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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 221
ANO DE 1953 20 DE MARÇO
V LEGISLATURA
SESSÃO N.º 221 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 19 DE MARÇO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Junior
Secretários: Ex.mos Srs.Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro
SUMARIO: - O Sr. Presidente, declarou aberta a sessão às 16 horas.
Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o Diário das Sessões n.º 218 com uma, rectificação do sr. Deputado André Navarro.
O Sr. Deputado João das Neves apresentou uma rectificação ao suplemento ao Diário das Sessões n.º 213, referente ao parecer da Comissão de Contas acerca das contas da Junta do Crédito Público.
Usou da palavra o Sr. Deputado Manuel Domingues Basto, acerca de uma nua intervenção na sessão de 5 do corrente; os Srs. Deputados Colares Pereira e Mendes Correia referiram-se ao falecimento do Sr. Prof. Moreira Júnior.
Ordem do dia. - Na primeira parte,, o Sr. Deputado Elísio Pimenta realizo» o mui aviso prévio acerca da necessidade de ser revisto o regime das custas nos recursos dou conservadores e notários.
Na segunda parto, o Sr. Deputado Amaral Neto realizou o seu aviso prévio sobre a melhoria das habilitações dos trabalhadores dos campos e das cidades.
Requerida a generalidade do debute, usou da palavra o Sr. Deputado Santos Carreto.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 30 minutos.
O Sr. Presidente: -Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 50 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Gazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calheiros Lopes.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenno.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António de Sousa da Câmara.
Armando Cândido de Medeiros.
Avelino de Sousa Campos.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Diogo Pacheco de Amorim.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
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Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Herculano Amorim Ferreira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Carlos de Assis Pereira de Melo
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Oliveira Calem.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Arantes.
Vasco de Campos.
Vasco Lopes Alves.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 80 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em reclamação o n.º 218 do Diário das Sessões.
O Sr. André Navarro: - Sr. Presidente: apenas uma pequena rectificação num ligeiro aparte que fiz. Onde se diz: "essa tem de existir", referindo-se a espírito clubista, deve dizer-se: "esse tem de existir".
O Sr. Presidente: - Visto mais nenhum Sr. Deputado pedir a palavra sobre este número do Diário, considero-o aprovado com a reclamação apresentada.
O Sr. João das Neves: - Aproveito o ensejo para dizer a V. Ex.ª que só agora me foi possível verificar que no suplemento ao Diário das Sessões n.º 215, de 12 de Março, que contém o parecer da Comissão de Contas acerca das contas da Junta do Crédito Público de 1951, há que fazer a seguinte rectificação:
Na primeira página, ao fundo, quase no final da col. 2.ª, a indicação do total nominal da dívida pública no final da gerência de 1951 contém um erro, resultante de uma transposição de dois algarismos; onde se lê: 10.453:871.091$90, deve ler-se: 10.453:781.091$90.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Manuel Domingues Basto.
O Sr. Manuel Domingues Basto: - Sr. Presidente: apenas algumas palavras, simples e claras, determinadas pelo oficio que a Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias mandou para a Mesa desta Assembleia sobre a última intervenção por mini realizada nesta Câmara, em 5 do corrente.
Parece-me que eram desnecessárias, porquanto na referida intervenção nem disso mal da classe dos veterinários nem pus em dúvida a sua utilidade e o proveito para a economia, para a saúde pública e para a Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Nem eu nem qualquer dos Srs. Deputados, quando usamos da palavra e do nosso direito de apreciação, queremos atingir pessoas ou ferir classes ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-... mas, cingindo-nos aos factos e aos acontecimentos, apontar as soluções e os remédios que para o nosso critério se afiguram melhores e mais acertados.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Dentro deste princípio, e porque na minha intervenção do passado dia 5 apontava a colaboração dos técnicos com os lavradores como meio e condição de mais profícuo rendimento do trabalho agrícola, afirmei que não compreendia que o Código Administrativo previsse a existência de um veterinário municipal, que em muitos concelhos limita a sua acção a vigiar por que a carne seja servida ao público em condições higiénicas, e não proveja a existência do agrónomo ou do regente agrícola, para assistência ao lavrador nas coisas gerais do granjeio o produção da terra.
Parecia-me que na hierarquia das necessidades era mais preciso o agrónomo do que o veterinário, embora a existência de um não tenha de excluir a existência do outro.
Aplicadas as regras da hermenêutica ao contexto da minha intervenção, via-se que o fim em vista era pôr em evidência que para se tirar da terra todo o possível rendimento era de estranhar que o Código Administrativo não previsse um agrónomo ou regente agrícola para cada concelho, como previa um veterinário.
O que parece ter impressionado mais a culta Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias é ter-se dito que a acção do veterinário se limita em muitos concelhos a velar polo estado higiénico da carne que se serve ao público.
Alguns Srs. Deputados apoiaram a afirmação, e com o seu aparte quiseram dizer que nem sempre essa vigilância se faz.
Trata-se, evidentemente, de casos de excepção, que nem eu nem os Srs. Deputados com o seu aparte qui-
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semos generalizar, e que só pode tomar-se como desdouro para a classe dos veterinários concluindo do particular para o geral, o que só por erro de lógica e verdadeiro sofisma se pode fazer.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quanto à afirmação de que em muitos concelhos a acção do veterinário se limita a vigiar pela higiene da carne servida ao público, é ela a expressão do que tenho ouvido em terras cio Minho a muitos presidentes de câmaras municipais. Delas me fiz eco e porta-voz nesta Câmara, como é meu dever de Deputado pela região minhota.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-O facto dá-se, e não é a mim que compete estudar as causas que o determinam.
Em nada, porém, tais casos podem afectar a dignidade da classe dos veterinários, que têm uma nobre e alta missão a realizar e que em muitos pontos do País a estão realizando com dedicação, sacrifício e brio profissional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não sei mesmo a quem pertence a responsabilidade de a não realizarem em toda a parte. Pode bem suceder até que em alguns concelhos seja por não se darem ao veterinário municipal condições bastantes para um trabalho profícuo e total rendimento da sua acção.
Mas isso já não é comigo nem faz parte da missão de qualquer Deputado.
Termino, Sr. Presidente, afirmando toda a consideração pela classe dos veterinários e pela importância da sua missão, ao mesmo tempo que continuo a estranhar que o Código Administrativo não preveja a existência de um agrónomo ou regente agrícola em cada concelho.
Se lá fora há bulhas ou rivalidades entre agrónomos e veterinários, e essa circunstância pode ter concorrido para dar às minhas palavras e aos apartes dos Srs. Deputados sentido e intenção que não tinham, é preciso afirmar aqui, bem alto, que todos quantos fazem parte da Assembleia Nacional são superiores e estão acima dessas bulhas e rivalidades e não as têm em conta no que afirmam nesta Câmara.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Colares Pereira: - Sr. Presidente: morreu alguém!
E esta palavra "alguém" é por mim proferida como sendo exactamente aquela que é capaz, na sua singeleza, de abarcar o que havia de extraordinariamente grande nesse homem que ontem se despediu da vida.
Efectivamente, era "alguém" no nosso meio - neste de que partiu ontem subitamente - o Prof. Doutor Manuel António Moreira Júnior, e tanto o era, tão grande a sua envergadura e tão justa a sua projecção nacional que, Sr. Presidente, a sua figura não vai ficar diminuída, apesar de ser eu - eu, que vos falo- a pessoa que o evoca hoje nesta sala do Parlamento, a mesma que foi o grande teatro dos seus triunfos, tanta vez recordados e tão poucas vezes excedidos!
É alguém aquele que, em qualquer terra e, especialmente, em certas épocas, consegue -sem ter nascido em berço de ouro e sem ter pergaminhos, que em certos casos dão asas e fazem voar muitos que, sem elas, e apenas por mérito próprio, dificilmente andariam -, consegue, repito, pela sua inteligência e vontade indomável, a altura que todos ambicionam e até onde poucos ascendem.
Há um sexto sentido, espécie de fluido, nunca aprisionado, manifestação estranha de qualquer coisa que existe, se sente, mas que ninguém vê, a que eu chamo - por a não saber definir melhor- um "segredo" que Deus guarda ciosamente, para só o dizer à pequeníssima minoria dos escolhidos para serem aqueles homens que Ele quer, em sua alta sabedoria, que sejam os "maiores" nos seus países.
Assim, e só assim, se explica que nesses homens possa ser tão multiforme a actividade, tão fértil o engenho, tão excepcional a inteligência, que, ao mesmo tempo, eles sejam, como Moreira Júnior foi: grande homem público, excelente Ministro e excepcional parlamentar: professor, cirurgião e clinico dos maiores do seu tempo; culto e estudioso economista, e, na prática, seguríssimo orientador e dirigente do finanças o da indústria, no mais elevado plano das suas realizações.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - V. Ex.ª dá-me licença?
Há uma particularidade digna de referência: é que a obra do Prof. Moreira Júnior como Ministro da Marinha e do Ultramar é frequentemente apontada como semelhante à do Júlio de Vilhena, que foi das mais notáveis.
O Orador: - Agradeço muito a V. Ex.ª a sua interrupção, tanto mais que por ela a Assembleia tomou conhecimento de comunicação de tanto interesse sobre a consideração em que era tida a obra do Prof. Moreira Júnior como Ministro do Ultramar.
Sr. Presidente: eis porque eu disse: morreu alguém!
Aqui, nesta sala, com o ardor da sua mocidade, só vencida pela rapidez com que fora feita a ascensão aos altos postos da vida pública -juventude de espirito que até ontem não o abandonara!-, e com um vigor e coragem física que a toda a hora lembrava aos outros a certeza de que "os homens não se medem aos palmos", ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-... ele combateu, dissertou e concorreu sempre com o fulgor da sua oratória - esplendorosa e pessoalíssima- para o brilho e eficiência dos trabalhos parlamentares.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Na Lisboa desse tempo - o dos últimos reis de Portugal- corriam céleres e eram recordadas e apreciadas algumas dessas intervenções; quando publicados os seus discursos, essas páginas levavam a quem não tivera oportunidade de os ouvir a certeza de que não exageravam quantos - e eram todos! - o proclamavam, fascinados, um orador de raça!
Mas não foram sempre de louros subsequentes ou de radiosas flores sem espinhos as flores da oratória parlamentar, tão fogosa.
De algumas delas colheu o fruto amargo, que é o prémio certo dos que lutam e se batem por ideias que são próprias, e julgam serem boas, e que, a não se defenderem até com a vida, levariam a que deixasse de valer a pena vivê-la!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Assim, teve duelos o homem público, provocados pela coisa pública - e só por ela. Foram
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romanticamente aceites todos, mas, para os meus olhos de hoje, aparecem-me romanticamente, não só os aguerridos contendores, como também a ténue razão da ofensa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Era próprio do batalhador batalhar, e não lhe permitiam as circunstâncias e o meio a possibilidade de escolha de outro combate; e, cinquenta anos depois, muita vez lhe ouvi dizer, sorrindo - num jeito de rir que a velhice, enternecidamente, só dá ao rosto dos velhos que souberam ser novos: "Sim, sim; mas, apesar de tudo e de explicada a ofensa -logo esquecida!-, ainda hoje não consigo zangar-me, a sério, com o Moreirinha dessa época!".
Risos.
E eu acrescento que ele fazia muito bem!
Foi precisamente o treino da luta (menino e moço, na instrução primária; depois - e com que custo! - nas aulas de Humanidades e a seguir, na Politécnica, onde logo - e era o mais novo de todos! - recebeu das mãos de um grande professor o prémio correspondente aos 20 valores que alcançara) o que lhe deu as possibilidades de atingir tão invulgar e marcada personalidade.
Essa classificação de valores que recebeu tão novo influiu em toda a sua vida, pois foi durante ela merecendo outras iguais em tudo a que se dedicou ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- ... com uma tão grande prodigalidade e uma tal justiça que o tornou a ele, e nos deu a nós - ao País -, o que eu comecei por dizer que ele era, e repito, com emoção e respeito: alguém!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: a voz pública, para todo o homem e em qualquer profissão, só existe e só tem a força incomensurável e perigosíssima que é própria dos movimentos incontroláveis quando esse homem atingir determinado patamar da escada, sempre aliciante e tão perigosa, da celebridade, que, afinal, nem sempre quer dizer glória.
Mas a voz pública também só repara na escada e em quem a sobe quando alguma coisa misteriosamente lhe diz, e raro se descortina o que a levou à descoberta de que esse homem vai, efectivamente, no caminho da consagração.
É ela quem a prepara, e, depois, é ainda ela quem a mantém, e até tão mais viva quanto tenha sido mais cedo adivinhada.
Ora tudo fadou o Prof. Moreira Júnior para a notoriedade, que é, afinal, o reconhecimento popular do prestígio, quer quando ele nasce da mais hermética das ciências ou do maior recolhimento, e não só, como poderia parecer, do contacto político com as massas, que seria o natural, mas às vezes, embora seja estranho, não o provoca.
Na Faculdade de Medicina, antiga Escola Médica, assim se chamava quando a frequentou como aluno - o mais novo e também o mais classificado -, foi depois, e por muitos anos, mestre ilustre e seu director.
Nos Hospitais Civis, para onde entrou muito jovem - não se fizera até então contrato com alguém de tão pouca idade -, breve deu provas do sou valor como cirurgião, clínico e organizador, pois de longe vêm os louvores e citações, que se sucedem e formam um justo galardão, de que muito especialmente se orgulhava.
Entretanto, atraído pela política, ei-lo, primeiro, Deputado - também novíssimo quando da primeira eleição -, sempre repetido até ao fim da Monarquia; depois, Ministro da Marinha, do Ultramar e das Obras Públicas.
Dessa actuação ficaram, felizmente, provas que atestam o valor real das medidas do Ministro e demonstram o seu muito mérito e competência.
Recordo apenas o grande interesse que lhe mereceram, entre outros, e foram objecto de propostas que constituem separata digna de estudo, os problemas dos caminhos de ferro na metrópole e no ultramar, o crédito agrícola, os seguros e os acidentes de trabalho.
Finalmente, lembro mais - e foi das maiores - a sua inteligente e patriótica providência: a criação da Escola Superior Colonial.
Sr. Presidente: do Prof. Doutor Moreira Júnior pode pois dizer-se que os seus 86 anos foram vividos, durante setenta, em justo e indiscutível prestígio como aluno, como mestre, como cirurgião, como Deputado e como Ministro, e, por último, como presidente de todas as altas agremiações que o disputavam para o seu grémio.
Sr. Presidente: não vou, para cada uma das facetas da sua extraordinária actividade, fazer a resenha dos triunfos ou a história biográfica e cronológica dos sucessos.
Há nesta sala, para cada uma dessas modalidades, crítico mais competente. Não vou, portanto, conscientemente, invadir esferas alheias.
O País, através da sua imprensa - jornais da tarde de ontem e da manhã de hoje -, conheceu, pois todos o disseram, o que foi a vida do Prof. Manuel António Moreira Júnior.
Todos, sem excepção, e bem hajam, mostraram com relevo e justiça - e não posso esquecer em referência especial O Século - que a Nação perdeu um seu alto e indiscutível valor.
Recordaram os jornais a sua actuação como professor, mestre de várias gerações dos que são hoje ilustres médicos como ele; falaram da sua prestimosa passagem pelo Governo; recordaram que, como escritor, como homem de ciência, de espírito e de cultura, lhe abriu as suas portas a Academia das Ciências, e que nesta lhe deram os seus pares o que de mais valor lhe podiam oferecer: a presidência.
Felizes os que em vida lhe mereceram alguma vez, Sr. Presidente, o título de amigo, nunca por ele desperdiçado e nunca também esquecido.
Dos seus amigos, devo ser o que está mais triste: é que eu dava-lhe uma amizade de quase filho e dele recebia, em troca, um carinho de avô.
Termino.
Desculpem se não soube dizer-vos, com as minhas palavras de evocação, a justiça do meu desejo: deixar aqui, na Assembleia Nacional, o público testemunho de consideração por quem, em tão alto grau, a mereceu.
Ficou-me no coração uma dor e nos lábios um travo, que são, como disse o poeta,
- pungir de acerbo espinho; gosto amargo de infelizes,
- saudado que ou já sinto, o ... não morre.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi multo cumprimentado.
O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: não é um acontecimento banal do noticiário a morte, na manhã de ontem, do Prof. Moreira Júnior.
Muitas são as razões que, a meu ver, justificam as palavras de saudade e de homenagem que sejam con-
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sagradas à sua memória nesta Casa, em que tantas vezes se fez ouvir com brilho e convicção a sua oratória de parlamentar de vastos recursos e grande prestígio.
É difícil encontrar quem tenha reunido tantos predicados pessoais e os tenha afirmado, não só em tão variados meios e actividades, mas também em tão longa e prestimosa folha de serviços ao País e a diversas instituições nacionais.
As suas qualidades e a duração da sua existência, numa actividade que manteve até às últimas horas que teve de vida, fizeram-no uma figura representativa de três épocas distintas da história política, intelectual o social do Portugal contemporâneo, mantendo, aliás, através dessas três épocas as características fortes do uma personalidade inconfundível e de grande poder de irradiação.
Possuindo uma adaptabilidade que fazia contraste com o imobilismo desdenhoso, anquilosado e estéril de muitos, nunca ultrapassou os limites desejáveis e legítimos, nunca abdicou dessa personalidade, do seu modo de ser, das suas normas, dos seus princípios, da sua lhaneza, das suas amizades, da sua fé.
Houve assim unidade, continuidade perfeita, na longa e multiforme actividade que desenvolveu em épocas tão diversas, no ensino, na vida clinica, na tribuna parlamentar, nas academias, sociedades e congressos científicos, nas suas múltiplas relações sociais.
Poucas individualidades terão sido tão representativas de épocas, meios e actividades tão diversos e, simultaneamente, sempre tão iguais a si próprios, de tamanha coerência e invariabilidade de atitudes e de princípios.
A sua expressão, a sua cabeça, a sua própria figura física mantiveram sempre, até final, a irradiante simpatia, o vigor robusto e até um certo ar de romantismo que imprimia atracção e colorido ao seu labor de médico, de professor, do escritor, do orador, de académico, de homem público.
Sem pretender traçar neste lugar e neste momento uma biografia de Moreira Júnior, não quero deixar de assinalar os seus méritos de clínico e de professor de Obstetrícia - ainda há meses presidiu, com brilho, ao Congresso Luso-Espanhol de Obstetrícia, que se realizou no Porto -, a vivacidade da sua acção parlamentar - além de leader respeitado e prestigioso do partido progressista no antigo Parlamento monárquico, fez neste brilhantes discursos políticos -, as suas actividades meritórias, no ponto de vista cultural e nacional, na Academia das Ciências e na Sociedade de Geografia de Lisboa, cujas presidências ocupou com elevação e onde prestou grandes serviços, como na Sociedade de Ciências Médicas e noutras importantes agremiações culturais o empresas económicas.
Mas porei sobretudo em relevo actos governativos que realizou como Ministro, alguns dos quais tiveram os mais importantes efeitos e traduziram a sua rasgada e patriótica visão de estadista.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Refiro-me especialmente às suas iniciativas para combater as dolorosas crises do Cabo Verde, à fundação da Escola Superior Colonial - providência de alto alcance para o progresso da nossa administração e cultura ultramarinas - e às importantes medidas de fomento, como a construção do caminho de ferro de Moçâmedes à Cheia.
Sobre a Escola Superior Colonial repetirei que, depois do ensino das primeiras letras e do da defesa da saúde do corpo e da alma, não creio que haja outro mais estrutural e imperativamente nacional.
É modelar e documentado o relatório ministerial do Prof. Moreira Júnior sobre administração ultramarina publicado em 1905, com as propostas de lei que apresentou à Câmara dos Deputados sobre navegação para as colónias, cabos submarinos, ensino, serviços agronómicos, algodão e açúcar coloniais, caminhos de ferro em S. Tomé, Angola e Moçambique, matas da índia, etc.
O Prof. Moreira Júnior conservou até morrer o seu dinamismo, a sua tenacidade, a sua eloquência espontânea e exuberante, a multiplicidade das suas faculdades, os dons primorosos da sua afectividade.
Nos seus alunos, nos seus colegas, nos seus doentes, em todos os que com ele conviviam ou que recebiam a influência benéfica das suas qualidades de alma, ganhava simpatias, amizades e gratidões. Mas ele sabia ser, como poucos, amigo leal, dedicado e carinhoso.
Não esquecerei jamais a gentileza do seu trato e da sua amizade, o carinho com que até há poucos dias acompanhou o meu exercício do cargo em que tive a honra de lhe suceder na Sociedade de Geografia de Lisboa.
Desejo evocar, sobretudo, a amizade dedicada e leal que ligou o Prof. Moreira Júnior ao estadista da Monarquia conselheiro José Luciano de Castro, cujo elogio traçou, como os de Sousa Martins, Curry Cabral, Fernando de Magalhães e outras individualidades ilustres.
Ainda conheci pessoalmente - era eu um rapaz -, na sua casa de Anadia, o conselheiro José Luciano. Conservei de algumas visitas ali feitas em companhia de meu pai a recordação grata de uma figura de trato encantador, de grande brilho intelectual e de excelentes intenções, mesmo de simpática bonomia, que a doença e os ataques políticos não abalavam.
Senti que havia muita injustiça e uma malevolência feroz e inexplicável naqueles ataques e no ambiente hostil que se procurou estabelecer perduravelmente em torno de José Luciano. Pois o Prof. Moreira Júnior foi amigo verdadeiro daquele estadista, e manteve-se fiel a essa dedicação, com a firmeza, que resiste, não apenas à queda do poder político, mas até ao apartamento definitivo pela morte.
Sr. Presidente: com o falecimento do Prof. Moreira Júnior desaparece alguém que teve um lugar de relevo inconfundível na vida de Lisboa e do País.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas, com ele, como que descem à frialdade, ao silêncio e às trevas da sepultura algumas das últimas evocações vivas, nele personificadas, de Lisboa de três quartos de século, de Portugal dos últimos decénios da Monarquia, duma notável geração de médicos, intelectuais e políticos que, no âmbito ideológico e social do seu tempo, serviram com dedicação e talento a sua profissão, a cultura e aspirações da sua época, e, nas difíceis condições em que viveram e lutaram, a Pátria.
Prestemos homenagem à nobre intenção, à linha de ideal, à beleza e valor de atitudes que se contam na vida profissional e política de Moreira Júnior o que, sejam quais forem os conceitos e os destinos dum mundo perplexo e ansioso, constituirão saudável e permanente exemplo de bondade, préstimo, inteligência e civismo.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
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O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - A ordem do dia consta primeiro da discussão do aviso prévio do Sr. Deputado Elísio Pimenta acerca da necessidade de ser revisto o regime das custas nos recursos dos conservadores e notários.
Tem a palavra o Sr. Deputado Elísio Pimenta.
O Sr. Elísio Pimenta: - Sr. Presidente: ao iniciar as minhas breves considerações cumpre-me a obrigação de manifestar a V. Ex.ª, nosso ilustre e prestigioso Presidente, quanto me sensibilizou a amabilidade de V. Ex.ª, a acrescentar a tantas outras de que sou devedor, designando o dia de hoje para a efectivação do meu aviso prévio sobre o regime de custas nos recursos dos conservadores o notários, tanto mais que estamos no final desta última sessão legislativa e o tempo não sobra para a discussão de outros assuntos pendentes.
O regime legal em vigor sobre custas nos recursos originados pela recusa dos conservadores e notários em efectuarem registos ou praticarem actos que lhes sejam requeridos foi estabelecido por esta Assembleia quando da discussão o votação na especialidade da proposta de lei em que se transformou o Decreto-Lei n.º 37 666, ratificado com emendas na sessão de 18 de Janeiro de 1950.
A Assembleia, na sessão do 10 de Março de 1951, discutiu e votou o texto do artigo 166.º do que viria a ser a Lei n.º 2 049, que na sua parte final diz o seguinte:
Sendo julgada improcedente a recusa, será o recusante condenado em custas.
Não obtivera vencimento, embora por pequena margem do votos, uma proposta de aditamento ao artigo 170.º, que tive a honra de subscrever juntamente com os meus ilustres colegas Srs. Drs. Carlos Mendes, Paulo Cancela de Abreu, António Carlos Borges e Lima Faleiro, no sentido de a condenação em custas ficar restrita aos casos de dolo ou de erro de ofício.
E assim se regressou ao sistema do Código de Processo Civil.
Pelo regime posto em vigor a partir de 6 de Agosto de 1951, data da publicação da Lei n.º 2 049, os conservadores e notários ficaram sujeitos ao pagamento das custas dos processos de recurso sempre que os tribunais julguem improcedentes os motivos da recusa, mesmo que na decisão se reconheça que procederam sem dolo e com observância da lei.
E a verdade é que tal regime não tom tradições na nossa legislação.
Pelos Regulamentos do Registo Predial de 28 de Abril de 1870 o de 20 de Janeiro de 1898 a condenação em custas dos conservadores dava-se apenas quando houvesse dolo da sua parte nas recusas.
O Código do Registo Predial de 8 de Março de 1928 foi mais longe e tornou extensiva a condenação aos casos de dúvida ou de recusa contra lei expressa, mas o de 29 de Setembro seguinte regressou ao sistema anterior, que, por sua vez, não durou muito tempo, pois o código imediato, de 4 de Julho de 1929, restabeleceu a disposição do código de 8 de Março.
O Decreto n.º 18 742, de 11 de Agosto de 1930, introduziu pela primeira vez na nossa legislação o princípio da condenação dos conservadores do registo predial, independentemente de dolo ou de erro do ofício nas recusas, sempre que o recurso interposto das suas decisões obtivesse provimento, mas a inovação não conseguiu sufrágio por mais de três anos, revogada que foi em 1933 pelo Decreto n.º 22 253, que restabeleceu o código de 1929, actualmente em vigor.
O artigo 255.º desse decreto diz especialmente:
Os conservadores serão isentos de custas e responsabilidades, ainda que as dúvidas por eles suscitadas se julguem improcedentes, salvo o caso de se provar que houve dolo no seu procedimento ou de terem duvidado ou recusado contra lei expressa.
Disposições idênticas existem no Código do Notariado e o do Registo Civil não se refere a custas.
A comissão revisora do Código de Processo Civil, embora por maioria, seguiu orientação diferente e regressou às disposições do citado decreto de 1930, colocando novamente os conservadores e notários na obrigação legal de pagarem as custas dos recursos sempre que os tribunais, em última instância, decidam pela improcedência da dúvida ou da recusa, mesmo em contrário de decisões proferidas no mesmo processo ou reconhecendo a boa fé e o conhecimento do ofício dos funcionários.
O Decreto-Lei n.º 37 666, de 19 de Dezembro de 1949, a Organização dos Serviços de Registo e do Notariado, produto de demorado, exaustivo e consciencioso estudo, estabeleceu que a recusa devida a dolo ou erro de ofício daria lugar somente à aplicação das correspondentes sanções disciplinares.
A experiência de longos meses de vigência da Lei n.º 2 049 diz-nos que o regime do custas criado por essa lei não está de harmonia com as exigências da actual orgânica dos serviços de registo e do notariado e é prejudicial aos interesses dos que recorrem a esses serviços.
Essa experiência impõe a necessidade de se regressar ao sistema tradicional da isenção de custas, salvo nos casos de dolo ou de recusa proveniente de erro de ofício.
E para melhor esclarecimento do problema permito-me, com licença de V. Ex.ª, Sr. Presidente, ler uma pequena parte do relatório do Sr. Dr. Ulisses Cortês, membro da comissão revisora do Código de Processo Civil, sobre as razões que levaram essa comissão a preferir o regime contrário:
Em tese, os funcionários referidos, os conservadores e notários, quando recusam, exercem do alguma maneira uma judicatura.
Têm de apreciar a legitimidade das partes, incluindo a sua identidade, a legalidade ou ilegalidade dos actos que lhes são requeridos, o merecimento dos documentos apresentados, etc., e devem recusar a prática do acto solicitado quando eles forem contrários à lei ou quando exista alguma circunstância que legalmente legitime uma recusa.
Isto é, à semelhança do que sucede com os juizes, estes funcionários têm funções de apreciação e decisão e as suas resoluções, como as judiciais, somente podem ser atacadas por via de recurso.
Parece, pois, que em matéria de responsabilidade por custas o regime deve ser igual ao estabelecido para os juizes, que somente podem ser condenados nelas quando houver dolo no seu procedimento ou quando tenham decidido contra expressa disposição de lei.
Esse é, de resto, o sistema actualmente em vigor, como pode ver-se no artigo 223.º do Código do Notariado e no artigo 255.º do Código do Registo Predial.
Mas, se em tese só entendia assim, porque se voltou no Código de Processo Civil ao regime da condenação sem restrições?
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Somente porque em 1939, quando a orgânica dos serviços do registo e do notariado era completamente diferente do que é hoje, apareciam no Ministério da Justiça queixas contra recusas injustificadas por parte dos funcionários, provenientes muitas delas de circunstâncias que abonavam pouco a acção disciplinar sobre eles exercida, pois até a ganância na cobrança de emolumentos se apontava como causa de ilegítimas recusas.
Mas deve acrescentar-se que nem o ilustre autor do relatório citado generalizava, nem em consciência tal generalização seria possível, sob pena de se atingir injustificadamente a quase totalidade dos conservadores e notários de então.
E só por consideração pelas excepções, que estavam mais nos defeitos da orgânica, se caiu em regime extremo.
Hoje tudo se passa por maneira diferente.
O Ministro da Justiça, por intermédio de uma direcção-geral cujo prestígio é indiscutível, orienta superiormente todos os serviços do registo o notariais e resolve, por meio de despachos, que obrigam os conservadores e notários, as reclamações que se suscitem na execução da lei e regulamentos que respeitam aos serviços.
Por outro lado, a Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, criada em 1945, exerce sobre os funcionários seus subordinados uma acção orientadora e disciplinar que exclui a possibilidade de se repetirem os factos que em 1939 serviram para justificar uma verdadeira sanção imposta a todos os conservadoras e notários, competentes ou incompetentes, honestos ou desonestos, e que foi a da sua condenação em custas em qualquer caso de recusa não confirmada pelos tribunais.
Perante a orgânica actual dos serviços, desacautelado seria o conservador ou o notário que em caso duvidoso não solicitasse a interpretação hierárquica, tantas vezes feita por despacho do próprio Ministro da Justiça.
Mas nem assim ficaria fora da alçada da sanção.
Ponhamos dois casos práticos para ilustrar o que acabo de dizer.
É requerido numa conservatória do registo predial determinado acto de registo, que o conservador tem dúvidas em efectuar. Consulta a Direcção-Geral, que emite o seu parecer, e o Ministro da Justiça decido por despacho no sentido de dever ser recusado o acto requerido. O conservador, aliás dentro da sua própria orientação, cumpre o despacho do Ministro e recusa o acto. A parte interessada interpõe recurso e o tribunal julga a recusa improcedente, mandando proceder ao acto.
Segundo caso: o conservador, entendendo embora que certo acto que lhe foi requerido é de efectuar, por mera cautela consulta a Direcção-Geral. O Ministro da Justiça, a cujo despacho foi submetida a consulta, determina que o acto seja recusado. A parte leva recurso da recusa e o tribunal dá-lhe razão, aliás dentro do pensamento do próprio conservador.
Em qualquer destes casos quem julgam VV. Ex.ªs que foi condenado nas custas do processo: o conservador, que recusou o acto, é certo, ou o Ministro, que determinou essa recusa?
Segundo a lei actual, o conservador!
Mas porque não manda a lei condenar também, por exemplo, o juiz que confirma a recusa de um funcionário mas que, por sua vez, viu a sua decisão revogada pelo tribunal superior?
Porque os juizes só podem ser condenados em custas quando houver dolo no seu procedimento ou quando tenham decidido contra leis expressas.
O Sr. Mário de Figueiredo:- Eu não sei se V. Ex.ª vai ou não tratar mais adiante da hipótese de o conservador não consultar, mas recusar, ou, melhor, recusar sem consultar previamente.
O Orador: - Acontece isso algumas vezes.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Para mim não se levanta a mais ligeira dúvida quando o conservador procede de harmonia com um despacho que sobre a questão foi proferido.
Mas não tenho a mesma segurança quando o conservador, espontaneamente e sem estar coberto por qualquer despacho, procede desta ou daquela maneira.
O Orador: - Neste segundo caso é lícito o conservador ou o notário fazê-lo quando entender que não necessita do parecer do Ministro para alicerçar a sua opinião. Mas desacautelado será, como disse, embora o despacho do Ministro não o liberte das custas.
Mas parece-me que nesse caso apontado por V. Ex.ª, por cuja opinião tenho a maior consideração, também o funcionário não devia ser condenado em custas, salvo nos casos de reconhecido dolo ou erro de ofício.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Por erro do ofício. Não há dúvida de que, desde que o tribunal define que a solução da lei não é aquela que deu o conservador, mas outra, ele cometeu um erro de oficio.
O Orador: - Pode não haver erro de oficio, mas apenas divergência de opinião, confirmada até por decisão de tribunal que outra instância revogue.
É este também o regime tradicional da nossa legislação, como afirmado foi. quanto aos recursos dos conservadores e notários, e a ele se deverá regressar sem demora, pois a experiência colhida durante a vigência da lei aprovada por esta Assembleia mostra-se, e julgo tê-lo demonstrado, absolutamente contrária à boa eficiência dos serviços e aos interesses dos que a elos recorrem.
A manutenção do regime actual sujeita os funcionários a um risco que os inibo de bem apreciarem os casos que são propostos à sua resolução, levando-os a "praticar actos que não deveriam praticar ou a deixar de praticar outros que deveriam praticar, ou a aceitar a posição passiva de nunca, recusar ou duvidar, como bem definiu o problema o nosso ilustre colega e antigo e distinto conservador Sr. Dr. Lima Faleiro.
São estas, Sr. Presidente, as considerações que entendi dever fazer sobre problema que se me afigura de grande importância para a boa execução do serviços de interesse público indiscutível como são os dos registos e do notariado.
Julgo que as razões da necessidade do actual regime de custas são evidentes e quaisquer outras que quisesse produzir só serviriam para tirar à Assembleia o tempo de que necessita, neste final de sessão legislativa, para a discussão de outros assuntos importantes.
Se não estivéssemos no final desta sessão permitir-me-ia enviar para a Mesa um projecto de lei visando a alteração do artigo 166.º da Lei n.º 2049, de 6 de Agosto de 1951, no sentido da alteração da última alínea, que ficaria redigida por forma a admitir-se a condenação em custas dos conservadores e notários apenas nos casos de dolo ou de erro de ofício.
Assim fica o meu voto, que estou certo será também o da Assembleia.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Está na Mesa a reposta dada pelo Governo ao aviso prévio do Sr. Deputado Elísio Pimento, que vai ser lida à Assembleia.
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Foi lida. É a seguinte:
Sr. Presidente da Assembleia Nacional.- Excelência.- Com referência ao aviso prévio do ilustre Deputado Elísio de Oliveira Alves Pimenta apresentado na sessão da Assembleia Nacional de 5 de Fevereiro, o Ministério da Justiça informa o seguinte, que tenho a honra de levar ao conhecimento da Assembleia:
A proposta de lei em que se transformou o Decreto-Lei n.º 37 666 modificou o regime do Código de Processo Civil quanto aos recursos das recusas dos conservadores e notários e estabelecia especialmente no artigo 170.º: "O recorrente que decair será condenado em custas, cuja importância será arbitrada, de harmonia com a proposta do Conselho (Conselho Técnico dos Registos e Notariado), entre 50$ e 200$ se o recurso respeitar ao registo civil e entre 200$ e 1.000$ em qualquer outro caso".
O artigo 171.º do mesmo decreto-lei indicava a forma de punição dos recorridos, isentos de custas, nos seguintes termos: "A recusa que for devida a dolo ou erro de ofício dará lugar à aplicação das correspondentes sanções disciplinares".
A Assembleia rejeitou este regime pelos motivos que a Comissão de Legislação e Redacção indicou e constam do Diário das Sessões n.º 88, de 19 de Março de 1951 (pp. 677 e segs.), reproduzindo a justificação apresentada no relatório da comissão de revisão do Código de Processo Civil, cujas disposições o voto da Assembleia Nacional repôs em vigor.
Um aviso prévio destina-se fundamentalmente ao exercício da função constitucional de fiscalização dos actos do Governo. Mas no aviso prévio do ilustre Deputado Elísio Pimenta pretende-se criticar um regime legal, resultante da revogação pela Assembleia Nacional do sistema do Decreto-Lei n.º 37 666, o qual adoptara, expressando a opinião do Governo, regime legal oposto.
A bem da Nação.
Presidência do Conselho, 3 de Março de 1953. - O Presidente do Conselho, Oliveira Salazar.
O Sr. Presidente: - Não está requerida a generalização do debate. Considero, portanto, encerrada a efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Elísio Pimenta.
Vai passar-se à segunda parte da ordem do dia, com a efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Amaral Neto.
O Sr. Amaral Neto: - Sr. Presidente: dois motivos me animaram principalmente a tratar esta provocação de um debate sobre o problema nacional da habitação dos trabalhadores. Em primeiro lugar o sentimento de serem ainda muito grandes, de terem até aumentado, apesar de tanto que se tem feito, as dificuldades de alojamento das famílias mais pobres; depois, o receio de poderem abrandar agora, sacrificados a outras exigências, os esforços - a que o Governo se não tem, aliás, poupado - para ateimar estas dificuldades.
Aquele sentimento, que se tornou convicção íntima e profunda, não quis o destino que tivesse de nascer-me por experiência própria; mas as angústias de muitos têm-me sido patentes com tal frequência e de tanto modo, em apelos direitos, em reparos casuais, aflições de testemunhas e análises de estudiosos, que, possuído dele, me toma o que alguém já perguntou se não seria a maldição do nosso tempo: uma obsessão de responsabilidade perante as privações alheias. E, tendo procurado fazer noutros campos o meu possível, ainda me restava proclamar aqui, para não poder ser esquecida, a iminente necessidade de se olhar, sempre e muito, pelas habitações populares.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não creio, aliás, que ela possa ter escapado a V. Ex.ª nem aos Srs. Deputados que estão fazendo o favor de me escutar; impossível seria não terem V. Ex.ªs noção abundante do mal que se vive por aí, pela carestia ou falta de casas. Pelo menos uma fonte comum de conhecimento teremos quase todos: a adquirida nas frequentes solicitações da nossa mal suposta possibilidade de influir na atribuição das casas a concurso nos bairros económicos - que para cada morada têm aos dez pretendentes, fora os que não se sentiram em termos de se habilitarem!
Do Governo de mais eu sei e vemos nós todos que a necessidade é bem conhecida e devidamente apreciada ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ... mas o Governo tem muito para onde se voltar, e a verdade ó que dos 85 mil contos de créditos do orçamento de 1948 destinados a construção de casas económicas e subsídios para casas de famílias pobres se desceu para 55 mil contos no orçamento de 1950 e 31 500 apenas no orçamento do corrente ano. E consta do Plano de Fomento que há pouco aprovámos o propósito de fazer atenuar ligeiramente o ritmo da construção urbana, para libertar fundos para os novos empreendimentos. Que esta atenuação não atinja as casas modestas e que as economias orçamentais se procurem quanto possível noutros sectores será o primeiro voto deste aviso prévio.
E, se no desenvolvimento dele chegar aonde pretendo, direi também da suposição de ser possível adicionar aos do erário outros recursos para se construírem casas baratas, e hei-de mostrar a persuasão de estas deverem ser muitas, muitíssimas mais do que as já feitas, e miais baratas também.
Sr. Presidente: a importância social, e portanto política, da morada capaz encontra-se superabundantemente estabelecida. A habitação é a segunda das necessidades essenciais da existência, que dentro dela se passa em grande parte: nem onde os homens, vi vem nus vivem sem casas. Decorre da própria natureza das coisas humanas que a sua qualidade há-de pois influir no corpo e no espírito do habitante; até que ponto di-lo o senso comum e apuraram-no os estudos e as reflexões de quantos a temi considerado como factor da vida dos indivíduos, das famílias e das colectividades.
Da casa depende muito a saúde física do morador - que quando mela não entra o sol entra o médico é da própria sabedoria popular. É só por si um factor directo de salubridade, e como tal elemento da produtividade, que tanto nos preocupa hoje em dia.
E dela não depende menos a saúde moral. Esta não será só questão de cubagem e de vidros nas janelas; mas, escreveu Charles Gide, há certas virtudes elementares, como o asseio e a decência, cuja prática é absolutamente incompatível com um alojamento sórdido; e parece de facto inevitável que, se as dimensões da residência e a sua ocupação conduzirem à impossibilidade de isolamento, se todas as funções dos indivíduos ti-
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verem de ser patenteadas aos parentes, aos vizinhos, aos menores, se as pessoas e as coisas se atropelarem e sobre elas se acumular a, sujidade, que o sol não ilumina e descobre, parece inevitável, repito, que a má casa contribua para a perda do pudor e dos sentimentos mais nobres.
A promiscuidade nas habitações tem concorrido para não poucos casos de incesto, preparado muita desgraçada para a prostituição; e a falta de conforto e de ordem fatalmente desconsolará o trabalhador no regresso ao seu lar, e abatê-lo-á, somando-lhe o quebranto da alma ao quebranto do corpo.
Há perto de cem anos o velho revolucionário Blanqui (que o relator do nosso primeiro decreto sobre moradias económicas se não dedignou de citar) escrevia isto:
Tenho estudado com religiosa solicitude a vida íntima das famílias operárias, e por isso não duvido afirmar que a insalubridade das casas é o ponto de partida de todas as anisarias, de todos os vícios e de todas as calamidades do seu estado social.
E, há meses apenas, no último documento que pude consultar das condições sociais no seu país, é ainda a miséria das habitações que alinha entre os mais permanentes motivos de descontentamento dos trabalhadores observados nos subúrbios de Paris.
E entre nós, logo poucos anos volvidos sobre a inauguração dos primeiros agrupamentos de casas económicas, foi o próprio Diário do Governo que deu fé de uma "vida nova que aquelas pequenas casas, alegres e higiénicas, quase instantaneamente fazem nascer", reconhecendo que "parece estar ali um elemento primário de profunda e benéfica transformação social ...".
Esse renovado gosto pelo lar, esse contentamento de o sentir vedado e agasalhado, e repassado de sol, e franco ao ar, esse carinhoso alindar dele ao jeito das fracas posses eu próprio o tenho repetidamente verificado em condições bem diferentes de sítios e de ambiente, mas idênticas na essência dos factos e das pessoas: posso abonar a sua intensa sinceridade e confessar que na sua contemplação ganhei porventura o mais forte neste empenho por que alastre.
Não falta quem deponha igualmente. Um só exemplo, recente. De certo bairro, concluído no Porto há apenas dois anos, fala assim quem bem pode entender estas coisas:
Tenho amigos no Bairro da Corujeira e vou por ali várias vezes ... Casinhas brancas. Ruas empedradas. As donas de casa ocupadas a estender roupa ao sol nos seus formosos jardins. Tudo ali cheira a sabão ...Crianças limpas folgam à porta de suas casas ... De onde veio aquela gente toda?
Nada: moravam nos Barredos. Então quê? Nada: mudaram de ambiente.
Por força de razões e saber de experiência, podemos, pois, convencer-nos de que é deletério o efeito moral da casa acanhada e insalubre; revigorador o da morada bastante e asseada.
Mas, se assim é quanto à influência no adulto que abriga, que dizer dos efeitos sobre a criança que nela cresce? Raro se atende a este aspecto da questão, e, contudo, que poderoso elemento de formação não é a casa em si e só por si! Ela pode condicionar os próprios fundamentos das virtudes morais e cívicas, e destarte, antepondo-se à escola no tempo, sobreleva-a até de certo modo.
Em verdade, há-de ser mais difícil incutir o amor dia Pátria em quem conheça por primeira expressão dela um pardieiro esburacado; não se convencerá depressa da dignidade do trabalho o moço que nem lhe veja o prémio dum lar sossegado. Com o pudor já morto ao bafo da promiscuidade, onde o respeito pelos maiores da criança, que os acotovelou e espreitou no cubículo comum e ali lhes presenciou actos e gestos dos mais íntimos? Hábitos de ordem e de asseio serão mais estranhos ião que se avezou a um casebre acanhado e fétido; entenderá mal o instituto da propriedade esse que lhe conheceu os abusos na renda extorsiva duma barraca miserável; certamente descrerá da solidariedade dos seus semelhantes o que não teve tecto, tanto como o que passou fome!
Com razão pôde um pensador inglês, aliás notável pelo conservantisimo equilibrado dos seus conceitos, escrever ultimamente que as más casas ameaçam anais a vida dum povo que as próprias bombas atómicas, porque apodrecem os corpos e aleijam almas e corações, e vão-no fazendo geração após geração, com acumulação de efeitos!
Fora de toda a dúvida, a casa é condição da felicidade presente e do aperfeiçoamento futuro de indivíduos e de sociedades. E se o objectivo último de toda a sã política é, como não deve deixar de ser, o bem-estar social, físico e mental da comunidade que serve, a provisão de moradas suficientes torna-se, tanto como a criação das possibilidades de nelas se viver, obrigação indeclinável de toda a política digna, e deve, portanto, constituir preocupação primacial de qualquer bom governo.
Salazar o confirmou - vai fazer dezoito anos - quando na Bolsa do Porto disse que o seu voto de que frutificasse a experiência das casas económicas não era somente a expressão de um desejo, mas a de um pensamento de governo!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Moradas suficientes pedi eu. Ora acontece que o problema da habitação pobre, a começo principalmente tratado e olhado cá e em todo o mundo da nossa civilização como problema de qualidade, vista a sua importância cada vez melhor reconhecida como elemento basilar da vida das pessoas e do desenvolvimento dos povos, entrou de agravar-se com o acentuamento da crise numérica de carência, da falta absoluta de casas boas ou mas.
Casas salubres, independentes, ajeitadas, casas melhores para os mal alojados, sim, quantas possam ser; mas, acima de tudo, casas para os que as sofreriam quaisquer e nenhumas encontram, eis o clamor do dia. Ao problema da qualidade sobrepôs-se e ganha em urgência o da quantidade, no sentido do suprimento das carências totais, é no que há primeiro que procurar a suficiência. O resto, nesta crise, já parece bastar que venha por acréscimo. E virá. Alivie-se a pressão da procura e as casas más hão-de melhorar ou, pelo menos, baratear.
Crise de qualidade e de número, ela é universal. De há um século a esta parte se esforçam os governos de certos países e pouco a pouco todos os demais entraram de os seguir e incessantemente lhes recrudescem as necessidades e têm de tomar por caminhos novos ou prosseguir nos que já trilhavam com ânimo redobrado. São as gentes que aumentam, as circunstâncias que atrasam, os requisitos que se aperfeiçoam, a diligência privada que entibia ou se demite: a vida, enfim, jamais saciada nas exigências e sempre renovada em trabalhos. Escapos ou não das destruições da guerra, no velho e no novo mundo, todos os povos se queixam e exibem situações lastimosas.
Isto vem para dizer, pois não quero ser entendido mal ou demais, que o caso português, com toda a sua
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extensão e enorme acuidade, guardadas as devidas proporções, não se apresenta, todavia, pior do que os de diversos países. Terei de pintá-lo com alguns tons sombrios, para o figurar como vejo? Não! Como o vê quem o conhece. Mas, na relação dos costumes e dos modos de viver, esses não são para nos envergonharmos perante outros povos, onde se sabe de iguais tristezas. São, sim, para nos animarmos como os melhores à intensificação dos esforços para lhes pôr termo!
Uma avaliação precisa e objectiva do conjunto das nossas necessidades habitacionais, sobretudo com referência às classes populares, apresenta-se difícil ou menino impossível de fazer com rigor. Não faltam inquéritos nestes últimos vinte anos, da iniciativa de serviços públicos e até de particulares dedicados à questão; não faltam, é certo, mas todos são limitados no âmbito social ou topográfico, e alguns visaram aspectos, em especial de sanidade, que só acessória ou parcialmente esclarecem sobre as deficiências fundamentais.
Com o último recenseamento geral da população averiguou-se das condições de habitação das famílias: este é ao mesmo tempo o estudo mais recente e mais amplo, porque abrange todo o País, mias, na concisão do que deu a público, deixa muitas questões em aberto, e à frente de todas a da qualidade das moradas.
Mas informa-nos ao menos dos factos numéricos da carência absoluta, registando que, de pouco mais de 2 milhões de famílias (ao certo 2 047 398), havia à sua data 2 592 sem habitação, 10 596 vivendo em construções provisórias - está-se mesmo a ver que tais! -, 2 833 em prédios ou partes de prédios não destinados o habitação e 193 231 ocupando apenas parte de um fogo.
Este, realmente, o número mais significativo, considerando que para os inquiridores "fogo" era o local apropriado à habitação de uma só família. Se quase 200 mil ocupavam apenas partes de fogos, partes do que seria próprio para cada uma, eis a conta crua e seca das que não alcançavam viverem a coberto de intromissões de parentes ou de estranhos em casas suas somente.
Que cada um de VV. Ex.ªs, Srs. Deputados, ponha o caso em si e por si o julgue, e pense se, posto em iguais circunstâncias, não gostaria também que lhe valessem!
Somadas todas estas parcelas, encontramos que, qualidade à parte - e nunca é de mais insistir na importância desta -, uma em cada dez famílias portuguesas não tem casa que o nome sequer pareça merecer, ou que goze na privança que lhe é mesmo essencial.
E a proporção sobe para duas em cada dez famílias na cidade do Porto, mais de três em cada dez na cidade de Lisboa.
Como não haveria de ser assim?
Vejamos Lisboa para exemplo, e exemplo o mais flagrante. Sabe-se que não cresce por si; morrem dentro da nossa capital, em regra, mais pessoas do que nascem; o que a enche é o afluxo dos provincianos. Este rio corrente de imigrantes será a razão da sua falta de habitações; mas não parece fácil estancá-lo, e então há que alojá-los.
Por estranho que pareça nestes tempos de anuários, relatórios e estatísticas não é fácil averiguar o que se construiu em Lisboa em termos de residências familiares, de focos; só encontrei elementos coerentes para o período de 1944 a 1950. São sete anos em que o número de casamentos, portanto de constituição de novas famílias, andou à roda da média de 7 000 por ano: foram exactamente 48 709 no septénio, 48 709 novos casais à procura de lares.
Que se construiu entretanto? Quantos fogos lhes ofereceram os prédios concluídos e livres para habitar? Pouco mais de 12 mil - 12 643 apenas -, a quarta parte do número de famílias que se constituíram. E na grande maioria para gente remediada e rica; nada menos de 9 521 fogos são os que se coutam em prédios de construção particular, e, como só 2 717 eram em prédios de renda limitada, segue-se que mais de metade do total geral da construção se fez em prédios de renda livre, que demais sabemos até onde têm ido na liberdade, especialmente nesse período...
Não surpreende já o que se vê e o que se sabe.
Lisboa apresenta naturalmente ao mesmo tempo a situação mais aguda e o problema de maior vulto; mas pelo resto do País o mal é geral. Para ver suplicar de lágrimas na voz e joelhos no chão o arrendamento (sem questão de preço) de uma velha casa adquirida para demolir não precisei de sair da pequena vila ribatejana onde vivo; e sei que a certo questionário se respondeu, de todos os concelhos de Portugal, à excepção de só um feliz, acusando dificuldades locais de habitação para as classes trabalhadoras.
Destas faltas resultam tristes condições de vida para milhares e milhares de famílias.
Da proporção das que em certas áreas de Lisboa ou do Porto vivem em casas sem condições sanitárias mínimas, sem a graça de uma réstea de sol no Verão como no Inverno, sem janelas que lhes arejem os quartos, das que são hóspedes ou sublocatárias de outras (mais de metade num grupo de bastantes milhares há pouco estudado em Lisboa, por exemplo), não vou dar conta rigorosa a VV. Ex.ªs. Isto anda por aí publicado e acessível aos estudiosos e seria tão longo como pesado de referir.
Prefiro, se V. Ex.ª mo permite, ler trechos de respigo recente e que espero possam dar à Assembleia a mesma comovedora impressão que me deixaram; são testemunhos de sacerdotes que nos merecem o duplo respeito da sua condição e do espírito de caridade em que mostram viver abrasados. Rogo mesmo que seja consentida a sua integral transcrição no Diário desta sessão, de tal modo os tenho por simbólicos do que quero fazer sentir a V. Ex.ª e à Assembleia. Coisas destas, para as acreditar é preciso tê-las visto ou ouvir de quem as viu. Ouçamo-las; são casos de Lisboa, do Porto, talvez de Coimbra, de outros pontos ainda:
... A família vive num portal. No pavimento dormem os pais e uma velhinha. E as crianças onde dormem? Onde dormem as crianças? A miséria é criadora. O pai de família suspende do tecto um estrado de cinco tábuas e à noite arruma ali os cinco filhos ...
... Vãos de escadas. Lojas. Portais, Gateiras. Em tudo se vive por falta de vivendas.
... E quem nos não quiser dar crédito que venha connosco ao Barreiro, a Almada, a Alcântara, à Cascalheira, às Comendadeiras, ao Casal Ventoso, etc., etc., e aí verá, com seus próprios olhos, gente de todos os cantos de Portugal a viver, não já como os habitantes da selva, mas abaixo ainda dos animais!
... Na sua costumada rusga, P.e F ... encontrou a viver dentro de um quarto uma data de gente. Ele fala em catorze pessoas, de entre as quais uma criança de catorze anos em vésperas de ser mãe!
O Sr. Mário de Figueiredo: - Quero apenas mostrar que o fenómeno não é só nosso. Ouvi precisamente a um padre que num país extraordinário, numa região de minas, vivem catorze mineiros num quarto. O caso é geral.
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O Orador: - O certo é que as faltas dos outros não justificam que não pretendamos resolver as nossas. As casas são de urgência.
O Sr. Melo e Castro: - Eu desejaria só dizer a V. Ex.ª que na enumeração de localidades onde o problema habitacional é mais grave falta a cidade de Setúbal, onde realmente esse problema é de grande e dolorosa acuidade, apesar de, desde 1946, haverem sido construídas cerca de 1 000 casas, considerando o conjunto de casas económicas, casas para pobres e casas para pescadores.
O Orador: - Num destes trechos que citei há referência a Almada, que é do distrito de Setúbal; mas esse trecho, que apenas refere exemplos ao acaso, de modo nenhum, decerto, terá tido a intenção de fazer enumeração exaustiva. Aliás, o distrito de Setúbal é, segundo as estatísticas, o terceiro com número de famílias com alojamento deficiente.
Vozes: - Mas há mais ...
O Sr. Carlos Borges: - O grande mal é do urbanismo.
O Orador: - Mas diga-me V. Ex.ª: todas as pessoas que de fora vieram para Lisboa devem ser recambiadas?
O Sr. Melo e Castro: - Uma das principais causas do urbanismo é não haver no campo boas condições de vida.
O Sr. Carlos Borges: - Não estou inteiramente de acordo. As condições de vida dos pobres do campo são talvez melhores do que as dos da cidade.
O Orador:
... As casas são a urgência; diria, até, o desespero. Conhecemos casos onde os pais saem fora a realizar o acto conjugal. Conhecemos casos de menores que concebem dos seus. Temos visto amontoados de animais e gente em amontoados de tábuas e de caniço. E mais e mais e mais.
Que angústia sê não contém nesta repetição final!
Note V. Ex.ª, Sr. Presidente, que tive o cuidado de escolher citações referentes apenas a famílias que parecem ser de trabalhadores. Dos casos de pura indigência nestas e noutras fontes encontram-se exemplos bem piores; mas esses não me interessam agora: não encaro nada disto como um problema de simples assistência.
Cá como lá, colhe o comentário fresco de semanas de um urbanista francês: unia situação tal, socialmente é explosiva; em termos de simples caridade é insuportável!
Como o Sr. Dr. Mário de Figueiredo vê ...
O Sr. Mário de Figueiredo: - Mas está bem!
O Sr. Bartolomeu Gromicho: - Seria interessante que nesse problema da habitação pudéssemos dar às outras nações o exemplo de uma solução completa como em tantas outras questões somos apontados como exemplo a seguir. Em todo o caso é difícil atingir esse ideal.
O Sr. Manuel Lourinho: - Todas as grandes realizações começam por ser ideias.
O Orador: - São só em Lisboa, além das verdadeiras casas sobrepovoadas, perto de 10 000 barracas clandestinas, de latas e caixotes velhos, e as furnas da serra de Monsanto, etc., são as 600 "ilhas" do Porto; são .... mas que sei eu, que se pode saber se ninguém traz tudo isto contado?
Um dos resultados de toda esta carência, e dos mais sérios, é, conforme as boas regras da economia clássica, o encarecimento das rendas das insuficientes casas que aparecem disponíveis e cuja carestia remete as populações para as barracas ignóbeis ou para as aglomerações imorais e anti-higiénicas; nas que lutam para resistir, como pesará a renda e desequilibrará a economia doméstica!
Os especialistas, não sei se trabalhando às vessas sobre exemplos que acharam bastantes, concluíram há muito ser de até um sexto dos rendimentos da família modesta a proporção razoável e aceitável da renda a pedir-lhe. Além disto, todos concordam, sacrifica-se demais o restante: alimentação, vestuário, saúde, as distracções legítimas. E a todos isto parece um máximo, não faltando quem argumente que será excessiva a renda de uma casa pobre se levar mais de um décimo dos ganhos.
Ora a carestia actual das casas oferecidas conduz a rendas além destas proporções, obrigando as famílias operárias a privações que importa poupar-lhes.
Se é certo que a iniciativa da construção das casas de renda económica e a novidade das de renda limitada, uma e outra altamente louváveis, reduziu em Lisboa a crise e os preços nas casas da classe média, ou das camadas mais desafogadas da classe média, na capital ainda as classes pobres, e no restante do País toda a gente, se procura casa só a encontra em condições de preço frequentemente esmagadoras.
Há dois meses foi-me presente este exemplo, que nada me indica ser excepção. Certo carpinteiro veio para Lisboa em busca de trabalho, que lhe faltava na terra, e encontrou-o a contento próprio e do patrão, pois é bom artífice. Ganha 45$ por dia, cerca de 1.100$ por mês. Tem mulher e um filho. Depois de longamente procurar, e já esclarecido pelos camaradas sobre o que poderia esperar, o que alcançou foi um quarto - um quarto só, para a família com o seu filho ... - num dos subúrbios, a vinte minutos do transporte mais próximo.
Pois por este quarto, pelo quarto só, sem retrete, sem cozinha, de que se serve em comum com os outros locatários, teve de resignar-se a pagar 240$ de renda, 22 por cento do seu salário. Mas o homem tem uma velha parente entrevada, que sustenta porque o criou, e não pode mante-la na terra; quis, pois, trazê-la para junto de si, para um segundo quarto, porque já não caberiam todos no mesmo. Arranjava-se, mas eram mais 220$. E aqui temos 460$ por mês, 40 por cento dum bom salário, exigidos poi dois simples quartos já fora de portas, com mera serventia de cozinha e instalações sanitárias.
Ante isto, teremos de fazer como se diz dos arúspices da velha Roma, quando falarmos de protecção à família?
Peço vénia para recorrer às mesmas testemunhas de há pouco, porque o que nos dizem do preço das moradas pobres é tão actual como o que disseram da qualidade delas:
... Ela estava num catre a tiritar e a gemer. Isto era num dos "hotéis" daqueles sítios. São 84 milréizinhos que nós ambos pagamos!
... Um quarto onde habito m pai, mãe e nove filhos. Pagamos 170$ por mês.
... O quarto onde ele está custa uma renda fabulosa. É incrível o que nós ouvimos da boca dos ocupantes nestas regiões! Há rendas pagas ao dia, muitas à semana, poucas ao mês. Vãos de escada,
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águas-furtadas, quartos de arrumos, nesgas nos corredores - tudo é alugado e custa os olhos da cara. E incrível!
Duma casa onde vivem miseravelmente quatro famílias:
... F... puxa dos apontamentos que tomara dentro daquele casebre sobre a renda de cada habitante. Somámos: deu 420$.
... É um bocado dum armazém que custa 200$ por mês.
Acerca de uma pobre trapeira:
... sai às 6 da manhã, em jejum, aos farrapos e papéis; ao meio dia regressa à barraca (pela qual paga 150$) ...
... No mesmo prédio, ao fundo, era um embarcadiço. A sua mulher conta-me e oiço. Pagam de renda 37$ por semana!
... Eles ,são um casal com uma filhita ... Vivem num quarto a pagar 50$ por semana!
... É uma sala quadrada ao sabor das casas antigas. Duas janelas dão para o beco. O chão é carunchento. Biombos de papelão fazem os quartos, onde habitam este e outros por 7$50 por dia.
Seriam alguns locatários de dia a dia, pagando a contingência de não voltarem, ou a incerteza das cobranças; seriam outros em quartos mobilados (que mobílias?), naturalmente mais caros; fosse isto tudo, que nem assim os preços citados deixam de arrepiar. Um quarto de século passado sobre a Revolução Nacional ainda é verdade em parte o que se escreveu quinze anos antes dela: nada se aluga mais caro do que a casa do operário; a casa pior é a que dá maior rendimento!
O Sr. Melo e Castro : - Há ou houve até há pouco tempo quem explorasse o negócio de barracas de lata que se constróem para alugar.
O Orador : - Considero essas além e abaixo do que devia trazer à Assembleia.
E nos casos melhores deixará de ser miséria, só por não ser a miséria suja das furnas, o que se passa na família do empregado que ganha 1.200$ a 1.500$ e paga 400$ a 500$ de renda?
Sr. Presidente: alonguei-me e peço desculpa. Mas como de outro modo convencer V. Ex.ª e a Assembleia, se felizmente andam longe delas, do ponto em que as coisas ainda estão?
É agora tempo de considerar o que já se fez para as melhorar, e não pequeno consolo nos pode vir de, neste como em muitos outros campos, toda a obra sólida ser nossa, ser da Revolução Nacional. Na história moderna da acção governativa portuguesa em favor da casa popular uma divisão nítida, total, há a estabelecer.
Antes de 28 de Maio de 1926 - não diria melhor 27 de Abril de 1928? - nada de concreto: um só diploma, promulgado durante o consulado de Sidónio Pais. que nisto foi ainda uma vez o precursor, com poucos resultados; e os «bairros sociais», tão famosos como infelizes.
Agitaram-se políticos e governos durante trinta e cinco anos à roda de projectos e propostas de leis - nada menos de nove desde a apresentação do primeiro, em Janeiro de 1883 - , mas nenhum chegou até ao Diário do Governo.
Trinta e cinco anos de retórica e relatórios serviram, no muito, para estabelecer a importância da questão - conceda-se-lhes esse mérito ; mas mais não conseguiram, que os tempos não consentiam.
Foi o Decreto n.º 4 137, de 24 de Abril de 1918, que eu saiba, a primeira medida legislativa destinada a melhorar o alojamento das classes menos abastadas. Orientava-se no sentido de favorecer a construção das que hoje chamamos casas de renda económica, concedendo isenções fiscais, facilidades jurídicas, prometendo empréstimos da Caixa Geral de Depósitos à taxa, presumivelmente muito barata para a época, de 4 por cento, prevendo e consentindo a construção por cooperativas, pelo Estado, corpos administrativos e estabelecimentos de beneficência, e a venda das casas aos inquilinos.
Ao abrigo destas disposições fundaram-se cooperativas de construção, de que, pelo menos, uma se mantém e apresenta obra notável, mas no total os seus frutos não foram grandes.
Em Outubro de 1928 voltou a legislar-se na matéria, admitindo rendas que dessem ao capital remuneração até 10 por cento ao ano. Muito evoluímos depois!
Porém, Sr. Presidente, a peça mestra da nossa legislação, a que suscitou a obra ao mesmo tempo mais vasta, mais brilhante e mais original, é o Decreto-Lei n.º 23 052, de 23 de Setembro de 1933, publicado na companhia condigna do Estatuto do Trabalho Nacional e das bases da organização corporativa, que instituiu o sistema das casas económicas.
Neste se conjuga e funde o melhor e o mais provado da experiência estrangeira, das exigências da nossa ética, dos requisitos de uma administração prudente: capital tornado barato por adiantamentos gratuitos do Estado, colaboração com as autarquias locais e com os organismos corporativos, moradias de família com quintal, aquisição pelos moradores, constituição de casais de família, seguros da propriedade em casos de morte ou invalidez, seguros das prestações de compra contra doenças e desemprego e, por fim, o reembolso dos capitais empregados.
Das primeiras realizações se confessou inteiramente satisfeito o Governo; ao planear as últimas o mesmo Governo confirmou que o êxito do empreendimento excedeu as suas mais esperançosas previsões e as nossas.
Assegurou-se a unia boa parte da população a possibilidade de adquirir o próprio lar, o mais precioso dos bens materiais, garantia de tranquilidade e bem--estar, não só para os presentes como para os que hão-de vir.
E o apreço público pelas casas mede-se pela concorrência aos bairros e pelos pedidos incessantes de mais construções.
Uma só sombra empana o brilho da solução: o preço, que põe as casas acima das posses dos mais pobres, e desde logo dos trabalhadores do campo, aliás, por condição bem escusável do próprio decreto, impedidos de aspirarem a elas. Ao presente as prestações mensais estão fixadas, para casas de três quartos (mais cozinha, casa de banho, despensa e saleta), entre 255$ e 745$; noutros tipos desce-se até 175$ ou chega-se a 815$.
Por isto veio a criar-se no ano de 1945 nova espécie de casas, mais singelas e baratas, a construir por corpos administrativos e Misericórdias, com subsídios do Poder Central até 10.000$ para cada. Destinou-as o legislador a alojamento de famílias pobres; mais feliz fora atribuí-las simplesmente a trabalhadores, pois nas condições actuais são as que podem convir aos operários de pequenos e médios ganhos, na província sobretudo.
E, em intuito evidentemente sincero e decidido de atacar largamente as dificuldades de habitação, que o pós-guerra exacerbava, o Governo criou ainda, de uma das vezes com a colaboração desta Assembleia, mais dois géneros de construções - de renda económica e de renda limitada; legislou de novo a favor das coopera-
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tivas e concedeu repetidas comparticipações para a obra das casas económicas para pescadores.
Nem os prédios de renda económica nem os de renda limitada competem à iniciativa directa do Estado; todavia, a introdução destas modalidades e o apoio decidido dado, sobretudo, à primeira, por aplicação de capitais das instituições de previdência, surgindo numa época de crise e provocando viragem nas tendências da construção privada, influiu beneficamente, e, graças a elas, pode dizer-se que hoje em Lisboa a classe média já não encontra dificuldades sérias de alojamento. Sofrem-nas, sim, as classes mais pobres.
Com a mesma franqueza com que afirmo ser ainda pouca para as necessidades, posso dizer que tem grandeza e seriedade a obra já feita.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mais de 20 000 habitações produziu até fins de 1951 e quase 3 000 fez iniciar ou prosseguir no decurso do ano de 1952, sendo, respectivamente, 7560 e 974 casas económicas e 4 618 e 1168 casas para famílias pobres.
Discriminando mais, encontramos:
[Ver tabela na imagem]
Obra considerável, em que o Estado pôs muito do seu e sobre isto procurou mobilizar variados concursos, contemplá-la dá grande satisfação; de meu conhecimento, os defeitos revelados pela prática dos construtores e pelo uso dos habitantes podem dizer-se poucos e secundários, não atingindo as linhas gerais das diversas concepções experimentadas. Assim, posso dispensar-me de os analisar, embora gostasse de o fazer; mas o tempo não consente. Em um só aspecto a insatisfação resta: no da quantidade; e os sem-casa perguntam-nos e perguntam-se porque é que estes cesteiros que fizeram uns cestos
As cooperativas de construção têm sido em outros países grandes obreiras da habitação popular; anãs entre nós falta-lhes o crédito abundante e fácil, que é o seu sangue, e (poucos resultados têm a exibir. As facilidades que lhes prometia a Lei n.º 2 007 sobre casas de renda económica determinaram uma proliferação destas sociedades, que é mais uma prova do enorme interesse por toda a parte suscitado pelas dificuldades de habitação e por quaisquer modos de as resolver.
Vozes:-Muito bem!
O Orador: - Segundo foi comunicado no Congresso Internacional de Urbanismo, que se reuniu em Lisboa há seis meses, em fins do ano de 1951 existiam dezasseis cooperativas de construção de moradias económicas com estatutos aprovados pelo Ministério das Finanças, com 33 000 sócios, das quais pelo menos nove posteriores à lei citada. Uma, porém, é muito mais antiga (já aludi a ela a propósito da legislação de 1918) e apresentava à sua conta grandíssima parte da obra feita, que se cifrava no total em l 332 fogos construídos e 186 em construção.
As sociedades deste tipo vivem essencialmente de capitais emprestados, e a Lei n.º 2007 previa que estes lhes fossem concedidos pela Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência a taxas de juro não superiores a 4 por cento, com amortizações não além de vinte e cinco anos. Parece, todavia, que a Caixa não tem considerado oportunas estas aplicações, de modo que as cooperativas debatem-se, em geral, em dificuldades enormes, que desalentam sócios e dirigentes, pois fora daquele estabelecimento não encontram crédito senão ou muito caro ou a prazo muito curto e com taxas de juro mesmo assim da ordem dos 5 1/2 por cento, as mais baratas.
Isto é verdadeiramente de lamentar, porque as possibilidades destes organismos estão demonstradas à saciedade noutros países, e no nosso o contraste entre o número dos sócios e a obra feita dá a medida, ao mesmo
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tempo, das suas potencialidades e da sua impotência prática.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Novo é o empreendimento tentado pelo conhecido e admirável P.e Américo e pelos seus amigos da Obra da Rua, novo e atraente como todas as suas iniciativas e exemplar da coragem e da tenacidade com que se faz mister trabalhar pelas casas pobres.
Eu nem sei se VV. Ex.ªs têm conhecimento da obra deste padre - meio poeta, um e meio homem de acção; mas há-de ser difícil, acho eu, ignorarem o que ele tem feito nas suas «aldeias de rapazes» em prol dos gaiatos das cidades.
Pois o P.e Américo, de tanto ver os sofrimentos dos pobres sem casas, lançou-se há dois anos a provê-los delas, e só pela força do amor de Deus e do próximo, e à custa de esmolas, já vai a bom caminho de as contar por centenas em todo o País.
Pormenor curioso: consegue preços da ordem da dúzia de contos para casas que em debuxo como em fotografia parecem perfeitamente decentes, com seu quarto, cozinha e anexos.
Notável e intrigante preço, pois a construção oficial não se lhe aproxima sequer.
Todavia, esta obra do «património dos pobres», se a refiro para completar o quadro das realizações nacionais dignas de menção, não me serve de exemplo; só de estímulo. Pertence aos domínios da caridade, onde se entra com respeito, uma prece nos lábios e o compadecimento porventura a trair-se em furtiva lágrima. Não são os nossos, são os das coisas de Deus; a nós cabe-nos o que é de César. Cabe-nos pesar e medir o que cada um traz em esforço útil à vida colectiva, e o que a sociedade deve pagar-lhe do tesouro comum em auxílios e alentos. Mas também nos cabe pesar e ver cada vez melhor este mal que alarma tantos e os incita a darem assim tão prontos trabalho e dinheiro para vestirem de casas os nus de casa!
O Sr. Melo Machado: - Há uma outra pessoa que tem obra idêntica e que é o Sr. Governador Civil de Lisboa.
O Orador: - Sabia que certas entidades tinham pequenas obras análogas, mas não tinha encontrado notícia de que o Sr. Governador Civil de Lisboa também se interessava pela construção de habitações.
Em suma - e esta conclusão é afinal unia redundância ao cabo do que expus de entrada e tenho vindo a repelir, mas a redundância convém-me, na falta de eloquência para firmar o conhecimento de VV. Ex.ªs, Sr. Presidente e Srs. Deputados - em suma, a habitação dos trabalhadores determinou já amplas medidas e provocou brilhantes realizações, anãs os factos demonstram que tudo é ainda pouco.
A habitação rural é que aparece sempre como parente pobre. O decreto sobre casas económicas, já o disse, limitando logo de começo o seu gozo a funcionários e assalariados do Estado e das autarquias e a membros de sindicatos nacionais, feriu os trabalhadores agrícolas de uma incapacidade de princípio ao acesso à posse de habitação que, por boas e de ordem prática que fossem as suas razões, toma um valor de símbolo - de símbolo do muito que vemos falar a favor do campo ... e agir a favor da cidade.
Em matéria de habitações rurais noto, aliás, frequentemente o que se me afigura ser certa confusão. Parece muitas das vezes que no que se pensa a propósito é na habitação do empresário agrícola, do pequeno agricultor, na morada com os modestos anexos necessários a uma exploração também modesta - o celeirozito, a adega até, o estábulo, etc. - e nos problemas correlativos do casal autónomo, que vão desde os de sanidade aos de vedação e segurança. E assim se tende a relegar este aspecto da questão, porventura com ligeireza, para o quadro dos que são privativos da economia agrária.
Ora não é bem assim. Por muito que seja de lamentar, por muito que seja de combater, o facto é que cada vez mais o trabalhador rural se proletariza e cada vez mais a habitação que procura é tal qual a de qualquer outro braceiro. Pode apetecer um quintal para o feixe de lenha, uma capoeirazita, um telheiro para a burra, que é o seu transporte quando a tem; mas afinal nada disto confere à casa peculiaridade e resolve-se bem na relativa disponibilidade de terrenos dos aglomerados campesinos. E não a pode pagar cara, que os ganhos são pequenos e incertos. Mas é tudo.
E nos meios rurais não há só trabalhadores do campo a alojar. Mais ou menos afins deles em hábitos e gostos de vida, apesar de profissionalmente distintos, artífices e operários da pequena indústria também nas nossas vilas e aldeias requerem e não alcançam moradas do mesmo jeito.
Direi, pois, que o problema nacional da habitação rural, na sua maior generalidade, não é essencialmente distinto do da habitação urbana mais despretensiosa, e é para considerar com e como o desta.
E a sua urgência é igual. Da carência que há não faltam sinais. E os números falam por si sós: das famílias que o último censo nos diz não terem residência privativa, e que são ao todo 209272, muito cerca de metade - exactamente 104 606 - vive fora das duas cidades grandes e até dos seus distritos.
Aliás, a afluência às capitais, a incessante corrente dos que procuram nestas, e sobretudo em Lisboa, trabalho mais certo e mais bem pago, se puder ser contrariada, exigirá, para tanto, que voltem a oferecer-se nos pequenos povoados casas aceitáveis; e a industrialização dispersiva do Plano de Fomento há-de concorrer para esta exigência. Não acredito que se possa resolver u crise de relativo gigantismo das nossas cidades maiores devolvendo à procedência os foragidos das aldeias sem empregos e sem atractivos; mas para reduzir a sua corrente haverá que aumentar estes atractivos, e na construção de novas casas se encontrará um deles. Dois até: mais fontes de trabalho e melhores condições para viver.
Da nudez, do desconforto, do primitivismo, da insalubridade (que só compensa a longa permanência ao ar livre) da nossa casa rural tudo está dito. Se isto é consolo, que nos console a conclusão dos Profs. Lima Basto e Henrique de Barros no seu conhecido inquérito: «... Portugal não foge à regra do que se passa mais ou menos em toda a Europa».
De novo digo, porém, que na aflição do momento presente não deve pensar-se senão acessoriamente em melhorar o mau que existe; pensemos primeiro em construir o que totalmente falta.
E quanto às vilas e aldeias, que sofrem mais caladas as suas precisões, pensemos sempre que no atendê-las virá também o alívio dos grandes centros; virá essa «desurbanização» que a todo o custo importa iniciar.
Ora há uma modalidade frequentemente sugerida, mas ainda não favorecida de consagração oficial, que oferece possibilidades particularmente valiosas para os meios rurais: é a que já se chama por aí «autoconstrução» - da construção por diligência e mãos do candidato a morador.
É de todos os tempos, agora só mais custosa porque mais complicada pela civilização. Ainda hoje, porém, abundam os exemplos de jornaleiros, de operários que,
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uma vez alcançado o talho de terra, se metem a construir a sua casa. Eventualmente ajudados por vizinhos, que lhes cedem madeiras, fretes, tijolos ou pedra, pouco a pouco fazendo, por si, mais ou menos toscamente, o que sabem ou podem, pagando a camaradas e fornecedores consoante vão amealhando com quê, obra grossa agora, rebocos depois, janelas mais tarde, em dois, três, quatro anos, com muita canseira e a grande vontade que para isto parece ser ,da própria natureza humana, acabam por ter as suas casas, e não raro bem graciosas e limpas.
Não é fácil conceber melhor aplicação do tempo que os modernos horários deixam livre, e que da Primavera ao Outono ainda somam cinco ou seis centenas de horas de luz solar, depois de despegar da oficina. Se com o antigo regime de sol a sol, aproveitando só os dias de folga, muito trabalhador fez a casa por si próprio, quantos mais não poderão imitá-los, tendo maiores vagares?
Com umas ajudas a tempo, crédito e facilidades para compras de terrenos e materiais, muitos poderiam decerto ser. E se os interessados se organizassem em grupos de diversas profissões, constituindo estaleiros de construção, amparados, técnica e financeiramente, quem sabe se lima obra tão brilhante como a das casas económicas, e ainda mais vasta, não poderia tornar-se realidade?
Esta tese acaba de ser defendida, com minúcia e brilho, por um engenheiro experiente, o Sr. Horácio de Moura, em livro que intitulou Um Estudo Social e saiu de prelos conimbricenses há apenas dois meses, com o patrocínio de altas autoridades eclesiásticas e o abono de interessantes resultados que se estão conseguindo em França, também sob a inspiração da Igreja.
Louvo-me na sua argumentação e dispenso-me de a repetir, concordando com o fundo dela e aceitando-a no essencial, que para mini é a bondade da ideia de ajudar cada um a erguer casa. O Sr. Engenheiro Moura defende que isto se faça por cooperação de operários preferivelmente de profissões diversas, trabalhando em horas livres ou entregando em dinheiro que preferissem ganhar noutro sítio o valor desse tempo. Será ou não viável o sistema, consoante circunstâncias diferentes de lugar para lugar, entre as primeiras das quais colocarei a existência de animadores e coordenadores eficazes; porém, não basta a falência parcial, que se verificou num ensaio deste género tentado perto de Gaia há uns vinte e cinco anos, para o desacreditar. Pelo contrário, em França parece ganhar cada vez maior aceitação.
Mas eu ponho a ideia com mais largueza, e pelo que já tenho visto considero, pelo menos, tão merecedoras de encorajamento e ajuda as iniciativas de indivíduos isolados como as empresas em grupos.
Quanto à ajuda financeira, creio que ainda o mais seguro e conveniente será pedi-la ao Estado, sob a forma de créditos baratos e a prazo longo, como se instituíram já para os melhoramentos agrícolas.
A criação de um fundo de melhoramento da habitação popular, destinado a financiar os empreendimentos de autoconstrutores, parece-me oportuna e necessária, por capaz de atingir grandes resultados onde são extremamente desejáveis.
O nosso ilustre colega Sr. Dr. Manuel Lourinho propôs na passada legislatura, quando se discutiu a lei sobre questões conexas com o problema da habitação, disposições permitindo o auxílio do Estado para a construção de casas de habitação própria e empréstimos para a construção, reconstrução ou melhoria da casa rural. Não obtiveram apoio; todavia, devo confessar a VV. Ex.ªs que da leitura dos números do Diário dessas sessões não me ficou a impressão de não o merecerem; não me convenceram os argumentos que se lhes opuseram, e foram mais de forma que de substância. Agora, que o crédito privado anda como anda, auxiliar os indivíduos de economia fraca mas de ânimo forte a construírem, e até a melhorarem, as suas próprias casas será, Sr. Presidente, um modo eficaz e salutar de concorrer para o remédio das nossas misérias habitacionais; e, sendo mais adequado aos meios rurais - porque aí a construção pode ser mais singela e as cooperações se facilitam -, é de tentar lá quanto antes.
Estimulando a solidariedade, dando aplicação útil a horas de ócio, assegurando o máximo de poupanças por força do empenho mesmo dos construtores, esta modalidade acredita-se pelo seu múltiplo interesse político, social, moral e económico.
Seja ela defendida de excessos de burocracia e papéis e posta acima das preocupações da fachada e da solução óptima e do só novo, que quem a puser em. prática estou que não se arrependerá.
Creio, Sr. Presidente, que tudo a aconselha e que o País a compreenderá e aceitará, como tem compreendido e aceitado avidamente todos os movimentos do Poder Central ao encontro da sua sede de progressos.
Este o desejo de muitos, esta a minha primeira sugestão: que o Estado conceda créditos e facilidades - conselhos técnicos, vantagens fiscais, auxílios para aquisições de terrenos - aos pobres que queiram e sejam capazes de construir ou melhorar as suas próprias casas, dando-as em penhor dos reembolsos. Os corpos administrativos, em especial as juntas de freguesia, porventura também as Casas do Povo, poderiam ser os garantes destes devedores, com as adequadas seguranças.
Um critério limitador encontrar-se-ia facilmente na exigência de cooperação manual directa dos beneficiários; outro, porventura mais justo e concreto, o do nível de rendimentos não superior ao daqueles para quem o Estado já constrói as casas económicas ou promove as de renda económica. Quanto às estritas proporções, deixemo-las para os regulamentos.
O fomento da autoconstrução oferecerá, creio-o convictamente e em boas companhias, caminho novo e seguro para a solução do novo problema de alojar depressa os que clamam por casas; mas não pode esperar-se que resolva tudo o que falta resolver.
Pelo contrário, o carácter inicial de experiência do sistema, a mais que provável limitação dos fundos que o Governo possa dispor-se a atribuir-lhe de entrada, o próprio facto de se dirigir a indivíduos necessariamente de escolha, a sua melhor adaptação a meios de tipo rural e a certas classes profissionais hão-de fazê-lo demorar a ganhar balanço: o mesmo seu propugnador que citei não ambiciona para o primeiro lustro de trabalhos mais de 2 500 fogos construídos, embora vise um total de 150 000. Será alavanca poderosa para a melhoria da habitação campesina, mas com seu tempo.
Ora a situação não se compadece com demoras. Para lhe fazer frente, séria como é e cada vez mais, o alvo a estabelecer não pode ser inferior a 50 000 habitações nos próximos dez anos, e será o mínimo admissível. Considerem V. Ex.ªs que o déficit só em Lisboa era em Dezembro de 1950 de 30 000 moradas; que nas condições actuais da construção aumenta, em talvez, umas 1 500 por ano; considerem o Porto; considerem o resto do País; considerem as privações, os perigos morais e sociais que procurei esboçar, e digam-me se acham a estimativa exagerada! Todos os estudiosos do problema com muitas razões a elevariam; e eu fixo-me em 50 000 fogos - apenas metade do déficit nacional de há dois anos! - só porque receio as dificuldades financeiras de ir além.
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Tudo indica, porém, ser indeclinável este (programa mínimo, sob gravíssimas penas.
A grandeza do mal-estar impõe grandeza correspondente de remédios; recuperar tempo perdido, reduzir atrasos, só com a quadruplicação do ritmo da obra, que se tem vindo a fazer, não é certamente exagero. Nem impossível, havendo vontade.
Como e com quê?
A obra feita, se pelo volume e variedade não pode dizer-se mais que experiência, por esta mesma variedade e pela relativa felicidade dos resultados oferece ensinamentos bastantes quanto aos tipos de soluções a preferir num programa de vulto e ao modo de as realizar.
A primeira grande conclusão que consente é a de que as casas têm de ser muito mais baratas na renda.
Estendida a crise a todas as camadas da população, é consoante a estrutura económica geral que ela tem de ser resolvida. Logo, a maioria, a grande maioria das rendas tem de ser compatível com ganhos da ordem de centenas de escudos apenas.
Ora as casas já construídas em execução das providências governamentais situam-se nos seguintes níveis de rendas (ou prestações de compra):
Casas para pescadores e para famílias pobres:
Em Lisboa.........100$00 a 290$00
Fora de Lisboa.....50$00 a 140$00
Casas económicas:
Das classes A e B..........175$00 a 445$00
Das classes C e D..........475$00 a 815$00
Casas de renda económica...250$00 a 750$00
E o que se verifica?
Lisboa à parte, pois a população de há muito se resignou a tudo e a de tudo se privar para conseguir morada, as casas de rendas baixas estão todas tomadas, as de rendas mais alias estão muitas vazias.
O que nos disse aqui o Sr. Dr. Alberto Cruz na sessão do dia 24 último é elucidativo, e a conclusão traz o selo do seu excelente senso das realidades; é assim mesmo: as Tendas não podem sair dos limites de 200$ a 500$ para as classes médias, 80$ a 150$ para os operários.
E, como estes últimos são a maioria dos necessitados, destes preços deverá ser a maioria das novas casas.
Doutro modo arriscamo-nos a vê-las vazias ou os moradores desmedidamente sacrificados.
E mesmo os preços assim nem a todos convirão. O trabalhador que não consegue coalhar, descontando os dias perdidos ou parados, senão 400$ ou 500$ por mês muito mal poderá chegar-lhes. Mas, como ninguém se propõe construir já para toda a gente, no alívio da procura das casas velhas se encontrará a vantagem dos mais pobres.
De localidade para localidade variam as condições económicas, e será possível, senão necessário, subir um pouco as rendas nas regiões mais folgadas ou evoluídas, para levar as diferenças em compensação às zonas mais pobres.
As casas podem fazer-se baratas com capitais baratos ou graças a economias de desenho ou de obra.
O capital barato tem sido universalmente o grande obreiro das casas económicas: barato de juro e longo de amortização, para esta ser suave.
As nossas casas económicas são feitas com capital que se torna barato porque o Estado adianta metade sem juro; mas o prazo de amortização, para ficar compatível com o modo de aquisição, é só de vinte e cinco anos, o que eleva a anuidade acima de 5 por cento.
As casas para famílias pobres têm tido o subsídio de cerca de um terço do seu custo, reduzindo a inversão de capital, senão o seu juro; mas a mesma gratuitidade dos subsídios tem levado o Estado a ser parcimonioso nas dádivas, que entende não poder nem dever estender sem limites.
No estrangeiro são correntes as taxas de juro de 1 1/2 e 2 por cento e as amortizações de quarenta a sessenta anos; aplicações destas só são possíveis com capitais dos Estados ou de grandes estabelecimentos quase públicos, e com o volume necessário nem podem sequer considerar-se nos quadros conhecidos da economia portuguesa.
Em busca de poupanças de custo no desenho das nossas construções económicas já se foi tão longe quanto provavelmente é aceitável. Em certos casos até longe demais: as dimensões fixadas para as casas de famílias pobres são assaz reduzidas, em contradição mesmo com a lei geral.
Isto à parte, os projectos são agradáveis e bem concebidos. Em vinte anos de estudo devem ter-se esgotado as economias de delineamento; por aqui não haverá mais a esperar.
Bestam as economias de execução. Para estas ainda o campo se mostra aberto.
A experiência - e particularmente a experiência de Lisboa nos grandes agrupamentos de Alvalade - mostra que na pré-fabricação dos elementos uniformizáveis, nos grandes volumes de obra, e, sobretudo, na organização e promoção, seguidas de programas capazes de interessar os construtores sérios, se podem conseguir substanciais economias.
Grande volume e continuidade da obra: o mesmo que dela desejamos a tornará mais fácil.
Estas condições põem, porém, uma questão adicional, a que me referirei de passagem, e é a da concentração dos esforços. Além das câmaras muncipais - nomeadamente as de Lisboa e do Porto, com seus serviços próprios -, têm colaborado na construção de casas para o povo a Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e a Federação especializada de Caixas de Previdência.
Uma concentração, tanto para planear como para executar, parece, por todas as razões, indicada, sobretudo agora que as caixas de previdência são chamadas a outras aplicações dos seus capitais. Porque tem sido várias vezes preconizada, não me parece necessário deter-me em mais considerações, bastando referir a ideia pelo interesse que claramente reveste.
Todavia, e por mais que se faça, não é de prever que possa vir a descer de 30 a 40 contos, termo médio, o custo por fogo de construção das casas mais baratas, incluídos terrenos e tudo o mais, excepto a urbanização, do foro dos municípios por natureza. E as casas para a classe média hão-de seguramente ficar nas proximidades dos 100 contos cada.
De facto, em Alvalade, onde se conseguiu já muito em economias de projecto e de execução, o custo por habitação, incluindo terrenos, ficou em 60 contos para as casas mais singelas e de um só quarto e atingiu 135 contos para as do tipo melhor, com três quartos e mais o da criada e o seu de banho.
As casas económicas têm sido ultimamente arrematadas por preços que as levam até entre 58 e 130 contos, conforme as classes, nos tipos de três quartos cada, incluindo terrenos e urbanizações. E, por fim, direi que os mais recentes bairros de casas para famílias pobres têm sido adjudicados à roda de 30 contos por fogo, a que são de juntar os valores de terrenos, e que as casas do Caramão da Ajuda ficaram à Câmara Municipal de Lisboa a mais de 50 contos.
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É o conhecimento disto tudo que me leva a estimar, respectivamente, em 35 e 80 contos os custos menores por habitação a prever para as casas de trabalhadores e da classe média, garantidas a organização eficiente e a construção em grandes séries, o que, aliás, não é forçosamente o mesmo que construção em agrupamentos grandes.
Fazendo contas, conclui-se facilmente que estes preços, para consentirem as rendas já consideradas, impõem a limitação às vizinhanças de 3 1/2 por cento do rendimento bruto do capital empregado e impõem para as 50 mil casas desejadas em dez anos dispêndio superior a 2 milhões de contos.
Como conseguir uma e outra coisa?
Vou entrar, Sr. Presidente, em matéria de que não esqueço o melindre, e no qual facilmente correrei o risco de grandemente me afastar das realidades, do que, todavia, espero a Assembleia me advertirá. Deveria porventura abster-me de a abordar neste receio; mas pesar-me-ia ter agitado a questão, tão grave a meus olhos, e deixá-la sem lhe procurar remédio. Não o ver e remetê-lo para outros, para o Governo, que venho alarmar, não é do meu feitio; então quedar-me-ia calado. Meditando, porém, sobre tudo isto, ponderando quanto pude apreender da experiência nacional e alheia, apoiando-me em dados de confiança, pareceu-me possível conceber um sistema de financiamento com aparências de viabilidade.
O dinheiro não é fácil nem abundante em Portugal. O do erário público anda bem medido e bem poupado; o dos particulares procura empregos seguros e rendosos, embora aceite ocasionalmente, e à falta de melhor, sacrificar algum dos requisitos ao outro.
Os estabelecimentos de crédito não o concedem e em regra senão a prazo curto; e a própria Caixa Geral de Depósitos, que detém muito e vive de o emprestar, essa mesma se mostra cada vez mais desinteressada de aplicações demoradas e a juro baixo. Não lhe discuto o critério,- que, aliás, exceptua ainda para muito fim proveitoso; e seria ingratidão e leviandade esquecer o valor da obra que as autarquias devem precisamente a este modo do seu concurso, e graças a ele continua. Mas o que se passa, por exemplo com o Fundo dos Melhoramentos Rurais e com as cooperativas de construção ilustra a imprudência de contar com a Caixa para o género de financiamentos que a obra das casas baratas requererá. Nem, bem que quisesse, os seus capitais chegariam.
Lá fora as câmaras municipais colaboram activa e efectivamente na construção de habitações populares; entre nós isso ser-lhes-ia impossível. Já um pequeno grupo delas, e decerto bem contra vontade, deve muitas dezenas de milhares de contos ao Fundo das Casas Económicas, comprometendo perigosamente a conclusão do plano de construções de 1943, ainda em meio. Aumentar-lhes a participação seria afinal lançar novas dificuldades sobre o Tesouro Público.
Por si só, nenhum sector da economia ou da Administração mostra, pois, posses ou desejos de fornecer aquela enorme soma necessária para as 50 mil casas nas condições requeridas.
Resta ver se tal será possível em colaboração.
É conclusão universalmente assente entre os especialistas destas questões, e sancionada pelos votos dos seus congressos, que no estado actual da técnica não se pode construir para as classes menos abastadas sem a ajuda de subsídios, o que é, aliás, apenas outro modo de reconhecer o que tenho vindo a insinuar, e é não serem as rendas adequadas àquelas classes compatíveis com a remuneração normal dos capitais a investir. Tais subsídios, directos ou indirectos, vêm naturalmente dos próprios dinheiros públicos.
A esta conclusão aderiu de facto o Estado Português, com as suas medidas sobre casas para famílias pobres, as comparticipações para as casas de pescadores, etc. Apoiada na experiência estranha e na autoridade interna, toma um valor axiomático, que me dispensa de a discutir mais.
Por outro lado, ninguém desconhece que todos os anos capitais privados de relativo vulto vêm ao mercado de valores procurar colocações rendosas. Uma das mais apreciadas destas é justamente em prédios de alugar. Sabe-se demais que é assim e que prédios apreciam os capitalistas.
Entende-se geralmente- que o dinheiro invertido em prédios de alugar -os chamados «prédios de rendimento»- dá produto líquido anual da ordem de 5 a 6 por cento do capital. 5 1/2 por cento admitiu a Câmara Corporativa num dos seus pareceres subsidiários sobre o Plano de Fomento.
Começa, porém, a correr que muitos capitalistas têm recentemente encontrado as mais desagradáveis surpresas nestas inversões, cuja figura muda muito depois de os edifícios saírem das mãos dos construtores.
A ser assim, haverá lugar para questionar aquela noção de rendabilidade.
E surgem números que o autorizam.
As instituições de previdência têm sido ultimamente grandes utilizadoras deste modo de capitalização. Segundo a mais recente estatística, tinham até fins do ano de 1951 aplicado assim para cima de 700 mil contos, de que mais de 400 mil em prédios do tipo também procurado - e até agora avidamente - pelo capital particular, entrando no conjunto por cerca de 90 por cento os prédios de renda livre.
Eu posso aceitar que por inexperiência uns ou outros desses prédios fossem medíocres compras, mas não que todos o fossem. As compras escalonaram-se por vários anos e é certamente o caso de considerar, parafraseando Abraão Lincoln, que pode ter sido enganada nestas compras toda a gente algum tempo ou alguma gente todo o tempo, mas não toda a gente todo o tempo.
Ora as instituições de previdência no ano de 1951 tiraram os seguintes rendimentos dos seus prédios só em Lisboa:
[Ver quadro na imagem]
Refiro-me só aos de Lisboa, por ser onde podemos crer na máxima ocupação e nas mais altas rendas. O restante do País não altera, porém, os números, de que me permito deduzir que actualmente os novos investimentos em prédios tendem a dar rendimentos baixos, vizinhos do 4 por cento, senão inferiores.
Os capitais que só dedicam a estes investimentos atingem o valor de 350 mil contos em média anual, conforme o cálculo do Plano de Fomento, que desses espera utilizar para a sua própria cobertura cerca de 100 mil (125 mil, menos o valor da subscrição habitual de títulos de empresas privadas).
Será precipitada a conclusão de que haverá no futuro próximo um volume de capitais privados da ordem de 250 mil contos por ano procurando aplicar-se em imóveis que tendem a não lhes dar mais de 4 por cento de rendimento, praticamente fixo pelo regime corrente do inquilinato?
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E se atraíssemos estes capitais para a construção de casas baratas, sob a forma de empréstimos públicos a empregar em construções feitas pelo Estado ou sob a sua orientação?
A aplicação seria de tamanha utilidade social que para a tornar convidativa me atreveria a propor todas as vantagens legítimas. E entre estas e à sua frente eu colocaria a seguinte: que os juros desses empréstimos fossem garantidos contra a perspectiva de desvalorizações da moeda; e que esta garantia se assegurasse pela revisão periódica das rendas das casas em que o capital estivesse aplicado, revisão paralela à dos vencimentos do funcionalismo, por exemplo!
A sugestão parecerá heterodoxa, mas vejamos rapidamente:
Primeiro, os empréstimos com garantias contra desvalorizações do dinheiro não são novidade. Tivemos uma experiência nacional, que, se foi infeliz, não o terá sido só pelo princípio; e ainda recentemente outra se tentou num grande país amigo.
Segundo, a revisão das remias nas renovações dos arrendamentos, por muito que disto andemos já esquecidos, nada tem contra a moral e o direito, sobretudo temperada pela autoridade do Estado a assegurar a equidade dos seus termos; e, considerada a sua promessa como convite à subscrição de capitais e modo de os atrair pelo mínimo juro, o próprio merecimento destes objectivos plenamente a justificaria, a meu modesto ver.
Suponhamos que assim se obtinha bastante capital, a uma taxa de juro que, para fixar ideias, estimarei em 4 por cento e com amortização em quarenta anos.
Qualquer tabela de anuidades mostrará logo que o encargo respectivo atingiria 5,05 por cento; adicione-se-lhe mais 1 para despesas de administração, conservação, seguros e outras dos prédios.
Chegar-se-ia assim ao total de 6 por cento, encargo anual da operação.
Mas eu exprimi já a V. Ex.ª o sentimento de que para casas realmente baratas não se poderá tirar delas mais de 3 1/2, por cento em rendimento bruto.
Encontrar-nos-íamos, pois, com um déficit, anual de 2 1/2 por cento.
Ora, este é que poderia sor coberto pelo Estado, em satisfação daquele princípio axiomático de ser necessário o seu subsídio para assegurar a acessibilidade das habitações às classes menos abastadas.
E o Estado poderia fazê-lo com a certeza do seu reembolso, condição importantíssima de sanidade da hipótese.
Com efeito, a vida útil de um prédio, mesmo económico, razoavelmente conservado, pode ser estimada em perto de cem anos; mas fixemo-nos em oitenta apenas.
Durante metade do tempo, prazo de amortização do empréstimo, o Estado entregaria 2 1/2, por cento do capital como subsídio de embaratecimento; durante a outra metade do tempo - outros quarenta anos - o Estado ressarcir-se-ia e reembolsar-se-ia, cobrando os mesmos 2 1/2, por cento líquidos da renda. E no fim teria livre o valor residual do prédio, provavelmente não nulo.
Este o esquema, grosseiro do mecanismo, que me parece concebível para financiar, nas nossas condições, a grande obra indispensável da construção em escala larguíssima de- casas verdadeiramente baratas para trabalhadores e para a, classe média.
Ele supõe a construção e posse pelo Estado, ou por outras entidades públicas encarregadas da administração, mas seguramente impotentes para garantirem os subsídios.
Não é o modo mais corrente por esse mundo fora, não o é onde o dinheiro se encontra mais abundante ou fácil; mas tem seus precedentes, seus bons resultados a aboná-lo, defensores categorizados e respeitáveis até na nossa bibliografia; e ... quem encontrar melhor que o proponha!
Falece-me já o tempo para o analisar por miúdo; mas estimaria ouvir aqui ou ler lá fora críticas à sugestão, que pode despertar grandes esperanças, e ao menos por amor destas merecerá ser analisada ou desfeita. Uma crítica, penso que em primeiro exame, poderá ocorrer fazer-lhe: a de socialismo, na hipótese do Estado-senhorio; mas atente-se que será uma qualidade de senhorio por ninguém apetecida, e não há socialismo onde o Estado se limita a suprir as insuficiências privadas; não há socialismo, por exemplo, na construção e mantença de hospitais ou de escolas, e as casas dos pobres não merecem menos que esses estabelecimentos o carinho dos Poderes Públicos. Pois se até concorrem com eles para a saúde e para a educação!
Se pudessem obter-se os capitais que considerei, seria de bom proveito ceder parte às cooperativas de construção, ou permitir-lhes em conjunto a negociação directa de algumas séries de empréstimos. A sua orgânica já é perfeitamente compatível com o juro mencionado, dispensando subsídios complementares, menos justificáveis no caso; e a ânsia de habitações dos seus sócios sem dúvida facilitaria todos os ajustamentos ao prazo de amortização, que para isto poderia até ser diferente.
Assim alentadas, às cooperativas de construção poderia devolver-se em parte o papel de facilitar o acesso à propriedade de casas.
Na outra parte, a obra das casas económicas -solução perfeita, mas limitada inexoravelmente pelas circunstâncias e pelos preços a que é obrigada pelo seu próprio sistema-, a obra das casas economias por um lado, e por outro as ajudas a autoconstrutores, deveriam continuar a assegurar a satisfação do ideal de propriedade, que, pela sua mesma altura, não poderemos por muito tempo conseguir que se generalize a todos os necessitados de morada.
Sr. Presidente: a matéria é vasta, e neste anelo de convencer V. Ex.ª e a Assembleia da sua importância e urgência, expondo-lhe os aspectos a meu juízo principais na presente conjuntura, desenvolvi-a com risco de fazer perder à vossa atenção, que me penitencio de ter fatigado (Não apoiados), as linhas essenciais do meu pensamento.
O assunto requeria, mas o tempo não consente e o jeito não permite, que essa atenção a procurasse eu agora retomar com uma exaltação final desta causa tão bela, que me abalancei a levantar, cego pela sua grandeza e oportunidade à incapacidade pessoal de bem a expor.
Seja lícito reduzir-me ao resumo das convicções que fundamentalmente desejaria ter transmitido a VV. Ex.ªs.
Creio que ainda há no nosso país gravíssimas dificuldades de habitação para as classes menos abastadas.
Creio que é de primordial importância e da mais séria urgência ateimá-las, em todos os níveis da população, até ao extremo limite das possibilidades.
Creio que as casas económicas representam a perfeição na obra já feita, e devem continuar a ser a coroa da que se vá empreender, mas que por sua própria essência não podem por ora tornar-se acessíveis à maioria dos que procuram habitação.
Enfim, creio que na colaboração do Estado e do capital particular a isso aliciado e secundariamente no auxílio à diligência de construtores, individual ou colectiva, e dos próprios interessados se pode encontrar o modo de fazer edificar o grandíssimo número de no-
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vas casas realmente baratas de que se faz mister prover o nosso país.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi minto cumprimentado.
O Sr. Santos Carreto: - Requeiro a generalização do debate.
O Sr. Presidente: - Concedo a generalização do debate.
Tem a palavra o Sr. Deputado Santos Carreto.
O Sr. Santos Carreto: - Sr. Presidente: o problema da habitação, que o nosso ilustre colega Sr. Deputado Amaral Neto acaba de trazer a esta Câmara, é sem dúvida de permanente e flagrante actualidade.
Desde há muito que o Governo da Nação, em perfeita inteligência da sua gravidade, decidiu enfrentá-lo com vivo e feliz empenho.
E gratíssimo nos é verificar que também neste campo se multiplicam pelo País fora realizações magníficas, que, pelo que são e pelo que representam em esforço despendido, temos de louvar e bendizer.
Pergunta-se, porém: é possível fazer mais ? É possível fazer melhor?
Sr. Presidente: a insatisfação é virtude verdadeira a valorizar a natureza humana. Há no homem tendência constante e premente para a perfeição, mas para a perfeição absoluta, que, por muito que se queira, não logramos atingir sobre a Terra.
Não, não podemos atingi-la; mas somos fortemente impelidos a trabalhar e lutar como se isso fosse possível. É a sede do bem absoluto que incessantemente nos toma e nos tortura.
Bendita insatisfação esta, que é forte estímulo para o mais e para o melhor! Mas insatisfação, verdadeira e legítima, não é, não pode ser, febre de maldizer nem cerramento de olhos e de coração para não ver e para não sentir.
O que era e como era a vida portuguesa de há vinte e cinco anos atrás?
Sem recursos e sem crédito, sem ordem na administração pública, sem prestígio- no exercício do Poder, sem tranquilidade nos espíritos e na rua, sem estímulos e sem esperanças, a vida portuguesa arrastava-se tristemente entre desalentos e ruínas desastrosas que por toda a parte se amontoavam e eram a nossa desonra e a nossa desventura.
Isto há vinte e cinco anos. E hoje?
Hoje, retomados os rumos da sua vocação histórica, recuperada a consciência da sua dignidade e das suas possibilidades, Portugal, por graça de Deus, sabe reagir, sabe lutar e sabe vencer. A sua vida vai-se desenvolvendo entre maravilhas de iniciativa e de realização, que, honrando-nos e dignificando-nos, fazem surpresa ao mundo inteiro e são para os outros povos testemunho vivo de quanto é capaz a alma lusitana.
A face da terra portuguesa anda a renovar-se e a transformar-se em ritmo de encantamento. Acaso? Não. Milagre verdadeiro do céu que mais uma vez nos salvou.
Só o não vê quem não tenha olhos para ver. Só o não sente e não reconhece quem já não tenha coração para sentir nem alma para reconhecer.
Inteiramente satisfeitos ?
Decerto que não. É sempre possível e mesmo necessário fazer mais e fazer melhor.
Mas, repito, insatisfação não é pessimismo, não é derrotismo.
É estímulo para mais, é inspiração para melhor.
Sr. Presidente: um aviso prévio - parece-me - não pode ser inspirado senão no maior bem colectivo e a sua efectivação tem de colocar-se indefectivelmente no plano do superior interesse nacional.
De outra forma verificar-se-ia um lamentável desvio patriótico - coisa verdadeiramente estranha a surpreender e a confranger a nossa alma de portugueses sem mistura.
É que, Sr. Presidente, perfeitamente conscientes da alta responsabilidade do nosso mandato, todos sentimos que não é ao serviço de interesses particulares ou de nós mesmos que estamos aqui, mas tão-somente ao serviço da Nação.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-O aviso prévio que o ilustre Deputado Engenheiro Amaral Neto promoveu é informado de tanta dignidade e elevação patrióticas que não hesitei em subir a esta tribuna para dar-lhe o meu pobre contributo e também o meu decidido apoio nas suas linhas gerais.
Sr. Presidente: nesta modesta intervenção minha não irei certamente repetir os argumentos que sobre este magno problema foram, por forma tão emocionante, desenvolvidos pelo nosso distinto colega.
Quero apenas, por imperativo da consciência, trazer aqui o meu testemunho, que, embora obscuro, é o testemunho de quem no exercício do seu grave ministério, tem consumido seus anos apaixonadamente debruçado sobre tantos problemas que envolvem a vida do homem e profundamente lhe interessam.
Sr. Presidente: a habitação, a que a alma portuguesa prefere chamar lar doméstico, é verdadeiramente o berço, o asilo, o refúgio da família.
E se a família é a célula viva e fundamental da sociedade, e se do seu valor depende absolutamente o valor não só da colectividade mas também do próprio indivíduo, temos de concluir que a casinha que se habita é para o indivíduo o que o solo, o clima, a luz e o calor são para a vida de todas as coisas.
Na verdade, é ali que se criam as condições essenciais da vida, porque é ali, naquele recinto quase sagrado, que nascem e se desenvolvem os mais altos sentimentos que tomam a alma do homem em anseios de generosa e reconfortante solidariedade.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Legítimo é. pois, afirmar que cuidar do lar doméstico, para que realmente ele seja um ninho do amor a prender os espíritos e os corações, é dever grave que urge cumprir com carinhosa e apaixonada solicitude.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Louvar o Governo, pelo muito que neste campo leva já feito e pelo mais que se propõe realizar, não é senão acto singelo de justo reconhecimento e de patriótica congratularão.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Pelo Sr. Engenheiro Amaral Neto foram focados com inexcedível inteligência os mais importantes aspectos do problema. A mim só compete apoiar o reforçar as suas afirmações, salientando, sobretudo, a premente necessidade de estender até às populações rurais os benefícios do ingente esforço que, nesta cruzada bendita, louvavelmente se está a despender.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
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O Orador:- E facílimo é justificar o voto expresso.
Sr. Presidente: suponho não ser necessário repetir neste momento o que por vezes tem sido aqui afirmado: que o trabalhador dos nossos campos constitui a classe menos protegida e menos defendida e, por isso mesmo, a que mais duramente suporta as dificuldades o privações de que a vida ó cheia.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Todos o reconhecem, todos o sentem, como todos sentimos e reconhecemos que ele é o mais útil e, consequentemente, o mais prestimoso entre todos os elementos da actividade nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A energia do seu braço e aos suores do seu rosto se devo o pão que comemos, o alimento que nos sustenta a vida. E não é ele, com o seu agregado familiar, o mais forte baluarte contra todas as criminosas tentativas de desagregação social?
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Até onde vão os seus sacrifícios, as suas privações, o sou admirável espírito sofredor, melhor do que ninguém o sabem aqueles que, por virtude do seu ministério, mantêm com essa humilde classe contacto permanente de apostolado e de assistência.
Eu não irei, Sr. Presidente, dizer que nos nossos campos alguém morra à fome. A caridade cristã é ainda virtude linda o bendita a informar e embelezar a alma portuguesa. E eu poderia testemunhar aqui, por conhecimento directo e pessoal, até onde vão os prodígios de assistência crista que por essas províncias fora generosamente se multiplicam e que - temos de o notar e lamentar - tão pouco reconhecidos e apreciados são, por vezes, pelas entidades responsáveis.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas se a bondade, que tão encantadoramente caracteriza a nossa gente, não consente que alguém morra à míngua de pão, temos do aceitar que pode morrer-se, e de facto se morre, na carência de muita outra coisa necessária à vida.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E aqui há que por o problema da habitação como do particular e capital importância.
Na sua radiomensagem do último Natal o Santo Padre Pio XII, depois de anotar o lamentar as privações a que estão sujeitas as famílias pobres, diz:
A condição piora quando elas são obrigadas a habitar em poucas divisões sem mobília e completamente desprovidas das modestas comodidades que tornam a vida menos penosa. E se a divisão é uma só e deve servir para cinco, sete ou mais pessoas. Todos podem imaginar quanto mal-estar isso comporta! E que dizer daquelas famílias que têm algum trabalho, mas que, não possuindo casa, vivem à sorte em barracas, em cavernas que não se destinariam nem sequer para animais!
Poderá alguém, Sr. Presidente, contestar a flagrante exactidão das afirmações de Sua Santidade?
E quem poderá medir toda a extensão das ruínas produzidas nas almas e nos corpos por denuncia de habitação conveniente?
Haverá, decerto, quem replique quo as estatísticas actuais acusam maior percentagem de doentes tuberculosos entre as classes ricas, a quem não falta nem alimentação nem boa habitação, do que entre os pobres, que, de tudo carecem.
Se assim fosse, se os números estatísticos correspondessem neste ponto à realidade dos factos, uma só conclusão seria lícito tirar: que, além das privações de ordem material, outras causas há, e de diferente natureza, que andam a inutilizar e a ceifar tantas vidas que, favoravelmente instaladas, poderiam e deveriam sor actividades úteis e prestimosas no concerto colectivo.
Mas eu não creio que os estragos da tuberculoso sejam mais largos e profundos nas famílias ricas.
As estatísticas são naturalmente; organizadas sobre dados que os consultórios módicos e as instituições adequadas periodicamente fornecem. E suponho poder assegurar que muitos doentes pobres vivem e morrem pela província à margem dos consultórios e de qualquer observação médica.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Séria e dedicadamente empenhado anda o Estado no combate a esta malfadada e perigosa doença. Multiplicam-se, por toda a parto dispensários, sanatórios, preventórios, brigadas vacinadoras e outros variados meios de profilaxia.
Os melhores e mais efusivos louvores e agradecimentos são devidos ao Governo por esta e tantas outras campanhas que profundamente interessam à vida da Nação.
Devemos porém reconhecer que todo o esforço despendido será insuficiente se não se cuidar de resolver o problema da habitação, que reputo verdadeiramente fundamental.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas não é só a vida física. Sr. Presidente, que reclama uma habitação conveniente. Non solum pane vivit homo. O espírito tem também, neste ponto, as suas exigências imperiosas. Já o frisou, o muito bem, o ilustre Deputado Amaral Neto: a dignidade da morada ajuda fortemente a edificar e a elevar a dignidade do indivíduo.
De facto, uma casinha, modesta embora, mas aberta à luz vivificante do Sol e à pureza do ar tonificante, é instrumento apreciável de espiritual conforto e poderoso estímulo para o cultivo das melhores virtudes.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Por ela e com ela se prende o homem a, terra que o viu nascer e a ela se liga entranhadamente com toda a afectividade do seu coração.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E ali que elo vive as suas melhores emoções, as mais amoráveis recordações da infância, toda a piedosa saudade dos entes queridos que primeiro partiram. Há ali uma alma comum a viver intensamente os mesmos sentimentos, os mesmos cuidados, as mesmas aspirações, as mesmas esperanças. É verdadeiramente um ninho de amor onde a vida se refugia, se concentra e se robustece para as grandes e constantes lutas que são partilha indeclinável do homem.
Vozes: - Muito bem!
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O Orador: - Mas poderá uma moradia ser tudo isto para o corpo e para a alma se for um pobre tugúrio sem ar e sem luz, sem alegria e sem encanto?
Sr. Presidente: verifica-se actualmente um facto que, pelas circunstâncias que o envolvem e pelas consequências que dele advém, não pode deixar de nos surpreender e preocupar sobremaneira.
É a fuga constante e volumosa da boa gente provinciana para os grandes meios, mormente para Lisboa. E tamanha gravidade está assumindo este facto que todos sentem a urgência de seriamente e enfrentar e dar-lhe segura e eficaz solução.
Como?
Sr. Presidente: o trabalhador dos nossos Campos não é, felizmente, muito exigente. O aconchego de uma casinha, acolhedora e cheia de sol, e uma leira de terra para a horta dos seus suores constituirão laço forte a prendê-lo ali e remédio eficaz para a tentação de fuga para os grandes e movimentados centros.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Suponho que a prova está tirada com algumas colónias agrícolas já existentes pelo País fora.
Levar até aos meios rurais a construção de casas para trabalhadores será, pois, ajudar eficazmente a resolver um problema que, pela sua acuidade, reclama atento cuidado.
Ocorre, porém, perguntar: e é só ao Estado que pertence resolver este o outros problemas que na vida surgem?
Pretender-se que seja o Estado a fazer tudo seria, parece-me, caminhar-se para um regime de perigoso socialismo que viria estancar as fontes da melhor iniciativa particular.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Decerto que o Estado tem graves e imperiosos deveres a cumprir.
Administrar os interesses tão variadamente complexos da Nação, promover por todas as formas o bem da colectividade, assistir dedicada e prontamente a quantos careçam de amparo e defesa nas suas vidas o nos seus bens, aproveitar solicitamente e fazer render ao máximo todos os valores de inteligência e de trabalho que largamente abundam nesta terra querida de Santa Maria, formar a consciência nacional na fidelidade aos princípios da caridade e da justiça, assegurar ajusta liberdade dos cidadãos dentro das normas austeras da moral, velar constantemente pela paz e segurança da vida nacional e com enérgica decisão defendê-la contra todos os inimigos de fora e de dentro, fazer enfim tudo pelo maior e melhor bem comum, tal é o laborioso e grave encargo que sobre os homens de Governo indeclinàvelmente impende.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas ao Estado não cabem só deveres. Ele tem também direitos incontestáveis e inalienáveis; e entre estos avulta o de esperar e exigir que todos os cidadãos favoravelmente instalados na vida com ele colaborem na defesa do bem colectivo e no justo esforço de socorrer e ajudar aqueles a quem as circunstâncias menos favorecem.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Socorramo-nos mais uma vez dos sábios ensinamentos do grande Pontífice que é Pio XII:
A solidariedade dos homens entre si exige, não sòmente em nome do sentimento fraterno, mas também da própria conveniência recíproca, utilizar todas as possibilidades na conservação dos empregos existentes e na criação de outros novos. Por isso, aqueles que são capazes de aplicar capitais considerem, à luz do bem comum, se poderão conciliar com a sua consciência pô-los de lado com vã cautela, deixando de fazer os devidos investimentos dentro dos limites das possibilidades económicas, nas proporções e no momento oportunos.
Sr. Presidente: é doutrina assente que a riqueza tem uma grave função social a exercer. Exerce-a? Inteiramente legítima a sua posso e administração.
Não a exerce? A riqueza deixa de ter razão de ser porque é contrária ao bem colectivo.
Há, portanto, que chamar a riqueza ao exacto cumprimento dos seus deveres. E isto é função que pertence ao Estado e que ninguém pode contestar-lhe.
Há riquezas improdutivas? Há lucros exagerados e estranha e perigosa desorientação no seu uso e aplicação, e, em lamentável consequência, corrupção de costumes, perversão da vida, estulto desvio dos rumos eternos?
Ao Estado pertence, por imperativo indeclinável da sua alta função, atender, vigilante, a este e a outros aspectos da vida social portuguesa para que não venha a acontecer-nos como a tantos outros povos, que, à força de ouro acumulado e mal utilizado, pereceram miseravelmente afogados em ondas de lama.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: o problema da habitação, como tantos outros de natureza social, terá tantas maiores facilidades de solução quanto mais exacta for a compreensão que a riqueza tiver das suas graves obrigações.
Ouçamos ainda uma vez mais a voz autorizada do Sumo Pontífice:
A questão não é nova. Já o nosso predecessor imediato, fazendo-se eco dos ensinamentos de Leão XIII, escrevia em 1931:
É necessário dar a cada um o que lhe pertence e atender às normas do bem comum e da justiça, social quanto à distribuição dos recursos deste Mundo, cujo flagrante contraste entre um punhado de ricos e uma multidão de indigentes põe claramente em nossos dias, aos olhos de qualquer homem de coração, graves desvios.
Com satisfação reconhecemos - continua Sua. Santidade - que, após algumas décadas, graças aos esforços perseverantes e aos progressos da legislação social, a diferença de condições se reduziu geralmente bastante, às vezes em proporções notáveis. Sem embargo, há ainda que deplorar o aumento intolerável dos gastos em luxo, dos gastos supérfluos e desarrazoáveis, que duramente contrastam com a miséria, de um grande número, já entre as classes proletárias das cidades e dos campos, já entre a multidão dos chamados «economicamente débeis»...
Estas graves e severas afirmações do Sumo Pontífice importam, Sr. Presidente, princípios sagrados de justiça, que, aceites e vividos lealmente, nos serão fonte magnífica de paz e de confiança no futuro.
Vozes: - Muito bem!
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952 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 221
O Orador: - No pensamento e na palavra sempre viva e sempre exacta do Sr. Presidente do Conselho a Revolução tem de continuar enquanto em terras de Portugal houver um lar sem pão, que o mesmo é dizer, uma família sem os meios necessários para bem cumprir a missão que a Providência, lhe marcou. E Revolução, aqui, não é senão esforço dedicado, vivo e persistente de renovação social, como se impõe e é mister.
O problema da habitação, pela sua fundamental importância, não pode deixar de ocupar lugar de particular interesse nos cuidados do nosso espírito e do nosso coração. Para, a sua conveniente solução temos, pois, de contar com a boa vontade de todos os que, por favor da Providência, tem na vida uma situação de maior felicidade e por isso mesmo de maior responsabilidade também.
E quando se fala de iniciativas particulares não podemos evidentemente esquecer essas admiráveis instituições que são as nossas Misericórdias, de tradição tão gloriosa e tão rica de benemerências. Elas têm aqui, na solução do problema em questão, um lugar que ninguém pode usurpar-lhos. E é ver o que neste campo algumas levam já realizado. As autarquias locais e às Misericórdias, como a tantas outras instituições empenhadas em colaborar na solução deste magno problema (a Obra da Rua e o Património dos Pobres, do apostólico P.e Américo, a União Católica, dos Industriais e Dirigentes do Trabalho - UCIDT, as Conferências de S. Vicente de Paulo e muitas mais), não pode o Estado deixar de prodigalizar com largueza uma assistência, generosamente estimulante e substancialmente supletiva.
Não o fazer ou fazê-lo timidamente seria inutilizar preciosas iniciativas e, consequentemente, comprometer o desenvolvimento e êxito desta salutar cruzada, em que se empenham tantas boas vontades.
Entre os organismos que eficientemente podem e devem colaborar na solução deste problema, merecem especial referência as Casas do Povo, que são, sem dúvida, a mais linda o interessante modalidade de toda a nossa organização corporativa.
Bem orientadas e devidamente amparadas, as Casas do Povo serão, certamente, prestimoso elemento de protecção e defesa do nosso trabalhador rural.
Mas há algumas ou muitas Casas do Povo que não realizam os objectivos que lhes foram determinados?
culpa não é, positivamente, das esferas superiores, onde se trabalha com inexcedível interesse e inteligente decisão.
Um dia se conhecerá, em toda a sua extensão, o que vai já feito no sector corporativo e previdência! O que já se conhece dá bem a medida do esforço despendido e dos frutos que se estão colhendo e que se impõem já à admiração e reconhecimento de todos os portugueses de boa fé.
Só o não vêem os que não querem ou não sabem ver. Porque também aqui, Sr. Presidente, há teimosas cegueiras que surpreendem a nossa devoção patriótica.
Mas insistamos, especialmente, nas Casas do Povo. Para que elas vivam realmente em toda a largueza dos seus benefícios só é preciso que os que a elas presidem saibam viver apaixonadamente a sua função e se disponham a dar-se-lhes com a alma toda e sem outros objectivos que a defesa e protecção das classes trabalhadoras, que bem merecem de todos nós.
Sr. Presidente: seja-me concedido repetir neste momento as afirmações que já tive oportunidade de fazer aqui.
As Casas do Povo carecem de direcções com competência e sobretudo com alma para dar e para dar-se. Só assim elas poderão realizar plenamente os fins que por lei lhes foram marcados.
Há nos meios rurais duas entidades que, por força da sua própria missão, não devem, como regra, estar aumentes das direcções das Casas do Povo: são o pároco e o professor.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - O pároco é, por imperativo do seu mesmo ministério, o grande condutor de almas, o homem destinado a todos os combates e a todos os sacrifícios. O professor é, também pela sua função, o grande educador, o primeiro cultivador da inteligência a abrir, o valioso seleccionador de valores para o futuro, a quem tantos devem o que na vida são.
Pároco e professor têm nas suas mãos a vida intelectual e a segurança moral dos meios rurais. Não deverão, pois, ser eles os grandes orientadores, a alma mesmo das Casas do Povo?
Parece que é o odioso encargo da cobrança das quotas que impede estas duas entidades de darem às Casas do Povo a sua valiosa e benéfica colaboração.
Mas não será possível instruir um processo de cobrança que coloque as direcções ao abrigo de situações desagradáveis?
O Sr. Ministro das Corporações, a cuja inteligente actuação e inexcedível zelo patriótico me é sobremaneira grato render aqui a melhor homenagem, toda feita de admiração e reconhecimento, saberá encontrar fornia de resolver convenientemente o assunto, que, na verdade, merece ser considerado atentamente.
Repito: só com boas, competentes e dedicadas direcções se poderá conseguir que as Casas do Povo realizem plenamente a sua função e se tornem prestimosos agentes de progresso locais, isto é, «cooperadoras efectivas nas obras de utilidade comum», como se diz no notável diploma que as criou.
E entre tantas iniciativas que lhes compete tomar não terá lugar de especial importância a construção de casas para as classes trabalhadoras?
Sr. Presidente: eu sinto que já estou abusando da cativante benevolência de V. Ex.ª e da Câmara. Seja-me, no entanto, permitido tocar ainda um ponto, que julgo de particular interesse.
Será de recomendar e de aprovar que a construção de casas para trabalhadores e para pobres continue a fazer-se em sistema de bairros?
Este sistema importa necessariamente uma acentuada separação de classes.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Será bem? Convirá isso a um melhor futuro que queremos preparar?
Um dos grandes males do nosso tempo é o isolamento das classes pobres, que em cada dia se verifica mais acentuado. Em certos meios e em certas regiões esse isolamento é tão grande que parece viver-se em autêntico regime de castas, como se o pobre não precise do rico e o rico não precise do pobre.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Membros de uma e mesma comunidade, com aspirações e fins idênticos, poderemos nós desconhecer-nos, isolar-nos, sem perigo sério para a segurança colectiva?
E poderá a comunidade realizar os seus naturais objectivos sem a cooperação, o bom entendimento e o dedicado sacrifício de todos e de cada um?
Em que se tornarão as classes trabalhadoras, abandonadas a si mesmas, em desastroso afastamento das classes categorizadas e, portanto, longe da salutar influên-
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cia educativa de quem tem na vida maiores responsabilidades sociais?
Vozes: - Muito bem!
O Orador; - Não estaremos nós a preparar aldeias indisciplinadas e inteiramente ingovernáveis num futuro mais ou menos próximo?
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Se se fizer uma séria investigação sobre as condições em que decorre a vida, em todos os seus aspectos, nos bairros que já existem para uma só classe, estou certo de que se reconhecerão os seus inconvenientes e se sentirá a urgente necessidade de aproximar mais e pôr em contacto íntimo, confiante, verdadeiramente fraterno, os homens de todas as categorias e de todas as condições; e de tal maneira que, convencidos da especial função que a cada um cabe na vida, todos se dêem as mãos para o maior bem-estar comum.
Mas então - perguntar-se-á - como resolver o problema da localização das casas para trabalhadores, cuja construção estamos preconizando com todo o fervor do nosso espírito?
Suponho não ser difícil encontrar dentro dos agregados populacionais pequenos locais dispersos e inaproveitados onde possam fazer-se as projectadas e desejadas construções, singularmente ou por pequenos grupos, mas perfeitamente integradas no conjunto da vida colectiva.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - De resto, não há dificuldades insuperáveis para quem sabe seriamente querer e decididamente lutar.
Faltará, é certo, a este sistema de realizações o aspecto aparatoso que o sistema de bairros oferece. Mas isso, que é coisa de superfície, não interessa. O que interessa e importa sobremaneira é ir até aos alicerces mesmos da vida e robustecê-los por forma inabalàvelmente segura.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Construir para o futuro, construir para a vida!
Eis, Sr. Presidente, o grande cuidado que deve dominar o pensamento de todos os obreiros do interesse e renovação nacionais.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Ao Sr. Ministro das Obras Públicas, a cuja superior inteligência e admirável actividade o País deve benemerências sem conto, confiadamente se oferece este aspecto interessante de um problema, que, sendo de viva e flagrante actualidade, reclama solução conveniente.
Aqui ficam, Sr. Presidente, as modestas considerações que sobre tão grave assunto julguei do meu dever trazer a esta tribuna.
Há nelas um pensamento dominante que - devo frisar- não é meu. É da Igreja ....e conta séculos.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Em virtude do adiantado da hora, vou encerrar a sessão. Amanhã haverá duas sessões, uma de manhã, às 10 horas e 30 minutos, para continuação do debate deste aviso prévio; a outra, à hora regimental, tendo como ordem do dia o aviso prévio do Sr. Deputado Cerqueira Gomes.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 30 minutos.
Srs. Deputados que entraram, durante a sessão:
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Délio Nobre Santos.
Henrique dos Santos Tenreiro.
José Pinto Meneres.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Alberto Cruz.
António Júdice Bustorff da Silva.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Mantero Belard.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Cardoso de Matos.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel de Sousa Meneses.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
O REDACTOR, - Luís de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA