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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 54
ANO DE 1954 2 DE DEZEMBRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VI LEGISLATURA
SESSÃO N.º 54, EM 30 DE NOVEMBRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.
Gastão Carlos de Deus Figueira
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues
SUMARIO: - O 8r. Presidente ú aclarou aberta a sessão às 16 horas e 30 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o Diário das Sessões n.º 53.
Deu-se conta do expediente.
O Sr. Deputado Mário de Figueiredo referiu-se ao 80.º aniversário de Sr. Winston Churhill, Primeiro-Ministro da Grã-Bretanhã.
O Sr. Deputado Urgel Horta fez o elogio do bispo D. António Barroso e pediu a entrega do edifício do antigo Seminário dos Carvalhos à diocese do Porto.
O Sr. Deputado Vos Monteiro falou sobre a conclusão dos trabalhos do prolongamento da linha férrea do Limpopo antes do prazo previsto.
O Sr. Presidente do Conselho pronunciou um discurso sobre o caso da Índia.
O Sr. Presidente declarou encerrada a sessão às 18 horas e 50 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 16 horas e 20 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Aranha Furtado de Mendonça.
Alfredo Amélio Pereira da Conceição.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
António Russel de Sousa.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancella de Abreu.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Baltasar Leite Rebelo de Sousa.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Eduardo Pereira Viana.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
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Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto dos Neves.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim de Sousa Machado.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José dos Santos Bessa.
José Sarmento Vasconcelos e Castro.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís de Azeredo Pereira.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Trigueiros Sampaio.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancella de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Rui de Andrade.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 87 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 30 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário das Sessões n.º 53.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como nenhum Sr. Deputado pede a palavra, considero-o aprovado.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Vários pedindo uma amnistia a propósito do encerramento do Ano Mariano.
O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos relativos ao Fundo de Abastecimento, fornecidos pelo Ministério da Economia em satisfação do requerimento apresentado na sessão de 19 de Março pelo Sr. Deputado Daniel Barbosa.
Vão ser entregues a este Sr. Deputado.
Estão também na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia em satisfação de um requerimento apresentado na sessão de 24 de Março pelo Sr. Deputado Elísio Pimenta.
Vão ser entregues a este Sr. Deputado. Estão ainda na Mesa as informações colhidas pela Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, sobre pedidos de amnistia, em satisfação de um requerimento apresentado em 26 de Julho último pelo Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu.
Vão ser entregues a este Sr. Deputado.
Igualmente estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Justiça em satisfação do requerimento apresentado na sessão de 24 de Março pelo Sr. Deputado Assunção da Cunha Valente.
Vão ser entregues o este Sr. Deputado.
Também se encontram na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério das Obras Públicos em satisfação do requerimento apresentado em 12 de Outubro último pelo Sr. Deputado Amaral Neto.
Vão ser entregues a este Sr. Deputado.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário de Figueiredo.
O Sr. Mário de Figueiredo:- Sr. Presidente: faz hoje 80 anos um dos maiores parlamentares de todos os tempos: Sir Winston Churchill. O Mundo presta as suas homenagens a este preclaro condutor da humanidade. O Reino Unido, sem distinção das ideologias que o integram, exprime, em voz unânime, a sua devoção e afecto por ele. A nós, que a História consagra como pioneiros do pensamento universalista, que traduz o fundo uno da humanidade, e que somos os mais velhos aliados da Inglaterra, não se nos desculparia que faltássemos no coro das homenagens que lhe são tributadas. Não tenho dúvidas de que a Assembleia desejará prestar-lhas, afirmando-lhe a sua admiração e reconhecendo os seus assinalados méritos. É esta afirmação e reconhecimento o intuito das minhas palavras.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
0 orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Urgel Horta: - Sr. Presidente: pedi a V. Ex.ª o favor de me ser concedida a palavra para, como Deputado pelo Porto, falar de alguém que, não tendo ali o seu berço de nascimento, viveu, contudo, durante largos anos Intimamente preso aquela cidade, pela sua alma, pelo seu coração, pelo seu espírito.
Quero referir-me a D. António Barroso, que foi um dos maiores bispos portugueses.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - As comemorações centenárias do seu nascimento, realizadas na fidalga cidade minhota de Barcelos e na encantadora aldeia de Remelhe, sua terra natal, promovidas pela Câmara Municipal daquele concelho, resultaram numa manifestação de dulcíssimo encanto espiritual de incomparável beleza, a que se associaram o Governo da Nação, com a presença do Sr. Ministro do Ultramar, os mais altos dignitários da Igreja, os representantes da alta cultura e o povo, sempre pronto a fazer justiça a quem é digno dela.
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A vida do grande pioneiro da Igreja - facho de luz brilhante na escuridão de uma noite de trevas - tomou proporções lendárias pela sua acção notabilíssima ao serviço da Pátria e do Evangelho.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Deus, na sua infinita misericórdia, fez esse homem detentor de todas as virtudes, as mais raras e as mais nobres; o mais valoroso e o mais corajoso soldado da sua milícia, na luta apologética e doutrinária sustentada na pregação da paz, do amor, da caridade, que ele largamente difundiu e praticou.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Como grande missionário, o seu mais elevado título, pela projecção justificadamente adquirida, foi D. António Barroso um grande português, herói consagrado da nossa epopeia ultramarina, que a Nação, em terras longínquas da Ásia e da África, prestou os mais assinalados serviços.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Viveu para a sua pátria como viveu para a Igreja, sabendo engrandecê-la e honrá-la. Os homens tornam-se verdadeiramente grandes quando sabem lutar, intemerata e sinceramente, pelos grandes ideais que abraçaram com carinho, com amor e com paixão.
E o grande bispo do Porto, na tarefa magnifica de dilatar a Fé e o Império, encarnou gloriosamente o papel de soldado e missionário, levando o seu apostolado a todas as regiões onde havia necessidade de ser ouvida e escutada a palavra de Deus e respeitados o nome e a bandeira de Portugal.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A sua acção missionária, coroa valiosa da maior glória sacerdotal, era Angola, em Moçambique e na Índia ficou brilhantemente documentada.
Mas foi especialmente no Congo que a sua actividade, o seu esforço, a sua coragem e a sua fé obraram prodígios na evangelização dos povos, a quem abnegadamente se deu e serviu. E ali, nesse território em desagregação iminente e perigosa, batido pelo vento da desnacionalização, soube, como os grandes colonialistas, no número dos quais enfileira, impor pela sua acção enérgica e paternal os direitos da soberania portuguesa.
Ele o afirma dizendo: «Tudo ali eram ruínas. A catedral havia ruído. Todo o deslumbre da nossa formosa língua desaparecera completamente. Era sinistro! Quadro horroroso: o passado morrera! Como ressuscitá-lo? Nunca a cruz mutilada de Alexandre Herculano me lembrou tanto como ao ver Deus e Portugal mortos na alma dos pretos».
Mas o milagre da ressurreição operou-o o grande bispo, sabendo impor ao rei do Congo e aos seus súbditos o nome de Portugal.
Obra duma grande personalidade, cuja alma cristianíssima atravessa a vida, alcança os paramos do infinito, aproximando-se de Deus, no seu eterno destino, orando em seu louvor, pedindo a protecção para a sua pátria!
E foi ouvido na sua súplica. E elevou-se cada vez mais no desempenho da missão civilizadora, educadora, altamente dignificante da condição humana em defesa dos preceitos do Evangelho, que difundiu e ensinou com o seu verbo eloquente, por todas as províncias ultramarinas no nosso império.
D. António Barroso foi mais tarde sagrado bispo da diocese do Porto e grande se revelou também no seu alto sacerdócio. Querido, respeitado e amado por todos
quantos sentiram a chama viva da Fé, que ele sabia acender e animar na alma do povo. Infinitamente bom, jamais negou protecção a todos quantos dele se abeiravam e lha pediam.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O sacerdote de Cristo, que lutou apaixonadamente por Deus e pela Pátria, e que, subindo o seu calvário, arrostou com todos os perigos e com todas as contrariedades, soube santamente viver com resignação e coragem as agruras do exílio e as horas amargas da prisão.
O bispo missionário, maltratado, perseguido e desterrado, sem outra culpa que não fosse a fidelidade às leis e às doutrinas da Igreja, imutável nos seus postulados e vitoriosa na sua acção, chama abrasando almas sedentas de fé, vive hoje na memória de todos os portugueses.
E o bronze e o granito do seu monumento erigido no coração de Barcelos recordarão a obra de caridade, fé e amor de um notável ministro da Igreja.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Mas não basta o seu monumento ou as brilhantes teses apresentadas e discutidas no Congresso Missionário realizado em Barcelos para satisfazer aspirações e anseios bem justificados, honrando e glorificando a insigne figura desse prestigioso ministro de Cristo.
O Seminário dos Carvalhos, magnifico edifício de admirável localização, que o cardeal D. Américo mandou edificar à custa dos maiores sacrifícios materiais; grande escola-internato para a formação de sacerdotes, obededecendo a todos os requisitos necessários à alta missão para que foi criado e a que D. António Barroso dedicava um carinho e um interesse bem compreensível, foi em triste época de perseguição religiosa tirado aos seus legítimos possuidores com o mais absoluto desprezo pela hierarquia eclesiástica.
Pois, Sr. Presidente, as comemorações que acabam de realizar-se, e a que se associou o Governo da Nação, não teriam a finalidade que lhes é devida sem a reparação para a qual chamamos a atenção dos altos poderes do Estado.
Interpretando o sentir do Congresso Missionário e em nome da lei ultrajada e da justiça ofendida, nós pedimos seja restituída aos seus legítimos donos, em toda a sua plenitude, a propriedade desse seminário, que, contra todos os preceitos da razão, da moral e da justiça, lhe havia sido confiscada.
Entregue-se à diocese do Porto o seu seminário, o Seminário dos Carvalhos, e o espirito do grande bispo, que deu à Pátria honra e glória, continuará velando por nós, na alta missão do robustecimento da Fé e engrandecimento do Império. Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Vaz Monteiro: - Sr. Presidente: deu-se recentemente um acontecimento em Moçambique, constituído pela antecipação do prazo previsto na execução das obras de prolongamento do caminho de ferro do Limpopo, que merece atenção especial e o interesse desta Assembleia, porque denuncia a boa vizinhança que existe entre Moçambique e a Rodésia, põe em evidência a nossa prestimosa e activa colaboração internacional, e, além disto, aquele acontecimento é uma manifestação do brio, labor e patriotismo dos portugueses que trabalham e lutam em terras do ultramar.
Vozes: - Muito bem!
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O Orador: - O brio nacional e a colaboração e auxilio aos poises vizinhos e amigos foi sempre timbre dos Portugueses ; mas o acto resultante da antecipação do prazo que estava previsto para conclusão do caminho de ferro dentro do território nacional demandou tanto esforço, patriotismo e dedicação do pessoal português a quem se entregou a orientação e a execução dos trabalhos que justo é manifestar o nosso reconhecimento.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: bastou que a Rodésia nos pedisse a máxima urgência no assentamento da linha até à fronteira - com o fim de a ligar o mais cedo possível ao caminho de ferro rodesiano e, assim, não haver atraso por culpa dos Portugueses na economia dos seus transportes - para que a partir desse momento os ferroviários portugueses de Moçambique e o pessoal indígena assalariado redobrassem de esforços, trabalhando dia e noite, de maneira a mostrar aos Rodesianos o nosso interesse pelo seu pedido, a excelência dos nossos técnicos e o valor da mão-de-obra portuguesa.
Foi para enaltecer este esforço e dedicação que pedi a palavra a V. Ex.ª, Sr. Presidente.
Mas entendo ser necessário dizer, para maior esclarecimento, que na província ultramarina de Moçambique e no Limpopo há duas grandes obras em execução e ambas igualmente incluídas no Plano de Fomento.
Uma diz respeito ao prolongamento do caminho de ferro do Limpopo até à fronteira com a Rodésia, e a sua execução foi entregue à Direcção dos Serviços dos Portos, Caminhos de Ferro e Transportes de Moçambique; a outra está a ser executada com toda a eficiência e dinamismo pela brigada técnica do fomento e povoamento e compreende o grandioso empreendimento de colonização que em breve se efectivará no vale do rio Limpopo com a construção da ponte-açude, canais, diques e valas adaptadas ao regadio.
São duas obras de tão extraordinária importância para a vida e progresso de Moçambique que desnecessário será encarecê-las. Hão-de ficar naquela província ultramarina a marcar e perpetuar a época portuguesa de Salazar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas, Sr. Presidente, por hoje desejo apenas referir-me ao prolongamento do caminho de ferro e só por motivo do enorme esforço que se fez para antecipar o prazo previsto na sua execução.
Estava previsto que o assentamento da linha férrea deveria terminar no fim de Dezembro do próximo ano, tanto no território português como no rodesiano; isto é, que a via deveria atingir a fronteira, dum e doutro lado, no final do ano de 1955. E assim era de prever, pois, na ocasião em que se iniciaram os trabalhos de prolongamento das duas vias para se encontrarem e ligarem num ponto da fronteira, tinham á sua frente a mesma distância a percorrer, cerca de 300 km para cada via.
E mais se previra que aqueles que primeiramente atingissem a fronteira fossem depois ajudar os outros no assentamento da linha no território vizinho.
Como nos fosse depois solicitada urgência no andamento dos trabalhos para não suceder que viesse a ser prejudicado o tráfego rodesiano com alguma demora nossa, despertou-se o maior interesse nos Portugueses em quererem ser úteis aos vizinhos, mas agora impulsionados pelo espirito ferroviário moçambicano e pelo amor à Pátria Portuguesa.
E daqui o que resultou?
O último carril do caminho de ferro do Limpopo foi assente na primeira quinzena de Novembro deste ano; e, portanto, chegámos à fronteira de Moçambique com a Rodésia com uma antecipação de treze meses e meio sobre o prazo previsto.
É aos portugueses que à custa do seu enorme esforço levaram a cabo esta obra, com antecipação superior a um ano, que eu quero prestar o meu reconhecimento.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Os trabalhos foram iniciados em l de Janeiro de 1953, tendo-se construído no nosso território as seguintes obras: ponte provisória sobre o rio Limpopo, com 600 m de comprimento; a estrada de serviço, com 300 km de extensão; 119 pontões e aquedutos de cimento armado; uma estação e três tomadas de água; além de se terem removido na construção da linha cerca de 2 000 000 m3 de terra e derrubado milhares de árvores para abrir caminho.
A ponte provisória, com 6OO m de comprimento e 9 m de altura, é necessária para permitir o transporte, por comboio, até ao local das obras de todos os materiais necessários ao prosseguimento da via e enquanto não estiver construída a ponte-açude definitiva.
Antes de a ponte provisória existir o transporte era feito por transbordo.
Quer isto dizer que no território português houve grandes dificuldades a vencer e muito trabalho a realizar, não sendo somente assentar carris sobre chulipas até se atingir a fronteira.
Eu chamo a atenção da Assembleia para o grande esforço que os Portugueses realizaram em Moçambique no prolongamento do caminho de ferro do Limpopo até à fronteira, não para diminuir ou desmerecer o trabalho alheio, e, neste caso, o dos Rodesianos, que todos sabemos ser do melhor que há em África, mas para se atribuir o verdadeiro e justo valor aos serviços do Estado, à organização portuguesa, aos técnicos portugueses e à nossa mão-de-obra indígena.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - É preciso que se saiba que estes trabalhos do prolongamento do caminho de ferro do Limpopo foram executados, por administração directa, pelos serviços dos portos, caminhos de ferro e transportes da província, com técnicos, operários e todo o pessoal exclusivamente português.
O esforço de engenheiros tisnados pelo sol de África e banhados em suor, de brigadas de pessoal ferroviário e de milhares de indígenas contratados é digno de registo especial, pois ultrapassou o que fora previsto e assim se fez subir o nome de Portugal.
Todos se esforçaram certamente para cumprir o dever que as circunstâncias impunham, incluindo o pessoal do quadro administrativo daquela província, para que tão folgadamente fosse antecipado o prazo previsto na conclusão da obra.
E porque fomos nós os primeiros a atingir a fronteira, vamos ter a satisfação de ir ajudar os nossos amigos e vizinhos rodesianos no assentamento da sua linha na extensão de 60 km.
A antecipação alcançada deve, pois, ser considerada como uma verdadeira vitória obtida pelos Portugueses em África.
É por isso que deste lugar felicito o Sr. Ministro do Ultramar, comandante Sarmento Rodrigues, que tão grande impulso tem dado à execução do Plano de Fomento nas províncias ultramarinas.
Vozes: - Muito bem!
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O Orador: - Ainda recentemente resolveu presidir à sessão do Conselho Técnico de Fomento do Ultramar, para assim mais directamente intervir na apreciação dos projectos de obras portuárias de Macau, de S. Vicente e Santo Antão de Cabo Verde e do caminho de ferro do Congo, incluídas no Plano de Fomento.
Deve-lhe, pois, caber parte importante no êxito alcançado na conclusão antecipada do prolongamento do caminho de ferro do Limpopo. Certamente que sem a sua acção atenta aos progressos da província de Moçambique, por onde foi eleito Deputado à Assembleia Nacional, não se teria obtido êxito tão retumbante, que causou justificado espanto, sobretudo nos meios ferroviários africanos.
Daqui lhe dirijo as minhas homenagens e felicitações.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E a todos aqueles que por qualquer forma contribuíram para a realização deste extraordinário e impressionante acontecimento eu torno extensivas as homenagens, certo de que prestaram assinalado serviço à Pátria.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
Q Sr. Presidente: - Não está inscrito mais nenhum Sr. Deputado para usar da palavra no período de antes da ordem do dia.
No intervalo das sessões desta Câmara faleceu o Sr. José Cardoso de Matos, Deputado pelo ultramar. Certamente a Câmara desejará exprimir o seu pesar pelo falecimento deste nosso ilustre colega.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Como a Câmara sabe, estava marcada para ordem do dia de boje a efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Teófilo Duarte sobre a questão a Índia Portuguesa. Posteriormente, soube que o Sr. Presidente do Conselho desejava vir a esta Assembleia fazer uma exposição em que focaria essa questão.
Assim, antes de entrar na ordem do dia, entendo que a Câmara quererá ouvir o Sr. Presidente do Conselho, que certamente fornecerá uma orientação esclarecida para o desenvolvimento do referido aviso prévio.
Neste momento, pois, interrompo a sessão para introduzir na sala o Sr. Presidente do Conselho.
Está interrompida a sessão.
Eram 17 horas.
Entra na sala o Sr. Presidente do Conselho, acompanhado do Presidente e Mesa da Assembleia. O Sr. Presidente do Conselho tomou lugar à direita do Sr. Presidente da Assembleia.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Eram 17 horas e 10 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai usar da palavra, como é do seu direito, o Sr. Presidente do Conselho.
O Sr. Presidente do Conselho: - Sr. Presidente: a Câmara desejará ser informada, por declaração directa do Governo, acerca da questão de Goa, ou seja do conjunto de problemas suscitados pelas pretensões da União Indiana à integração, debaixo da sua soberania, do Estado Português da India. São conhecidos os principais factos e mesmo as posições fundamentais e atitudes assumidas pelos dois Governos. Não cansarei a Assembleia com o seu relato nem repetirei o que em declarações anteriores pude dizer dos principais aspectos, políticos e jurídicos, desta questão.
Depois dessas minhas declarações, porém, verificaram-se e estão a decorrer factos da maior gravidade relativamente aos territórios portugueses; nota-se excepcional virulência em campanhas conduzidas por elementos mais ou menos responsáveis da política e da imprensa da União Indiana; desenvolve-se toda uma teoria de reclamações e protestos infundados, ao mesmo tempo que chegam a desconcertar as respostas às queixas por nós apresentados contra a violação de direitos que se suporiam por toda a parte reconhecidos e respeitados; conhece-se a reacção internacional a este propósito: estamos talvez em condições de formar um juízo acerca da situação, nascendo a minha, dúvida apenas da dificuldade de pôr de acordo, à face da lógica ocidental, o pensamento, as afirmações e os actos do Primeiro-Ministro da União Indiana e do seu Governo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Goa e a União Indiana.
Duas posições parecem nítidas e incontestadas do lado da União: a primeira é a afirmação do direito da União Indiana a que o Estado da índia se integre nos seus territórios; a segunda é que a mesma integração há-de fazer-se por meios pacíficos, sem recursos portanto à violência. A integração de Goa na soberania de Nova Deli não é uma perspectiva ou antevisão da evolução histórica: representa um objectivo político que os actuais governantes supõem dever realizar em cumprimento da sua missão. Mas para que um objectivo político em que tão visceralmente se encontra envolvida uma soberania estrangeira possa vir a realizar-se sem violência é necessário que uma de duas circunstancias se verifique: a possibilidade, jurídica e de facto, de essa soberania ser espontaneamente abandonada ou a existência de uma vontade unânime, firme, irrefragável, do povo goês, que tornasse impossível o exercício do poder público em Goa. Estas são as principais ilusões sobre que as construções político-jurídicas da União Indiana têm procurado erguer-se, sem consistência, porém, para se manterem erguidas.
O pretenso direito da União Indiana a Goa têm-no baseado os seus defensores na geografia, na história, na identidade de raça, língua e cultura, no princípio da autodeterminação dos povos, ou seja na vontade dos Goeses, e um ou outro no marcado desnível de grandeza ou de força que legitimaria o acto de o mais forte ir alargando, à custa de pequenos Estados, a área dos seus territórios.
Esta última tese não é mesmo de discutir; vejamos as restantes.
Nunca a geografia legitimou direitos soberanos, nem mesmo, como é claramente visível, na península do Indostão. Apesar da influência que os factores geográficos exercem na história da humanidade, através de dois elementos fundamentais - as possibilidades de vida e as facilidades de defesa do agregado social -, são sempre os factos históricos, e não a configuração geográfica, que definem fronteiras, estabelecem direitos, impõem soberanias. E este é o caso português da índia.
Pretender a União Indiana que retroceda a história ao século de 500, apresentar-se hoje como existente potencialmente nessa data, ou arvorar-se em legítima herdeira dos dominadores que ali encontrámos, é uma construção de sonhadores estáticos, não de dinâmicos construtores de historia, como pretendem ser os que o Reino Unido receberam um Império. Se houvéssemos de aferir a legitimidade das soberanias pelas situações
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existentes cinco séculos atrás, que Estado, que nação, que soberania, que fronteiras, na Europa, na América, na Ásia ou na Oceânia, se poderiam manter ou ter direito a existir? Que revisão apocalíptica ou que ordenamento catastrófico não seria necessário? Quantos séculos viriam a exigir-se para a consolidação de tratados, a delimitação de fronteiras, a estratificação de entendimentos e formas de convivência entre os povos? Referem-se estas teses, não pelo seu perigo imediato para o Mundo, mas pelo delírio da sua própria extravagância.
Fala-se hoje muito na autodeterminação dos povos, como corolário do direito natural de os agregados humanos dirigirem por si os seus próprios destinos. Fora da afirmação solene de princípios tanto em moda no fecho das conferências internacionais, aquela invocação aparece-nos feita a maior parte das vezes ao sabor de intuitos políticos ou necessidades de ocasião e, portanto, sem o rigor correspondente à transcendente dificuldade do assunto. O nosso exemplo pode talvez ilustrar esta.
Em virtude da orientação que tomaram o nosso desenvolvimento e agência no Mundo, adveio que a Nação Portuguesa se formou, complexa na sua estrutura, dispersa nos seus territórios, diversificada nos povos que a constituem, sem prejuízo, antes com bem vincada afirmação, de uma unidade nacional, intencionalmente prosseguida e consolidada pelo esforço de muitas gerações. Nestas circunstâncias, Portugal não pode, com a ligeireza corrente, professai princípios que seriam agentes de dissociação e de quebra da sua integridade - no fundo a negação de si próprio, sem vantagens visíveis mais que para terceiros (porque há sempre neste Mundo vário quem esteja disposto a colher os frutos das tolas filosofias alheias). Esta prudente reserva não quer, no entanto, dizer que não haja no aludido princípio uma parte de justiça e de razão.
De facto, quando um povo, pela sua base territorial e desenvolvimento demográfico, pelos laços e produtos do sangue, por essa misteriosa criação de uma alma colectiva, representa profunda diferenciação, se não antinomia de interesses, e atinge, pela existência de um largo escol responsável, o que se pode chamar a maturidade política - a autodeterminação traduz-se pela constituição reconhecida de um novo Estado independente. Não negamos, pois, o facto nem o princípio, e quem aceitou, depois de três séculos de íntima história comum, a separação amigável e passou a rever-se na independência do Brasil pode bem discutir problemas desta ordem.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas é este o caso de Goa? Adiante me referirei ao ponto com mais desenvolvimento. Aqui apenas observo que o princípio não só é mal invocado, como de modo algum pode sê-lo pela União Indiana. Em primeiro lugar, o Governo da união não pretende a independência do Estado Português da Índia, mas a integração dos territórios no seu próprio território, a fusão das populações na sua massa de população. Em segundo lugar, todos poderão aceitar o princípio da autodeterminação dos povos menos a União Indiana. Quando esse princípio pudesse ser pacificamente invocado e receber satisfação, a União Indiana voltaria rapidamente à poeira de Estados e soberanias e à simples expressão geográfica que através dos tempos quase sempre fora.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Goa seria ainda Portugal e já as numerosas raças, línguas e religiões do Indostão haviam de constituir bases de edificações políticas muito mais diferenciadas que as nossas províncias ultramarinas.
Isto me leva à consideração das últimas razões invocadas do lado da União Indiana.
Dos numerosos discursos feitos no Parlamento de Nova Deli e das declarações a agrupamentos políticos deduz-se que, ao princípio destes lamentáveis incidentes, os dirigentes da União Indiana pareciam estar convencidos, como de duas evidências, do seguinte: inexistência de qualquer diferenciação de Goa em relação à índia; vontade dos Goeses de deixarem de ser súbditos inferiorizados de uma potência colonial, para se converterem em cidadãos de um Estado soberano. Essas populações, amputadas da mãe-India, não teriam recebido, com a mistura de sangue, a influência de uma cultura e a cristianização do maior número, os benefícios de uma elevação social e de uma categorização política. Continuariam párias na sua própria terra, dominada ainda por estranhos, insensíveis e parados ante o movimento da história. Assim o caso afigurara-se, em precipitado simplismo; como libertação de concidadãos e pura questão de política interna.
Os factos posteriormente verificados, as alegações produzidas, a observação porventura mais cuidadosa, levaram, porém, o Primeiro-Ministro, Sr. Nehru, às seguintes posições, que consideramos benefícios adquiridos em relação aos seus modos de ver anteriores:
Goa constitui de facto uma unidade cultural, linguística, racial, diferenciada socialmente da União Indiana pela sua ocidentalização; e essas características diferenciais têm de ser respeitadas e mantidas;
A questão de Goa não é de modo algum questão interna da União, mas questão de política externa, por contender com uma soberania legítima estrangeira, sempre reconhecida como tal e garantida por tratados internacionais.
Nós consideramos estas duas atitudes como posições mestras na questão, das quais muitas conclusões se hão-de tirar, e a primeira é já que a «falta de liberdades democráticas em Goa» não tem de ser rebatida por nós quando alegada pela União Indiana. Podíamos confrontar constituições, textos de lei, práticas de vida, mas não são questões que em princípio possamos discutir com potências estrangeiras a nossa organização política e as prerrogativas dos cidadãos portugueses.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Isto é simples consequência da não intervenção de um Estado na vida interna de outro, tão solenemente afirmada pela União Indiana no acordo do Tibete.
O desejo, porém, de nada deixar por esclarecer nesta matéria induz-me a aceitar por momentos a discussão sobre o problema de saber se a falta de certa liberdade em Goa prejudica a prova de uma asserção da União Indiana.
Nós afirmamos o seguinte: Goa encontra-se ligada sentimental e patriòticamente a Portugal e os Goeses não têm mostrado preferir a recente soberania indiana à do velho país que teve, pelo menos, o mérito de, em recuados tempos, abrir à Índia os caminhos marítimos do Mundo e pô-la em contacto com a civilização ocidental.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Do lado oposto afirma-se que, se Goa não se tem levantado a favor da sua integração na União Indiana, é que não tem liberdade para isso.
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Decido não fugir ao argumento e respondo.
É perfeitamente exacto que no Estado Português da Índia não podem os cidadãos portugueses, sem incorrer em responsabilidade, manifestar publicamente preferência pela sua ligação à União Indiana e agir em conformidade com qualquer intento desse género. É assim em Goa; é assim em Portugal inteiro; é assim em todo o Mundo, porque a cidadania não é objecto de escolha, mas dever natural de que cada um não pode libertar-se à sua vontade, negando-se à pátria.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - É assim também na União Indiana, com a estranha agravante de, ao contrário do admitido nos povos civilizados, não poderem ali os Goeses manifestar sem risco o seu desejo de que continue portuguesa a sua terra.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Este o direito ou a negação dele; mas os factos, só os factos, também não permitem a dedução de que os Goeses escolheriam como seu futuro a anexação de Goa à União Indiana. Há Goeses em território português, há Goeses em territórios da União, e muitos sob outras soberanias que não podemos influenciar. E o comportamento da grande massa, por toda a parte, é idêntico - de fidelidade à Nação Portuguesa. Nem as pressões materiais e morais exercidas na mesma União Indiana, nem as mil formas de captação ou aliciamento que estão sendo usadas fora dela - como no Quénia, no Tanganica, no Paquistão -, têm conseguido demover estes Portugueses de confessar o seu portuguesismo. Eu quero deixar aqui uma palavra de comovida admiração pela fidelidade patriótica de que têm dado provas, por vezes em bem difíceis circunstâncias, tantos homens, a muitos dos quais Portugal dá apenas a honra de um nome e o prestígio de uma história.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A atitude destes homens permite-me reduzir a nada a importância do argumento da União de que não há em Goa liberdade para que os Goeses se manifestem a seu favor. Mas há essa liberdade na União Indiana, e esta não tem sido suficiente para converter à sua causa a centena de milhares de Goeses que ali angariam a vida.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Penso ter analisado com inteira objectividade os fundamentos em que se baseiam as pretensões da União Indiana. Espero agora examinar com a mesma objectividade, nos seus desenvolvimentos efectivos, o método da «não violência» aplicado à consecução dos fins que a União se propõe. Gostaria de poder determinar a essência ou conteúdo daquele conceito estranho e confrontá-lo com os deveres jurídicos que a União incumbem como membro da sociedade internacional.
O pacifismo, a neutralidade e a «não violência» pretende a União Indiana que definam internacionalmente a sua orientação externa. A União tem a consciência de haver conquistado no Mundo com o seu pacifismo uma fama útil: ela é o seu bordão, o seu arrimo, a fonte das suas múltiplas intervenções nos negócios alheios e do prestígio dos seus mais altos dirigentes. É-lhe essencial não destruir esse mito, mas também é necessário que esse mito a não estorve nas suas ambições, para o que, fazendo apelo ao fundo da raça e aos ensinamentos de alguns doutrinadores, criou, também para uso externo, o mito da «não violência». Não podemos duvidar de que o método nos é aplicado com toda a sua pureza, visto que, segundo declaração do Primeiro-Ministro do Estado ou província de Bombaim, a política em relação a Goa representa um bom test - é o caso típico, o padrão, a demonstração cabal dos métodos especiais indianos na condução dos negócios internacionais (declaração ao correspondente de Christian Science Monitor de 23 de Julho de 1954).
Factos. Em 21 de Julho, bandos constituídos por cidadãos da, União Indiana, partidos desse Estado, muitos com armas de guerra e enquadrados por forças regulares da polícia e parece que das tropas de reserva da União, semifardados ou em traje civil, assaltaram o enclave de Dadrá, dominando depois de alguma luta, de que resultaram mortos e feridos, a pequena força policial de que ali se dispunha. Dias depois o mesmo processo foi empregado, com forças mais numerosas, noutro enclave - o de Nagar Aveli -, em que a resistência local pôde ser prolongada por bastantes dias, sendo os agentes da nossa administração aprisionados na fronteira quando parlamentavam com as autoridades indianas.
Para estas operações a União Indiana preparou previamente as condições de êxito, não permitindo de bastante tempo antes o reforço das pequenas guarnições locais e cercando Damão, de onde poderia ser enviado esse reforço, com tão numerosos efectivos que temos de considerá-los desproporcionados à simples vigilância da fronteira. Esses elementos, sucessivamente reforçados, mantêm ainda o cerco, o que significa garantir a União com forças suas a situação criada nos territórios portugueses, pois que sistematicamente recusa a Portugal a passagem para que agentes regulares restabeleçam a ordem.
Não se sabe precisamente quem é ou quem representa nos enclaves a autoridade; sabe-se no entanto que para a União são encaminhados os dinheiros públicos percebidos e altos funcionários seus vigiam e se arrogam a chefia de serviços, que aliás não funcionam. De facto não há ordem, nem justiça, nem autoridade geralmente obedecida: há o caos na administração; há a insegurança pública, o regime de terror, a miséria na vida privada.
Este é o resumo dos factos, tal como os posso extractar dos relatórios oficiais e das informações colhidas. Não podemos duvidar da sua exactidão substancial, desde que se encontram em território português alguns dos que intervieram, resistindo, nos actos de que resultou o esbulho da soberania portuguesa. Evidentemente que farei as correcções que forem devidas, desde que uma observação directa possa ser feita por qualquer dos métodos oportunamente sugeridos pelo Governo Português.
Na verdade, em face da situação criada, o Governo solicitou da União:
Que fosse permitida e passagem de forças portuguesas para restabelecer a ordem nos territórios: recusado;
Que fosse autorizada a passagem de delegados desarmados das autoridades de Damão, para ao menos investigarem o que se estava passando e poderem informar das necessidades das populações: recusado;
Que fosse admitida a observação dos factos de violação ocorridos nos enclaves e territórios limítrofes por observadores internacionais. Aceites em princípio conversações para negociar a ida de observadores internacionais que verificassem toda
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a situação no Estado Português da Índia, enquadramento especioso da proposta portuguesa nas teias de aranha de negociações indefinidas no objecto e ilimitadas no tempo: praticamente recusado;
Que fosse no menos permitida a ida de observadores internacionais escolhidos pelo Governo Português para examinarem a situação em Dadrá e Nagar Aveli: recusado.
Não analiso as alegações em que se basearam as recusas. Estas são apenas filhas da obstinação e da presunção da força que, cansada de apresentar razões inválidas, desiste mesmo, em certo momento, de se justificar. Nós compreendemos, aliás, muito bem por que têm de ser mantidos sob rigoroso sequestro e longe de vistas importunas os referidos territórios, cujos habitantes anseiam por que se encontre solução para libertá-los da miserável situação em que se encontram.
Até aqui o que se refere aos enclaves. No que respeita às relações entre a União Indiana e Goa, Damão e Diu, territórios contíguos à União mas servidos pelo mar, os esforços de integração pelo processo da «não violência» têm-se desenvolvido pelos meios seguintes:
Bloqueio, com a prática proibição do comércio entre a União e os territórios portugueses;
Apoio oficial às decisões impostas pelos extremistas às organizações sindicais dos portos da União para tentarem alargar o bloqueio em relação a terceiros países, recusando serviços aos navios que demandem Goa;
Recusa de autorização para o trânsito das pessoas entre os territórios encravados e os restantes territórios portugueses; dificuldades administrativas, roçando pela recusa total à passagem ou trânsito de estrangeiros ou nacionais dos dois países em qualquer sentido;
Dificultação ou recusa de transferência das economias dos Goeses que trabalham na União Indiana para as famílias residentes em Goa;
Demora abusiva e censura da correspondência proveniente ou em trânsito pela União;
Actos de abordagem e mesmo de pirataria contra barcos de pesca ou de comércio por barcos dos serviços da União;
Preparação e alistamento de grupos, pequenos à falta de gente para serem grandes, constituídos por satiagrais - método de perturbação da ordem pública muito usado na União Indiana e aí severamente reprimido, e que entre nós nem mesmo podia lograr compreensão para a parte do sacrifício pessoal que a oferta do satiagra envolve, desde que se verifica não se tratar de rasgos espontâneos e actos gratuitos, mas promovidos, encomendados e pagos a tanto por «mártir».
O Primeiro-Ministro da União declarou em certo momento não ser permitida aos não Goeses a saída do território para manifestações daquele género. Que a decisão foi alguma vez cumprida deduz-se da intervenção que tiveram nalguns ajuntamentos na fronteira comum as autoridades da União Indiana. Que a ordem não é absoluta ou rigorosa depreende-se do facto de boa parte dos indivíduos presos em Goa não terem a nacionalidade portuguesa.
Temos assim duas ordens de situações e, portanto, duas ordens de problemas: os derivados da existência de territórios encravados na União e suas relações com o Estado soberano e os problemas e relações de simples vizinhança entre a União Indiana e os territórios contíguos do Estado Português da Índia. Num e noutro caso a política seguida é confessadamente a da «não violência».
É bastante difícil a um cérebro ocidental classificar dessa forma os factos ocorridos nos enclaves quando se verificou a intervenção de forças armadas da União Indiana, comandadas pelos seus chefes; o fornecimento de armas de guerra e de outros meios de invasão; actos agressivos, com mortos, feridos e prisioneiros, e o impedimento, pela força ostensivamente postada na fronteira, do exercício do poder legítimo. E quanto a todos os outros actos, que se destinam a estiolar pela fome ou a perder por eventual revolta os habitantes dos territórios vizinhos, deduz-se que a «não violência» se concilia com o desrespeito dos leis e dos tratados, a violação das imposições do direito natural, o desconhecimento dos simples deveres de humanidade, a inteira ausência de cooperação entre os povos, e abrange, pôr outro lado, todo o comportamento hostil, sem limitações jurídicas ou morais, contra as pessoas, as famílias, os povos e direitos de umas e de outros.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Numa palavra, a «não violência» compreende tudo ou é susceptível de tudo compreender menos a guerra, declarada pelos governos e conduzida, pelos exércitos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Suponho não exagerar e em matéria tão delicada, dadas as conclusões a que chego, gostaria de ver com exactidão.
Ponho agora o problema: tem a União Indiana o direito de se comportar como comporta? Podo legìtimamente prosseguir uma política que, embora chamada de «não violência», se define como deixei dito P A minha resposta é negativa e desenvolve-se como segue: desde, que a União Indiana pretende constituir um elemento da sociedade internacional e designadamente faz parte das Nações Unidas, cujos princípios se obrigou a aplicar e defender, já não são as suas aliás abstrusas noções que ela pode impor arbitrariamente ao Mundo, mas os conceitos e as normas de convivência dessa sociedade que é obrigada a seguir e a respeitar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Parece julgar-se na União Indiana que não há mais enclaves na terra do que Dadrá e Nagar Aveli.
A existência de enclaves, de que há numerosos exemplos - a própria União Indiana possuía um nos territórios de Heiderabade antes de anexar esse Estado pela força -, não é mais que a aplicação ou extensão do caso dos Estados interiores, tão legitimamente independentes como os outros e tão reconhecidamente soberanos como os Estados com ligação directa para o mar livre.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mesmo que as situações não tenham sido expressamente definidas e asseguradas por tratados, o direito internacional garante plenamente a esses Estados, como inerente ao direito de viver, o direito de se governarem, de trabalharem, de comerciarem com o exterior. Nunca ocorreu que, em aplicação de um regime de paz, a Suíça, o Luxemburgo, a Checoslováquia possam ser privados da possibilidade de manter relações comerciais através dos países limítrofes, rece-
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ber desses e dos outros mercadorias, energia, pessoas que desejam deslocar-se; nem nunca alguém ousou defender a tese de que, para acabar com a categoria de Estados interiores, se deve reconhecer às potências limítrofes anexá-los pela força, ou pela «pacífica não violência» da União Indiana.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não se nega que a existência de enclaves pode constituir fonte de algumas dificuldades para uma ou outra administração: as situações são, porém, análogas e os problemas que suscitam da mesma índole dos dos Estados interiores. É tal a força do princípio do direito natural - a possibilidade de ser exercido um direito que se reconhece - que na prática nunca se houve por possíveis mais que duas atitudes: ou negar a soberania ou reconhecê-la, com o reconhecimento implícito do direito de passagem aos agentes da autoridade legítima, para o fim de se assegurarem as condições de vida legal e a satisfação das necessidades das populações.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Só a União Indiana tenta abrir um terceiro caminho, e por isso se encontra na posição indefensável e única de nem poder anexar os enclaves para não comprovar um acto de guerra, contra a soberania que ela própria reconhece, nem deixá-los viver sob a única soberania legítima e possível - a soberania portuguesa.
A União não recebeu só territórios, autoridade, interesses, direitos; herdou também as situações jurídicas e de facto, preexistentes à independência, e que a Inglaterra reconhecia e não podia alterar unilateralmente, e a quem lhe sucedeu cumpre fielmente respeitar.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - As relações de boa vizinhança consagradas no preâmbulo da Carta das Nações Unidas impõem igualmente à União Indiana, em face de Goa, não só a abstenção dos actos inamigáveis e hostis que ilegitimamente inclui na sua política de «não violência», mas a prática de actos positivos de convivência e colaboração. Eu não podia exprimir-me melhor a este respeito do que o próprio Sr. Nehru, quando afirmou recentemente no seu discurso de Pequim: «a paz não é só a ausência da guerra; a paz é positiva e só existe verdadeiramente numa atmosfera de cooperação entre as nações». Para não se poder afirmar que o Primeiro-Ministro só pensa com correcção nos domínios do universal, esperemos que rectifique no pensamento e na acção os seus conceitos de não violência, de paz, de boa vizinhança e cooperação fraterna, conceitos que tem mobilizado contra Portugal, mas repugnam à consciência do mundo civilizado a que deseja pertencer.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Goa e o Mundo.
Através das ameaças e actos agressivos de que tem sido objecto e vítima, Goa atraiu durante os últimos meses a atenção e despertou por toda a parte um movimento de ansiedade. E, apesar de serem praticamente ilimitados os meios de propaganda de que a União dispõe e intensa a sua actividade, ela não pôde evitar que uma consciência geral se formasse, condenatória dos seus métodos de pressão e criminosas agressões: o Governo da União Indiana comprometeu, e desacreditou
connosco o seu pacifismo e a sua política de «não violência».
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Em quase todos os países onde há possibilidades de uma expressão pública o caso de Goa foi acompanhado e discutido: nos países comunistas, muito compreensìvelmente, com inteiro apoio às pretensões da União Indiana; em Estados recém-constituídos, presos ainda de preocupações e receios, com a circunspecção e prudência que lhes impõem aparentes analogias, a viveza das suas próprias pretensões, a memória de lutas recentes; mas nas outras nações que usufruem estabilidade de vida política e reconhecem o valor do direito nas relações internacionais Portugal pôde contar com simpatia para as queixas e apoio para a sua causa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - As atitudes ou declarações que em Nova Deli pretenderam diminuir o número e valor das intervenções e diligências diplomáticas efectuadas, como o âmbito e significação de garantias e tratados, não obtiveram eco na opinião informada.
Evidentemente o Governo não podia ter a pretensão - nem era esse o intuito do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros - de obter de todos os outros governos que tomassem partido sobre o mérito da causa. Mas, no cansaço da desordem e das violações, pela força, dos direitos alheios, a generalidade dos Estados pôde formular um voto de que a União Indiana se sustivesse no caminho da agressão, permitisse a verificação dos factos por olhos imparciais e procurasse dirimir quaisquer diferendos por meios pacíficos. Esta a posição dos governos, e nenhuma outra mais precisa ou mais avançada se poderia ambicionar. Alguns, porém, foram mais além. Se os não cito é que receio ser injusto na apreciação ou incorrecto no esquecimento, referindo-me especialmente a alguns, e ainda que me limitasse aos que nos estão mais ligados pela contiguidade ou vizinhança na Península ou em África, pelos laços de parentesco e família ou relações políticas especiais.
Passou e sofreu a França dificuldades semelhantes e os acontecimentos seguiram quanto a ela orientações diversas; não podemos, porém, esquecer a elegância com que, durante negociações difíceis, e designadamente no seu fecho, o Governo Francês se empenhou em vincar a diferença de condições que não lhe permitiam a ele resistir à União nem a esta tirar do acordo efectuado argumento contra nós.
Fora das chancelarias e esferas governamentais, na imprensa e entre os homens de estudo, a questão de Goa foi geralmente compreendida e acompanhada na sua relevância jurídica, valor histórico e simbólica representação do esforço do Ocidente em alargar as fronteiras do Mundo para benefício comum da humanidade. Muitos se manifestaram contra as cedências sucessivas e as capitulações ante forças que estão longe de ter demonstrado a sua superioridade em qualquer campo, e sustentam que, se a Portugal se deve ter erguido em Goa o glorioso padrão de uma das maiores viragens da História, é falho de sentido e de justiça que se lho arranque das mãos. Mas esta razão é uma razão política sem presa no espírito dos dirigentes da União Indiana, pois precisamente pensam que está no facto a origem das grandes infelicidades da Índia na época moderna. Não significa, outra coisa a campanha em que se acusa o Estado Português da Índia de ser um anacronismo histórico e uma expressão de colonialismo. Tais acusações não têm fundamento no caso de Goa, mas o Mundo
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mostra-se extraordinariamente sensível a essas grandes frases, e nós vemo-nos obrigados a parar uns momentos para lhes dar atenção.
Eu confesso grande medo aos ideólogos que, afeitos às abstracções e concepções geométricas, pretendem refazer séculos de história nas suas mesas de trabalho.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O que é um anacronismo histórico? A vida dos povos é cheia de estruturações do passado e delicados germes do futuro, que pouco a pouco se desenvolvem, sem haver regra ou momento preciso que fixe as mutações na carta política do Mundo. Por isso esta se apresenta em cada momento recheada de ilogismos e anacronismos que as vicissitudes históricas criaram e a prudência aconselha a respeitar.
Para começar por nós próprios: Portugal separou-se dos outros Estados da Península e tem noutros continentes elementos estruturais da Nação: um ilogismo quanto a alegados imperativos da geografia. A Suíça formou-se de Alemães, Franceses e Italianos, que conservam os idiomas originais: ura ilogismo quanto à língua. Os Magiares ocupam há mil anos a Hungria, no seio de uma Europa linguística e racialmente diferente: um ilogismo quanto à raça. E assim sucessivamente. Em que é que a existência de um povo de cultura ocidental no Indostão e fazendo parte de uma nação europeia pode repugnar mais à inteligência que os outros ilogismos citados? Não. A alegação de ilogismo ou anacronismo histórico não tem sentido senão quando se lhe empresta o significado pejorativo de colonialismo. Existe então este no Estado Português da Índia? Eu já demonstrei o contrário na minha exposição de 12 de Abril e nenhum dos factos em que me baseei pode ser contestado.
O colonialismo exige essencialmente o desnível das raças e das culturas, um objectivo de exploração económica servido pela dominação política, a qual geralmente se exprime pela diferenciação entre o cidadão e o súbdito. Não há colonialismo onde nenhum benefício estratégico, económico ou financeiro se tira e o orçamento metropolitano suporta ainda pesado encargo com a manutenção dos serviços. Não é possível conceber estatuto ou condição de colónia quando é semelhante o nível de vida, idêntica a cultura, indiferenciado o direito público, igual a posição dos indivíduos perante as instituições e as leis. Não pode haver colonialismo onde o povo faz parte integrante da Nação, onde os cidadãos colaboram activamente na formação do Estado, em termos de igualdade com todos os mais, onde os indivíduos exercem funções públicas e se movem e trabalham no conjunto dos territórios.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E tudo isto não de agora, estabelecido ou legislado à pressa, mas cimentado pelos séculos, quase podemos dizer desde sempre. O caso é talvez extraordinário e surpreende pela sua peculiaridade; mas, se o Mundo está sendo perturbado na justa visão das coisas por afirmações superficiais e destituídas de exactidão, nós temos de continuar a insistir em que uma consideração mais objectiva e atenta seja dada, fora da poeira das discussões, ao caso da Índia Portuguesa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Goa e o Cristianismo na Ásia. O Primeiro-Ministro da União Indiana, num seu discurso de 26 de Agosto no Conselho de Estado, acusou o Governo Português de tentar envolver a Igreja Católica no problema político de Goa, e a mim pessoalmente; de estar mal servindo o Catolicismo na Índia, porquanto por aquele modo o associava ao colonialismo. O Pândita Nehru não está bem informado dos factos e daí talvez a errada conclusão a que chegou.
Tenho escrupulosamente evitado em toda a minha vida pública misturar a religião com a política ou, o que é o mesmo, fazer política com a religião.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Isso não me impede a convicção de que há efectivamente problemas de ordem religiosa na Índia; estes nascem, porém, dos factos e do condicionalismo em que se desenrolam na União Indiana, não das nossas atitudes. A acusação acima obriga-me por isso a algumas explicações.
É em face de um perigo não imaginário mas real e profundamente sentido que o Governo da União se tem visto obrigado, com escassos resultados, aliás, a sossegar a consciência católica de Goa: ora lhe promete com solenidade as mesmas liberdades que estão consignadas na Constituição; ora exalta as mais eminentes dignidades do clero católico por interporem no caso a sua confiante autoridade e declararem a sua satisfação com o regime que usufruem; ora acredita e ostenta em altas missões oficiais no estrangeiro personalidades categorizadas do clero e da Acção Católica indiana. Se uns e outros, como cidadãos, servem a União, fazem o que devem; se, como católicos, agem contra a presença de Portugal em Goa, fazem o que não lhes é lícito fazer e de que em boa consciência deviam abster-se.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Exactamente porque Portugal não faz assentar na religão a legitimidade da sua posição política em Goa, apesar de certa bula papal que traz intrigado o Pândita Nehru, tem o direito de lamentar a atitude assumida contra os seus legítimos direitos em restritos sectores católicos. E por isso os denuncia.
A generalidade dos depoimentos que me foi dado ler, e em que o conflito com a União foi visto à luz de conveniências religiosas e contra Portugal, nasce, além do referido, de duas fontes: dos católicos progressistas e de certos meios da Propaganda Fide. Sabe-se o que são os primeiros: católicos que se deram à missão de baptizar o comunismo. (Risos). Assim como Roma convertera os bárbaros e moldara espiritualmente as novos sociedades cristãs, também a Igreja deverá agora abrir os braços e conciliar-se com o comunismo, metendo-o no seu seio ou a si no seio dele, para criar a sociedade futura: a verdade política e social adviria do comunismo; a verdade religiosa defini-la-ia a Igreja, dentro dos limites consentidos por aquele. Não discuto: anoto para dizer que não estranho a atitude hostil para com Portugal. Já o caso da Propaganda Fide - e considero as pessoas que nela trabalham e nos seus colégios se formam e nos seus métodos se educam - merece mais largo comentário.
Trezentos anos de incidentes e irritantes discussões leva a Propaganda a mostrar a sua má vontade a Portugal e ao Padroado Português do Oriente, privilégio outorgado pela mesma Igreja em cujo seio e para cujo desenvolvimento a Propaganda trabalha: mais realista que o rei, mais papista que o papa. A, luta tem sido sobretudo desagradável, e devemos confessar que a evolução das circunstâncias até agora ajudou a dar às pretensões daquela quase completa satisfação: o Padroado é uma sombra do que fora e nos territórios onde
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existiu viceja sem a nossa concorrência a árvore da Propaganda.
Vozes: - Muito tem!
O Orador: - Examinadas as coisas no fundo, bem no fundo delas próprias, vemos nesta luta tenaz, além daquela triste parte humana com que sempre tendemos a macular a obra divina, dois factores: insuficiente conhecimento da acção do Padroado Português a missionar os povos - no que alguma culpa teremos - e uma diferença de critérios, aliás perfeitamente admissível, acerca da orientação da obra missionária no Mundo. Eu creio ter notado, quando da exposição missionária de Lisboa e no que acerca dela se escreveu em Roma, uma admiração sincera -embora um pouco tardia - por uma obra cuja pujança e brilho e pureza e desinteresse não escaparam a ninguém: por toda a parte aonde o Português chegou implantou a árvore da cruz e ela aí se radicou e cresceu e mantém viva e na vida fiel a Roma.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Que interesse tivemos? Que lográmos com os dinheiros despendidos, os esforços empregados, as fomes, as misérias, os maus climas, as navegações ousadas, as lutas em terras longínquas, os martírios que sofremos - que lucrámos? Trabalhar na extensão do reino de Deus e com ele na elevação dos homens de todas as raças a maior espiritualidade de vida e fraternidade cristã.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - A Propaganda tem os seus métodos de acção, filhos de certa interpretação dos factos políticos, ou seja de uma certa concepção política, e nós temos outra; mas a diferença de critérios não legitima uma hostilidade.
A Propaganda pode comparar-se a um grande exército, servido por um quartel-general, de comando concentrado e gozando na Igreja de inteira liberdade de acção. A independência em relação aos governos ou a outras autoridades religiosas parece-lhe essencial; em qualquer caso considera-a útil. Por nossa parte trabalhamos no Oriente - como trabalhamos em todas as outras províncias do ultramar - enquadradas as missões na divisão tradicional diocesana, o que está mais de acordo com este jeito do Português de reproduzir nas terras distantes as instituições, as artes, formas de vida e costumes que deixou na Mãe-Pátria. Que o nosso sistema não possa desenvolver-se e frutificar sem um mínimo de relações e colaboração dos governos que exercem a soberania é evidente, ainda quando, como no regime português, o Estado não é confessional, não há união com a Igreja, mas apenas separação concordada.
Tocamos agora, senão o fundo, um dos aspectos mais sérios do problema.
Em face dos nacionalismos que irrompem, frementes na Ásia e em África contra as soberanias e as posições que a Europa não cessa de abandonar, a Propaganda entende que deve tentar salvar a sua obra, dessolidarizando-se dos Estados, e pôr outro lado fazendo tanto quanto possível o recrutamento do clero entre os convertidos locais: independência política e clero indígena são os traços característicos das novas tendências, em reforço, quanto ao primeiro ponto, do que já vinha de trás.
Ora bem: este primeiro ponto pode ser uma necessidade de ocasião, mas não é uma verdade absoluta, nem dentro dos princípios religiosos nem à face da sociologia e da experiência política. Do princípio verdadeiro «a Igreja precisa de liberdade» está a passar-se irreflectidamente para estoutra proposição «a liberdade basta à Igreja», que é manifestamente falsa, sobretudo quando formações religiosas concorrentes entram de qualquer modo como elemento de coesão social dos povos considerados e sob esse aspecto recebem protecção especial, directa ou indirecta, do Estado. E este é que é o grande problema da Índia no aspecto religioso.
Quanto à formação de clero local, devemos nós arrogar-nos o direito de prioridade na matéria. No clero de Goa não chegam a uma dezena os sacerdotes do continente e ilhas e andam à roda de setecentos os naturais do próprio Estado da Índia. Fora do território português, Goa traz em serviço das missões da Propaganda uns duzentos sacerdotes. Que ironia dos factos e que lição! Nós ensaiámos há séculos a novidade - em 1530 já havia sacerdotes indianos - e em Goa pode dizer-se que desde há dois séculos o clero é na sua totalidade goês. E não só para Portugal: generosamente se dispersava e trabalhava também fora do Estado da Índia e fora do Padroado, no exercício duma missão religiosa que ainda não pôde ser acusada com verdade de apresentar traço de influência política. Por alguma razão a Goa se tem chamado a Roma do Oriente. É-o de facto: pelo esplendor da fé católica, pela abundância das vocações, pelo espírito de proselitismo que anima a Igreja naquelas benditas terras. Por serem da Índia? Meu Deus! não; por serem portuguesas.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Humanamente e nos tempos próximos não me parece que se possa confiar muito na expansão do Cristianismo no Oriente. Mesmo sem ter em linha de conta que a retirada europeia pode precipitar o continente asiático por completo no comunismo - hipótese em que é escusado buscar soluções para uma questão que deixa simplesmente de existir -, um progresso razoável do Cristianismo naquelas paragens não se afigura possível sem a acção missionária estrangeira, que na Índia começa a ser dificultada pela distinção entre liberdade religiosa e liberdade missionária. Fermentarão então ideias de Igreja nacional, condenada, na falta de outros apoios, à desagregação última das cristandades e sua submersão no caos religioso local.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E Goa não pode ser invocada como exemplo em contrário senão quando se compreenda que a Igreja é ali, não a única, mas uma das várias instituições que formam a cultura e o espírito ocidental do Goês.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Concluo estarmos dentro da melhor doutrina e dos interesses da Igreja; concluo que a manutenção da Goa portuguesa é ponto de apoio indispansável à conservação e difusão do Cristianismo na Índia. Mas nós não invocamos uma razão religiosa para nela assentar os direitos políticos de Portugal: deixamos essa posição aos que nos hostilizam.
Assim, os católicos partidários da União Indiana entendem que, se de Goa desaparecer a soberania portuguesa, com ela desaparecerá a desconfiança em relação aos sacerdotes e missionários estrangeiros, que o não seriam já, sendo goeses. E deste modo, sem a última ligação com um Estado europeu, não só o Cristianismo em
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toda a índia daria grande surto, como a mesma Goa consolidaria para sempre a posição de Igreja-Mãe das cristandades orientais, crescendo em influência e prestígio.
Não fugi a dar todo o realce ao argumento, porque é visível a todos que ele se move fora das realidades conhecidas, pretende que os nossos direitos sejam sacrificados à falta de condições de liberdade na União Indiana, e é, por isso só, a demonstração clara de como do outro lado se procura, contra nós, fazer política com a religião.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Goa e nós próprios.
A política da União Indiana para com o Estado Português da Índia criou-nos, além dos de defesa, certo número de problemas, especialmente de abastecimento e de comunicações, a que procuramos dar remédio tão completo quanto possível. Estou convencido de que as dificuldades presentes podem mesmo ser estímulo para. o revigoramento da economia goesa e para o estreitamento das relações comerciais e marítimas com a metrópole, as províncias ultramarinas e ainda outros países que se substituirão gradualmente à União Indiana. Tanto a agricultura como a mineração e a pequena indústria, desenvolvidas e consolidadas, e com suas repercussões Ha maior intensidade dos transportes e no comércio, deverão absorver, nos territórios do pequeno Estado maior número de Goeses, em nível de vida satisfatório.
O Plano de Fomento, que não fora elaborado para as circunstâncias actuais, mas se casa admiravelmente com as necessidades futuras daquelas populações, encontra-se em plena execução. Das obras hidráulicas para rega, do abastecimento de águas, dos estudos geológicos, das estradas e pontes previstas, dos melhoramentos a introduzir no porto e no caminho de ferro de Mormugão não só hão-de resultar maiores produções e facilidades de vida como decidido incremento de outras fontes de riqueza local. Será pena que a União Indiana pretenda comportar-se como se ignorasse os meios de comunicação que temos ao seu dispor, mas, mesmo sem o tráfego da União, se o mercado internacional continuar a absorver os minérios goeses, especialmente os de ferro, cremos que haverá movimento suficiente para a sua manutenção.
Tudo isto exigiu e continua a exigir atenções e esforços no sentido de alterar os rumos do comércio, substituir as clientelas, modificar as rotas da navegação, resolver problemas de armazenamento e conservação de produtos alimentares. E, quando concluirmos a construção do aeródromo de Goa - o tal que se destina, no pensar da imaginativa imprensa da União, a base americana de guerra - e conseguirmos pequenas pistas em Damão e Diu, teremos a possibilidade de ligar satisfatoriamente o Estado da Índia com o Mundo, cessando parte do seu forçado isolamento, que no actual momento só podemos quebrar e estamos quebrando por meio das nossas carreiras marítimas ou de barcos estrangeiros em demanda de Mormugão. Os problemas que defrontamos são semelhantes aos que suscitaria um terrível cataclismo que tivesse subvertido a União Indiana. Naqueles vastos mares, Goa, Damão e Diu permanecem como três pequenas ilhas que é preciso servir e fazer viver.
Das dificuldades levantadas, só duas estão fora do nosso poder, porque inteiramente dominadas pela União: o trânsito dos estrangeiros e dos Goeses entre territórios portugueses e os da União e as remessas dos emigrantes - fruto do seu trabalho, gotas da sua economia - para as famílias que vivem em Goa. Isto pode andar à volta de umas escassas dezenas de milhares
de contos por ano, que nas contas internacionais da União não representam nada, e não é mesmo difícil compensar na balança do Estado da Índia, mas que na pequena Goa representam a mediania de numerosas famílias. Situação bem diversa usufruem os súbditos da União que vivem nos territórios portugueses, designadamente na África Oriental, onde têm conseguido avultados lucros e disposto da liberdade de transferências e câmbios estáveis, em benefício da balança de pagamentos indiana.
Vozes : - Muito bem!
O Orador: - Todos estes problemas, ainda que difíceis e altamente onerosos, vão tendo solução dentro, pode dizer-se, do quadro da administração corrente, fortemente apoiada da metrópole. Mas não haverá entre nós e Goa problemas de ordem política que estejam na base da crise entre Portugal e a União Indiana? Quando intitulei o presente capítulo Goa e nós próprias, o que tinha em mente era sobretudo esses problemas políticos e entre eles o que em Portugal se pensa do conflito com a União Indiana. Referir-me-ei em separado a um e aos outros.
As afrontas da União Indiana a soberania e integridade dos territórios que constituem o Estado Português da Índia foram sentidas por Portugal inteiro como fundos golpes na própria carne da Nação.
Vozes : - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E sob este aspecto não se notaram gradações de sentimentos ou diferenças de reacção, aqui, no ultramar, nos grupos de portugueses em país estrangeiro, na própria Goa. Sobre a forma porém de conduzir a questão e de enfrentar os acontecimentos manifestaram-se algumas opiniões divergentes das do Governo, opiniões que convirá registar.
As soluções preconizadas para o caso de Goa, se me é permitido reduzir a tipos a variedade das sugestões, foram:
Negociações com a União Indiana;
Resistência militar, com empenhamento de todas as nossas possibilidades e as de aliados que conseguíssemos;
Total independência de Goa dentro de uma federação ou confederação portuguesa.
0 primeiro caminho, sem ressalva da soberania portuguesa, apareceu definido apenas pelos que a si próprios se intitulam «partido comunista português» e por alguns democratas que os seguem e apoiam. Ninguém mais do que eu está convencido da possibilidade e até das facilidades que se encontrariam nas negociações com a União. Simplesmente, o objecto da negociação é, nos termos da nota de Nova Deli de 27 de Fevereiro de 1950, e como se deduz dos textos indianos posteriores, o estudo das condições de integração dos territórios portugueses na União Indiana. Podem discutir-se minúcias de tempo, formalidades de transmissão de poderes, eventuais indemnizações, garantias para os negócios, condições do culto católico, custeio por Portugal do ensino da sua língua, cuidados com a cultura portuguesa, se é que dali se não pretende varrer a sua memória inteiramente - tudo isto se pode discutir. Mas, quando se aceita a negociação, tal como a União Indiana a encara, há uma coisa que está já aceite e assente, e essa é a transmissão da soberania e a entrega das populações à da União.
Vozes : - Muito bem, muito bem!
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O Orador: — Damos ou vendemos — pouco importa isso à gravidade do caso— os Portugueses da índia, as terras de Afonso de Albuqxierque e da epopeia do Oriente, os santos da Igreja, os mártires da Pátria. Por quanto? Por quanto?
Em extremo oposto se colocaram outros, que, julgando não serem suficientes as garantias e apoios de que a Nação Portuguesa pode actualmente dispor, entendem se deviam procurar alianças especiais que permitissem organizar uma resistência eficaz aos ataques militares da União. A ideia tem tanto de ousada como de generosa: o pior é que o conflito não pode ser militarmente resolvido. A pequenez dos territórios e a fraqueza dos recursos loca», a desproporção das forças, a extensão das linhas de comunicação, a distância das bases ou pontos de apoio, tornariam uma guerra na índia, para nós sem finalidade útil, para a União sem glória, e —o que é pior— sem termo, quero dizer, sem paz, por não ser concebível Governo português que pudesse algum dia reconhecer a espoliação.
Vozes: — Muito bem, muito bem !
O Orador: — A terceira atitude pode apresentar-se como segue: se dermos plena independência à índia, dentro de um Estado federativo português, a União Indiana enoontrar-se-á em face de um Estado soberano, contra o qual não pode ter objecções e que seguramente respeitará. Esse Estado gozaria das garantias internacionais de qualquer outro Estado e, para a segurança da sua independência, se podiam conseguir outros apoios ou garantias particulares, incluindo o da própria União. O dissídio entre Portugal e a União Indiana resolver-se-ia assim através de um Estado que, embora dentro da federação ou confederação portuguesa, já não era Portugal. Ao mesmo tempo se satisfariam os Goeses, cujo descontentamento pela doutrina do Acto Colonial de 30 se deve considerar como geratriz inicial da crise.
Há nesta maneira de encarar a questão, se eu pude ser fiel ao traduzir o pensamento alheio, simultaneamente uma certa dose de ingenuidade e alguns erros de facto. A construção política é inspirada nos moldes dos domínios britânicos (do tempo em que estes não se consideravam nações independentes) e em qualquer caso contrária ao pensamento da nossa Constituição no que respeita à estrutura da Naçuo e do Estado Português: por isso mesmo se previa a sua alteração.
O Acto Colonial foi, no domínio ultramarino, a reacção do actual regime contra uma situação administrativa e uma orientação política que não poderiam perdurar sem graves riscos para o interesse nacional. A sua integração na Constituição Política está hoje feita com alterações, em pontos secundários, que a experiência e as circunstâncias aconselharam, mas, se possível, ainda com maior rigor e precisão do pensamento fundamental que o inspirava.
O estado em que se encontrava o ultramar português à data da revolução de 1926, sem menosprezo dos esforços ali desenvolvidos e do valor pessoal daqueles a cujo patriotismo esteve confiado, era o reflexo dos mesmos males que sofríamos aqui: lá, porém, com possíveis consequências de muito maior gravidade.
Os remédios haviam de inspirar-se nos mesmos princípios, possivelmente mesmo em métodos idênticos aos daqui. E assim é que daquele diploma se deduzem três grandes linhas de orientação: maior concentração de poderes, quer dos governos em relação aos organismos locais, quer do Governo Central em relação aos mesmos governos ultramarinos; forte, reivindicação de ordem nacional em relação a interesses que no ultramar se incrustaram com laivos de dependências políticas in-
convenientes ; um pensamento de coordenação e de integração dos partes em todo mais coeso, que desse a representação exacta da que se queria fosse na sua unidade pluriforme a Nação Portuguesa. E tudo evidentemente assente sobre aquela ordem financeira e regularidade administrativa sem a qual as queime teriam sempre razão e os males mão teriam nunca remédio.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — A própria ideia de Império, que escandalizou alguns e mais tarde se sacrificou, trouxe aos espíritos uma noção de unidade e um sentimento optimista de grandeza, indispensáveis para estimular energias e arredar-nos da mornidão e tacanhez que ameaçavam continuar a estiolar pensamentos, planos e esforços.
Vozes: —Muito bem!
O Orador: — Não se pode negar que a obra ultramarina dos últimos vinte e cinco anos decorre límpida e forte desses princípios e representa a todos os olhos um êxito como recuperação nacional, progresso económico, força e engrandecimento do todo português.
Vozes: —Muito bem!
O Orador: — Que na formulação ou na aplicação prática das regras que derivam daquelas grandes linhas de orientação se vão administração e política adaptando às novas circunstâncias, necessidades, possibilidades de pessoas e meios materiais, não há que discutir, e tudo o que é razoável se pode fazer sem atingir a essência do que se pretende alcançar quanto à progressiva integração das províncias ultramarinas no todo nacional. Aconteceu porém que algumas expressões mais vivas do Acto Colonial impressionaram aquele escol político da índia, receoso de retrocesso em tudo quanto através dos tempos tinha sido reconhecido — mais que concedido — à sua cultura e capacidade para intervir na administração pública e na direcção dos negócios do Estado. Mas as queixas que nos chegaram — aliás viris e desassombradas — não permitem equívocos ou incom-preensões: " está aí um problema — cito as próprias palavras — que só a nós e a Portugal diz respeito ". Era a posição exacta que advinha de um portuguesismo incondicional.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Quando surgiu a crise derivada da independência da União Indiana — primeiro da sua constituição em domínio, e depois do estabelecimento dá república — nem todos os mal-entendidos tinham desaparecido e certas consciências mantinham-se entre retraídas, receosas e magoadas. Não se pode negar que aquele facto enorme da retirada dos Ingleses e da entrega dos destinos da índia aos respectivos povos trouxe, mesmo à pequena Goa, uma ameaça de crise moral. As inteligências dispersaram-se então à busca de fórmulas para a própria administração e governo do Estado Português da índia, fórmulas que oscilaram entre a linha tradicional, actualizada e fortalecida, e uma organização de domínio à moda britânica. O bom senso da generalidade viu porém que esta última solução estava fora não só das nossas melhores tradições, mas das possibilidades materiais, dadas a pequenez, fraqueza e dispersão dos territórios. Não há dúvida porém de que um ou outro que mais tarde viria a revelar-se contra Goa e contra Portugal viu aí a via de uma integração a distância, fácil e fatal, na União, apenas
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realizada em três tempos e sem dor, como algumas operações cirúrgicas.
Volto à frase que citei como expressiva do mais estreme pensamento goês: «está aí um problema que só a nós e a Portugal diz respeito», e não pode servir de base de solução ao conflito com terceiros. Que o novo estatuto que neste momento se apronta permita em breve intensificar e desenvolver a colaboração de todos os valores de Goa, não é outro o desejo de todos os Portugueses; mas a questão não terá dado um passo no que respeita à União Indiana, porque no fundo da sua hostilidade não estão os nossos problemas: estão exclusivamente os dela, do seu amor próprio e das suas ambições.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Goa e o futuro.
Quereria terminar com uma palavra sobre à evolução provável deste infeliz caso de Goa. A reflexão mais concentrada, a meditação mais profunda sobre os dados do problema não me permitiram porém chegar a uma conclusão, mesmo medianamente segura E no entanto tínhamos elementos para concluir, se as coisas devessem passar-se como o direito impõe, a razão aconselha e as normas de convivência internacional exigem. Pois de que se trata afinal? Da pretensão de um pais a apoderar-se de territórios pertencentes a outro. Podia esse país ter a convicção de que as respectivas populações estavam ansiosos por ser «libertadas» de um jugo estranho, e, cansadas de ser colónia portuguesa, desejavam integrar-se na União. Está visto que nem Goa é uma colónia, nem as populações querem ser «libertadas», nem lucrariam alguma coisa, económica, política, social ou moralmente, em passar a fazer parte da União Indiana.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Por outro lado, a União não tiraria vantagens da anexação, nem aumentaria sensivelmente territórios ou riquezas, nem arredaria perigos que de facto não existem, nem adquiriria seguranças que por outra forma não pudesse mais concreta e utilmente conseguir. Trata-se portanto de um equívoco: não duma aspiração razoável ou necessidade imperiosa da União, mas de ambições pessoais ou caprichos partidários, em que o Primeiro-Ministro se deixou envolver.
A União foi levada a atitudes e à prática de actos que não podem ser coonestados pelos fins a atingir. Praticou agressões, abusou da força, desconheceu o direito. O caso é especialmente grave para uma independência nascente, a quem todos os apoios e auxílios da sociedade internacional são não só preciosos mas indispensáveis. A União não pode continuar a desafiar indefinidamente a consciência do Mundo, mesmo que as vítimas dos seus actos de agressão sejam, na aparência ou realmente, pequenas potências que a sua grandeza esmague.
Nestas condições, o que está naturalmente indicado é rever a posição, corrigir a política, desistir do intento. Nós temos o direito de fazer passar para os enclaves forças que ali restabeleçam a ordem e o autoridade legítima; temos direito ao respeito da soberania portuguesa; e temos direito à coexistência pacífica, que não pode ser só entre a Índia e a China, mas também entre a Índia e os territórios portugueses do Indostão, como norma universal que é ou pretende ser. Muitos problemas há que precisam de ser estudados e resolvidos no interesse comum das duas nações. Pois a conclusão razoável a que chega toda a inteligência esclarecida e toda a consciência recta é, depois de desistir, negociar acerca desses problemas.
Não sendo este o caminho, que outros se oferecera à União Indiana? O Primeiro-Ministro, no seu dia; curso de 26 de Agosto, teve a consciência de estarem a cerrar-se-lhe os horizontes, pois só via a alternativa de negociar ou fazer a guerra. E como essa sua negociação é o acordo sobre a transferência da soberania, inaceitável para nós, não lhe ficaria efectivamente aberto senão o caminho da guerra. A guerra: eis o termo duro, terrível, mas profundamente exacto. Já disse o que pensava acerca dessa saída, e não o repito nem desejo esclarecê-lo agora mais. No entanto, a União receia-a: ela compromete em cheio a sua doutrina política e sai fora dos quadros morais da consciência mundial. Não querendo desistir e não lhe convindo fazer uma guerra declarada, conduzida pelo exército, pode a União perseverar na presente atitude? Pode. As mil tricas administrativas, as notas impertinentes, as reclamações infundadas, as campanhas de imprensa e da rádio oficial sobre factos inexistentes ou deturpados, a especiosa, interpretação dos tratados e das leis podem continuar a patentear-se, mas nada disso tem dignidade ou grandeza à altura de um Estado como a União Indiana. E uma hipótese possível, mas não creio provável, uma vez verificado o fracasso do bloqueio, a eternização da guerra fria que actualmente se nos faz.
Por nosso lado, conscientes do direito e indissoluvelmente ligados àquela pequena comunidade por 400 anos de história, pelos laços do sangue e pela cultura que ali levámos, somos livres e estamos prontos a negociar, mas não podemos ceder sobre a soberania portuguesa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E entretanto em duas coisas essencialmente nos temos de apoiar e delas não podemos desprender-nos - força e paciência: força suficiente para que uma pseudo-acção policial não possa ser-nos imposta; paciência que não se altere com a impaciência inimiga e dure tanto, pelo menos, como a sua pertinácia.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Para tanto precisamos de não nos exceder no nosso próprio esforço, cuidando antes de o manter sempre proporcionado à capacidade normal da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E se, apesar de tudo, a União Indiana levar a guerra ao pequeno território, o que podem fazer as forças que ali se encontram ou vierem a ser concentradas? Bater-se, lutar, não no limite das possibilidades, mas para além do impossível.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Devemos isso a nós próprios, a Goa, à civilização do Ocidente, ao Mundo, ainda que este se sorria compadecidamente de nós. Depois de afagar as pedras das fortalezas de Diu ou de Damão, orar na Igreja do Bom Jesus, abraçar, os pés do apóstolo das Índias, todo o Português pode combater até ao último extremo, contra dez ou contra mil, com a consciência de cumprir apenas um dever. Nem o caso seria novo anais da Índia.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Grande ovação. A Assembleia e todos os presenteia de pé, aplaudiram prolongadamente S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho.
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O Sr. Presidente: - A Câmara acaba de ouvir mais uma das luminosas exposições do Sr. Presidente do Conselho sobre a momentosa questão da Índia. Eu nada desejo nem nada poderia acrescentar à extraordinária exposição do Sr. Presidente do Conselho.
Não se estranhará, porém, que eu acentue que as palavras do Sr. Presidente do Conselho são a expressão da própria consciência nacional e constituirão para todos os Portugueses um reconfortante estimulo ao seu patriotismo e à sua confiança nos destinos da comunidade portuguesa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Quanto a esta Câmara, penso que ela quererá, não digo agradecer - o cumprimento do dever não se agradece -, mas significar ao Sr. Presidente do Conselho quanto esta Assembleia se sentiu honrada com a sua presença e afirmar a S. Ex.ª a sua inteira solidariedade com a firme, patriótica e esclarecida política que tem conduzido na intransigente defesa da integridade de Portugal, tal como os nossos maiores e a História no-lo legaram.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Está interrompida a sessão.
Eram 18 horas e 30 minutos.
Neste momento o Sr. Presidente do Conselho saiu da sala das sessões, acompanhado pelo Sr. Presidente da Mesa e Srs. Secretários da mesma.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Eram 18 horas e 49 minutos.
O Sr. Presidente: - Em virtude do adiantado da hora e porque suponho que a Câmara precisará de algum tempo de reflexão sobre o discurso do Sr. Presidente do Conselho para depois tratar do aviso prévio apresentado pelo Sr. Deputado Teófilo Duarte, vou encerrar a sessão.
A próxima realiza-se no dia 2 de Dezembro, à hora regimental, com a mesma ordem do dia da de hoje.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 50 minutos.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Agnelo Orneias do Rego.
Alberto Cruz.
Alberto Pacheco Jorge.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
António de Almeida Garrett.
António Bartolomeu Gromicho.
AAntónio Calheiros Lopes
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
João Afonso Cid dos Santos.
João Maria Porto.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Jorge Pereira Jardim.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Monterroso Carneiro.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Tito Castelo Branco Arautos.
O REDACTOR - Leopoldo Nunes.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA