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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 84

ANO DE 1955 24 DE MARÇO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VI LEGISLATURA

SESSÃO N.º 84, EM 23 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.

Gastão Carlos de deus Figueira
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues

Nota. -Foram publicados dois suplementos ao Diário das Sessões: um ao n.º 72, que insere o relatório e contas da Junta do Crédito Público referentes ao ano de 1953, e outro ao n.º 81, que insere o aviso da reabertura da Assembleia Nacional.

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 10 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 82 e 83 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
O Sr. Presidente comunicou que recebeu da Câmara Corporativa os pareceres referentes à jurisdição dos tribunais militares, ao acordo de fronteira com a Niassalândia, à Convenção Cultural Luso-Britânica e à execução de obras de pequena distribuição de energia eléctrica e da Presidência do Conselho, para efeitos do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os Decretos-Leis n.ºs 40 058 e 40 059.
Foram aprovados votos de pesar pelo falecimento do Sr. Alexandre Cancella de Abreu e de uma irmã do sr. Deputado Mendes Correia.
Os Srs. Deputados Gastão de deus Figueira referiu-se à morte do extatuário Francisco Franco e sugeriu a criação do Museu Francisco Franco, em Lisboa. O Sr. Presidente, em nome da Assembleia, associou-se à homenagem.
Os Srs. Deputados Duarte Silva e Pacheco Jorge falaram sobre a próxima visita do Sr. Presidente da República a Cabo Verde e à Guiné.
O Sr. Deputado Jorge Jardim salientou a importância da visita do sr. Deputado Carlos Moreira lembrou que seja comemorado o 5.º centenário da morte do rei D. João II.
O Sr. Deputado Urgel Horta tratou de problemas do Porto e da questão do casamento das enfermeiras dos Hospitais Civis.
O Sr. Deputado António de Almeida congratulou-se com o programa de investigações científicas estabelecidas pelo Ministro do Ultramar.

Ordem do Dia.- O Sr. Deputado Almeida Garrett começou a efectivar o seu aviso prévio acerca da protecção à família, ficando com a palavra reservada para a sessão seguinte.
O Sr. Presidente declarou encerrada a sessão às 18 horas e 25 minutos.

CAMARA CORPORATIVA.- Pareceres n.ºs 14/VI, 15/VI, 16/VI e 18/VI, referentes, respectivamente, ao Acordo Cultural Luso-Britânico, acordo relativo à fronteira de Moçambique com a Nissalândia, projecto de Lei n.º 12 e proposta de lei n.º
21.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Alberto Pacheco Jorge.
Albino Soares Finto dos Beis Júnior.
Alexandre Aranha Furtado de Mendonça.
Alfredo Amélio Pereira da Conceição.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António de Almeida Garrett.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Calheiros Lopes.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorf da Silva.

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António Pinto de Meireles Barriga.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
António Russell de Sousa.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancella de Abreu.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Baltasar Leite Rebelo de Sousa.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Eduardo Pereira Viana.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Maria Porto.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim de Sousa Machado.
Jorge Botelho Moniz.
Jorge Pereira Jardim.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
José Sarmento Vasconcelos e Castro.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís de Azeredo Pereira.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel Monterroso Carneiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Trigueiros Sampaio.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancella de Abreu.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Sebastião Garcia Ramires.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.

O Sr. Presidente:-Estão presentes 76 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente:-Estão em reclamação os n.os 82 e 83 do Diário das Sessões.

Pausa.

O Sr. Presidente:-Visto nenhum Sr. Deputado pedir a palavra, considero os aprovados. Vai ler-se o

Expediente

Exposição

Dos Grémios da Lavoura de Benavente, Salvaterra de Magos e Vila Franca de Xira, sobre a classificação definitiva a dar aos terrenos confinantes com os cursos fluviais.

Ofícios

De numerosos grémios da lavoura, a dar o seu apoio à exposição atrás referida.
Do Grémio da Lavoura de Sintra, de concordância com as palavras do Sr. Deputado Furtado de Mendonça proferidas na sua intervenção sobre o aviso prévio do Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu, excepto quanto à necessidade de onerar os grémios e cooperativas com impostos estaduais e camarários.
Do Grémio dos Exportadores de Vinho do Porto, a congratular-se com a apresentação e debate do aviso prévio do Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu.

Telegramas

Da Federação dos Grémios da Lavoura de Entre Douro e Minho, no mesmo sentido do ofício do Grémio da Lavoura de Sintra.
De diversos grémios da lavoura, a apoiar a exposição atrás mencionada.
Dos grémios da lavoura de Santarém, a apoiar as palavras dos Srs. Deputados Artur Duarte e Amaral Neto sobre o problema da vitivinicultura ribatejana.
Do presidente da Câmara Municipal de Bragança, a apoiar as palavras do Sr. Deputado Camilo de Mendonça sobre a electrificação naquele distrito.
Dos grémios dos vinicultores dos concelhos de Alijo e de Murça, a apoiar as palavras dos Srs. Deputados Amâncio de Figueiredo, Manuel Maria Vaz, Carlos Moreira, Urgel Horta e José Sarmento sobro a crise vinícola da região do Douro.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa o parecer da Câmara Corporativa acerca do projecto de lei sobre jurisdição dos tribunais militares. Este parecer vai baixar às Comissões de Legislação e Redacção e de Defesa Nacional.
Está também na Mesa o parecer da Câmara Corporativa acerca do acordo relativo à fronteira com a Niassalândia. Vai baixar às Comissões do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros.
Há também um parecer que a Câmara Corporativa emitiu acerca da Convenção Cultural Luso-Britânica. Vai baixar às Comissões dos Negócios Estrangeiros e de Educação Nacional.
Está ainda na Mesa um parecer da Câmara Corporativa acerca da proposta de lei sobre a execução de obras de pequena distribuição de energia eléctrica. Vai baixar às Comissões de Economia e de Política e Administração Geral e Local.
Estão na Mesa, enviados pela Presidência do Conselho, para efeitos do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os n.os 31 e 32 do Diário do Governo, 1.ª série, de 9 e 10 de Fevereiro último, que inserem os Decretos-Leis n.os 40 058 e 40 059.
Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia em satisfação do requerimento apresentado em sessão de 10 de Fevereiro último pelo Sr. Deputado Elísio Pimenta.
Estão também na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério das Comunicações em satisfação do requeri-

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(...) mento apresentado na sessão de 11 de Janeiro último pelo Sr. Deputado Daniel Barbosa.
Estão ainda na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros em satisfação do requerimento apresentado na sessão de 24 de Março de 1954 pelo Sr. Deputado Manuel Maria Vaz.
Está na Mesa uma nota fornecida pelo Ministério do Interior em satisfação do solicitado na sessão de 8 de Fevereiro último pelo Sr. Deputado Urgel Horta.
Estão ainda na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Educação Nacional em satisfação do requerimento apresentado na sessão de 26 do Janeiro último pelo Sr. Deputado Mendes Correia.
Estão também na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia em satisfação do requerimento apresentado na sessão de 26 de Janeiro último pelo .Sr. Deputado Camilo de Mendonça.
Todos estes documentos vão ser entregues aos Srs. Deputados que os solicitaram.
Está na Mesa o parecer da Comissão de Contas Públicas sobre as Contas Gerais do Estado relativas a l953.
Peço a atenção da Assembleia para este parecer, que será dentro de pouco tempo submetido à sua apreciação.
Está na Mesa uma carta de S. E. o Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, a agradecer as homenagens que a Assembleia se dignou prestar-lhe a propósito do seu jubileu patriarcal e cardinalício. Vai ser lida.

Foi lida. Ë a seguinte:

«Ex.mo Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Não encontro palavras para dizer a V. Ex.ª quanto me penhorou, se bem que me confundisse ao mesmo tempo, a homenagem que a Assembleia Nacional se dignou prestar-me, querendo assinalar a passagem do meu jubileu patriarcal e cardinalício. E não posso esquecer que V. Ex.ª, na alta qualidade de seu Presidente, teve a suprema bondade de ser o seu eloquente e autorizado intérprete, com palavras que eu bem desejaria merecer o só a benevolência de V. Ex.ª inspirou.
Com as minhas homenagens à Assembleia Nacional, a que V. Ex.ª tão distintamente preside, queira aceitar a expressão dos meus sentimentos de reconhecimento, estima e consideração.

[...] M., Card. Patriarca.

Lisboa, 21 do Março de 1955.

O Sr. Presidente:-Durante a interrupção do funcionamento da Assembleia Nacional faleceu, como certamente toda a Câmara sabe, o Sr. Dr. Alexandre Cancella de Abreu, irmão dos nossos ilustres colegas Srs. Deputados Paulo Cancella de Abreu e Augusto Cancella de Abreu. Creio interpretar os sentimentos da Assembleia exprimindo àqueles ilustres colegas o nosso profundo pesar por esse doloroso acontecimento.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Sr. Presidente em nome de meu irmão e no meu, agradeço reconhecidamente as palavras de V. Ex.ª e a manifestarão de pesar da Assembleia por motivo do falecimento do nosso saudoso irmão. A todos muito e muito obrigados.

O Sr. Presidente: -Durante o mesmo interregno desta Assembleia faleceu também uma irmã do Sr. Deputado Mendes Correia, a quem a Câmara desejará igualmente exprimir o seu profundo pesar.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: quero apenas agradecer a V. Ex.ª e à Camará o voto de pesar que acabam de exprimir-me.

O Sr. Presidente:-Tem a palavra o Sr. Deputado Gastão Figueira. Como S. Ex.ª deseja prestar homenagem à memória do grande escultor Francisco Franco, convido-o dada a importância do assunto, a subir à tribuna.

O Sr. Gastão Figueira: - Sr. Presidente: durante o interregno parlamentar, a 15 de Fevereiro, finou-se nesta cidade um dos homens mais notáveis nascidos na Madeira, um dos maiores portugueses deste tempo - o insigne estatuário Francisco Franco.
A categoria da pessoa que a doença e a morte, sem piedade, nos roubaram, o lugar proeminente que ocupava na ordem dos melhores valores nacionais, a projectar-se além-fronteiras, a grandeza da sua obra e do seu espírito justificam que, nesta alta Assembleia, fique assinalado, compungidamente, o seu decesso e seja prestada homenagem a quem pelo seu árduo trabalho, original e extraordinário talento ergueu e glorificou tanto a sua Pátria no mundo estranho e perturbante da arte, e foi também na sua alma clássica, intrinsecamente cristã, católica, no pensamento, na fé, num conceito de dignidade integral, instante a instante vivido, no génio criador, um autêntico contemporâneo de Salazar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Francisco Franco começou os seus estudos na formosa ilha da Madeira, onde desabrochou a sua vocação, aprendendo mais na natureza do que nos livros o amor e o sentimento do belo.
Prosseguiu-os em Lisboa e depois em Paris e Roma.
Viajou, conviveu; os seus olhos descobridores viram imenso, leu bastante, nunca deixou de ler.
Tinha um sentido apuradíssimo dos valores intelectuais e espirituais, uma compreensão profunda dos mestres do pensamento e da arte.
Recordo-me de uma vez lhe ter ouvido comentários admiráveis de penetração e claridade à Suma Teológica e aos frescos de Gioto.
Não era erudito nem livresco, mas realmente culto, como transparecia na sua conversa aliciante, sempre isenta de banalidade.
Foi católico sincero, praticante; monárquico convicto e esclarecido.
Quando Salazar chegou ao Poder, interveio na política com entusiasmo e desassombro, manifestado vigorosamente durante a perigosa revolta da Madeira, de triste memória.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-Exerceu as funções de vice-presidente da Câmara Municipal do Funchal, onde prestou apreciável colaboração com as suas ideias luminosas e rasgadas iniciativas. Havia nele um simpático orgulho em ter desempenhado aquele cargo na sua terra natal.
O estatuário Francisco Franco pôs toda a sua inteligência e o seu vasto coração, a alma toda, a vida inteira nas suas mãos puras, maravilhosas, divinamente inspiradas, que lhe deram a imortalidade e o perpetuaram em mármore e em bronze, nos retratos do pintor Manuel Jardim, do Dr. Figueira, dos banqueiros Vieira de Castro e Rocha Machado, dos professores Bissaia Barreto e Reinaldo dos Santos, do poeta Mário Beirão e do Doutor Salazar, nos baixos-relevos do Tribunal do Comércio e do pedestal do Zarco, no friso do apostolado da Igreja da Nossa Senhora de Fátima, na escultura a «Dor», nas estátuas do «Semeador», do Zarco (aquela que o

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(...) colocou no seu lugar, elevando-o aos cumes), do Infante, da rainha D. Leonor, dos reis D. Dinis e D. João III, na estátua equestre de D. João IV, no monumento a Cristo-Rei.
A beleza, disse Rodin, é o carácter e a expressão.
Nenhumas outras palavras como estas definem as criaturas de Francisco Franco.
Sr. Presidente: não vou, neste momento, expor um juízo critico sobre o artista e a sua obra imperecível, a emparelhar e mesmo a exceder a dos seus antepassados Machado de Castro e Soares dos Reis.
Não mo consente, além da minha impreparação, o tempo regimental.
Desejo, todavia, que fique no Diário desta Câmara, em termos eloquentes e autorizados, quanto valeu o homem que perdemos e a significação do preciosíssimo legado que nos deixou.
Julgo conseguir este objectivo reproduzindo o que dele afirmou o eminente escritor e professor Reinaldo dos Santos, que, ao discorrer sobre a evolução da escultura em Portugal nos últimos tempos, disse: «todos mais ou menos, conscientemente, derivam do exemplo de Francisco Franco, da elevação do seu ideal, da sua concepção larga e sintética da vida Intima das formas.
A visão construtiva dos volumes e a expressão elevada e longínqua dos olhares surgem duma meditação interior, onde a sensibilidade se recolhe e purifica.
Na história da escultura nacional em quase dois séculos de evolução, da escola de Mafra, donde saiu Machado de Castro, até à geração actual (uma das mais ricas que o nosso espirito plástico gerou), o génio de Francisco Franco sobrevoa e domina as mais belas realizações da arte de esculpir.
Germain Bazin, ilustre conservador do Louvre, considera-o talvez o mais notável escultor da Europa actual; mas, dentro da perspectiva nacional, desde Machado de Castro e acima dele, Franco representa a mais alta expressão do génio plástico português».
Sr. Presidente: em nome duma verdadeira política do espírito, permito-me, com a devida vénia, sugerir ao Sr. Ministro da Educação seja fundado na capital o Museu Francisco Franco, à semelhança do que os franceses fizeram com Rodin, em Paris, reunindo a obra dispersa e os gessos das estátuas monumentais do célebre artista.
Ao mesmo tempo que se prestava uma justa e devida homenagem a Francisco Franco, enriquecia-se Lisboa com uma magnífica escola de beleza.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente:-A Câmara acompanhou -como era seu dever de representante da Nação- as homenagens prestadas pela voz do Sr. Deputado Gastão Figueira à memória do eminente escultor Francisco Franco.
Francisco Franco foi, porventura, depois de Soares dos Reis, a maior culminação da arte escultórica em Portugal. Viveu uma longa vida no culto da beleza, a que a sua arte soube dar as mais brilhantes realizações; e para nós tem particular significado esta nota: é que ele soube aliar no seu espirito ao culto absorvente da beleza o grande culto da Pátria.
Ainda por este motivo a Camará se eleva prestando à memória de Francisco Franco as suas homenagens e abrindo nos seus debates políticos um parêntesis para se inclinar perante um homem que durante a sua vida prestou o mais lídimo culto ao ideal da beleza e ao ideal da Pátria.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Duarte Silva: - Sr. Presidente: publicaram os jornais do dia 17 do corrente uma nota oficiosa em que se comunica ter sido fixada para o próximo mês de Maio a visita do Chefe do Estado às províncias ultramarinas da Guiné e de Cabo Verde.
Penso, Sr. Presidente, que essa noticia não podia deixar de ter eco nesta Assembleia, e por isso, como Deputado eleito por Cabo Verde, quero manifestar o entusiasmo que vai na alma de todos os habitantes daquela província ultramarina pela realização de tão honrosa visita.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-Anunciada em Julho do ano passado, a visita do Chefe do Estado, é desde então aguardada com ansiedade e estou certo de que S. Ex.ª há-de trazer da sua viagem a grata impressão de que os habitantes de Cabo Verde acompanham com o maior interesse e dedicada colaboração a obra do ressurgimento nacional e vivem, consciente e ardorosamente,, a hora sublime do exaltação patriótica e inabalável nacionalismo que vai por todo o território português.

Vozes: - Muito bem I

O Orador:-Seria estulta pretensão da minha parte afirmar que Cabo Verde é, como das outras e dela própria se tem dito, a mais portuguesa das províncias do ultramar. Pura flor de retórica, essa expressão é, a meu ver, inteiramente infundada: todas são igualmente portuguesas - pela sua formação, pela sua história o pelo seu sentir.
O que posso afirmar categoricamente, e com inteira convicção, é que o Cabo-Verdiano possui em elevado grau o sentimento da dignidade nacional e proclama sempre orgulhosamente a sua qualidade de português.
Em contacto permanente com estrangeiros, vivendo por vezes longos anos nos países mais adiantados, o Cabo-Verdiano nunca se deixa seduzir pelos esplendores do progresso material nem pelo deslumbrante poderio das outras nações; conserva sempre arraigado amor à sua pobre mas nunca esquecida terra e não oculta o seu orgulho de ser português.
Por isso, Sr. Presidente, e pelo que tive o prazer de aqui ouvir na sessão de 2 de Dezembro último ao ilustre Deputado eleito pela Guiné, Sr. Coronel Pinto Cardoso, estou certo de que esta viagem do venerando Chefe do Estado, tal como a que fez no ano passado a S. Tomé e Angola, dará lugar a mais uma vibrante manifestação da unidade nacional.
Mensagem de solidariedade que a Nação inteira envia pelo seu mais alto representante às províncias visitadas, ela terá como resposta a reconfortante certeza de que são cada vez mais fortes os laços que unem as diferentes parcelas de Portugal, dispersas pelo Mundo mas sòlidamente ligadas pela identidade do sentimentos e aspirações e cada vez mais integradas nessa admirável unidade que é a pátria portuguesa.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador:-Será a demonstração insofismável da nossa perfeita solidariedade, que assenta numa história de alguns séculos, vivida sempre em fraterna comunidade, sem distinções de raça e com a interferência de todos na vida pública da Nação.
Será, como afirmou a propósito daquela primeira viagem o ilustre Deputado Sr. Engenheiro Cancella de Abreu, a consagração da grata e imorredoura certeza da solidária unidade de Portugal no Mundo.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Quem, como eu, teve a felicidade de comparticipar da vibrarão patriótica com que foi recebido em 1939 o saudoso marechal Carmona, não poderá duvidar de que o mesmo entusiástico acolhimento espera o Sr. General Craveiro Lopes, que com tanta dignidade, nobreza e simpatia tem sabido desempenhar as suas elevadas funções.
Cabo Verde tem, aliás, uma razão particular para não esmorecer no seu entusiasmo: é que lhe cabe o dever, a que se não esquivará, de manifestar a sua gratidão ao Estado Novo pela carinhosa atenção que lhe tem dispensado.
Não poderá esquecer que o Governo de Salazar tem procurado com desvelado interesse melhorar as suas condições de vida e se tem empenhado na realização das obras previstas no Plano do Fomento, nomeadamente as obras de apetrechamento do porto Grande, a iniciarem-se dentro em breve, mercè da inexcedível boa vontade e persistente esforço do ilustro titular da pasta do Ultramar, Sr. Comandante Sarmento Rodrigues, que acompanha o Chefe do Estado na sua visita.
E, porque estou convencido de que Cabo Verde saberá cumprir galhardamente o seu dever, daqui endereço ao Governo as minhas saudações, como português, pela decisão tomada, que é mais um alto serviço prestado à Nação, e os meus agradecimentos, como Deputado por Cabo Verde.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Pacheco Jorge: - Sr. Presidente: foi com a mais viva satisfação que li na imprensa diária que S. Ex.ª o Sr. Presidente da República, em prosseguimento do plano já traçado, deverá, visitar em Maio próximo as nossas províncias ultramarinas da Guiné e Cabo Verde.
Felicitando efusivamente estas províncias nas pessoas dos seus ilustres representantes nesta Assembleia, pela honra que lhes vai ser concedida com a visita do mais alto magistrado da Nação, felicito-me também, como português ultramarino, pela feliz iniciativa de S. Ex.ª o Chefe do Estado de visitar o ultramar português e assim poder observar in loco e directamente, esse Portugal e além-mar, apreciar o seu desenvolvimento, anotar as suas características próprias e auscultar os anseios das suas populações.
O altíssimo significado de uma tal visita, a sua repercussão internacional e os benefícios que trará à causa da unidade da nação portuguesa são evidentes e dispensam quaisquer explanações ou comentários.
Neste mundo conturbado de incertezas e de incompreensões, Portugal dá mais um exemplo da sua vitalidade, da sua fé no futuro, da sua unidade, da sua
compreensão!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Em boa hora, S. Ex.ª o Sr. Presidente da República teve a feliz ideia do visitar o ultramar português e bem haja S. Ex.ª por prosseguir com esta utilíssima visita.
Só me resta formular os mais ardentes e sinceros votos para que S. Ex.ª num futuro que espero seja breve, possa estender a sua viagem, que será certamente triunfal, até à pequena e longínqua província de Macau, que tenho a honra de representar nesta Assembleia e que anseia pela visita de tão ilustre como querida personagem.
Macau também saberá receber condignamente S. Ex.ª; Macau saberá gravar em letras
de ouro na sua história a primeira visita do Chefe de Estado; Macau, enfim, saberá mostrar a S. Ex.ª e ao Mundo quo ali também é Portugal!
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Jorge Jardim: - Sr. Presidente.: desejo, antes de mais afirmar a V. Ex.ª e à Câmara quanto é grato aos Deputados por Moçambique que esta nossa primeira intervenção nos trabalhos da presente sessão legislativa se destine a sublinhar o significado e o interesse da viagem de trabalho que o Sr. Ministro do Ultramar inicia, amanhà, à província ultramarina cujo mandato tauto nos honra.
Desloca-se o Sr. Comandante Sarmento Rodrigues a Moçambique, visita que tem a caracterizá-la a brevidade da permanência naquele nosso vasto território e a limitação, consequente, dos seus objectivos à apreciação de problemas determinados que se encontram pendentes da Secretaria de Estudo que lhe está entregue.
E eu creio, Sr. Presidente, ser exactamente dessas características da visita ministerial que havemos de sublinhar o interesse para augurar os mais benefícos resultados.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nào vai o Sr. Comandante Sarmento Rodrigues até esse Portugal do Índico no intuito de estabelecer primeiro contacto com os problemas, que ali existem com a pujança própria dum território em desenvolvimento e formação, nem de travar o primeiro conhecimento com os portugueses que por lá dedicam todas as suas energias e capacidade à obra grande de continuarem em ritmo dos nossos dias, a tradicional missão do nosso povo em África. O Sr. Ministro do Ultramar que em Moçambique viveu largos anos da sua fecunda actividade ao serviço do País e que no seu elevado cargo tem permanecido fiel ao seu dedicado interesse pela nossa, província, não carecia para tal de se deslocar a tão longa distância. Entre nós, em Moçambique, está sempre a recordação do que foi companheiro de trabalho, de anseios e até, de legítimos queixumes e a presença de quem é hoje o governante que detém o árduo encargo, cujas dificuldades .sabemos medir, de dar seguimento e solução aos nossos problemas, e às nossas aspirações e de atender no nosso inconformismo, justamente apaixonado, quando queremos que se realize esse vasto mundo de empreendimentos que se oferecem às nossas possibilidades e às nossas necessidades de nação que sempre se afirmou, e sempre terá de afirmar-se, como grande potência colonizadora.
Vai o Sr. Ministro do Ultramar até essas terras portuguesas de Moçambique em simples acto de serviço que se destina a acompanhar directamente a actividade dos serviços públicos que ali se exerce, a esclarecer-se sobre certos aspectos de problemas que aconselham contacto pessoal e a decidir, localmente, o que em verdade exija solução imediata e oportuna perante a premência das realidades.
E que, para além do âmbito de acção e competência do Governo-Geral de Moçambique, em boa hora confiado e confirmado à superior condução do comandante Gabriel Teixeira, impõe-se, até pelos preceitos orgânicos definidos para o ultramar, a intervenção do Governo Central, que resultará sem dúvida mais eficiente quando se procura firmemente viver por forma directa as esperanças e as dificuldades, pelo recurso a estas deslocações de efectivo e intenso trabalho como a que

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o Sr. Comandante Sarmento Rodrigues decidiu empreender.

Vozes : - Muito bem!

O Orador: - Num momento em que Moçambique tem em curso, em projecto ou em estudo obras de fomento de cuja produtividade tanto depende o seu futuro, quando se; inicia um plano rodoviário de cuja execução tanto se espera, quando se estendem os seus caminhos de forro, se melhoram os seus portos e se abrem novos outros, se multiplicam os transportes aéreos, unindo os pontos mais distantes, quando os problemas do ensino se equacionam para imediata decisão que complete o esquema traçado, quando as cidades e vilas crescem, trazendo novos problemas ou fazendo reviver velhos anseios que não permitem delongas, quando os colonos continuam confiadamente o seu esforço magnífico, guando, em suma, a província afirma a sua capacidade criadora e, recebe, em tantos sectores, impulso decisivo do Governo, é grato verificar a nítida compreensão e conhecimento que o Ministro evidencia pelos problemas e sua premência, decidindo deslocar-se, numa verdadeira viagem do trabalho, que por si só é já afirmação notável do alto espírito dum governante e que pelos seus resultados virá a ser como todos confiamos, a confirmação, de que não se necessitaria, dos méritos e qualidades que nos habituámos a encontrar na inteligente actuação do Sr Comandante Sarmento Rodrigues.

Vozes : - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Viagem de quem nada sacrifica aos propósitos de trabalho sério. Viagem de quem sabe ao que se dirige e para onde dirigir. Por isso mesmo com as características que de início acentuei.
Deste lugar e neste momento venho dirigir ao ilustre Ministro do Ultramar, que nesta Assembleia, ocupou com brilho a sua cadeira de Deputado por Moçambique, os votos da mais feliz viagem e as nossas certezas dum profícuo trabalho para bem de Moçambique, ao serviço da Naçào.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Carlos Moreira: - Sr. Presidente: neste mare magnum de acontecimentos e de notícias que é a época que estamos vivendo nem sempre ocorre o essencial e tantas vezes vemos a imprensa ocupada por noticiário de factos sem substancial importància.
Parece, às vezes, que vivemos apenas o presente, desinteressados das lições do passado e das preocupações do futuro.
Vem isto a propósito de uma notícia que há poucos dias veio publicada no diário A Voz, acerca do centenário, que neste ano ocorre, do nascimento do grande rei que foi D. Joào II, aquele a quem a História como julgadora, cognominou de «Príncipe Perfeito».
Precursor directo das longas viagens marítimas, defensor estrénuo dos direitos da realeza, na expressão superior de segurança e garantia das liberdades e direitos do povo, bem merece que o seu 5º centenário seja assinalado por comemorações dignas da sua extraordinária figura que passou além das fronteiras da Pátria e levou Isabel, a Católica, a proferir, na data do seu falecimento, a expressào de alto significado de admiração: «morreu o Homem ».
Ele foi, Sr. Presidente, um dos mais fiéis intérpretes da justiça e da defesa dos direitos da grei, justiça e direitos que ele próprio concretizou nesse lema admirável de ontem e de hoje: «Pola lei e pola grei». Pois que a grei portuguesa, consciente das glórias do passado e das aspirações do presente, lhe tribute as homenagens devidas são os votos que formulo deste lugar, plenamente convicto de que esses votos são os de todos os portugueses.
Ao Governo da nação entrego [...] o assunto.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado!

O Sr. Urgel Horta: - Sr. Presidente: como Deputado pelo Porto temos aqui apontado a necessidade das realizações mais instantes para progresso da cidade cuja população tanta ansiedade revela no seu engrandecimento. É extremamente agradável pedir nas circunstâncias em que o fazemos tendo a certeza de que os nossos pedidos sào ouvidos, escutados com o cuidado e a atenção que lhes são inteiramente devidos. Certo é que algumas vezes os problemas apresentados não têm sido claramente compreendidos, quer pelas entidades encarregadas de os solucionar, quer por aqueles que por dever e obrigação de cargo, não sabem fazer valer os direitos de uma urbe de tanta importância e vitalidade como é a capital do Norte.
As palavras com que hoje iniciamos esta intervenção não encerram pedidos, mas traduzem agradecimentos, manifestação de sentimento por tantos esquecida e que nós exteriorizamos jubilosamente.
O problema habitacional do Porto, e muito especialmente o problema das suas «ilhas» - antros de miséria, de degradação e de morte -, tem sido objecto dos nossos amargos queixumes. Esperamos confiadamente a sua resolução, pois sabemos que tanto o Sr. Presidente do Conselho, que cada vez mais se impòe à admiração do Mundo, como o Sr. Ministro das Obras Públicas, que se tem revelado individualidade de alto merecimento lhe estão dedicando o melhor interesse, procurando devotadamente solucioná-lo. o que para nós é motivo de legítimo orgulho, pela dedicação e fé com que temos tratado caso de tanta gravidade.
O Governo com a resolução agora tomada de construir no Porto 600 casas de renda económica - contributo admirável para a soluçào parcial de um problema que atinge a cidade -, bem merece ser louvado. Queremos deixar-lhe aqui a eloquente expressão do nosso agradecimento pela medida tomada, de tão alto alcance social, moral e político, esperando ver dentro em breve e decididamente atacar o problema de tanta actualidade e projecção como é o das «ilhas».

Vozes : - Muito bem !

