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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.º 24 ANO DE 1954 3 DE FEVEREIRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VI LEGISLATURA
SESSÃO N.º 24, EM 2 DE FEVEREIRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
ecretários: Exmos. Srs.
Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 10 minutos.
Antes da ordem do dia.- Foram aprovados os n.ºs 21, 22 e 23 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
O Sr. Presidente anunciou estarem na Mesa os elementos solicitados pelos Srs. Deputados Elísio Pimenta e Daniel Barbosa aos Ministérios da Economia e das Obras Públicos.
Leu-se na Mesa um ofício do Sr. Embaixador do Brasil a agradecer um outro que o Sr. Presidente da Assembleia Nacional enviara a S. Ex.ª a propósito da 4.º centenário da fundação da cidade de S. Paulo.
Foi concedida autorização para o Sr. Deputado Russel de Sousa ser ouvido como testemunha na 1.º vara cível da comarca do Porto.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Pinto Barriga, para um requerimento; Paulo Cancella de Abreu, que invocou o Regimento quanto ao requerimento citado acima; Duarte Silva, sobro assuntos de interesse para a província de Cabo Verde; Botelho Moniz, acerca do problema dos lacticínios, e Pinto Barriga, para explicações quanto à intervenção do Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu.
Ordem do dia. - Em primeira parte da ordem do dia continuou o debate na generalidade sobre a proposta de lei de colonização interna.
Usou da palavra o Sr. Deputado Camilo de Mendonça.
Em segunda parte iniciou-se a discussão do aviso prévio do Sr. Deputado Cid dos Santos.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Almeida Garrett e Santos Bessa.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 16 horas.
Fez-se a chamada, â qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Agnelo Ornelas do Rego.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Amélio Pereira da Conceição.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António de Almeida Garrett.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
António Russell de Sousa.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancella de Abreu.
Augusto Duarte Henriques Simões.
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Baltasar Leite Rebelo de Sousa.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Eduardo Pereira Viana.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Herculano Amorim Ferreira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Afonso Cid dos Santos.
João Alpoim Borges do Canto.
João Luís Augusto das Neves.
João Maria Porto.
João Mendes da Costa Amaral.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José dos Santos Bessa.
José Sarmento Vasconcelos e Castro.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel Monterroso Carneiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Trigueiros Sampaio.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancella de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Vaz Monteiro.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.
Urgel Abílio Horta.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 76 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 10 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 21, 22 e 23 do Diário das Sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como nenhum Sr. Deputado deseja usar da palavra, considero aprovados aqueles números do Diário das Sessões.
Deu-se conta do seguinte,
Expediente
Telegramas.
Da Câmara Municipal de Évora e do Grupo Pró-Évora a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Bartolomeu
Gromicho sobre o caso da Biblioteca da Manizola e também as palavras do Sr. Deputado Mendes Correia sobre a restauração da Universidade de Évora.
Do Grémio do Comércio do Fundão a apoiar as palavras do Sr. Deputado Pinto Barriga sobre a exportação de volfrâmio.
O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia em satisfação do requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Elísio Pimenta.
Vão ser entregues a este Sr. Deputado.
Estão também na Mesa os elementos enviados pelo Ministério das Obras Públicas a requerimento do Sr. Deputado Daniel Barbosa.
Vão ser entregues a este Sr. Deputado.
Pauta.
O Sr. Presidente: - Na sessão de 25 de Janeiro, como a Assembleia sabe, foi aqui prestada a devida homenagem ao Brasil, o propósito do início das comemorações do 4.º centenário da fundação da cidade de S. Paulo.
Entendi que devia comunicar imediatamente, após o encerramento da sessão, ao Sr. Embaixador do Brasil as homenagens prestarias pela Assembleia, e foi mandado nessa mesma tarde, por mão própria do 1.º secretário desta Assembleia, ao Sr. Embaixador do Brasil um oficio dando-lhe resumidamente conta do que aqui se passara.
O Sr. Embaixador do Brasil enviou um ofício à Assembleia, que eu vou mandar ler.
Foi lido. É o seguinte:
Aproveito a oportunidade para reiterar a V. Ex.ª os protestos da minha mais alta consideração.
Olegário Mariano».
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Está na Mesa um ofício do juiz da 1.ª vara cível da comarca do Porto, a solicitar autorização para que o Sr. Deputado Russell de Sousa possa depor naquele tribunal como testemunha num julgamento designado para 16 do corrente mês.
O Sr. Deputado Russell de Sousa, ouvido sobre este pedido, informou que não vê inconveniente pára a sua acção parlamentar na autorização pedida.
Consulto a Câmara sobre se concede a referida autorização.
Consultada, a Câmara, foi concedida a autorização.
O Sr. Presidente: - Têm a palavra, para um requerimento, o Sr. Deputado Pinto Barriga.
O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: tenho a honra de mandar para a Mesa o requerimento que passo a ler:
Requerimento
«Desejando, na generalização do debate sobre o aviso prévio brilhantemente efectivado pelo Sr. Deputado
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Prof. Dr. Cid dos Santos, intervir, mas convenientemente documentado, e não tendo podido requerer oportunamente os elementos necessários de informação, visto o apresentante desse aviso prévio não ter indicado, nos termos regimentais, os fundamentos da sua discordância, e não permitindo agora a exiguidade do tempo solicitá-los, tenho a honra de pedir urgentemente, nos termos do artigo 96.º da Constituição, a devida autorização de consulta nos competentes Ministérios e respectivos serviços, de modo a habilitar-me a tentar demonstrar:
1.º Que a solução prática do problema do Hospital Escolar de Lisboa não pode ser desvertebrada, mas sim com uma incidência predominantemente financeira, e, portanto, com imediata subordinação equilibrada do técnico ao orçamentado, dos fins pedagógicos aos assistenciais;
2.º Que é indispensável uma adequada reierarquização orçamentológica da hospitalização numa escala bem graduada de valores e necessidades públicas, aferidas financeiramente em face duma guina de interesses nacionais em que são relevantes os da saúde pública;
3.º Que se impõe a utilização imediata do novo edifício do Hospital Escolar de Lisboa pelo que representou de dispêndio enormíssimo para o Tesouro Público, que não pode nem deve ficar desaproveitado para obedecer a soluções demoradas de questões prejudiciais de pura técnica hospitalar, quase dependentes da reconstrução e ampliação actualizada dessas monumentais edificações;
4.º Que a criação e alargamento dos centros clínicos ou serviços hospitalares, sem abdicação do critério cientifico pura a sua fundação, tem de atender imperiosamente ao constrangimento da saúde pública e dos correspondentes objectivos assistenciais;
5.º Que, na lógica do patrocinado no número anterior, um centro de cardiologia é perfeitamente legitimado pela leitura circunstanciada das tábuas de mortalidade e pelos progressos dos métodos e técnicas cardiológicas, que exigem a criação de um serviço especial, independente dos de medicina interna geral.
Outrossim roqueiro, pelo Ministério da Educação Nacional, a cópia das actos do conselho da Faculdade de Medicina, de Lisboa que se referem a criação da consulta e serviços de cardiologia e ao provimento da sua respectiva direcção e indicação pelo Instituto de Alta Cultura da data de fundação de um centro de cardiologia».
O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Peço a palavra para invocar o Regimento.
O Sr. Pinto Barriga: - Os requerimentos desta espécie não se discutem; a um requerimento destes contrapõe-se outro requerimento.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu.
O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Sr. Presidente: salvo o devido respeito, parece-me que os requerimentos não podem ser fundamentados. Além disso, não podem ser tratados assuntos marcados para a ordem do dia antes de se ter entrado nela.
O Sr. Pinto Barriga: - Peço a palavra para explicações.
O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Concretizando: n disposição regimental que invoco é o § 6.º do artigo 45.º, primeira parte.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Pinto Barriga pediu a palavra para explicações sobre à invocação do Regimento.
O Sr. Pinto Barriga: - O Regimento na disposição citada refere-se a outros requerimentos e não aos meus desta espécie, porque estes a pedirem informações oficiais, uma vez formulados, têm de ser convenientemente explicados e esclarecidos.
Eu pedi a consulta de elementos para obter as informações necessárias. Os requerimentos a que o Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu se refere são os requerimentos feitos na ordem do dia e não os feitos aos Ministérios.
O Sr. Augusto Cancella de Abreu: - Onde é que está a discriminação?
O Sr. Pinto Barriga: - Está no Regimento.
O Sr. Presidente: - Eu tinha dado a palavra ao Sr. Deputado Pinto Barriga para esclarecimentos.
Prestados eles, entendo quanto ao primeiro ponto, isto é, quanto a ter sido o requerimento feito sobre matéria, da ordem do dia, que não foi invocado oportunamente o Regimento. O requerimento pede elementos de informação sobre assunto a tratar na ordem do dia.
Quanto às justificações do requerimento do Sr. Deputado Pinto Barriga elas não respeitam à substância, ao conteúdo do mesmo requerimento, mas sim à urgência do pedido que formula.
Se, mesmo neste ponto, pode ver-se qualquer infracção, devo relevar-lha.
O requerimento vai ser expedido.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, antes da ordem do dia, ó Sr. Deputado Duarte Silva.
O Sr. Duarte Silva: - Sr. Presidente: ao usar da palavra pela primeira vez na presente legislatura, dirijo a V. Ex.ª os meus respeitosos cumprimentos para sinceramente lhe afirmar quanto me é grato vê-lo continuar a presidir a esta Assembleia, que muito deve à inteligência, ao saber, ao prestigio e à dedicação de V. Ex.ª
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- Pedi a palavra para me referir a dois assuntos, que, tenho a certeza, hão-de merecer a boa atenção de S. Ex.ª o Ministro do Ultramar.
Foi-me sugerido o primeiro pela proposta de lei sobre a arborização, há dias aprovada, cuja discussão segui com o maior interesse. Estive mesmo tentado a intervir no debute.. E se o não fiz foi porque me pareceu que. as considerações que eu desejava produzir, embora relacionadas com a proposta de lei, seriam de certo modo impertinentes, visto que, nos termos da Constituição, a competência legislativa da Assembleia em relação ao ultramar, sobre ser restrita, só se põe em movimento, por iniciativa do respectivo Ministro.
Reservei-me, pois, para tratar do assunto em outra oportunidade, que julgo oferecer-se-me agora.
Sr. Presidente: como tivemos ocasião de ouvir durante a discussão da referida proposta de lei, é unanime o aplauso à iniciativa do Governo de promover a defesa, do solo.
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Urge, na verdade, combater a erosão. Todos o compreendem.
Se há, porém, terra portuguesa onde a erosão tenha levado longe de mais a sua acção devastadora, essa terra é o arquipélago de Cabo Verde.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- Num trabalho que apresentou ao Congresso Cientifico Luso-Espanhol, realizado no Porto em Junho de 1921, dizia o Sr. Engenheiro Ezequiel de Campos, hoje Digno Procurador à Câmara Corporativa, o seguinte:
O estudo dos poucos elementos meteorológicos do arquipélago autoriza a concluir que a maioria das ilhas pode, com algum saber e tenacidade do Governo, transformar-se em área notável de retalhos de Sara perdidos no mar - imagens da desolação e do desespero - em terras férteis e felizes.
E no ano seguinte, ao publicar na revista Instituto o mencionado trabalho, acrescentava:
Depois do Congresso Cientifico do Porto continuaram os jornais em clamor pelo «arquipélago da fome» e o Poder Legislativo decretara um crédito extraordinário de 2 500 contos para acudir aos famintos de Cabo Verde.
Com certeza toda a filantropia mais ou menos espalhafatosa e todo o cuidado do Governo, se se não debelarem as causas de perturbação do ambiente cultural das ilhas - o que só pode ser fruto de um trabalho metódico e persistente de arborização -, servirão apenas para manter a desgraça permanente da população do arquipélago.
Como condição primária do êxito da valorização das ilhas de Cabo Verde está a arborização suficiente: só por esta se poderão transformar os retalhos do Sara perdidos no mar em terras de grande produção e de gente feliz. É necessário um critério muito mais cientifico na governação e uma acção política muito mais sabedora e humana, que o ambiente actual português não proporciona.
Felizmente, dizemos nós agora, é hoje bem diverso o ambiente político português e o Plano de Fomento aprovado no ano passado pode inserir, entre outras verbas, 45 000 contos para melhoramentos hidroagrícolas, pecuários e florestais.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- Em 1934 visitou as nossas ilhas, em viagem de estudo, o notável botânico francos Prof. Auguste Chevalier, que, no ano seguinte, publicou um interessante trabalho sobre- a flora cabo-verdiana, do qual respigamos os seguintes trechos:
No fundo, o fim essencial que me propunha, indo estudar o estado actual da vegetação das ilhas de Cabo Verde, era observar as repercussões de quatro séculos de colonização em ilhas férteis, onde a Natureza era completamente virgem quando os primeiros navegadores ali desembarcaram. Esta ocupação pelo homem foi desastrosa.
As culturas e os rebanhos foram multiplicados além das possibilidades e, em consequência de uma técnica agrícola muito primitiva, o Pais, que, pelo seu clima, é um paraíso terrestre, acabou por se não bastar a si próprio.
De há muitos anos a questão do repovoamento florestal das ilhas tem preocupado os governadores e o Governo da metrópole, mas muito pouco se fez até agora. A obra a realizar é, de resto, das mais custosas. É mais fácil preservar e defender 100 ha de floresta do que refazer um só hectare. E num pais de chuvas raras e vento violento a tarefa é particularmente difícil.
Contudo, conclui:
Segundo as nossas observações, a criação de pequenas florestas climáticas em certas regiões do arquipélago não ó impossível, mas, para que tal empreendimento possa ir avante, é necessário que haja vontade, um pouco dê bom senso e de ciência, espirito de continuidade e também ... os créditos indispensáveis.
Vemos, pois, Sr. Presidente, que a arborização do arquipélago é possível, é necessária e é urgente.
Por isso eu desejaria propor que se tornassem extensivas a Cabo Verde as disposições da proposta de lei aprovada e porventura ir mais além, no sentido preconizado pelo Digno Procurador Sr. Engenheiro Ezequiel de Campos no seu mencionado trabalho.
Eu sei, Sr. Presidente, que o Ministério do Ultramar se tem interessado pelo assunto. Consta-me até que, em missão de serviço, deve partir dentro de poucos dias para essa província ultramarina um dos mais distintos elementos da Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Agrícolas.
Parece-me, no entanto, que seria de grande vantagem estender a Cabo Verde não só as disposições da proposta de lei aprovada, como também as da proposta de lei n.º 5, ainda não apreciada.
É uma sugestão que deixo ao bom critério de S. Ex.ª o Ministro do Ultramar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:- O segundo assunto de que desejo ocupar-me não tem o alcance daquele que acabo de expor, mas diz respeito a- alguns servidores do Estado e dos corpos administrativos que julgo merecedores de toda a nossa atenção.
Pelo Decreto n.º 33 586, de 15 de Março de 1944, foi reconhecido aos funcionários interinos, contratados e assalariados do ultramar o direito à aposentação, fixando-se-lhes um prazo para requererem a contagem do tempo de serviço prestado e efectuarem o pagamento da compensação respectiva.
Anos depois, tendo-se verificado a impossibilidade de muitos aproveitarem do beneficio concedido, o Decreto n.º 37 451, de 15 de Junho de 1949, no sen artigo 26.º, prorrogou até 31 de Dezembro desse ano o referido prazo.
Muitos, porém, talvez a maior parte, sobretudo dos assalariados, não utilizaram a prorrogação concedida.
Porquê?
Porque a lei não chegou ao seu conhecimento.
E o facto não é de estranhar. A eles não é, certamente, de aplicar o velho aforismo jus vigilantíbus, non dormientibus.
Não podemos esperar que os assalariados sejam leitores assíduos do Diário do Governo ou do Boletim Oficial das províncias ultramarinas.
Mas, ainda que o fossem, é preciso considerar que a referida disposição, inserta num diploma que abrange muitas e variadas matérias, escapa facilmente à percepção dos mais cautelosos.
Efectivamente, o decreto citado dispõe sobre o abono de família na Guiné, sobre os serviços de saúde e sobre os vencimentos do inspector militar da mesma província,
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sobre os serviços de saúde de Moçambique, sobre o Fundo de Assistência aos Sinistrados dos Gafanhotos em Angola, sobre a tabela de licenças da Capitania do Porto de Macau, sobre o subsidio de alimentação das praças indígenas de Timor e, no meio de tão variadas disposições, insere a aludida prorrogação de prazo.
Mesmo para aqueles que tivessem ouvido falar da publicação da mencionada disposição, não. era fácil deparar com ela, visto que o próprio sumário é omisso a tal respeito e apenas diz que o decreto insere várias disposições de carácter legislativo, que o mesmo é que não dizer coisa alguma.
Pior ainda: induz em erro, pois, dizendo expressamente que essas disposições de carácter legislativo são aplicáveis às províncias da Guiné, Angola, Moçambique, Macau e Timor, deixa em enganosa confiança as populações de Cabo Verde, de S. Tomé e da Índia, que se não preocuparão com a sua leitura.
Quando se trata do cumprimento de obrigações, não basta, em regra, uma vaga disposição da lei: baixam instruções, fazem-se avisos, determina-se a notificação pessoal dos interessados.
Porque não proceder da mesma forma com as disposições que concedem benefícios e regalias?
Quando se dá, deve dar-se com o coração aberto, com interesse em que a dádiva aproveite a quem é destinada.
Assim, para o caso que deixo apontado, peço a S. Ex.ª o Ministro do Ultramar -espirito compreensivo e justo, a quem presto as minhas homenagens -, não só uma nova prorrogação do prazo, mas também que seja ordenado às repartições públicas que notifiquem os respectivos serventuários de que têm determinado prazo para regularem a sua situação.
Só assim o beneficio será real e efectivo.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Botelho Moniz: - Sr. Presidente: durante a última campanha eleitoral anunciei publicamente que trataria na Assembleia Nacional um problema que muitos consideram de resolução difícil e que tem aspectos menos elegantes: o abastecimento de leite à cidade de Lisboa e concelhos limítrofes.
Logo no começo dos trabalhos parlamentares o nosso ilustre colega Dr. Pinto Barriga apresentou um requerimento a solicitar vários elementos relativos ao assunto.
Evidentemente, esse facto impede-me, por justa consideração para com o Sr. Deputado Pinto Barriga, de vir levantar a questão na Assembleia Nacional enquanto S. Ex.ª não tiver recebido e não haja utilizado os elementos pedidos.
Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá-me licença? só para observar que, se todos os Deputados procedessem da mesma maneira, não chegávamos a discutir problema algum, nem continuávamos agora na discussão o aviso prévio do Sr. Deputado Cid dos Santos (risos), dado o requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Pinto Barriga.
O Orador: - Tem V. Ex.ª muita razão, mas neste caso deixo-me guiar apenas por um critério pessoal de atenção para com o Sr. Deputado Pinto Barriga.
Tenho dito.
O Sr. Pinto Barriga (para explicações): - Sr. Presidente: as considerações do Sr. Deputado Botelho Moniz, que agradeço, levam-me a insistir no meu requerimento, e elas vieram somente, afinal, reforçar a urgência de se discutir o problema que eu desejo tratar, mas devidamente documentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - A primeira parte da ordem do dia consiste, como VV. Ex.ªs sabem, na continuação do debate sobre a proposta de lei de colonização interna.
Tem a palavra o Sr. Deputado Camilo de Mendonça.
O Sr. Camilo de Mendonça: - Sr. Presidente: ao apreciar esta proposta de lei, que tão viva e animada controvérsia tem levantado nesta Assembleia, desejaria primeiro delimitar-lhe a extensão, fixar-lhe o objectivo e precisar-lhe as razões determinantes.
Quanto à extensão, parece não se dever considerar que vá muito além do «caso* da Idanha, como, de resto, já aqui acentuou o Sr. Deputado Melo Machado, embora se compreendam as razões pelas quais se não refere especificamente apenas àquele empreendimento hidroagrícola.
No que respeita ao objectivo, é que parece ser muito vasto, pois atingirá não só o campo demográfico e o social - pela colonização através de empresas familiares - como o económico - assegurando uma maior produtividade e o aumento do nível de vida das populações rurais -, quer dizer: o seu objectivo é, simultaneamente, económico e social e talvez também político.
No que respeita às razões determinantes da proposta encontro quer a necessidade de alargar o âmbito das expropriações previstas na lei de fomento hidroagrícola para as propriedades incluídas na área regada às terras de sequeiro situadas fora do perímetro, dito beneficiado, quer a invocação de não terem os proprietários atingido os objectivos previstos, já no campo económico, já no domínio social, não se alterando nuns casos o aproveitamento dos terrenos e noutros não evolucionando de acordo com as possibilidades abertas e, em qualquer deles, não se atingindo a máxima produtividade e o maior beneficio social.
Posta a questão nestes termos, haveria, apenas, que considerar - uma vez assente na necessidade económica, social e técnica do proceder a expropriação - se o seu alargamento aos terrenos de sequeiro limítrofes se justificaria e, talvez, reeditar todas as dúvidas é preocupações que a Câmara Corporativa formulou em parecer relatado pelo Digno Procurador Engenheiro Agrónomo Luís Quartin Graça ao apreciar «o projecto de colonização dos terrenos abrangidos pela 1.ª fase das obras de rega da várzea do Ponsul».
Ai se encontram sugestões que de novo reapareceram nesta Casa ao apreciar-se a presente proposta.
Da leitura daquele parecer, que vem, aliás, desfazer uma lenda ultimamente muito vulgarizada, parece-me, contudo, cessarem a maior parte dos motivos determinantes da proposta em discussão. Com efeito, fica-se a saber que a utilização da água pelos proprietários, por qualquer forma de exploração, se fez imediatamente, não obstante não ser uma região habituada às práticas do regadio; e que, prevendo-se a exploração de grande parte das terras de 3.ª classe, cerca de 82 por cento do total, em regime do sequeiro, mesmo nas zonas servidas pelos canais de rega não parece, pelo menos à primeira vista, ser indispensável a expropriação para além do perímetro abrangido pela rega.
Também pelo mesmo parecer se fica a saber que o ponto de vista da Direcção-Geral dos Serviços Agríco-
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las não é coincidente com o da proposta em discussão, pois se pronunciava do seguinte modo:
Assim, não nos parecendo aconselhável uma transformação radical e imediata do actual regime de propriedade, torna-se necessário procurar um sistema gradual, com a técnica adequada, para orientar os lavradores na transformação das suas explorações, de forma a evolucionarem do regime pastoril, com gado ovino, a que obrigam as condições actuais (1948), para a exploração do gado bovino semiestabulado.
Do parecer de que me estou socorrendo desejava ainda ler uma passagem que se me augura conveniente relembrar ao voltar a discutir-se o problema. É a seguinte:
Do projecto parece depreender-se que têm surgido dificuldades ou indiferença por parte dos proprietários.
Por sua vez, na sua exposição de 4 de Abril do corrente ano (1952), estes alegam que não têm imprimido o ritmo necessário à adaptação do regadio, das terras beneficiadas pelo simples motivo de não terem encontrado qualquer garantia para as benfeitorias introduzidas ou que pretendam introduzir, apesar dos investimentos já leitos, por desconhecerem qual a orientação a seguir e por lhes serem dificultados os auxílios financeiros de que carecem e tom sido solicitados ao abrigo da lei dos melhoramentos agrícolas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: poderia ficar por aqui nas minhas considerações, depois de o problema ter sitio já explanado - e tão brilhantemente - pelos ilustres Deputados que me precederam, tanto mais que duas teses sé encontram já perfeitamente formuladas: uma exprimindo no anseio social que merece o meu maior respeito, outra afirmando uma posição realista de que também não posso desligar-me.
Com mais ou menos inflexões, as orientações estão, quanto a mim, claramente definidas.
Porque julgo haver vantagem em analisar o problema num quadro mais geral, pois estão, no fundo, em cansa sérios problemas da nossa terra e da nossa gente, afigura-se-me não me dever eximir a definir o meu ponto de vista nesta matéria.
Terei de me alongar em considerações genéricas, a fim de poder atingir o que me parece ser o fundo da questão, respondendo a estas interrogações:
Será, nas presentes condições, a colonização dirigida, associada ao fomento hidroagrícola, o caminho indicado para enfrentar os nossos velhos e complexos problemas agrários?
Este o problema, que também pode pôr-se assim: em que medida ou dentro de que condicionalismo este caminho se justifica, aconselha ou impõe?
Isto, bem entendido, considerados não só os problemas económicos como os sociais.
O nosso território continental apresenta-se densamente povoado na faixa litoral ao norte do Tejo e no Algarve, fracamente ao sul do Tejo, constituindo as Beiras e Trás-os-Montes uma região de situação intermédia, onde o sobre e o subpovoamento se distribuem de acordo com condições de relevo, de solo, de clima, da existência de água para rega e também de vias de comunicação e transportes a prego acessível.
Correspondendo a esta distribuição populacional as explorações agrícolas vão do minifúndio ao latifúndio, havendo, porém, uma percentagem sensível de explorações familiares e de tipo médio. Deve, todavia, acentuar-se que a tendência para a generalização do minifúndio nas zonas já sobrepovoadas é intensa e tão preocupante, pelo menos, como a excessiva concentração ao sul do Tejo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- A localização da indústria - cada vez mais concentrada -, os preços relativos dos vários produtos agrícolas, vegetais e animais, a garantia da sua colocação com o condicionalismo agroclimático determinam a escolha das culturas, exploradas por uma técnica (?) comummente arcaica, na ausência quase absoluta de mecanização e por processos rotineiros.
De tudo isto resulta um alto casto de produção, que, fora dos períodos de escassez mundial, cerceia, quando não obsta, a exportação dos produtos da nossa agricultura e o baixíssimo nível de produtividade do trabalho. Estas circunstâncias - altos custos de produção e baixa produtividade do trabalho -, que- são, aliás, comuns à nossa indústria, acabam por determinar um baixo nível de vida que atinge mais marcadamente o trabalhador rural e um snbconsumo que se o não for relativamente as necessidades calóricas é, pelo menos, qualitativo.
Este panorama, que é o fruto de muitos anos de marasmo e indiferença, remonta ainda ao liberalismo individualista, que, destruindo, a golpes de decretos, a nossa estrutura agrária, nos legou' muita desordem no campo espiritual e social, sem nos ter feito encontrar o caminho do progresso que aproveitou a tantos outros povos.
Mas este panorama no dia de hoje, em que o Mundo se tornou mais pequeno e quase todos os povos são vizinhos, comporta perigos sérios na medida em que o trabalhador português não compreende facilmente por que motivo não há-de ter um nível de vida semelhante ao do operário dos outros países e, dentro do nosso, por que razão não há-de viver o trabalhador rural como o sen colega da indústria.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:- Este sentimento tem no nosso rural mais extensão do que se julga e desta insatisfação nasce, naturalmente, um estado de revolta que leva tempo a fermentar, mas que, pelos .exemplos alheios, sabemos bem, acaba por explodir um dia.
Agravam este quadro um desemprego disfarçado de exploração minifundiária e as crises estacionais que atingem a maior acuidade no Alentejo e no Douro.
A urgente necessidade de enfrentar esta situação com coragem e vigor suponho ser uma coisa que está no espírito de toda a gente, mas que importa passe do domínio das palavras para o das realizações.
Para escolher o rumo a seguir, as medidas a adoptar, é mister assentar bem claramente, não só no domínio das afirmações, mas, principalmente, no das práticas, na situação das economias metropolitana e ultramarina entre si.
É que se as economias das províncias ultramarinas são independentes da metropolitana, embora solidárias, o rumo a eleger pode ser um, mas se o ultramar e o continente se fundem num único espaço económico o caminho pode bem ser diverso ou, pelo menos, ser diferente a precedência das soluções. Na primeira hipótese, que eu naturalmente rejeito com veemência, parece não poder contar-se com outra solução, além do concurso da emigração, do que tentar, seja a que preço for, assegurar a vida a todos os portugueses dentro do território continental, e, portanto, toda a obra de intensificação, mesmo quando acarretasse um aumento do custo de produção, seria não só justificável, mas também necessária.
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A rega tornar-se-ia um objectivo primário e, dentro de certos limites, independente do encargo unitário que ocasionasse. Também a gama das culturas regadas aumentaria, por incluir então o tabaco, a beterraba sacarina, o algodão e outras.
Mesmo dentro destas premissas, aliás semelhantes às que estiveram na base da reforma agrária italiana, não se me afigura que a solução para o sobrepovoamento rural pudesse ser encontrada a não ser no domínio extra-agrário, como, de resto, os primeiros resultados daquela experiência já comprovam superabundantemente. Quer dizer: nem a possibilidade de emprego de culturas industriais -uma das quais, a beterraba sacarina, só por si, bastaria para, de momento, romper o equilíbrio estagnante da nossa agricultura, abrindo-lhe novos caminhos e maiores possibilidades - nem este alargamento de culturas remuneradoras chegariam para encontrar uma solução segura para ocupar decentemente a nossa população rural. Só o desenvolvimento industrial poderá assegurar aquilo que a terra não garante.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- Mas, assentando-se, para lá do campo dos princípios, no das práticas, na integração das economias ultramarinas e da metropolitana de forma a constituir-se uma verdadeira unidade económica, que parece não dever oferecer objecções a ninguém, então o problema modifica-se na medida em que o território se expande, novas possibilidades se abrem e diferentes condicionalismos se estabelecem.
É certo que falta um estudo ordenado que permita no campo da produção fixar uma orientação clara ao desenvolvimento económico no continente e no ultramar, de sorte que as economias se fundam e integrem num plano comum.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:- O plano de fomento do ultramar, visando dar expressão à imperiosa necessidade de garantir colocação aos excessos demográficos do continente e melhorar as comunicações - factor não menos importante de colonização e desenvolvimento económico -, não assegura a indispensável integração, que urge, antes de mais, procurar com rapidez e com largueza de vistas.
Posta a questão neste pé - unidade económica de todo o território português - ressurge a interrogação: quais os caminhos a trilhar para romper e inércia que vem obstando ã uma transformação da nossa situação económica e possibilitar uma evolução do nosso problema agrário, enquanto económico, social e ato político?
A mim não se me oferecem dúvidas de que a primeira condição, que é, também, a decisiva, é prosseguir com firmeza e intransigência uma política de barateamento dos custos de produção e de elevação da produtividade do trabalho. Não se esqueça que somos dentre os países civilizados um dos que tem preços de custo dos produtos agrícolas mais caros, não obstante sermos, também, dos que pagam salários agrícolas mais baixos, donde decorre ser a nossa produtividade do trabalho terrivelmente baixa e sujeita, senão a uma lei de regressão, pelo menos a progresso sem significado.
Ora, essa política não podo ser levada a efeito, materializada, sem modernizar a nossa exploração, sem a dotar do equipamento indispensável, sem lhe assegurar o crédito necessário e lhe garantir o escoamento dos produtos, sem a tornar, em três palavras: estável, viável e moderna.
Para isso há ainda que adaptar os serviços públicos, por reforma que acabe não só com o conflito de competências, como com a política dos vários departamentos, de forma a permitir que atinjam em eficiência o assistência efectivas o País na sua diversidade e os problemas regionais na sua interdependência.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:- Carecemos de uma assistência técnica que, sendo viva e actuante, se desdobre por esse País fora, recobrindo-o de explorações agrícolas - modelo onde a técnica se insira na preocupação da viabilidade económica.
Vem aqui a talho de foice, como sói dizer-se, fazer uma alusão directa aos postos de cultura de sequeiro que a Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas tem pelo País e onde ensaios experimentais há bons anos vêm a realizar-se com francas perspectivas, mas que não puderam servir ainda de exemplo vivo, porque se lhe têm negado os meios necessários -uma exploração de dimensão conveniente e os indispensáveis meios de acção - para que possam constituir um exemplo concreto a seguir sem receios nem reservas pelo lavrador dessas regiões.
Todavia, pesados com o devido cuidado 95 elementos, carinhosa e devotadamente recolhidos - com sacrifício e sem estimulo -, e observadas, como já tive ocasião de fazer, estas pequenas manchas verdes no meio da aridez da terra alentejana, fica-se com uma ideia das consequências relativamente rápidas que acarretaria, quer no aumento da densidade pecuária e sua móis regular e económica alimentação, quer na absorção de braços, quer na elevação do rendimento unitário, sem afectar a produtividade do trabalho, quer, ainda, no resultado económico da exploração.
Virá, porém, a acontecer que sejam os lavradores que ponham, à disposição dos serviços agrícolas os terrenos necessários, substituindo o Estado na sua função, enquanto continuarão a ser acusados de rotina, de desinteresse, de indiferença?
Desejo ainda marcar neste capitulo a nota de que considero - e não estou em má companhia - este caso da maior importância e susceptível de grande repercussão no sentido de caminhar para um melhor aproveitamento da terra, proporcionando-o às exigências da técnica e da economia, capaz de influir decisivamente na evolução da terra alentejana, se for acompanhado de um conjunto simples de medidas indirectas pouco custosas, facilmente aceites e certamente reprodutivas.
Não se perca, porém, de vista que a modernização, que implica mecanização e motorização onde for viável, isto é, um equipamento incomportável presentemente para a esmagadora maioria das nossas explorações, interfere directamente com a dimensão da empresa e o plano da exploração. De há anos a esta parte a superioridade da exploração especializada sobre a tipicamente intensiva em regime de policultura vem a marcar-se para lá das pequenas manchas de horticultura variegada nos arredores de um centro urbano ou industrial que escapou à lei da localização concentrada da indústria ou nasceu depois de os problemas da disseminação industrial começarem a interessar e preocupar alguns países.
O ideal de uma agricultura ocupando, intensa e fatigantemente, trabalho humano, principalmente da família, praticada muna área tendendo para o minifúndio, constituindo uma exploração em regime intensivo e policultural, consubstanciou-se, caracterizadamente, na agricultura francesa, belga e do Norte da Itália, assegurando durante muito tempo um vigor e uma capacidade de resistência invejáveis pelo nosso lavrador, mas está hoje, também, na origem da sua cristalização, a contrastar com a situação do tipo definido pelos países nórdicos - uma agricultura especializada marcadamente técnica, mecânica, industrial.
Vozes: - Muito bem!
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O Orador: - Quando, para lá de defender a sorte do agricultor, está em causa preparar a agricultura para alcançar os suas finalidades, adaptá-la às necessidades e exigências da época e do homem, quando está em causa a sobrevivência da agricultura, não como arte de empobrecer alegremente, mas como actividade economicamente lucrativa e socialmente capaz de valorizar o homem e o sen mister não podemos deixar de compreender e aceitar que o ideal bucólico e ruralista cedeu o lugar a uma indústria ao serviço do homem, a quem presta serviço como a qualquer outra actividade.
Não se perca de vista a ideia de que chegou o momento de conceder à agricultura os mesmos direitos que a indústria tem usufruído, já que lhe é agora possível, mercê da técnica, da organização e do espírito inovador, conquistar a sua independência, isto se pretendermos que o contraste entre a vida do agricultor e do industrial, operário ou patrão, deixe de ser a razoo dominante da fuga da terra, que só o peso da tradição e a impossibilidade material de todos a abandonarem vêm fazendo com que muitos ainda por lá fiquem.
A idade da exploração agrícola de autoconsumo é hoje tão arcaica como a economia consumptiva, precapitalista, é velha e está ultrapassada. A lei da divisão o trabalho tem de ser respeitada.
Não estou a sonhar nem a fazer poesia nem tudo isto é miragem; a poesia, essa, perde-se ao rasgarem-se estas perspectivas, perde-se bucolismo, mas ganha-se em conforto, em melhoria económica, em valorização social do trabalhador agrícola.
Poder-se-á objectar que para o nosso lavrador a situação do agricultor francês continua ainda a ser uma aspiração distante, inatingida, e, logicamente, que por isso deveremos, por ora, caminhar para lá antes de pensarmos em o superar.
A objecção tem aparente razão de ser. A resposta é, porém, simples. Se estivemos parados enquanto os outros evoluíram, não se me afigura legítimo nem justificável - que, ao pensar em progredir, não aproveitemos com a experiência alheia se queremos ser algum dia actuais, tanto mais que um e outro objectivo não são homogéneos ou, pelo menos, sempre convergentes, e qualquer deles pode ser directamente atingido.
Para mim, pelo menos, é ponto assente que, salvo excepções óbvias -particularmente a proximidade de centros urbanos e a vizinhança de indústrias geogràficamente desconcentradas -, o tipo de agricultura mecanizada, técnica, especializada é indiscutivelmente superior ao de uma agricultura intensiva, diversificada, minifundiária ou tendente para lá, particularmente se o objectivo de procurar reduzir os custos de produção, aumentar a produtividade do trabalho, melhorar o nível de vida do camponês e assegurar-lhe condições de vida decentes não é considerado secundário, mas primacial.
A intensificação, no sentido clássico, não será sempre um caminho desejável. Perdoem-me VV. Ex.ªs se estou revolucionando conceitos ou perturbando ideias ainda correntes entre nós, mas não se arreceiem do caminho a que procuro levá-los, pois dir-lhes-ei que, salvo a directriz que os trabalhistas estabeleceram e os conservadores vêm levando a efeito na Inglaterra - cerca de dois terços, do trabalho agrícola é assalariado -, na maior parte dos países onde estes conceitos se vivem e praticam a maioria das explorações é familiar e esta orientação visa a servir o homem enquanto produtor e enquanto consumidor.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Estava eu a dizer que a intensificação agrícola não poderá ser sempre desejável. Não será desejável quando exija desnecessariamente maior esforço físico ao homem, imponha uma aplicação de trabalho humano que encareça a produção além dos limites aconselháveis ou provoque uma sub-remuneração do trabalho, determine uma regressão na produtividade e, consequentemente, atinja o nível de vida. Não é, em regra, aconselhável para os produtos que constituem a base da nossa alimentação - os hidrocarbonados - e para industriais ou industrializáveis, embora o seja normalmente para os legumes frescos e primores e, algumas vezes, para os lacticínios, para a fruticultura e também para a carne.
E claro que esta orientação - não me esqueci de cuidar de problemas de colonização - determina explorações de dimensão e objectivo bastante diferentes daquelas que por razões óbvias estão à disposição dos planificadores de qualquer colonização dirigida entre nós, até porque a dimensão óptima em cada caso resultará da adaptação da técnica e da máquina às regiões e às culturas.
Poderei, porém, acrescentar que em boa parte do País esta orientação determinaria o emparcelamento, sem o que a modernização se não operaria, e que as dimensões da exploração se estão elevando noutros países para limites bastante afastados dos 5 ha de regadio previstos pela nossa lei como limite máximo para os casais agrícolas. E ainda que por toda a parte as «pequenas» explorações estão ameaçadas ou então está ameaçada a própria agricultura como empresa viável.
As experiências recentes de orientação oposta - reforma agrária italiana - não deram os resultados esperados, nem no campo político, nem no social; nem no económico. A regressão da produtividade e o consequente aumento dos custos são já evidentes e reconhecidos por muitos economistas agrários, entre os quais os professores Pagani e Medici, este um dos promotores da reforma.
As explorações intensivas carecem, pois, de ser inseridas num conjunto em que as extensivas e as especializadas constituam a tessitura basilar e articular-se com centros industriais e urbanos, de sorte que se possa tirar todo o partido da sua situação e da diversidade de condições.
Quer tudo isto dizer que a colonização é contra-indicada? Que se deve evitar e contrariar? Dou já a resposta, mas seja-me permitida, primeiro, uma distinção entre colonização dirigida, oficial, e colonização livre, natural.
No que respeita à colonização dirigida, entendo, efectivamente, que, dentro do presente condicionalismo, só com carácter excepcional se deve, no nosso caso, praticar. Vejamos por que motivo. A colonização é em qualquer parte uma obra cara - cara e demorada. A proposta em discussão não o encobre, antes o afirma claramente nos seguintes termos: e Mas esta solução (a solução do Decreto n.º 36 709 de facultar casa de habitação com dependências adequadas à exploração rural), por ser perfeita, obriga a avultados investimentos, financeiramente incomportáveis».
É claro que isto se refere ao Estado, porque, sendo a casa e as dependências indispensáveis, o investimento terá sempre lugar, feito pelo Estado ou pelos colonos, embora com o recurso a empréstimos do Estado. A colonização dirigida é, pois, uma obra cara e lenta, que exige, além disso, uma capacidade de organização e uma preparação que não são comuns entre nós, não obstante a competência técnica já comprovada pelos nossos serviços públicos.
Por outro lado, as obras de fomento hidroagrícola que a precedem são também demasiado custosas, mercê de as nossas condições de relevo, solo e regime de chuvas não possibilitarem uma área de rega suficiente-
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mente grande e exigirem uma albufeira maior para que o aumento de produção de que se fazem acompanhar permita desonerar o encargo inerente à colonização. Acresce a tudo isto que, em virtude do nosso baixo nível de vida e dos elevados custos de produção, os géneros cultivados em regime intensivo - proteínas animais e vegetais- não guardam em relação «os produzidos extensivamente -hidrocarbonados - uma relação de preços favorável, como nos países evoluídos, e ainda que nos estão vedadas as culturas industriais remuneradoras, cuja produção é - e tem de ser - reservada ao ultramar.
Vemos assim que além da carestia normal a empreendimentos desta natureza, concorrem para o seu agravamento absoluto e relativo as limitações dos preços e das culturas. Difícil será, nestas condições, avançar neste campo. Mas há mais. Há ainda a considerar a influência que estas obras, para além da sugestão que provoquem, efectivamente possam ter como contribuição positiva para a colocação dos nossos excessos demográficos. Quer dizer: será indispensável ponderar se o ritmo da instalação de novos casais, mesmo esquecendo os complexos e delicados problemas decorrentes da súbita transformação regional e da escolha de culturas vendáveis, se o ritmo da sua execução poderá ter algum significado quando comparado com o nosso crescimento populacional - os tais 45 000 a 50 000 novos braços que anualmente vêm acrescer aos já existentes -, e se o encargo financeiro será proporcionado ao possível benefício social, quando somos dos países coro mais baixo nível de investimento, circunstância que condiciona estreitamente a sua aplicação u maior produtividade?
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ao meditar nestes problemas só encontro uma resposta: a negativa. Respondo, pois, pela negativa como regra e admito a excepção como possibilidade ou, melhor, como exemplo, a não ser que outros motivos ou fortes r assoes de outra ordem imponham estas soluções.
A invocação dos exemplos estrangeiros, nomeadamente da Espanha e dos Estados Unidos da América do Norte, não colhe, por razões óbvias. O caso da Espanha é muito diferente do nosso. A Espanha não tem províncias ultramarinas com as possibilidades e exigências das nossas, tem uma estrutura agrária muito diferente, vastas regiões em regime de sequeiro e uma indústria em desenvolvimento intenso, em que os problemas de localização não sito esquecidos.
Pode, pois, caminhar sem limitações sérias no fomento das culturas do algodão, beterraba sacarina, tabaco, cana-de-açúcar e nutras, ao mesmo tempo que a melhoria geral e local das condições de vida alarga o mercado dos produtos agrícolas, quer vegetais quer animais, mais favoravelmente cultivados em regime intensivo.
A Espanha não tem também uma densidade populacional como a nossa, podendo procurar atingir, através da articulação do problema agrícola e industrial, con-comitantemente, já a melhoria do nível de vida, já o melhor arrumo da sua população, sem lhe ser, de resto, facultada a opção por outro rumo.
Também o caso americano é muito diferente, para não disser oposto ao nosso.
Efectivamente a América não tem um problema de sobrepovoamento rural; a sua exploração agrícola é tão viável como a industrial e, em virtude do seu elevado nível de vida, orienta-se para uma composição da dieta em que entram cada vez mais os elementos nobres, cujos preços são relativamente elevados.
Basta referir que o leite é mais caro que o trigo e que são precisos 7 kg de trigo para equivaler no produtor a 1 kg de carne, para se ver como é favorável e possível ali seguir-se uma política de fomento dos produtos de alta qualidade.
Todavia; nem assim - apesar do flagrante contraste com o nosso caso, onde o inverso é verdadeiro - as obras de fomento hidroagrícola, mesmo em grandes extensões, deixam, por vezes, de merecer críticas e estar sujeitas n dúvidas e preocupações.
Quando lá o problema se apresenta com este aspecto) como poderá deixar-se de redobrar em cuidados e cautelas ao encará-lo entre nós?
Não se podem, pois, invocai- estes exemplos sem lhes precisar os condicionalismos, que lhes imprimem um carácter bem diferente daquele que assumem no nosso continente.
No que se refere à colonização natural, livre, consequência imediata da fragmentação da propriedade ou/da exploração, sem perder de vista todas as conclusões a que anteriormente cheguei sobre a modernização e especialização da exploração agrícola e sem esquecer ser a redução da população que explora a terra um objectivo paralelo ao da melhoria de nível de vida, sem deixar de considerar tudo isto, pronuncio-me, dentro de certos limites, favoravelmente à colonização natural e livre nas regiões onde a propriedade esteja excessivamente concentrada.
Julgo, aliás, que a concentração da terra não é um mal em si mesmo, já porque pode não coincidir com exploração de tal dimensão que obste à maior eficiência, já porque, através do assalariado permanente e da comparticipação no lucro da empresa e até na administração, permite muito bem que se atinjam integralmente os mais elevados objectivos sociais.
De resto, sem querer entrar na apreciação das causas da concentração ou do monopólio da terra, que são substancialmente as mesmas em toda a região mediterrânica, não deixarei de acentuar que raras vezes o monopólio nasce de um objectivo de exploração e mal-thusianismo económicos, mas quase sempre de uma necessidade de defesa, de sobrevivência.
O problema está em que, uma vez constituído, não use ou abuse da situação de que desfruta para além da satisfação das necessidades que o determinaram.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A colonização nessas regiões - e com os cuidados e restrições apontados - não pode, de momento, deixar de ser encorajada. Para isso, muito mais do que qualquer acção directa - de cuja eficácia as nossas virtudes e defeitos me fazem duvidar -, interessará um conjunto de medidas gerais e específicas, estas de condição relativamente modesta, subordinadas apenas à exigência de que sejam homogéneas nos fins.
A primeira diz respeito à revisão do regime tributário, pois não entendo que não vise promover, em maior ou menor grau, uma redistribuição quantitativa do rendimento criado e se contente em assistir passivamente a um estímulo à concentração da riqueza, por força do mecanismo de distribuição funcional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A segunda importa ao controle da renda e à luta contra o elevado valor da terra, coisas que são entre nós da mesma natureza excepcional que os elevados custos de produção e os baixos salários e que comportam um dos mais graves problemas; - senão o mais grave - da nossa agricultura e' de cuja solução decorreriam bem maiores benefícios sociais do que de muitas obras de colonização dirigida.
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A seguinte interessa ao estabelecimento de mínimos de rendimentos, de densidade pecuária e de unidades-homem a atingir por hectare, estabelecidos com base nos resultados das explorações-modelo, para que seja permitida a exploração directa. Quer. dizer: procurar-se-ia evitar que o monopólio perseguisse uma política de restrição e adequar a exploração directa aos limites experimentalmente aconselhados, reservando-se o remanescente a explorações por arrendamento compulsivo ou ao aforamento em nome da utilização social da riqueza.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Por fim, referirei ainda a realização das benfeitorias, nomeadamente pequenos empreendimentos hidráulicos, por força do Fundo de Melhoramentos Agrícolas, em cujos frutos acredito firmemente e que anseio por ver atingir a intensidade e extensão que pode e deve vir a ter.
A quem como a mim foi dado assistir à preparação desta lei e viveu e sentiu o carinho e a esperança - com que ia sendo elaborada pelo Dr. Luís Supico Pinto e pelo engenheiro agrónomo Homem de Melo, a cujos nomes ficou ligada, sentimentos de que a Junta de Colonização Interna igualmente compartilha e eram bem patentes no interesse e anseio do engenheiro agrónomo Pereira Caldas, não pode ser indiferente que os seus objectivos se cumpram e as suas consequências se materializem.
Sr. Presidente: não abusarei por muito mais tempo da paciência de VV. Ex.ªs, mas julgo-me ainda obrigado, depois de tão longa e desordenada caminhada, a mais algumas considerações antes de resumir e sintetizar, para concluir.
As possibilidades que se abriram ao homem moderno, mercê de um melhor conhecimento das coisas e das técnicas e de uma mais homogénea associação dos elementos, de um reencontro do sentido de unidade da ciência, que permite o completo respeito pela integral satisfação das suas necessidades e anseios, alteraram, nem sempre deliberadamente, mas no melhor caminho, condicionalismos que o deprimiam, forçando aqueles a quem cabia orientar e decidir a preferir ora soluções de objectivo social com sacrifício das realidades económicas, ora normas respeitando os postulados económicos mas ofendendo as exigências stocks e até humanas.
Estaria num destes casos o constituir, com inteira subordinação do económico, pequenas unidades de produção na indústria ou na agricultura, sem. cuidar de lhes assegurar viabilidade técnica e económica, e no outro procurar indiscriminadamente a concentração, com objectivos puramente económicos e total esquecimento das exigências psicológicas, necessidades materiais e situação moral do homem.
Hoje não julgo que, em regra, seja preciso sacrificar os objectivos sociais para resolver do melhor modo os problemas económicos,
As técnicas sociais também evoluíram como as económicas, e a interpenetração das ciências sociais entrou já no domínio da linguagem e das práticas correntes. Pois bem: no campo agrário a distinção entre propriedade e exploração, permitindo condicionar largamente o uso da riqueza sem atingir normalmente a propriedade, e, no campo da ordenação social, os princípios corporativos - que só considero possam ser integralmente atingidos através de uma reforma da empresa, associando o capital e o trabalho - alteraram a natureza dos soluções, ao mesmo tempo que lhes emprestaram amplitude e largueza de vistas.
Nestas condições, a resolução dos problemas individuais, para lá dos domínios da insuficiência, deverá, cada vez mais, resultar de modificações das condições gerais, orientação que tem de ser preferente em relação à directa, individual, que pertence a outra esfera de acção e compete a entidades de natureza corporativa.
Por tudo o que dissemos sobre os nossos problemas, concretos e a precedência por que devem ser considerados resulta só deverem ser realizadas grandes obras de fomento hidroagrícola depois de cuidadoso estudo do seu interesse económico.
Não quero com isto dizer que sejam um mal, mas tão-só que as «grandes» só são indiscutíveis quando encontrem uma cultura que as valorize e justifique.
Não esqueçamos que foi sempre à sombra de certas culturas remuneradoras que se operou o melhor aproveitamento dos recursos naturais e se desenvolveu o povoamento.
Recorde-se que o milho e a parreira fizeram do Noroeste o que hoje é e não era anteriormente. Observe-se também, que a cultura do arroz justificou e deu relevância a uma das obras ultimamente feitas.
Por isso não se pode esquecer que é indispensável encontrar primeiro a cultura própria para se poder seguir sem receios nem temores nesta política de valorização da terra. Todavia, estando essas culturas, ou, pelo menos, as mais interessantes dessas culturas, reservadas ao ultramar - e não se pode abdicar dessa reserva o preço seja do que for - facilmente se conclui que só excepcionalmente a grande obra de fomento hidroagrícola deve ser intentada no continente.
Por outro lado, sendo as circunstâncias ultramarinas mais favoráveis no que respeita ao encargo destas obras, parece não oferecer dúvidas que é ali que elas se devem realizar, tanto mais que as culturas que possibilitarão têm ali reais possibilidades económicas.
É, aliás, o interesse do ultramar e do continente que o postula, na medida em que lá se torna indispensável e urgente aumentar a população branca e cá se sente u necessidade de assegurar, em terra portuguesa, condições de vida decentes ao nosso excesso demográfico. Coincidindo os interesses, convergindo as conveniências, sendo mais reprodutivo o investimento, mais pequeno o ónus que incide sobre a terra e menores as limitações, que dúvidas poderão ainda existir para enevoar e entravar um caminho que se fundamenta, aliás, também em razões de vida ou de morte?
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Caminhemos no continente através do rumo seguro e firme dos pequenos aproveitamentos hidráulicos, por força e ao abrigo do Fundo de Melhoramentos Agrícolas, que já atingiram em pouco tempo uma extensão semelhante à da várzea do Ponsul e por preços que andam pela metade do encargo médio das grandes obras levadas a efeito, se reportarmos o seu custo a escudos de 1953.
Nenhum dos complexos problemas, quer dê escolha de culturas, quer de povoamento, quer de exploração, que os grandes empreendimentos ocasionam ocorrerá, a melhoria geral e local será mais perfeita e mais economicamente atingida.
De resto, ninguém pense que em qualquer país, « em particular no nosso, o problema do sobrepovoamento agrícola possa ter uma solução exclusiva ou fundamentalmente agrária. A experiência, duramente feita por muitos países, comprova que suo indispensáveis soluções: extra-agrárias nomeadamente de desenvolvimento industrial, para o enfrentar em bases sérias é seguras.
Note-se que só a industrialização pode acelerar «imprimir ritmo suficiente aos processos, de transformação
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agrária, particularmente se as indústrias agrícolas não forem esquecidas e a localização geográfica da indústria passar a ser considerada como pode e deve ser.
Julgo, de resto, que a solução do problema do desemprego estacionai no Alentejo (e no Douro), que se arrasta há já tempo demais, sem que seja enfrentado com outros recursos que os da emergência pelas obras públicas ou pela assistência - pelo menos que eu saiba -, estará, para o caso alentejano, precisamente na realização de pequenos aproveitamentos hidráulicos, permitindo pequeno e médio regadio, no estabelecimento de indústrias complementares da agricultura, na elevação dó nível técnico-económico das explorações, susceptível de, sem quebra da produtividade, possibilitar um melhor e mais intenso aproveitamento da terra, e não através de qualquer miragem que se possa antever da proposta que aprecio.
Em resumo, considero conveniente que se enfrentem os nossos problemas agrários com mais generalidade, chegando ao particular através do geral; se não desliguem, na prática, os do continente dos do ultramar e os da agricultura dos da indústria; se não perca de vista o transe por que passa presentemente a nossa lavoura e se não esqueçam os objectivos finais a atingir em matéria de política agrária; se não parta do suposto de que a terra é, no nosso caso, um factor raro porquanto, no lado do acanhado território continental, e a vastidão ultramarina; se não ignore a situação do trabalhador rural, digno de melhor sorte, e que bem pouco aproveitou ainda com a revolução nas ideias e uns realizações; enfim, se não aguarde para agir mais que o indispensável, pois que a situação urge e o tempo não pára.
Quero ainda formular um voto e fazer um apelo. Represento aqui uma região onde o esforço do homem atingiu o máximo: dos socalcos do Douro às plantações que recobrem as encostas do Sabor e do Tua e se internam pelo distrito adentro. Talvez por isso, acredito na nossa capacidade de iniciativa e no» seus frutos, se não se lhe regatearem os meios, o estímulo, o amparo técnico. Por outro lado, tenho como experiência que somos capazes de dar a melhor colaboração quando nos é francamente pedida,- e nunca me arrependi de a procurar sempre e em todas as emergências.
Pois bem, porque acredito no nosso espírito de colaboração e confio na nossa capacidade de iniciativa, desejava formular o voto de que este fosse o caminho preferentemente seguido - que o corporativismo, de resto, consubstancia -, em vez de, por comodidade ou descrença, se procurarem soluções em que a burocracia se substitui àqueles atributos e o geometrismo ao equilíbrio, que o homem constantemente restabelece na sua luta com a Natureza.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Por fim, e em conclusão, acrescentarei que não considero o problema posto à nossa consideração nem terrivelmente mau nem extraordinariamente bom, mas sim um problema que só casuìsticamente pode ser apreciado e não pode nunca sei- considerado nem como elemento fundamental nem como objectivo marcado no caminho da reforma da nossa estrutura agrária.
Nestas condições, darei o meu voto a esta proposta de lei, condicionado naturalmente is considerações que fiz, seguro de que, competindo ao Governo, ouvida a Câmara Corporativa, determinar os casos em que deve aplicaria e o modo como o deve fazer, não deixarão de ser ponderados todos os argumentos e todas as sugestões que aduzi formulei. Julgo assim impor-se, em regra, o recurso a medidas de outra natureza, de efeitos mais seguros, obtidos com menor dispêndio e interessando a maior número de portugueses - o que importa sobremaneira, quando p problema a resolver é o de muitos e soluções há que se dirigem apenas a alguns.
Mas, seja o rumo qual for, o que se não pode é continuar a aguardar, até porque o lavrador e o trabalhador rural podem não atribuir à falta ou ao excesso de chuva a origem das suas dificuldades e contratempos, quando essa seja a sua verdadeira causa, mas o que nunca farão é atribuir-lhe fatalìsticamente a responsabilidade, sem que de facto lhe pertença.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador fui muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai entrar-se na segunda parte da ordem do dia, que consta da discussão do aviso prévio efectuado pelo Sr. Deputado Cid dos Santos, cuja generalização foi pedida e aprovada.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Garrett.
O Sr. Almeida Garrett: - Sr. Presidente: antes de iniciar a minha intervenção, peço licença a V. Ex.ª para apresentar cumprimentos ao meu ilustre colega no professorado médico Sr. Dr. Cid dos Santos, pela maneira clara e correcta como trouxe a esta Assembleia um assunto de manifesto interesse colectivo. E também para agradecer aos colegas médicos que vão entrar no debate a distinção que me concederam ao quererem que fosse eu o primeiro a usar da palavra.
Sr. Presidente: começarei por seriar os diversos temas versados no aviso prévio, distribuindo-os por quatro pontos:
1.º Conceito do Hospital Escolar como centro de assistência e de ensino;
2.º Necessidade de correcções na estrutura pedagógica do ensino médico;
3.º Aproveitamento do espaço do novo edifício, escasso para conveniente arrumação de todos os serviços, por forma a permitir o regular funcionamento da instituição;
4.º urgência em se estabelecer um plano geral da organização dos vários serviços hospitalares, com participação directa da Faculdade na sua elaboração.
Não tratarei do segundo ponto, da estrutura pedagógica do ensino, por me parecer que a discussão de um assunto em que é forçoso descer a pormenores técnicos interessará ^médios uma Assembleia política do que o enquadramento das suas linhas mestras no estudo do problema mais geral do ensino de todos os que têm de defender a saúde, problema, que espero trazer aqui um dia com a devida extensão.
Também, sem desprimor para o autor do aviso prévio, não discutirei as opiniões expendidas sobre o edifício do Hospital Escolar de Lisboa e seu aproveitamento, nem o procedimento proposto para o organizar, limitando-me nestes aspectos a dizer o que sobre eles penso, como consequência de certos princípios basilares do conceito que formo de um hospital destinado ao ensino da medicina. Implicitamente vai nisto o comentário das referidas opiniões. Apenas, a propósito e como parêntese, desejo notar que as mil e quinhentas camas do novo edifício não são d& mais para o ensino, antes esta cifra será pequena se não se puser travão à afluência dos alunos.
Os estudos efectuados por comissões de professores especialmente categorizados fixaram num mínimo de por aluno o inúmero de camas de um hospital escolar. Ora, considerando apenas os alunos que frequentam as
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disciplinas professadas no Hospital que presentemente andam à roda de duzentos em cada uma das nossas Faculdades, vemos que por aquele cálculo devia haver cerca de dois mil leitos. Mas o óptimo é inimigo do bom e o que há, apesar de ter sido projectado há muito, pela alta competência do Prof. Francisco Gentil, deve chegar bem se for bem aproveitado, dando primazia às clínicas médicas gerais - as mais importantes para a formação de alunos de um curso geral de medicina.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Essencialmente, um hospital escolar é um estabelecimento de assistência semelhante a qualquer outro grande hospital, onde a arte médica tem de se exercer mediante instalações, material e pessoal adequados à variedade dos serviços que presta. Como em qualquer outro hospital, todos os que nele trabalham, desde o médico até ao menor dos seus auxiliares, devem impregnar o seu labor de um vivo sentimento de humanidade, daquela devoção ao doente que leva a minorar, pela palavra e pela acção, o sofrimento do pobre enfermo deprimido.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - À doença do corpo implica o padecimento do espírito, e a influência deste sobre a vitalidade orgânica é tão grande que muitas vezes basta fortalecê-lo para que o mal decline e retroceda. A arte clínica não é só aplicação de ciência, é também, e muito, caridade cristã.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Em matéria de assistência, nos hospitais escolares os doentes são tratados com ciência e consciência, por um corpo médico de superior qualidade, como, - aliás, devem ser tratados em qualquer outro hospital.
Há, no entanto, um sector que deve ter grande desenvolvimento num hospital escolar e é o do serviço social. Por ele o aluno se habituará a não ver no doente apenas o caso clínico, mas uma pessoa que tem as preocupações inerentes à sua vida e à da sua família, com os quais é preciso contar para a acção curativa e profiláctica de novas quebras da saúde. Por que o aluno ganhará consciência do sentido social da medicina, enquanto se espera um futuro em que a actividade hospitalar vá até si casa do doente, tanto quanto possa ser.
O que fundamentalmente distingue um hospital escolar de um hospital somente dedicado à assistência é ser um meio para o desempenho da segunda missão que ao professorado compete: a da investigação científica, o que requer algumas especiais condições, que são principalmente as seguintes:
1.º Laboratórios de medicina experimental, onde se pratiquem, em animais, ensaios de procedimentos que possam vir a utilizar-se para o diagnóstico e para o tratamento dos doentes;
2.º Instrumental destinado à aplicação de novos métodos, para verificação do seu real valor;
3.º Possibilidade de efectuar os exames de toda a ordem laboratorial, radiológica, etc., respeitantes aos trabalhos de investigação que saem da rotina diária;
4.º Arquivo de observações clínicas, convenientemente ordenado, para que delas possam extrair-se elementos para estudos que levem ao melhor conhecimento da patologia e da eficiência dos meios terapêuticos.
Isto é: além do necessário para a assistência, um hospital escolar tem de ter a mais o que acabo de apontar e naturalmente o pessoal para lidar com ele.
Sr. Presidente: por esses motivos, e porque quase tudo isso se encontra nos serviços extra-hospitalares da Faculdade, há evidente vantagem em que Faculdade e Hospital formem um conjunto sem falhas, entrelaçando as suas actividades. E, daqui nasceu a ideia de que as duas partes devem, em completa fusão, depender de uma só entidade: a Faculdade de Medicina. Essa ideia, aparentemente lógica, estará certa? Será o que na realidade convém?
Um grande hospital é, como todos sabem, um organismo extremamente complexo, cuja administração exige pessoas com particulares habilitações. A administração hospitalar excede as possibilidades do pessoal docente e auxiliar das Faculdades. Para que estas possam arca? com tal responsabilidade tem de possuir um quadro de profissionais administrativos alheios ao ensino, nitidamente separado do respeitante à missão docente, de ensino e de investigação, tal como em hospital somente assistêncial. Porque os cuidados médicos a prestar aos doentes competem exclusivamente aos professoras das clínicas e aos auxiliares, àqueles deve pertencer, por serem os directores das enfermarias e serviços a elas anexos, a indicação das orientações técnicas que o director do hospital, seu par alçado em superior, aplicará tão amplamente quanto o permitirem as finanças hospitalares reguladas pelo administrador.
Director e administrador têm de trabalhar em estreita conjugação de esforços para que o hospital de o maior rendimento era benefícios para os doentes. Essa harmonia só deixará de existir se um destes dois pólos do governo da casa se afastar do outro, quer porque é director pretende coisas para que não há dinheiro, quer porque, havendo-o, cada um o quer aplicar em coisas diversas.
No primeiro caso o director mostra falta de senso prático; no segundo caso é o administrador que pretende invadir as funções do director; em qualquer dos dois há falta das qualidades de compreensão de situações e falta de verdadeiro interesse pela instituição - quer dizer: são pessoas que não servem.
Esta possível incompatibilidade tanto pode dar-se num hospital escolar como em qualquer outro; não serve como argumento para reprovar a não entrega à Faculdade da administração do seu hospital.
Em suma: direcção e administração à cabeça da vida do hospital; assistência clínica exclusivamente exercida pelo pessoal docente da Faculdade; professores, directores dos vários serviços hospitalares, constituindo um conselho técnico, com funções consultivas. Estas são, a meu ver, as linhas gerais desejáveis para a orgânica de um hospital escolar, seja qual for a entidade de que dependa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: expostos estes conceitos, cheguei ao ponto delicado da questão: o da sua aplicação ao caso do Hospital Escolar de Lisboa. Tenho de os concretizar. Rogo a V. Ex.ª o favor da concessão de alguns minutos mais.
O Hospital Escolar foi colocado no sector assistêncial do Ministério do Interior. Deixando de lado a consideração das vantagens de todos os estabelecimentos hospitalares dependerem de um só departamento governativo, olhando apenas para o interesse pela vida do Hospital Escolar, temos de reconhecer que a verificação dos progressos realizados nos últimos tempos na assistência hospitalar em todo o País, e sobretudo em Lisboa, dá a garantia de que o Hospital Escolar há-de ter o indis-
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pensável para uma boa assistência. Sei que há quem receie grandes atritos entre a assistência e a educação. O receio parece-me infundado se de um lado e do outro houver compreensão do que a cada um compete. O que deve, de acordo com os princípios que enunciei, dispôs-se pela seguinte forma:
Caberá ao Ministério do Interior a superintendência do Hospital, delegada num director, escolhido de entre os professores de Medicina, e toda a administração hospitalar, incluindo a escolha do pessoal, com excepção e todo o corpo clínico e dos chefes dos serviços técnicos anexos, que devem gozar de completa confiança dos professores, por sua competência e probidade, e portanto devem ser recrutados por concurso de provas) perante júris de professores da Faculdade.
A Faculdade dará todo o corpo clínico e dará todo o material (instrumental, drogas, etc.) relativo a trabalhos de investigação; isto é, tudo o que está fora das regulamentares disposições do trabalho habitual. Os professores que trabalham no Hospital formarão o conselho técnico, a ouvir pelo director.
Assim, a direcção provém da Faculdade. Mas o que a exercer depende disciplinarmente, em matéria hospitalar, do Ministério do Interior; é perante ele responsável. Assim, a ligação entre as duas entidades será estreita e seguramente frutuosa.
Esta solução não tem nada de original. Tem exemplos entre nós, e bem. elucidativos. E semelhante & adoptada nos institutos de medicina legal, cuja direcção cabe por lei ao professor de Medicina Legal, que é simultaneamente funcionário dos Ministérios da Educação Nacional e da Justiça. E oxalá - noto de passagem - seja adoptada para os institutos de higiene que vão criar-se em Coimbra e no Porto.
Outro exemplo, e ainda melhor porque pertence ao ensino da clínica, é o dos Hospitais da Universidade de Coimbra, governados por um professor da Faculdade de Medicina, o nosso ilustre colega nesta Assembleia Dr. João Porto, que neles tem desenvolvido uma admirável acção, orientada nas modernas concepções de medicina social, de que é apóstolo e obreiro, com proveito comum à Faculdade e à assistência.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Por fim, algumas palavras sobre as hesitações e, as dificuldades na organização do Hospital Escolar de Lisboa. Não admira que existam, dada a grandeza da obra e o feitio individualista da nossa gente, pouco propensa a trabalho de equipe. Talvez o principal motivo do estado de coisas manifestado no aviso prévio esteja na falta de uma constante e íntima cooperação dos funcionários dos três Ministérios que intervêm na obra e têm a seu cargo estabelecer a orgânica anatómica e funcional da instituição. Oxalá se promova ainda, para que se distribuam responsabilidades sem lugar para mútuas recriminações, para que tudo fique o melhor possível.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: remato com uma imprescindível declaração. As opiniões que aqui trouxe são estritamente pessoais, sem injunções de qualquer espécie, nem sequer as que podiam vir da minha Faculdade. São o produto do que tenho observado e estudado em quatro décadas de serviço docente e duas de direcção de uma Faculdade de Medicina, cujo ensino clínico se faz, por empréstimo de enfermarias e consultas, num hospital de Misericórdia em precárias condições e sem orçamento para as despesas que no hospital se têm de fazer com os serviços auxiliares da clínica. Isto ensina muito. Porque, apesar de tão desfavoráveis circunstâncias, a minha Faculdade não teme o confronto dos que nela se formam e tem contribuído com parcelas apreciáveis para o progresso da ciência médica nacional. E que lá, como «m toda a parte, mais importa o espírito de servir do que a riqueza material. Sem ele, esta nada vale.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Dentro deste conceito universal, nutro a esperança de que os homens que têm o encargo de estruturar e dinamizar o Hospital Escolar de Lisboa, compreensivos e devotados, hão-de levar a bom termo uma. obra que honra Portugal.
Com o Hospital de Lisboa, o do Porto, já em fase adiantada, e a remodelação do de Coimbra as três Faculdades de Medicina poderão melhorar notavelmente o ensino clínico. Calorosos louvores devem ser dados ao Governo da Nação por essas obras de tão grande valia; e reconhecer os serviços de quantos para elas contribuíram, planeando e executando, julgo não ser favor.
Não olhemos apenas para algumas árvores. Saibamos ver a floresta.
Nada mais.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Santos Bessa: - Sr. Presidente: a Câmara ouviu com a melhor atenção e o maior interesse a exposição pormenorizada que acerca do novo Hospital Escolar aqui fez na última sessão o Sr. Deputado Cid dos Santos.
Pelo que me diz respeito, posso afirmar que foi grande o prazer com que o ouvi. A forma como desenvolveu o seu aviso prévio está à altura da sua reputação como homem e como professor.
Saúdo-o pela exposição que fez à Câmara e felicito-o pelo entranhado carinho com que tem estudado este problema do Hospital Escolar.
Vozes:.- Muito bem!
O Orador: - Suponho que é a primeira sessão legislativa em que nesta Câmara se fazem referências ao Hospital Escolar depois da sua conclusão e da sua simbólica inauguração. Por uso mesmo, não quero deixar de salientar o alto significado dessa formidável construção, que há pouco mais de vinte anos todos julgariam verdadeira fantasia. O nosso regime político e a revolução económica e financeira que ele trouxe conseguiram dar realidade à utopia. Os Hospitais Escolares de Lisboa e do Porto - o primeiro já concluído e o segundo a caminho da conclusão - são duas afirmações indestrutíveis desta nova era em que estamos vivendo.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Como Deputado, ao iniciar as considerações que tenho de fazer a respeito do aviso prévio do Prof. Cid dos Santos, quero dirigir as mais respeitosas e sinceras saudações ao Sr. Presidente do Conselho e aos Ministros dos seus Governos que conceberam e realizaram esta magnífica obra.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Como médico, quero agradecer-lhes esta iniciativa, verdadeiramente revolucionária no dizer do
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Sr. Deputado Cid dos Santos, que marca uma nova época na história do nosso apetrechamento hospitalar..
Como antigo aluno ria faculdade de Medicina de Lisboa, agradeço estas novas e magníficas instalações que lhe são destinadas.
Quero ainda associar-me as palavras justas, de homenagem e admiração que aqui proferiu o Prof. Cid dos Santos a respeito dos engenheiros Jácome de Castro e Tavares Cardoso, que à execução desta obra consagraram o melhor da sua inteligência e do seu saber.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ao Prof. Gentil, que dedicou mais de vinte anos da sua vida no problema dos hospitais escolares e que desde o início acompanhou o estudo deste grande Hospital, presidindo à respectiva comissão técnica e colaborando activamente com o malogrado e competentíssimo arquitecto Distei, quero também significar a minha admiração pela obra que tem realizado em Portugal e particularmente pelo que fez pela construção deste Hospital.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Desde a primeira hora o Governo pôs o maior carinho na sua realização, procurando que ele resultasse, do ponto de vista da construção e do funcionamento, o melhor possível. Por isso mesmo se chamou o grande arquitecto Hermann Distel, que tinha feito os maiores hospitais da Alemanha e que tinha sido encarregado de fazer o Grande Hospital Monumental de Berlim. Pela mesma razão a direcção médica ficou confiada ao Prof. Gentil, a quem foi entregue a presidência da comissão técnica dos hospitais escolares - e ninguém ousará negar a este distinto professor nem experiência nem competência em tal matéria.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Escolheu-se o que havia de melhor e, antes de assentar definitivamente no que devia fazer-se, realizou-se uma viagem de estudo aos melhores hospitais da Europa. E o cuidado foi tal que só foi aprovado e executado o 12.º dos projectos feitos por Hermann Distel para este grande hospital português.
O Hospital Escolar aí está, na última fase de apetrechamento, para que possa abrir, dentro em pouco, todos os seus serviços clínicos. Com ele marcamos um novo período na nova organização hospitalar, pondo ao serviço dos doentes, dos médicos e do ensino, este grande hospital moderno.
A análise do que se fez, tanto no ponto de vista da construção como no do funcionamento, foi aqui realizada pelo Sr. Deputado Cid dos Santos, que demonstrou exuberantemente ter estudado este problema até ao pormenor. Com uma louvável preocupação de cumprir o seu dever, enumerou os benefícios, apontou as coisas boas deste grande edifício, expôs as suas críticas sobre as deficiências que julga reparáveis e apresentou as soluções que se lhe afiguram mais convenientes e de possível execução. É um depoimento sério, mas a Câmara nem por isso fica habilitada a impor ao Governo a execução destas soluções propostas, porque o problema é de extrema delicadeza e requer séria e longa ponderação.
O seu discurso fica como um depoimento pessoal de alto valor e as suas sugestões devem ser devidamente examinadas pelas várias repartições técnicas dos Ministérios a que dizem respeito, a fim de ser adoptada a solução mais conveniente. Temos o direito de exigir que neste Hospital, onde vão gastos perto de 400 000 contos, tudo se disponha para garantir o seu máximo rendimento, com a maior eficiência do ensino e sem prejuízo do conforto e do tratamento dos doentes.
Além disso, a Câmara deve esperar que, pelos Ministérios respectivos, se prestem esclarecimentos sobre a razão da concepção primitiva do projecto e das alterações posteriores e também sobre as causas que motivaram o atraso no apetrechamento de certos serviços. Que benefícios ou prejuízos trouxeram essas alterações?
Bem andou o Prof. Almeida Garrett ao requerer a generalização do debate. A importância deste assunto amplamente o justifica.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ao intervir nele não me move o desejo de analisar todas as questões aqui focadas pelo Sr. Deputado Cid dos Santos, mas tão-sòmente o de fazer algumas considerações sobre algum as delas. Espero que tanto o autor do avião prévio como o douto conselho da Faculdade de Medicina, onde ainda se encontram, felizmente, tantos dos meus antigos mestres e onde ascenderam alguns condiscípulos de real mérito e tantos amigos que tanto prezo, me perdoem as considerações que se não ajustam aos seus pontos de vista. Uns e outros depomos sobre esta questão para servir o melhor que sabemos estes ramos de ensino e da assistência.
Sr. Presidente: os problemas aqui levantados podem ser apreciados de vários modos, ao sabor dos conceitos de cada qual, e os conceitos de hoje não são os mesmos que reinavam há vinte anos, quando este Hospital foi concebido. A velocidade do aperfeiçoamento da técnica é tal que um técnico canadiano disse que devia haver em cada vinte anos um cataclismo que destruísse os hospitais para nos obrigar a fazê-los de novo. Algumas das soluções aqui propostas pelo Prof. Cid dos Santos estão longe de obter unanimidade de opinião dos professores da Faculdade de Medicina de Lisboa e, talvez por isso mesmo, o autor do aviso prévio declarou que aquilo que vinha dizer era da sua inteira responsabilidade, que não representava o ponto de vista da Faculdade e que era tão-sòmente a sua opinião pessoal sobre aqueles assuntos.
Estão naquelas condições os problemas ligados à instalação da clínica médica e da clínica cirúrgica, das propedêuticas e da técnica operatória, dos laboratórios e da cardiologia. E1 tão fortes foram as divergências da distribuição dos serviços das clínicas que até um professor classificou de absurda a resolução tomada pelo conselho em sessão anterior e declarou que a ela se opunha terminantemente. E numa comissão de três, para se pronunciar sobre a distribuição dos serviços das clínicas, o director declarou que as opiniões dos outros dois eram divergentes. Concluí que não foi, possível conseguir uma opinião decisiva para tal assunto.
Não é, portanto, esta Câmara que tem competência para tais problemas, indicando qual dos dois critérios está certo - se o deste, se o de todos os outros professores. Nem me parece que, se a comissão instaladora for substituída por outra, possa adoptar soluções que agradem a todos os sectores. Como já disse, a Comissão Técnica dos Hospitais Escolares teve a presidi-la um professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, indicado por voto unânime da sua Faculdade, e da actual comissão instaladora também faz parte um professor da Faculdade, que foi indicado pelo respectivo Ministério e que foi director do seu Hospital Escolar. Não se me afigura muito provável que a substituição destes professores por outro, embora escolhido pelo Sr. Presidente do Conselho, consiga conciliar pontos de vista tão díspares e tão irredutíveis atitudes.
Sobre a duplicação da psiquiatria, o Prof. Cid dos Santos sabe que este serviço estava previsto no primi-
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tivo projecto e que o Governo, posteriormente, desejou evitar essa duplicação, propondo a transferência do serviço de desenho, leitura, fotografia e modelagem para o local primitivamente destinado à psiquiatria, e que a isso se opôs a Faculdade, em cujo conselho foi defendido o critério de que não devia excluir-se totalmente este serviço do Hospital-Faculdade, pois ali deviam ficar instalações para nevróticos internamento de casos leves e consultas externas.
Também a respeito da duplicação da oftalmologia, aqui referi da, devo declarar que nada encontrei, nos documentos que fui autorizado a consultar por via de requerimento que fiz, em que a Faculdade a tal se opusesse.
A mim afigura-se-me que se não pode conceber um hospital desta categoria - um grande hospital central- sem que ali esteja assegurada a existência destas e de outras especialidades, para garantir o ensino e para executar o exame complementar dos doentes que pertençam a outros serviços.
Outro tanto podíamos dizer a respeito dos serviços a que o Prof. Cid dos Santos chamou serviços sem dono - uma classificação que não se me afigura inteiramente feliz.
Estranhou também o Prof. Cid dos Santos que nada soubesse ainda sobre os laboratórios privativos das clínicas, mas, um contrapartida, disse saber que havia um serviço com quatro laboratórios! Eu estranho ainda mais do que ele, porque o assunto foi debatido no conselho da Faculdade onde esta multiplicidade de laboratórios foi defendida pelo professor da respectiva cadeira, por motivos de ordem profiláctica, sem que dessa acta conste que a Faculdade não aceitou o seu ponto de vista.
E, em boa verdade, não o podia fazer, porque em sessão anterior (30 de Abril de 1952) a mesma Faculdade foi informada de que a comissão por ela nomeada para apreciar o projecto do Hospital Escolar assentara em manter a organização do plano elaborado pela respectiva, comissão técnica, havendo só que coutar com alguns pormenores de adaptação, a resolver no momento oportuno. E não o podia fazer porque nesse primitivo plano, com o qual ela se conformava, em vez de quatro, estavam destinados a esse serviço nove laboratórios!
Outro ponto aqui focado foi o do serviço de cardiologia serviço com. instalações destinadas pelo Governo dentro do novo hospital e sem qualquer aprovação do conselho da Faculdade ou da comissão técnica então em actividades únicas entidades com competência, para se pronunciarem sobre o assunto, serviço que o autor do aviso prévio classificou entre os serviços com dono não previstos. Ao Prof. Cid dos Santos preocupa-o o espaço ocupado pelo serviço, mas também, e sobretudo, a forma como o serviço foi criado.
A nós interessa-nos, sobretudo, se devia ou não ser criado e se o Governo fez bem ou se- fez mal em lhe destinar lugar no novo hospital - com o parecer, contra, o parecer ou contra o silêncio da Faculdade.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A cardiologia é uma especialidade de uma indiscutível importância que se isolou da clínica geral, como tantas outras especialidades, e que toma cada vez mais importância no campo científico e no social à medida que se vão intensificando os estudos de electrocardiografia, de hemodinâmica de angiocardiografia, de análises dos gases do sangue, de cirurgia cardíaca, etc., e que se vão acentuando as estatísticas de mobilidade e de mortalidade pelas doenças do coração II outras afecções do aparelho circulatório.
As doenças do coração e dos vasos são o «equivalente moderno das grandes doenças mortais do passado», diz Leslie Banks, de Cambridge. Para este autor 37 por cento de todas as causas de morte são devidas às afecções deste sistema e o Dr. Spaey, médico belga, diz que 35 por cento das mortes registadas «111 7 200 pessoas de Maryland, sujeitas a observação durante vinte e oito meses, foram devidas a lesões cardiovasculares. Para vermos a importância crescente destas doenças basta citar que Ryle e Russel afirmam que a mortalidade por doenças das artérias coronárias entre homens e mulheres de mais de 35 anos foi em 1940 mais de quinze vezes superior à de 1921.
À medida, que se avança na idade a percentagem de mortes por causas dessa natureza vai subindo cada vez mais: dos 40 aos 5O anos é de 25 por cento de todos os óbitos, dos 60 aos 70 anos essa taxa passa para 52 pôr cento e aos 80-90 anos é de fio por cento da mortalidade geral (Boas).
Está calculado que em Portugal, em 1901, as doenças do coração e dos vazos acarretaram uma mortalidade de 24,17 por cento do obituário geral. O Prof. João Porto, seriamente preocupado com o problema médico-social dos doentes do aparelho cardiovascular e com o aumento da incidência destas doenças, criou em Coimbra, nos Hospitais da Universidade, um centro de cardiologia médico-social, a que se devem já notáveis resultados.
Em todos os grandes hospitais da Europa e da América, segundo informações que colhi, há serviços de cardiologia entre as especialidades da secção médica - o Boucisont, o Carolina, o Hospital Sul de Estocolmo, por exemplo, têm serviços com cerca de 100 camas cada um. E a cidade hospitalar de Lila, inaugurada em Outubro de 1.953 lá tem também o seu serviço de cardiologia.
De tudo isto parece dever concluir-se que o Governo tez bem em criar um serviço de cardiologia neste nosso moderno hospital.
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - Quem lho propôs! O director da consulta, da cardiologia do Hospital Escolar, que, com aprovação do conselho, a fundou e a dirige desde Janeiro de 1.948 e onde tem feito cursos de cardiologia para pós-graduados. Ao mesmo tempo (pie o solicitou ao Governo, apresentou ao conselho da Faculdade, como consta da acta de 30 de Junho de 1952, a respectiva proposta.
Não vi nas actas seguintes que o conselho tenha discutido esta proposta.
Naturalmente os engenheiros responsáveis e o Governo tomaram o silêncio como aprovação tácita, tanto mais que desde Janeiro até Outubro de 1953. segundo informações que colhi, o conselho examinou por várias vezes plantas enviadas pela Comissão Administrativa, nas quais figurava já, de modo bem visível, a clínica de cardiologia, sem que tivesse apresentado qualquer protesto, nem junto da Comissão nem junto do Ministro responsável.
Foi por isso e naturalmente pelo regime deste hospital que o Governo pensou criar o serviço de cardiologia, um parte à custa da propedêutica médica, confiada, ao mesmo professor, e foi também naturalmente por isso que o Instituto de Alta Cultura ali instalou, em Junho de 1953 e com a mesma direcção, um centro de estudos de cardiologia. Um e outro não tem em mira senão elevar a categoria o as possibilidades de investigação e de assistência desta nova unidade hospitalar.
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Andou mal o Governo? Não estou de acordo com o Deputado Cid dos Santos neste ponto.
Há um outro ponto sobre o qual não quero deixar de me pronunciar - o da proposta feita pelo Prof. Cid dos Santos para que «a parte hospitalar volte para o Ministério da Educação Nacional, donde nunca devia ter saído». Considera um erro o facto consumado da sua passagem para o Ministério do Interior, porque assim se- geram as «condições ideais para os conflitos, pomo em todas as casas com dois donos».
Este assunto foi já aqui debatido, em 1946, aquando da- discussão da proposta de lei sobre a reforma hospitalar, e então, foram confrontados os resultados da experiência do Hospital de Santa .Marta no Ministério da Educação Nacional e os de outros hospitais da nossa secular organização fora daquele Ministério, e afirmou-se que numa instituição hospitalar com pessoal pertencente a dois Ministérios os conflitos eram sómente entre o pessoal do mesmo Ministério.
Retomemos o tema, Sr. Presidente.
E já que se trata de hospitais escolares não noa mal dizer à Câmara o que se tem passado com os Hospitais da" Universidade de Coimbra, onde a respectiva Faculdade sempre fez o ensino médico - a história é mestra da nossa vida.
Os Hospitais da Universidade de Coimbra, com os seus quatro séculos e meio de existência, têm passado por vários tipo de administração.
Até à reforma do marquês de Pombal, que em 1774, os integrou na Fazenda da Universidade, a cargo de quem ficou a arrecadação das receitas, as despesas de manutenção e a direcção científica da instituição, a administração dos Hospitais tinha estado sucessivamente entregue a um administrador de nomeação régia e aos padres lóios. A partir de 1851 a receita passou a ser arrecadada pelo Governo Civil de Coimbra. Tais foram as dificuldades em que se viu a Universidade que, por várias vezes, solicitou ao Governo que a aliviasse de tais encargos e lhe reservasse tão-somente a direcção científica.
Numa das muitas representações que ela fez dizia-se o seguinte (Julho de 1859):
Senhor! A Faculdade de Medicina da Universidade, reconhecendo há muito que a administração dos Hospitais é encargo demasiado para quem se deve entregar especialmente as funções do magistério, timbrando ser exacta, tanto quanto possível, no cumprimento dos seus deveres; considerando que não deve ser outra a- missão do homem de ciência que o melhoramento e perfeição dela, e vendo que não podia chegar ao seu elevado fim quando pesassem sobre ela encargos que naturalmente lhe não competem, teve já, por duas vezes, a honra de levar ao soberano conhecimento de Vossa Majestade a necessidade de separar da Faculdade a administração dos Hospitais, por incompatível com o bem do ensino. Mas, com mágoa confessa, suas súplicas não têm sido atendidas, apesar da Lei de 17 de Julho de 1856.
A Faculdade, Senhor, chama de novo a atenção de Vossa (Majestade para objecto de tanta importância e espera que, pesando em sua alta sabedoria, as graves consequências que para a boa regularidade do ensino resultam da reunião de funções tão diversas, defira sua pretensão, para que, deste modo, não lhe falecendo o tempo nem o sossego de espírito que o magistério requer, se possa dedicar com todo o esmero ao ensino da ciência que professa.
Vossa Majestade porém, decidirá o que julgar mais acertado.
Só cerca de catorze anos depois de publicada a lei (Decreto de 25 de Maio de 1870) passou a administração dos Hospitais a ser exercida por um administrador nomeado pelo Governo, tendo como substituto um lente da Faculdade de Medicina, eleito anualmente para membro de uma junta consultiva, cabendo à Faculdade de Medicina a «inspecção e direcção científica das enfermarias e estabelecimentos da sua imediata dependência».
Doutor Costa Simões, que foi o primeiro administrador nomeado e a cuja. direcção corresponde o período áureo dos Hospitais da Universidade de «Coimbra, refere-se deste modo a este ponto:
... foi uma luta constante da Faculdade de Medicina com a Fazenda da Universidade, depois com o Governo Civil de Coimbra e mais tarde com o Ministério do Reino. As gravíssimas dificuldades de uma tal administração, em penúria deplorável, quase que absorviam todos os cuidados da Faculdade em prolongadíssimos debates, e perdendo precioso tempo com estas questões de administração económica quando lhe convinha socego de espírito para se ocupar exclusivamente da sua missão no professorado.
Neste regime, que vigorava ao tempo da direcção do Dr. Costa Simões, havia enfermarias destinadas ao ensino e chamadas «escolas», dirigidas pelo respectivo lente durante o período de aulas, ficando todas as outras a cargo do administrador, servidas por clínicos ordinários ou extraordinários, nomeados pelo Governo após concurso documental e por proposta do administrador. Os doentes destas enfermarias eram franqueados ao ensino, no caso de se julgar necessário.
Em 27 de Abril de 1911. com a reforma que pretendeu retirar autoridade ao administrador e garantir uma mais efectiva ingerência da Faculdade na direcção hospitalar, passou a Faculdade a propor uma lista tríplice, para, dentre ela, o Governo nomear o director, então obrigatoriamente professor da Faculdade de Medicina. Por esta mesma reforma desapareceram as enfermarias-escolas e todo o hospital passou a servir para o ensino.
De facto, retirou-se toda a autoridade ao administrador, cuja competência se reduzia à nomeação de criados e porteiros e à aplicação de penas até ao máximo de um dia de multa. Ele apresentaria ao conselho fiscal e à Faculdade todos os assuntos devidamente informados, para que sobre eles se tomassem resoluções. O próprio artigo 27.º desse decreto permitia que um lente, mesmo aposentado e proibido de exercer qualquer cargo clínico nos Hospitais da Universidade de Coimbra, pudesse ser administrador, a tal ponto tinham sido reduzidas as funções do administrador.
A legislação de 1919 manteve a nomeação do director através da lista tríplice, mas criou um conselho técnico, para questões de assistência, e ensino, com funções meramente consultivas, e um conselho administrativo, para deliberar sobre assuntos de administração.
Apesar de criado o Ministério da instrução Pública desde 1913, estes Hospitais da Universidade de Coimbra nunca lhe pertenceram - estiveram - sempre no Ministério do Interior, à parte o pequeno período em que existiu o Ministério do Trabalho (de 1918 a 1925).
Posteriormente, a nomeação do director passou a ser independente da indicação da Faculdade (através da tal lista tríplice) e foi alterada a administração interna. Vários artigos daquele Decreto n.º 5 736, de 1919, têm sido revogados por outros decretos e portarias.
O artigo 2.º do Decreto n.º 31 913, do 12 de Março de 1942, estabeleceu que nas instituições de assistên
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cia o provimento dos cargos de direcção e chefia dos serviços médicos, administrativos ou outros passe a ser feito em regime de contrato por livre escolha do Ministro, sem prejuízo das habilitações legalmente exigidas pura as funções a prover.
Alarmada,- a Faculdade de Medicina fez respeitosas ponderações sobre o caso, no sentido de serem excluídos do aplicação daquele decreto os velhos Hospitais da Universidade de Coimbra, ou, então, no de serem consideradas como habilitações necessárias ao título de director dos Hospitais ou da chefia de serviços clínicos o exercício de professor da Faculdade de Medicina de Coimbra.
Como o decreto fosse tido como inteiramente aplicável aos Hospitais da Universidade de Coimbra a Faculdade não receberem sossego e confiança acerca, de efeitos futuros deste decreto.
Em oração de sapiência, em 1940, o Prof. Almeida Ribeiro defendeu, com o prestígio do seu nome e o brilho da sua inteligência, a transferência dos Hospitais da Universidade de Coimbra para o Ministério da Instrução, para desaparecer o que, em seu dizer, constituía «uma esquisita anomalia»: os Hospitais da Universidade de Coimbra -«o hospital escolar tradicional do País- a permanecerem no Ministério do Interior, um Ministério que deixara, havia vários anos, de tutelar os negócios da instrução», enquanto «em Lisboa um hospital de nova criação, sem tradição universitária, era incluído, como aliás era lógico, desde que se lhe dava a categoria de escolar, entre os estabelecimentos do Ministério da Instrução Pública, hoje da Educação Nacional».
Pelo respeito à verdade, reproduzo as suas próprias palavras. Mas, afinal, porém, o que era anomalia em o Hospital de Santa Marta no Ministério da Educação Nacional, e não os Hospitais da Universidade de Coimbra fora dele! Mas não foi só a anomalia que o moveu: foi a necessidade da garantia da não aplicação do Decreto-Lei n.º 31 913 aos Hospitais da Universidade de Coimbra que o levou a pronunciar aquela oração de sapiência na Sala dos Capelos e assim tornar pública esta tese, revestida de toda a autoridade.
Esse desassossego da Faculdade de Medicina de Coimbra evidenciou-se ainda mais com a exposição que ela enviou ao Governo, em 1945, pedindo a transferência dos seus Hospitais para o Ministério da Educação Nacional, com o telegrama enviado por ela à Assembleia Nacional, a propósito da representação da Faculdade de Medicina de Lisboa acerca da base XXV da proposta do Governo sobre reorganização hospitalar, em 1946, e com as palavras que aqui proferiu nesta tribuna o Sr. Prof. Pacheco de Amorim, lendo passagens da oração de sapiência do Prof. Almeida Ribeiro.
Como, porém, a demonstração da boa administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra feita naquela oração de sapiência também envolvia confronto com a do Hospital Escolar de Santa Marta, o Sr. Deputado Botelho Moniz, comentando o trabalho do Sr. Prof. Almeida Ribeiro, concluiu que, se em 1944 os Hospitais da Universidade de Coimbra, tratando o dobro dos doentes, gastaram só dois terços do que gastou o de Santa Marta - ambos servindo o ensino, o primeiro dependente do Ministério do Interior e o segundo do Ministério da Educação Nacional -, o que era lógico e lhe parecia servir melhor os interesses da Nação era a manutenção dos hospitais do Ministério do Interior.
E a Câmara votou a base sobre hospitais centrais e escolares com o aditamento proposto pelo Dr. Alberto Cruz.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A lei que depois saiu da aprovação das bases da proposta do Governo sob reorganização hospitalar tem o n.º 2 01 de 2 de Abril de 1946. À sombra dela se tem feito a construção e a reconstrução dos nossos hospitais. Nela se estabelece, dentro da organização hospitalar do País, uma hierarqui a que ai desde os hospitais sub-regionais aos centrais. Como hospitais centrais finaram classificados os Hospitais Civis de Lisboa, os hospitais escolares e outros que o Ministro do Interior designar para esse fim.
Os hospitais escolares, portanto, a despeito da sua função pedagógica, estão enquadrados no plano geral dos hospitais portugueses, subordinados a uma orientação e fiscalização comuns a todos os hospitais, como, aliás, acontece em toda a parte e já era tradicional em Portugal. Os Hospitais da Universidade de Coimbra, o Hospital de Santo António, a Maternidade Júlio Dinis e o Hospital Joaquim Urbano, no Porto, o Hospital Júlio de Matos, a Maternidade Magalhães Coutinho, onde se tem feito o ensino, são exemplos bem claros do que acabo de dizer.
O Hospital Escolar de Santa Marta é uma excepção desde 1925. Pela Lei n.º 2011 os hospitais escolares terão as funções de hospitais centrais e ainda as do ensino, mas a sua administração é que fica subordinada às mesmas regras dos demais. O seu pessoal docente será recrutado pelo Ministério da Educação Nacional, nos termos por ele fixados (base. XXII, alínea 2). Quanto ao pessoal não docente, a Assembleia Nacional foi inludivelmente expressiva, rejeitando a emenda proposta pelo Dr. Mário de Figueiredo e aprovando o aditamento da autoria do Dr. Alberto Cruz.
Deste modo o recrutamento do pessoal não docente será feito por concurso.
Em 6 de Junho de 1902 a Faculdade de Medicina de Coimbra enviou nova exposição a S. Ex.ª o Ministro da Educação Nacional, em que abandona a tese da transferência dos Hospitais da Universidade de Coimbra para o Ministério da Educação Nacional e diz:
Mesmo que prevaleça o critério de estes ficarem administrativamente dependentes do Ministério do Interior, a Faculdade, para salvaguardar os seus altos interesses na sua função de ensino médico, pede que sejam estabelecidas bases concretas das relações entre os dois Ministérios o do Interior e o da Educação Nacional- segundo normas que se ajustem às estabelecidas pelo Ministro da Educação Nacional na orientação da acção docente nos hospitais escolares.
E volta a solicitar a restauração do princípio de que a direcção seja confiada a um dos professores indicados em lista pelo conselho da Faculdade de Medicina, assistido por um conselho técnico, também eleito pela Faculdade, e a chefia dos serviços clínicos entregue aos professores da Faculdade de Medicina.
(Mas esta exposição vai mais além: invoca o Decreto n.º 573, de 10 de Maio de 1919, e pretende que façam parte dos Hospitais da Universidade de Coimbra quaisquer outros hospitais ou serviços clínicos de assistência que o Estado venha a criar na cidade de Coimbra, porque «Em Coimbra, cidade universitária com condições muito especiais, só esta- centralização,, prevista no citado decreto, pode ser vantajosa para o bom funcionamento de uma boa escola médico-cirúrgica», diz esta exposição.
Pouco confiante na restauração desta doutrina, a exposição diz também que «O conselho (da Faculdade) é de parecer que, quando existam em Coimbra outros hospitais congéneres, estes devem ser considerados como estabelecimentos de assistência de recurso, isto é, admi-
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tindo alienas os doentes que não caibam na lotação normal das diferentes clinicais dos Hospitais da Universidade. Estas clinicais constituiriam, para efeitos de hospitalização, o núcleo «filtrai de aceitação e o filtro para escolha de doentes que coubessem dentro das lotações que lhes são atribuídas».
A aceitar-se esta doutrina, quando viessem a duplicar-se instituições hospitalares, à Semelhança do que em Lisboa existe com o Hospital Escolar e os Hospitais Civis, nunca poderia estabelecer-se o estímulo de aperfeiçoamento médico, que- tilo excelentes frutos tem dado na capital.
Aos doentes sen a retirado o direito de preferência por este; ou aquele hospital e o tal hospital de assistência apareceria, aos olhos dos doentes como um depósito sem categoria.
Defende ainda a Faculdade o critério de que as diárias dos Hospitais da Universidade de Coimbra e das clínicas devem ser inferiores às das congéneres da cidade, para assim atrair os doentes e garantir uma frequência suficiente das suas instituições.
Afigura-se-me que a Faculdade expõe receios não justificados - a categoria dos «eus mestres e assistentes é bastante para garantir essa frequência, e mal iria ao futuro da Faculdade se assim não sucedesse, se fosse necessário recorrer a estes processos para ter doentes que bastassem para o ensino! Em toda a parte, na Europa e nu América, como diz o Prof. Abyami, os hospitais onde há professores, onde se faz o ensino, são sempre os mais disputados.
Além disso, já de há muito está assegurado, por determinação legal, que os doentes internados nos estabelecimentos de assistência está o « disposição da Faculdade de Medicina para servir o ensino, sempre que ela o julgue conveniente.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: a Assembleia Nacional pode pôr este problema:
A experiência realizada no Hospital de Santa Marta, desde que a Lei n.º 1 785, de 22 de Junho de 1925, lhe outorgou autonomia administrativa, é de molde a fazer-nos reflectir no que está legislado e aplicar os mesmos princípios aos três hospitais escolares? Acreditou-se suficientemente aquele regime nos vinte e oito anos de experiência?
Do ponto de vista, administrativo, já citámos há pouco o que se pasmou em 1944 nos Hospitais da Universidade de Coimbra e no Hospital Escolar de Santa Marta. Mantêm-se as coisas na mesma, visto que em 1951 os Hospitais da Universidade de Coimbra receberam um subsídio de 9 000 contos, enquanto que as verbas do de Santa Marta foram de mais de 13 000 contos. Tomando em consideração a diferença das receitas de cada um, o preço da diária dos doentes do Hospital Escolar de Santa Marta foi 100 por cento superior ao conseguido em Coimbra.
Se quiséssemos comparar, do ponto de vista administrativo e do da preparação dos médicos, o Hospital Escolar de Santa. Marta e os Hospitais Civis de Lisboa, isso levar-nos-ia muito longe.
No relatório do Decreto n.º 38 692-, que mandou cessar a autonomia, administrativa da Faculdade, afirma-se que tal se fez por se reconhecer «a necessidade de pôr termo a uma situação cujos gravíssimos inconvenientes estão evidenciados por factos do conhecimento geral».
O caso é agora posto de novo a esta Assembleia, por meio deste aviso prévio. Devem os hospitais escolares pertencer ao Ministério da Educação Nacional? E neste caso devem ser os professores da Faculdade os directores dos hospitais escolares?
O problema não é de agora, vem de muito longe. As passagens que há pouco recordei do relatório do Prof. Costa Simões e da representação da Faculdade de Medicina de Coimbra ao rei demonstram-no claramente.
As últimas exposições da Faculdade de Medicina de Coimbra reclamando para os professores da Faculdade de Medicina a direcção dos hospitais escolares são manifestamente contrárias às ideias que então foram expendidas e são contrárias a tudo o que actualmente se passa no Mundo em tal matéria.
Avisadamente se diz no relatório do Decreto n.º 38 692:
São aqueles órgãos (a direcção do Hospital de Santa Marta) constituídos por professores. Destes se reclama, (pia se votem ao culto da ciência e ao ensino. E não é razoável pedir a homens que, por força das preocupações dominantes do seu espírito, hão-de estar distanciados dos negócios administrativos se entreguem, com sacrifício da função própria, a outra para que não tem preparação nem gosto.
O que se passa a tal respeito nos outros países? Têm os países estrangeiros Faculdade* de Medicina com hospitais próprios e dirigidos por elas? No magnífico relatório da viagem do Dr. Mendes Ferreira pode ver-se que é regra nos Estados Unidos da América os hospitais universitários serem, como as respectivas Universidades, instituições particulares.
A célebre Universidade de Harvard não tem hospital privativo e serve-se, para efeito de ensino, de vários hospitais de Boston. O famoso Medical Center, de Nova Iorque, pelo contrário, serve para o ensino de pelo menos, duas Universidades - a de Colúmbia e a Presbiteriana. A maior parte do ensino é feito, não em hospitais universitários, mas em diversos hospitais e clínicas, de iniciativa, e manutenção particulares, devidamente autorizadas e ligadas às Universidades.
Na Itália, por exemplo, também o ensino é feito em hospitais que não são administrados pelos Faculdades.
A clínica universitária de fisiologia de Roma funciona no Hospital Forlanini, o mais importante centro de assistência e de investigação consagrado à tuberculose; mas a Faculdade de Medicina nada tem que ver com a administração, que está a cargo do Instituto Naziouale delia Providenze Sociale.
Em Florença, também o ensino médico se faz em doentes do Hospital Carreggi, por acordo entre ele e a Faculdade, mas em cuja administração esta não tem interferência.
Em Nápoles sucede coisa semelhante com o Hospital Carderelli.
Em Milão o Nuovo Hospedal Maggiore também serve para o ensino, por acordo com a Faculdade, mas sem (pie esta intervenha na sua administração.
Na Noruega, por exemplo, o Rikshospitalet -um grande hospital de mais de novecentas camas funciona como hospital geral e hospital universitário e é dirigido pelo Dr. Caspersen, dos serviços de saúde, que exerce aquele lugar em full-time. A Universidade faz ali o seu ensino, mas não intervém na administração senão para pagar parte dos vencimentos dos professores que actuam como chefes de clínica naquele hospital.
Na França também me não consta que qualquer hospital esteja a cargo de qualquer Faculdade de Medicina e seja reservado exclusivamente para o ensino. Este faz-se nos hospitais da assistência pública, em cuja comissão administrativa não intervêm normalmente as Faculdades de Medicina.
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E sobre administração o Sr. Mendes Ferreira disse nesse mesmo relatório «obre a sua viagem à América do Norte:
A propósito de hospitais, quero ainda referir que, em Chicago, tive ocasião de conversar largamente com o Sr. F. G. Carter, presidente da Associação Americana dos Hospitais. Entre vários assuntos, falou-me com entusiasmo da criação recente do curso universitário para administradores de hospitais, geralmente frequentado por homens com os cursos de Direito e de Ciências Económicas e Financeiras ou com larga experiência de negócios, sobretudo na administração de hotéis ou hospitais. Apesar da melhoria, sempre crescente, dos hospitais americanos, a Associação reconheceu a necessidade de dar melhor habilitação técnica aos administradores, para deles poder esperar ainda melhor governo e economia.
Na América, portanto, a tendência é para que os directores dos hospitais não sejam médicos.
As associações hospitalares da América, segundo Malcolm Eschern, opõem-se à entrada do corpo clínico na administração. Fazem também cursos de preparação de administradores de hospitais, bem como the college of the surgeons.
Na Inglaterra também os directores são recrutados entre os secretários diplomados não médicos, candidatos à administração hospitalar, que fazem dois exames anuais sobre matérias que respeitam à administração dos hospitais.
Na Alemanha os administradores dos hospitais são recrutados, sobretudo, entre os altos funcionários das grandes administrações.
Na Escandinávia a administração hospitalar pròpriamente dita é exercida por homens experimentados, assistidos por comissões técnicas.
O director dos grandes estabelecimentos (hospitais e hospícios) da França também não é médico e é nomeado pelo prefeito, sob proposta do doutor regional de saúde e assistência, após concurso entre funcionários administrativos e inspectores de serviço de saúde e da assistência.
O próprio Hospital Baujon está entregue a um director administrativo não médico, assistido por um ecónomo. Um e outro são nomeados pelo Ministério da Saúde.
A administração dos hospitais, como diz Carrillo, actual Ministro da Saúde Pública na Argentina, tem vários e complicados problemas. Nos pequenos hospitais, no seu dizer, o director é como que dono e senhor de tudo - a sua função é 80 por cento técnica e 20 por cento administrativa. Mas, à medida que o volume do hospital cresce, vão-se complicando os problemas, porque cada chefe de serviço, cioso da sua independência, quer ser senhor feudal do respectivo sector. A parte administrativa vai sendo cada vez mais importante, a ponto de num hospital de quatrocentas e oitenta camas, a função do director ser já 80 por cento administrativa e só 20 por cento técnica. No dizer daquele ilustre Ministro da Saúde Pública, que se consagrou ao estudo de duzentos novos hospitais argentinos, acima de quatrocentos e oitenta camas são tais os papéis que o director tem de ser 100 por cento administrativo.
Não parece, pois, possível conciliar nos grandes hospitais a função de professor em exercício com a de director de um hospital. Não sei como será possível arranjar tempo para preparar lições, ver os doentes, ensinar os alunos e fazer investigação, como compete a um professor, e ainda administrar um grande hospital.
Ou sofre o ensino ou compromete-se a administração, ou prejudicam-se os dois.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Estas considerações hão visam as actuais administrações; são expendidas com destino ao futuro.
Goldwater diz que o ideal seria um médico que, além dos seus conhecimentos técnicos, tivesse bom senso, conhecimentos de administração, estivesse em full-time e não tivesse clinica particular; mas Mac Eschern apresenta as dez razões que devem impedir um médico de ser director de um hospital.
Com a opinião de Goldwater coincide a do Dr. Hoelen, exposta no congresso da organização hospitalar realizado na Holanda, em 1949. Mas se o médico se não consagra ao hospital, tal como Goldwater o deseja, então o médico será um orientador superior dos autênticos administradores - dá-lhe o nome e arca com a responsabilidade. Que prejuízo não viria para o ensino e para a investigação se um professor da categoria do autor do aviso prévio fosse inutilizado como director deste grande hospital! O director custar-nos-ia, neste caso, a perda dum excelente cirurgião, dum grande professor e dum reputado investigador.
Só um escassíssimo número de hospitais, que talvez não atinja a meia dúzia em todo o Mundo, é pertença de Faculdades de Medicina e por elas administrado.
Suponho, portanto, que nem pela nossa tradição, nem pela experiência dos vinte e oito anos de Santa Marta, nem pelo que se passa na Europa e na América do Norte, deveremos alterar o que está estabelecido entre nós, atendendo os pedidos da Faculdade de Medicina de Coimbra ou a proposta do Prof. Cid dos Santos.
Quando se constituir o Ministério da Saúde - tão desejado pela classe médica e tão necessário ao País - dar-se-á melhor solução a este e a tantos outros problemas.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou dar por terminados os trabalhos de hoje. Amanhã haverá sessão à hora regimental, com a mesma ordem do dia de hoje.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Américo Cortês Pinto.
António Calheiros Lopes.
Carlos Manterá Belard.
Ricardo Malhou Durão.
Srs. Deputados que faltaram à sessão;
Abel Maria Castro de Lacerda.
Alberto Cruz.
Alexandre Aranha Furtado de Mendonça.
Antão Santos da Cunha.
ugusto César Cerqueira Gomes.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Tasco Michon de Oliveira Mourão.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João Ameal.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
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João Cerveira Pinto.
Manuel Cerqueira Gomes.
Joaquim de Moura Relvas.
Manuel Colares Pereira.
Joaquim de Pinho Brandão.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Joaquim de Sousa Machado.
Miguel Rodrigues Bastos.
Jorge Pereira Jardim.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Rui de Andrade.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
Teófilo Duarte.
Luís de Azeredo Pereira.
Venâncio Augusto Deslandes.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
O REDACTOR - Luís de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA