
Lembro-me, Sr. Presidente, que há quase quarenta anos uma voz se levantou no Parlamento para defender um professor que fora demitido - que fora injustamente demitido - pela demagogia que então imperava!
Esse professor era D. Luís de Castro, conde de Nova Goa.
Ele era um distinto professor do Instituto Superior de Agronomia, um dos seus mais ilustres ornamentos, o entusiasta animador dos estudos de economia rural em Portugal.
Esse homem, superiormente inteligente e culto, ensinava naquele Instituto economia política.
Diziam os seus estudantes, que profundamente o admiravam, que ele dava, na cátedra, a impressão de sei a personificação da objectividade científica. Sabia examinar as questões com absoluta imparcialidade, sempre com respeito pelas opiniões dos outros, educando os estudantes no sentido de jamais se precipitarem nos seus juízos, de atenderem sempre as razões alheias. Nunca, em suas aulas, se ouviu uma palavra agressiva para o regime. Nunca, no ensino, se mostrou adversário das instituições republicanas. Apesar disso, esse homem foi demitido porque publicara um inofensivo artigo, com comentários que desagradaram a quem mandava.
D. Luís de Castro teve com essa demissão um profundíssimo desgosto. Ao ver-se afastado da sua cátedra, do meio dos seus queridos alunos, com quem intimamente convivia, impossibilitado, assim, de prosseguir os seus valiosos trabalhos e a grande obra de educação a que ligava toda a sua vida, D. Luís de Castro sofreu cruelmente.
Afortunadamente, uma voz vigorosa levantou-se no Parlamento de então e defendeu-o. Nessa época o Parlamento não era propriamente esta Assembleia tranquila. Os tempos eram difíceis. A tirania demagógica fazia-se sentir. Muitas tinham sido as perseguições a professores, como continuaram a ser, sempre com a maior injustiça, parecendo ter o objectivo de liquidar os valores que surgiam.
Nesse tempo, o Parlamento poderia ter sufocado a voz do homem que aparecera a defender o professor demitido, por razões políticas, D. Luís de Castro. Mas não o conseguiu. Apesar de tudo essa voz soube fazer-se ouvir. A defesa foi coroada de total sucesso. E D. Luís de Castro, conde de Nova Goa, pôde regressar à sua cátedra, ao seio da sua escola, ao convívio dos seus discípulos, desses que tanto o amavam e admiravam.
Ora, esse homem, que falou no Parlamento para defender D. Luís de Castro, cuja voz vibrou com aquela sonoridade retumbante que reclamam as causas justas, esse homem era um Sousa da Câmara, meu pai.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não me levareis a mal, Srs. Deputados, que eu lhe siga as pisadas, que procure copiar os seus exemplos honrados, que busque inspirar as minhas atitudes nas suas, que pretenda mostrar-lhe agora, quando já passou os oitenta anos, que a força da sua lição não foi esquecida.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Srs. Deputados: bem sei que este sentimentalismo filial nada tem que ver com a atmosfera desta Casa. Mas ele explicará talvez completamente o meu gesto na defesa que vou procurar fazer. E sei bem que ele será incomparavelmente mais simples do que o outro que logrou o reingresso desse notável professor. O ambiente é, graças a Deus, completamente diverso. Não estamos envolvidos em paixões políticas, não nos digladiamos; poderei falar sossegadamente sem receio de que me abafem a voz com interrupções desagradáveis.
Sr. Presidente: eu desejaria falar dos professores afastados do serviço, que admiro, que considero grandes valores para a Universidade, para a ciência que cultivam e para a educação da juventude; que reputo tão patriotas como qualquer de nós, havendo demonstrado em muitos actos das suas vidas, terem despendido os melhores e mais devotados esforços para engrandecer Portugal.
Desejaria, Sr. Presidente, que nas minhas palavras houvesse um elogio para todos os professores que souberam pôr a Pátria acima de tudo, que se dedicaram ao ensino e à investigação, que se entregaram entusiasticamente ao trabalho, nos seus laboratórios e cátedras, nas bibliotecas e arquivos, nas oficinas e campos, sempre na ânsia do elevar a Ciência, e o País.
Mas, na impossibilidade de falar de todos esses, vou tomar um, como figura representativa, um nome conhecido de todos, como um grande clínico, grande professor e grande investigador.
Creio que, ao pensar nessa personalidade, me refiro à, figura prestigiosa que foi aqui apresentada, com tanta eloquência, pelo nosso ilustre colega Deputado Pimenta Prezado no seu discurso memorável de 16 de Dezembro passado.
Ainda se não pôs em devido relevo o valor dessa intervenção do nosso colega Pimenta Prezado, discurso cheio de nobreza e dignidade, pronunciado em linguagem singela e franca - com essa simplicidade e franqueza que são apanágio de um bom alentejano!
Quando aquele nosso distinto colega se referiu a um professor que tinha o poder de atrair discípulos entusiastas, caracterizando-o como um cientista de elevada categoria, tecendo-lhe os mais rasgados elogios, afirmando ser ele um homem de faculdades raras na chamada de vocações, que conseguira formar à sua volta um grupo de médicos estudiosos e dedicadíssimos, formando uma verdadeira equipe, que já produzira uma obra científica enorme, eu compreendi que se tratava do Prof. Fernando da Fonseca.
Apoiados.
Sr. Presidente: espero que V. Ex.ª me perdoe o fazer aqui o elogio deste professor universitário. Mas, muitas vezes, a citação dum caso concreto, dum exemplo bem conhecido, esclarece melhor a situação que muitas considerações de ordem geral.
Este professor simboliza, a meus olhos, o genuíno professor universitário. Defendendo-o a ele, julgo que defendo todos os que, duma maneira ou doutra, tenham trabalhado pelo engrandecimento universitário.
Diz-se que nas lições se retraía sempre o carácter do professor que as dá. Pois ouçam VV. Ex.ªs o trecho que

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seguidamente vou ler de uma lição de Fernando da Fonseca:

Meus senhores: se no começo da minha lição prestei homenagem aos professores que me ensinaram, não quero terminá-la sem agradecer aos novos com quem aprendo.

É à sua colaboração que devo parte do que lhes acabo de expor. E é tão grande, que fujo de a citar, no receio de que nada fique para mim. Mas devo-lhes mais do que isso. Devo-lhes a mocidade que me emprestam e que outros mais tarde lhes pagarão, e que me leva a mim, médico prático desta cidade de Lisboa, a manter um certo interesse pelas coisas da Ciência e a todos nós, os do grupo que trabalha no mesmo serviço, a fazê-lo com um entusiasmo, uma dedicação, uma confiança e um espírito de camaradagem que me trazem ao pensamento esta outra ilusão agradável, que não quero desfazer, mas que quase me envergonho de confessar: que seria assim que se faria uma escola.

Nestas palavras se vê fielmente reproduzido o carácter do mestre, desse que soube formar discípulos, que os sabe apreciar e que se dispõe a partilhar com eles os louros de todos os êxitos.
Trata-se de um desses homens extraordinários que prontamente conquistam as simpatias dos alunos, que, sem dificuldade, os levam a trabalhar entusiasticamente, só com o desejo de aprender, de alargar cada vez mais a esfera dos seus conhecimentos.
Trata-se de um desses homens raros que conseguem conciliar a sua actividade investigadora com o ensino, mantendo sempre as suas prelecções num alto nível. Não é um professor que vive dos livros-textos - tantas vozes velhos de algumas décadas -, mão é o professor que só satisfaz a repetir a ciência dos outros, é, pelo contrário, o professor que, busca incansavelmente dilatar as fronteiras do saber.
É, em suma, o mestre que, rodeado dos seus discípulos, se entrega desinteressadamente, pela ciência e pela humanidade, à investigação científica.
Note-se que o seu centro de estudos funcionou sem qualquer estímulo de ordem material. O professor não dispunha de lugares de assistência, nem podia proporcionar qualquer remuneração. E, no entanto, os estudiosos apareceram sempre, chegando quase a disputar os lugares de trabalho desse famoso centro de estudos, no Hospital do Rego, de doenças infecto-contagiosas. Aí se formaram cientistas do mais alto valor.
Hoje, ao pensar nessa plêiade brilhante de médicos, conhecida não só em Portugal, mas no estrangeiro, que já deu quatro professores - Fraga de Azevedo, Manuel Pinto, Juvenal Esteves e Cambournac - e que inclui homens como Madeira Pinto, Marques da Gama, Andersen Leitão, Leopoldo Figueiredo, Castro Amaro, Francisco Branco, Norton Brandão, Soares Franco, Piedade Guerreiro, Oliveira Machado e tantos outros, sem esquecer, evidentemente, o nosso ilustre colega Pimenta Prezado, tenho a convicção de que muito poucos mestres em Portugal terão chegado a resultados tão notáveis na formação de uma escola científica.
Naturalmente, a sua obra é considerável. Muitos trabalhos saíram dessa forja d(c) investigação científica o levaram o nome de Portugal no estrangeiro, colocando-o a grande altura, em congressos internacionais, conferências e reuniões de vária índole científica. Os conhecimentos adquiridos foram utilizados na clínica, e por certo vastíssima e utilíssima foi a acção do grupo de Fernando da Fonseca no combate a numerosas enfermidades.
A lista dos trabalhos publicados é enorme! Nem me atrevo a mencioná-la, ainda que sumariamente. Lembrando apenas os trabalhos que me parecem mais notáveis - trabalhos que honrariam qualquer centro reputado de estudos do estrangeiro-, quero aludir ao estudo da febre Q, à identificação e isolamento do vírus da pneumonia atípica, à identificação dos agentes da febre recorrente em Portugal, ao estudo de certas infecções provocadas por rickettsias e à contribuição para o estudo das formas exo-eritrocíticas da malária.
O ilustre professor espanhol Marañon, admirador de Fernando da Fonseca, convidou-o a escrever a obra da sua colecção dedicada à Diabetis mellitus. Essa obra foi editada em 1933 e encontra-se esgotada. Igualmente esgotado está outro livro de Fernando da Fonseca, também editado em Espanha, sobre o tifo exantemático.
Isto dirá, sabendo-se como são avultadas as tiragens de livros de medicina no país vizinho, como o nome de Fernando da Fonseca é conhecido no mundo científico.
Pois este homem, com tal folha de serviços, foi afastado do professorado, Receou-se naturalmente que, sem meios de trabalho, ele deixasse os seus estudos, as suas investigações, que dissolvesse aquele magnífico grupo de colaboradores que tão laboriosa e inteligentemente criara, que enfim se entregasse exclusivamente à clínica, onde sempre brilhou a grande altura. E assim sucederia se o Prof. Francisco Gentil, ilustre director do Instituto de Oncologia, o famoso criador e organizador dessa bela instituição, não lhe tivesse concedido generosa hospitalidade, proporcionando-lhe os meios de trabalho indispensáveis.
Mas aí, apesar do ambiente carinhoso que encontrou, já não lhe é possível recrutar novos elementos para a investigação, para continuar as tradições do seu "grupo de colaboradores". O afastamento da cátedra inibe-o de contactar com os estudantes, de averiguar onde estão os valores das sucessivas gerações, onde só encontram os mais interessados pelos problemas da investigação científica relacionada com a medicina.
E tenho a convicção de que a grande obra do mestre foi formar tantos discípulos de tão elevada qualidade, conseguindo esta coisa notável: que todos sejam seus amidos. Ao pensar, nesses fiéis colaboradores, nas suas qualidades, na energia com que empreenderam as suas vidas profissionais, inspirando-se nos exemplos magníficos que constantemente dava o seu professor, sinto, na verdade, que a maior obra de, Fernando da Fonseca foi a escola que conseguiu criar.
Trata-se, pois, de um valor científico indiscutível. Mais: trata-se de um educador; trata-se de um impulsionador de investigadores; trata-se de uma dessas presenças capazes de levar o entusiasmo a todos, mesmo aos mais desanimados.
Além disso, com o seu carácter, a sua bondade, o seu amor à Ciência, a sua honradez, a sua paixão em difundir os conhecimentos adquiridos, a sua natural tendência gregária, de procurar o trabalho de equipe - virtude tão rara entre portugueses -, Fernando da Fonseca reunia todas as qualidades para conseguir esses êxitos, como mestre de uma escola científica.
Este professor é justamente um desses homens que convém manter nas Universidades, esses que as robustecem, que as levam ao seu verdadeiro caminho da educação, do ensino e da investigação. Houvesse mais exemplos destes e acabaria por perder-se o uso da sebenta, com todos os seus vícios, deixaria do verificar-se, como tão frequentemente sucedo, o resvalar da maioria dos professores para o verbalismo e para o emprego quase exclusivo da ciência alheia!
Houvesse nas Universidades muitos professores deste tipo é não assistiríamos ao espectáculo desolador do certos professores falarem de tudo, num à-vontade
desconcertante, com críticas despropositadas, umas vezes forjadas à pressa, som o rigor e a objectividade cientí-

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fica que a educação universitária devia imprimir, outras vezes em alarde de confusão, numa baralhada de ideias importadas e de livros estrangeiros mal digeridos e até mal traduzidos.
Houvesse no ensino universitário muita gente da têmpera de Fernando da Fonseca, trabalhando com seriedade e desinteresse pelo bem da Ciência e da Pátria, capaz de dar constantes exemplos de bondado e generosidade, e outra coisa muito distinta seria a Universidade!
Pois, Sr. Presidente, um professor como este encontra-se afastado do serviço.
Teve ele, na realidade, faltas políticas? Pois, se as cometeu, elas foram de tal ordem que eu nada consegui apurar, apesar de há bastante tempo ter procurado saber em que Fernando da Fonseca teria prevaricado. Pelo contrário, à medida que procurava conhecer bem como era o Prof. Fernando da Fonseca, só vi razões para mais o admirar.
Até lhe fui descobrir virtudes militares! Com grande satisfação pude ler o que consta da sua folha de serviços militares, vendo que pertenceu ao batalhão n.º 23, que voluntariamente se ofereceu, em Outubro de 1918, para constituir uma unidade de assalto, que participou na última grande ofensiva e que por esse facto foi condecorado.
Mas teria ele cometido faltas políticas ? Não, Sr. Presidente, não creio que um homem como Fernando da Fonseca - professor, investigador, clínico - tivesse ainda tempo para se dedicar a uma coisa tão absorvente como é a política! Um professor que estuda, que trabalha na sua missão, que se entregai a ela em verdadeiro apostolado, não tem vagar nem disposição para manobras políticas.
Deus permita que a voz do Deputado Paulo Cancela de Abreu seja ouvida e que dessa forma, na amnistia concedida aos que a merecem, seja concedido também o regresso dos professores às suas cátedras - a esses professores que sabiam desempenhar bem a sua elevada função de professores universitários e que sempre foram bons patriotas, ansiosos por engrandecer Portugal.
Sr. Presidente: vou acabar. Disse que há quase quarenta anos, em tempos de agitação parlamentar, um Sousa da Câmara ganhou honrosa vitória, obtendo com um discurso a readmissão dum ilustre professor, injustamente suspenso por motivos políticos. Não posso crer que neste período tranquilo, de paz construtiva, vivendo-se em atmosfera de bondade e de justiça, um outro Sousa da Câmara, por uma causa semelhante, possa ser agora derrotado.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: depois de ouvir os brilhantes oradores que me antecederam, a minha intervenção é quase que uma modesta repetição no que disseram, uma explicação de um voto, mais nada.
Bem haja, Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu, digo com toda a força desta expressão.
Não falo aqui como republicano, o ainda que esto debate interesse a tantos republicanos, mas como português.
Não quero iniciar estas considerações sem lembrar o nome do meu prezado amigo e colega Sr. Botelho Moniz, que foi a alma da lei cuja, execução provocou a presente discussão.
O Sr. Deputado apresentante redigiu o seu aviso prévio no sentido de ser revista a aplicação da lei de amnistia, n.º 2039, com as suas omissões clamorosas, com seus flagrantes contrastes, beneficiando uns e esquecendo outros, apesar de todos os desvelos de uma aplicação bem humanizada que o Sr. Ministro da Presidência lhe procurou imprimir, dando a mais carinhosa elasticidade aos textos legais, e em que foi valiosamente secundado pelo Sr. Dr. Bento Coelho da Rocha, que foi incansável. As formalidades requeridas para a individualização da lei sofreram, pela própria natureza do texto, interpretações diversas, não talvez nas instâncias superiores, mas nas repartições respectivas, como, por exemplo, exigindo requerimentos onde se poderia supor que haveria uma simples aplicação automática da lei. Uma lei de amnistia deve ter um critério de interpretação iluminado pelos mais largos e generosos dita/mês de concórdia, ampliando-lhe o espírito magnânimo e reparando assim manifestas desigualdades, que atingem monárquicos ou republicanos, ferindo, afinal, portugueses.
Os homens que este aviso prévio visa devem ser daqueles de quem dizia Salazar: "Eu sei o que valem e custam as convicções sinceras para que não tenha por elas absoluto respeito".
São homens que sacrificaram a sua vida por uni ideal que de muitos deles não é o meu.
Ao relembrar o caso dos professores universitários reformados compulsivamente ou demitidos, sobretudo os de Medicina, há que não ignorar a intervenção do ilustre Sr. Deputado Pimenta Prezado e reter na nossa memória a magnifica oração do Sr. Deputado Sousa da Câmara. A acção política desses professores, se a tiveram, é demasiadamente apagada em relação ao seu valor intelectual e científico. São homens de uma elevada abnegação profissional. Não falo como universitário, mas como português.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sousa Rosal: - Sr. Presidente: mais uma vez ecoam nesta sala palavras de concórdia e de justiça.
Palavras que exprimem sentimentos que vivem permanentemente no íntimo dos homens que servem a nossa política, no seio da qual não tem troco o ódio pelo ódio, que é moeda de fracos e impotentes.
Palavras dirigidas ao Governo, que as entende muito bem, e por isso confiamos que serão tomadas na devida conta.
Não venho apreciar neste debate casos do pormenor, difíceis de comentar por quem não tem, como eu, em mãos os elementos que conduzem a objectivas o justas conclusões.
Aquilo que sei e poderia dizer foi em muito ultrapassado no substancial e sentido discurso proferido ontem nesta Assembleia pelo ilustre Deputado Dr. Paulo Cancela de Abreu, com a inteligência, o senso político e a nobreza de sentimentos que timbram a sua destacada personalidade.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Uma repetição dos factos apontados por boca minha, pobre em recursos oratórios e oral deduzida, seria tida como inútil e impertinente.
Não apoiados.
A minha intervenção neste aviso prévio limita-se a pouco mais do que dar o meu aplauso ao pensamento que tem animado homens de diferentes nuances ideológicas, que há tanto tempo se batem juntos, com persistência e grandeza de ânimo, para que todos os portugueses possam viver como irmãos nesta terra aben-

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coada, que estamos a cavar com pulso rijo e a fecundar com o suor do nosso rosto, para a legar em paz e próspera a nossos filhos. Terra onde foi possível criar um clima político em que podem trabalhar unidos, e trabalham, em que podem colaborar lealmente, e colaboram, homens que assentam o seu ideal político em conceitos filosóficos diferentes.
Tudo pelo amor dos homens e por amor da Pátria.
Acompanho as solicitações dirigidas ao Governo para que se reveja a doutrina e a aplicação do Decreto-Lei n.º 38 267, de 26 de Maio de 1931, instrumento de que o Governo se serviu para dar execução à Lei n.º 2 039, de 10 de Maio de 1950, desejando que os seus benefícios se estendam com generosidade até onde as condições de ordem administrativa e financeira o permitam, sem se esquecer o espírito de completa reparação que tem presidido sempre aos debates nesta Assembleia sobre este assunto da amnistia, para que se apaguem na verdade os "últimos vestígios de passadas discórdias", como é desejo expresso do Governo, manifestado no final dos considerandos do Decreto-Lei n.º 38 267, e sem ofender os direitos legítimos de terceiros.
Estes direitos seriam respeitados, no que se refere ao meio militar, desde que as reintegrações e promoções previstas o fossem para a reserva ou para a reforma e nos casos excepcionais, de admitir, de passagem às classes activas bastava que os atingidos ingressassem nos quadros respectivos, nas situações de supranumerários permanentes, até à passagem às situações de reserva ou de reforma.
Porque esta Lei n.º 2 039, chamada "de amnistia", procurou de certa maneira acarinhar no seu artigo 4.º queridas aspirações dos militares que se inutilizaram ao serviço da Pátria, quer nos campos de batalha, quer na manutenção da ordem pública, muito embora com providências que resultaram inoperantes, possivelmente mercê do plano em que foram colocadas, e por se ter feito silêncio sobre elas no Decreto-Lei n.º 38 267, julgo não ser despropositado dizer ainda algumas palavras acerca dos inválidos militares a quem o Sr. Deputado Dr. Paulo Cancela de Abreu se referiu sentidamente, com o propósito de chamar a atenção do Governo para a situação desses homens que a morte tocou e não quis levar, para que fossem exemplo vivo do amor da Pátria, do culto do dever e do espírito de sacrifício.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Palavras que levam a considerações que, não tocando propriamente a letra da lei da amnistia, são solicitadas pelo espírito bom de que se reveste o aviso prévio.
Para tal não me desejo meter no emaranhado das providências legislativas publicadas sobre inválidos militares, por desnecessário ao fim que me orienta nesta intervenção, neste particular, que é simplesmente o de solicitar ao Governo que mande rever a delicada situação dos que se inutilizaram para a vida ao serviço da Pátria.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - No entanto, sempre direi, para melhor compreensão daquilo que é hoje, e mão parece bem, alguma coisa do que foi.
Na Lei n.º 1 170, de Maio de 1921, reconheceu-se aos inválidos militares o direito à pensão máxima de reforma, o que foi confirmado depois no, Decreto n.º 10 099, de Setembro de 1924.
Com o Código de Inváli4os, aprovado pelo Decreto n.º 16 443, de Fevereiro de 1929, foi-se mais além.
Substituiu-se a pensão máxima de reforma pelo vencimento da efectividade e deu-se-lhes o direito à promoção.
Com o Decreto-Lei n .º 28 404, de Dezembro de 1937, em seu artigo 22.º, revogou-se o Código de Inválidos, cessando o direito à promoção, e fixaram-se as suas pensões nos quantitativos que estavam recebendo. A aplicação da doutrina deste artigo 22.º representou para os inválidos militares uma dura quebra de regalias, que os chocou profundamente.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Por um lado, foram privados, por imposição brutal do destino, de continuar a acompanhar nos postos e a receber as honras e a cumprir os deveres inerentes a eles aqueles com quem ombreavam e acamaradavam antes da invalidez, e, por outro lado, viram os seus vencimentos definitivamente fixados num montante inferior àquilo que nessa altura foi considerado remuneração justa para as classes activas, a que estavam equiparados.
O custo da vida foi aumentando e os inválidos militares alinharam com os outros servidores do Estado na situação de reforma nos suplementos que foram sendo concedidos como compensação pelo aumento do custo da vida e distanciando-se cada vez mais das remunerações das classes activas, por não ser reconhecido pela Administração às classes inactivas o direito ao menino índice de aumento do custo da vida.
Diz-se que um dos fundamentos que levaram à revogação do Código de Inválidos foi o que abusivamente se fez à sua sombra em benefício de alguns. Se assim é, parece não ser de boa norma pagar o justo pelo pecador; teria sido preferível rever as situações, para colocar cada um no seu lugar, com aquilo que se lhe devesse em honras e proventos.
Porque não se procura de certa maneira arrancar os inválidos militares à situação deprimida em que se encontram?
Podiam alterar-se as suas graduações dentro da técnica estabelecida pelo Código de Inválidos para as promoções, sem os vencimentos correspondentes, o que em nada pesaria no Tesouro, e assim se daria satisfação a um íntimo desejo e se reparariam as situações de desigualdade criadas pela suspensão daquele código, em virtude da desigual promoção durante a sua vigência por efeito do desequilíbrio de promoções entre os diferentes quadros do activo.
Quanto a vencimentos, podia voltar-se ao que inicialmente foi legislado, restabelecendo o abono da pensão máxima, aplicando-se-lhes a doutrina do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 28 404, que regula as reformas extraordinárias, com a intenção e o significado que tinha nessa altura a expressão "pensão máxima". Pensão máxima queria dizer vencimento do activo, e só porque as leis de vencimentos voltaram as costas às leis de reforma a pensão máxima é hoje inferior aos vencimentos do activo em 30 por cento do vencimento-base.
Seria de todo o ponto justo, enquanto este estado de coisas se não modificar, que o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 28 404 fosse esclarecido no sentido de que a pensão máxima, dos reformados extraordinariamente beneficiasse do suplemento
que é aplicado às classes activas.
Não nos devemos esquecer, Sr. Presidente, que esses homens foram detidos no ascender da sua carreira e em pleno vigor da sua vida porque o corpo se inutilizou expondo-se na plenitude do seu esforço para servir a colectividade, para servir a Pátria.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

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O Orador: - Mas a alma ficou de pé e porventura mais viril, para tormento deles, por se sentirem inaptos para as coisas grandes da vida que voluntariamente escolheram e que serviam com paixão e por se verem desaproveitados para as pequenas coisas em que poderiam ser úteis mo meio militar que fossem compatíveis com as suas categorias. As suas mutilações lembrariam os gestos perigosos ou heróicos que as provocaram, dizendo aos novos como se escrevem os feitos gloriosos que a nossa história conta.
São estas as coisas que me vieram ao pensamento e que me senti obrigado a dizer, nesta oportunidade que se me ofereceu, no desejo de ser de qualquer maneira útil a quem tanto merece.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Jacinto Ferreira: - Subo a esta tribuna possuído de sérias dúvidas sobre a utilidade - não da utilidade moral, mas da utilidade prática - da minha intervenção. Valerá a pena? E se a realizo é, em especial, com o intuito de manifestar uma profunda simpatia e um elevado respeito por homens que se sacrificaram pelos ideais que eu também abraço e para deplorar a amarga desilusão de que eles foram vítimas, ao verem negada ou insuficientemente distribuída uma justiça a que tinham pleno direito.
Mas não só por esses ideais superiores eles se sacrificaram - e isso constitui exactamente o maior motivo de decepção -, mas porque estiveram sempre na brecha, combatendo pelas aspirações de ordem, de moralidade pública, de administração austera, de prestígio nacional e de engrandecimento pátrio.
O motivo das dúvidas quanto à utilidade das minhas palavras não se baseia numa falta de fé na razão que lhes assiste. Não; o motivo é outro.
Os governos modernos vão-se caracterizando por uma estranha aversão a reconhecer, não digo já os seus erros, mas até mesmo as imperfeições ou os equívocos em que incorrem.
Erros, não há pessoa isenta de os cometer, e, como diz a sabedoria popular, "Mais erra quem mais conta".
A possibilidade de o homem errar vai-se acentuando à medida que aumenta a complexidade dos empreendimentos a que se dedica. Que pode admirar, pois, serem os governantes mais sujeitos a errar do que os governados, se é máxima a complexidade das suas funções, se é inexcedível a diversidade dos objectivos a que se dirigem as suas resoluções?
Mas a noção falsa, que se tem pretendido criar, do prestígio do Poder liga a este prestígio uma necessidade de aparência de infalibilidade, de omnisciência, que não se conjuga, afinal, com as realidades da fragilidade humana, mesmo nos domínios do intelectual. Traduz-se, porém, na prática governativa de fugir a emendar a mão, mesmo quando se demonstra não ter sido justa, conveniente ou oportuna a decisão tomada.
Poderá esta atitude explicar-se por parte dos governos infelizes, que nada fizeram ou puderam fazer de benéfico para a comunidade, cujos destinos foram chamados a dirigir, porque esses, já que não podem proclamar benemerências, evitam, ao menos, que alguém possa lançar-lhes em rosto os deslizes confessados.
Mas ela depara-se inteiramente injustificada aos governos que, através de anos, conseguiram adquirir, muito justamente, direito à gratidão dos governados em muitos aspectos da sua actuação.
No fundo desta mentalidade tão difundida na época actual devemos reconhecer, sem dúvida, uma manifestação de orgulho político, uma revivescência de iluminismo à século XVIII, em que alguns súbditos acreditarão e em que outros fingirão acreditar, mas que a massa geral não poderá deixar de acolher comi profundo cepticismo.
Por mim, entendo que tal estado psicológico está longe de ser o mais conveniente para o prestígio da função governativa, porque o considero de resultados contraproducentes no campo político, tal como tudo o que seja desumanizante ou que vise a quase divinizar os homens.
Certas disposições do regulamento da Lei n.º 2 039 e certos aspectos da aplicação deste constituem erros evidentes, porque conduziram a uma alienação de simpatias, em consequência da profunda desilusão que provocaram.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Em princípio, uma amnistia é uma dádiva generosa de quem pode a favor dos que precisam. É uma palavra de esquecimento, que, ou se pronuncia de boa vontade e sem relutância nem reticências, ou terá efeitos contrários se exije condições e reparações, se dá aqui para tirar ali, porque acabará por melindrar, por agravar, par indignar.
E quando esta atitude é tomada mesmo assim, passado um período longo de petições, de ansiedade e de exposições, então a decisão forçada assume aspectos de fruto de um mons parturiens verdadeiramente decepcionante.
Tem corrido mundo o caso do massacre de Oradour, na Alsácia, ocorrido aquando da última guerra, e cujos autores franceses foram objecto de uma amnistia ad hoc, que veio emendar um veredicto judicial.
E isto tornou-se necessário, exactamente porque não houve o espírito de generosidade e de independência capaz de oportunamente fazer passar uma esponja sobre as fraquezas ou os actos como tais considerados, mesmo sobre alguns crimes cometidos sob o império de circunstâncias prementes e extraordinárias, tanto de ordem nacional como de ordem internacional.
O resultado foi o que todos conhecem e é também o de todas as soluções ambíguas, e incompletas, que acabam por não agradar a ninguém e até por indispor toda a gente.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - No caso português, ora em apreciação, o Governo podia ter sido generoso sem peias, até porque para isso tinha recebido mandato da representação nacional, e ele é a única entidade a não poder admitir, sem consequências, que a Assembleia Nacional não seja, de facto, a autêntica expressão da vontade da Nação.
A todas as razões de ordem, geral militando a favor da generosidade acrescia a circunstância, bastante para ponderar, de ela ir beneficiar muitos amigos, muitos dos que puseram o seu esforço, a sua dedicação, o seu entusiasmo ao serviço do 28 de Maio, quer nos dias perigosos da sua preparação, quer nos outros, não menos arriscados, da sua marcha incipiente, e que prosseguiram, sem qualquer garantia ou promessa, oferecendo-se a todas as horas pela manutenção da ordem, da paz interna, pela realização dos ideais nacionais.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não se tratava de distinguir entre portugueses e de dar a uns o que a outros se negava; antes se pretendia ver todos tratados pela mesma medida e que não ficasse a pesar no espírito de quem quer que

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fosse um pouco de benevolência, que era, ao mesmo tempo, gratidão. Esta só se dispensa a quem dela se tornou credor.
Mas do sentimento de gratidão não tem o Estado Novo feito grande uso nas suas relações para com os amigos autênticos.
Já tenho ouvido dizer que às vezes é necessário atirar aos cães carne inocente para que elos se calem. Penso, porém, que será preferível, nessas emergências, empunhar a vara do mando e zurzir os mastins que vão mostrando os colmilhos na medida em que sentem ser-lhes isso permitido.
Também não tenho sombras de dúvidas em reconhecer que não lhe tem faltado, em muitos casos, espírito de benemerência e de altruísmo para com tantos que só mostraram a face nas horas de calmaria e nos dias duvidosos empregavam, muito honrada e sensatamente, o seu tempo a calcular em que carta haviam de jogar com segurança.
Até mesmo para aqueles que nos dias em que se decidia tudo por tudo denunciavam ao governo democrático os movimentos de Gomes da Costa em direcção a Braga o Estado Novo tem sido padrinho afável e dadivoso.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não quero dizer que lhe fique mal a benevolência neste campo; somente seria de desejar que se estendesse ao outro.
Nesta pseudo amnistia, para a maior parte, encontramos um rosário de reservas, de restrições, de excepções, de baixas de posto, de insuficiências, que a tornaram inteiramente improfícua em relação a muitos que dela esperavam motivos para um pouco de conforto material e de bastante satisfação moral.
Muitos dos que esperaram durante longos anos os foi Deus chamando a si; outros, talvez menos felizes, partiram já também, mas só depois de terem o coração cravado com mais este espinho; alguns mais não tardarão a ouvir na alma o grande chamamento. Mas por isso mesmo a generosidade governamental pouco viria a pesar nos quadros ou no erário público.
E que pesasse! Para fazer a guerra ou para distribuir justiça nenhum Governo pode legitimamente dizer que lhe falta dinheiro.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - No relatório do Decreto-Lei n.º 38 267, que regulamentou a Lei
n.º 2 039, duas preocupações assaltaram o legislador:
Não criar encargos pesados ao Tesouro;
Não melindrar os pacatos, considerando injustiça clamorosa a desigualdade que pudesse ser criada a numerosos oficiais colocados na reserva, não por motivos políticos ou disciplinares de qualquer natureza.
Ninguém poderá censurar o legislador pelo respeito que lhe mereceram estes dois pontos concretos: economia dos dinheiros públicos; reverência perante os bem comportados.
Mas, mirando-se a medalha no seu reverso, podemos afirmar que, se não tivessem sido os mal comportados, os que se revoltaram, não existiria o Estado Novo, com iodas as suas consequências políticas, morais e sociais.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-Proceder desta maneira é muito correcto, mas equivale a fomentar o espírito de acomodação, a incitar ao egoísmo, pelo usufruto do sacrifício alheio, sem esforço nem risco.
Não é assim que se cria mística. E sem mística nenhum regime pode viver.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Cria-se mística retribuindo as virtudes cívicas e, por efeito indirecto, castigando as fraquezas e as aberrações verificadas e confirmadas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador : - Não se depreenda destas minhas palavras que pretendo fazer a apologia das clientelas. Não.
Cria-se clientela corrompendo os caracteres, distribuindo benesses em detrimento do bem comum e sem qualquer fundamento superior a justificá-las.
Mas a mística política é uma consequência do reconhecimento público, traduzido em distinções, porventura mesmo em privilégios - mas privilégios a todos acessíveis - , em relação àqueles que devotadamente serviram a colectividade, esquecendo-se de si próprios. E os regimes e os governos que podem tornar público aquele reconhecimento dignificam-se e conquistam a estima dos seus súbditos.
É verdadeiramente estranho que num diploma de amnistia política o factor político tivesse sido sistematicamente ignorado e apenas houvesse prevalecido a glacial sujeição aos regulamentos e aos estatutos.
Porque se estabeleceu para os amnistiados o limite máximo de proventos familiares de 3 contos mensais?
Para evitar acumulações?
Se alguém o pensa, que, pelo menos, não o diga, porque, a respeito de acumulações, o silêncio é melhor para o legislador.
Ao meu temperamento conviria mais protestar do que pedir. Mas o que está em jogo é o direito de terceiros a uma existência digna, moral e materialmente.
Junto, pois, a minha petição às dos que me precederam nesta tribuna. Talvez valha a pena.
O Governo escreveu no relatório do Decreto-Lei n.º 38 267: "É certamente impossível realizar neste campo uma justiça relativa impecável", o que implica admitir a certeza de que algumas injustiças ficariam evidentes.
Pois bem. Elas aqui foram expostas com eloquência e com crueza no decurso deste debate.
Urge remediá-las, para se obter o que se desejava: "ficar arrumada uma questão que convém solucionar para apagar os últimos vestígios de passadas discórdias", desejo que por aquele decreto-lei não foi conseguido.
Tenho dito.

Vozes : - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Botelho Moniz : - Sr. Presidente: para o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu vão, além dos meus agradecimentos pessoais pelas palavras amigas que teve a bondade de dirigir-me, as felicitações mais sinceras e homenagens justamente rendidas pelo trabalho excelente que ontem apresentou nesta Assembleia.
Devem-lhe todos aqueles que S. Ex.ª aqui defendeu o, mais do que eles, deve-lhe a tranquilidade deste Pais, deve-lhe a ética do Estado Novo e o pensamento político que nos orienta um dos mais altos serviços que à Nação têm sido prestados dentro da Assembleia Nacional.

Vozes : - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não enalteço apenas o trabalho de algumas horas de oração, embora essa oração fosse, a todos os títulos, exacta, profunda, e brilhante.

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794 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 213

Refiro-me principalmente ao esforço desinteressado e extenuante na preparação do seu aviso prévio, que exigiu meses e meses consecutivos para estudar centos de processos nos vários Ministérios (apoiados). Acompanhou-o o Sr. Deputado Carlos Moreira, a cuja colaboração inteligente muito se ficou devendo neste trabalho verdadeiramente sobre-humano.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Depois da forma brilhante por que o ilustre Deputado Sr. Paulo Cancela de Abreu realizou o seu aviso prévio, o assunto ficou completamente esgotado. Nada há a acrescentar-lhe, a não ser, talvez, duas recordações: a do ambiente em que foi votada a Lei n.º 2 039 e a dos motivos que levaram o mais humilde componente desta Câmara a apresentar um primeiro projecto, que, depois de modificações justas e de alargamento notável, se transformou, por obra das comissões parlamentares e votação unânime da Assembleia Nacional, na referida Lei n.º 2 039.
Recordemos, pois: em Janeiro de 1949, quando da penúltima campanha eleitoral para a designação do Chefe de Estado, o candidato da oposição começou por proclamar que, se fosse eleito, concederia amnistia ampla aos seus correligionários vítimas dos movimentos políticos posteriores a 28 de Maio de 1926.
Em 12 de Janeiro, ao iniciar a minha colaboração modesta nessa campanha eleitoral, respondi a S. Exa., em carta publicada no Diário de Lisboa, que tal espécie de amnistia seria, nem mais nem menos, nova lei de excepção. Mais uma lei de excepção, além das muitas em que a demagogia fora fértil, visto que, afinal de contas, ora amnistia somente destinada aos amigos políticos de S. Ex.ª E eu entendia que mais alguma coisa havia a fazer em Portugal em matéria de esquecimento de lutas políticas: algo de completo e do imparcial, em que nem a palavra Monarquia nem a palavra República aparecessem, algo em que todos puséssemos, acima das preocupações de partidarismo, outra coisa mais alta e mais bela: a nossa qualidade de portugueses.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Votou a Assembleia Nacional a Lei n.º 2 039, em que não havia discriminação quanto a beneficiários. Mas o Executivo publicou o Decreto-Lei n.º 38 267, no qual, em vez de manter o pensamento político da Assembleia Nacional, veio a efectivar, pelo menos em parte, o pensamento político de S. Ex.ª o General Norton de Matos (risos), pois os maiores beneficiários foram precisamente aqueles a quem o candidato oposicionista se referia, isto é, os que se revoltaram posteriormente a 28 de Maio de 1926!

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-Nada me repugna, absolutamente nada, que eles tenham aproveitado dessa lei. Era-lhes também destinada.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Pelo contrário, desejaria que tivéssemos conseguido ir mais longe o que, em vez de colocarmos esses nossos antigos adversários na situação de inactividade, reserva ou reforma, os trouxéssemos ao convívio dos demais funcionários civis e militares e lhes restituíssemos direitos plenamente iguais aos destes, porque só assim se poderiam apagar completamente os «últimos vestígios de discórdias passadas», a que alude o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 38 207.
Em vez de apagá-los, a execução do decreto veio talvez avolumar a recordação de tais lutas. Quanto aos restantes, quanto às vítimas anteriores a 28 de Maio de 1926, não sei como pode explicar-se ou admitir-se que elas tenham sido relegadas a plano de inferioridade tão notável e tão absurdo.

Vozes:-Muito bem, muito bem!

O Orador: - E possível que, uma vez mais, se tivesse querido pôr à prova a sua capacidade de resistência espiritual ou exaltar-se o seu sacrifício e a fidelidade constantemente demonstrada ao Estado Novo, situação política que lhes deve grande parte da sua preparação, quer revolucionária, quer doutrinária, e pela qual, durante vinte e sete anos seguidos, vêm praticando actos da maior abnegação pessoal e política. Temo-los tido ao nosso lado em todas as emergências de perigo, quer militar, quer de ordem pública, quer ainda em matéria eleitoral. Não sinto a consciência tranquila porque as reintegrações ou restituições de direitos que lhes continuamos negando já há muitos anos, quer antes quer depois do 28 de Maio, foram concedidas a outras vítimas exactamente iguais, justamente colocadas hoje em altas situações políticas.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Teria sido receio de dize tu, direi eu? Porque a maior parte dessas vítimas são homens que nunca quiseram abdicar, honradamente não quiseram abdicar, da sua qualidade de monárquicos ? Não acredito.
Há muito tempo que o Estado Novo, logo mesmo no dia 27 de Maio de 1926, devia ter agido da mesma forma por que procedeu Sidónio Pais, reintegrando imediatamente nos seus cargos todos os homens que tinham contribuído com o seu sacrifício para o estado de espírito que gerou a revolta militar chefiada por Gomes da Costa e Mendes Cabeçadas.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não se fez então, nem se realizou até hoje. Temos deixado que vão morrendo pouco a pouco, uns talvez na miséria, outros na dor, a maior parte em consequência da idade, mas sempre sem compensação dos muitos anos de desilusões e desenganos.
Quando algum dia quisermos fazer justiça, talvez tenhamos que fazê-la apenas a fantasmas, porque não houve coragem de a realizar para homens vivos.
Sempre tive a honra do ser republicano, e sempre, acima dessa honra, senti aquela ainda maior de abraçar nas horas de perigo os monárquicos bons portugueses, cuja política tem sido desde há muitos anos o mais lindo exemplo de sacrifício, a mais bela obra de colaboração patriótica.
Por isso nenhum receio tenho de que venham a chamar-me monárquico por aqui lhes dar a minha solidariedade mais completa, na certeza de que, assim, só lhes pago parte mínima do muito que têm feito pela Nação.

Vozes: - Muito bom, muito bem!

O Orador: - E que dizer dos inválidos de guerra?
No discurso que pronunciei na sessão desta Assembleia de 21 de Abril de 1950 está tudo quanto penso.
Entretanto, mais convincentes que as minhas palavras de então foram, com toda a autoridade, as do presidente da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, Sr. Deputado General Craveiro Lopes.

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Da sua eloquência e da de tantos outros oradores resultou o voto unânime da Assembleia Nacional.

Por isso não se compreende que o Governo esquecesse completamente a situação dos inválidos de guerra.

O segundo projecto, muito mais vasto e perfeito do que o meu, apresentado pelo Sr. Deputado-Soares da Fonseca e assinado por outros Srs. Deputados, entre os quais fui incluído, tornou-se objecto do mais largo estudo nas várias Comissões desta Assembleia, com a colaboração sempre benéfica e judiciosa do leader do Governo nesta Câmara. O texto respectivo ficou representando, assim, um compromisso entre opiniões diversas, umas internas, da Assembleia, quer dizer dos Srs. Deputados, outras exteriores à Câmara.

Era como que o mínimo de realizações. Nesse sentido, porque não podia ir constitucionalmente mais longe, a Assembleia Nacional deu-lhe o seu voto unânime.

Sei que o Governo tinha, juridicamente, nos termos constitucionais, o direito de publicar o Decreto n.º 38 267. Hás, pergunto, e agora em voz tão baixa que ninguém me ouvirá: em que situação ficou o prestígio da Assembleia Nacional, perante o País, depois da publicação desse decreto?

Houve vantagem em que uma lei, votada por unanimidade no primeiro órgão legislativo da Nação, fosse transformada em decreto regulamentar com destruição quase completa, do seu pensamento político ?

Vozes:-Muito bem, muito bem!

O Orador:-Disse o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu que a justiça não tem preço e que, por consequência, não podem merecer cabimento as razões apresentadas de ordem financeira, ou soja, de necessidade de economizar dinheiro.

Permito-me acrescentar que a gratidão aos inválidos de guerra e aos precursores do Estado Novo também não tem preço.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-O pensamento político da Assembleia Nacional é digno de respeito e não pode ser retalhado para se pouparem quatro vinténs.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-Gratidão para os que se mutilaram em defesa da Pátria e para aqueles que abnegadamente contribuíram para o advento e defesa do Estado Novo. Pensamento político em relação a todos, amigos e adversários, que desejamos atrair, não por medidas de clemência - nunca classifiquei a Lei n.º 2 039 como tal -, mas através dum ideal patriótico e dum acto de apazi-guamento que pusesse fim à velha divisão de Portugal em monárquicos e republicanos, ou à outra, mais recente, de amigos e inimigos do Estado Novo.

No início das minhas considerações exprimi rapidamente uma ideia que vou desenvolver agora: uma situação política estável e forte, que tem renovado o País através de grande obra espiritual e material, possui o direito de falar assim à Nação.

Não deve ser da nossa ética política falar-se em Monarquia e em República, em adversários e em amigos-do Estado Novo.

Mas na o bastam palavras como estas.

Para que todos os homens de boa fé se considerem à vontade, sem constrangimento, dentro duma casa que é de todos, o primeiro passo deve ser dado pelo Governo, deve ser dado pela Assembleia Nacional, deve ser dado por quem está vitorioso e não sabe nem quer obrigar os seus irmãos, mesmo vencidos, a passarem sobre forcas caudinas.'

É dever nosso estendermos a mão quer aos amigos que nos ajudaram, quer àqueles que não souberam compreender-nos mais cedo.
Porque continuamos aqui a defendê-los, porque continuamos fiéis ao mesmo pensamento de unidade nacional, espero que, graças ao nosso exemplo de tolerância e à nossa vontade de pacificação, hão-de aceitar finalmente que, acima de tudo, acima de monarquias e de repúblicas, ponhamos em comum outra doutrina mais alta: o nosso Portugal!
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Sr. Presidente: depois da exposição, não só eloquente, mas também emocionante, do Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu ficou a Assembleia Nacional perfeitamente esclarecida acerca dos resultados da aplicação da lei de amnistia que, em boa hora, Botelho Moniz projectou e defendeu, tornando-se assim intérprete da vontade dos soldados da Revolução Nacional e evidenciando, mais uma vez, a nobreza dos seus sentimentos e a altura do seu espírito de esforçado cavaleiro do ressurgimento.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A aplicação dessa lei, votada por unanimidade nesta Assembleia, foi regulada pelo Decreto-Lei n.º 38 267, de 26 de Maio de 1951.
Parece que este decreto não só limitou os desejos da Assembleia Nacional, expressos naquela lei, não abrangendo todos o que se julgava que dela podiam beneficiar, mas também mesmo na sua aplicação se verificaram omissões e mal-entendidos que mais reduziram ainda o número de beneficiados. Por isso o ilustre Deputado Paulo Cancela de Abreu apresentou o seu aviso prévio, que agora se discute, procurando conseguir que seja revista a aplicação de lei de amnistia, n.º 2 039, de 10 de Maio de 1950.
Será isso possível?
O que se opõe a tão generosa e nobre solicitação?
Acompanharam já o Sr. Dr. Paulo Cancela de Abreu nesta caminhada alguns ilustres Deputados, conseguindo aumentar, pela eloquência das razões apresentadas, num brilhantismo de forma invulgar, o interesse da Assembleia por este caso, em que, mais uma vez, se põe bem em evidência a grandeza de alma dos homens que servem a Revolução Nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Por isso mesmo talvez devesse limitar a minha solidariedade com o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu ao voto silencioso de qualquer moção a apresentar.
Que mais posso dizer do que já foi ditado?
E evidente, também, que não poderei - ai de mim - ter a veleidade de saber expor, melhor do que já o foram, os sentimentos que ditam a minha inteira concordância com o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu.
Como eu desejaria, neste instante, possuir dotes do eloquência que emocionassem a Assembleia Nacional ao ponto de a levarem ao voto unânime dos nossos desejos!
Sou, por vezes, muito ambicioso!
Mas então porque vim eu aqui?
Pelo que devo à geração a que pertenço - à geração de Sidónio; pelo que devo aos meus companheiros de 26; pelo que devo à memória dos que a meu lado caíram em defesa do bem comum; pelo pouco que já

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resta daquela primeira linha de todos os instantes, daquela primeira linha que muitos, nèsciamente e com grave perigo para o País, teimam em julgar como as primeiras linhas das convulsões de política partidária e de que tanto fala a história de todos os tempos e de todos os povos.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não tenho procuração de nenhum deles, mas sinto, mas sei, que todos pensavam, que todos pensam, que a paz interna, a união de todos os bons portugueses, só se consegue pela bondade, pela generosidade, pela justiça!

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-Subi, por isso, a esta tribuna, não só por um imperativo de consciência, mas no cumprimento do elementar dever de lealdade para com aqueles ao lado de quem sempre estive na minha já longa vida de soldado. Por isso, sempre que posso, quero marcar a minha presença em todos os passos que definam a rota da Revolução Nacional; por isso procurei acompanhar Botelho Moniz quando, em 1949, fez a primeira tentativa sobre amnistia.
Como nessa altura, continuo, porém, a separar os dois aspectos da questão, debatidos nesse momento, embora na Lei n.º 2 039 ficassem englobados:

1.º Disposições relativas a inválidos em serviço da Pátria;
2.º Amnistia de crimes políticos e faltas disciplinares da mesma natureza.

Pelo que respeita aos inválidos, apesar do artigo 4.º da Lei n.º 2 039, o Decreto n.º 38 267, que a regula, nada diz.
É de crer que o Governo entendesse que deviam ser considerados separadamente os dois aspectos da questão. Estou convencido de que oportunamente será resolvido o seu caso.
A tal respeito sugeri em 1949 uma fórmula que me parecia a mais aceitável. Hoje penso da mesma maneira.
Permitam que volte a repeti-la:

O inválido em serviço da Pátria, saído dos campos de batalha ou do silêncio dos laboratórios, é, a meu ver, alguém, que merece o respeito e o carinho de todos - porque por todos se deu e sofre.
É alguém que é forçado a suportar a cruz da vida, não vivendo como sonhou ou como se esforçava para a viver; alguém que, de repente, vê cortados os seus voos de humanas ambições; alguém que só tem olhos para o que passou e nada enxerga na sua frente.
Tenho para mim que ser inválido é talvez pior que ter morrido, e, por isso mesmo, materializa o mais alto exemplo de sacrifício humano pelo bem comum.
Pensando assim, terei de concluir que ser inválido em serviço da Pátria é um posto de honra, que não sofre promoções, pois, perante ele, todos devem perfilar-se.
Há, a meu ver, que criar o posto de inválido em serviço da Pátria, embora com várias graduações.
Se se assentar no facto de o inválido representar uma lição permanente de sacrifício pelo bem comum e de amor da Pátria, acabando com as fórmulas mesquinhas até agora em uso, que relegam para plano secundário os coeficientes morais, todo o trabalho se simplificará.
Mas, se não se quer ir para este caminho, o que urge é resolver a situação económica em que os inválidos se encontram.
Não deixemos que os novos, nesta hora em que podemos ter de marchar, sem hesitação, para os maiores sacrifícios humanos, olhem os inválidos vergados ao peso da sua cruz e sintam que tem um sabor de sarcasmo a legenda que, desde criança, nos habituámos a rezar:
«Honrar a Pátria, que a Pátria vos contempla».

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Pelo que respeita aos crimes políticos e faltas disciplinares da mesma natureza, também nada tenho a alterar ao que em 1949 afirmei:

A Revolução Nacional fez-se sem um tiro; mais, sem que alguém fosse perseguido ou sofresse o menor vexame.
Os homens que a comandaram e guiaram nos primeiros passos fizeram sentir aos que nessa hora se consideravam vencidos que não consentiriam que voltassem a apontá-los como perigosos adversários da ordem e das instituições.
Ontem, como sempre os nossos maiores inimigos e detractores estão no nosso campo e não são somente aqueles que lançam mão das armas e da desordem para satisfação dos seus interesses. Inimigos e detractores - é tempo que a Nação e, sobretudo, os nossos herdeiros o registem - só porque os conhecemos bem e, julgando-nos como eles, vivem, por isso... em sobressalto.
Dizia-se que talvez se pudesse ter evitado a revolução de Fevereiro de 27 se a sua isenção não fosse tão longe; mas, apesar disso, depois da vitória, logo pediram uma amnistia geral -tão ampla quanto possível -, visto continuarem sonhando com a união de todos os portugueses em redor do altar da Pátria.
E mais desordens, motivadas pelas paixões políticas, ensanguentaram o solo da Pátria.
E sempre, apesar de tudo, os homens de 26 continuaram a pedir a união de todos os portugueses e o perdão para as faltas cometidas pelas vítimas do braseiro das paixões políticas, sem outra intenção que não fosse a de seguirem a rota traçada pelo espírito da Revolução Nacional, pedido feito disciplinadamente, de alma aberta, sem reservadas atitudes, sequer com o sobrolho franzido de quem não está contente.
Com estes sentimentos de homens sem ódios e sem a cegueira do paixões rasteiras, olhos postos somente nas traves mestras em que assenta a alma da Pátria, é fácil compreender muito do que se tem passado na vida portuguesa.
Nos primeiros dez anos de Ditadura parecia até haver o propósito de só perdoar a quem atentava contra a vida da Revolução.

A propósito, recordo neste momento um episódio passado há anos e que define bem a situação em que se viveu até 1936.
Acabava de ser dominada a revolta de 20 de Julho. Os revoltosos saíam de cabeça baixa do Castelo de S. Jorge, quando um sargento, sem poder conter-se, teve estas frases para o seu comandante de pelotão, vendo entre eles um oficial bem conhecido: «Oh, meu tenente, já encontrámos por duas vezes em semelhantes circunstâncias aquele senhor. Teremos de prendê-lo mais vezes ainda?
A resposta do tenente merecia largos comentários, mas eu limitar-me-ei a repeti-la, registando-a como uma alta definição do espírito dos servidores da Revolução

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Nacional: «Há-de acabar por formar a nosso lado; há-de acabar por compreender-nos».
Quando o Sr. Doutor Oliveira Salazar foi Ministro da Guerra e Subsecretário dessa pasta o Sr. Capitão Santos Costa, foi aborta uma excepção nesse sentido, abrangendo, se tanto, uns seis oficiais, que nunca foram inimigos do Movimento Nacional, imo sendo mais amplamente aplicada tal medida, tenho a certeza, por motivos muito imperiosos, mas que não foram ditados pelo coração e sensibilidade desses dois. homens públicos.
Este simples facto parece definir uma época na vida do País: cessara a desordem sangrenta nas ruas.
De então para cá nada mais houve de importância na ordem pública.
Se em 1927 se procedesse como desejávamos nós, os homens de 1926, tenho a convicção de que não teríamos a lamentar, neste quarto de século, as trágicas horas que vivemos nos primeiros dez anos.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Termino como em 1949: é no seguimento da rota traçada pelos soldados na Revolução Nacional que peço, mais uma vez, ao Governo da Nação,

... nesta hora, em que no Mundo se erguem, frente a frente, as forças do bem e do mal, já com projecção vincada no nosso país - que se perdoe aos homens de honra da nossa terra, e que se confessem portugueses, os seus desvarios e desequilíbrios passados; peço mais que não tarde, também, a necessária reparação, fazendo-se assim justiça a quem, vítima de prepotências ou iniquidades, sem crimes ou faltas de qualquer natureza, foi afastado das suas funções, foi esbulhado dos seus direitos.
Com justiça e com generosidade podem amalgamar-se, fundir-se as almas de todos os homens de bem.

Estamos numa quadra santa do ano e pouco falta para que todos os portugueses sintam o dever de exteriorizar os seus agradecimentos a Deus pela felicidade que deu à nossa terra dando-nos Salazar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Para esse Homem, que vejo sempre, não a mirar-se, não a escutar coros de louvor a incensá-lo, mas agradecendo a Deus a honra que lhe deu de dele se servir para que a Terra de Santa Maria seja no Mundo farol de outros povos; por esse Homem, que é o orgulho mais alto da nossa geração, apelo, neste momento, pedindo-lhe que ouça os nossos desejos.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Ricardo Durão: - Sr. Presidente: e para mim um alto prazer espiritual acompanhar o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu nesta sua piedosa peregrinação, ante os altares luminosos da justiça e da humanidade.
Outorgar direitos de altar à humanidade parece, à primeira vista, uma heresia e, contudo, nada mais humano do que um decreto da amnistia e, talvez por isso, nada mais sujeito a imperfeições. O ponto está em reconhecê-las e corrigi-las numa revisão conscienciosa. Creio ser isto que pretende o Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu. Creio ser isto que à Assembleia Nacional compete solicitar, como promotora dessa medida a cuja essência ligou a sua iniciativa e a. sua responsabilidade, pelo menos virtual.
Foram apontadas pelo nosso ilustre colega as imperfeições e deficiências do Decreto n.º 38 267, mas o próprio Governo previamente as considera inevitáveis em diplomas deste género.
E eu penso, com efeito, que não é possível redigir uma lei de amnistia inteiramente à margem de queixas e de críticas; por isso mesmo me custa aceitar qualquer redacção desde já definitiva, que marque atitude inabalável perante objecções judiciosas.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - A rigidez e a contumácia nunca foram virtudes de governo; e tanto assim que não nos seria difícil citar alguns despachos da Presidência do Conselho em que, sobre certos assuntos, se reconsidera ou se manda reconsiderar.
Analisemos no entanto o decreto que o Governo publicou em complemento do «acto de benevolência» - adopto o termo - que a Assembleia lhe sugeriu. E não é a análise literal ou gramatical que me preocupa, porque dessa tarefa qualquer amanuense ou cabo de esquadra se desempenha. O que sobretudo me interessa é o espírito da lei, porque só da sua interpretação resulta o verdadeiro conceito da justiça.
Quanto ao presente diploma, esse espírito transparece em plena luz nas suas considerações preliminares, das quais parece poder concluir-se que três intenções fundamentais afectam a solução do problema:

1.ª Aplicar duma forma equitativa o benefício previsto e realizar os objectivos que a Assembleia Nacional teve em vista. Infelizmente verificou-se na prática que nem essa aplicação foi perfeita, nem essa realização foi completa.
2.ª Evitar ao Tesouro sacrifícios incomportáveis e nem sempre justificados. O limite do sacrifício incomportável é realmente uma circunstância a atender; em todo o caso a exposição do Sr. Deputado Cancela de Abreu leva a supor que o critério financeiro estrangulou demasiadamente a cornucópia, enquanto alguns cavalheiros levam a cópia e deixam o ... osso. Além disso é de admitir que a equidade seria atingível muito aquém do limite da incomportabilidade. Finalmente:
3.ª Apagar os últimos vestígios de passadas discórdias. Também não resultou, como aliás se prova pelas centenas de reclamações recebidas nesta Câmara. Dir-se-ia que ninguém ficou contente.

Parece, portanto, que o decreto, apesar das intenções explícitas do Governo, em vez de congraçar, desarmoniza, desafina o conjunto. E o pior é que às vezes parece que essa desafinação começa por nós mesmos.
Conta-se que numa vila da província, em dia de festa, quando a filarmónica local, mais ou menos claudicante, se exibia no coreto da praça, alguém perguntou a um músico em plena partitura:
- Vocemecê podia-me dizer que música é que estão a tocar?
- Olhe, eu cá por mini estou a tocar A Portuguesa, agora os outros não sei.
Vem isto a propósito da necessidade que todos temos de prestar atenção à batuta do maestro. Nesta altura, em que a terra treme e as construções oscilam, não nos assiste o direito de alardear a independência individual.
Todos nós dependemos de princípios imutáveis, que urge colocar desde já ao abrigo da derrocada; princípios eternos, cuja defesa neste recanto do Mundo

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confiámos a alguém; alguém que temos de apoiar sem reservas, sob pena de o vermos desconfiar de tanta confiança ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Mas reatando, Sr. Presidente: ó pela revisão do decreto que me pronuncio, porém sem ferir do forma alguma o Executivo no seu prestígio e na sua força. De contrário seria o mesmo que batermos em nós próprios.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É lamentável de facto que a situação dos inválidos de guerra, prevista no projecto Botelho Moniz, tenha sido esquecida, no decreto governamental, mas isso deve-se naturalmente à sua exclusão intencional duma amnistia política. É legítimo aguardar entretanto que o Governo lhes preste em tempo oportuno a reparação devida, porque não é impunemente que se escreve nas paredes dos quartéis este verso imortal, que assume o carácter dum compromisso solene: «Honrai a Pátria, que a Pátria vos contempla».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Lembro-me a propósito que o Sr. Deputado Ribeiro Cazaes propôs que se criasse o posto de inválido, com todas as honras militares. Aproveito o momento para lhe manifestar a minha concordância nessa generosa iniciativa.
Evidentemente, meus senhores, que as amnistias, assim como os indultos de qualquer natureza, não podem ter um carácter geral, há exclusões que se impõem sob a alçada do Código Penal. Para esses de nada serve, redunda mesmo em prejuízo ficar abraçado a princípios superiores de moral, a sentimentalismos humanitários, quando o seu único resultado é abrir caminho indefeso aos inimigos da ordem e do género humano.
Mas para os outros que se bateram lealmente à luz do Sol não pode haver, sob pretexto algum, exclusões de qualquer espécie.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:- Disse um dia, na aura plena do nazismo, o chefe da Gestapo estas palavras sinistras: «Eu não tenho inimigos - suprimo-os ».
Quão longe estamos daquela generosidade cristã desse intrépido e galhardo bearnês que foi Henrique de Navarra, que falava assim: «A melhor maneira de nos desfazermos dum inimigo não é eliminá-lo, é fazer dele um amigo».
São palavras como estas que deviam presidir à nossa amnistia.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Não está mais ninguém inscrito para falar sobro o aviso prévio em discussão.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.

O Sr. Mário de Figueiredo: - A Assembleia Nacional, por constitucionalmente não poder proceder de outro modo, votou uma lei que autorizava o Governo a reintegrar os militares e funcionários que, amnistiava ou que leis anteriores tinham amnistiado. Nessa lei estabeleceram-se certos princípios que, como decorre logicamente da própria natureza daquela, funcionavam como limite além do qual o Governo não podia ir, mas que o deixavam livre, como tinha de suceder, para encontrar a fórmula que julgasse melhor em vista dos objectivos da lei.
O Governo organizou pelo Decreto-Lei n.º 38 217 essa fórmula e deu-lhe execução.
Quis arrumar assim definitivamente um problema que de há muito se arrastava, conforme o que lhe pareceu razoável.
Arrumou-o depois de, como afirma, «ter reunido todos os elementos de apreciação e estudado longamente o problema».
Reconheceu que «era impossível realizar neste campo uma justiça relativa impecável», porque a variedade das situações de facto era muito grande e mal se podia regular com base em critérios gerais e objectivos.
Entendeu, porém, que as injustiças seriam maiores se decidisse ao sabor de critérios individuais ou subjectivos.
Resolveu a questão como lhe pareceu mais justo.
Faz-se, não obstante, um aviso prévio para que reveja o que fez. Não descubro em que possa fundamentar-se um tal aviso prévio.
Quer-se repor a questão? Mas o Governo resolveu-a depois de reunir todos os elementos de apreciação e de estudar longamente o problema. Por outro lado, trata-se de uma questão para que não tem competência constitucional a Assembleia. Quem garante então que, retomando-a, o Governo resolvesse melhor? Mesmo que a resolvesse melhor, o facto de a retomar tinha como sentido lógico que ela ficava permanentemente em aberto.
Não há dúvida, o aviso prévio só se justifica por uma interpretação errada da posição constitucional do problema e dos próprios termos da lei votada nesta Assembleia.
Interpretação errada do sentido geral da lei e de algumas das suas disposições em especial, como poderia verificar-se e demonstrar-se pela análise do debate.
Fui eu quem mais trabalhou na organização do projecto convertido em lei. Tanto a lei como o decreto de execução do seu pensamento vão, à parte a consideração de casos individuais, muito além daquilo que podia alcançar-se com a aprovação doutros projectos de que se teve conhecimento.
Eu, por mim, entendo que se fez um esforço sério no sentido de resolver o problema.
E como também entendo que não devem repor-se indefinidamente problemas resolvidos, não enxergo os fundamentos do aviso prévio. Constitucionais não os tem.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: não sei se o meu estado de emoção me permite exprimir em breves palavras o que devia ou podia dizer nesta emergência.
É tradicional os interpelantes dos avisos prévios encerrarem o debate, e eu, apesar de tudo estar dito, e brilhantemente, por todos os distintos oradores que me concederam a honra de perfilhar as minhas considerações, revestindo-as de incontestável autoridade, não quis transgredir esta praxe.
Além disso, tenho dois deveres a cumprir. Um, indeclinável, é agradecer comovidamente aos meus colegas todas as suas referencias amigas e generosas, que só

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7 DE MARÇO DE 1953 799

posso atribuir à sua muita benevolência, à razão e justiça das minhas palavras e à simpatia e interesse que lhes mereceu o assunto da minha interpelação.
Se outro benefício não resultasse do nosso esforço - e repugna-me ter de acreditá-lo -, eu teria ao menos a consolação derivada da tranquilidade de consciência e o conforto das suas palavras cativantes.
O segundo dever é dar aqui público testemunho de gratidão pelo modo como fui acolhido e pelas amplas facilidades que encontrei em todos os Ministérios e repartições onde pessoalmente me dirigi para documentar com segurança a minha interpelação; documentá-la com factos, que não pudessem admitir desmentido, mais do que com palavras vazias, que nem podiam ter o merecimento do seu brilhantismo, pois não saberia emprestar-lho na minha linguagem comum o descolorida.

Vozes: - Não apoiado!

O Orador:- Fiz um sacrifício, sacrifício de interesses e de saúde, nesta cruzada, que Deus permita não resulte inglória.
Posto isto, quero dizer ao ilustre Deputado Prof. Mário de Figueiredo que acredito ter o Governo precedido a elaboração do Decreto-Lei n.º 38 267 de estudo e ponderação. Não tenho o direito de duvidá-lo; mas verdade é também que o decreto não resiste, não podia resistir, à crítica que desde a primeira hora lhe vem sendo feita e aqui foi acentuada, desenvolvida e documentada, quer sob o aspecto do que representou de quase completa mutilação da Lei n.º 2 039, quer do da exclusão a que votou a grande maioria daqueles que esta nossa lei quis beneficiar. E muito menos o Governo podia prever ou adivinhar os resultados da sua aplicação prática e os graves erros cometidos na sua interpretação.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:- É porque assim sucede que o Governo procura frequentemente remediar esses erros e imprevisões e aproveitar os ensinamentos que resultam da execução na prática das medidas promulgadas.

Vozes: - Apoiado.

O Orador:- E a Lei n.º 2 039 não fora também precedida do estudo da Assembleia e das suas Comissões?
O Regimento admite, e ó também frequente, encerrar o debate com uma moção de ordem; mas não a apresento, porque, como já tive oportunidade de dizer aqui, sou rebelde a actividades ou actos inúteis ou inoperantes.
Uma moção anódina, vaga. sem conteúdo, não esclarece o Governo, que, aliás, encontra expresso no Diário das Sessões o pensamento da Assembleia, que tem por dever considerar. E não ó por haver ou não haver moção que o Governo tem de orientar o seu caminho num ou noutro sentido.
Por outro lado, uma moção mais objectiva, que concretize regras ou soluções, corre o risco de motivar dispersão de votos derivada de diversidade de critérios dos votantes e -o que é pior- pode embaraçar a acção do Governo que queira respeitar a sua doutrina,, mas não possa consegui-lo por quaisquer razões imponderadas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-No caso presente, acresce que, sendo a moção, como é, expressão do pensamento da Assembleia Nacional, ela existe já, e foi votada por unanimidade: - é a própria Lei n.º 2 039, que o Governo não cumpriu.
Tenho dito.

Vozes: - Muito Leni, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão.
Está esgotada a primeira parte da ordem do dia da sessão de hoje.
A primeira sessão será na próxima terça-feira, 10, tendo por ordem do dia o aviso prévio do Sr. Deputado Manuel Lourinho sobre melhoramentos rurais.
Está encenada a sessão.

Eram 19 horas.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Américo Cortês Pinto.
António Calheiros Lopes.
Armando Cândido de Medeiros.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Délio Nobre Santos.
Herculano Amorim Ferreira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jorge Botelho Moniz.
Manuel França Vigon.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Arantes.

Srs. Debutados que faltaram à sessão:

Alberto Cruz.
António Júdice Bustorff da Silva.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Diogo Pacheco de Amorim.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calém.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Cardoso de Matos.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Pinto Meneres.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Sousa Meneses.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Vasco de Campos.

O REDACTOR - Luís de Avillez.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA.

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