O Orador: - Ao Sr. Ministro da Educação Nacional desejamos também apresentar cumprimentos agradecidos, pela sua compreensiva atitude, bem digna de ser realçada, deferindo o pedido que aqui formulámos para que o Porto não fosse esquecido no período de teatro lírico que nessa data se iniciava no Teatro Nacional de S. Carlos.
Dificuldades de ocasião não permitiram que o nosso alvitre fosse na época realizado na época corrente, mas sabemos que S. Ex.ª resolveu que na próxima temporada a capital do Norte visse satisfeita tão merecida distinção. O Sr. Ministro da Educaçào Nacional é aquele espírito ponderado e forte que há muito nos habituámos a admirar, sempre disposto a tomar resoluções corajosas, apoiadas na razão e na justiça.
Desta tribuna o saudamos, pedindo ao mesmo tempo que não esqueça outros problemas contidos na sua

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(...) agenda, do mais alto interesse e da mais premente necessidade, não só para o Porto, como para todo o Norte do País.
Queremos referir-nos ao Liceu Rainha Santa Isabel cuja instalação em casa própria e para tal é construída se impõe merecida e urgentemente, tal é a inferioridade em que ali vivem os professores e alunos. E queremos referir-nos ajuda à criação de um centro anticanceroso, centro cuja criação dispensa palavras justificativas, tal é a razão que assiste à sua existência.
Uma cidade com 300 000 habitantes e uma região de densidade populacional tão elevada sofreria notável baixa na sua mortalidade pelo tratamento conveniente de doentes portadores de doença terrivelmente maléfica, como é o cancro.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Sr. Presidente parece ter chegado a hora das grandes realizações para o Porto, realizações que dentro em breve terão o seu início. Só temos que nos regozijar com o facto, agradecendo ao Governo a justiça feita à nossa velha cidade.
Sr. Presidente: a Assembleia Nacional, no desempenho da sua alta função, não podia manter-se silenciosa perante o Congresso Nacional da Filosofia, ciência aberta a todos os grandes problemas do Universo, que acaba de realizar-se na velha cidade dos arcebispos: em Braga.
Seria criminoso esse silêncio, porque este Congresso, em que tomaram parte alguns dos mais representativos valores do pensamento europeu e em que colaboraram os nossos mais destacados pensadores honrando essa cidade e dignificando a Nação, foi sobremaneira brilhante para prestígio da intelectualidade portuguesa, marcando notável princípio do triunfo da verdade, redundando em luz e vida para a Pátria e para o Mundo.
Um Congresso que tem na sua base Deus, o Mundo e o homem, como afirmava Cícero, ou a ciência para as altíssimas causas - sciencia rerum por altíssimas causas -,como dizia S. Tomás de Aquino, é estrela de grandeza máxima iluminando a alma humana, em constante inquietação neste mundo, preso por liames tecidos diabolicamente na guerra odienta a Deus e à dignidade humana.
Queremos, Sr. Presidente, saudar neste momento a velha Bracara Augusta, templo onde se abrigam tantos heróis e tantos santos e onde se têm realizado com inconfundível brilho as mais grandiosas manifestações de cultura, prestigiando a política de espírito a que devotadamente se hão dedicado os melhores valores da mentalidade portuguesa.
E queremos saudar os nossos filósofos universitários, lembrando com a maior admiração, as Universidades estrangeiras que à Roma portuguesa vieram trazer o contributo do seu pensamento e do seu saber.
E saudamos ainda -e com que entusiasmo o fazemos!- os novos tempos, em que a juventude, ansiosa de conhecimentos pode seguir melhor caminho que o seguido por aqueles que viveram numa época bem diferente da de hoje, dominados por um agnosticismo e por um materialismo bem condenáveis.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:.- (!) Congresso afirmou-se pelo alto nível atingido pelas publicações feitas e pela presença dos mais ilustres mestres de filosofia, quer portugueses,
quer de outras nacionalidades, marcando data inolvidável na vida espiritual da Nação.
«Cortes gerais do pensamento português», na expressão feliz de um eminente congressista, não podia deixar de ser focado nesta Assembleia; e lamento, Sr. Presidente, não possuir a preparação intelectual necessária para o poder fazer com o desenvolvimento e o brilho que lhe são devidos.
A filosofia domina o Mundo no caminho da verdade. A economia e a política absorvem o pensamento das nações. Mas que destino teria o Mundo sem a verdade, a justiça, e a caridade?
O homem, em justificado anseio procurou sempre compreender os grandes problemas do Universo, levando o seu espírito a apaixonar-se devotadamente pelo estudo da metafísica, da crítica e da ética, dentro da filosofia tomista, procurando descobrir o seu destino, segundo os desígnios de Deus.
O espírito filosófico de todas as idades e as escolas filosóficas de todos os tempos, nas suas diversas correntes, foram evocados como glória do passado e certeza do presente, no aperfeiçoamento da doutrina e das ideias.
Por aquela academia de valores passaram os espíritos dos grandes filósofos da antiguidade - Sócrates, Platão. Aristóteles. Lembraram-se esses gigantes do pensamento na idade primordial da Igreja, como Santo Agostinho, o grande teólogo, Tertuliano, Santo Ambrósio e tantos outros. Rememorou-se S. Tomás de Aquino, S. Boaventura, Scot, o filósofo, teólogo e médico Pedro Lusitano, que ascendeu a papa e que, com Bacon, foi dos primeiros a adoptar o método experimental. Recordou-se, enalteceu-se e homenageou-se o nosso, Francisco Sanches, grande mestre da Universidade de Tolosa, ilustre pensador e filósofo, notabilíssimo homem de ciência, cuja estátua, em frente da igreja onde foi baptizado, ficará lembrando à posteridade um dos mais notáveis pensadores do Universo, que tanta influência exerceu sobre a intelectualidade no Mundo, nos tempos da Renascença. E muito particularmente sobre Bacon e sobre Descartes. E Pascal? E Fénelon? E outros grandes que marcaram no pensamento e nas ideias, como Hobbes, Leviatao, Locke, Kant, Hegel, Nietzche, Darwin, Augusto Comte!
Não foram esquecidos aqueles que no momento actual fazem sentir, sobre os pensadores de agora, a sua benéfica influência, como Taine, Abel Rey, Bergson, Spengler, Freud, William James, Webber e Fisher! E as grandes figuras do pensamento católico - Leão XIII; o cardeal Messier, o padre Monsabre, poderosos luminares da Igreja.
Merecem justos louvores os participantes em tão alto conclave, algumas das mais notáveis mentalidades portuguesas, que, com brilho e devoção, souberam apresentar e defender as suas comunicações.
Coimbra, grande centro universitário, justamente admirado e respeitado no Mundo, foi cidade proposta para o próximo Congresso, e bem merecedora é dessa alta distinção, pois Coimbra tem lugar assinalado através dos tempos no vasto campo da filosofia que os mestres de agora sabem manter orgulhosamente.
E o Porto, com o seu Centro de Estudos Humanísticos, criado em hora de feliz inspiração, orientado pelo alto espírito do médico, professor e filósofo que é o Dr. Luís de Pina, não pode nem deve ser olvidado nesta resenha de valores.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-A filosofia ó ciência interrogativa sobre a existência, humana, na ascensão do espírito para o infinito; e o infinito é Deus. Deus é alma imortal,

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(...) criador e redentor da humanidade, fundador da Igreja, sabiamente governada por um grande papa.
Cabe bem neste momento, lembrando a homenagem prestada a Santo Agostinho no seu XVI centenário, saudar Sua Santidade Pio XII, no seu XVI aniversário do seu pontificado. Ele é um dos maiores pontífices de todas as idades; pacífico mas heróico e intimorato defensor da liberdade humana; filósofo e pensador eminentíssimo; lídimo representante da Verdade, que é Deus. E, meus senhores fora da omnipotência divina tudo se divide, tudo se perde, tudo se digladia. O homem sem Deus, e portanto sem alma, é nada, ou é o caros.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: encerrou-se o Congresso. Congratulemo-nos pela obra realizada; saudemos a Faculdade Pontifícia do Filosofia, donde emergem tantos valores, e não esqueçamos o seu magnífico reitor, iniciador desta bela manifestação de pensamento.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Rendamos a mais ..sincera homenagem à Domus Municipalis bracarense, que tanto e tão proveitosamente tem sabido lutar pela sua cidade, engrandecendo o seu património material e espiritual.
E seja-nos permitido, ao terminar este breve apontamento, destacar o seu activo e ilustre presidente, que à frente dos seus destinos, a tem renovado em todos os seus aspectos e a quem se deve uma grande parcela, a maior, do brilhantismo atingido por tão alta manifestação de cultura, filosófica.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Sr. Presidente: o problema que hoje nos propomos tratar pertence ao número daqueles que ao nosso espírito se impõem, procurando resolvê-lo dentro dos princípios morrais e sociais que são orgulho da nossa doutrina. E matéria de extrema delicadeza onde a moral vive em todo o seu esplendor, oferecendo os seus reflexos, tranquilidade na alma e paz nas consciências, como fruto saboroso do dever cumprido, na defesa de solução reconhecida como absolutamente necessária. E o moral e o social aproximam-se, ligam-se, confundem-se, projectando-se na educação e na vida espiritual dos povos.
Sr. Presidente: o problema, equacionado em toda a sua simplicidade e em toda a sua importância, enuncia-se em poucas palavras: revogação do princípio, instituído por disposição legal, que não consente que a mulher casada, ou viúva com filhos, exerça serviços de enfermagem nos hospitais civis.
E evidente tratar-se de um problema que se afigura fácil, simples, da mais alta importância moral, muito especialmente num país com princípios bem marcados na defesa da família, cristãmente formada, lutando contra a imoralidade e contra os hábitos ofensivos de Deus e da sociedade.
Mas a simplicidade da sua enunciação contrasta em absoluto com a dificuldade da revogação de um princípio de efeitos anticristãos, anticientíficos, desmoralizadores e desmoralizantes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O Estado pode legislar sobre casamento, mas não pode nem deve fazê-lo quando essa legislação atinja ou fira a unidade, a liberdade ou a consciência do vínculo matrimonial, negando a afirmação divina «crescei e multiplicai-vos» na manutenção e na propagação da espécie humana.
Sr. Presidente: a Liga Portuguesa de Profilaxia Social, instituto que é orgulho e honra do Porto, no seu persistente apostolado em favor da saúde moral e física do povo português, vem de há largos anos combatendo a proibição de casamento feita às enfermeiras, sob pena de demissão se tal disposição infringirem.
Da sua moralizadora campanha resultou que as empregadas da Anglo-Portuguesa Telefone e as enfermeiras do Hospital Geral de Santo António foram libertadas dessa perigosa medida que lhes negava também o direito de poderem casar, que o mesmo é dizer de constituírem legalmente família. E na tribuna da Assembleia Nacional o Sr. Dr. Guilherme de Melo e Castro, que, pela sua inteligência e pela sua formação intelectual e moral, ascendeu ao Subsecretariado de Estado da Assistência, tratou brilhantemente este assunto, combatendo semelhante proibição.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Seguindo no mesmo caminho, traçado com tanta austeridade e devoção, encontramo-nos agora reforçando e apoiando as suas considerações e outras que o Sr. Dr. José Meneres, Deputado na legislatura passada, havia feito anteriormente.
Cabe neste instante um apelo dirigido ao ilustre Subsecretário e ao Sr. Dr. Trigo de Negreiros, Ministro do Interior, que, na sua longa caminhada governativa, em todos os postos ocupados tem deixado profundamente marcada a sua personalidade de estadista, a fim de problema de tão elevada transcendência ser encarado com o espírito de objectividade imposto pela grandeza e magnitude que encerra.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não se compreende que num país onde a quase totalidade da população pratica a religião católica se lance sobre uma classe tão prestimosa uma injusta e infeliz proibição, sentença condenatória do direito de poder constituir família, do direito de organizar, com toda a legitimidade, o seu lar.
Possuo, Sr. Presidente, uma especial autoridade para falar acerca da enfermagem, visto que, como profissional da medicina, tenho passado grande parte da minha vida a contactar diàriamente com essa legião de mulheres que, na missão de sacrifício em favor do seu semelhante, praticam, com a maior naturalidade, significativos actos de abnegação, de amor, de carinho, de heroicidade até.
Há aproximadamente quarenta anos que frequento clínicas hospitalares, e com absoluto conhecimento posso afirmar que as enfermeiras casadas são aquelas que possuem um nível moral mais elevado e que melhor sabem, no desempenho delicado da função, arcar com as suas pesadas responsabilidades profissionais.
O casamento, com todas as suas consequências, exerce naturalmente sobre a mulher uma acção de natureza fisiológica, de natureza psíquica, que a torna mais apta e mais compreensiva da alta missão social que desempenha.
A defesa da família - célula do Estado sobre a qual assenta todo o nosso edifício social - seria mais humanamente compreendida se, em vez de medidas puramente negativas, se adoptassem medidas positivas de protecção e amparo, compatíveis com as necessidades daqueles que as reclamam.
Compreendemos, louvamos admiramos a acção exercida, pela enfermeira religiosa, desligada dos bens terrenos, renunciando a tudo quanto o Mundo lhe propor-

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(...) cionaria de agradável, para se dedicar inteiramente à sua alta missão, cumprindo com rigor os mandamentos da Lei de Deus.
A freira-enfermeira tem a estimulá-la e a confortá-la o seu voluntário acto de renúncia, a oração, os seus votos, a graça dos sacramentos e todos os auxílios espirituais, que lhe proporcionam energia, coragem e vontade no exercício do seu apostolado.
Nilo possui a enfermeira laica, esses dons espirituais, mas Deus, na sua bondade infinita, dá-lhe os atributos necessários para poder também cumprir com abnegação, com amor cristão, com piedade, carinho, desvelo e competência a sua missão de voluntário sacrifício. Uma e outra bem merecem ser louvadas e exaltadas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A Igreja, autoridade indiscutível, fiel à interpretação dos princípios doutrinários em que se baseia, desde a sua mais elevada hierarquia até ao mais humilde dos seus pastores, mostra unanimidade de opinião acerca do casamento - estado natural do homem e da mulher, na elevada e divina missão de constituir família. E não estará a proibição do casamento das enfermeiras dos Hospitais Civis fora do abrigo doutrinário da Constituição, como opinou o Sr. Dr. Melo e Castro? Seja como for, não é compreensiva semelhante medida pela violência que encerra, não havendo justificação pura semelhante limitação, origem de tão avultados prejuízos morais, conduzindo a situações de extrema gravidade, que urge remediar.
Não há possibilidade de lutar contra os direitos humanos, contra a liberdade outorgada por Deus. A proibição do casamento é atentatória dessa liberdade, instituído como suprema dignificação da pessoa humana. .Em acto tão transcendente reside o estímulo da acção frenadora à vida corrupta de atentados, crimes, misérias morais, que é preciso combater, usando de todos os meios ao nosso alcance.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -Para o desempenho da profissão de enfermeira é necessário um conjunto de qualidades que o casamento não perverte ou oblitera. 'Correm os tempos excessivamente duros, eivados de um materialismo incompatível com o cultivo e a prática das virtudes que exornam a vida espiritual.
Mas a enfermagem mantém bem viva a sua devoção no sacerdócio anímico da sua alta missão. E o sacrifício abnegado, o amor à profissão, a que inteiramente se consagra, não pode sofrer alteração por um acto soleníssimo na sua essência divina.
A enfermeira mulher e mãe não deixará, após a santificação do seu amor, de continuar sendo mãe espiritual, aliviando os que sofrem, confortando e animando os enfermos confiados à sua carinhosa guarda.
Já alguém com toda a autoridade punha esta interrogação: mas o facto de a enfermeira receber um sacramento poderá transformar anjos em demónios?
A nossa longa experiência tem permitido observar que o casamento, longe de as inferiorizar exerce uma acção benéfica, salutar, aperfeiçoando-as, quer nas suas qualidades morais -bondade, delicadeza, modéstia, abnegação, autoridade -, quer nas suas qualidades técnicas, tornando-as mais aptas no exercício da sua missão, que tanto enobrecem e dignificam.
Pelas razões de ordem moral e social que acabamos de expor e como alta medida de sanidade, há que combater semelhante determinação legislativa, que, sendo razão forte de ilegitimidade, poderá até concorrer para o aumento do obituário infantil e mesmo para a prática do aborto criminoso.
Impõe-se Sr. Presidente, o aperfeiçoamento e a modificação das leis no sentido da máxima valorização, quer moral, quer social, da nossa gente. E as enfermeiras, no seu anseio de justiça, dignificadas na elevada missão do esposas e mães, saberão no seu lar ou no desempenho do seu labor profissional bendizer e abençoar todos aqueles que concorreram para que seja lícito desfrutarem a felicidade a que aspiram, cumprindo integralmente os seus deveres. E como sempre, Sr. Presidente, confiamos na acção do Governo, a quem pedimos as providências que tão magno problema reclama.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. António de Almeida: - Sr. Presidente: foi recentemente publicado pelo Ministério do Ultramar um decreto que cria, com sedes em Luanda e Lourenço Marques, respectivamente, os Institutos de Investigação Científica e de Investigação Médica de Angola e de Moçambique. Trata-se de um notabílissimo diploma, cuja importância cultural e política merece ser sublinhada nesta Casa.
Em 1950 o Sr. Prof. Comandante Sarmento Rodrigues, durante a discussão do aviso prévio sobre a investigação científica em Portugal, produziu um discurso modelar, e entre os conceitos expostos figuram alguns que me permito invocar nesta ocasião.
Assim, afirmou que, «se a investigação científica é fonte de alegrias para os homens de ciência, pana o homem político ela é, sobretudo, motivo de fortes preocupações». acrescentando que hoje ninguém verdadeiramente esclarecido pode menosprezar o valor da investigação científica », e declarou ser urgente a intensificação em Portugal desta útil e nobilitante empresa e que, «se queremos acompanhar os outros, se queremos sobreviver, temos de integrar-nos nas correntes e organismos, não só no plano nacional como no internacional. competindo, por isso, ao Governo promovê-la, sistematizá-la e orientá-la, com vista a obter-se bem-estar geral».
Definindo as linhas mestras de um verdadeiro programa. de investigação científica nacional, pôs em foco várias das nossas questões ultramarinas da actualidade, para as quais sugeriu algumas soluções, de que saliento as que mais interessam agora: «criar centros ou estações experimentais no ultramar, recorrendo, sempre que possível, aos elementos locais e garantindo-lhes independência; preparar os institutos metropolitanos, dentro e fora do Ministério do Ultramar, para apoiar e assistir aos centros do ultramar; preparar a Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar como organismo de planejamento, superintendência e ligação de toda a actividade científica do ultramar, além da execução directa que entenda dever assumir».

Vozes : - Muito bem !

O Orador: - Foi de acordo com a primeira ideia que, anteriormente, o sr. Prof. Comandante Sarmento Rodrigues, quando governador da Guiné, havia instituído o Centro de Estudos da Guiné, cuja fecunda laboriosidade cedo o consagraria aquém e além-fronteiras. E não poderei esquecer o desvelo com que o governador Sarmento Rodrigues comparticipou na feliz realização da II Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, reunida em Bissau, e quanto concorreu para o êxito dos actos comemorativos do V Centenário do Des-

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(...) cobrimento da Guiné, confiados em boa a parte ao cuidado da benemérita Sociedade de Geografia de Lisboa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: fiel aos excedentes princípios que advogou nesta Câmara, desde que tomou conta, da pasta do Ultramar não tem cessado de as exemplificar praticamente
Há poucos dias, por ocasião da posse do eminente Prof. Dr. Carrington da Costa do cargo de presidente da comissão executiva da Junta de Investigações do Ultramar, o Sr. Ministro do Ultramar, em bula orarão, deu sumário mas impressivo relato das diversas missões ou brigadas que actualmente esse organismo tem em campo ou preparadas para actuar: umas instituídas pelos seus ilustres antecessores, nomeadamente os Srs. Prof. Dr. Marcelo Caetano, capitão Teófilo Duarte e Dr. Francisco Machado (fundador da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, sucessora da gloriosa Comissão de Cartografia) - Hidrográfica de Cabo Verde, Geoidrográfica da Guiné, Hidrográfica de Angola e S. Tomé, Geográfica de Angola, Hidrográfica de Moçambique, Geográfica de Moçambique, as do Instituto de Medicina Tropical, Antimalárica de Lourenço Marques, Prospecção de Emlemias de Angola, etc., e outras criadas ou reconstituídas durante a gestão governativa do .Sr. Prof. Comandante Sarmento Rodrigues - Geográfica de Timor, Científica de S. Tomé, Pedológica de Angola, Botânica de Angola e Moçambique, Zoológica de Moçambique, Biologia Marítima do Ultramar, Antropológica e Etnológica de Moçambique; Fitossanitária dos Produtos Ultramarinos da Guiné e Endemias de Cabo Verde e estudos de investigadores isolados, etc.
Graças ao patrocínio do Sr. Ministro do Ultramar, Angola continuou a ser explorada antropológica e arqueológicamente pela respectiva missão antropobiológica, cujos trabalhos de campo estão muito adiantados, devendo-se-lhe também a criação das missões petrográfica e de linguistica banto, de Moçambique, e da missão antropológica de Timor, que realizou a prospecção antropológica da província, onde foram descobertos numerosíssimos materiais pré-históricos, que tanta curiosidade têm suscitado em congressos internacionais da especialidade.
Au Sr. Prof. Comandante Sarmento Rodrigues igualmente pertence a honra da fundação do Centro de Estudos de Timor, do Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar e do Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, tendo, ultimamente, constituído a Comissão de Nutrição, destinada a ocupar-se; dos problemas alimentares dos povos do ultramar português.
Sr. Presidente: a instituição dos mencionados organismos culturais e científicos e o porfiado e carinhoso impulso que lhes vem sendo dado pelo Sr. Ministro do Ultramar, se outros relevantes serviços no âmbito dos complexos assuntos de administração o fomento ultramarinos não tivesse já prestado à sua pátria, bastariam para acreditá-lo como estadista moderno, dotado de vasta preparação intelectual e grande visão política.

Vozes.: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Porém, o entusiasmo perene e a fé inabalável do Sr. Ministro do Ultramar na Ciência - como agente fundamental e imprescindível do progresso e valorização integral dos nossos territórios de além-oceano e operoso factor de engrandecimento do prestígio internacional da Nação - induziram-no a criar os Institutos de Investigação Científica de Luanda e de Lourenço Marques e os Institutos de Investigação Médica de Angola e de Moçambique, instrumentos portentosos e indispensáveis ao desenvolvimento intensivo e eficaz da ocupação científica destas duas províncias africanas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Tornaram-se realidades objectivas duas aliciantes aspirações, que andavam na mente dos colonialistas portugueses e foram inscritas há uma dezena de anos nos diplomas reorganizadores da Junta de Investigações do Ultramar e dos serviços de saúde, da autoria do Sr. Prof. Dr. Marcelo Caetano, e tão eloquentemente explanadas na Assembleia Nacional pelos Srs. Profs. Comandante Sarmento Rodrigues e Dr. Mendes Correia, vinco anos mais tarde.
Sr. Presidente: o decreto em referência, que se acompanha de um lucidíssimo relatório, tem como intuitos essenciais o alargamento do campo de investigação em Angola e Moçambique, a coordenação dos trabalhos dos estudiosos de aquém e além-mar, o fomento e elevação da cultura local.
Aos institutos de investigação científica incumbe, em especial, promover e orientar as pesquisas nos sectores das ciências geográficas, histórico-naturais e humanas. Assim irão despertar-se e animar-se iniciativas, impulsionando-se a apreciação de assuntos ainda não examinados por outros organismos ou estabelecimentos oficiais e entidades para-estatais já existentes nas duas províncias, facultando-lhes auxílios e meios de acção ou recebendo-os deles, em regime de perfeita colaboração e intercâmbio de técnicos e de conhecimentos especializados.
Com a adopção de tão salutares directrizes, reconhece-se, muito louvavelmente, a prestimosa obra intelectual levada a cabo por certos departamentos do listado no ultramar, dos quais é justo assinalar os serviços de geologia e minas, os servidos pecuários, os serviços de agricultura e a Estação de Melhoramento de Plantas, em Angola, e o Centro de Investigação Científica Algodoeira e os serviços de geologia e minas, em Moçambique, que os respectivos governadores-gerais tanto estimulam e consideram. São ainda dignas do maior elogio as actividades desenvolvidas por alguns núcleos de estudo particulares, tais como a Companhia de Diamantes de Angola, o Instituto de Angola, a Sociedade Cultural de Angola e a Sociedade de Estudos de Moçambique.
Sr. Presidente: esses institutos funcionarão sob a égide da prestigiosa Junta de Investigações do Ultramar e com a dedicada cooperação dos governos e dos recursos provinciais, unindo profundamente aos centros culturais metropolitanos os serviços públicos locais, dentro de ampla autonomia, e além de condicionarem íntimo e aturado convívio social e o robustecimento d comunidade ideais entre os investigadores -circunstâncias de mérito inestimável para o estreitamento cada vez maior da unidade moral e política de Portugal-, os novos organismos de investigação científica darão os mais profícuos rendimentos espirituais, obtidos nas melhores condições económicas.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Dos esforços dos Institutos de Investigação Médica de Angola e de Moçambique - sob a dependência do Instituto de Medicina Tropical e talhados em moldes idênticos aos dos institutos precedentes - também se aguardam prometedores resultados médico-sanitários.
Sr. Presidente: em 1950 o Sr. Prof. Comandante Sarmento Rodrigues disse neste lugar que, no nosso tempo, domina a preocupação de instalar estabelecimentos de

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(...) investigação científica em toda a África, informando que os nossos territórios ali situados estão rodeados de uma malha de institutos, factos que não devemos desconsiderar, tanto mais que já houve unia categorizada personalidade estrangeira que, baseada em argumentos de ordem geográfica e na falta de centros de estudos portugueses, sugeriu a divisão regional do continente africano para efeito da organizarão científica, proposta denodadamente; combatida e inutilizada em demora pelo sábio professor Sr. Dr. Mendes Correia.

Vozes : - Muito bem!

O Orador: - Na verdade, sem falar da multiplicidade das corporações científicas de renome mundial da União Sul-Africana, nos domínios estrangeiros vizinhos ou não muito distantes da Guiné, de Angola e Moçambique encontram-se, entre outros, os abalizados núcleos de estudo: o Instituto Francês da África Negra, em Dacar, o Instituto Centro-Africano, em Bazzaville, o Instituto de Investigação da África Central, o Instituto para o Estudo Agronómico do Congo Belga e os centros fundados pela Universidade de Lovaina, todos no Congo Belga, e o Instituto de Investigação de Madagáscar, em Tananarive. Dos diferentes organismos que se dedicam exclusivamente à, investigação sobre matérias médico-sanitárias citarei apenas os institutos de Entebe e Nairobi, criados pela Inglaterra.
Sr. Presidente: as soluções preconizadas pelo .Sr. Prof. Comandante Sarmento Rodrigues nesta Assembleia estão quase todas convertidas em lei, para honra do Governo de Salazar, lustre da Naçào, desenvolvimento da Ciência o benefício da colectividade.

Vozes : - Muito bem!

O Orador: - Se a Escola Médico-Cirúrgica de Goa e o Centro de Estudos da Guiné ombreiam em labor com os organismos congéneres estrangeiros, igualmente os Institutos de Investigação de Angola e de Moçambique que diligenciarão incrementar ao máximo as suas nobres actividades.
A Junta de Investigações do Ultramar e o Instituto do Medicina Tropical, agora convenientemente apetrachados, prosseguirão, cada vez mais intensa e extensamente, na efectivação de seus magníficos empreendimentos e, como cúpula da nossa organização cientifica ultamarina , surgirá brevemente o Museu do Ultramar, cuja construção já foi autorizada e pela qual tanto se empenha o Sr. Ministro do Ultramar.

Vozes : - Muito bem!

O Orador: - Quando o Museu do Ultramar se levantar majestosamente em Belém, não mais haverá que recear reparos ou confrontos de estranhos, e Portugal, tendo estruturado racionalmente a investigação cientifica nas suas províncias do além-oceano, também em tão importante aspecto espiritual alinhará ao lado dos países mais cultos do Mundo.
Tenho dito.

Vozes : - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente : - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Garrett para efectivar o seu aviso prévio sobre a protecção à família.

O Sr. Almeida Garrett: - Sr. Presidente: entre os grandes problemas nacionais, o da protecção à família ocupa, indubitavelmente, primacial lugar. Nunca é demais proclamar, repetidamente, que a família é a célula social por excelência, a corporação fundamental donde derivam todas as comunidades, de variada categoria, que formam a entidade nacional, e que por essa soberana razão merece ser protegida com especial atenção.
O Estado Novo, com alto sentido dos seus deveres, exarou no artigo 12.º do estatuto político da Nação as seguintes palavras:

O Estado assegura a constituição e defesa da família, como fonte de conservação e desenvolvimento da Raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social e como fundamento da ordem política e administrativa, pela sua representação na freguesia e no município.

O reconhecimento oficial da importância fundamental da família para a continuidade e prosperidade da Nação ficou, pois, categoricamente afirmado.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Alguns problemas integrados no tema, que vou tratar foram já nesta Assembleia discutidos, em valiosas actuações. Recordo as de Pinheiro Torres e Braga da Cruz sobre divórcio, de Pinheiro Torres, Augusto Cancella de Abreu, Schiapa de Azevedo e Galiano Tavares sobre assistência à família, de Querubim Guimarães sobre mocidade e cinema, de Augusto Cancella de Abreu sobre propinas escolares, e o projecto de lei de Paulo Cancella de Abreu sobre abandono da família, quanto ao qual houve notáveis intervenções dos Srs. Deputados D. Maria Leonor Correia Botelho, Miguel Bastos, Carlos Mendes, Santos Carreto e do apresentante, Paulo Cancella de Abreu.
Logo desde a primeira legislatura, o assunto mereceu devotadas atenções. Hoje, é a minha vez, com a pretensão, talvez excessiva, de versar todas as facetas do assunto em questão.
Começarei pela definição de família, indispensável ponto de partida.
Como todos sabem, dão-se à palavra 'família» diversos significados, tanto na linguagem particular como na oficial; é esta a que nos interessa.
A acepção mais lata é a do Código Civil, pelo qual a família abrange, para efeito de direitos e obrigações de carácter individual, todos os que estão ligados por relações de parentesco até aos transversais do 6.º grau. Uma enorme amplitude, portanto. Amplitude excessiva, por conceder o direito de herdar a parentes muito afastados, com longínquas relações de sangue e, em regra, sem laços de afectividade. Seria preferível restringir a extensão do direito sucessório e reduzir os impostos a pagar por filhos, pais e irmãos, ou seja pelos componentes do núcleo familiar na sua mais intima expressão, e melhorar a posição da mulher.
Não é a família do Código Civil a que me pode interessar daqui em diante.
O conceito político é muito diferente; considera chefe de família todo aquele homen ou mulher - que viva em habitação própria com os seus próprios recursos.
Este conceito político, que é também o da nossa estatística demográfica, tem sido o geralmente adoptado pelas organizações de assistência e previdência.
A família é, por assim dizer, sinónimo de lar, tomado no sentido de habitação. Pode esta ser grande ou pequena, reduzida, mesmo a um só compartimento;

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tanto pode nela viver uma estreita família, fie marido, mulher e filhos, como ser albergue de uniu só pessoa ou de pessoas ligadas, guando muito, por mais ou m unos directo parentesco. Esta acepção, se serve para o efeito político-administrativo não serve, evidentemente, para a finalidade de protecção à família, para específicos objectivos assistenciais. A família, para ser «fonte de conservação e desenvolvimento da Raça e base primária da educação, da disciplina e harmonia social», tem de assentar no binómio humano marido e mulher e respectiva prole. Só esta é a família merecedora de especiais medidas protectoras.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Estendê-las a outros casos. que. nau sejam 0.3 imediatamente derivados do matrimónio, é desvirtuar o conceito, criando paridade de direitos onde não há paridade de condições, Um pai com filhos celibatários que há muito ultrapassaram a maioridade, irmãos solteiros em semelhantes condições ou viúvos s sem filhos, tom o mais próximo parentesco, mas não constituem uma família, para a matéria de que trato; o agregado que formam não tem o carácter de célula social primária. Já um viúvo com filhos menores, ou mu órfão de pai e mãe a cargo de um parente, mesmo que este seja celibatário estão em condições de ser considerados família, porque no primeiro caso a falta, de um dos progenitores não invalida n princípio e no segundo raso o parente substitui os pais falecidos.
Fica assim delimitado, com exemplos concretos, o conceito da família, digna de auxílios especiais. É dentro deste conceito, exclusivamente, por ser o único que tenho por legitimo, que giram todas as considerações que vou fazer.
Todos os agregados por parentesco ou afinidade que nele não estejam compreendidos são merecedores de socorros quando delas carecerem, mas em pé de igualdade com os indivíduos que vivem só ou vivem com outros sem relações de parentesco.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: uma vez que o casamento é o acto donde parte u núcleo familiar, a primeira coisa a proteger é a instituição matrimonial.
Bem sabemos todos nós que nem todas as pessoas podem casar. Além dos que renunciam n constituir família para se entregar a vida religiosa, sempre houve e haverá quem, por rara excepção à regra, não sinta aquela tendência à união conjugal que é instintiva na enorme maioria dos seres humanos, sem que essa conduta deixe de ser respeitável. Mas pode dizer-se que, exceptuando as vocações religiosas, quase todos os homens podem e devem casar.
O inventário estatístico da nupcialidade, hoje e ontem, diz o seguinte:
Em relação ao milhar de habitantes a cifra dos casamentos tabela-se assim de 1910 para cá. tendo até esse ano andado sempre na casa dos 6:

1910-1914 ............... 6.58
1915-1919 ............... 6.08
1920-1924 ................8,10
1925-1929 ............... 6,87
1930-1934.................6,64
1935-1939.................6,47
1940-1944 ............... 7,09
1945-1949 ............... 7,85
1950-1954 ............... 7,85

A taxa extraordinária de 1920-1924 é a compensação das, taxas inferiores a seis dos anos de 1915-1918, resultantes da saída do País de algumas dezenas de milhares de soldados, na maior parte solteiros. Pode dizer-se que até 1940 as quotas andavam pela média de perto de sete casamentos por cada milhar de habitantes. Tendo desde então para cá subido, até atingir perto de oito no último decénio.
A impressão que deixam estes números é confirmada pelas quotas, mais rigorosas, da nupcialidade específica, ou seja do número de casamentos por cada milhar de homens solteiros. Com efeito a comparação das duas espécies de quotas em 1940-1950, anos de censo da população, dá as seguintes diferenças para mais:

(Ver quadro na imagem)

Não há, pois, dúvida de que nos últimos tempos a nupcialidade portuguesa tem aumentado, o que é excelente sinal. Mais progredirá, seguramente, se o seu incremento for devidamente auxiliado. E o mais amplamente que se puder conseguir, por educação religiosa, de sentimento e não apenas de aparência, o casamento católico de indiscutíveis virtualidades.
E, no entanto, é volumosa a falange dos celibatários. Pelo último recenseamento geral da população vê-se que em 1950 havia 376 653 homens solteiros com 25 ou mais anos de idade e 211 709 com mais de 30 anos.
Isto corresponde a 18,6 e a 13 por cento do total de homens nos mesmos grupos de idade.
Estas proporções têm-se mantido com leves oscilações, por a nupcialidade não sofrer, em anos vizinhos, grandes variações; verificou-se ultimamente uma pequena melhoria na quota matrimonial, que não invalida a impressão, que das referidas cifras se colhe, de haver abundante massa de celibatários.
As proporções estabeleceram-se como se estabelecerão todas as que apresente, em relação ao sexo masculino porque há mais mulheres do que homens, aqui como em toda a parte. O impropriamente chamado sexo forte é biologicamente inferior ao apelidado sexo fraco. Nascem mais rapazes do que raparigas, mas a mortalidade é naqueles maior do que nestas, por tal forma que depois da idade escolar cada vez se acentua mais a superioridade numérica do sexo feminino.
O facto de ser muito grande a coorte dos celibatários é um mal, porque nela se encontra a principal origem da natalidade ilegítima, das ligações irregulares, da sedução de raparigas e talento à prostituição.
Estes cancros sociais partem quase exclusivamente dos solteirões de todas as classes sociais, desde o pobre que se intromete com as operárias ou as criadas de servir, até ao rico que impele à libertinagem com a atracção do luxo.
Vem a pêlo mencionar a vastidão da nascença ilegítima.
Nos últimos anos representou-se por uma média de 23 121 nado-vivos, o que corresponde a 11.3 do lotai de legítimos e ilegítimos.
Em relação ao mimem de mulheres solteiras cm idades de 20 a 34 anos, as que dão a maior porção de ilegítimos, em 1950 houve uma percentagem de 5,5 nado-vivos quando, nesse mesmo ano do último censo a ilegitimidade, em relação ao total de recém-nascidos foi de 10,3 por cento.

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Estas cifras dão bem a ideia da gravidade desta doença social, maléfica sob todos os pontos de vista.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Para a combater os povos latinos, como o nosso, só lia pouco conheceram a investigação da paternidade, processo incapaz de remediar d mal, por se usar quase exclusivamente quando há riqueza a herdar. Os povos nórdicos germano-saxónicos, viram melhor o problema instaurando a investigação oficiosa, não para conferir direitos civis, uvas só puni a obrigação de o pai pagar a criação do filho. Por isso, nesses países, mercê sobretudo de tal legislação, a nascença ilegítima se reduziu enormemente, a cifras de 2 e 3 por cento do total dos nascimentos.
As melhores legislações que são as germano-saxónicas, tornam obrigatória a declaração da suposta paternidade no acto de registo, ou mesmo antes, pelo médico ou pela parteira que assistiu ao nascimento, seguindo-se a investigação oficiosa, sistemática, para prestação, de alimentos. E vão mais longe: o reconhecimento da paternidade durante a gravidez implica o pagamento das despesas da mãe no anteparto no parto e no pós-parto. Do mesmo passo que se combate a ilegitimidade, alivia-se a sociedade do dispêndio enorme que nas obras de assistência se faz com os filhos chamados naturais».

O Sr. Pinto Brandão: - É absolutamente justo e moral que o pai arque com a responsabilidade e sofra as consequências do acto que praticou ...

O Sr. Morais Alçada: - Desde que não tenha repercussão nos outros, inclusivamente nos filhos legítimos. E que não baste a simples denúncia da mãe para incriminar um homem, a menos que este confesso ser o pai.

O Orador:-Isso é apenas uma pista da investigação oficial, pois a declararão da mãe dá somente uma indicação de suposição, que ao Poder Judicial especializada cumpre esclarecer. E os filhos legítimos não sofrerão na herança a receber, pois a paternidade averigua-se somente para a prestação de alimentos.

O Sr. Morais Alçada: - Assim está bem e, de resto, isso parece estar implícito, como não podia deixar do ser. Congratulo-me, no entanto, por ter contribuído para esclarecer o assunto de que V. Ex.ª está tratando e peço desculpa da interrupção.

O Orador: - Eu é que fico por ela agradecido.
Sr. Presidente: das causas do celibato destaco duas, que se me afiguravam de superior importância: a insuficiência económica e a criação de hábitos antimatrimoniais.
Muitos jovens não casam porque não ganham o suficiente para manter um lar e para o sustentar. Para o desnível entre os recursos e os forçosos gastos de uma casa du família concorre fortemente a carestia da habitação; mas ainda mesmo sem esse peso, muitas vezes os ganhos não chegariam ou mal chegariam para as mais instantes exigências de uma vida modesta, como adiante veremos.
O factor económico requer dois remédios: barateamento da habitação e auxílio financeiro. Não me ocuparei agora do problema habitacional, reservado, como anunciei, para outro aviso prévio, pois o assunto merece ser repetidamente ventilado nesta Assembleia, onde já sobre ele se fizeram importantes intervenções, entre as quais o notável trabalho apresentado pelo Sr. Engenheiro Amaral Neto na sessão de 23 de Janeiro de 1953. Há, no entanto, que insistir até que para ele se encontrem soluções inteiramente satisfatórias.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quanto ao auxílio financeiro, entendo que pode e deve efectivar-se sem dificuldade de maior.
De entrada há que ajudar a montagem do lar por meio de empréstimos ou de donativos. Os dois sistemas têm sido adoptados em vários países. Um bom exemplo é-nos dado pela Espanha, onde foram largamente utilizados.
Até 1949 o procedimento consistia em empréstimos de 5000 pesetas, quando os noivos tinham menos de 25 anos, e de 2500 pesetas, quando tinham de 25 a 30 anos de idade. Á dívida amortizava-se à medida do nascimento de filhos, na razão de 25 por cento por cada filho, de modo que ao 4.º filho se extinguia.
Depois os empréstimos foram substituídos por donativos de 2000 pesetas, totalizando, a partir do ano passado, um dispêndio de 411 milhões de pesetas, distribuídos pelas províncias segundo o número de famílias e de peticionários do ano anterior e em cada província distribuída a respectiva quota de acordo w nu certas preferências. Por este meio se promove a formação de 16 000 novas famílias em cada ano.
Parece-me que o melhor sistema será o do emprego dos dois auxílios, o donativo e o empréstimo, aquele para os que não poderão amortizar o dinheiro recebido, ti o empréstimo, a saldar com o nascimento dos filhos, para os que, apesar de modestos ganhos, o poderão devolver.
Assim, do mesmo passo se protegerá a nupcialidade e n natal idade, a promoção do lar completo, do marido, mulher e filhos.
A fixação de um kanile de idade dos noivos para a concessão dos auxílios tem notória importância. Por todos os motivos, de moral social e de vigor demográfico, convém que os casamentos se façam entre gente nova.
Em cotejos internacionais não ocupamos mau lugar sob este ponto de vista; mas é preciso acentuar a posição, se queremos progredir francamente, no sentido de uma melhor estrutura social. Com efeito, em 1950, por cada 1000 homens dos respectivos grupos de idades, as taxas de nupcialidade foram as seguintes:

Com menos de 20 anos ......... l2,08
De 20 a 24 anos .............. 67,51
De 25 a 29 anos ...............66,98
De 30 a 34 anos .............. 25,70
De 35 a 39 anos .............. 12,14
De 40 a 44 anos ............... 7,47
De 45 e mais anos ............. 3,61

Sr. Presidente: passemos agora ao outro apontado factor do celibato: a criação de hábitos antimatrimoniais.
Na dispersiva vida dos centros urbanos, os jovens habituam-se, pouco a pouco, a alhear-se da casa paterna, a servir-se dela só para comer e dormir. Habituam-se a gastar o que ganham em diversões. Tais hábitos enraízam-se com o andar dos anos e com eles vai-se afastando cada vez mais a vontade de casar. Mais uma razão para se promover eficazmente a nupcialidade dos novos.
Um outro procedimento favoreceria notavelmente, por certo, a extensão desse benéfico movimento: a instituição do imposto sobre os celibatários a partir dos 27 anos, idade em que o homem, já passados os anos de aprendizagem, mesmo longa, deve ter situação profissional definida.

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Não compreendo a repugnância que mostram alguns economistas por essa tributação. Ela obedece a um princípio nitidamente moral: o de que o homem que devia ser casado e o não é, Lesando com o seu celibato a moral social e o futuro da Nação, deve aliviar a carga dos que cumprem o seu dever, seguindo a lei de Deus. Não se deixe gozar, injustamente, de uma situação económica superior à do casado, precisamente porque faltou a esse dever.
No Brasil, a Lei de 194l, que dispôs sobre a organização da protecção à família, estabeleceu-o nos seguintes termos: Os contribuintes com imposto de renda, solteiros ou viúvos sem filhos, maiores de 25 anos pagarão um adicional de 15 por cento e os casados, também maiores de 25 anos e sem filhos, pagarão um adicional de 15 por cento sobre a importância do mesmo imposto a que estejam obrigados. Os contribuintes do imposto de rendas maiores de 45 anos, que tenham só um filho pagarão o adicional de 5 por cento sobre a importância do mesmo imposto a que estejam sujeitos».
A extensão para além dos celibatários é susceptível de objecções; mas para estes é indiscutivelmente justa.

O Sr. Morais Alçada: - Com a agravante de que quem constituir família e quiser deixar-lhe o que foi produto do seu labor tem de pagar novo imposto - o sucessório.

O Orador: - Eu mais adiante falarei no imposto sucessório.
Sr. Presidente: vou tratar agora da protecção da família já constituída. E começarei por expor a situação de estabilidade ou instabilidade da família em Portugal, tal rumo ela se apresenta, avaliada pelas indicações numéricas fornecidas pelas publicações oficiais. Têm de me perdoar a sempre fatigante citação de números, mas ela é indispensável para tratar o assunto objectivamente.
Devo desde já declarar que entendo o casamento como já o entendiam os Romanos: «união íntima de marido e mulher, consórcio de toda a vida, comunicação de direito divino e humano». O casamento católico, prescrevendo a indissolubilidade do laço matrimonial, erigindo-o em sacramento, é terminante a este respeito. Quando um homem casa deve casar para toda a vida. Só em circunstâncias
especialíssimas é admissível a separação dos cônjuges, Esta é a opinião basilar dos juízos que formularei.
Posto isto, vamos aos números e respectivos comentários.
Informa sobre o desfazer de lares a estatística dos divórcios e da separação de pessoas e bens:
No triénio de l951-1953 a média anual de divórcios foi de 1063. Em relação ao número de casamentos quinze anos antes, pois é este período o do tempo em média decorrido entre o casamento e o divórcio, contando com n viuvez, verifica-se que os divórcios se deram na aproximada proporção de 2,5 por cada 100 casamentos. Comparada esta quota com a apresentada em muitos países, a situação não nos é muito desfavorável; mas, evidentemente, é desejável seja muito, muitíssimo melhor.
Vale a pena analisar os motivos invocados para os divórcios. Pelo seguinte quadro de cifras médias de 1951-1953 vê-se que prepondera notavelmente o adultério, seguindo-se, em ordem descendente, as injúrias graves, o abandono da família e, por fim, a concordância, mútua:

Por adultério da mulher ......... 299
Por adultério do homem .......... 293
592

Por injúrias graves...............225
Por abandono do lar ..............148
Pm ausência superior
a quatro anos .....................10
158
Por separação
mutuamente consentida..............48
Por mútuo consentimento............39
87
Por doença contagiosa...............1

Este quadro, para conveniente apreciação tem de completar-se com o respeitante aos anos que mediaram entre o casamento e o divórcio também, em média, no aludido triénio:
De menos de 2 anos..................................8
De 2 a 4 anos......................................82
De 5 a 9 anos.....................................192
De 10 a 14 anos...................................235
De 15 a 19 anos...................................203
De 20 e mais anos.................................341

A grande maioria dos divórcios dá-se, pois, em cabais que têm mais de 10 anos de duração, isto é, precisamente quando o hábito de convivência íntima e, para muitos delas, a existência de filhos deviam estreitar os laços conjugais.
A culpa cabe ao homem, na maioria das vezes; somando os casos de adultério do homem aos de injúrias e abandono do lar, estes dois últimos quase sempre relativos ao marido, acha-se a cifra de 676 para um total de 1063. Pode, pois, calcular-se em mais de 60 por cento a proporção dos divórcios principalmente motivados pelo homem. Se o adultério representa cerca de metade de tais casos, a observação dos factos diz-nos que, na realidade, ele está na origem de quase todos os outros.
Por outro lado o adultério da mulher é invocado em perto de 30 por cento dos divórcios. Por isso, é sobre esta causa mais frequente - o adultério - que faço incidir um primeiro comentário.
O adultério supõe sempre um sedutor e um mais ou menos facilmente seduzido. Há, nos dois sexos, organismos medulares, em que o domínio psíquico mio regula o instinto sexual; por isso sempre houve e haverá adúlteros e prostitutas, embora fisiològicamente devam representar escassa parcela no total dos homens e das mulheres em idades de actividade genésica. Salvo, porém, essas excepções, o adultério implica uma acção, sempre capciosa e persistente, de um sedutor, varão ou fêmea.
No adultério do homem a regra é ter por motivo uma mulher que se atravessa no caminho do dever familiar, que se oferece, atraente, a sexualidade do casado. Isto é vulgar quando este passa de certa idade e a mulher é muito mais nova. Conheci alguns casos deste género, em que um marido, até então exemplar, abandonou o lar, a mulher e os filhos, para se ligar à sedutora, que passou a viver à custa dele.
No adultério da mulher, quando não teve a vulgar intenção de casar com o adúltero, o desfecho é diferente: a divorciada em breve se vê abandonada pelo sedutor e forçada a seguir outros tristes caminhos.
A observação pessoal de muitas ocorrências que conduziram ao divórcio diz-me que, além do adultério. há alguns raros casos em que a falência do lar si; justifica: são aqueles em que, por insuportável irascibilidade, um dos cônjuges nem com evangélica paciência pode viver com o outro. Se bem que muito excepcionais, devem ter-se em conta.

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Sem mais pormenorizações, o que venho de expor basta para concluir pela indispensabilidade de uma decidida revisão da lei, que limite o direito ao divórcio às causas de adultério e de fados cabalmente provados de impossibilidade de convívio. Tem de se acabar com o imoral pretexto do mútuo acordo ou consentimento e com o ignóbil motivo da doença contagiosa.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - A lei deverá ainda impor o apuramento sistemático da identidade do sedutor, varão ou fêmea, para devido castigo, e a expressa proibirão de casamento do sedutor ou sedutora com a seduzida ou o seduzido; medida esta indispensável por frequentemente o adultério resultar de aliciadoras promessas de fundação de um novo lar.

Ao montante dos divórcios há que agregar o das separações judiciais, muito menor, mas que possivelmente aumentará à medida que for crescendo o número de casados depois de 1940.

Pelo último volume publicado na Estatística Judiciária, vê-se que em 1952 foram 221 os processos respectivos, tendo, porém, havido 20 desistências.

Não tenho dados de pormenor sobre os motivos; é de presumir que se assemelham aos citados para os divórcios. E, sendo o adultério no fundo, também aqui, a principal causa da separação, julgo indispensável prescrever-se pesado castigo a quem o provocou.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -Sr. Presidente: a hora vai adiantada e tenho ainda muita coisa a expor. Peço licença a V. Ex.ª para me reservar a palavra para a sessão de amanhã.

O Sr. Presidente: - Está concedido. Vou encerrar a sessão. A próxima será amanhã, com a mesma ordem do dia da de hoje.

Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 25 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Abel Maria Castro de Lacerda.

António Bartolomeu Gromicho.

Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.

Daniel Maria Vieira Barbosa.

João Luís Augusto das Neves.

João Mendes da Costa Amaral.

Manuel Maria Múrias Júnior.

D. Maria Leonor Correia Botelho.

D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.

Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.

Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.

Rui de Andrade.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Agnelo Ornelas do Rego.

Alberto Cruz.

Alberto Henriques de Araújo.

António Carlos Borges.

Augusto César Cerqueira Gomes.

Carlos Mantero Belard.

Elísio de Oliveira Alves Pimenta.

João Afonso Cid dos Santos.

João Alpoim Borges do Canto.

João Ameal.

João da Assunção da Cunha Valença.

João Carlos de Assis Pereira de Melo.

João Cerveira Pinto.

Joaquim de Moura Relvas.

José Gualberto de Sá Carneiro.

José dos Santos Bessa.

Luís Maria da Silva Lima Faleiro.

Manuel Cerqueira Gomes.

Manuel Maria Vaz.

Miguel Rodrigues Bastos.

Teófilo Duarte.

Tito Castelo Branco Abrantes.

O Redactor - Leopoldo Nunes

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CÂMARA CORPORATIVA

VI LEGISLATURA

PARECER N.º 14/VI

Convenção Cultural Luso-Britânica

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca da Convenção Cultural entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, emite, pelas suas secções de Interesses do ordem cultural e de Interesses de ordem administrativa (subsecção de Relações internacionais), sob a presidência, do Digno Procurador, assessor, Afonso de Melo Pinto Veloso, o seguinte parecer:

1. A Convenção Cultural entro Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, assinada em Lisboa, a 19 de Novembro do ano findo, (pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo Português e pelo Embaixador britânico Sir Nigel Ronald, como plenipotenciários, é, tecnicamente, um acordo intelectual bilateral, cujo aparato diplomático justifica o nome de «tratado» ou «convenção», e cujo conteúdo e forma permitem agrupá-lo entre os acordos denominados «culturais». Os especialistas de direito internacional não se têm demorado na análise e classificação destes diplomam, que não oferecem interesse propriamente político, embora constituam instrumentos de uma política especial, particularmente delicada, que é a «política da cultura». O estudo, porém, dos trinta e sois acordos intelectuais celebradas entre Estados no período áureo da «política internacional do espírito», como lhe chamou Paul Valéry, isto é, entre -1919 e 1938 - estudo feito in extremis pela Sociedade das Nações -, oferece-nos alguns esclarecimentos sobre a matéria, em geral entregue pelas chancelarias ao arbítrio dos negociadores. Quanto ao conteúdo, é possível distinguir no acervo destes diplomas, e dos que se negociaram mais tarde, quatro grupos de acordos intelectuais: I, acordos «universitários» ou «escolares», destinados a regular as relações universitárias ou certos problemas de ensino entre as Altas Partes Contratantes (criação de leitorados e de cátedras, permuta de professores e de estudantes, bolsas de estudo, cursos de férias, etc.); II, acordos «linguísticos» (de interesse, aliás, não apenas intelectual, mas também político e económico), concluídos entre Estados em condomínio linguístico ou entre nações de língua diferente, em geral no propósito de consolidar uma aliança ou de assegurar a maior extensão de influência de um idioma imperial; III, acordos parciais sobre outros assuntos (criação de institutos, exposições de arte, troca internacional de publicações, propaganda do livro, etc.); IV, acordos que cobrem todo ou quase todo o domínio dos interesses intelectuais das Potências signatárias, únicos a que é legítimo atribuir a designação de «acordos culturais». Quanto à forma, é corrente distinguir entre os acordos anteriores a 1935, atípicos, divergentes, não subordinados na generalidade a qualquer modelo ou padrão, e os diplomas ulteriores, que possuem já um certo ar de família, uma certa unidade de técnica, obedecendo a um cânone comum - texto de perfeito equilíbrio e de luminosa clareza - que foi o Acordo intelectual ítalo-húngaro de 16 de Fevereiro de l935, assinado por Benito Mussolini e pelo Ministro da Educação e dos Cultos da Hungria, Valentina Hóman. A Convenção entre Portugal e a Grã-Bretanha, sobre a qual recaiu o nosso exame, é, com efeito, um acordo cultural bilateral, que não se afasta sensivelmente do tipo clássico desta espécie de instrumentos diplomáticos.

2. Tornava-se realmente necessário um acordo desta natureza entre as duas Nações? A iniciativa - digamo-lo desde já - pertenceu ao Governo de Sua Majestade Britânica e foi naturalmente acolhida com satisfação pelo Governo Português, que considerou desejável

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activar e coordenar a intercultura luso-britânica, oferecendo nos dois Países novas oportunidades de colaboração L- de convivência. Quando, há cerca de vinte e cinco anos, a Liga de Genebra, na convicção de que os acordos políticos e económicos não bastavam como instrumentos da segurança colectiva, instaurou a sua política de cooperação intelectual - deslumbrante movimento de iniciativas e de ideias a que não se prestou ainda inteira justiça -, produziram-se algumas objecções, mais brilhantes do que sólidas, respectivamente à eficácia dos métodos adoptados. «Os acordos intelectuais entre os povos - disse-se - são inúteis porque os povos não são intelectuais». Houve quem acrescentasse: «A inteligência nunca serviu para unir os homens; dividiu-os sempre». E Julien Benda, o mestre de paradoxos da Trahison des Cleres, lançou sobre as primeiras actividades, um pouco bizantinas, do Instituto do Palais Royal o seu terrível balde de água fria: «Para quê aproximar os povos, se eles se odeiam tanto mais quanto melhor se conhecem?» Hoje, estas atitudes negativistas e críticas deram lugar no 'mundo ocidental - único actualmente permeável à política da cultura - n uma relativa confiança nos princípios e nos métodos da cooperação intelectual, de que se tornou instrumento magnífico, sob a égide da O. N. U., a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - a Universidade da Rua Kleber-, herdeira rica da antiga 'Comissão Internacional de Cooperação Intelectual de Genebra, a que outrora presidiram Bergson e Einstein. Essa confiança justifica-se. A cultura, por definição «o culto dos grandes valores humanos», não se realiza plenamente como facto nacional restrito, mas como fenómeno ecuménico, como expressão da consciência, não apenas de um povo, mas - já o dissera em 1612 o grande Francisco Suarez no seu tratado De Legibus - da (comunidade jurídica e humana dos povos, como unidade universal». Desenvolver internacionalmente a cultura é fortalecer essa consciência. Deixá-la confinada em nacionalismos fechados, irredutíveis e hostis é, inevitavelmente, favorecer e apressar as graves crises de depressão geral que os filósofos - o americano Gettel e especialmente o russo Berdiaeff no seu livro A Nova Idade Média - interpretam como expressões de involução e de regresso da Humanidade u barbárie e ao caos. Não se pede, evidentemente, as massas que colaborem, mas que colaborem as elites, minoria condutora das nações. Mais do que os tratados que regulam os interesses políticos e económicos - fórmulas jurídicas de equilíbrio, cristalizações instáveis-, os acordos intelectuais (e, designadamente, os acordos culturais, de mais vasta projecção) destinam-se a trabalhar profundamente a alma dos povos livres. São instrumentos de informação, de compreensão, de benevolência, de convívio-e, portanto, instrumentos de paz. Com fundadas razões a U. N. E. S. C. O. observa, nas palavras em que definiu o seu objectivo essencial: «Tratemos dos espíritos, porque é no espírito dos homens que as guerras começam». Compreende-se que certas potências procurem, por meio de acordos intelectuais, bilaterais ou multipartidos, cimentar a obra da segurança colectiva. Precisarão, porém, de o fazer duas nações como Portugal e a Grã-Bretanha, que desde 1386 permanecem inalteràvelmente fiéis ao primeiro tratado de amizade e auxílio que assinaram e que, unidas perante as dramáticas vicissitudes de seis séculos de história, com justificado orgulho se proclamam os mais antigos aliados do Mundo? Cremos que sim. E vamos ver porquê.

3. Aos observadores políticos sempre parecem dificilmente explicável que dois povos, ligados por uma aliança ininterrupta de 570 anos, convivam tão pouco
e se interessam tão limitadamente uni pelo outro. Não obstante, os eruditos e os estudiosos têm-se referido às relações existentes, ,no decorrer do tempo, entre homens cultos dos dois países e às obras literárias e científicas de mútuo interesse .por eles publicadas. Veremos adiante o mérito dessas referências. Como quer que seja, porém, temos ide reconhecer - e ninguém o contesta - que, devido a razões de ordem étnica, psicológica, religiosa e linguística, de sua natureza irremovíveis, e a erros de educação que chegaram até nós (negligência no ensino das duas línguas), a capacidade de compreensão e de comunicação entre ambos os povos não é, infelizmente, aquela que poderia esperar-se de uma tão longa e gloriosa amizade. A aliança inglesa, como abreviadamente lhe chamamos, constitui facto singular - pode afirmar-se único - na história política e diplomática das nações. Como tal tem sido largamente discutida nos países interessados e fora deles. Discutida pelos historiadores; discutida pelos homens de Estado; discutida pelos economistas (quanta tinta se gastou a comentar o tratado de Methwen de 170$, mais vantajoso para nós do que pretendeu fazer-nos acreditar a política francesa!); discutida pelos mestres do direito internacional, alguns dos quais, cá e lá, consideram inactual e demasiado fluida a armadura jurídica da aliança. Debilidade dos textos; pouco conhecimento mútuo dos povos. E, entretanto, nunca em qualquer tempo a aliança foi invocada por uma das partes, que a outra não acudisse, sem sombra de hesitações, ao seu apelo. Porquê P Porque a aliança luso-britânica não está apenas na letra dos tratados; está no instinto profundo das nações. É uma tradição que mergulha as suas raízes em seis séculos de história. Não será indispensável, como já se pretendeu, actualizar a sua expressão jurídica. E, porém, necessário fortalecer a aliança como sentimento; tornar mais viva a consciência desse e dogma histórico» (como lhe chamou o marquês de Soveral) na alma colectiva dos dois povos. O Prof. Hui-zinga, reitor da Universidade de Leiden, presidente da Academia Neerlandesa, consagrou uma verdade quando afirmou Já vinte anos em Genebra: «Há velhas nações amigas que mão têm pressa de se conhecer». Esta observação subtil ajusta-se como uma luva ao caso da Grã-Bretanha e de Portugal. O fortalecimento moral da aliança exige entre os dois povos um convívio mais íntimo, lima comunicação mais fácil, uma riqueza maior de informações recíprocas, um contacto mais frequente e mais directo, uma mais perfeita comunhão das juventudes -universitárias e escolares. Noutro tempo, o pouco que conhecíamos um do outro nos bastava. Encontrávamo-nos de século a século nos campos de batalha; combatíamos lado a lado; quando passava o perigo apertávamos fraternalmente as mãos e despedíamo-nos até à próxima guerra, deixando aos netos - quando Deus quisesse- o encargo de recomeçar ia epopeia interrompida dos avós. Agora, os tempos mudaram. As condições do Mundo são diferentes. É em volta do gigantesco bloco anglo-saxão que se organiza, pela força do Pacto do Atlântico Norte, a defesa do Ocidente. A guerra tem de pensar-se em inglês. Não basta, como nos prélios medievais, vestir as armas mo momento próprio. É preciso forjá-los em comum, trabalhar em comum longos anos, asperamente, incansavelmente-não já para vencer uma guerra, mas para unia empresa mais difícil ainda: para a evitar. A colaboração das espadas não é suficiente; temos de assegurar a colaboração dos espíritos. A Convenção Cultural entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, agora submetida ao nosso exame, é necessária e vem na hora própria.

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4. Como acima se disse, houve no decurso do tempo homens cultos - portugueses na Inglaterra, ingleses em Portugal - que, mercê das oportunidades oferecidas pelas actividades comerciais, pelas perseguições religiosas (movimento irradiante dos judeus portugueses para os países nórdicos nos séculos XVI e XVII), pelas expedições militares, pelas emigrações políticas, puderam estabelecer contactos directos, mais ou menos longos, com os acontecimentos, as instituições e os homens do país aliado, adquirindo experiência que lhes permitiu publicar, não Apenas livros de viagens, mas obras científicas e literárias de relevante interesse para ambos os povos. Houve também letrados e sábios, em qualquer das nações, que exerceram a função docente nas universidades da outra (desde Buchanan, aliás escocês, até Prestage), ou pertenceram a claustros académicos do país irmão, como a Sociedade Real de Londres e a Academia das Ciências de Lisboa. A isso se referem, em trabalhos ricos de informação, Henry Thomas (English translations of portuguese books); Saavedra Machado (O pensamento inglês em Portugal na Idade Media); Fran Paxeco (The intelectual relations betrocen Portugal and Great Britain); Felix Walter (La Litterature portugaise en Angleterre à l'époque romantique); Chapman e Shillington (The commercial relations of England and Portugal); Prof. Amorim Ferreira (Relações científicas entre Portugal e a Grã-Bretanha); e muitos outros. Estes factos, porém, não alteram de maneira sensível a posição do problema. Não se tratou, propriamente, pelo menos até certa data de relações culturais regulares entre Portugal e a Grã-Bretanha, mas - o que é diferente - de casos isolados, mais ou menos frequentes e mais ou menos brilhantes, que se produziam, não como expressão do entendimento das duas nações, mas perante a sua quase total indiferença. Actividades individuais de homens cultos, e não uma intercultura organizada. Essa, só depois veio, estabelecendo-se lentamente a partir de 1929-1930 - época heróica da nossa política intelectual de cooperação -, em que fundámos a Junta da Educação Nacional (a que sucedeu o Instituto para a Alta Cultura) e em que os primeiros bolseiros modernos portugueses, com o seu Baedecker e as suas ilusões, partiram a caminho das Universidades estrangeiras. Foi então especialmente considerada a colaboração com a Grã-Bretanha. Aí criámos cátedras e leitorados de língua e literatura portuguesa, em Londres (King's College), em Oxford, em Liverpul; depois em Glasgow, em Cardite, em Manchéster; por fim em Leeds. Em 1933, em plena lua-de-mel dos acordos intelectuais - «les mots dorés», como lhe chamava o Embaixador conde de Saint-Aulaire -, um inglês insigne, Gilbert Murray, professor de Filologia Grega na Universidade de Oxford, assume em Genebra a presidência do mais alto organismo intelectual da Sociedade das Nações. Em 1934 a Grã-Bretanha cria o British Council - central imperial da política de cultura inglesa. Em 1938 inaugura-se em Lisboa o Instituto Britânico, para cuja fundação contribuiu a sugestão oportuna de um português, o Prof. Moses Amzalak, junto de Lord Tyrrell. Tinham começado pouco antes a funcionar o Instituto Inglês da Universidade de Coimbra, a Sala Inglesa da Universidade do Porto, o Gabinete Britânico de Documentação Económica e Financeira da Universidade Técnica de Lisboa. Então, sim, podia já afirmar-se a existência de relações culturais, não apenas entre indivíduos, mas entre Estados; não apenas entre alguns ingleses e portugueses ilustres, mas entre Portugal e a Grã-Bretanha. Faltava, porém, a autoridade de um estatuto, de um instrumento diplomático que a um tempo definisse o sistema de cooperação, estabelecesse n s suas bases jurídicas e políticas, assegurasse os meios, os métodos e os limites da obra de organização e de coordenação internacional que se impunha. Para isso os dois Governos negociaram e assinaram a presente Convenção, remelida para preparação de ratificação à Assembleia Nacional e agora submetida ao estudo da Câmara Corporativa. Corresponde, de facto, este instrumento diplomático ao alto pensamento que anima os dois Governos?

5. O projecto de Convenção Cultural entre Portugal e a Grã-Bretanha, de iniciativa, como se disse, do Governo de Sua Majestade Britânica, foi enviado à nossa Secretaria de Estado no dia 26 de Novembro de 1948, acompanhando ofício do embaixador cessante, Sir Nigel Ronald. A grande nação acabava de celebrar acordos intelectuais semelhantes com a França e o Brasil e propunha-se concluir connosco uma convenção do mesmo tipo. Era um diploma de linhas clássicas, com um breve preâmbulo em que se definiam os objectivos das Alças Partes Contratantes («promover, mediante intercâmbio e cooperação amigáveis, o mais perfeito conhecimento e compreensão recíprocos das respectivas actividades intelectuais, artísticas o científicas, bem como dos seus modos de viver»), e um corpo de dezanove artigos, nos últimos dos quais se continham as disposições escatocolares habituais (ratificação, troca dos instrumentos, prazos). Remetido o projecto à Secretaria de Estado da Educação Nacional, foram pelo Instituto de Alta Cultura, com exemplar clarividência e zelo, suscitadas algumas dúvidas: Não pareceu, em primeiro lugar, aceitável o princípio do acordo-standard, quer dizer, a adopção de uni tipo de acordo uniforme para países diferentes, cada um dos quais possui, naturalmente, o seu condicionalismo próprio, o seu volume de interesses, o seu conceito de cultura, as suas reacções psicológicas, o seu índice de civilização. «Estes acordos - observou o Instituto - não podem ser planeados numa dimensão única nem estruturados segundo o mesmo padrão». Semelhante observação - convém esclarecer-referia-se especialmente ao conteúdo, não à forma, porquanto é sabido que a evolução formal, exterior ou diplomática destes instrumentos se tem feito, a partir de 1935), quanto possível no sentido da unidade. Pareceu ao Instituto, também, que o projecto confundia a «noção humanista do cultura, única de que aquele organismo se considera tributário», com o «conjunto das actividades e manifestações da vicia dos povos modernos», incluindo nos objectivos definidos no preâmbulo o mais perfeito conhecimento das «maneiras de viver» («ways of life) das duas nações, e considerando no artigo m o intercâmbio do «academic personnel» (professores, estudantes, investigadores científicos) extensivo n outras profissões e ocupações (other professions and occupations). A confusão do «cultural» com o «social» e com o «económico» repugna a esta espécie de acordos, de âmbito restrito aos interesses intelectuais. O alto organismo consultado chamou ainda a atenção do Governo para dois pontos a que atribuiu especial importância: não considerava necessária a nomeação de uma Comissão Mista (Mixed Commiter) para a execução do Acordo, porque essa função, por definição legal, pertencia no nosso país ao Instituto de Alta Cultura; reputava inconveniente a aplicação imediata da Convenção aos territórios ultramarinos das duas Potências contratantes, dispersos pelas cinco partes do Mundo (§ 2." e alíneas do artigo XVI do projecto inglês), porquanto, dado o desnível das civilizações e das culturas, não em por enquanto possível negociar acordos intelectuais de tão vasta extensão geopolítica. O Instituto fez acompanhar o seu relatório de um contraprojecto da Convenção remetido ao Governo em 17 de Janeiro de 1949.

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As negociações das chancelarias protelaram-se, e só em Março de 1951 a Embaixada britânica enviou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, e este ao Instituto, o contraprojecto inglês, que suscitou ainda dúvidas. Novas conversações; terceiro contraprojecto, recebido em 31 de Novembro de 1953. O Instituto procurou, uma vez mais, esclarecer determinados pontos; não julgou oportuno insistir noutros; e o texto da Convenção, considerado definitivo depois das últimas revisões das duas Secretarias de Estado, foi assinado em Lisboa pelos plenipotenciários no dia 19 de Novembro de 1954. Não pode esta Câmara deixar de reconhecer o meticuloso cuidado, o acendrado patriotismo, o perfeito espírito de conciliação com que, por parte da Administração portuguesa, foram conduzidas as negociações. A Administração britânica não se mostrou também, nem menos primorosa, nem menos conciliadora.

6. O texto definitivo da Convenção é constituído por dezoito artigos - menos um, portanto, do que no projecto inicial britânico. Alterou-se a redacção do preâmbulo. A expressão «ways o f life» encontrou nova equivalência, «costumes e vida social», que continua a dar a impressão, aliás não confirmada no texto, de que os limites do acordo intelectual se ultrapassaram. O membro de frase «actividades intelectuais, artísticas e científicas», também contido no preâmbulo, presta-se a confusões. As actividades artísticas e científicas não serão intelectuais? As actividades intelectuais excluem, porventura, a arte e a ciência? E as actividades literárias? Se estão incluídas nas intelectuais, porque o não estão também as outras? Evidentemente, um instrumento diplomático apresentado a uma assembleia legislativa para ratificação não é susceptível de emendas. Aprova-se ou não se aprova, mas não se altera. A Câmara julga, porém, dever chamar a atenção para este e outros pequenos lapsos, não - inútil acentuá-lo - para que eles sejam corrigidos pela Assembleia Nacional, mas para que possam, como convém, esclarecer-se na respectiva regulamentação, a cargo da Comissão Mista (artigo XII). Vejamos, rapidamente, o articulado. O artigo I diz respeito à criação de cátedras e leitorados nas Universidades e escolas superiores. O artigo II, à fundação de institutos. Declara-se neste artigo que o termo «instituto» abrange escolas, bibliotecas, colecções de fitas cinematográficas, e te. É óbvio que uma colecção de filmes ou de discos não é um instituto. A expressão «film library» figura no texto inglês com a significação, não de colecção de fitas de cinema, mas de estabelecimento ou serviço em que se encontram instaladas, organizadas, catalogadas, conservadas por técnicos e afectas ao uso público colecções de filmes de interesse geralmente documental ou didáctico (por exemplo, as filmotecas das Universidades inglesas e americanas, ou as filmotecas livres organizadas pelo antigo Instituto Internacional do Cinema Educativo, de Roma). A palavra «filmoteca», aliás irregular, etimològicamente híbrida, é hoje corrente, por analogia com «discoteca», que os dicionários portugueses registam já. Os artigos III e IV referem-se ao intercâmbio de professores, estudantes, investigadores científicos, e à concessão de subsídios e bolsas de estudo. O artigo V deixa a cada uma das Partes Contratantes a liberdade de determinar até que ponto, no seu território, poderá SM concedida a equiparação de títulos, graus ou exames académicos obtidos ou feitos no território da outra, «inclusivamente quanto aos relacionados com o exercício da actividade profissional». Este aspecto - exercício de profissões liberais por diplomados de Universidades estrangeiras - é delicado e tem-se considerado prudente excluí-lo dos acordos intelectuais, propriamente ditos.
Pela maneira por que está redigido, porém, o artigo V não envolve qualquer compromisso, abrindo, quando muito, as portas a futuras negociações. Os artigos VI e VII ocupam-se dos cursos de férias e dos convites, subsidiados ou não, para visitas recíprocas de grupos de «cientistas, artistas e figuras representativas de nutras profissões e actividades». Nos artigos viu e IX as Partes Contratantes obrigam-se a prestar assistência mútua às iniciativas tendentes a melhorar em cada uma delas o conhecimento da cultura da outra (propaganda do livro, concertos, conferências, exposições de arte, espectáculos teatrais, rádio, cinema, fonogramas), autorizando, com as reservas estabelecidas no artigo XVI, a entrada dos funcionários e técnicos encarregados da execução dessas operações. Nos artigos X a XIV é mantida a Comissão Mista a que se referia o projecto inicial britânico e que o contraprojecto português suprimira, regulando-se a sua constituição e funcionamento. Encontrou-se uma fórmula elegante de conciliação, a que nada há que opor: os três membros britânicos são nomeados pulo British Council e os três membros portugueses pelo Instituto de Alta Cultura; às reuniões, alternadamente realizadas em Lisboa e em Londres, presidirão membros daqueles dois organismos; o Instituto e o British Council consideram-se, para todos os efeitos, os responsáveis precípuos da execução da Convenção. Em satisfação ainda do ponto de vista português, o artigo XV esclarece que a expressão «território» usada neste instrumento designa, para uma das partes, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e, para a outra, Portugal continental e ilhas adjacentes. O artigo XVI estabelece reservas quanto à entrada, permanência o saída dos funcionários e técnicos cuja intervenção é prevista no artigo IX. Finalmente, os dois artigos últimos (XVII e XVIII) ocupam-se da ratificação, da troca dos respectivos instrumentos, que se efectuará em Londres, e do prazo de vigência (mínimo de cinco anos), declarado prorrogado se, decorrido ele, nenhuma das Partes Contratantes houver denunciado a Convenção.

7. Eis, nas suas linhas mestras, o diploma. Esta rápida sinopse dá-nos a medida do rigoroso ajustamento dos meios e idos métodos nele preconizados ao alto pensamento dos dois Governos no sentido de fortalecer e enriquecer a aliança, tornando mais perfeita a compreensão entre os dois povos, mais fácil a sua comunicação intelectual,- mais eficaz e mais proveitosa a sua colaboração futura. Nada neste diploma existe que constitua novidade no domínio da política internacional da cultura; nada, porém, lhe falta paru que o possamos considerar um documento notável. Tudo o que é possível prever está nele previsto, mormente mo que respeita à cooperação interuniversitária para a intensificação do ensino dos línguas, sua propaganda e difusão. Portugal e a Grã-Bretanha, pertencentes a famílias linguísticas diferentes, encantoaram na inacessibilidade dos idiomas
- dos seus belos idiomas imperiais do século XVI - um obstáculo grave ao entendimento recíproco e ao labor comum. A presente Convenção tem sobretudo em vista remover esse obstáculo. A política internacional da cultura - disse o Prof. Meillet (Langues dans l'Europe Nouvelle)- é hoje fundamentalmente a política das línguas. Quando a língua de duas nações é a mesma, a acção política dos chancelarias tem de exercer-se no sentido de regular o seu condomínio e de assegurar internacionalmente a sua unidade (caso de Portugal e do Brasil); quando é diferente, o problema torna-se particularmente delicado sempre que se trata de evitar que a incompreensão linguística prejudique ou dificulte o estreitamento das relações internacionais e a cooperação útil dos povos {caso de Portugal e da Grã-Bretanha).

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Com o Brasil concluímos, além do Acordo Intelectual de 6 de Dezembro de 1948, a Convenção, de 29 de Dezembro de 1943, para a unidade, expansão e prestígio da língua portuguesa, instrumento sui generis, único na história do direito internacional público, que s lei no nosso país e que o Estado brasileiro ainda não ratificou. Com a Grã-Bretanha, acabamos de celebrar agora esta Convenção, destinada a assegurar o melhor conhecimento e compreensão das duas Pátrias, das duas culturas e das duas línguas. A língua inglesa comandará amanhã metade da Humanidade. A língua portuguesa - esperamo-lo bem - continuará a derramar no Mundo o clarão imortal da alma latina.

8. Esta Câmara, reconhecendo, pelo que ficou exposto, que a Convenção, de 19 de Novembro de 1954, entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte serve os altos interesses nacionais, nada tem a opor à sua aprovação para ratificação pelo Chefe do Estado, nos termos da Constituição Política da República Portuguesa.

Palácio de S. Bento, 7 de Fevereiro de 1955.

Amândio Joaquim Tarares.
José Caeiro da Malta.
Adriano Gonçalves da Cunha.
Reinaldo dos Santos.
Mário Luís de Sampaio Ribeiro.
Samuel Dinis.
Celestino Marques Pereira.
Carlos Afonso de Azevedo Cruz de Chaby.
Quirino dos Santos Mealha.
José da Silva Murteira Corado.
Augusto de Castro.
Manuel António Fernandes.
Júlio Dantas, relator.

PARECER N.º 15/VI

Acordo relativo à fronteira de Moçambique com a Niassalândia

A Câmara Corporativa, consultada nos termos do artigo 108.º da Constituição acerca do Acordo relativo à fronteira de Moçambique com a Niassalândia, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e economia ultramarinas e Relações internacionais), sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

1. Tem sido intensa e fecunda nestes últimos anos a actividade de Portugal no campo das relações internacionais: umas vezes no cumprimento dos seus deveres de colaboração com as outras nações, para promover a satisfação dos interesses comuns dos povos é o bem geral da humanidade; outras vezes no desempenho de obrigações espontaneamente assumidas perante os outros estados do Ocidente, para cooperar na organização da paz e na defesa da civilização ocidental; finalmente, no exercício dos seus direitos soberanos, para assegurar a protecção dos seus interesses mais directos e imediatos, quer defendendo-os dos ataques e espoliações de inimigos, quer concertando com as nações amigas a garantia da sua segurança e pacífico desenvolvimento.
A Câmara está em presença de um dos mais recentes resultados, e não dos menos importantes, da afanosa e proficiente actividade diplomática que o Governo vem desenvolvendo, com o fim, felizmente alcançado, de levar o País a ocupar no seio da comunidade internacional o lugar de prestígio que de direito lhe pertence e de fomentar relações de amizade e frutuosa colaboração com as nações a que mais estreitamente nos prendem os laços da história e a comunidade dos interesses morais e materiais.

2. «O presente instrumento diplomático, ao consignar um entendimento entre estados soberanos, amigos e aliados, na resolução de problemas e na satisfação de interesses comuns, situa-se no termo de um processo histórico cujo encerramento é grato registar na dupla medida em que atinge os fins materiais em vista e simultaneamente corrige situações anteriores menos satisfatórias, que agora são reconduzidas à sua justa posição». Estas palavras do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, com que o Governo fez acompanhar a remessa à Câmara do texto do acordo sob apreciação, definem a significação maior do diploma: entendimento entre estados amigos e aliados que, fiéis a uma política multissecular de recíproca benevolência e colaboração, reafirmam a sua capacidade de resolverem por meio de negociações pacíficas os seus problemas e encontram as fórmulas de conciliação adequadas à satisfação e harmonia dos interesses de ambas as Partes.
É considerável o valor material do acordo, e desse aspecto nos ocuparemos mais adiante; mas é ainda maior o seu valor moral, pelo que significa de compreensão e mútua transigência, no meio dos egoísmos, suspeições e animosidades que campeiam no mundo das relações internacionais nos nossos dias.

3. O acordo «situa-se no termo de um processo histórico cujo encerramento é grato registar».
Vão há muito passados os últimos ecos da tempestade de emoções provocada no País pelo memorando que o Ministro da Inglaterra em Lisboa entregou ao Governo Português em 11 de Janeiro de 1890. Retomou-se logo após, com a assinatura do tratado de 1891, a linha tradicional das cordiais relações de amizade entre as duas nações, e n velha aliança foi uma vez mais selada nos campos de batalha da primeira grande guerra pelo sangue dos filhos de ambas as pátrias derramado na defesa de ideais comuns. Na segunda guerra mundial, em que Portugal não interveio como beligerante, porque a aliança não precisou de ser invocada, nem por isso deixámos de prestar à nação amiga facilidades e auxílios que bastante contribuíram para apressar a vitória. Os dois povos estão hoje, como sempre estiveram no passado, fortemente unidos do mesmo lado da barreira, em frente dos mesmos perigos e das mesmas ameaças. Ainda muito recentemente, ante a traiçoeira agressão dos nossos direitos na índia, a

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exemplar fidelidade de ambos os países à constante histórica das suas amigáveis relações teve ocasião de manifestar-se no apoio moral que o Governo do Reino Unido se não furtou a demonstrar-nos. E há apenas alguns dias, esta mesma Guinara foi chamada a dar parecer sobre uma convenção cultural luso-britânica destinada a fomentar o melhor conhecimento recíproco dos dois povos e a fortalecer, pelo intercâmbio espiritual, os laços que os unem no domínio político.
Mas subsistia ainda, numa passagem infeliz do tratado de 1891, a lembrança de «situações antigas pouco gratas ao nosso espírito» a que se referia o Sr. Ministro do Ultramar no discurso de abertura das negociações que conduziram ao acordo agora em apreciação. Com a revisão dessa parte do tratado, relativa à fronteira de Moçambique no lago Niassa, e sem prejuízo do que adiante se observa a respeito da fronteira no lago Chirua, é de considerar realmente encerrado o processo de forma honrosa para ambas as partes, e o facto merece ser saudado com júbilo por Portugueses e Ingleses, porque contribui para o ainda maior fortalecimento da sua velha amizade.

4. O Tratado de 11 de Junho de 1891, pondo termo ao litígio que se suscitara entre Portugal e a Inglaterra a respeito dos limites das respectivas esferas de influência na África Oriental, fixou definitivamente as fronteiras de Moçambique e estabeleceu um certo número de disposições destinadas a permitir a livre utilização das vias navegáveis da província e o trânsito através dela para os territórios britânicos das Rodésias e da Niassalândia.
De um modo geral, essas disposições eram a aplicação dos princípios formulados no Acto Geral da Conferência de Berlim, de 36 de Fevereiro de 1885, e revistos mais tarde na Convenção de Saint Germain-en-Laye, de 10 de Setembro de 1919, ambos instrumentos de que Portugal foi parte contratante.
Em resumo, o tratado estipulava, além das delimitações territoriais contidos nos artigos I a VII: a proibição de qualquer das potências intervir na esfera de influência da outra, adquirindo aí concessões ou aceitando protectorados ou direitos de soberania (artigo, VIII); o respeito por cada uma das potências das concessões particulares, validamente adquiridas, na esfera de influência da outra, atribuindo-se a um tribunal arbitrai a resolução das questões a esse respeito suscitadas (artigo IX); a liberdade de cultos e a protecção dos missionários de ambas as nações nos seus territórios da África Oriental e Central (artigo X); a liberdade do trânsito de mercadorias entre a costa e a esfera de influência britânica através do território português e a limitação dos direitos por esse facto cobrados; o direito de ambas as partes construírem estradas, caminhos de ferro, pontes e linhas telegráficas nos distritos marginais de ambos os lados do Zambeze e do Chire,«tanto quanto for razoavelmente necessário para o estabelecimento das comunicações entre territórios que estão sob a sua influência» (artigo XI); a liberdade para os navios de todas as nacionalidades da navegação no Zambeze e no Chire e em todas as suas ramificações e embocaduras (artigo XII); a não discriminação entre os súbditos e navios de ambas as potências para efeito da navegação no Zambeze e seus afluentes e a proibição da cobrança de direitos de trânsito pelo facto dessa navegação (artigo XIII); a obrigação para Portugal de construir um caminho de ferro entre a esfera de influência britânica e a baía do Fungue e os necessários ancoradouros nessa, baía (artigo XIV); o compromisso mútuo de ambas as potências facilitarem as comunicações telegráficas através dos respectivos territórios e a obrigação particular de Portugal construir uma linha telegráfica entre a costa e a esfera de influência britânica (artigo XV).
Em complemento do tratado, e na mesma data da sua assinatura, celebraram-se acordos por trocas de notas em que foi estabelecido:

a) O arrendamento a pessoas designadas pelo Governo Britânico de terrenos na embocadura do Chinde, destinados a desembarque, armazenagem e transbordo de mercadorias, e, reciprocamente, o arrendamento a pessoas designadas pelo Governo Português de terrenos na margem sudoeste do lago Niassa, para idênticos fins;
b) O compromisso da parte de Portugal de que as tarifas do caminho de ferro a construir nos termos do tratado não seriam «muito maiores do que as tarifas proporcionais por milha cobradas pelos outros caminhos de ferro da África do Sul»;
c) A proibição da importação de bebidas alcoólicas nos duas margens do Zambeze e do Chire e por estes rios em ambas as esferas de influência.

5. Enquanto se não procedia à demarcação no terreno das fronteiras acordadas, estabeleceu-se, por troca de notas de 31 de Maio e 5 de Junho de 1893, um modus vivendi sobre as linhas provisórias de limitação dos territórios em causa. Mas começaram logo a seguir os trabalhos de campo dos comissários dos dois países, e as fronteiras definitivas foram sendo fixadas por sucessivos acordos.
Por troca de notas de 15 de Setembro de 1906 aprovou-se a demarcação do primeiro troço - justamente aquele cujo traçado é agora revisto pelos artigos II e III do acordo em apreciação nesta Câmara. Os comissários portugueses nessa demarcação tinham sido os então primeiros-tenentes da Armada Gago Coutinho e Ivens Ferraz.
Na delimitação da região de Manica surgiram divergências, que os dois Governos resolveram submeter à arbitragem do Ministro italiano Paulo Vigliani. Decidida a questão por sentença arbitral de 30 de Janeiro de 1897, acordou-se a demarcação da fronteira compreendida entre o paralelo 18º 30' sul e o rio Limpopo (troca de notas de 3 de Junho de 1907).
Sucessivamente, foram aprovadas as seguintes demarcações: das fronteiras ao norte e ao sul do Zambeze, em 20 de Novembro de 1911; ao longo dos rios Ruo e Chire, em 30 de Novembro de 1911; desde o rio Mazoe até ao paralelo 18º 30', em 9 de Agosto de 1912; desde o Ruo até ao lago Niassa (a outra secção alterada pelo presente acordo), em 6 de Maio de 1920; da fronteira com a Suazilândia, em 6 de Outubro de 1927; da fronteira com o território de Tanganhica, em 11 de Maio de 1936; da fronteira com a Rodésia do Sul entre o Limpopo e o Save (revisão), em 24 de Outubro de 1940.
A concessão britânica no Chinde e a portuguesa em Chipoli, no lago Niassa, foram canceladas por acordo de 19 de Maio de 1920, visto que a construção dos caminhos de ferro do Niassa e da Trans-Zambézia as tornava desnecessárias.

6. Pelo artigo XIV do tratado de 1891, Portugal assumia o compromisso de construir um cominho de ferro entre a baía do Fungue e a esfera britânica.
É essa a origem do caminho de ferro da Beira a Umtali, grande via de penetração da África Central e factor importantíssimo do desenvolvimento económico de ambas as Rodésias.

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Na verdade, a ideia da .construção dessa linha férrea é (interior ao tratado, visto que os respectivos estudos tinham já sido ordenados .pela (Companhia de Moçambique, fundada em 1888 por Paiva de Andrada. Ê foi com base neles que o Governo conferiu u Companhia n encargo da construção, para cumprimento do compromisso contido no tratado.
A Companhia de Moçambique outorgou, por sua vez, a concessão da construção e exploração do caminho do ferro a Henry Van Laun e este transmitiu-a, nos termos do contrato, à Beira Railway Company, para o efeito fundada mm capital daquela Companhia e da British South África Chartered Company, detendo esta a maioria das acções.
Depois de muitas vicissitudes, em que intervém na construção e exploração da linha diversas sociedades, mas sempre sob o predomínio da Charterel, a situação estabilizou-se em 1929 com a Beira Railway, proprietária do caminho de ferro, e a Rhodesia Ralways, sua exploradora.
Uma nota do Ministério do Ultramar publicada em 33 de Julho de 1948, ao mesmo tempo que anunciava o resgate do porto da Beira, dava notícia de estarem em curso negociações para a compra do caminho de ferro. Estas vieram a terminar no contrato de 2 de Abril de 1949, pelo qual o Governo da Nação adquiriu à Beira Railway, pela importância de 4 milhões de libras, n propriedade do caminho de ferro da Beira.

7. A construção do porto da Beira tem também a sua origem remota na disposição do artigo XVI do tratado de 1891, onde se estipulava que o Governo Português construiria ou contrataria aã construção na baía do Pungue dos necessários desembarcadouros».
(Mas foi só em 14 de Março de 19.30 que tomou forma definitiva o contrato celebrado dois anos untes entre a Companhia de Moçambique s a sociedade inglesa Port of Beira Development Ltd., nos termos do qual esta última se comprometia a constituir uma sociedade portuguesa denominada Companhia do Porto da Beira, tendo por objecto a construção do porto comercial da Beira e das obras complementares necessárias. A companhia portuguesa ficava porém com a faculdade, nos termos do contrato, de traspassar os seus «direitos, deveres e garantias ... a um ou mais empreiteiros, quer para a construção do porto comercial, quer para a, sua exploração» . Esse traspasse de direitos, deveres e garantias não tardou a efectuar-se a favor de uma sociedade estrangeira, a Beira Works Ltd., a quem a Companhia do Porto da Beira, sem o consentimento do Governo Português, transmitiu a concessão por contrato de 31 de Julho de 1926. E, para consumar a situação, logo em 38 do mesmo mês a Companhia de Moçambique, a Companhia do Porto da Beira e a Beira Works Ltd. contrataram entregar ao Rhodesia Railways Trust todo o trabalho da exploração do porto.
Estava assim na mão de companhias estrangeiras tanto a propriedade como a' exploração do porto da Beira quando o 'Governo deu ao País, pela já referida nota de 28 de Julho de 1948, a grata notícia do resgate da concessão, o qual veio a efectivar-se em l de Janeira de 1948, mediante o pagamento à concessionária da indemnização acordada de 210 000 contos.

8. Não parecem despropositadas, ao apreciar-se o Acordo Luso-Britânico de 18 de Novembro de 1954, estas referências ao caminho de ferra e porto da Beira. Se com o acordo .só põe termo ao processo de revisão de situações inconvenientes constituídas à sombra do tratado de 1891, as operações de resgate das concessões estrangeiras que dele directa ou indirectamente resultaram são actos da maior relevância nesse processo.
Assim o entendeu a Nação Lutei rã, ao demonstrar, com patrióticas manifestações
de júbilo, o seu reconhecimento e aplauso ao Governo pelas decisões a esse respeito tomadas.
A integração do caminho de ferro e do porto da Beira no património nacional não valeu apenas como acto de política interna, destinado a submeter ao poder e fiscalização do Estado bens e serviços que respeitam muito de perto ao exercício da soberania. (A administração e exploração dos portos do ultramar são reservadas para o Estado, nos termos do artigo 163.º da Constituição Política da República). O resgate do porto e caminho de ferro foi também um acto relevante de política internacional, praticado não em detrimento, mas em benefício dos interesses dos territórios vizinhos da província de Moçambique, e pôs, portanto, nas mãos do Governo Português um instrumento valioso de colaboração e negociação com os governos a quem cumpre velar pela prosperidade desses territórios.
Primeiro acto de colaboração internacional emergente da nova situação foi a Convenção entre o Governo da República Portuguesa e o Governo do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, em seu nome e no do Governo da Rodésia do Sul, relativa ao porto da Beira e aos caminhos de ferro que o servem, assinada em Lisboa em 17 de Junho de 1950. Reconhece-se nesta Convenção o «interesse vital» que representa para os territórios das Rodésias e da Niassalândia manutenção de facilidades no porto e caminho de ferro da Beira e estipula-se em consequência: o compromisso do Governo do Reino Unido de garantir a utilização, pelo tráfego daqueles territórios, da capacidade máxima e transporte e manuseamento de carga do caminho de ferro e do porto e impedir qualquer discriminação de tarifas ou outras práticas que possam desviar o tráfego do seu escoamento natural pela via da Beira; e o compromisso recíproco do Governo Português de fazer no porto e no caminho de ferro as obras de amplicação e melhoramento e as aquisições de equipamento convenientes para assegurar a maior eficiência dos serviços e manter a capacidade de tráfego em nível adequado às necessidades dos territórios abrangidos na Convenção.
De que maneira têm sido cumpridos os objectivos da Convenção, graças aos financiamentos do Governo da metrópole o ao trabalho da Administração dos Porte, Caminhos de Ferro e Transportes de Moçambique, dizem-no, melhor do que quaisquer palavras, os números seguintes:

A) Porto da Beira:

1) Movimento de mercadorias (carga, descarga e baldeação, em toneladas):

No ano de 1948 ........... l 312 676
No ano de 1954 ........... 2 906 918

2) Receitas totais da exploração (contos):

No ano de 1948 ........... 100 730
No ano de 1954 ........... 171 810

B) Caminhos de Ferro da Beira:

1) Mercadorias transportadas (toneladas):

No ano de 1948 ........... 1 523 615
No ano de 1954 ........... 2 730 000

2) Receitas totais da exploração (contos):

No ano de 1948 ........... 156 567
No ano de 1954 ........... 30O 000

As importâncias indicadas como receitas da exploração do porto no ano de 1948 são obtidas por conversão da libra no câmbio de 110$. Os dados referentes ao tráfego

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e receitas do caminho de ferro nu anu de 1954 São obtidos por aproximação, a partir dos resultados dos meses de Janeiro a Outubro, últimos apurados.
Os valores investidos no estabelecimento de 1949 a 1952 sobem a 219 603 contos no porto e a 411 275 contos no caminho do ferro.

9. O tratado de 1891 traçara a fronteira de Moçambique com o lago Niassa pela linha da sua margem oriental, isto é, som deixar a Portugal qualquer porção das águas do lago. O mesmo critério se seguiu na demarcação das fronteiras nos lagos Chiuta o Chirua. A situação era vexatória por contrária a prática, geralmente aceito, da d i visão das águas interiores entre os estados ribeirinhos.
As conversas havidas em Lisboa em Julho de 1951, entre o embaixador da Grã-Bretanha, e n governador da Niassalândia, de um lado, e uma delegação portuguesa presidida pelo Subsecretário de Estudo do Ultramar, do outro lado, permitiram encarar a possibilidade da participação de Portugal em importantes projectos destinados à regularização das águas do Niassa e do Chire e ao seu aproveitamento para, produção de energia eléctrica.
Condição prévia seria, porém, na opinião da delegação portuguesa, a transposição da fronteira de Moçambique da linha da costa para a linha média das águas do lago. A condição foi, em princípio, aceita por troca de notas do 17 de Janeiro do 1953, e veio a ser regulada definitivamente pelo acordo que estamos analisando.
Partindo da base da divisão das águas do lago, o acordo de 17 de Janeiro estipulou a comparticipação de Portugal, na proporção de um terço, nos encargos dos estudos preliminares necessários u elaboração dos projectos e u execução das importantes obras hidráulicas previstas. Para esse efeito foi inscrita no Plano de Fomento a verba de 10 000 contos, a despender em 1953 e 1954.
Se o resultado dos estudos encorajar o prosseguimento do plano, será então constituída uma empresa mista luso--britânica com o encargo de construir a represa para estabilização das águas do lago e regularização do caudal do rio Chire, assim como as barragens e centrais hidroeléctricas destinadas ao aproveitamento desse caudal em vários escalões.
As obras de hidráulica agrícola destinadas a beneficiação das terras do baixo Chire serão de conta de cada uma das partes nos respectivos territórios, de harmonia com as suas necessidades e conveniências.

10. São muito importantes as possibilidades que se abrem à colaboração luso-britânica no aproveitamento conjunto do enorme reservatório natural de energia que é o lago Niassa com as quedas do Chire.
O lago, hoje sujeito a grandes fluctuações de nível, devido ao regime das chuvas na sua bacia hidrográfica, mede 58U km de comprimento por 80 km do largura máxima e atinge nalguns pontos profundidades de 700 m. Por cada metro de altura da barragem a construir na .saída do lago para o Chire obter-se-á um represa mento de águas vinte e cinco vezes maior do que o da albufeira do 'Castelo do Bode.
O rio Chire, com uma bacia hidrográfica de 151 500 km2, a montante de Port Herald, apresenta quedas naturais de grande potencial hidráulico que totalizam o desnível de 278 m. A estabilização do nível do lago e a regularização do curso do rio permitirão a utilização em cinco centrais de um caudal permanente calculado em 178 m3 por segundo, com uma potência de 360 000 KW.
Todas as indicações técnicas deixam, pois, prever a possibilidade da produção de uma grande massa de energia hidroeléctrica a baixo preço, com largas repercussões 110 desenvolvimento económico dou territórios interessados.
Por outro lado, a regularização do curso das águas tornará possível a recuperação e valorização de extensos tractos de terreno no baixo Chire, de potencial agrícola reconhecidamente elevado para culturas ricas, nomeadamente do algodão.
Os estudos preliminares dos aproveitamentos hidroeléctricos, que se encontram quase concluídos, foram confiados à firma britânica Sir William Halcrow and Partners e têm sido acompanhados em África por dois engenheiros portugueses, sob a superintendência da Inspecção-Geral do Fomento do Ultramar.
Seria agora de recomendar que o Governo mandasse proceder quanto antas ao estudo de um anteplano de ocupação e valorização económica da parte central de Moçambique, em vista das disponibilidades de energia que se anunciam e da sua utilização na indústria, na agricultura, nas explorações mineiras e nos transportes, de modo a determinarem-se os mercados potenciais da electricidade a produzir e planearem-se as respectivas redes de transporte e distribuição. Afigura-se particularmente oportuno o estudo de três grandes linhas de penetração, que seriam dirigidas: a primeira, ao porto de Nacala, servindo o Gume, Ribaué e Nampula; a segunda, à Beira, onde entraria em conexão com u aproveitamento do Revué servindo a zambézia, Quelimume e Inhaminga; a terceira, a Tete, Macanga e Mariivia, pura o desenvolvimento agrícola e mineiro destas regiões.

11. E também de pôr em relevo a vantagem que resulta da partilha do lago quanto à possibilidade de prolongamento do caminho de ferro de Moçambique até u margem portuguesa.
Na costa do Indico é esse caminho de ferro servido pelo porto de Nacala, cujas excelentes condições naturais o indicam como um dos melhores da África Oriental, desde que sejam concluídas as obras nele previstas. Formado por uma série de baías com 13 km de extensão. 3500 m de largura média e fundeadouros de lã a 25 m, o porto de Nacala oferece, pela sua configuração, excepcionais condições de abrigo naquela costa e terá, uma vez construídos os cais e instalado o equipamento necessário, capacidades de tráfego praticamente ilimitadas Ligado pelo caminho de ferro ao lago Niassa, estará em condições de grande vantagem para servir não só a parte norte de Moçambique, mas também a Tangauhica e a Niassalândia. E se. da actual término em Nova Freixo (diamba), prosseguir para ocidente, a fim de entroncar algum dia com os caminhos de ferro da Rodésia ou do Congo, virá a completar, com o caminho de ferro de Benguela, a via mais curta entre as duas costas da África, estabelecida entre dois dos seus melhores portos, ambos portugueses (Lobito e Nacala).
A construção do porto de Nacala faz parte do Plano de Fomento e as respectivas obras, avaliadas em 37 000 contos, foram já adjudicadas em Dezembro último.
Quanto ao caminho da ferro de Moçambique, também foi dotado no Plano de Fomento com 222 000 contos o seu prolongamento de Nova Freixo a Catar numa extensão de 184 km. Ficarão assim construídos de Nacala a Catar 086 km de linha. Para atingir o Niassa em Porto Arroio (Meponda) bastarão mais 96 km.

12. Infelizmente, nau se manteve em relação aos outros lagos fronteiros de Moçambique o mesmo critério de divisão pela linha média das águas que foi adoptado para o Niassa. Certo é que esses outros têm

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pequena extensão, comparada com a deste. Mas isso não impede que se estranhe a diferença de critérios.
Quanto ao lago Chiuta, ela pode justificar-se pela dificuldade de estabelecer uma linha média, dado o carácter mal definido das margens - em terreno pantanoso, que as águas ora submergem ora deixam a descoberto. Adoptou-se aí como fronteira a linha do meridiano de certo ponto da margem oriental, e, como esta faz uma bolsa para sueste, entrou considerável parte do lago para a soberania portuguesa, com o consequente direito para os habitantes de Moçambique de utilizarem todas as suas águas para a pesca e navegação.
Mas a respeito do lago Chirua, mais importante, não foi possível alterar a situação resultante do tratado de 1891; Portugal continua excluído da posse de qualquer porção das águas do lago, a não ser numa pequena enseada que a erosão cavou dentro da linha dos marcos da fronteira.
Dignos de apreço são os esforços que fez a delegação portuguesa, presidida pelo engenheiro Bui de Sá Carneiro, para obter a aceitação da linha média das águas como fronteira no lago Chirua. Mas a própria natureza tinha criado aí, desde que a fronteira fora inicialmente demarcada, uma situação de facto que dificultava as possibilidades de acordo. As águas do lago haviam recuado em relação à margem portuguesa, deixando a descoberto uma faixa de terreno, onde se tinham estabelecido algumas centenas de pescadores indígenas da Niassalândia. Não se aceitou nem que esses indígenas ficassem sob a soberania portuguesa nem que Portugal tomasse o encargo, a que se oferecia, de fazer a transferência deles para qualquer outro ponto do protectorado. Sob o risco de fazer gorar o acordo, houve que aceitar a situação e manter a fronteira primitiva.
Mas a situação não parece facilmente sustentável. Os indígenas de que se trata não podem subsistir sem o recurso à terra portuguesa para tudo o que o lago lhes não dá: a carne, a lenha e os produtos agrícolas. E a natural consequência do acerto de fronteiras agora estabelecido será que para o futuro os súbditos de cada uma das partes terão de conter-se rigorosamente dentro dos respectivos territórios. Para isso é que o traçado foi modificado noutros contos e se fez o acordo de nova demarcação. Deixaria de fazer sentido que nas novas circunstâncias os indígenas do Chirua continuassem a fazer culturas e cortar madeiras em terra de Moçambique.
Por isso se alimenta a esperança de que a questão possa ainda vir a ser revista e se não mantenha por muito tempo a situação anómala, que, felizmente, terminou no lago Niassa e, por fórmula diferente, no lago Chiuta.

13. Além da divisão das águas dos dois referidos lagos, o acordo sanciona uma série de rectificações da fronteira terrestre na região da Angónia e de um pequeno troço na região de Mutarara.
A comissão mista luso-britânica que operou no terreno em 1899 e 1900 deveria proceder à demarcação da linha de cumeada que separa a bacia hidrográfica do Zambeze das do Chire e do Niassa, pois essa era a linha definida pelo artigo i do tratado de 1891.
Verificaram, porém, os comissários a enorme dificuldade e, por vezes, a impossibilidade de marcar no campo a linha divisória das águas, e acordaram em a substituir por uma sucessão de segmentos de recta a unirem pontos notáveis, intervisíveis, nos quais foram levantados marcos de pedra solta. A fronteira demarcada divergia, assim, da convencionada no tratado.
Com o andar do tempo os indígenas do ambas as partes estabelecidos nos territórios confinantes foram, aqui e além, invadindo o terreno alheio para estenderem as suas culturas e pastagens. Passou a haver súbditos portugueses em terras da Niassalândia e súbditos britânicos em terras de Moçambique e a fronteira de facto deixava de coincidir tanto com a do tratado como com a demarcada no terreno.
Esta situação criava, naturalmente, embaraços às administrações locais e foi fértil em conflitos entre os indígenas, por vezes com certa gravidade.
Acordou-se, pois, em encarregar a comissão mista de propor uma nova demarcação que conjugasse os interesses mútuos no terreno e legalizasse a situação existente onde isso pudesse fazer-se sem detrimento de qualquer das partes.
Do lado da Niassalândia havia interesse em adquirir algumas áreas na fronteira da Angónia, com aglomerados de nativos seus de certa grandeza, e em fazer correr inteiramente no seu território uma estrada também sua, de que alguns troços ficavam em terra portuguesa.
Da parte de Portugal interessava, além do objectivo principal, que era a demarcação das fronteiras lacustres, a incorporação no território de Moçambique de uma pequena zona da região de Mutarara onde se exercia a soberania portuguesa, mas estava para lá da fronteira definida pelo tratado de 1891.
Esses são os objectivos realizados pelo acordo de 18 de Novembro de 1954 no que respeita à demarcação de fronteiras.
Apreciado quanto u extensão dos territórios que, por seu efeito, mudam de soberania, o balanço do acordo é o seguinte: Portugal adquire uma área de 6400 km² no lago Niassa, mais 60 km² no lago Chiuta, mais 4,7 km9 na região de Mutarara. As permutas de terrenos na região da Angónia saldam-se por uma diferença de 30 km² a favor da Niassalândia.

14. Por quanto fica exposto, a Câmara Corporativa entende que deve ser aprovado, para ratificação, o Acordo relativo u fronteira de Moçambique com a Niassalândia, assinado em Lisboa em 18 de Novembro de 1954.

Palácio de S. Bento, 4 de Fevereiro de 1955.

Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Francisco José Vieira Machado.
Francisco Monteiro Grilo.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
Vasco Lopes Alves.
António Faria Carneiro Pacheco.
Augusto de Castro.
Manuel António Fernandes, relator.

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PARECER N.º 16/VI

Projecto de lei n.º 12

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos cio artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto do lei n.º 12, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Defesa nacional e de Justiça), à qual foi agregado o Digno Procurador Afonso de Melo Pinto Veloso, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto de lei n.º 12, agora submetido à apreciação da Câmara Corporativa, dispõe que os oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em quaisquer situações - de actividade, reserva e reforma - prescritas nos respectivos estatutos que os regem, ficam sujeitos à jurisdição dos tribunais militares, sendo revogada a disposição final do artigo 41.º da Lei do Recrutamento e Serviço Militar, de 1 de Setembro de 1937, no que se refere ao foro militar para oficiais e praças reformados.
Este projecto, de forma tão concisa e de aparência tão simples, tem no entanto um alcance que transcende os limites restritos da sua incidência preceituai.
Torna por isso necessária uma referência, embora sucinta, aos factores de ordem política e social que têm condicionado a evolução daquele foro, paralelamente u difusão de correntes doutrinárias, que ainda hoje suscitam problemas de controversas soluções práticas.

2. A diversidade das circunstâncias, a sucessão das épocas, as influências de natureza doutrinária de origem ou feição política ou filosófica, quando não meros mitos ideológicos ou necessidades ocasionais da política interna, têm induzido a alterações dos sistemas judiciários que nem sempre a posterior experiência mostra terem sido necessárias ou até convenientes.
A jurisdição militar não fogo a esta observação. E, no entanto, se há justiça que se deva manter quanto possível em moldes tradicionais, já bem conhecidos e aceites, acessíveis a todas as mentalidades e adaptáveis a todas as vicissitudes do meio em que ela actua, essa é a justiça militar.
É preciso, por isso, proceder com cautela e não ter pressa em introduzir modificações ou inovações que possam brigar, ou mesmo destoar, com o plano e disposições do Código de Justiça Militar, já sancionados por longa prática sem atritos.
Mas não há dúvida de que, não obstante, chega um momento em que os próprios códigos carecem de revisão.
É o que acontece presentemente com o nosso Código de Justiça Militar, que não só está desactualizado em relação a penas e sistema prisional, que têm de jogar com as sensíveis alterações em tal matéria introduzidas na legislação comum, mas também há-de acompanhar, na medida aplicável, os aperfeiçoamentos conseguidos pelo Código de Processo Penal e legislação complementar para os instrumentos de investigação criminal e trâmites da organização processual até final julgamento.
Ora, temos conhecimento de que foi preparado o considerável trabalho da revisão daquele código, havendo um projecto completo, elaborado por distinto auditor militar, em estudo no Ministério do Exército.
Nestas condições, a Câmara Corporativa não pode deixar de dizer que só lhe não afigura oportuno tomar decisão antecipada sobre um assunto desta natureza, que pode estar em contradição com o plano adoptado pelo Governo para o novo código, a menos que a Assembleia Nacional entenda dever estabelecer previamente doutrina que imponha desde já soluções a adoptar.
Feita esta necessária reserva, a atenção que nos merecem os Sr s. Deputados proponentes e o dever constitucional de esclarecer as questões sujeitas a debate parlamentar levam-nos a desenrolar, até onde nos for possível, o fio de um assunto que nos parece enriçado por sérias dificuldades.

A Justiça Militar

3. O foro militar tem antiquíssima tradição. Pode dizer-se que é coetâneo do primeiro exército organizado, pois não pode haver organização sem disciplina, disciplina sem autoridade, autoridade sem regra, regra sem um órgão que a interprete e faça observar.
Esse exército - qualquer que fosso a modalidade assumida através dos tempos: voluntário ou coagido, mercenário ou patriota, partidário ou nacional, recrutado na tribo, na casta, no feudo, na classe ou na nação - representou sempre uma força, mais ou menos ordenada e armada, capaz de se impor em combate e, como tal, dotada de privilégios dentro dos povos a que assistia ou em que agia.
Eram esses privilégios constituídos tanto por especiais direitos como por especiais deveres, primeiramente estabelecidos pelos rudimentares pactos firmados entre os chefes e seus homens de armas e depois estratificados em preceitos consuetudinários. cuja veemente força de aplicação se transmitiu de época em época, ato que foram reduzidos u normas escritas, lentamente modificadas, ao passo que se iam subindo os degraus da civilização.
Esta é a noção que se pode colher quando se lêem as descrições dos viajantes e etnólogos sobre a vida dos povos primitivos, ou se estudam os clássicos gregos e latinos, ou percorrem os textos da legislação bárbara e das crónicas medievais - e é de assinalar a convenção firmada entre D. Afonso Henriques e os cruzados que o ajudaram na conquista do Lisboa-, pois que, em todos os tempos, o chefe teve necessidade de distribuir aos componentes das suas tropas uma justiça enérgica e expedita, que mantivesse a ordem nas relações deles entre si e também com as populações em que viviam ou mesmo contra as quais actuavam; mas, simultaneamente, tinham de adequar tanto as normas como as sanções à mentalidade do homem de guerra, de modo u conciliar a rigorosa repressão dos desmandos com a suprema necessidade de manter a coesão da força armada e não quebrantar e antes estimular o espírito guerreiro,

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que se sublima até ao sacrifício voluntário da própria vida.

4. O ilustre general L. A. de Carvalho Viegas publicou na Revista Militar¹ um largo estudo sobre as origens e modalidades do nosso foro militar, para chegar a conclusão idêntica à do projecto de lei em apreciação.
O que atrás escrevemos poderia servir apenas de prefácio ao interessante trabalho, se não fosse nosso dever fazer a revisão de suas informações e deduções e completá-las quanto nos fosse possível, sem ter em mente determinada conclusão, visto que a nossa tarefa é oferecer todos os elementos aproveitáveis, com o sentido de contribuir para o esclarecimento de tão discutido assunto.
Parece-nos que, antes do desastre de Alcácer-Quibir, em que foi ceifada a flor da nobreza de Portugal, se sentiu a necessidade de organizar um exército de base popular, para tanto se publicando o Regimento do 10 de Dezembro de 1571, que organizou em todo o País as Ordenanças, com seus capitães-mores, sargentos-mores e oficiais eleitos pelos municípios, excepto onde houvesse senhores das terras ou alcaides mores, porque ai eram estes de direito os capitães-mores, e regulamentou as esquadras, bandeiras e alardos em que os homens de guerra se agrupavam, com aperfeiçoamentos depois introduzidos pela provisão de 15 de Maio de 1574.
A disciplina era mantida pelos comandos e a justiça era distribuída conforme as ordenações do reino e os forais dos concelhos. Não se pode dizer que houvesse foro privativo, tal como hoje o concebemos, mas u justiça não estava ausente das formações militares.
O Governo de então, enleado pelos acontecimentos que conduziram em 1580 à posso da Coroa por D. Filipe I, não teria tempo de armar e adestrar esta força, que de permanente só tinha os quadros, aliás não remunerados. Cremos que foi, no entanto, esta orgânica extensão da teia militar, juntamente à irritante Carta Régia de Filipe III de 31 de Dezembro de 1639, com rigorosas instruções para a recruta de uma grande leva de gente para ir servir em Espanha, que proporcionou ao nosso D. João IV o rápido levantamento de um exercito nacional, a que longa guerra ia impor o carácter de permanente e tornar necessária a outorga de justiça própria.

Instauração e evolução do foro militar no regime absoluto

5. É provável que durante os Governos filipinos se difundisse entre nós, através dos fidalgos, letrados e mercadores que frequentavam a Corte de Madrid, o conhecimento das Ordenanzas de D. João de Áustria e do duque de Alba para. os exércitos do seu comando e, sobretudo, as Ordenanzas de 1587 para o exército espanhol da Flandres, atribuídas ao príncipe de Parma, e portanto podemos admitir, como o Sr. General Carvalho Viegas, que delas veio a sugestão para os primeiros diplomas judiciais militares publicados por D. João IV, após a Restauração.
Com efeito, em 11 de Dezembro de 1640 foi instituído um conselho de guerra junto da Corte, composto de dez membros, uni promotor de justiça e um secretário, tendo um Ministro ou juiz letrado como assessor; mas foi o alvará de 22 de Dezembro de 1643 que definiu as regras de competência e processo desse tribunal, prevendo até que nos casos mais graves a ele assistissem mais dois letrados e prescrevendo a sua reunião em dois dias de cada semana.
Em França só em 1655 foram decretadas por Luís XIV as Ordenanças aperfeiçoadas de que todavia não encontramos a influencia na nossa posterior legislação do século XVII, pelo que a criação e organização bastante perfeita do nosso primeiro tribunal militar se pode dizer filha do espírito nacional.
A par subsistia larga competência disciplinar dos governadores das armas e dos comandantes dos exércitos em operações, sem prejuízo dos privilégios dos nobres e dos cavaleiros das três ordens militares, que haviam de prolongar-se até ao século XIX.

6. Com a estagnação da guerra e a paz não foi dissolvido o exército.
E como os crimes de furto praticados pelos incorporados irritavam as populações, enodoando as fardas, foi estabelecido em 25 de Janeiro de 1660, e depois esclarecido e renovado em 31 da Julho de 1664, que os réus de crimes de furto, mesmo de pequeno valor, eram excluídos do foro militar e relegados às justiças ordinárias.
Não tardou, porém, o foro militar a voltar a ter competência sobre todos os crimes praticados por militares, o que ficou definitivamente estabelecido pelo Regimento das Armas de l de Julho de 1678, «para acabar com as grandes contendas entre os cabos da milícia, seus auditores e os ministros da jurisdição ordinária».
É de notar, todavia, que foi estabelecido, quanto aos soldados e graduações não superiores a cabos de esquadra, que «o privilégio do foro militar só pertence nos que estão na fronteira, ainda quando dela se ausentem com licença» e disposição idêntica foi aplicada mais tarde, quando as tropas regressaram a quartéis, apenas aos que ficaram pertencendo aos efectivos permanentes.

7. Chamado o conde de Lippe a Portugal, procedeu à reorganização do Exército e redigiu o Regulamento de Infantaria 3, que com os- seus vinte e nove artigos - conhecidos por artigos de guerra do conde de Lippe- constituiu o primeiro esboço de um código de justiça militar entre nós, em que, assegurando o foro privativo, se estabeleciam regras processuais uniformes.
Confirmando esta orientarão, foi publicado o alvará de Outubro seguinte, afirmando que a jurisdição dos tribunais militares é privativa de qualquer outra, por mais privilegiada que seja, e submetendo-lhe os cavaleiros das ordens militares, embora ai ida com a regalia de que, aquando os culpados têm hábito de qualquer ordem, intervém nos conselhos ura número de cavaleiros igual ao dos oficiais de patente».
Só pode avaliar-se o alcance e a energia desta disposição quando se atente em que as três ordens militares de cavalaria gozavam o privilégio de ter um juiz geral dos cavaleiros e cada uma delas um juiz dos cavaleiros, segundo os seus estatutos, os quais podiam meter na cadeia os presos, como quaisquer outros juizes, e ser assistidos nas audiências pelos alcaides e meirinhos da cidade, tendo usufruído de atenções durante os Governos filipinos.
Tão furte era a tradição dos seus privilégios que já em 1801 o alvará de 12 de Agosto mandou que no Brasil os cavaleiros de Cristo, A vis e Santiago fossem julgados pelos desembargadores e ouvidores gerais do crime, disposição esta que a Carta Régia de Novembro de 1808, § 17, tornou extensiva aos cavaleiros da Ordem da Torre e Espada, criada per D. João VI.

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8. Em tempo de guerra os tribunais militares funcionavam, nos termos das respectivas Ordenanças, pela forma expedita que as circunstancias impunham; mas em tempo de paz os réus podiam «nomear advogados que os assistam e aconselhem nos seus interrogatórios e aleguem a sua defesa» (Decreto de 5 de Outubro de 1778).
E, conquanto a Carta Régia de 21 de Outubro de 1757 houvesse qualificado de «crime de lesa-majestade de primeira cabeça» a confederação ou ajuntamento, vozes sediciosas e tumultos, para os amotinados se oporem às leis e ordens ou resistirem aos ministros e oficiais encarregados da execução delas, entregando-os à justiça ordinária, e fosse mantida a disposição do alvará de 21 de Novembro de 1763 que inibia os tribunais militares de se ocuparem de qualquer causa eivei, por maior que fosse a graduação do militar nela interessado, marcando assim nitidamente a especialidade do foro militar, certo foi que veio depois a necessidade ou a conveniência de entregar aos tribunais militares o conhecimento e julgamento da «resistência oposta por paisanos aos oficiais das ordenanças, em actos das suas diligências, ou que embaracem as conduções de recrutas ou qualquer outro objecto, porque em todos estes casos serão julgados como forma militar».
Mais longe foi outro diploma1 ao sujeitar a conselho de guerra os casos de «resistência aos oficiais e oficiais inferiores e soldados da tropa em actos da sua diligência, indo munidos de ordem escrita de seus superiores, que deverão apresentar».
O aviso de 2 de Dezembro de 1815 veio, porém, declarar que tal disposição é só compreensiva das diligências militares do oficio das Ordenanças, «pois, assim como os militares só perdiam o privilégio do sen foro quando resistiam à justiça em matéria ou coisa do seu oficio, assim não deviam os paisanos ficar privados do seu foro civil ou criminal quando resistiam às Ordenanças em objectos que lhes não eram próprios, como prender facínoras ou outras diligências em que entravam como auxiliadores, à .excepção de irem prender um paisano que resistisse às ordens do seu chefe, ou outros casos semelhantes i.

9. A este tempo já nos conselhos de guerra da Marinha, organizados nos termos do Decreto de 15 de Novembro de 1783, foram mandadas seguir as normas observadas nos das tropas de terra.
E outra ordem4 estabeleceu que nos regimentos de milícias se fizessem conselhos de guerra em tudo semelhantes aos das tropas regulares.
Mais tarde foi regulamentado que nestes conselhos servisse de auditor o juiz de fora da sede do regimento e que o general nomeasse para vogais os oficiais das milícias ou das tropas de linha que lhe parecessem.

10. Com este desenvolvimento da justiça militar cresceu também a necessidade de compilar e modernizar as disposições legais respectivas.
No sector civil acontecera o mesmo.
Por Decreto de 31 de Março de 1778 fora nomeada uma comissão de quinze jurisconsultos para proceder à revisão das Ordenações e das leis extravagantes e dispersas que nelas devessem ser incorporadas. Nada fez.
Em 23 de Março de 1783 foi nomeado para proceder a esse trabalho o Doutor Pascoal José de Melo Freire, que, quatro anos depois, apresentou um Projecto de Código de Direito Público e Criminal, obra notável para aquela época. Nomeada outra comissão revisora em 3 de Fevereiro de 1789, também dessa vez o código não se publicou.
Só em 21 de Março de 1802 foi criada uma junta encarregada de elaborar um código de justiça militar. Parece que alguma coisa teria feito, pois que em 13 de Janeiro de 1804 a encarregaram de fazer um código militar da Marinha.
Nenhum destes trabalhos, se só concluíram, veio a ser convertido em lei, e não admira. A época era agitada por ideias novas, que se reflectiam no próprio campo do direito; uns as queriam, outros as repudiavam.
E assim aconteceu que, perturbada a nossa paz pelas invasões napoleónicas e germinadas as sementes de dissídios internos que viriam a culminar na guerra civil, pôde ainda publicar-se um Regulamento para a Reorganização do Exército Português, de 21 de Fevereiro de 1810, o qual, quanto a foro militar, inseriu apenas o artigo XXX, limitando-se a declarar «que ele pertence a todos os indivíduos que nesta data o usam, segundo as leis estabelecidas, sendo dele exceptuados apenas os crimes de lesa-majestade e ficando anuladas as excepções feitas posteriormente ao alvará de 25 de Outubro de 1763».
Regressou-se puramente à época pombalina.

O foro militar no regime monárquico constitucional

11. Em Setembro de 1820 eclodiu o primeiro movimento liberal, que impôs um Governo imbuído do espírito novo que já em França produzira as Constituições de 1791 e 1793 e em Espanha a de 1812, chamada de Cádis.
Em semelhantes moldes foi elaborado um projecto de Constituição, em cujo artigo 11.º se estatuía:

A lei é igual para todos. Não se devem, portanto, tolerar nem os privilégios do foro nas causas eiveis ou crimes nem comissões especiais.

Logo se boquejou que este preceito atingiria o foro militar, provocando alarme os oficiais das tropas. Talvez por isso ele veio a ser apresentado às Cortes Constituintes com um acrescentamento:

Esta disposição não compreende as causas que por sua natureza pertencerem a juízos particulares, na conformidade das leis que marcarem essa natureza.

Assim se habilitou o Governo a fazer com que a «Regência do Reino, em nome de El-Rei D. João VI», para atalhar o descontentamento que se procurava alastrar, no Exército, publicasse em Ordem do Dia n.º 66, de 8 de Abril do 1821, «a declaração de que o foro militar ficava ileso e subsistindo em todas as causas militares e só extinto naqueles dos crimes civis que o militar cometer como cidadão, e que a lei que regular este objecto designar como tais, assim em tempo de guerra como de paz, como mostra o referido undécimo artigo: e que a medida da extinção do foro, já adoptada em todas as nações da Europa, foi agora empregada em todas as classes da Nação Portuguesa, ainda nas que gozavam mais subidos privilégios e sem as excepções indicadas para os militares que, apesar da distinta classe a que pertencem, não devem prezar menos a qualidade de cidadão, que nasce com o homem e o faz considerar membro da grande família do Estado».

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Nas Cortes Constituintes, em 25 de Maio do mesmo ano, o barão de Molelos, Francisco da Silva Tovar, defendeu com vigor os privilégios dos militares, tanto de primeira como de segunda linha, e os dois períodos do artigo 11.º foram aprovados sem modificação.
Esta Constituição, finalmente promulgada em 23 de Fevereiro de 1822, pouco durou.
Depois do movimento conhecido pela Vilafrancada, D. João VI, que regressara do Brasil, aboliu-a e o País regressou ao regime de Governo absoluto até à morte do monarca.

12. Sobrevieram os conhecidos episódios da luta entre constitucionalistas e tradicionalistas, com D. Pedro e D. Miguel em campos opostos, pois aquele outorgou em 1826 a Carta Constitucional, de molde inglês, com os quatro poderes do Estado: legislativo, executivo, judicial e moderador, a qual só pôde vigorar de facto após a guerra civil, que terminou com a Convenção de Évora Monte, em 1834.
Nela se estatuiu, no artigo 118.º, que «o Poder Judicial é independente e será composto de juizes e jurados, os quais terão lugar, assim no cível como no crime, nos modo» e nos casos que as leis determinarem».
E no artigo 145.º:

A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Reino pela maneira seguinte:
................................................................................
§ 15.º Ficam abolidos todos os privilégios que não forem essencial e inteiramente ligados aos cargos públicos.
§ 16.º À excepção das causas que por sua natureza pertencem ajuizou particulares, na conformidade das féis, não haverá foro privilegiado nem comissões especiais nas cíveis ou criminais.

Ninguém duvidou de que estes textos previam a continuação do foro militar e o Exército, na falta de novo diploma regulador, continuou a observar as velhas regras.

13. O que então mais se sentia era a necessidade de expungir a força armada dos elementos contrários ou suspeitos ao novo regime. Mas a feição sentimental e tolerante da nossa gente ergueu-se contra possíveis abusos ou injustiças e levantou-se no Parlamento demorada discussão.
A Camará dos Purés votou, em 21 de Março de 1830, uma proposta de lei, a cujo artigo 1.º deu a seguinte redacção:

Nenhum oficial do Exército será privado da sua patente em caso algum senão por sentença proferida em conselho de guerra.

A patente era tida como propriedade do oficial, por este adquirida por vezes onerosamente, a ponto de o próprio imperador autorizar no Brasil que em certas condições fosse negociada1 - o que é um elemento de apreciação do conceito que então havia dos privilégios militares.
Mas a votação da Camará dos Pares embaraçava de momento o Governo, que precisava de agir mais livremente, e ela não foi adoptada pela Câmara dos Deputados.
Tal fórmula protectora dos direitos dos oficiais à sua patente havia de reaparecer mais tarde e então com força constitucional, embora efémera.

14. Por esse tempo, o duque de Saldanha, Ministro da Guerra, reorganizou o seu departamento, incluindo, em l de Junho de 1835, uma Divisão de Justiça e Prisões Militares na 1.º Repartição, mas pouco se demorou no Poder.
A oposição, guiada pelos idealistas e apoiada pelos homens de acção da Revolução de 1820, fez a chamada Revolução de Setembro (9 de Setembro de 1836), impondo-se à rainha D. Maria II para a organização de um Ministério presidido por Passos Manuel, tendo como Ministro da Guerra o marquês de Sá da Bandeira.
O seu primeiro acto foi revogar a Carta e convocar Cortes Constituintes, as quais aprovaram a nova Constituição de 20 de Março de 1838, jurada pela rainha e por D. Fernando em 4 de Abril seguinte.
Nesta Constituição ficou inserto o artigo 20.º, que estatuiu:
Ficam abolidos todos os privilégios que nilo forem especialmente fundados em utilidade pública.

e em § único:

A excepção das causas que por sua natureza pertencerem a juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado nem comissões especiais.

No artigo 120.º dispôs que:

O Exército e a Armada constituem a força permanente do Estado.

e no § único que:

Os oficiais do Exército e da Armada somente podem ser privados da sua patente por sentença proferida em juízo competente.

Como se vê, o pensamento linear dos revolucionários de 1820 sofrera já os desvios que as circunstâncias sociais impõem aos homens de governo. Admitiram privilégios por utilidade pública e juízos particulares para causas determinadas por leis ordinárias, só omitindo a expressa designação dos conselhos de guerra para a demissão de oficiais, talvez para evitar excessiva especificação, imprópria de texto constitucional.
Contudo, esta Constituição não conseguiu radicar-se. O próprio Ministro da Justiça, Costa Cabral, em Janeiro de 1842, foi ao Porto e deu um golpe de Estado, proclamando a restauração da Carta Constitucional.
Assim, ficou esta a reger ininterruptamente a vida política do País até à proclamação da República.

15. Foi neste período constitucional que a nossa legislação, tanto substantiva como adjectiva, realizou nem sempre rápidos, mas efectivos progressos, tanto no campo civil como no militar, para se colocar no nível geral europeu.
Afigura-se-nos que, se isso foi devido à maior permeabilidade do meio social à entrada das ideias que circulavam no Mundo, não o foi monos a reforma pombalina dos estudos universitários e ao crescente número de escolares que a eles acorreu, porque de outro modo havia a impossibilidade de constituir um corpo geral de magistrados competentes.
Com efeito, é de notar que já tínhamos feito a Restauração de 1640 e ainda em 13 de Novembro de 1642 um alvará prescrevia que «juiz não pode ser quem não souber ler e escrever»; e, passado mais de um século, o alvará de 7 de Dezembro de 1782 advertia de que «os juizes ordinários administravam mal a justiça, por paixões de amor ou ódio».

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E também já tínhamos feito a Revolução de 1820 quando Garrett, com ardor juvenil, dizia que «na nossa legislação avultava mais o número das excepções que o das regras gerais; os privilégios eram infinitos, as isenções multiplicadas e, em consequência, não havia direito».
E acrescentava:

A execução da justiça torna-se arbitrária, as opiniões dos chamados doutores são preferidas às leis expressas, as romanas às pátrias, a chicana e a intriga à razão e ao senso comum.

E já tínhamos adoptado a Carta Constitucional de 1826, e ainda em 1835 um Deputado dizia na sua Gamara, com candente mas ponderada energia, que «o juiz ordinário é um julgador de direito que não sabe direito, uma contradição pura»; e em outro passo: «ainda não temos um código. A codificação é ainda a filipina, há leis extravagantes e leis subsidiárias, isto é, uma jurisprudência só acessível aos esforços da erudição».
Eis o que explica a criação já no reinado de D. Afonso IV doa juizes de fora, letrados e estranhos à área da sua jurisdição, os quais foram aumentando no decorrer do século XVIII e nos reinados de D. Maria I e de D. João VI se estenderam à maior parte das comarcas da metrópole e do Brasil e mesmo de Angola, embora com defeituosa divisão territorial.
E explica também, não só o foro militar, mas a existência de uma multiplicidade de juizes especiais, que seria incrível se não fosse fácil verificar as jurisdições variadas e especializadas que ainda hoje existem.
Houve-os de toda a feição, feitos pelo rei ou pelos donatários das terras ou eleitos. O dos «pecados públicos», por exemplo, só foi extinto por alvará de 2 de Junho de 1725, que passou as suas atribuições para os juizes do crime dos bairros de Lisboa, criados em 1608, vindo estes, no entanto, por alvará de 26 de Julho de 1769, a ser proibidos de «tirar devassa dos concubinatos».
O foro militar foi, porém, desde o começo dos mais felizes: os seus tribunais eram constituídos por oficiais de patente não inferior a capitão, conhecedores da vida das casernas e dos acampamentos e da psicologia da tropa e das populações e portanto especialmente aptos para julgarem as questões de facto e pesarem suas agravantes e atenuantes; e obrigatoriamente também por um juiz letrado, o qual intervinha nos julgamentos, não só para aconselhar sobre a interpretação e aplicação das íeis e redigir a sentença, mas também para votar em primeiro lugar, para o que se sentava à esquerda do capitão mais moderno3.
Tratava-se, pois, de um tribunal que oferecia garantias de seriedade e acerto, quer se tratasse de tropas de linha, quer de milicianos, pois a forma era a mesma.
Tribunal de tal modo acreditado que já em 1812 a sua jurisdição foi mandada aplicar às novas Ordenanças; e nos conselhos de guerra do exército britânico aqui destacado foram mandadas adoptar as «mesmas políticas e civilidades que nos nacionais».
Idêntica organização e tramites se observavam nos conselhos de guerra da Marinha.

16. Não havia então instituto equiparável ao das reformas actuais. Não se pensava em limites de idade, nem na Caixa de Aposentações.
Os oficiais que se inutilizavam para o serviço recebiam as tendas, que lhes eram dadas, quando não eram distinguidos com prebendas, segundo o espírito de justiça, do clemência ou de favor do rei e seus ministros, e conservavam até à morte as honras e privilégios das suas patentes.
Encontram-se muitos diplomas em que são mesmo concedidas tenças o benesses às viúvas e filhos de oficiais militares, cujo número, é claro, era incomparavelmente menor que o de hoje.
O que se tira do acervo de leis, decretos, alvarás, portarias, ordens e resoluções desde 1640 aplicados ao foro militar é que o âmbito da sua competência, tanto quanto às pessoas como às infracções, não variou substancialmente, apenas se alargando, quanto àquelas, de harmonia com a evolução das forças armadas, mas pragmaticamente, atendendo às circunstâncias da sua estrutura e funções, sem os pruridos ideológicos que haviam de dominar no século XIX.
Para se evitarem abusos e intromissões renovava-se o preceito de que os militares não podiam ser julgados pelos civis pelos crimes que cometessem, do mesmo passo que se reafirmava que eles não têm privilégio nas causas eiveis *, como já o não tinham nas questões com a Fazenda, quer nos casos de resistência aos cobradores, quer nos de furto e descaminho em detrimento da mesma Fazenda, cuja competência era dos «juizes fiscais ou de comissão».
E, tal como antes se fizera para as Ordenanças, definiu-se em 1808 a situação forense das milícias, estabelecendo-se que os oficiais gozam das mesmas isenções e honras que competem aos de linha, pelo que gozam do foro militar para todos os delitos, nas graduações superiores a cabo-de-esquadra, e desta para baixo neto gozam do foro militar nos crimes comuns senão estando reunidos e em efectivo serviço militar.
Era, portanto, este o regime de privilégio do foro, que foi mantido e mandado - observar pelo Regulamento para a Organização do Exército, de 21 de Fevereiro do 1816, e vigorou ainda por largo tempo, praticamente até à publicação do nosso primeiro Código de Justiça Militar, apesar da coexistência de certo estado de espirito, de formação jacobina, que ainda em 1835 proclamava «parecer mais sensato que os povos escolham os seus juizes, que ninguém lhos imponha, perpétuos ou temporários», embora logo aconselhando «não escolham os leigos, escolham os sábios e letrados» 4, o que não obstou a que os chamados «juizes eleitos» fossem abolidos em 1840 sob a acusação de que se inclinavam para seus amigos e eleitores.

17. O brilhante período de reforma e codificação das leis - anunciado pelos notáveis trabalhos de Melo Freire e de Ferreira Borges e cujas primeiras grandes manifestações foram o Código Comercial de 1833, a Novíssima Reforma Judiciária de 1841 e o Código Administrativo de 1842, para refulgir com o Código Penal de 1852, o Código Civil de 1867, o Código de Processo Civil de 1876 e o Código Comercial de 1888- foi secundado pela publicação do Código de Justiça Militar, de 9 de Abril de 1875.
Neste diploma se fixou ao foro militar competência para conhecer dos crimes ou delitos de toda a natureza perpetrados por militares ou outras pessoas pertencentes ao Exército, salvo os de contrabando ou descaminho,

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de violação das leis sobre caça e pesca, matas nacionais e viação pública, bem como os delitos comuns praticados pelos desertores durante a deserção.
Os tribunais militares, em cuja composição entrava sempre um juiz saldo do quadro da magistratura judicial, exerciam jurisdição sobre todos os indivíduos por qualquer modo inscritos nos serviços militares, sem exceptuar os guardas municipais e os empregados civis do Exército com graduação militar, ainda que estivessem em hospitais, em prisões ou no asilo de Rima, ou fossem prisioneiros de guerra ou emigrados políticos, militares, civis e internados em depósitos sujeitos ao regime militar.
Não conheciam de todos os crimes, mas sim apenas dos constantes do código, quando se tratasse de militares fora da efectividade do serviço, a receberem soldo, ou à disposição do Ministério da Guerra, ou na inactividade temporária sem vencimento, a seu pedido, ou de licenciados, ou de empregados em comissões não dependentes ,do Ministério da Guerra, ou ainda de quaisquer militares licenciados na reserva, quando não estivessem em serviço ou nas revistas ou na instrução.
A comissão parlamentar, que sobre ele deu curto parecer, disse a respeito da competência: «É este um dos assuntos mais importantes de toda a jurisprudência excepcional, porque quanto melhor fixar a esfera dos tribunais de privilégio, tanto menos motivos haverá para conflitos e tanto menos dificuldades para que se realize livre e francamente a acção da justiça contra os indiciados por delitos de excepção».
E foi tudo; vê-se que havia a obsessão dos inúmeros empecilhos que a chicana usava levantar a pretexto dos velhos privilégios.
A oposição não tomou parte no debate parlamentar. Este limitou-se a um torneio oratório sobre a pena de morte, em que tomaram parte Júlio de Vilhena, Barros e Cunha e Fontes Pereira de Melo.

18. Depois da reforma penal de 1884 sentiu-se a necessidade de lhe adaptar a justiça militar. Em 1886 foi nomeada uma comissão, composta de oficiais e magistrados, que em Dezembro de 1889 apresentou um projecto, acompanhado do relatório.
Só, porém, em 1895 o Ministro da Guerra Pimentel Pinto, em Governo presidido por Hintze Ribeiro, fez decretar novo Código de Justiça Militar, precedido de extenso e cuidado relatório justificativo, em que se diz que aço Governo não pode encarecer o trabalho da comissão de 1889, por estar assinado por um dos seus membros».
Nesse relatório, em matéria de competência, procura-se justificar a extensão da jurisdição militar a indivíduos civis, invocando-se os precedentes da Lei de 25 de Agosto de 1840, dos Decretos de 17 de Abril de 1844 o 2 de Fevereiro de 1891 e dos títulos III o IV do livro III do código de 1875 e disposições das leis suíça, italiana, belga e francesa, e acrescenta-se: e A verdade é que o acto de sujeitar ao foro militar indivíduos da classe civil, em tempos normais e por crimes atentatórios da disciplina militar e da ordem pública, é necessário e portanto legítimo, e é em razão disso mesmo que em Portugal, como em toda a Europa, constitui por assim dizer direito comum».
Não é o velho princípio de que a necessidade não tem lei, mas a afirmação explícita de que é a necessidade que faz estas leis. E de competência nada mais diz que valha nota, porque este novo código reproduz o estabelecido pelo de 1875, apenas com o acrescentamento dos trabalhadores empregados nas fábricas, arsenais, depósitos e secretarias militares, quando cometam crimes previstos no mesmo código.
No caso de acumulação de crimes civis e militares também reproduz - artigo 295." - a doutrina do artigo 201.º do código de 1875, que prescrevia:

Quando algum indivíduo sujeito à jurisdição dos tribunais militares for acusado ao mesmo tempo por outro crime da competência dos tribunais ordinários, será por ambos os crimes julgado pela justiça militar.

Esta doutrina é a do artigo 367.º do actual código.
O código de 1895 foi em 1896 sancionado pelo Parlamento, sem alteração nem discussão que aconselhe referência acerca do assunto & apreciar, e publicado com a Lei de 13 de Maio de 1896.

O foro militar no regime republicano

19. Com a proclamação da República, o Governo Provisório, da presidência de Teófilo Braga, sendo Ministro da Guerra o general Correia Barreto, apressou-se a decretar, logo em 11 de Março de 1911, um Código de Processo Criminal Militar, em cujo relatório preliminar se diz que ao Governo teve a orientá-lo critério seguro, o qual é o espirito novo que procura estabelecer as bases e as linhas da evolução de um exército diferenciado para o regime da nação armada», o que o «conduziu a acabar com a barreira funesta da separação das competências e distinção de foros».
Puro jogo de palavras, que não correspondia à realidade e era contraditado por outras passagens do mesmo relatório: «Se é verdade que à justiça parcelar sucedeu a justiça comum, que absorveu as jurisdições múltiplas, sujeitando todos ao mesmo direito, é certo também que em nossos dias se manifesta corrente favorável à criação de tribunais especiais para o julgamento das questões suscitadas dentro do exercício de cada uma das várias e complexas funções do Estado. E, se a competência universal pode ser defendida pelas razões superiores de direito e de justiça, a jurisdição particularizada é preconizada como defesa dos corpos e institutos a que esta jurisdição se aplica», e assim o Governo «relegou para os tribunais comuns o julgamento de todos os crimes que não tenham carácter milhar..., deixando para os tribunais militares os crimes previstos nos códigos militares».
A teoria das competências especializadas não parece exposta com perfeição, mas foi traduzida nos artigos 123.º e 124.º deste Código de Processo Criminal Militar, que mandavam submeter ao tribunal militar os militares, fosse qual fosse a sua situação, somente pelos crimes que cometerem contra o disposto no Código de Justiça Militar, devendo, no caso de cúmulo de crimes militares e comuns, aquele tribunal esperar pelo julgamento do tribunal civil para depois, em face da sentença proferida, aplicar a pena de harmonia com a lei para o caso de acumulação de crimes.
Esta solução anquilosara os conselhos de guerra, que, em face da psicologia militar, se têm necessidade de julgar com acerto, não a têm menos de absolver ou condenar com brevidade.
As Leis de 6 e 8 de Maio de 1913 restabeleceram a competência dos tribunais militares para o julgamento dos crimes comuns praticados por militares, do activo ou da reserva, na efectividade do serviço ou em cumprimento de deveres militares, e por prisioneiros e emigrados subordinados à autoridade militar.
Não se fez referência aos reformados.

20. Já então estava em vigor a primeira Constituição Política da República, votada pela Camará Constituinte em 1911. Diploma excessivamente conciso, revelando a dificuldade de encontrar pontos de vista harmónicos, dentro de uma assembleia já dividida por divergentes

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corrente de opinião ou sentimento, nem sequer repetiu a disposição do artigo 1.º do Decreto de 10 de Novembro de 1910, que "revogou todas as leis de excepção que submetam quaisquer indivíduos a juízes criminais excepcionais", limitando-se a dizer no artigo 23.º, n.os. 3.º a 21.º, que "a República Portuguesa não admite privilégios de nascimento nem foros de nobreza" e, nos artigos 56.º é 90.º, que o Poder Judicial terá por órgão um Supremo Tribunal de Justiça e tribunais de 1.º e 2.ª instâncias, distribuídos pelo Pais conforme as necessidades do serviço o exigirem, "continuando em vigor, enquanto não revogadas pelo Poder Legislativo, as leis e os decretos com força de lei até hoje existentes".
A tribunais militares nenhuma referência expressa. Tudo continuou como estava, pois, de facto, não havia o intuito de os suprimir ou reduzir, quer em número, quer em competência.

21. Só em 26 de Novembro de 1925 foi decretado novo Código de Justiça Militar, incluindo a constituição dos conselhos de guerra e as normas do processo, juntamente com as regras de competência e os crimes e penas especificamente militares.
É este o código ainda em vigor na metrópole e no ultramar.
Segundo ele, os tribunais militares conhecem a dos crimes de qualquer natureza, excepto os de contrabando e descaminho e o de abuso de liberdade de imprensa quando não constitua crime essencialmente militar, cometidos por militares ou outras pessoas ao serviço do Exército ou da Armada, com as limitações e distinções expressamente estabelecidas neste código.
Ora, quanto aos militares da reserva e reformados da Armada, do Exército, das Guardas Republicana e Fiscal e da Policia estabelece-se que em tempo de paz eles respondem perante os tribunais militares por crimes de qualquer natureza, militares ou comuns, se estiverem no desempenho de algum serviço militar; e, se não estiverem desempenhando algum serviço militar, só respondem perante os tribunais militares quando cometerem algum crime previsto no Código de Justiça Militar, e então ainda que conjuntamente sejam acusados de algum crime previsto nas leis gerais.
Porém, o Decreto n.º 14 419, de 13 de Outubro de 1927, modificou estes preceitos, determinando que aos oficiais na situação de reserva e do quadro auxiliar, os militares reformados, os que estiverem com licença ilimitada, em inactividade temporária, e os empregados em comissões não dependentes dos Ministérios da Guerra e da Marinha estão sujeitos à jurisdição dos tribunais nos mesmos casos e nas mesmas condições em que os do activo do Exército ou da Armada estiverem sujeitos a essa jurisdição".
Era a expressão do conceito da igualdade perante o foro militar do todos os que tinham direito a usar uma farda do Exército ou da Armada.
Esta disposição foi justificada com o considerando de "não ser justo que os oficiais, pelo facto de transitarem para a situação de reserva, para o quadro auxiliar ou para a situação de reforma, ou de estarem em determinadas situações, percam o foro militar e fiquem sujeitos em determinados casos à jurisdição dos tribunais comuns, quando indivíduos estranhos no Exército e à Armada, e ato da classe civil, estão sujeitos à jurisdição dos tribunais militares".

22. Com efeito, a extensão da competência dos tribunais militares pura. julgamento de civis, em cortas emergências, fui sempre adoptada em tempo do guerra e também é antiga, bem que mais restrita, em tempo de paz.
A isso são levados os Governos e os próprios Parlamentos, visto que as nações só podem achar em circunstâncias excepcionais, para que é licito invocar o famoso brocardo Salus populi, suprema lex, e também noutras em que apenas urge assegurar a conservação ou o restabelecimento da ordem pública, o em todo o caso tão previsíveis que no próprio Código de Justiça Militar há para elas turmas especiais de processo.
É grande a lista das leis e decretos que entre nós ordenaram aquela extensão, mesmo sem remontar ao regime absoluto. Logo em 1840, em pleno domínio setembrista -herdeiro da liberalíssima tradição de 1820-, a Carta de Lei de 14 de Agosto suspendia as garantias de liberdade de imprensa, inviolabilidade do domicilio e captura sem culpa formada e mandava que os acusados pelo crime de rebelião respondessem em tribunal especial, composto de três oficiais do Exército e de três desembargadores, disposição que não chegou a vigorar, pois que nova Carta do Lei, de 25 do mesmo mês, mandava que todos os réus desse crime fossem julgados pelos conselhos de guerra, constituídos nos termos do alvará de 4 de Setembro de 1765, ainda então vigente; e, após a proclamação da República, iniciou-se com os Decretos de 3 de Fevereiro e de 8 de Julho de 1912 a longa série de diplomas que entregaram aos tribunais militares a competência para julgarem civis réus de certos crimes previstos no Código Penal ou em leis especiais, sendo típico um dos últimos, o Decreto n.º 32 352, de 2 de Novembro de 1942, que autoriza o Governo a "sujeitar ao foro militar e às disposições do Regulamento de Disciplina Militar, na parte aplicável, o pessoal das empresas concessionárias de serviços públicos".
São factos da vida contemporânea que não é preciso rememorar especificadamente, pois que estão presentes no espírito de quem quer que se ocupe do assunto.
Só pode haver divergências quanto ao seu valor relativo.

23. Estava em pleno vigor o referido Decreto n.º 14 419 quando foi aprovada, por plebiscito nacional, a Constituição Política da República, de 1933.
O professor da Faculdade de Direito de Lisboa Doutor Fezas Vital, que foi presidente desta Câmara e tem sobre a matéria especial autoridade, explicou o alcance das disposições sobre os tribunais de justiça que alunos seus, em apontamentos impressos, traduziram da seguinte maneira:

Ao lado dos tribunais ordinários, comuns ou judiciais (todas estas terminologias são sinóminas, não para a Constituição mas na doutrina e na legislação), há tribunais especiais: tribunais administrativos (Supremo Tribunal Administrativo e auditorias, isto é, os chamados tribunais do contencioso administrativo), tribunais do contencioso fiscal, tribunais militares, etc. Dispõe-se, porém, no artigo 117.º que não é permitida a criação de tribunais especiais com competência exclusiva para o julgamento de determinada ou determinadas categorias de crimes, excepto sendo estes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado. Pode, portanto, ser conferido à competência de tribunais militares, que são tribunais especiais, o julgamento de crimes praticados por militares, mas não pode ser criado um tribunal especial para conhecer de certas categorias de

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crimes, salvo tratando-se de crimes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado.

E o professor da Faculdade de Direito de Coimbra Doutor Carlos Moreira, em idênticas circunstâncias,
Segundo os termos do artigo 117.º não é permitida a criação de tribunais especiais com competência exclusiva para o julgamento de determinada ou determinadas categorias de crimes. Não pode, por isso, criar-se um tribunal especial para julgar homicídios. Podem, porém, segundo os termos do mesmo artigo, criar-se tribunais especiais para os crimes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado. Criar tribunais para outros fins que não sejam os do artigo 137.º é inconstitucional.
Na prática, como na doutrina, continua, pois, a não se discutir a legalidade constitucional dos tribunais militares, apesar de a Constituição não lhes fazer expressa referência. Devem ser considerados como uma instituição militar tradicional, de entre as exigidas pelas supremas necessidades de defesa da integridade da Pátria e da manutenção da ordem e da paz pública, às quais o Estado assegura a existência e o prestigio, nos termos do artigo 53.º da mesma Constituição.
Na verdade, eles têm sobrevivido desde há séculos, através das revoluções e das mudanças de regime, intactos nas suas estrutura e função fundamentais. E tanto em Portugal como nos outros países.
O que tem variado é a área da sua competência ou da sua jurisdição, no tocante quer às pessoas, quer às infracções.
Porque se tratava de crimes contra a ordem social e a segurança jurídica, é que o Governo, pouco depois da promulgação da Constituição, se julgou autorizado a entregar a um tribunal militar especial, com sede em Lisboa, os actos de rebelião e os atentados contra as comunicações e as instalações destinadas ao abastecimento ou à satisfação de necessidades gerais e impreteriveis, bem como a importação, fabrico, guarda, transporte e uso de armas proibidas e de substancias explosivas. Nesta medida cabiam civis e militares; mas os tribunais militares comuns ou territoriais continuaram a funcionar, segundo as leis em vigor, para a generalidade dos crimes praticados por militares ou equiparados.
Na determinação da qualidade das pessoas com direito ou sujeição a este foro é que poderiam dar-se variações.

24. Assim foi que a disposição do Decreto n.º 14419 veio a ser revogada por outra disposição inserta na lei dos serviços do recrutamento militar, não obstante o Decreto n.º 15 080 ter autorizado a nomeação de oficiais da reserva e reformados para a composição dos conselhos de guerra especiais para julgamento do crime de rebelião, determinados pelo Decreto n.º 13 392 5.
Aquela lei dispõe no artigo 41.º:
Os militares licenciados e territoriais, salvo quando em efectivo serviço, não estão sujeitos, seja qual for o crime ou delito cometido, ao foro militar. O mesmo preceito é aplicável aos oficiais separados do serviço e, a não se tratar de crimes essencialmente militares, também aos oficiais e praças reformados.
Note-se, no entanto, que não se trata de acto de roera responsabilidade governativa, mas sim de lei que passou
Lições de Direito Constitucional, p. 105, § 74º Decreto-Lei nº 23203, de 6 d.; Novembro de 153. Lei n. 1061, de l de Setembro de 1937. Decreto n." 15080, de 24 de Fevereiro de 1928. Decreto n.º 13392, de 11 de Março de 1927, artigo 4.º
pela fieira parlamentar e foi votada pela Assembleia Nacional. Quais os fundamentos dessa disposição?
O relatório, aliás desenvolvido e notavelmente sistematizado, que informa :i apresentação pelo Governo às Camarás da proposta de lei n.º 1(52, na legislatura de 1937, é inteiramente omisso acerca de tal matéria.
A Câmara Corporativa elaborou o seu parecer, de que foi relator o Digno Procurador José Filipe de Barros Rodrigues, agora ilustre chefe do Estado-Maior do Exército. Subscreveram-no os Dignos Procuradores generais Eduardo Marques, Daniel de Sousa e João de Almeida Arez, tenente-coronel Velhinho Correia e doutores Fezas Vital, Abel de Andrade e José Gabriel Pinto Coelho.
De notável e admirável foi esse trabalho qualificado na Assembleia Nacional; e, com efeito, nele se fez a história sumária das instituições militares em Portugal e se versaram com elevação importantes e delicados aspectos da defesa nacional, relacionados com os problemas do recrutamento e serviço militar. Nenhuma referencia se fez, porém, ao foro militar; e ao tratar na especialidade dos artigos 39.º o 41.º diz tão- somente isto: «devem sor eliminados, visto tratarem de matéria estranha ao objecto das leis de recrutamento militar».
Na outra Camará intervieram na discussão os Srs. Deputados Schiappa de Azevedo, Abílio de Passos e Sousa, Fernando Borges, Lobo da Costa, Costa Lobo, Linhares de Lima e Álvaro Morna, do Exército e da Armada, e ainda os Drs. Vasco Borges, Pinheiro Torres e Correia Pinto.
Na discussão sobre a generalidade o assunto não foi sequer aflorado; na especialidade, sem prévias justificações, os Srs. Deputados Schiappa de Azevedo, Passos e Sousa, Álvaro Morna, Alberto Cruz o Pinheiro Torres propuseram que o artigo 41.º ficasse assim redigido:
Os militares licenciados e territoriais, salvo quando em efectivo serviço, apenas estão sujeitos ao foro militar a respeito de crimes essencialmente militares.
For esta forma se eliminava a referência aos reformados. Porém, os Srs. Deputados Albino dos Reis, Lopes da Fonseca, João Neves e Rodrigues de Almeida propuseram que o último período da proposta de lei fosse substituído por:
O mesmo preceito ó aplicável aos oficiais separados do serviço e, a não se tratar de crimes essencialmente militares, aos oficiais e praças reformados.
A primeira proposta foi rejeitada, a segunda aprovada; e assim, no mesmo sentido da proposta governamental, ficaram de novo os oficiais reformados excluídos do foro militar quanto aos crimes comuns.

25. Não se nos afigura que esta exclusão fosse movida pelo intuito de aliviar os tribunais militares do excesso de trabalho produzido pelo afluxo de reformados.
O peso do trabalho de um tribunal militar territorial é inferior ao de qualquer juízo criminal de uma comarca de 1.º classe. É-o em regra, porque há circunstâncias excepcionais quo por vezes exigem dos tribunais militares grande e expedita actividade.
Pois, não obstante alguns oficiais reformados se acharem envolvidos em conjuras ou em actos de rebelião - o que, aliás, colocaria qualquer pessoa, segundo o Decreto-Lei n.º 23 203, de 6 de Novembro de 1933, sob a alçada de um tribunal militar especial, com recurso para o Supremo Tribunal de Justiça Militar-, poucos foram os processos instaurados contra reformados durante os dez anos em que o foro militar lhes foi atribuído.

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De estranhar seria que assim não acontecesse, pois
não é natural que os reformados cometam frequentemente crimes comuns. Disso os defende não só a idade, mas também a educação recebida.
De entre os crimes do que eram acusados, os que
chamaram mais a atenção foram, além de um ou outro de natureza política, os casos em que se envolviam em negócios mal-avindos, em busca de actividades que lhes dessem um suplemento de ganhos.

26. Devemos, no entanto, observar que os oficiais reformados não podem desejar o foro militar com o intuito de ali encontrarem maior benevolência para esta espécie do crimes.
O que eles podem encontrar, no julgamento pelos seus pares, ú melhor compreensão quanto a actos de desforço e de reacção imediata, provocados por ofensas à. própria dignidade pessoal ou à honra do Exército. Em verdade, justo é ponderar as circunstâncias especiais da prática de certos excessos que a lei comum não pode deixar de punir, mas em quo interveio um arreigado conceito do pundonor militar.
É que a psicologia do oficial, adrede formada durante longos anos de estudos e de preparação profissional e sempre condicionada e estimulada pelos próprios regulamentos de disciplina militar, não pode modificar-se subitamente pelo facto de se deixar o serviço activo nas forças armadas.
Podemos dizer, porém -e o relator deste parecer pode testemunhar-, que a longanimidade não ia ao ponto de proteger desordeiros e, em contraposição, os actos de desonestidade, os que enodoam a farda e, nos termos do Código de Justiça Militar, podem mesmo importar a demissão são julgados com serena severidade no foro militar, sejam quais forem os assomos de piedade que provoque a perspectiva de uma família lançada na miséria por culpa do seu chefe.
É certo que os funcionários civis estão também sujeitos à pena de demissão, quando praticarem actos de infidelidade ou de desonestidade para os quais essa pena estiver . cominada. Pode, todavia, haver considerável diferença entre as consequências dos julgamentos no foro civil e no foro militar.

27. Essa diferença estará em que o civil aposentado deixou de ter cargo público. Passa a receber a sua pensão pela Caixa Geral de Aposentações, perde a ligação burocrática com o Ministério a que pertencia o só tem de se lembrar de que o Estado ainda não levantou de todo a mão sobre ele quando, desejando sair para o estrangeiro, tem de se submeter à disposição :- talvez anacrónica e só fundada em motivos de ordem policial - que o obriga a pedir licença para se ausentar durante determinado número de dias, os quais o Ministro das Finanças pode negar ou encurtar.
Desligado do serviço efectivo, os actos desonestos que posteriormente praticar nada têm com a função oficial anterior; não há de que ser dela demitido. O que ele perde é a pensão do aposentação, nos termos do artigo 40." do Decreto n.º 16 669, de 27 de Março de 1U29, se for condenado em pena maior, ou mesmo
em pena correccional. por furto, abuso de confiança, burla, falsidade, atentado ao pudor, ou por outro crime que importe perda de direitos políticos. Esta disposição é aplicável tanto aos aposentados como aos reformados, civis ou militares.
No entanto, para além da perda da pensão subsistirá a possibilidade de ser imposta no oficial reformado a demissão, nos termos do artigo 40.º do Código de Justiça Militar, que se refere aos casos de falsidade, furto, roubo, prevaricação, corrupção, burla e abuso de confiança, seja qual for a pena decretada, desde que o Ministério Público acuse independentemente de queixa da parte.
Esta disposição -aliás mais restrita do que a do Decreto n.º 16 069- aplica-se como efeito de condenação proferida por tribunal competente e a demissão resulta imediatamente da lei, sem necessidade de menção na sentença, como determina o artigo 41.º do mesmo código.
Nestes termos,- se os oficiais do activo ou da reserva podem ser despojados da sua qualidade por sentença de tribunal militar composto de juiz de direito e dois oficiais, sempre com recurso para o Supremo Tribunal Militar - artigo 527-º do citado código-, os reformados o poderão ser por decisão de um só juiz de direito, em processo de polícia correccional e sem alçada para recurso, se se tratar de furto de pequeno valor, pois tal será so tribunal competente».
Não conhecemos disposição que liberte ò reformado da imposição do artigo 40." do Código do Justiça Militar.
Ele, embora passasse a receber a pensão pela Caixa Geral de Aposentações, não perdeu a dependência dos Ministérios militares a que pertence e continua a ter o seu lugar na hierarquia dos graduados, conforme os galões que lhe competem. É este lugar, ou «patente», suo os seus deveres de disciplina, as suas honras militares, são os seus galões, que a demissão atingirá.

28. Com efeito, a demissão importa a perda do direito a haver recompensas ou pensões por serviços anteriores, bem como a caducidade do direito de usar a sua farda e condecorações. Enquanto os reformados não forem demitidos, o Ministro continua a ter sobre eles uma acção cuja natureza se pode avaliar por alguns dos diplomas publicados posteriormente à lei que os subtraiu ao foro militar.
Assim, quase logo a seguir, em 12 de Janeiro de 1937, o Decreto-Lei n.º 28 404 estabeleceu no seu artigo 9.º uma disposição permitindo ao Governo separar cio serviço os oficiais mesmo na situação de reserva ou reforma, declarando-a de carácter permanente e como tal incorporada no Regulamento de Disciplina Militar. Este decreto permite que ao separado seja fixada uma pensão, inferior à que tinha como oficial reformado, e retira-lhe o beneficio da assistência nacional aos tuberculosos do Exército.
Em Ordem do Exército n.º 11, de 31 de Dezembro de
1941. publicou-se:
Os militares reformados, quer ausentes com licença no estrangeiro ou no ultramar português, quer residam no continente, são obrigados a ter sempre ao corrente do seu domicílio a autoridade militar de que dependem ou a correspondente autoridade militar consular, às quais comunicarão todas as mudanças de residência, mesmo que se encontrem em trânsito.
Os Decretos-Leis n." 32 329, de 19 de Outubro de
1942 e 32 655, de 5 de Fevereiro de 1943, aquele para o Exército e este para a Armada, determinaram que:
Nos termos da alínea d) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 30 250, de 30 de Dezembro de 1939, os Ministros respectivos podem, mediante processo disciplinar, impor a separação do serviço ou a demissão aos militares que, independentemente da sua situação na efectividade do serviço, na reserva ou na reforma., estejam sob a alçada do Regulamento de Disciplina Militar.
A função do foro privativo na corporação militar

29. Lançando agora um olhar sobre o conspecto das vicissitudes históricas da jurisdição militar e as oscilações

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dos preceitos constitucionais ou a ambiguidade de alguns destes acerca da natureza e competência dos tribunais de justiça, em confronto com a permanente realidade da existência daquele foro privativo, temos do tirar a conclusão de que estamos em frente de uma instituição de estrutura quase imutável, que se pode dizer intrinsecamente unida à orgânica militar.
Tanto ou mais que os tribunais das espécies administrativa e fiscal na organização civil, o foro milhar é parte integrante do complexo de órgãos que asseguram a feição moral e a consequente disciplina das forças armadas - as quais, por seu turno, se mostram inseparáveis da existência do Estado, seja qual for o seu regime.
O cunho moral, o espirito animador das forças de terra, mar e ar, se tem por base todas as virtudes que exornam um cidadão de bom comportamento, é completado pelos atributos de energia física e de resignação voluntária, de decisão pronta e do obediência passiva, de valentia e de prudência, de desejo de destaque pessoal e de sentimento de solidariedade colectiva, de valor da vida e de desprezo da morte, que, embora vindos em potência do berço familiar, só pela hierarquia dos meios de instrução e dos comandos podem ser despojados do seu aparente antagonismo e conciliados, afinados e graduados para as várias circunstâncias da vida militar.
Afigura-se-nos que também não podemos por de parte o conceito fundamental da hierarquia na solução do problema da atribuição do furo militar aos oficiais reformados.

30. É o foro militar um privilégio da classe ou uma garantia da eficiência profissional?
Parece-nos que não podemos rigorosamente classificá-lo de privilégio. Esta designação ter-lhe-ia sido algumas vezes aplicada mais por sugestão dos privilégios de que gozaram os nobres, os eclesiásticos e até certos mercadores, do que pela verdadeira função dos tribunais militares.
Com efeito, eles desde o princípio julgaram nobres e plebeus, oficiais, sargentos e soldados. Modificava-se a constituição do j Ari, tal como hoje ainda se faz, conforme a graduação do réu, mas a forma de processo era essencialmente a mesma e o mesmo o juiz togado. Havia, e há, o respeito pela hierarquia, mas dentro da organização havia um como que fermento de unidade igualitária que foi esbatendo a diferenciação das penas em relação à qualidade das pessoas e ao modo de as cumprir, estabelecida nas próprias Ordenações do Reino, para só atendei* a escala hierárquica dos postos militares.
Deixou de haver favor à casta, para haver somente respeito à função, enquanto u gravidade do crime não conduzia à degradação ou à expulsão do acusado. Por isso o sistema do foro militar se não apresenta como privilégio, segundo os usos esbatidos do passado. É privilégio tão- somente no sentido de sancionar a situação dos militares como pertencentes a uma classe diferenciada do comum dos cidadãos e que só pode ser julgada pelos seus pares em tribunais privativos, com preceitos e formulários próprios.
Mas isto não é mais que o aspecto superficial, externo, da jurisdição militar, quando a projectamos sobre a planta da organização forense da Nação, pois que, em rigor, só em sentido lato se pode dizer que o militar é julgado pelos seus pares. De facto, ele é julgado sempre por seus superiores, visto que só oficiais podem fazer parte dos conselhos de guerra e hão-de ser sempre de graduação ou antiguidade acima da do réu.

31. No fundo - e já que ele abrangeu indistintamente todos os militares, desde o recruta ao general - este foro privativo tem institucionalmente uma função de garantia indispensável à manutenção do espirito de disciplina, com o reconhecimento, que é fundamental, de uma hierarquia inviolável e a segurança da existência constante, pronta, firme e uniforme de acção educativa, correctiva e repressiva, adequada ao meio em que se exerce.
Logo de inicio, garantia para todos os membros do Exército de justiça mais rápida, mais igual, mais adaptada, em melhores condições de apreciar, pelo directo conhecimento do meio, a responsabilidade do acusado em relação à gravidade da infracção.
Logo depois, a garantia da distinção entre o âmbito da acção disciplinar e o da acção forense, permitindo àquela imediata repressão das infracções de menor gravidade, que, pela natureza e pelo número, poderiam perturbar gravemente o serviço se não fora a intervenção- dos comandos, poupando os infractores às delongas e vexames dos julgamentos públicos.
Por fim, aquela outra garantia expressa nos artigos 0.º, § 1.º, e 427.º a 430.º do Código de Justiça Militar, não idêntica, mas análoga à que actualmente desfrutam as autoridades administrativas.
É de notar que esta garantia, nos termos do artigo 282.º do Código Administrativo, se estende até aos regedores, cabos de ordens e cabos de polícia, ao passo- que os membros da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública estão integrados na justiça militar. Segundo aqueles artigos - excepto nos casos de violação das leis repressivas do descaminho e contrabando e das reguladoras da liberdade de imprensa -, o general comandante da região ou governo militar têm poderes para, terminado o corpo de delito, apreciar os indícios de culpabilidade e, segundo o juízo formado, mandar que o processo seja enviado ao foro militar ou siga a via disciplinar.
Se o arguido for oficial general, esta competência, passa para o Ministro respectivo. Assim se procura evitar que qualquer militar seja retirado da sua função, ou ferido no seu prestígio, por denúncias ou queixas infundadas, ardilosas ou inoportunas.

32. Resta saber se no enquadramento que temos vindo desenhando cabem os militares, ou pelo menos os oficiais, que, por incapacidade fisiológica, por limite de idade ou por disposição legal, passam à situação de reforma.
Nos tribunais militares os oficiais que têm o poder ou atribuição de julgar são os que cá fora teriam o direito ou o dever de, por facto menos graves, aplicar ou promover a aplicação de penas disciplinares, de harmonia com os respectivos regulamentos.
E esses tribunais, apesar da intervenção obrigatória dos auditores, pertencentes ao quadro da magistratura judicial, assumem também poderes disciplinares tão latos como os do Ministro quando, nos termos do artigo 521.º do Código de Justiça Militar, julgarem que o réu é unicamente responsável por factos a que cabe, em vez de pena, mera punição disciplinar - maleabilidade que, se permite graduar as sanções em maior escala, afirma a permanente preocupação de manter a ordem e a disciplina através da hierarquia.
Em verdade, o tribunal privativo - especialmente no tocante aos crimes previstos no Código de Justiça Militar- o prolongamento solene da acção disciplinar em grau mais elevado.
Assim, por exemplo, os furtos ou os abusos de confiança são punidos disciplinarmente quando o valor não exceda 100-5 (artigo 230.º do Código de Justiça Militar), e o militar que desertar é sujeito a graves penas, ainda mais graves em tempo de guerra, no que frisantemente contrasta com o funcionário civil, passível somente de demissão por abandono do lugar.
Há, pois, em todas as manifestações da organização e funcionamento das forças armadas uma consciência

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do destino militar e um correlativo espirito de corpo, que lhes dão o ânimo e a coesão necessários à sua árdua missão nacional.
Trouxemos isto à colação porque a psicologia do soldado - a mentalidade militar - não pode estar ausente do estudo de qualquer tema que lhe diga respeito; mas não é necessário que tiremos apressadas conclusões quanto à situação especial dos oficiais reformados.
E vai ver-se porque.

33. Para que se possa estabelecer um termo de comparação e bem avaliar da corrente de ideias predominantes nos países com que temos especiais relações de aliança e probabilidades de mais estreita cooperação militar convém dar nota da legislação que neles regula a aplicação do foro militar.
Claramente se v5 que em todos domina o espírito liberal que, considerando este foro um regime jurisdicional de excepção, o restringe às necessidades imediatas do serviço militar, que dizem respeito só aos militares
do activo e equiparados.
Brasil- De acordo com o capítulo v, artigo 34.º, letra J, do Estatuto dos Militares são direitos dos militares, o julgamento em foro especial nos delitos militares ».
A expressão «dos militares», tal como é empregada, abrange tanto os do activo como os da reserva e os reformados.
Espanha- A jurisdição militar é competente para conhecer das causas relativas a qualquer espécie de delitos, contra os militares em serviço activo ou na reserva, qualquer que seja a sua situação ou colocação. Quer dizer que não é competente em relação aos militares reformados, os quais ficam sujeitos ao foro civil.
Excepcionalmente, os militares no activo ou na reserva são julgados pelo foro comum, tratando-se das seguintes infracções:
1.º Atentado ou desacato a autoridades não militares.
2.ª Falsificação ou passagem de moeda e notas de banco.
3.º Falsificação de assinatura, selos, marcas, valores selados do Estado, documentos de identificação, passaportes, salvos-condutos, ofícios, telegramas e documentos públicos que não sejam dos usados e expedidos poios comandos, autoridades e serviços militares.
4.ª Adultério, estupro, aborto e abandono de família.
5.ª Injúria e calúnia que não constituam delito militar.
6.ª Infracção das leis aduaneiras, de abastecimento, de transportes, de contribuições e impostos ou dívida pública, salvo o caso de a infracção estar punida no Código Militar ou ser especialmente atribuída à jurisdição militar.
7.º Os cometidos por meio de imprensa que não constituam delito militar.
8.º Os cometidos pelos militares no exercício de funções civis ou por motivo delas.
9. Os delitos comuns cometidos durante a deserção, salvo o caso de a jurisdição militar ser competente por outro motivo.
10.ª Os cometidos antes de o culpado pertencer ou prestar serviço nos exércitos de terra, mar e ar, em qualquer qualidade.
11.º As contravenções aos regulamentos de polícia e as faltas comuns não previstas especialmente no Código de Justiça Militar e em outras leis ou regulamentos militares ou em ordens de serviço das autoridades militares, salvo o disposto na segunda hipótese do artigo 7.º do citado código (que se refere às faltas comuns cometidas por militares quando afectem a boa ordem dos exércitos ou o decoro dos seus membros).
12.ª Todas as infracções que, não estando incluídas no Código de Justiça Militar, sejam expressamente reservadas pelas leis de jurisdição dos tribunais ordinários ou especiais, soja qual for a condição das pessoas que as cometem.
Reino Unido - Os oficiais estão sujeitos ao foro civil quando reformados ou passados à reserva.
O Naval Discipline Act, que regula os tribunais navais e outros processos de legislação naval, apenas se aplica aos oficiais que estão realmente ao serviço com vencimentos por inteiro.

II

Conclusão

34. Em vista do exposto, a, Camará Corporativa, embora reconheça a conveniência de se ter chamado a atenção para a complexidade do assunto, é de parecer, por se tratar de matéria sujeita divergência de critérios e até diferentemente regulada através da história da nossa legislação criminal, que não será Oportuno tomar sobre ela uma decisão, enquanto se não proceder à revisão geral das disposições do Código de Justiça Militar, segundo uma orientação de conjunto, na qual este pormenor apareça devida e harmónicamente integrado.

Palácio de S. Bento, 11 de Fevereiro de 1955.

Júlio Carlos Alves Dias Botelho Moniz.
Frederico da Conceição Costa.
José Viana Correia Quedes.
Inocência Galvão Teles.
José Augusto Vaz Pinto.
José Gabriel Pinto Coelho.
Adelino da Palma Carlos.
Afonso de Melo Pinto Veloso, relator.

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PARECER N.º 18/VI

Proposta de lei n.º 21

A Câmara Corporativa, consultada nos termos do artigo 103.º da Constituição acerca da proposta de lei n.º 21, emite, pelas suas secções d« Electricidade e combustíveis e de Autarquias locais, às quais foram agregados os Dignos Procuradores José Augusto V az Pinto e Luís Supico Pinto, sob a presidência do Digno Procurador 2.º vice-presidente da Câmara, o seguinte parecer:

Apreciação na generalidade

1. Uma das mais consoladoras realidades económicas da vida da Nação, neste período que se atravessa, com início no findar da última guerra mundial, é inquestionavelmente a do abastecimento do País com energia eléctrica, produzida principalmente pelo aproveitamento crescente doa recursos nacionais hidráulicos.
O fenómeno - tem de classificar-se assim o conjunto de factos que permitiu atingir em 1954 uma produção hidroeléctrica sete vezes maior que a obtida dez anos antes - teve a sua origem e desenvolveu-se num ambiente e numa época recheados de circunstâncias favoráveis, todas contribuindo para tão rapidamente se alcançar uma posição que, embora continue a ser das mais modestas, no Mundo de avançada electrificação, não tem confronto de nenhuma ordem com aquela quase insignificante em que por largos anos o País se debateu.
Confirmam estas palavras as estatísticas internacionais, que indicam andar por 1000 kWh o consumo anual por habitante em quase todos os países do Centro da Europa e a estatística nacional, que é reproduzida nos números do quadro seguinte:

(Ver tabela na imagem)

Se se considerar, como atrás se deixou entender, o ano de 1940 como final da época antiga, diga-se assim, ou início da nova era, o quadro mostra - independentemente da influência que nele tem o facto de não ser constante o número representativo da população - que a evolução do consumo é muito lenta no decénio 1935/1945 e suficientemente rápida no de 1945/1955, sobretudo no último lustre correspondente à época de entrada ao serviço dos primeiros grandes aproveitamentos dos nossos rios para que no período de vinte anos considerados se possa verificar no nosso país a regra tão penetrantemente enunciada por Ailleret de dobrar p consumo em cada período de dez anos.
Como esta tendência mundial se confirma estatisticamente em países de fraca ou forte electrificação, pode concluir-se que o esforço feito nos últimos anos em matéria de produção e transporte de energia, não só nos permitirá manter num período de vinte anos a média mundial de evolução dos consumos, facto só por si digno de relevo, como permite as mais fundadas esperanças de atingir-se melhor posição internacional, se o ritmo do último lustro puder ser sustentado por mais um ou dois.
A origem do fenómeno, como atrás se lhe chamou, reside na promulgação, em Dezembro de 1944, da Lei n. 2002, conhecida por Lei de Electrificação Nacional, documento que ficará como marco milenário na história da electrificação portuguesa.
Com base na estrutura jurídica e económica desta lei, o Governo impulsionou de maneira notável os sectores da produção e transporte de energia, obra que a Nação apoiou com entusiasmo e acolheu com a consciência e a esperança de ela vir suprir deficiências que tanto atormentavam a vida económica e social do País.
Com efeito:
Saía-se de um período de guerra em que, apesar de não envolvida, a Nação sofreu profundamente alguns dos seus reflexos.
Tais reflexos demonstraram, por vezes, a dependência exagerada do estrangeiro em que viviam alguns sectores da economia nacional e esteve em evidência o da produção de energia.
Esta, no Norte do País, escasseou pela insuficiência de potência e, sempre que ta características do período atravessado eram desfavoráveis à produção hidráulica, não houve mais remédio que impor, por vezes, severíssimas restrições de consumo.
No Centro do País, quantas vezes esse abastecimento esteve à mercê da quantidade e qualidade do carvão importado e, sobretudo, cio seu preço-?
A inter ajuda de regiões foi inexistente, por impossível, devido à falta de rede- de interligação e transporte.
Por outro lado, na indústria, no comércio e no lar tinha sido, durante o período de guerra, feita a demonstração irrefutável dos enormes benefícios do emprego da electricidade em larga escala.
Por isso a opinião pública aplaudia convictamente a decisão do Governo, pelo fé que depositava no valor da obra.
Os primeiros resultados foram tão animadores, as previsões feitas tão feliz, e largamente ultrapassadas, as perspectivas futuras tão ricas de promessas, que levaram o Governo a dar lugar de primazia, pelo seu vulto, no Plano de Fomento aos investimentos a realizar na indústria da electricidade.
Que tal orientação mereceu o aplauso desta Câmara, da Assembleia Nacional e de todos os portugueses é facto que pertence à história recente deste país, pelo que se torna inútil relembrá-lo.
2. Pêlos financiamentos realizados em aplicação dos princípios da Lei n.º 2002, logo após a sua promulgação, pelas previsões de investimentos contidas no Plano de

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Fomento em marcha, pode deduzir-se que, no complexo da electricidade nacional, os sectores da produção e transporte se encontram devidamente dotados para que este país possa ver assegurado o seu futuro abastecimento de energia eléctrica nas condições permissivas do progresso constante do seu uso, como ocorre em toda a parte.

Aliás é sabido de todos hoje que não basta produzir e transportar, pois a técnica e a economia de tais operações são inadequadas não só às utilizações mais vulgares e frequentes da corrente eléctrica, como a sua difusão pela superfície do território nacional.

E essa difusão é indispensável, pois para 99 por cento dos utilizadores da energia eléctrica, é esta que procura aqueles, e não aqueles que se deslocam para junto desta.

Se o sucesso e desenvolvimento do uso da electricidade se explicam pelas virtudes próprias desta forma de energia, é, com certeza, primordial neles a influência da facilidade e comodidade da sua distribuição, que permite utilizá-la em qualquer recanto sem as sujeições, por vezes irremovíveis, que nutras fontes de energia, como a lenha, o carrão, o petróleo, etc., apresentam.

Isto significa que o sector da distribuição de electricidade é, pela sua missão, tão importante como o da produção ou transporte, formando todos um conjunto

cujo desenvolvimento harmónico tem de verificar-se para que a colectividade obtenha da obra feita ou do dinheiro gasto o maior rendimento possível.

Ter centrais porá produzir energia e não ter linhas para a transportar já toda a gente sabe que não está bem.

Até já se sabe que é preciso ter linhas para interligar as diferentes centrais.

Mas ter uma coisa e outra e não ter redes de distribuição que possam entregar u todos os portugueses a energia produzida e que lhes faz falta para as suas actividades industriais, comerciais, agrícolas, artesanais, domésticas, etc., é aleijar o conjunto, impedindo-o de dar todos e talvez os melhores dos seus frutos, e a perfeita noção de que assim é parece não ressaltar ainda tão firme e evidente à consciência dos portugueses como as duas primeiras.

O esforço feito em centrais e transporte dará menor, muito menor rendimento à colectividade nacional, se não se verificar o correspondente e harmonioso desenvolvimento do sector da distribuição.

A confirmação insofismável do que se afirma encontra-se nos números do quadro seguinte, que estabelecem uma relação entre os investimentos de vários países nos três sectores considerados:

(Ver quadro na imagem)

E para dar uma breve ideia da importância em valor absoluto do sector da distribuição, acrescenta-se que a despesa inglesa andou por 40 milhões de libras e a americana por 1290 milhões de dólares.

Mais importante ainda é o facto do se verificar ao longo de muitos anos o quase paralelismo destes investimentos e só assim, como .atrás se disse, o complexo eléctrico pode fornecer todo o seu rendimento.

Não consta de documentos oficiais o que o País tem feito no sector da distribuição e só agora o Plano de Fomento inscrevo previsões de investimentos para tal efeito, previsões cuja modéstia esta Câmara já teve ocasião de apreciar (vide parecer da secção de Electricidade sobre o Plano de Fomento) e que praticamente não se concretizaram além do que representa a concessão de comparticipações pelo Fundo de Desemprego, cujo valor o que consta dos números do quadro seguinte:

Pode assim concluir-se que o sector da distribuição está muito atrasado em relação aos outros dois e que esse atraso se agravará caso não se lhe dedique aquele somatório de esforços e capitais em proporção com o que se faz na produção e no transporte.

Pela analiso dos números citados e do que se escreveu, a situação de atraso do sector da distribuição já devia ser mais saliente aos olhos da Nação, e parece interessante explicar, de forma muito concisa e breve, porque o não é na escala devida, a fim de cada um melhor se preparar para acolher, compreendendo, que em matéria de distribuição o País precisa de fazer um esforço enorme se quiser tirar da electricidade que está em vias de produzir - todo o proveito material e social, semelhantemente ao que acontece nos países já avançados neste ramo de economia.

Duas ordens de razões fazem menos aparente a deficiência da distribuição. As (primeiras derivam do facto de os investimentos iniciais na produção e transporte, por grandes que tenham sido, se destinarem principal-

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mente, não a aumentar a produção, mas a substituir a de origem térmica por hidráulica, e compreende-se que tal substituição não exigia aumento de ritmo nos investimentos da distribuição.
Mas, mesmo tendo em conta o facto, a estatística mostra que, com a realização dos aproveitamentos entrados já ao serviço, a produção total de energia evoluiu da forma seguinte:
1945 - 545 milhões de kWh; 1950-941 milhões de kWh; 1954- 1650 milhões de kWh (número aproximado);
evolução que infalivelmente exigia do sector da distribuição uma ampliação notável da sua capacidade.
Esse aumento de capacidade, que melhor ou pior até agora correspondeu ao aumento de produção, fui criado por investimentos que, sob o ponto de vista de economia eléctrica, são relativamente pouco importantes, feitos pela indústria electro química, grande utilizadora, que em 1954 consumiu, excluindo as perdas de transformação e transporte, qualquer coisa como 240 milhões de kWh, ou seja quase 35 por cento do acréscimo da produção de 1950 para 1954, e pelos investimentos realizados por alguns grandes distribuidores e distribuidores urbanos dentro das respectivas concessões, investimentos levados a efeito ou porque eram imediatamente rendosos por si ou porque correspondiam a uma política e u um espírito de equidade inerentes ao conceito de serviço público, e que, embora viessem reduzir o já escasso rendimento da (respectiva exploração, eram ainda comportáveis dentro do estrito equilíbrio financeiro e económico legalmente exigível a certa natureza de organismos distribuidores.
Para- se dar uma ideia quantitativa da importância dos investimentos efectuados ultimamente no sector da distribuição, indica-se que o valor anual dos realizados por três dos maiores distribuidores andou em média por 60 000 contos no período de 1950, inclusive, a 1953.
Poderá dizer-se então que o aumento de produção hidroeléctrica até agora verificado teve completo escoamento através de três caminhos principais: substituição de energia térmica por hidráulica; utilização em larga escala pela indústria electro química; aumento de capacidade da rede de distribuição, que, como se vai explicar, se verifica sobretudo nas regiões que constituem mercado rendoso para o respectivo concessionário, dada a densidade da sua população e o grau e natureza da sua actividade.

3. O texto do relatório da proposta de lei agora em apreciação, ao dizer que a obra de electrificação nacional tem, contudo, objectivos saciais mais ambiciosos porque pretende levar a energia a todas as freguesias e, logo que for possível, a todas as povoações ou locais onde vivam ou trabalhem os portugueses, deixa claramente suspeitar que tais objectivos estão muito longe de serem atingidos.
Já no relatório da proposta de lei de electrificação nacional, tornado público há mais de dez anos, se chamava a atenção para este aspecto da electrificação.
O relatório do Plano de Fomento em execução dedica ao assunto largas e judiciosas considerações e o parecer desta Câmara sobre o referido Plano faz-lhe igualmente os seus comentários.
Estas citações demonstram que as preocupações vêm de longe, que o assunto da pequena distribuição, sobretudo rural, é de importância social transcendente para o País, e, mais que tudo, que se tem caminhado devagar para se alcançar unia situação aceitável.
O atraso, sobretudo nalgumas regiões do País, é confrangedor.
A confirmação numérica destas palavras pode ser dada pelos índices dos quadros segui ates, elaborados com base na última estatística publicada referente ao ano de 1953.

(Ver quadro na imagem)

Não necessitam de grandes comentários os números apresentados para realçar a pobreza da difusão da electricidade pelo território nacional e as suas consequências.
Com efeito, apesar de se estatisticamente se poder dizer que está servida 70 por cento da população continental, apenas 37 por cento das freguesias em que se subdivide a metrópole dispõem de alguma energia eléctrica, sabe Deus, por vezes, em que condições e a que preços.
O consumo por habitante, que, na média geral do País, já se apontou como Aos mais reduzidos da Europa, desce verticalmente do valor 146,3 para o número insignificante de 14,6 kWh no distrito de Bragança.
Não é aceitável realmente a posição actual, que, ainda para maior mal, só muito vagarosamente foi atingida, como se pode concluir do quadro seguinte:
Num período de quase vinte anos electrificaram-se apenas 767 freguesias e, sem que se possa dizer que só se electrificaram aquelas que era mais fácil, técnica e economicamente, fazê-lo, não deve pecar de pessimismo excessivo a afirmação de que levaria ainda sessenta anos a acabar um programa dê dotar com energia eléctrica as freguesias do continente, caso o ritmo da obra tivesse de seguir o que até agora se tem verificado.
A explicação da marcha lenta da electrificação é só uma: falta de rendimento próprio das instalações a criar, derivado do seu elevado custo e da sua fraca utilização, factos que fazem desinteressar dela não só o concessionário entidade privada como até o de natureza pública.

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É no sentido de acelerar a cadência das realizações, procurando em muitos casos eliminar ou atenuar a referida falta de rendimento das instalações, que o Governo se dispõe através da lei a aumentar de fornia apreciável, quer o valor relativo de cada comparticipação, quer o seu valor global, a fim de que no território nacional todos os portugueses tenham possibilidades de usufruir o quinhão de benefícios que lhes corresponda no aproveitamento das riquezas pertencentes à Nação.

4. Para poder prosseguir, com a lógica devida, o exame da proposta de lei, quer nos seus princípios informadores, quer no alcance das suas disposições, parece conveniente, embora de forma breve, equacionar o problema a resolver, pois só assim se lhe poderão encontrar as soluções, geralmente de compromisso,' que melhor satisfaçam as características, por vezes antagónicas, de alguns dos seus aspectos.

a) Neste país como noutros, a necessidade e urgência da difusão da electricidade até aos mais pequenos meios rurais deriva principalmente de duas ordens de conveniências: uma de natureza social e política, de fomentar o bem-estar, o conforto e o progresso das populações mais desprotegidas e atrasadas, criando-lhes mais propícias condições de vida e, portanto, de fixação à terra, atenuando-se por esta forma o êxodo paru as cidades, que não é felizmente extraordinário entre nós por falta de um maior grau de industrialização; outra de natureza económica, no sentido de melhorar o rendimento do trabalho e a produtividade dos campos, que nestas regiões mais afastadas e menos dotadas pela natureza é geralmente muito fraca, u custa de uma. evolução técnica importante e com uma redução apreciável do esforço penoso que lautas vezes o indivíduo tem de desenvolver.
Entre a insuficiência e desconforto de uniu luz de candeia e o brilho e comodidade de uniu lâmpada eléctrica, entre a pausa e ineficiente cegonha paru. irrigar um palmo de terra e a facilidade e rendimento da um pequeno grupo aquecimento, entre as incertezas da meteorologia e a esterilização e aquecimento do solo pela electricidade, há uma diferença enorme que em toda a parte se procura afanosamente fazer desaparecer ;
b) A dificuldade do problema reside principalmente no seu aspei-to económico.
Com efeito, o estabelecimento de redes rurais è uma operação cara pela disseminação dos consumidores, pelo seu pequeno número e pelo seu reduzido consumo.
Ao passo que numa distribuição urbana é possível chegar a números bastante superiores a 100 consumidores por quilómetro da linha, com consumos específicos que no caso do Porto roçam por 2000 kWh, nas redes rurais é frequente esse número descer a valores inferiores a um décimo dos apontados nos casos já favoráveis e a menos de metade ainda de tais valores nos casos menos favoráveis.
Com índices destes chega-se, por vezes, e há-de chegar-se em muitos dos casos que falta electrificar, a explorações de saldo negativo, mesmo reduzidos ao mínimo os encargos de capital para criar as referidas redes.
Parece portanto que, paira desenvolver e realizar a electrificação rural, não bastará financiar o seu estabelecimento, mas haverá que providenciar sob os seguintes aspectos, todos tendentes a tornar a obra mais fácil, mais eficiente e mais perfeita:
1.º Encontrar a fórmula mais económica de financiar a obra, que em toda a parte parece ter de realizar-se através de subsídios do Estado,
da participação das entidades distribuidoras e da ajuda maior ou menor dos directamente beneficiários e interessados. Só este conjunto de esforços permite uma rápida expansão;
2.º Embaratecer o custo do 1.º estabelecimento através duma apurada organização técnica, duma simplificação de regulamentos no sentido de se reduzir ao mínimo compatível com a segurança das instalações as actuais exigências, duma normalização de tipos de materiais e projectos para permitir o fabrico de andes séries, dum planeamento de trabalhos em grandes conjuntos que permitam tirar todo o rendimento dos princípios enumerados e acelerar o ritmo da obra tão vasta que há a efectuar;
3.º Fornecer uma- base económica à respectiva exploração, que lhe permita pagar a correspondente quota-parte do investimento, garantir a sua conservação e ampliação normal e praticar tarifas aceitáveis, pelo que está indicado agrupar em conjuntos importantes a multidão de pequenos distribuidores, financiar as instalações dos consumidores e fomentar as aplicações mais imediatamente rendosas do emprego da energia eléctrica pelo consumidor rural, quer na sua vida doméstica, quer na sim actividade agrícola.
Antes de prosseguir, vejamos em breves apontamentos o que nesta matéria ocorreu e está ocorrendo em alguns países da vanguarda:

América do Norte

Desde quase o princípio do século que começou a preocupação da electrificação rural. Aponta-se como primeira realização o estabelecimento em 190!), pula companhia Puget Sound Power and Light, de uma linha exclusivamente destinada ao serviço de algumas herdades. O desenvolvimento de serviço rural foi muito lento pelas razões que em toda a parte se verificam: falta de rendabilidade e grandes capitais a investir.
Por alturas de 1923 apenas 3,2 por cento das herdades dos (Estados Unidos dispunham de corrente eléctrica. A partir de 1923 ale M)3õ o desenvolvimento da electrificação rural foi acelerado pela criação do Comittee on the relation of Electricity to Agriculture (C. R. E. A.), calculando-se em 11 por cento a percentagem de herdades electrificadas nesta última data.
Em 1935 o presidente Roosevelt criou a célebre R. E. A. (Rural Electrification Administration), com a- finalidade de impulsionar decisivamente a electrificação dos meios rurais, criando oportunidades de trabalho á indústria, aumentando a produtividade dos campos, fixando à terra as respectivas populações, atraídas pelo desenvolvimento dos grandes centros urbanos.
O que foi a acção deste organismo pode apreciar-se pelos seguintes números:
Começando a trabalhar em 1936, em 1941 a percentagem das herdades electrificadas tinha subido para 30 por cento, o número de consumidores, que era de 86 000 em 1937, passava para 1 200 000 em fins de 1941; no fim do ano fiscal de 1940/1941 o valor dos empréstimos concedidos pela R. E. A. ascendia a 374 milhões de dólares.
Em 1954 os números representativos da acção deste departamento são os seguintes:
Valor total dos empréstimos concedidos desde o início - 2940 milhões de dólares.

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Consumidores ligados - 4 176 000.
Energia vendida - 18 820 milhões de kWh.
Consumo específico - 4031 kWh.
Percentagem de herdades electrificadas - 90.

Chama-se a atenção para o valor do consumo específico, que é quase metade do número geral do país mais industrializado do Mundo (8100 kWh) e 80 por cento superior ao dos consumidores domésticos urbanos, que dispõem do mais alto standard de vida que há conhecido.
A R. E. A. tem actuado, sobretudo, da seguinte forma:
Fomentando a constituição de cooperativas, algumas das quais chegam a ter mais de 20 000 consumidores. A cooperativa é uma associação de interessados rurais estabelecida com a finalidade de fornecer energia aos seus membros, ao mais baixo preço, tornado possível pela inter ajuda e pelo financiamento, fiscalização e orientação da R. E. A.
Estes cooperativas eléctricas diferem das outras cooperativas por serem quase integralmente financiadas pelo Governo federal e fiscalizadas e assistidas no seu estabelecimento e exploração.
Os empréstimos silo concedidos a juro baixei, para serem amortizados em vinte e cinco anos, podendo o pagamento de juros ser diferido por período não superior a trinta meses, para ter em conta o pequeno rendimento
das novas redes nos primeiros tempos da sua exploração.
Os financiamentos feitos pela R. E. A. podem estender-se também à execução daí. instalações dos consumidores e até ao fornecimento da aparelhagem, para aumentar o emprego da energia eléctrica, forma mais eficaz de tornar positivos os resultados de exploração das instalações realizadas.
Resumindo: o método americano, que de maneira tão rápida fez desenvolver a electrificação rural, parece assentar na base de que ela só deve realizar através da criação de cooperativas de consumidores, a quem é feito o financiamento quase integral dos investimentos, financiamento reembolsável a juro baixo s num período de vinte e cinco anos, prestando-se a essas cooperativas toda a assistência técnica, comercial e administrativa que exija o desenvolvimento da sua actividade.
Estes empréstimos tombem podem ser concedidos a outros organismos públicos ou privados, mas sempre com a interferência marcada da R. E. A. em todos os aspectos da actividade.
No início do seu programa, a E. E. A. começou por financiar as próprias empresas privadas, com a esperança de mais rapidamente pôr em marcha a obra.
Os resultados não foram animadores porque tais empresas não se interessavam ncan pelo serviço nem pelos empréstimos, que acarretavam a interferência da R. E. A. na sua actividade privada. Indica-se, meramente a título exemplificativo, a distribuição dos empréstimos concedidos pela R. E. A. de ide 1930 a 1941, segundo a natureza das entidades e a (finalidade dos mesmos:

(Ver tabela na imagem)

Acrescenta-se, para finalizar, que, quando se atingem consumos específicos de 4000 kWh por consumidor, as instalações não só se pagam a si próprias, por fraca que seja a densidade dos consumidores e baixas as tarifas de electricidade, como dão lucros, embora pequenos, o que é confirmado pelos seguintes dados estatísticos:

Lucros das explorações financiadas pela R. E. A.

(Ver tabela na imagem)

Inglaterra

Desde longa data que é preocupação nacional a questão da electrificação, rural.
Em 19,26 os comissários da electricidade, prevendo as facilidades de distribuição que a criação da célebre Grui pela Central Electricity Board iria proporcionar, organizaram um congresso de eletrificação rural, verificando-se por essa poça que apenas 1770 herdades dispunham de abastecimento de energia através duma ligação a uma rede de distribuição.
O desenvolvimento deste tipo de electrificação foi bastante lento pelas razões de sempre: falta de rendimento dos grandes capitais necessários.
Em 1947 a Inglaterra nacionalizou o conjunto da indústria eléctrica, e a posição atingida nessa altura em matéria de electrificação rural era aproximadamente a seguinte:
Número de herdades electrificadas - 80 61.10.
Percentagem em relação ao total - 30.
Número de casas aias áreas rurais ligadas às redes - l 100 000.
Percentagem em relação ao total - 55.
Energia vendida ao, consumidores rurais - 248 milhões de kilowatts- hora.
Número de consumidores - 139 000.

A lei da nacionalização de 1947 explicitamente indicava a obrigação dos Área Boards - organismos a que incumbe a distribuição de energia eléctrica em cada uma das catorze zona» em que foi dividido o país- de levarem tão longe quanto possível o desenvolvimento dos fornecimentos nas áreas rurais.
Nos seis anos da sua existência - 1948-1954 - a British Electricity Authority (B. E. A.), lutando contra todas as dificuldades que a guerra e o pós-guerra lhe criaram, procurou cumprir a sua missão, e os Área Boards ligaram 62 000 novas herdades e mais umas 400 000 casas dispersas nas áreas rurais, acelerando desta forma consideràvelmente o ritmo que se tinha verificado antes da nacionalização.
O sexto relatório anual de B. E. A. - 1953-1954 - fornece os seguintes números:
Número de consumidores rurais - 152 000. Consumo de energia - 779 milhões de kilowatts--hora.

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À medida que foram desaparecendo limitações de vária ordem, como a insuficiência de produção, do transporte e grande distribuição, a B. E. A., no seguimento da política traçada, iniciou em 1953 um programa de electrificação rural, a efectuar num período de dez anos e que prevê o dispêndio de 130 milhões de libras, dos quais 100 para as redes rurais e 30 para a produção, transporte e grande distribuição da energia correspondente.
Este importantíssimo plano, dividido em duas fases, de cinco anos cada, comporta na primeira fase:

Ligação a redes de 60 000 herdades.
Ligação a redes de 265 000 casas das áreas rurais.
Despesa prevista de 50 milhões de libras.

No segundo período prevê-se:

Ligação a redes de 45 000 herdades.
Ligação dum correspondente número de casas dispersas.
Despesa prevista de 50 milhões de libras.

A estas duas verbas há que juntar os 30 milhões para produção e transporte.
Em 1063 a Inglaterra pensa ter ligadas às redes rurais aproximadamente 85 por cento das suas herdades e casas dispersas, considerando que os 15 por cento que ainda lhe virão a faltar serão casos muito difíceis, que terão de ser estudados à parte.
Este programa foi iniciado e está em marcha para o primeiro período, sendo o seu financiamento assegurado pela Central Authority e pelos Área Boards, conforme a natureza das instalações a realizar, sem recurso a subsídios do Estado, pelo que se conclui que a obra a efectuar é no fundo financiada pelas receitas gerais da venda de electricidade, solução só possível pela nacionalização integral da indústria eléctrica.
Ao fim do primeiro período será revista a situação financeira de cada Área Board s estes ajudados pela transferência de fundos da Central Authority e pelos ajustamentos tarifários necessários, de forma a repor o equilíbrio económico de cada um, pois está verificado que o plano, sobretudo nos primeiros anos da sua execução, dará infalivelmente prejuízo.
Numa recente publicação da R. E. A., dedicada exclusivamente à electrificação rural, lê-se que o processo mais eficaz de fazer desaparecer esse prejuízo consiste em fomentar o uso da electricidade, não só na parte doméstica da vida rural, como nos trabalhos agrícolas propriamente ditos. Um grande esforço de propaganda se está fazendo em uníssono com as associações de agricultores, com o Ministério da Agricultura, etc., para que se atinjam consumos específicos elevados, que permitem eliminar o saldo negativo de tais redes.
Resumindo: o plano inglês comporta o investimento notável de 130 milhões de libras, financiado pelos recursos fornecidos pela venda geral de energia.
Para isso os Area Boards são os executantes do plano dentro das limitada sua jurisdição, revendo-se no Hm do primeiro período de cinco anos a situação económico- financeira de cada um para atenuar os prejuízos que a sua execução infalivelmente acarreta nos primeiros anos de exploração.
A título de informação, acrescenta-se que cada Área Board distribui uma a seis vezes a energia que o nosso país consumiu em 1953.

França

Desde há muitos anos que é preocupação do país a sua electrificação rural.
Reconhecendo-se, por um lado. que o nível baixo de consumo nos meios rurais nunca praticamente permitiu aos respectivos concessionários financiar por si sós as redes rurais de distribuição de energia eléctrica, e, por outro, a necessidade absoluta para a França de realizar a electrificação rural, o Parlamento votou a Lei de 2 de Agosto .de 1933, que permitiu ao Estado financiar os trabalhos correspondentes, sob certas condições.
Essas condições têm variado muito ao longo destes trinta anos, mas podem apontar-se como características fundamentais do sistema existirem três origens diferentes de financiamentos:
Subsidio do Estado. - Só concedido a colectividades públicas, em que o montante de cada subsídio é determinado em cada ano segundo tabelas aprovadas tanto para a alta como para a baixa tensão, podendo no máximo atingir 50 por cento.
Empréstimos a longo prazo pela Caixa Nacional de Crédito Agrícola. - Ó prazo máximo dos empréstimos não pode ultrapassar quarenta anos e o juro não pode ir além de 3 por cento. O montante dos empréstimos não pode exceder duas vezes o capital reunido pelas colectividades interessadas e efectivamente realizado. O juro e a amortização dos empréstimos têm de ser garantidos pelos departamentos ou pelas comunas devidamente autorizadas por deliberação legal.
Participativo do Fundo de Amortização dos Encargos de Electrificação Rural. - A. partir de Janeiro de 1937r foi criado este Fundo, para aliviar os encargos das comunas derivados da electrificação, medida ainda recentemente considerada de largo alcance no desenvolvimento da electrificação rural pelo chefe do serviço comercial nacional da Electricité de France, no recente Congresso da Economia Alpina.
Este Fundo é essencialmente alimentado por uma contribuição anual sobre as receitas de distribuição da energia eléctrica em baixa tensão, que é de 2,8 por cento para as comunas com mais de 2000 habitantes e de 0,56 por cento para as que têm menos de 2000 habitantes. Esta contribuição rendeu na energia vendida pela E. D. F. em 1953 2198 milhões de francos.
Estes métodos permitiram financiar em 1953 a construção de novas linhas e reforço das instalações existentes a titulo de electrificação rural:

Trabalhos novos:

Linhas de média tensão . 3193 Km
Linhas de baixa tensão . 11900 Km
Postos de transformação. 2825

Reforço de instalações:

Linhas de média tensão ..... 3 191 km
Linhas de baixa tensão ..... 3 722 km
Postos de transformação .... 1 020

Com esta acção persistente pode dizer-se que 90 porcento das comunas francesas dispõem hoje de energia eléctrica.
Todavia, subsiste o enorme problema do reforço e conservação destas redes, e só através de um aumento considerável de consumo específico se podem criar as condições económicas capazes de resolver tal problema.
E neste sentido que duas ou três experiências estão sendo levadas a efeito pela E. D. F. a título de demonstração, desenvolvendo ao máximo o emprego da electricidade em todas as possíveis aplicações, constituindo tais aldeias como que um tipo- piloto de futuros desenvolvimentos. Numa das primeiras, a aldeia de Maguet (Allier), o consumo específico de cada um dos 48 consumidores passou de 171 kWh em 1938 para 1320 em 1950.

Outros países

Na Áustria foi iniciado em 1945 um novo plano de electrificação rural com importante ajuda do Plano

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Marshall e para o qual contribuem o Governo Federal, as províncias e os consumidores.
A média da despesa de ligação de cada herdade foi calculada em 10 000 xelins e a percentagem de electrificação atinge actualmente 72 por cento.
Na Finlândia foi estabelecido em 1947 um plano de electrificação rural, prevendo a criação de oito sociedades colocadas sob o controle do 'Ministério da Indústria, para as regiões deficientemente electrificadas.
De 1947 a 1951 a percentagem de herdades electrificadas passou de 50 a 61 por cento.
Na Itália a Lei de 25 de Julho de 1902, limitada às zonas de montanha, pôde em certos casos permitir a ajuda do Estado na percentagem de 84 a 92 por cento.
Na Noruega o Estado concedeu de 1938 a 1952 160 milhões de coroas de créditos para electrificação rural; depois deste ano todo o kilowatt-hora vendido é agravado de uma taxa de 0,1 ore, destinada a cobrir em grande parte o montante da ajuda financeira aos trabalhos desta natureza.
Na Holanda a política das organizações provinciais de produção e distribuição de energia em matéria de electrificação rural levou à constituição de um fundo para financiar as instalações de rendimento insuficiente.
Classificam-se como tais aquelas cujas receitas são inferiores a 12 por cento das despesas de construção.
Para o caso de um rendimento previsto de 5 por cento o financiamento é assegurado da seguinte forma:

(Ver tabela na imagem)

Às citações que se fazem mostram bem a diversidade de critérios e soluções adoptadas nos diferentes países, verificação que levou o grupo de especialistas das Nações Unidas, que elaborou recentemente um notável relatório sobre electrificação rural, a escrever, depois de examinar o panorama geral da Europa Ocidental:
L'électrification rurale, dês quelle s'étend à l'ensenible du pays, est influencée par Ia politique économique et sociale de cê pays et il n'est pás possible de fixer à priori dês règles valables en tous lês cãs. ,

Quer-se chamar a atenção para mais um aspecto ligado intimamente com a intensificação do uso da energia eléctrica, ainda por focar e omisso, por motivos óbvios, nas citações que se fizeram de vários países estrangeiros.
Está o País fazendo um esforço enorme para produzir, transportar e distribuir energia eléctrica de origem nacional, digamos assim.
No entanto, para a utilizar, a maioria da aparelhagem é de fabrico estrangeiro. Para avaliar a sua importância indica-se como superior a 100 000 contos o valor de tal aparelhagem ligada à rede de uma grande cidade.
Ora, se grande parte dessa aparelhagem for de origem nacional - e pode sê-lo -, não só será mais fácil adquiri-la como aumentará em larga escala as possibilidades de trabalho de uma nova grande indústria, capaz de assegurar ocupação a muitas centenas de portugueses. As razões óbvias por que nos países estrangeiros este aspecto não foi citado é porque todos eles fabricam tudo o que precisam.
Seria medida de grande utilidade económica fomentar e, até já, disciplinar a indústria de fabricação de aparelhagem, tão precisa ao largo uso da energia eléctrica nacional.
A apreciação que se fez do problema, com a brevidade que o tempo concedido impou, obrigou a deixar ainda na sombra várias questões importantes, como as que dizem respeito u protecção de pessoas e animais nos meios rurais electrificados, ao exame comparado de regulamentações técnicas e administrativas em diversos países, que pudesse orientar as nossas realizações futuras, ao estudo das tendências da evolução dos consumos rurais por qualidade de utilizações, à propaganda a desenvolver e à formação profissional dos futuros utilizadores, e sobretudo à influência da electrificação rural na vida do agricultor u no rendimento da agricultura.
Sobre este aspecto escreveu Cameron Browu, técnico especialista da electrificação rural na B. E. A. e eleito em Dezembro de 1954 vice-piesidente do grupo de trabalho da electrificação rural do 'Comité de Energia Eléctrica das Nações Unidas:
Quando a electricidade é posta à disposição da agricultura, não sob a forma «corrente- luz», mas sim «corrente- força», permite à lavoura manipular alguns dos seus produtos, valorizando-os, ou, como dizem os Americanos, passar duma agricultura «diversificada» apenas em horizontal para outra «diversificada »' também na vertical, permitindo assim aumentar as receitas da lavoura.
Em todo o projecto de electrificação rural o aspecto económico da exploração «diversificada» merece ser estudado com um cuidado muito particular.
Julga-se ter dado uma ideia, embora só aproximada, da extensão, da importância, da dificuldade económica, do aspecto social e político de que se reveste o problema da electrificação rural, para se concluir que a proposta de lei agora em estudo se limita a pretender resolver a questão do financiamento dos trabalhos.
A Câmara Corporativa, apreciando o notável reforço financeiro que a lei vem consentir, criando possibilidades de expansão à electrificação rural muito superiores às que desde sempre se verificaram, nem por isso deixa de chamar a atenção para os restantes aspectos do problema, sobretudo os relacionados com um amplo reagrupamento dos pequenos distribuidores actuais, reagrupamento previsto na Lei n.º 2002 através da criação de federações de municípios, para dar a tais organismos uma base técnica, e ato certo ponto económica, capaz de acelerar o programa da electrificação rural.

II

Exame na especialidade

BASE I

A redacção desta base limita o âmbito das modalidades de auxílio e, se através dela se pode em muitos casos resolver o financiamento do estabelecimento ou reforço das redes, não fornece qualquer possibilidade de estimular o consumidor a usar a energia eléctrica,
Que, na maioria dos casos, só com grande sacrifício foi levada até à sua porta e quantas vezes sem utilidade, pelo menos imediata.
Por outro lado, e apesar de tudo, pode ainda o objectivo da proposta de lei ser contrariado péla falta de recursos financeiros do pequeno distribuidor, incapaz de integrar a sua quota-parte para a realização duma obra, sem recurso ao empréstimo a conceder para tal fim em condições favoráveis.
Se se admitir que aquela acção complementar, que é o processo mais eficaz e directo de mudar de negativos em positivos os saldos de muitas explorações, e esta acção de crédito favorável, acções que a Camará reputa muito

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importantes, ficarão reservadas para uma fase já mais avançada de electrificação rural, a redacção da base é de aprovar.

BASE II

Definem-se nesta base as entidades que podem ser auxiliadas e as condições em que o facto terá lugar, quando a distribuição de energia é feita em regime de concessão municipal.
Nos casos a que ú aplicável a base fica facilitada a consecução do objectivo da proposta de lei - acelerar o ritmo da difusão da electricidade pelo território nacional-, mas numerosas situações existem não abrangidas no âmbito da base, que, ficando sem solução, podem comprometer seriamente o resultado que se pretende alcançar.
É assim sempre que o custo do ramal de alta tensão, n construir para alimentar uma rede a criar, representa parcela elevada, às vezes preponderante, na despesa global da obra, e ao mesmo tempo a sua construção competir ao concessionário directo do Estado, que tem de integrá-la na sua concessão, não sendo por isso comparticipado, directa ou indirectamente.
Estas situações parecem só poder vir a ter remédio legalmente viável através da regulamentação da grande distribuição, conforme prescreve a Lei n.º 2002, regulamentação anunciada no n. 2) do preâmbulo da proposta de lei.
A Câmara Corporativa, ao dar o seu acordo à base ir, emite o voto de que rapidamente o Governo publique a referida regulamentação, sem a qual um largo sector da pequena distribuição não poderá tirar todo o proveito do auxílio que a proposta de lei generosamente procura conceder-lhe.

BASE III

Não se teve em conta nesta base a conveniência de os municípios conhecerem, com a devida antecedência, se o pedido de comparticipação apresentado até 30 de Setembro (base IV) será ou não atendido no ano seguinte, o que leva a propor a seguinte redacção:
Os pedidos de comparticipação serão dirigidos ao Ministro da Economia e os respectivos processos organizados e informados pela Direcção-Geral dos .Serviços Eléctricos, que elaborará e submeterá à aprovação do Ministro até 30 de Novembro de cada ano o plano geral de comparticipações a conceder no ano seguinte, do qual deverão constar as estimativas do custo das obras a realizar e das importâncias a conceder.
A Direcção-Geral comunicará aos interessados no plano até 15 de Dezembro, o valor da comparticipação a conceder, para efeitos orçamentais do respectivo município ou federação de municípios.

BASE IV

Em virtude da alteração proposta à base m, parece conveniente alterar no mesmo sentido a data marcada para apresentação dos pedidos de comparticipação.
Por outro lado, a base estabelece os princípios que hão-de regular ia A Câmara Corporativa, embora reconhecendo a falta de precisão que a redacção da base comporta, e, portanto, a possibilidade de carta dose de procedimento discricionário nas decisões da Administração, reconhece que seria difícil e por vezes até contraproducente a fixação muito rígida da doutrina, pelo que se limita a propor que na percentagem de cada comparticipação, além dos factores enunciados que podem intervir na sua fixação, seja titio em couta também um índice a definir uma regulamentação da lei, que ligue de certa maneira a percentagem da comparticipação à despesa específica por consumidor a servir com a obra projectada.
Propõe-se ainda a supressão do último período da base. por poder constituir uma limitação embaraçosa, limitação que, no fundo, é feita ao inicio pela dotação orçamental que exista e que condiciona o plano a que se refere a base III.
Por estas razões se propõe a seguinte nova redacção:
Os planos anuais a que se refere a base m serão elaborados a partir dos pedidos apresentados até 31 de Agosto, de modo a contemplar equitativamente todas as regiões do País, dando-se preferência, lia medida do possível n construção de novas refles em localidades ainda não servidas, aos pedidos formulados pelas câmaras municipais dos concelhos rurais e, dentre estas, pelas de menores recursos financeiros. Poderão estabelecer-se várias categorias de obras, com diferentes- percentagens de comparticipação até ao máximo de 75 por cento, correspondendo ás mais elevadas à construção de novas rocies em zonas rurais de limitados recursos e às que impliquem maior despesa por consumidor a- servir, e as mais baixas a obras de remodelação, ampliação ou melhoramento de instalações existentes nos aglomerados populacionais mais importantes.

BASE V

Nada a alterar.

BASE VI

Nada a alterar.

BASE VII

Julga-se de eliminar nesta base a doutrina da alínea a), pois as obras nela referidas podem não ser exequíveis sem a comparticipação, e a melhoria das condições económicas do conjunto da exploração pode e deve servir de estimulante para o respectivo distribuidor ampliar a sua acção electrificadora.
Em virtude disto, a redacção passaria a ser:
Não poderão ser concedidas comparticipações para obras já executadas ou em execução.
Nada a alterar.

BASE VIII e BASE IX

Julga-se conveniente introduzir na proposta de lei uma nova base, que tomaria este número, marcando o principio da- conveniência de aplicação de tarifas degressivas à venda de energia nas redes das entidades que solicitassem e obtivessem comparticipações para os seus trabalhos de expansão ou reforço das instalações.
Este princípio facilitaria uma gradual uniformização tarifária, acabando mais rapidamente com situações que hoje têm de considerar-se pouco admissíveis.
Para essa base se propõe a seguinte redacção:
A concessão de comparticipações poderá obrigar á introdução de tarifas degressivas para a venda de energia, que deverão, contudo, garantir o equilíbrio económico de conjunto da- explanação nas redes do peticionário ou seu concessionário.

BASE X

Como a base IX da proposta.

III Conclusões

A Câmara Corporativa, de acordo com as considerações de ordem geral e especial expendidas ao longo deste

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parecer, dá o seu acordo à proposta de lei, com as alterações sugeridas, por considerá-la medida eficaz para acelerar o ritmo ida electrificação rural.
A Câmara Corporativa confia em que o Governo promulgará com brevidade medidas de várias ordens, preconizadas agora e em anteriores pareceres, que igualmente poderão contribuir, pelo seu alcance técnico e económico, para levar rapidamente por diante esta obra tão vasta da electrificação rural, que é de transcendente importância social e política na vida

Texto sugerido

BASE I

O Governo impulsionará a execução de obras da pequena distribuição de energia eléctrica, compreendendo o estabelecimento de novas redes e a remodelação e ampliação de redes existentes, mediante a concessão de qualquer das seguintes modalidades de auxílio:
a) Comparticipações do Estado, nos termos da base XXIII da Lei n.º 2002, de 26 de Dezembro de 1944;
b) Comparticipações pelo Fundo de Desemprego, nos termos das disposições aplicáveis.

BASE II

As comparticipações referidas na base i serão» concedidas às câmaras municipais ou às federações de municípios, quer a distribuição de energia eléctrica seja feita directamente quer em regime de concessão. Neste último caso só poderão conceder-se comparticipações para o estabelecimento de novas instalações dentro dos limites das percentagens previstas nos respectivos cadernos de encargos e desde que as condições contratuais de avaliação dessas instalações, para efeitos de resgate ou de entrega no fim da concessão, tenham em couta as comparticipações recebidas pelo concessionário.
Poderão ainda conceder-se comparticipações a outras entidades, nos casos em que houver legislação especial que assim o determine.

BASE III

Os pedidos de comparticipação serão dirigidos ao Ministro da Economia e os respectivos processos serão organizados e informados pelo Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos, que elaborará e submeterá à aprovação do Ministro, até 30 de Novembro de cada ano, o plano geral das comparticipações a conceder no ano seguinte, do qual deverão constar as estimativas do custo das obras a realizar e das importâncias a conceder por comparticipação.
A Direcção-Geral comunicará aos interessados no plano, até 15 de Dezembro, o valor da comparticipação a conceder, para efeitos orçamentais do respectivo município ou federação de municípios.

BASE IV

Os planos anuais a que se refere a base m serão elaborados a partir dos pedidos apresentados até 31 de Agosto, de modo a contemplar equitativamente todas as regiões do País, dando-se preferência, na medida do possível, à construção de novas redes em localidades ainda não servidas, aos pedidos formulados pelas câmaras municipais dos concelhos rurais e, dentre estas, pelas de menores recursos financeiros. Poderão estabelecer-se várias categorias de obras, com diferentes percentagens de comparticipação até ao máximo de 75 por cento, correspondendo as mais elevadas à construção de novas redes em zonas rurais de limitados recursos e às que impliquem maior despega por consumidor a servir, e as mais baixas a obras de remodelação, ampliação ou melhoramento de instalações existentes nos aglomerados populacionais mais importantes.

BASE; V

Estudado em cada caso o orçamento da obra e depois de cumpridas as formalidades legais do seu licenciamento, serão fixadas, por portariam, as condições das comparticipações a conceder, designadamente o seu valor e o prazo para a execução dos trabalhos.

BASE VI

Quando os obras comparticipadas não forem concluídas dentro do prazo fixado na respectiva portaria, será este automaticamente prorrogado por dois períodos consecutivos iguais a metade do prazo inicial, sofrendo, porém, a comparticipação correspondente aos trabalhos não realizados um desconto de õ a 10 por cento, conforme estes sejam concluídos, respectivamente, no primeiro ou no segundo dos períodos atrás referido. Se as obras não forem concluídas dentro dos novos prazos resultantes das prorrogações automáticas, os saldos das comparticipações serão anulados e não serão concedidas novas comparticipações às entidades interessadas enquanto não tiverem realizado as obras a que diziam respeito os saldos anulados.

BASE VII

Não poderão ser concedidas comparticipações para obras já executadas ou em execução.

BASE VIII

As comparticipações serão concedidas por forma que não haja de satisfazer-se, em cada ano económico, quantia superior à sua dotação, adicionada dos saldos dos anos anteriores, podendo, porém, ser contraídos encargos a satisfazer em vários anos económicos, desde que os compromissos tomados caibam dentro das verbas asseguradas no ano económico em curso e nos dois seguintes.

BASE IX

A concessão de comparticipações poderá obrigar à introdução de tarifas depressivas para a venda de energia, que deverão, contudo, garantir o equilíbrio económico do conjunto da exploração nas redes do peticionário ou seu concessionário.
O Governo adaptará a organização da Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos às exigências impostas pela conveniente execução da presente lei.

Palácio de S. Bento, 16 de Março de 1955.

José do Nascimento Ferreira Dias Júnior.
João António Simões de Almeida.
Pedro Soares Pinto Mascarenhas Castelo Branco.
Isidoro Augusto Farinas de Almeida.
Joaquim Camilo Fernandes Álvares.
Mário Gonçalves.
Álvaro Salvação Barreto.
António Alaria Santos da Cunha.
José Gonçalves de Araújo Novo.
Fernando Pais de Almeida e Silva.
Manuel Fernandes de Caravalho.
José Augusto Vaz Pinto.
Luís Supico Pinto.
José Albino Machado Vaz, relator.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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