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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 59
ANO DE 1954 10 DE DEZEMBRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VI LEGISLATURA
SESSÃO N.°59, EM 9 DE DEZEMBRO
Presidente: Ex.mo Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Ex.mo Srs. Gastão Carlos de Deus Figueira
José Venânco Pereira Paulo Rodrigues
SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 40 minuto.
Antes da ordem do dia. - Dou-se conta do expediente.
Para se referirem ao centenário do falecimento de Almeida Garrett, que hoje se comemora, usaram da palavra os Srs. Deputados Abrantes Tavares e Américo Cortes Pinto.
O Sr. Presidente- associou-se às palavras dos oradores antecedentes.
O Sr. Deputado Elísio Pimenta enviou para a Mesa um requerimento.
O Sr. Deputado Miguel Bastos usou da palavra para se congratular com as medidas tomadas pelo Governo para com os povos de Cabanas.
Ordem do dia. -Em primeira parte apreciou-se de novo o artigo 14.º do decreto da Assembleia relativo à indústria hoteleira.
O Sr. Deputado Mário de Figueiredo usou da palavra sobre este assunto, enviando para a Mesa uma proposta de alteração do referido artigo 14.º
Posta a votação, foi essa proposta aprovada por unanimidade.
Passando-se à segunda parte da, ordem do dia, iniciou-se a discussão da proposta de loi de autorização de receitas e despesas para o ano de 1955.
Usou da palavra o Sr. Deputado Baltasar Rebelo de Sousa.
O Sr. Presidente declarou encerrada a sessão às 18 horas e 50 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 16 horas e 30 minutos.
Fez-se a chamada, á qual responderam os seguintes Srs. Deputados.
Adriano Duarte Silva.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Finto dos Reis Júnior.
Alexandre Aranha Furtado de Mendonça.
Alfredo Amélio Pereira da Conceição.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António Bartolomeu Gromicho.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancella de Abreu.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Baltasar Leite Rebelo de Sousa.
Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Eduardo Pereira Viana.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
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Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Jerónimo Salvador
Constantino Sócrates da Costa.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Carlos de Asais Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Joaquim. Dinis da Fonseca.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís de Azeredo Pereira.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Trigueiros Sampaio.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Beis.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancella de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
Ricardo Vaz Monteiro.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Venâncio Augusto Deslandes.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 72 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Vai ler-se o
Expediente
Oficio
Do speaker da Câmara dos Comuns a agradecer o telegrama de felicitações do Sr. Presidente pelo aniversário do Primeiro-Ministro Britânico, Winston Churchill, e a afirmar o seu reconhecimento por tão distinta atenção, que foi comunicada ao homenageado.
O Sr. Presidente: - Sabe a Camará que faz hoje precisamente cem anos que faleceu o grande escritor Almeida Garrett, cujo centenário tem sido devidamente comemorado.
A Assembleia Nacional não quererá deixar passar este dia sem lhe prestar as suas homenagens. Vou conceder a palavra, para o efeito, ao Sr. Deputado Abrantes Tavares.
O Sr. Abrantes Tavares: - Sr. Presidente: ao tomar a palavra pela primeira vez nesta sessão, renovo a V. Ex.ª os meus cumprimentos de muita consideração e respeito.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Li algures ser necessário separar em Garrett o político do literato. Persuado-me, porém, haver uma unidade íntima entre o político, sacrificando embora à mitologia do século, e o artista, que nas fontes vivas da tradição nacional buscava os elementos criadores de uma nova maneira literária, com a frescura e graça da perdida originalidade. Num e noutro caso Garrett procurava, ainda que com resultados diferentes, reconduzir a Nação, não só às suas Lídimas tradições políticas, obliteradas pelo despotismo esclarecido de Pombal, mas, pelo repúdio dos modelos clássicos, servilmente imitados por uma literatura decadentista, a que faltava audácia criadora, resgatar de imerecido esquecimento a riqueza de temas, só ignorados dos maus cultores das letras, mas ainda vivos na tradição popular.
Esta dupla restauração - da sensibilidade, pela arte literária renovada e reconduzida às fontes de que brotara e a individualizaram; da política, pelo regresso, ou o que supunha ser o regresso, as tradições históricas da Nação - marcaria, mo pensamento de Garrett, a regeneração que todos ambicionavam, anos sem atinar com os caminhos certos para a atingir. No fundo, e em que pese aos que sustentam o contrário, a acção política e literária de Garrett vinha a unificar-se no pensamento mais amplo do ressurgimento nacional, ma grandeza moral e material da Nação. E foi este, de todos os amores de Garrett, aquele a que se manteve apaixonadamente fiel na sua pouco longa mas intensa vida. Amou e serviu Portugal até à exaustão, com o corpo e com o espírito, com dores e escárnios, mas com apaixonada e inalterável fidelidade.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Se as ideias do século tanto puderam com ele, a ponto de levarem o seu claro espírito a perder-se na floresta de enganos do liberalismo nascente, façamos justiça à recta intenção que o guiou e à amargurada confissão dos seus erros, quando a hora tremenda da verdade se aproximou na iluminação interior dos dias derradeiros. Ao preceptorado espiritual de Garrett se acolheram quantos em Portugal gastaram vidas e fazendas nos tarefas gloriosas, mas sem glória, de destruir a mitologia estranha que de estranhos à força recebemos.
Não foi vão -podemos dizê-lo agora- o esforço de Garrett, nem foram vãos os erros de que ele próprio se acusou e arrependeu. Com aquele esforço e estes erros se caldeou a ideia nova e se prepararam, no domínio augusto da inteligência, os tempos que depois vieram. Saudemos em Garrett uni Mestre - e que Mestre! - do nacionalismo português.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Das seduções do liberalismo, então em plena e vitoriosa expansão, não logrou livrá-lo a influência do meio em que se criara e fora educado, mas o trato assíduo das humanidades clássicas, a que o tio bispo o submetera, deu a Garrett o sentido da ordem e da disciplina intelectual e o gosto da forma, precisa e bem talhada. Este sentido da ordem, do equilíbrio, que em Garrett foi paixão sempre viva, o livrou dos excessos demagógicos de que se tornaram culpados os seus contemporâneos, os quais, por isso, o escarneciam, chamando-lhe «ordeiro». Nunca se perdeu nas abstracções ideo-
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lógicas e declamatórias, tanto tio favor de políticos e tribunos.
Sendo liberal confesso e de maiúscula, tinha, porém, um conceito de liberdade e igualdade que não era o dos enoiclopedistas. O seu espira to analítico, a paixão da ordem e o culto da tradição, ou o que Garrett supunha sê-lo, conduziram-no a concepções que o situam fora do quadro ideológico dos liberais do seu tempo. Aos conceitos abstractos de abstractos filosofantes opunha Garrett o moderado conceito que pode ler-se em O Dia 24 de Agosto.
Ali escreveu:
Eis aqui verdades -no século XIX- de simples intuição. Mas deverão elas -neste mesmo século- aplicar-se assim neste estado de abstracção, e com todo o rigor da ideia, ás instituições, aos estabelecimentos sociais? Uma experiência triste e funesta nos adverte que não. O delírio, a efervescência que elas produzem, são sempre a origem horrorosa da mau horrorosa anarquia.
Que são, pois, em concreto -pergunta Garrett- a liberdade e a igualdade?
A liberdade do homem social e cidadão é o direito que ele tem de exercer todos os direitos que lhe deu a natureza, uma vez que não ofenda a tranquilidade pública e as suas justas leis nem perturbe a ordem social rectamente estabelecida.
Eis o seu conceito de liberdade: na legalidade e na ordem.
Se por esta concepção de liberdade se afasta do liberalismo político dos teóricos do seu tempo, não é menos surpreendente nem diverso o seu conceito de igualdade.
Desta escreveu:
E a igualdade consiste em ser indistintamente amparado, protegido e castigado pela lei e pelos seus executores.
Afinal, o bom senso do jurista veio a reduzir a igualdade à igualdade perante a lei, refugando o critério socialmente nivelador com que usualmente vinha aparelhada.
Pode, pois, dizer-se que Garrett, embora concedesse à liberdade as honras de maiúscula, era o menos liberal dos liberais e, pela moderação dos seus conceitos, a que repugnava a desordem e a anarquia, foi único entre os seus pares. Daí a incompreensão de que foi vítima.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Na definição de liberdade, em concreto, Garrett exige que o exercício dos direitos naturais não perturbe a ordem social rectamente constituída. Vale a pena apurar o que entendia por ordem social rectamente constituída.
Não se encontra - eu não encontrei - nos seus escritos qualquer desenvolvimento explícito do conceito referido. Todavia, parece fácil reconstituir o pensamento político de Garrett. Vou tentá-lo.
No escrito que venho referindo alude Garrett às imaginárias Cortes de Lamego, nas quais vê assentar os fundamentos rudimentares da constituição política da monarquia portuguesa, pois para ele «a mais santa e inviolável regra estabelecida, e conservada por tantos anos de glória, é a representação nacional por meio de Cortes, necessária para a imposição de tributos, promulgação de leis, etc.». E, para justificar o vintismo, Garrett assinala que desde os fins do século XVII nenhum rei português reuniu Cortes para ouvir a Nação nos mais delicados e urgentes negócios públicos.
«Das ruínas - escreve -, das cinzas de um governo representativo se elevou o formidável colosso da tirania ministerial». De monarquismo indefectível, veja-se como Garrett aponta para Pombal, e não para a pessoa de el-rei.
E, porque assim foi, dirá ainda: «a nação portuguesa, desligada pela falta de cumprimento, pelo desprezo das condições do seu contrato, do vínculo, da obrigação, tinha todo o direito de abolir um tal governo, de clamar pela sua liberdade e restaurá-la».
Eis como, através da doutrina pactualista, Garrett justifica o movimento insurreccional restaurador da representação nacional, abolida pelo absolutismo. Da qui que o liberalismo moderado de Garrett pretenda sei- um regresso, actualizado embora, às lídimas tradições da monarquia representativa tradicional. Para Garrett não há revolução, mas restauração, regresso às formas tradicionais de governo, à ordem rectamente constituída.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - À monarquia nova, de resto, sempre Garrett chamou monarquia representativa, estimando-a a melhor fornia de governo, pela feliz combinação do princípio democrático com o monárquico.
Aqui é evidente o equívoco de Garrett. A monarquia tradicional era, sem dúvida, representativa. Nas Cortes achavam-se representadas as categorias sociais, tais como se foram organizando e estratificando: clero, nobreza e povo. E estas não eram categorias abstractas, sem realidade viva e concreta. Tais categorias correspondiam a agrupamentos sociais bem definidos e de interesses muitas vezes, ou quase sempre, divergentes, que pela intervenção de el-rei se unificavam no interesse nacional, por ele e nele representado.
O erro de Garrett esteve em transferir para o indivíduo, abstraído do seu grupo e meio, a representação orgânica da monarquia tradicional. Aferrado, porém, ao seu liberalismo, e ainda que tenha pressentido o erro, já não logrou repudiá-lo totalmente.
Da sua boca saíram palavras desdenhosas - e severas para a «santa urna» e para a chamada opinião público, que ele apelidou de «rainha fantástica»; mas o que mais o desgostou e nauseou foi a luta mesquinha dos partidos, sobrepondo os seus interesses ao interesse nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Para Garrett havia apenas dois partidos: o da monarquia velha e o da monarquia nova; mas o único partido em que militou sem desfalecimento foi o do interesse nacional - tudo o mais era algaraviada de facções.
Uma vez que transferira para o indivíduo a representação política da Nação, teve de aceitar, por necessidade lógica, a existência de partidos. Garrett, porém, concebia-os como se não fossem partidos e se movessem, idealmente desinteressados, apenas no sentido do interesse nacional. Ao seu espírito analítico e zeloso dos interesses do País cedo se revelou, porem, a odiosa omnipotência partidária, mais ciosa dos seus pequenos interesses do que do serviço da Nação. E aqui começam os seus desencantos, tão profusamente assinalados nos discursos parlamentares.
Em 1839 disse na Câmara dos Deputados:
... em Portugal ainda se não entendeu por liberdade senão governar o País o partido que está dominante. Esta pode ser a liberdade do partido; não a liberdade dó País.
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E em 1841, mais desiludido ainda, confessava já:
Estou, infelizmente, convencido de que o Governo representativo entre nós tem sido, até aqui, uma mera ficção.
E, ainda no mesmo discurso e mais adiante, sai-lhe este amargo desabafo:
... se me asseveram que o Governo representativo há-de ser este, não o quero, e se, quando eu vivia debaixo do pacífico e manso absolutismo do Sr. D. João VI, de saudosa memória, soubesse que estes haviam de ser os efeitos de vinte anos de sangue e de trabalhos, eu diria: não quero trabalhar nesta causa; diria, Sr. Presidente, porque antes hoje estar vivendo debaixo daquele Governo tranquilo, não perseguidor e fiel ao seu programa de governar absolutamente o País, mas com certa moderação e certa placidez, antes queria este Governo, do que quero um Governo sofisimador, que mente em nome da liberdade, que falta a quantas promessas me fez pelo meu sangue derramado, pêlos meus filhos mortos no campo de batalha, pelas forcas, pêlos patíbulos, enquanto nos escravizam em nome da liberdade e nos dizem, com mofa que rala o sangue: é isto por que combatestes há vinte anos!
Dois anos depois, .prevendo já uma era de despotismo partidário, ergue-se novamente no Parlamento para apontar o perigo, e fá-lo nestes termos corajosos:
Desse despotismo é que nos receamos, não é do despotismo da antiga monarquia, é do novo, que, trazendo-nos todos os males que naquele existiam, não nos dá uma só das garantias que as antigas instituições formulavam. Sim, mil vezes sim, que, obrigado a escolher, eu sem hesitar optaria antes por esse Governo absoluto que fosse regulado por leis e costumes, por um absolutismo que não fosse deste que se faz por portaria e decreto nas. secretarias do Terreiro do Paço. Não tenho medo de que me acusem de absolutista; rio-me e escarneço dessa acusação!
Fomentado por aquele absolutismo, já Garrett via surgir, pela dinâmica fatal do sistema, as oligarquias financeiras, escrevendo no Arco de Sant'Ana:
Estou pensando - e não se arrepiem os meus amigos liberais!- que pelo jeito que as coisas levam, antes de muito, o povo tora outra vez de estreitar mais fortemente a sua aliança com a monarquia, para se defender do omniabsorvente despotismo dos senhores das burras, dos alcaides-mores dos bancos e de todo este feudalismo agiota, que c a fatal lepra da democracia, que rói e carcome e que não vejo forças nem meios - na democracia ao - para os combater.
Mais tarde, em 1854, já na Câmara dos Pares, Garrett, ainda aferrado aos ideais da sua juventude, bate contritamente no peito, acusando-se e acusando os outros dos malefícios que, por sua inconsideração, trouxeram ao País:
Eu sou o primeiro a confessar-me réu nesta acusação - diz -, a querelar de mim mesmo pelo que tenho contribuído com minha inexperiência e cego zelo para muitas dessas desvairadas provisões, dessas imitações e traduções estrangeiras com que erradamente, sem método, sem nexo, temos feito deste pobre país um campo experimentado de teorias, que basta serem tantas e tão encontradas para nenhuma se poder realizar.
Admiremos neste liberal convicto a corajosa atitude de acusar-se e acusar os seus pares dos malefícios de que o País padecia, abruptamente privado das suas instituições tradicionais, à sombra das quais prosperara e se engrandecera.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sacrificado às quimeras de um filosofismo abstracto o que de vivo a história foi elaborando e aperfeiçoando, ficou o deserto, no qual os ideólogos nada de durável puderam construir. Por isso Garrett, levado pela sua bem provada honestidade intelectual, se confessou publicamente, batendo no peito, onde a morte não tardaria em adormecer-lhe o seu portuguesíssimo coração.
Mas ainda então, com a evidência diante dos olhos, Garrett não foi capaz de tirar as conclusões finais:
... o defeito -dizia- não está no sistema, que é belo; não está nos homens, que somos como os outros e melhores que muitos outros. O defeito está nas instituições, que são viciosas; nas leis, que são defectivas e incoerentes. Eis aqui Q única, a verdadeira, a desapaixonada explicação do que entre nós se experimenta - porque o facto é, facto espantoso e tremendo -, que com o sistema representativo é impossível que nenhum outro Estado seja pior governado do que o nosso.
Apesar da sua clara inteligência e bem temperada coragem, Garrett não conseguiu sobrepor-se ao que foi o sonho da sua vida e ao qual, por tantos modos, tudo sacrificou. Seria exigir demasiado.
Coerente apenas com os princípios e fiel, intemeratamente fiel, à lei do interesse nacional, Garrett tinha de passar incompreendido e vaiado pêlos homens dos partidos, que ele denodadamente combatera.
E foi o aceso da luta, com a presciência do que havia de suceder-lhe, que Garrett, no famoso discurso do Porto Pireu, esmagou os seus adversários nestas frases veementes e elegantíssimas:
Os indivíduos morrem; depois da morte vem a justiça, e começa a imortalidade das famas honradas. Eu não sou materialista religioso nem político; espero salvar a minha alma em Jesus Cristo e o meu crédito na lembrança dos Portugueses: nessa esperança certa de ressurreição adormeço tranquilo ao som dos uivos infernais com que presumiam fazer-me desesperar nesta hora que cuidaram de morte.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quem sabe hoje o nome de tantos desses triunfadores momentâneos do sufrágio P Por que actos beneméritos há-de recordá-los a Nação? Passaram sem deixar memória que valha. Garrett, porém, pelo seu portuguesismo sem limites, ficou na lembrança dos Portugueses e, hoje, os que vimos já frutos sazonados das muitas e boas sementes por sua clara inteligência semeadas aqui estamos a tentar saldar o crédito que de nós ficou.
Se muitos de nós não sacrificámos aos ídolos e, na caminhada para a cidade nova, nos não perdemos nos areais do deserto, ao preceptorado de Garrett ficámos devendo algumas certezas com as quais balizou os caminhos do resgate. Reconhecê-lo é, talvez, render ao
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homem excepcional a homenagem que mais cara deve ser ao seu alevantado e fino espírito.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Cortês Pinto: - Sr. Presidente: é esta a primeira vez que, neste ano parlamentar, aqui faço uso da palavra, e aproveito, por isso, a oportunidade para manifestar a expressão da minha profunda consideração e respeito por V. Ex.ª
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Dirijo também as minhas saudações aos Srs. Deputados, meus ilustres colegas.
Sr. Presidente: chegaram a seu termo os celebrações do primeiro centenário, prestadas pela Nação à memória de Garrett. E isto significa, não que passaram cem anos depois da sua morte, anãs que a história começou a contar o primeiro século da perenidade da sua vida.
A cem anos de distância a figura de Garrett não se dilui esfumadamente na bruma dos tempos. Pelo contrário, a sua imagem, luminosa e firmemente recortada, não espera que o esforço da nossa evocação consiga ressuscitá-la. Desprende-se para nós da, tela do passado e caminha gloriosamente ao nosso encontro.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Na gentileza do seu porte, na elegância da sua atitude, na transparência dos seus olhos, na inteligência e serenidade da sua fronte transluz ao nosso olhar aquele toque de luminosidade que revela nos homens superiores a essência original da criação humana: tessitura vibrátil de matéria impregnada de espírito, estatuária palpitante, feita de barro amassado com luz.
Ei-lo ante nós: Garrett, o elegante. Garrett, o mundano. Garrett, o clássico. Garrett, o romântico. Garrett, o prosador, o dramaturgo, o poeta. Garrett, o artista. Garrett, o erudito, o educador, o estadista. Garrett, o político. Mas, acima deste caleidoscópio de imagens, deste Garrett fragmentado, deste cintilar espectral, irisação de mil facetas duma só jóia que o é o espírito multilapidado dum homem superior, um Garrett integralmente único -totus, solut et unus-, aquele que transparece em toda a vasta galeria das suas múltiplas perfigurações: o Garrett nacionalista, que mais do que em tudo se revela no Garrett parlamentar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E através deste Garrett parlamentar que nós divisamos o drama duma consciência que luta nobremente pela integridade da própria alma, procurando resgatar os erros duma juventude incautamente dominada pelas exteriorizações arrebatadas dum Garrett que bem poderemos acrescentar à vasta galeria dos seus retratos: Garrett, o equivocado.
O nacionalismo que tão notavelmente se afirma em Garrett parlamentar está longe de participar do exibicionismo ou da simples superficialidade de tantas das suas atitudes. Não se trata dum simples caso de sensibilidade estética aplicada aos sentimentos e entregue desenfastiadamente a um culto ameno da tradição.
0 nacionalismo de Garrett não se resume à exteriorização duma tendência literária inspirada nas baladas de Bürger ou nos recentes romances historiados de Walter Scott.
Não. O seu nacionalismo vai beber a seiva ao terreno profundo da história e ao espírito da própria Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Pelo que toca às inclinações da sua emotividade sentimental, elas provinham de mais longe. Vinham quase do berço, a florescer aos ritmos das xá-caras e solaus da velha Brígida, que lhe haviam embalado os sonhos e envolvido o espírito naquela melancolia saudosa a que o poeta se refere.
Todo o interesse imaginativo que lhe excita a fantasia infantil e juvenil de criança e de poeta viria a ser filtrado pela meditação intelectual do pensador e do erudito. Anos depois duma cultura humanista (onde havia de colher o equilíbrio e a justa medida do espírito clássico), procura incansavelmente reaportuguesar as fontes naturais do nosso lirismo e da nossa literatura. Para isso, dizia Garrett, era necessário que nos salvássemos da tirania formal e convencional infligida por aqueles estranhos que ele designava por «invasores gregos e romanos».
Relembro esta evolução literária de Garrett para chamar a atenção de VV. Ex.ªs para o paralelismo entre o desenvolvimento do nacionalismo literário do autor da Mérope e do Catão e a evolução política do mesmo homem que,, vangloriando-se de expulsar os invasores gregos e romanos da nossa literatura, introduzira os invasores franceses e ingleses dentro da nossa vida política. Por suas mãos, pela espada e pela pena, se introduzia a Carta e o Contrato Social dentro das nossas leis.
A tentativa infelizmente levada a efeito de desnacionalizar os nossos costumes e as nossas legítimas instituições foi o pecado mortal dum Garrett equivocado, que o Garrett nacionalista havia de redimir num mea culpa, mea culpa, mea, mea culpa, que mais do que tudo nobilita a figura de Garrett parlamentar.
Perante o País inteiro, ele faz e refaz continuamente o seu exame de consciência. Penitencia-se publicamente dos seus erros. E realiza o maio pertinaz e nobre esforço para a conquista e dignificação duma personalidade.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Perante os seus pares e em face da Nação, aquele Garrett perfumado, postiço e espartilhado, do figurino janota e romântico de 1820, desprende dos ombros a capa flutuante das opiniões acomodatícias, despe-se de todos os maneirismos, de todas as futilidades, e sobrepõe à elegância exterior do seu vestuário a elegância interior da sua nobreza espiritual.
E aqui nas lides do Parlamento que mais se afirma n nobreza de alma dum Garrett que não teme arrostar o desfavor da opinião pública, não apenas no isolamento do seu gabinete de trabalho, que essa é a, força dos tímidos, mas olhando tranquilamente, e face a face, muitos dos amigos e correligionários, cujo despeito e hostilidade pressente.
O mesmo que durante a vida inteira desperdiçara uma grande parte do tempo e do espírito no culto de artificialismos que lhe haviam de conquistar o agrado mundano não hesita em provocar o desagrado dos políticos, as insídias dos despeitados e as reacções dos apaixonados, que o apodam de trânsfuga do liberalismo maçónico da Constituição. Em respeito pela sua alma, despreza nobremente os êxitos fáceis que da tribuna parlamentar se repercutiriam sobre uma sociedade que vivia num clima de exaltação.
Desta atitude, em que o em espírito se manifesta ainda mais rendido ao culto da elegância moral do que
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da elegância mundana, desprende-se o alto conceito e o profundo respeito de Garrett pela tribuna parlamentar.
Vozes: - Muito bem.
O Orador: - O seu amor pela oratória começara cedo. Tinha 15 anos apenas quando pela primeira vez subiu os degraus duma tribuna para marcar o seu primeiro êxito de menino prodígio. Subira-os inesperadamente, para substituir num improviso o orador que não pudera comparecer. E essa primeira tribuna fora uma tribuna sagrada: um pequenino púlpito de igreja na diocese de Angra do Heroísmo.
Era então bispo dos Açores aquele seu tio D. Frei Alexandre da Sagrada Família, humanista e poeta, que entre os pastores da Arcádia usara o nome de Sílvio ira pastoreava as almas nas formosas ilhas.
Desvanecido com o espírito gentil do jovem sobrinho, ele lhe dera as primeiras lições de humanidades. Mandara-lhe ensinar o grego e o latim e infundira em seu espírito aquelas virtudes do classicismo que haviam de dar ao futuro e ingrato romântico o justo sentimento de medida e de equilíbrio. Estas virtudes lhe preservariam a inteligência e o espírito daqueles desmandos sentimentais em que tantas vezes soçobrou a frágil sensibilidade do seu apaixonado coração.
Foi, pois, uma tribuna sagrada a sua primeira tribuna. E esta circunstância não pode restringir-se a um significado meramente anedótico na história pregressa da sua vida parlamentar.
Nesse longínquo e humilde púlpito de uma igreja distante, onde desabrochara, quase na infância ainda, a eloquência, a um tempo fluida e vigorosa, do orador, se firmariam possivelmente as raízes imperecíveis da sua consciência de tribuno.
Aquela pregação cristã feita na casa de Deus havia de se lhe gravar em traços indeléveis no subconsciente e ficaria ali como uma pequenina luz, bruxuleante mas inextinguível, a irradiar para todo o sempre o sentimento de respeito que nele perduraria incessantemente através de uma agitada vida parlamentar.
Ao erguer a elegância do seu vulto na Assembleia dos Deputados ou na Câmara dos Pares havia de sentir que os seus pés estavam pisando uma tribuna sagrada. Ao levantar a fronte clara e lisa para a abóbada em que a sua voz havia de ressoar os seus olhos evocariam entre as névoas da lembrança o tecto humilde ao abrigo do qual pela primeira vez falara sob as vistas do Senhor.
Na atmosfera que o cercava sentiria aquela vibração de fé e de pureza que o envolvera no púlpito e lhe fizera sentir a impressão física de um ambiente impregnado de almas. E ao ouvir o som das próprias palavras dominá-lo-ia o sentimento de que também na tribuna parlamentar, como num púlpito de igreja, se não deveria falar outra linguagem que não fosse a da verdade, nem cuidar de outro zelo que não fosse o zelo da Pátria e de Deus.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - No célebre discurso de Porto Pireu o orador começa por invectivar os que se não coíbem de trazer ao Parlamento assuntos é palavras indignas de uma Assembleia Nacional. E considerava que acertas palavras deveriam riscar-se de todas as línguas que têm a honra de ser faladas em um Parlamento».
Por isso Garrett parlamentar supera todas as futilidades e as suas palavras tomam por vezes o tom patético de quem fala para resgatar os erros em que a alma se lhe desencaminhara, naquela ideologia política, estrangeira e antinacional, que a sua leviandade de moço entusiasta ajudara a introduzir em Portugal.
É assim que no relatório apresentado à Câmara dos Pares em 21 de Janeiro de 1834 Garrett, depois de afirmar a colaboração que prestara em todas as organizações e reformas administrativas que se haviam legislado depois de 1832, confessava publicamente:
Torno a dizer, senhores: são passados mais de vinte anos de experiências infelizes, de tentativas malogradas, e seria a maior de todas as vergonhas se nos envergonhássemos de agora confessar que errámos, que errámos muitas vezes e que tonto mais erramos quanto mais tentamos dissimular o primeiro erro.
Não podemos ouvir estas nobres palavras sem que elas evoquem aos nossos ouvidos o ritmo da mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa de quem nobremente pretende resgatar a sua alma, confessando os erros cometidos, para proveito e exemplo de políticos e para salvação de Portugal.
E este um dos passos em que o Garrett do liberalismo, desdobrado em tantas individualidades pela análise sistemática da crítica e classificado com tantos títulos quantas as variadas manifestações do seu espírito, afirma a plenitude da sua personalidade em plena vida parlamentar. O Parlamento é para ele um templo da verdade. E o jovem liberal da revolução política do Mindelo alcança merecidamente o justo título de Garrett nacionalista.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Logo a seguir, no seu discurso de 10 de Fevereiro, insistindo no mesmo esforço por manter uma personalidade intangível, Garrett volta a penitenciar-se:
Eu sou o primeiro a confessar-me réu nesta acusação, a querelar de mim mesmo pelo que tenho contribuído com minha inexperiência e cego zelo para muitas dessas desvairadas provisões, imitações e traduções estrangeiras com que erradamente, sem método, sem nexo, temos feito deste pobre país um campo experimentado de teorias, que basta serem tantas e tão encontradas para nenhuma se poder realizar. Sou eu, sim, somos todos responsáveis ...
Entretanto, a luta constante entre o liberalismo maçónico, a que enfeudara o espírito na sua exuberante mocidade, e o esforço de resgate para que o impelia a honestidade da sua inteligência e o instinto do seu nacionalismo nem sempre o levam a atingir o fundo do problema.
E ao lado do Garrett nacionalista persiste durante muito tempo Garrett, o equivocado. O seu espírito resiste ainda a reconhecer n derrocada total de todos os seus ideais e procura salvar os princípios que tão abnegadamente servira, estabelecendo uma discordância artificial entre ti Carta e a Lei.
O mesmo equívoco se manifesta ao reconhecer os defeitos da justiça, cuja mais perfeita expressão estaria na instituição dos jurados: «Que é dessa venerável e santa instituição dos jurados, que plantámos em nome da liberdade?» perguntava Garrett, melancolicamente, ao verificar a falência daquela instituição, que, segundo os suas próprias palavras, era a que mais aproximava a justiça humana da justiça celeste. E não hesita em reconhecer honestamente e denunciar em plena Câmara que «o que está é péssimo, insuportável, intolerável ... Os juizes queixam-se dos jurados. Os jurados dos juizes. Os administradores de ambos. Todos das leis e o povo de tudo! E todos têm razão».
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E curioso verificar como o seu espírito é sensível a todas as inadaptações legislativas dos princípios reformistas. E conclui: «é porque a sua aplicação entre nós é defeituosa e má».
Que admira que Garrett, iludido por um idealismo que legislava sobro conceitos puros e abstraía das impurezas ou insuficiências dos homens, não descortinasse a fatalidade inevitavelmente humana do erro original da instituição, se foram precisos mais de cem anos de experiência para tomar em conta o vício psicológico da sua concepção!
Aqui ainda Garrett parlamentar consegue dar-nos um exemplo de sinceridade admirável e de perfeito desassombro em Garrett, o equivocado. E entretanto ele andara perto da essência do problema ao estigmatizar os inconvenientes do sistema eleitoral.
Também o erro da selecção democrática das urnas, quando postas ao serviço incondicional do confusionismo e das desordens dos partidos, mão escapara à visão da sua inteligência e à honradez do seu espírito, ao reconhecer no discurso parlamentar de 9 de Outubro de 1837 que tudo quanto se fez de prejudicial à vida da Nação - ca ruína da Fazenda Pública, a desorganização do Estado, a corrupção moral do cidadão e, enfim, «a confusão de ideias do justo e do injusto» - era a consequência da supremacia quantitativa e irresponsável das urnas: «pois foi pela urna, foi pela sujeição dela a um partido que nos vieram todas essas calamidades ». E acrescenta, com o acento trágico do desiludido que semeou ventos e agora se confrange com a colheita das tempestades: «quanto a mim, tenho a infelicidade de ver, próximos e inevitáveis, futuros muito piores. Oxalá que me engane». Não se enganou:
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O espírito e a experiência de Garrett vão-no afastando cada vez mais da utopia para voltar a contemplar as verdades eternas. E, reconhecendo a mistificação ideológica de uma Gamara inteiramente seleccionada pela incompetência política das multidões, advoga a necessidade de combinar a eleição popular com a intervenção da Coroa. Tomava-se necessário preservar os interesses do Estado da supremacia dum injusto poder conferido pelas urnas.
O rei, que para Garrett era o mais alto e natural representante da Nação, proclamava-o ele o grande eleitor nacional. Em seu entender, mais do que nenhuma condição, é a hereditariedade que lhe garante o alheamento das intrigas, eleitorais, e só ele se mantém em plena liberdade, invulnerável às manobras dos habilidosos ou ambiciosos manejadores do voto das multidões, porque a sua independência resulta de um direito próprio e não depende de ninguém.
Apreciadas as vantagens da hereditariedade em relação ao pariato, logo Almeida Garrett esclarece os inconvenientes da extensão deste privilégio, que para salvaguarda do povo deve confinar-se apenas ao rei. E acaba por preconizar uma Câmara Alta constituída em parte por escolha do Chefe da Nação, a qual o orador considera o organismo mais apto para superiormente orientar a política do Estado, em conformidade com os votos duma Câmara eleita pelo sufrágio popular.
Não podia Garrett encontrar melhor fórmula dentro do espírito da sua querida Carta Constitucional. Colocado por vezes num ponto de colisão entre as ideologias liberais que toda a vida trausviadamente servira e o reconhecimento da superioridade das estruturas nacionais que ajudara a destronar, sente-se o esforço de Garrett para conciliar os apriorismos filosófico-políticos da doutrina liberal, que ele próprio fora buscar ao estrangeiro, com as vantagens reconhecidas nos sistemas derrubados - bem próprios de Portugal. Era preciso ressalvar a intangibilidade daquela Carta, que tanto o enfeitiçara e que afinal não tinha mais virtudes em política do que as suas pobres cartas de amor em epistolografia...
«Estará o vício das instituições ... nessas regras fundamentais que a Carta consagrou? Não, senhores - responde Garrett, ainda não libertado dos seus dramáticos equívocos -: o mal está nos corolários que dela temos tirado, nas leis que para sua execução temos feito. Era como quem dissesse que o mal não estava na árvore, mas nos frutos que da própria árvore nasciam.
Ao querer substituir a monarquia desvirtuada pelo absolutismo de Pombal e regressar à monarquia representativa e tradicionalista, os olhos do seu espírito encontravam-se demasiado ofuscados pela mitologia ideológica do liberalismo intruso para poder descortinar os fundamentos nacionais do sistema corporativo.
E contudo esse sistema melhor corresponderia aos seus desejos do que o complexo sistema representativo exposto nas sessões de 9 e 12 de Outubro de 1837. A sua inteligência luta por desenvencilhar-se do enredo de teses e de antíteses em que se sente 'embaraçada, e não encontra um rumo seguro por onde os princípios possam singrar, sem os -riscos de fazer que a Nação naufrague contra os escolhos de Cila ou se desfaça nos rochedos de Caríbdis.
Com tão profundo nacionalismo como era o de Gar- ' rett, é necessário que seja bem insidioso o filtro do liberalismo para conseguir embotar a agudeza tão per-cuciente da sua inteligência, conseguindo que o homem que tão bem soube compreender a instituição medieval do municipalismo não soubesse distinguir nela a arquitectura social da Casa dos Vinte e Quatro.
Ali encontraria o reformador essa pequenina câmara corporativa que em cada concelho funcionava como organismo integrado na câmara municipal. Se a meditação do estadista houvesse incidido sobre as corporações medievais, certamente que o seu espírito encontraria a solução do problema representativo naquela forma que tão bem se ajustava ao seu esclarecido culto da tradição e ao amor pelo povo, que mais do que ninguém ele procurou servir.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O drama do Garrett provém da constante verificação da falência das reformas com que procurava reintegrar Portugal no clima político da monarquia medieva. Apesar de todas as ânsias de reformar a Nação, ele permanece inflexivelmente fiel ao que Babcac chamava as duas verdades eternas: a religião e a monarquia. Por isso constantemente' se confrange com o desmoronamento rias suas ilusões.
No célebre relatório sobre conventos de freiras Gar-rett ousa afirmar:
Devem pesar sobre a consciência do partido liberal, que há um quarto de século reina, as justas objurgações que a posteridade forçosamente nos há-de fazer por esta persistência de ignávias.
E em 4 de Março do mesmo ano, acusando o Governo de fazer perseguições religiosas, refere-se ao Vaticano para afirmar que ele constitui um poder a quem devemos submissão. E exclama:
Não me pejo de o dizer, porque pertenço a um ' país católico, porque sou católico e porque, ainda que o não fosse, como representante desse país, devia-o declarar submisso a esse poder.
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Monárquico e católico, Garrett constantemente se confrange com o desmoronar das suas ilusões. Sente-se quantas perplexidades de espírito e ao mesmo tempo quanta decisão e desassombro o levaram a pronunciar estas palavras:
Não venha o funesto sofisma do medo do passado impedir-nos de voltar ao que havia de bom, de justo e de livre nas instituições dos nossos maiores.
E, referindo-se ao despotismo dos reformistas do liberalismo, insiste noutro passo, mais incisivamente:
Desse despotismo é que todos nós receamos. Não é do absolutismo da antiga monarquia, é do novo, que, trazendo-nos todos os males que naquele existiam, não nos dá uma só das garantias que as antigas instituições formulavam.
Sim, mil vezes sim, que, obrigado a escolher, eu sem hesitar optaria antes por esse Governo absoluto ... Não tenho medo de que me acusem de absolutista ; rio-me e escarneço dessa acusação!
No seu discurso de 10 de Fevereiro de 1954 denuncia Garrett a enganadora esperança, com que ele mesmo se iludiu, de corrigir com lentas contemporizações os equívocos fundamentais da nossa política:
Quando o mal está na base, na raiz mesma duma instituição, cada dia que demoramos estirpá-la agravamos a moléstia e consumimos- as forças sociais que cão necessárias para resistir ao mal e à cura.
Que nobre afirmação de personalidade em todos os discursos admiráveis com que Garrett, mais do que ninguém, honrou a tribuna parlamentar! E não hesito em dizer «mais do que ninguém» porque, se outros se lhe podem comparar, embora não exceder, em reptos de oratória, ninguém pode igualá-lo nas lições vivas de dignidade moral, de inteireza de carácter e de fiel intérprete do puro espirito da Nação, porque em ninguém se Muniam as condições particulares da vida política de Garrett.
E justamente a sua posição de soldado da liberdade, de revolucionário exilado, de legislador das reformas constitucionais, o que põe nas suas palavras o mais perfeito cunho duma autoridade indiscutível, solidamente gravada pelo cinzel da experiência.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - No mais antigo dos discursos compilados na edição geral das suas obras encontra-se transcrita uma nota do Diário das Sessões em itálico e entro parêntesis. Diz a nota: (Débeis apoiados de alguns membros do Congresso). Destas palavras se depreende a frieza e hostilidade com que o ouviam.
Pois esta desconsolada nota constitui um dos maiores títulos de honra de Garrett. Não obstante a frieza da Câmara, ele, que tão cuidadosamente cultiva o sucesso, prefere arrostar com o desagrado dos seus pares a trair a rectidão da sua inteligência e da sua alma. E por isso que a vida parlamentar de Garrett constitui uma das maiores lições de dignidade moral que até hoje se puderam colher neste Parlamento.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A um século de distância, a memória de Garrett perdura nas letras portuguesas como a do poeta e prosador que mais lusíada influência exerceu na expressão literária da nossa linguagem. Mais ainda do que na obra que nos deixou, a glória de Garrett persiste em todas as obras que depois dele se escreveram, porque foi o seu génio que imprimiu às letras pátrias o novo rumo em que depois singrou a nossa literatura.
De entre os numerosos aspectos em que a memória de Garrett lhe desdobrou a personalidade, popularizaram-se, como se fossem as mais representativas do seu psiquismo, além do homem de letras, Garrett, o elegante, Garrett, o amoroso.
Garrett, o elegante! Mas não vêem os que apenas se comprazem na visão superficial dos homens e das coisas que o que mais avulta na elegância de Garrett não é a cambraia da sua camisa, a cintura do seu espartilho, o corte da sua casaca, o amaneirado da sua presença, mas antes a virilidade forte, a energia insubmissa e a inflexibilidade exemplar da sua elegância moral!
Garrett, o amoroso! Mas aos que apenas se deleitam com a literatura inferior da sua epistolografia erótica é necessário mostrar-lhe o Garrett apaixonado pela alma do povo português, pêlos seus romances, pêlos seus costumes, pela sua história, pelas suas tradições, por tudo, enfim, quanto seja castiçamente nacional.
Garrett, o escritor! Mas para melhor se conhecer o que em geral se procura na obra de um autor, isto é, para além do seu estilo, a graça ou a profundidade dos seus sentimentos e da sua inteligência, mister se torna conhecer, ao lado do escritor, Garrett, o parlamentar.
E aí, na colecção dos discursos pronunciados na Câmara dos Deputados e na Câmara dos Pares, que se lêem algumas das melhores páginas da eloquência portuguesa e é aí -ouso dizê-lo- que se ergue em toda a sua grandeza quanto há de superior na alma e na inteligência de Garrett.
Esses discursos, com a beleza da sua forma e a fremente aspiração de nacionalismo político que deles transcende, constituem a melhor e mais justa lição de nacionalismo político, que se pode oferecer aos Portugueses na celebração do seu centenário. Apenas oito discursos se encontram publicados. Tudo o mais das suas intervenções parlamentares jaz sepultado nas páginas esquecidas do Diário das Sessões.
Quero, por isso, Sr. Presidente, aproveitar esta oportunidade para me dirigir ao Governo da Nação - e em particular a S. Ex.ª o Ministro da Educação Nacional, que tão elevadamente evocou a obra e o espírito de Garrett no dia da abertura das comemorações nacionais-, sugerindo que se complete a edição total das suas obras, coligindo e editando não só todos os discursos que pronunciou mas ainda todos os- restantes intervenções parlamentares, em que too nobremente se revela a grandeza da alma de Garrett e a pureza do seu portuguesismo.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: na sessão inaugural das comemorações centenárias da morte de Almeida Garrett tive ocasião de, em nome da Assembleia Nacional, prestar homenagem ao grande homem de letras e grande português.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Hoje, no dia em que se completam precisamente cem anos sobre o eclipse daquele alto espírito, a Assembleia Nacional, pela voz eloquente e culta dos Srs. Deputados Abrantes Tavares e Cortês Pinto, quis assinalar o fecho das comemorações e prestar-lhe as últimas homenagens! Últimas? Não. Garrett será sempre para a Assembleia Nacional o modelo de
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oratória parlamentar e um exemplo edificante de lídimo portuguesismo.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Presidente: - A sua estatura de poeta, de romancista, de dramaturgo, de reformador político, excede todos os quadros em que o quiséssemos meter. E sobressai em toda as suas manifestações literárias e políticas a sua grande figura de português integral, amante enternecido de tudo quanto no passado era digno da veneração nacional, de tudo quanto representasse uma aspiração para uma maior prosperidade e glória do agregado nacional.
A Assembleia Nacional encerra as suas homenagens a Garrett com a manifestação do seu legítimo orgulho de o contar no número dos seus antepassados, ele, que é ao mesmo tempo uma das maiores criações da raça portuguesa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Rastreando o pensamento de um grande escritor francês - Michelet - referindo-se a um dos maiores vultos literários do romantismo francês, nós podemos dizer sinceramente a Garrett: amamo-vos, porque vós fostes uma das grandes forças da raça portuguesa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Elísio Pimenta: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa o seguinte
Requerimento
Em aditamento ao meu requerimento de 24 de Março último, e tendo em atenção que nele se solicitava a indicação da capacidade total da produção da indústria continental da cerveja nos anos de 1950, 1951, 1952, 1953 e 1954, mas que a resposta dada não especifica a capacidade de produção em cada um dos referidos anos, requero que, pelo Ministério da Economia, me sejam fornecidas, com urgência, mais as seguintes informações:
1.º Qual o número correspondente à capacidade de produção das fábricas de cerveja do continente, em relação ao mês de Julho de cada um dos anos de 1950, 1951, 1952 e 1953 e ao dia 4 de Maio de 1954;
2.° Se foi autorizada, desde Maio de 1952 até 5 de Maio de 1954, qualquer montagem de novos maquinismos ou substituição dos existentes, nas fábricas de cerveja, que importasse aumento da sua capacidade de produção;
3.° Se a fiscalização, ou quaisquer outros serviços, denunciaram entre aquelas datas qualquer montagem ou substituição clandestinas de maquinismos. No caso afirmativo, que medidas foram tomadas pela direcção-geral dos Serviços Industriais;
4.° Que razões houve para o Ministério da Economia, pelo quadro II do Decreto- Lei n.° 39 634, de 5 de Maio de 1954, libertar inteiramente do condicionamento as modificações ou ampliações de quaisquer equipamentos fabris na indústria da cerveja, quando, simultaneamente, manteve, pelo quadro I, o condicionamento da mesma indústria, o que, como é óbvio, dificulta a criação de novas unidades que restabeleçam a concorrência».
Tenho dito.
O Sr. Miguel Bastos: - Sr. Presidente: usando pela primeira vez da palavra nesta sessão legislativa, apresento a V. Ex.ª os meus cumprimentos e as minhas homenagens muito respeitosas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não raras vezes a nossa voz se ergue aqui para reclamar do Governo providências que promovam o bem e a justiça para os povos que nesta Assembleia representamos; não raras vezes se ergue aqui a nossa voz para criticar actos da Administração que certos vícios tornaram dignos de censura e objecto de clamor daqueles que lhes estão sofrendo as consequências.
Justo é também que a nossa voz se erga quando o Governo pratica actos que, tocando no mais fundo das realidades sociais, transportam em si o mais admirável espírito de justiça e provocam, na sua aplicação, o maior entusiasmo e a mais viva alegria.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Pedem-me, Sr. Presidente, os homens simples e modestos que povoaram e desbravaram os chamados «foros de Cabanas» quê diga aqui ao Governo da sua alegria e reconhecimento pela publicação do Decreto-Lei n.° 39 917, através do qual se assegura aos homens que trabalharam aquelas pobres terras desde cerca de 1880 o direito a ficarem donos e senhores do que ali nasceu, finito exclusivo do seu trabalho.
Hoje pode realmente dizer aquela gente: «valeu a pena passar muita fome durante alguns anos para fazer a propriedade», a sua propriedade.
A incerteza do dia de amanhã surge a certeza do futuro.
Pagarão o valor da terra e ficarão seguros de que podem continuar o seu trabalho sossegados e tranquilos, porque o seu esforço não se perderá a favor doutros que não sejam os seus filhos e os seus netos.
O Governo, atento à gravidade do problema, não pôde permanecer indiferente perante o risco de ver comprometidos o valor económico e o interesse social que aquelas núcleos de colonização espontânea representam na vida nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Tinham sido muitos hectares de antiga charneca que, divididos em pequenas explorações, foram submetidos à cultura intensiva, onde se fixara quase um milhar de famílias, vivendo em parte do rendimento da courela e em parte do trabalho assalariado.
O Sr. Carlos Moreira:- V. Ex.ª dá-me licença? Havia partes que eram de charneca, mas V. Ex.ª sabe se não havia terrenos nos quais os respectivos proprietários tivessem feito obras de maior ou menor valor?
O Orador: - Essas foram respeitadas.
Nos casos em que a terra foi cedida por venda ou aforamento a colonização consolidou-se e por gerações sucessivas a família, vinculada à gleba, dedicou-se à crescente valorização da terra e dela retirou o produto do trabalho e do amor que lhe dedicou.
Notável função social desempenha este sistema, pois, mesmo que o traço da terra possuída não produza rendimento que comporte todos os encargos familiares; garante ao trabalhador rural o complemento da receita do salário e absorve a sua actividade nos períodos de desemprego.
Quando mesmo as courelas resultantes da divisão não foram cedidas por venda ou foro, mas sim por arrenda-
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mento a longo prazo, o apego inicial do colono à terra e a realização de benfeitorias não diferiram dos que se verificaram nos casos de posse perpétua. A terra foi trabalhada e enriquecida como se perpetuamente pertencesse no colono.
O Sr. Carlos Moreira: - V. Ex. ª pode informar-me sobre se essas primitivas rendas estavam actualizadas de harmonia com os benefícios introduzidos?
O Orador: - Posso informar V. Ex. ª com a certeza de que essa actualização vinha dando-se desde há vários anos.
O problema cruciante que surgiu foi só em relação às benfeitorias realizadas pêlos colonos.
Só o tempo - e geralmente por morte do proprietário que promovera a iniciativa - é que veio levantar o espectro constituído pela estranha posição de o rendeiro ter de pagar renda pêlos melhoramentos que realizou com os próprios meios, sem qualquer espécie de auxílio do proprietário. A boa fé e a suposição da posição de foreiros, tudo levou aquela gente n convencer-se de que não havia nada que lhes tirasse o valor do seu trabalho, o produto dos seus esforços e canseiras!
Infelizmente, a verdade é que a legislação portuguesa em matéria de arrendamentos da propriedade rústica não protege estes casos de verdadeiro interesse social, que poderiam contribuir em larga escala para resolver o problema agrário de certas regiões, facilitando o acesso dos rurais à exploração da terra e diminuindo, assim, a proletarização rural.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Estavam os rendeiros prestes a perder uma mais valia, produto exclusivo do seu trabalho, iniciativa e capitais, de montante muito perto dos dez mil contos, só no caso da Quinta da Torre.
Apelou-se então para o Governo e este, estudado, calma e serenamente, o problema, decidiu: aos donos da terra, pagar-lhes esta pelo seu justo valor; aos colonos, entregar-lhes as benfeitorias, produto do sen trabalho, da sua iniciativa, das suas economias.
Não foi em vão que se esperou, não foi em vão que se confiou!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Tenho ainda nos olhos a grande manifestação de domingo, em que o bom, ordeiro e generoso povo de Cabanas se quis juntar em festa de família para festejar este notável acontecimento.
Recolho em minhas fracas mãos toda a comoção que vi, os vivas que ouvi, as palmas que se deram, as lágrimas que se choraram, e tudo daqui envio ao Sr. Presidente do Conselho, juntando a todas aquelas 'homenagens, que para ele vi dirigidas, as minhas homenagens rendidas e agradecidas.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Ao referir a alegria de todos pela justa solução dada a este grave problema, não posso deixar de proferir uma amiga palavra de agradecimento ao Sr. Ministro da Economia, pelo interesse vivo que nele os (apoiados), como não posso deixar de referir o nome do nosso ilustre colega, nesta Assembleia, Dr. José Guilherme de Melo e Castro, Deputado pelo círculo de Setúbal, que desde a primeira hora pôs, com inteira isenção de interesses materiais, ao serviço do esclarecimento e estudo deste assunto toda a sua grande inteligência, toda a bondade do seu coração, toda a força da sua vontade. Com verdade posso dizer que o seu nome ficou preso para sempre ao coração de toda aquela boa gente. Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente:-A primeira parte da ordem do dia é constituída pela apreciação, de novo, do artigo 14.° do decreto da Assembleia Nacional sobre a proposta de lei da indústria hoteleira.
Como a Camará sabe, e já foi' publicado no Diário, o Sr. Presidente da República entendeu dever manifestar à Assembleia razões pelas quais julgava conveniente que a Assembleia Nacional examinasse de novo a matéria do artigo 14.° do mesmo decreto.
A Constituição estabelece que, decorridos quinze dias sobre a aprovação ou a publicação no Diário, ou, em suma, sobre o conhecimento que o Chefe do Estado tenha de qualquer decreto da Assembleia, sem a sua promulgação, esta deve considerar-se recusada e o diploma submetido de novo à apreciação da Assembleia.
Nada obsta, porém, a que o Chefe do Estado possa fazer uma recusa expressa e circunscrita a determinada disposição do diploma em causa.
Foi o que o Chefe do Estado fez com a resolução que foi publicada no Diário da» Sessões. Cloro que pode pôr-se esta questão: se o artigo 14.°, que mereceu da parte do Chefe do Estado a recomendação de que a Assembleia voltasse a pensar o assunto, está dê tal forma travado com o resto do diploma que não possa ser apreciado isoladamente, sem ser conjuntamente apreciado todo esse diploma, não terá de proceder-se à apreciação de todo ele? Creio que sim, mas isso é da competência da Camará.
O exame que fiz desse diploma e do artigo 14.° leva-me à convicção de que a Assembleia pode apreciar isoladamente este artigo 14.° e pronunciar-se sobre ele. E, se não houver manifestações da Assembleia em sentido contrário, apreciaremos apenas este artigo 14.°
Pausa.
O Sr. Presidente:-Segundo a Constituição, seria necessário um quorum de dois terços dos membros efectivos da Assembleia Nacional para que, depois de vetado, o artigo houvesse de ser promulgado, não obstante uma primeira objecção da parte do Chefe do Estado.
Vou, portanto, visto não haver manifestações em contrário, pôr à discussão o artigo 14.° do decreto da Assembleia Nacional relativo â indústria hoteleira. . Tem a palavra o Sr. Deputado Mário de Figueiredo.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa uma proposta de alteração ao artigo 14.° em discussão.
Essa proposta de alteração apresenta-se redigida nos termos seguintes:
Proposta
Art. 14.° As empresas a que se refere o artigo 12.º beneficiarão da isenção de direitos aduaneiros e emolumentos consulares para todos os apetrechos (móveis, materiais, utensílios e aparelhos) destinados à construção e instalação de estabelecimentos futuros ou à ampliação, adaptação, renovação ou beneficiação de estabelecimentos existentes, desde que o projecto das obras ou melhoramentos seja aprovado pêlos serviços de
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turismo, se tais apetrechos não puderem ser adquiridos à indústria nacional em qualidade equivalente e dentro de prazos compatíveis com as necessidades da empresa, ou se aquela não puder oferecê-los a preços iguais ,ou inferiores aos dos mesmos artigos estrangeiros, acrescidos de 15 por cento.
«único. O Governo tomará as medidas adequadas a prevenir o abuso da isenção concedida neste artigo».
Esta é, Sr. Presidente, a proposta que vou ter a honra , de mandar para a Mesa e que carece, naturalmente, para completa elucidação da Câmara, de umas ligeiras explicações.
Conforme o documento em que se comunicam à Assembleia os fundamentos da não promulgação do decreto desta em apreciação, a recusa de promulgação baseia-se no facto de, com a disposição do artigo 14.° aprovada, se ter modificado a orientação legislativa seguida desde a Lei n.° 2002.
A modificação está expressa nas palavras seguintes do artigo 14.° citado: (despachados para consumos).
Conforme o debate, uma das razões que levaram a Assembleia a votar a proposta de substituição do artigo 13.° da proposta do Governo foi o facto de no parágrafo do dito artigo se deixar à competência dos serviços o que se entendia dever ser competência do Governo.
Com a proposta apresentada elimina-se o fundamento da recusa de promulgação com a eliminação das palavras «despachados para consumo»; e dá-se satisfação aos desejos da Assembleia, atribuindo ao Governo competência que na proposta inicial era atribuída aos serviços.
Trata-se, pois, de uma posição nova, sobre a qual a Assembleia está perfeitamente à vontade para se pronunciar.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Continua em discussão. Pausa.
O Sr. Presidente: -Como nenhum dos Srs. Deputados deseja lazer uso da palavra, vai votar-se.
Estamos em face duma situação nova, criada pela apresentação dum texto que é diferente do da proposta governamental e daquele que foi votado pela Assembleia.
Como se trata duma proposta de substituição, entendo dever submeta-la em primeiro lugar à votação da Assembleia.
Se este artigo for votado por maioria, considero a Assembleia dispensada de votar .o texto actual do decreto da Assembleia Nacional, para o qual seria necessária uma maioria de dois terços dos Deputados era efectividade, maioria impossível em face de uma votação por maioria do texto agora apresentado pelo Sr. Deputado Mário de Figueiredo.
Vou, portanto, pôr à votação a proposta do Sr. Deputado Mário de Figueiredo, que substitui totalmente o artigo 14.° e seus parágrafos do referido decreto.
Submetido à votação, foi aprovado for unanimidade.
O Sr. Presidente:- Esgotada, assim, a primeira parte da ordem do dia, vamos passar à segunda parte: discussão da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para o ano de 1955.
Tem a palavra o Sr. Deputado Rebelo de Sonsa.
O Sr. Rebelo de Sousa: - Sr. Presidente: limitarei a minha curta intervenção neste debate à apreciação do que na Lei de Meios presente se refere à «política de valorização humana».
Conforme foi já unanimemente reconhecido, este capítulo apresenta o maior interesse e demonstra, uma vez mais, a compreensão do Governo para com os grandes problemas da saúde física e moral, que estão na base da valorização da nossa gente. Não regatearemos, pois, o aplauso a tais disposições.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Lançados os fundamentos da normalidade financeira, económica, social e política e abertas as perspectivas da sua consolidação e desenvolvimento, bem está que nos preocupemos com os aspectos especificamente relativos à saúde e assistência, cuja evolução, com ter sido grande, não acompanhou, a nosso ver, no mesmo ritmo, o progresso havido nos outros sectores da vida nacional (ainda que largamente beneficiasse do ambiente renovador e das conquistas feitas em vários campos que, directa ou indirectamente, sempre nela se teriam reflectido).
Certo é que o facto de haver na lei especial citação de alguns problemas não prejudica o natural andamento dos outros, pelas dotações normais e consoante as crescentes necessidades. Entende-se, porém, que essa citação corresponde à maior premência que o Governo reconhece a determinadas questões, dispondo-se a investir, com esse fim, verbas de maior grandeza, cãs grandes dotações que definem uma posição ou uma política de Governo», como bem se dizia no douto parecer da Câmara Corporativa de 1951.
Significando, assim, as disposições que estamos a considerar a uma posição», «uma política de Governo», convirá verificar - e é a missão desta Câmara - se ela se ajusta às reais necessidades, segundo a hierarquia - quanto à importância, urgência e oportunidade -, dos problemas que se nos apresentam.
Propõe-se na presente lei «o desenvolvimento de um programa assistencial às doenças reumatismais e cardiovasculares» e a «criação e manutenção de centros ou serviços de recuperação e terapêutica ocupacional de paraplégicos, traumatizados e outros doentes».
São, efectivamente, assuntos de grande relevância e de palpitante actualidade.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Aquelas enfermidades que se agrupam na terminologia geral de reumatismo constituem, na verdade, uma das causas mais comuns e de mais longa duração de incapacidade física, que nem sempre terá merecido a. atenção devida, porventura, porque, «impossibilitando muitos, para poucos é fatal».
Também os doenças cardíacas e cardiovasculares ocupam lugar proeminente entre as que produzem baixas no trabalho e são, cada vez «m maior volume, a causa mais saliente de mortalidade na idade adulta.
Podemos dizer que, de forma geral, umas e outras crescem de frequência e gravidade à medida que a idade avança,' e, como a longevidade do homem aumenta, deduz-se, assim, que chegarão a ser predominantes, como factores social, médico e económico, na vida das sociedades.
Umas e outras cabem hoje, perfeitamente, dentro da noção que temos de doença social. Já não diremos o mesmo da diabetes, cuja assistência é preconizada no mesmo plano das anteriores no douto parecer da Câmara Corporativa.
Efectivamente, aquelas doenças sociais, cujo combate incumbe ao Estado planear e dirigir, caracterizam-se, essencialmente, pelo papel desempenhado nesse combate pelas medidas higiénicas « profilácticas e por constituírem, pela sua incidência, extensão e gravidade, um fia-
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gelo que influi, por forma decisiva, nas características de um povo, marcando-o com os seus estigmas.
Ora, não cremos que a diabetes possa ser considerada nestas condições.
Compreende-se, portanto, a importância que foi reconhecida às enfermidades abrangidas na lei, e mais esclarecida ficará a Assembleia quando, por certo, ouvir o Prof. João Porto, mestre reputado e pioneiro da assistência ao cardíaco, e o Dr. Cortês Pinto, que poderá dar conta da experiência colhida no admirável Instituto de Reumatologia.
Também o segundo ponto, da a «recuperação e terapêutica ocupacional», merece, fora de dúvida, a maior atenção. Seguramente que se pretende abranger este problema em toda a magnitude - e, naturalmente, o Governo está senhor dos dados imprescindíveis e com o respectivo plano de acção traçado -, já que ele se reveste de múltiplas e complexas facetas, a que só um estudo completo poderá dar satisfação.
Trata-se, Sr. Presidente, de reocupação, de reeducação e de terapêutica ocupacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E, sim, como se lembra no douto parecer da Câmara Corporativa, a «terceira fase da medicina», mas esta própria definição vem valorizar as duas primeiras e lembrar-nos que estas, correctamente conduzidas, podem, em grande parte, evitar a «terceira fase». Será mais útil para o indivíduo e a sociedade e muito menos dispendioso para o Estado.
E por isso digo que, com tais desígnios, haverá que integrar no plano desde a profilaxia dos acidentes de trabalho, a organização dos primeiros socorros, a necessária preparação e repartição do pessoal médico e não médico, até aos tratamentos, no quadro geral da terapêutica, em que as situações médicas e cirúrgicas que os aconselham abrangem quase todos os capítulos da patologia.
Enviar o homem para a vida, a ocupar o lugar que, por doença, acidente ou imprevidência, teve de abandonar: recuperação.
Aproveitar o seu tempo de inabilidade temporária numa aprendizagem útil, eficaz, individual e socialmente: terapêutica ocupacional.
Adaptá-lo a modalidades diferentes do seu ofício ou a outros ofícios compatíveis com as suas condições modificadas ou inferiorizadas: reocupação.
Sendo esta, em última análise, uma modalidade terapêutica, difícil se torna dissociá-la das outras de que é concomitante ou complementar: dietética, medicamentosa e cirúrgica. Abrangendo, como referi, situações clínicas diversíssimas, a sua acção não se confina a este ou àquele grupo, mas exerce-se sobre todos eles: nas «plegias» de causa vária, nos amputados, nas fracturas, nas - perturbações do desenvolvimento, na paralisia infantil - que assinalo, porque do seu aumento de frequência entre nós, na metrópole e no ultramar, me parece não termos dado conta -, nas doenças cardíacas e cardiovasculares, nas úlceras varicosas, nas artrites reumatóides, nas doenças mentais, na obstetrícia, na oftalmologia ... E também deveremos incluir a delinquência juvenil e o problema das crianças anormais, e ainda mesmo u problema do desemprego, racionalmente encarado.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Neste assunto estão intimamente interessados todos os sectores de assistência, tendo como fulcro os hospitais e os centros de recuperação, e a ele não podem ser estranhos a medicina do trabalho - entre nós praticamente inexistente - e os seguros, pela extraordinária incidência dos acidentes de trabalho.
Isto se disse para dar pálida ideia da transcendência da questão, que, repetimos, exige aturado estudo para que a realização corresponda, na prática, às generosas disposições contidas na lei, ainda que, a meu ver, melhor expressas na redacção proposta pela Câmara Corporativa.
Sr. Presidente: prestada a devida homenagem às intenções, cabe-nos - na função que nos assiste e consoante a orientação manifestada no início destas considerações - chamar a atenção do Governo para o problema de fundo que, a propósito, se levanta.
Com efeito, o que acima de tudo deve estar em causa é saber se «esta posição», esta «política de Governo», assim traduzida pêlos investimentos assinalados na lei, corresponde às necessidades mais prementes da nossa saúde pública.
Infeliz e contrariamente ao que tem sido solicitado, dentro e fora desta Câmara, não está esboçado um vasto plano de saúde onde o panorama sanitário nacional encontre completa expressão; onde os problemas, estudados e hierarquizados, se enfrentem com vista à sua metódica e progressiva resolução, conforme aquela sábia directriz do Sr. Presidente do Conselho de nada fazer sem prévio estudo, sem prévio planeamento.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Se assim fosse, teríamos de reconhecer existirem neste país, antes do mais e sem esquecer e menosprezar os restantes, três grandes problemas de saúde, que urge considerar sem demora, até para se não perder muito do que já se conseguiu alcançar: o da tuberculose, o da assistência materno infantil e o da sanidade rural.
Começarei pelo da assistência materno-infantil - já que foi considerado na Lei de Meios anterior. Manda a verdade dizer-se que tem sido objecto dos cuidados do Governo, não sendo de mais recordar-se quanto ficámos a dever à acção desenvolvida pêlos Sr s. Drs. Dinis da Fonseca e Trigo de Negreiros. Mas manda a verdade também dizer que, na prática, a intenção manifestada na lei do ano passado, que tantos aplausos nos mereceu, se traduziu num aumento de dotação de 2.000.000$ aproximadamente.
Temos de convir que, neste nível de investimentos, não valerá talvez a pena inserirem-se disposições especiais na Lei de Meios . . . Na sua mediania, a verba não veio atenuar sensivelmente a gravidade da situação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - As razões e os números apresentados a este respeito, na passada sessão, pelo nosso ilustre colega Santos Bessa mantêm as mesmas cores sombrias, se é que não foram agravadas, já que, entretanto, vemos a taxa de natalidade diminuída, a de nado-mor-talidade estacionária e a da mortalidade infantil aumentada, isto quando, no conjunto internacional, o nosso lugar era já de molde a envergonhara-nos.
Dizia há um ano o Deputado Santos Bessa:
Não faz mal repetir estes numeres nesta Assembleia de representantes da Nação: das 200 000 a 220 000 crianças que nascem vivas em cada ano, cerca de 17 000 a 25 000 não chegam a atingir um mês de vida; andam .por 6000, também, as que morrem sem assistência médica. Só muito lentamente temos vindo a reduzir a nossa taxa de 'mortalidade infantil, passando de 164,42 por cento em 1920 para 89,10 por cento em 1951.
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Pois os números continuam a manter actualidade, e podemos acrescentar que os 89 por cento de 1951 passaram a 94,33 por cento em 1952 e 95,53 por cento em 1953.
Quero igualmente fazer a ressalva de que a nossa taxa de mortalidade infantil não é em absoluto comparável às de outros países, por ser diferente o critério seguido na recolha dos dados. Mas, assim mesmo, ela é muito alta e está longe de noa satisfazer e honrar.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E o problema da tuberculose? E nossa obrigação reconhecer ter sido extraordinário o caminho andado desde as 800 camas iniciais às 7821 de agora; dos 6 dispensários aos 84 de hoje. E nossa obrigação prestar homenagem ao trabalho desenvolvido pelo instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, a que o dinamismo e inteligência do nosso antigo e ilustre colega Dr. Melo B Castro, em boa hora colocado no Subsecretariado de Estado da Assistência Social, tem imprimido, no curto espaço de tempo em que a sua acção pôde manifestar-se, uma salutar renovação.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: -Simplesmente, o esforço despendido até aqui está longe de aios tranquilizar. Certas actividades que reputamos de extraordinário interesse, como o radiorrastreio e a vacinação pelo B. C. €r., têm-se desenvolvido em estreitos limites, que as classificam como simpática experiência, mas sem extensão suficiente para que sejam elemento preponderante da luta que é mister.
Morrem milhares de tuberculosos por ano, e, ainda que a taxa de mortalidade por esta afecção tenha diminuído sensivelmente, sou dos que acreditam, não ter a morbilidade diminuído na mesma progressão, e por isso me permito avaliar, no mínimo, em 50 000 o número de doentes afectados por doença evolutiva. As estatísticas de mortalidade conferem-nos um optimismo que não corresponde às realidades e já não podem servir de base para, o cálculo do necessário apetrechamento em hospitais, sanatórios e dispensários.
Caberia aqui uma referência ao uso e abuso dos tuberculostáticos desintegrados do quadro geral da terapêutica adequada e sua repercussão nas estatísticas. Como não ficaria mal relembrar -consoante o estudo publicado no Boletim dos Actuarias Portugueses - que a morte de um tuberculoso representa um prejuízo superior a vinte e nove anos de trabalho e que sobe a mais de 500 000 contos o prejuízo, da incidência da tuberculose sobre a massa trabalhadora abrangida pela previdência, ou seja apenas um sétimo da população.
Mais de um milhar de tuberculosos - e somente contando com os que estão inscritos e são curáveis- aguardam internamento, em longos meses de espera, que, entretanto, em muitos casos, lhes tira a possibilidade de um tratamento salvador e lhes permite a difusão da doença.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Radiorrastreio, B. C. G., dispensários, sanatórios, centros pós- sanatoriais de readaptação, hospitais para incuráveis - eis a cadeia de elementos que forma um todo na luta contra a tuberculose e que urge incrementar, todos eles.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E não deixaremos de reclamar a existência, nas Faculdades de Medicina, de uma cadeira de Doenças Pulmonares, de ensino actualizado, conforme se dispunha no Decreto-Lei n.° 24 943, de 10 de Janeiro de 1935, e que foi extinta por ocasião da última reforma dos estudos médicos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Como não deixaremos de reclamar que a previdência' inclua, finalmente, no seu esquema a tuberculose, sob todas as formas e garantindo todas as modalidades terapêuticas.
Finalmente, outra questão de magna importância, e a que os problemas anteriores, como não poderia deixar de ser, estão intimamente ligados, é o da sanidade rural.
O atraso do nosso meio rural, que nesta tribuna tem sido ventilado tanta vez, engloba, inevitavelmente, o aspecto sanitário.
Que obra magnífica e urgente espera a sua grande oportunidade!
E verdade que, em primeiro plano, nos surgem os trabalhos de abastecimento de água e de redes de esgotos, obra meritória a que o Estado e os municípios têm dado o melhor do seu entusiasmo e que está na raiz de quanto se pretenda fazer sobre higiene rural.
Vemos que essa ordem de precedências se mantém no artigo 17.°, do capítulo «Política rural», e vemos, também com satisfação, que a terceira alínea do mesmo artigo, consoante o voto desta Câmara, se reserva para as construções com fins assistenciais.
Muito há que fazer e rever para conseguir dar ao ambiente rural as necessárias condições sanitárias!
Mesmo no que se refere a águas e esgotos, apesar do muito que se tem feito, e que constitui justo título de glória do Ministério das Obras Públicas, quanto falta ainda fazer! Se os meus números não erram - colhi-os num trabalho deste ano, mas é possível que não estejam completamente actualizados -, a água só satisfaz em qualidade em 68 por cento dos concelhos e em quantidade somente em 32 por cento; das 302 sedes de concelho, só 97 têm água em quantidade suficiente. O tratamento da água é feito em 53 concelhos (17,5 por cento). Quanto a esgotos, 57 por cento dos concelhos têm a respectiva rede, sendo completa só em 25, ou seja em 8 por cento. E o esgoto sofre tratamento apenas em 3 ou 4.
Muito há que fazer e que rever: primeiramente, a indispensável obra de educação, á cabeça de tudo (saliente-se a inteligente orientação já seguida no ensino primário); depois, a revisão indispensável dos quadros, atribuições e meios de acção dos médicos municipais, subdelegados de saúde e outro pessoal, enfermeiras, parteiras, trabalhadoras sociais e da organização, local da assistência.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Em cerca de 100 000 óbitos anuais (97 460 em 1953), cerca de 25000 (24 523 em 1953) não tiveram assistência médica, ou seja, para 1953, 25,16 por cento. Entretanto, a pletora de médicos em Lisboa, Porto e Coimbra acentua-se, estando no fundo de todas as questões que a classe levanta acerca da sua insuficiência económica.
O nosso excedente de vidas por 1000 habitantes mostra tendência a diminuir.
O número de partos sem assistência de médico mi parteira, em 1953, foi de 123 566, sendo de 83 508 os que a tiveram, ou seja: 60 por cento não tiveram assistência alguma. As nossas taxas de morbilidade e mortalidade por doenças do grupo tífico, difteria, tosse convulsa, bruceloses, alcoolismo, e t c., atestam jun-
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tamente com o que referi quanto à mortalidade infantil e à tuberculose, o atraso sanitário em que ainda nos encontramos.
Entretanto, sem olvidarmos os esforços inúteis até agora despendidos, e sem pôr de lado a influência directa ou indirecta de outros investimentos neste problema, as verbas destinadas à saúde e assistência representam uma mesquinha parte em confronto com os outros gastos do Estado, correspondendo a menos de 6 por cento da despesa total!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: não-abusarei por muito mais tempo da benevolência de V. Ex.ª e da paciência da 'Câmara.
Ao trazer aqui este ligeiro apontamento, faço-o como representante daqueles que em nós confiaram a defesa dos seus interesses e aspirações, podendo, neste caso, fornecer o depoimento do médico que, no seu dia a dia profissional, sente, bem dolorosamente, as insuficiências referidas, o que, se lhe dá, porventura, uma visão deformada, apaixonada, das coisas, não deixa de conferir-lhe a visão palpitante, humana, de trágicas realidades. De realidades que são bem diferentes quando delas se toma conhecimento longínquo, por casos esporádicos, por relatórios, pela fria expressão das estatísticas!
São velhos e novos que,- quanta vez, deixamos entregues à doença e à morte, em raivosa e desesperante impotência!
Que grandes tarefas ainda nos esperam, meus senhores, que empolgante obra o Governo poderá empreender, quando, ao lado dos esplêndidos planos em curso, que esperamos possam transformar a feição deste país, se lançarem as duas campanhas que aguardam, de há muito, o seu momento -da educação e da saúde-, vistos os problemas no conjunto e não parcelarmente, com conhecimento, com arrojo, com garra, com grandeza, abrangendo decididamente toda a Nação, na mobilização integral dos seus recursos, em que o factor humano, com suas primordiais necessidades, ocupa, incontestavelmente, o lugar de maior relevo!
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. O debate continuará na sessão de amanhã, que terá, assim, por ordem do dia a discussão da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para o ano de 1955.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 50 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
António de Almeida.
António Augusto Esteves Atendes Correia.'
António Júdice Bustorff da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
João Afonso Cid dos Santos.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Mário Correia Teles, de Araújo e Albuquerque.
Ricardo Malhou Durão.
Tito Castelo Bronco Arantes.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Agnelo Orneias do Rego.
Alberto Pacheco Jorge.
António de Almeida Garrett.
António Calheiros Lopes.
António Russell de Sousa.
Caetano (Maria de Abreu Beirão.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa dó Rosário Noronha.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Maria Porto.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Sousa Machado.
Jorge Pereira Jardim.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José dos 'Santos Bessa.
José Sarmento Vasconcelos e Castro.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçado.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Monterroso Carneiro.
Rui de Andrade.
Urgel Abílio Horta.
O REDACTOR - Luís de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA