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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES

N.º 104 ANO DE 1955 7 DE DEZEMBRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VI LEGISLATURA

SESSÃO N.º 104, EM 6 DE DEZEMBRO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmo. Srs.
Castão Carlos de Deus Figueira
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues

SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 15 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi aprovado a Diário das Sessões n.º 103.
Deu-se conta do expediente.
O Sr. Presidente leu um telegrama de S. Ex.a o Sr. Presidente da República a agradecer as manifestações de pesar da Assembleia pela morte de sua mãe.
Também o Sr. Presidente comunicou que recebeu a visita do Sr. Presidente da Câmara Corporativa.
Informou ainda o Sr. Presidente que recebeu, já com parecer da Câmara Corporativa, a proposta de lei relativa ao regime jurídico do solo e subsolo dos planaltos continentais.
Os Srs. Presidente e Deputado Ricardo Durão evocaram a figura de Mouzinho de Albuquerque.
O Sr. Deputado Daniel Barbosa requereu informação sobre o Aeroporto das Pedras Rubras e a instalação da indústria siderúrgica.
O Sr. Deputado Pinto Barriga instou pelo fornecimento de informações que desde há tempo tem pedindo.
O Sr. Deputado Santos da Cunha ocupou-se da concessão do serviço de televisão em território português.
O Sr. Deputado Urgel Horta falou sobre a localização da indústria de siderurgia.
O Sr. Deputado Carlos Moreira requereu vários elementos sobre a vida financeira dos municípios de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Ordem do dia. - Começou a discussão da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956. Falaram os Srs. Deputados Alberto de Araújo e Moura Relvas.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 30 minutos.

CAMARA CORPORATIVA. - Parecer nº 20; VI, acerca da proposta de lei nº 29/507 (regime jurídico do solo e subsolo dos planaltos continentais).

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 15 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Aranha Furtado de Mendonça.
Alfredo Amélio Pereira da Conceição.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida Garrett.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calheiros Lopes.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
António da Purificarão Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
António dos Santos Carreto.

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DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 104

Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancella de Abreu.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Eduardo Pereira Viana.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís de Azeredo Pereira.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel Monterroso Carneiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Trigueiros Sampaio.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancella de Abreu.
Pedro de Chaves Cyonbron Borges de Sousa.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Rui de Andrade.
Teófilo Duarte.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 16 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário das Sessões n.º 103, de 25 de Novembro.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Como nenhum Sr. Deputado deseja apresentar qualquer reclamação, considero-o aprovado.

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Do Grémio da Lavoura do Funchal a solicitar seja considerada no próximo acordo comercial entre Portugal e a Espanha a colocação dos seus produtos, incluindo a das varas de pinheiro, nas ilhas Canárias.
Da Associação de Fomento Agrícola e Industrial de Moçambique a regozijar-se com as afirmações do Deputado Sr. Manuel Aroso acerca, do crédito às actividades económicas daquela província.
Recebidos em Agosto do corrente ano, da comissão concelhia da União Nacional de Velas (S Jorge) a solicitar continuem as ligações da ilha do Pico por iates entre o grupo central e oriental do arquipélago.
No mesmo sentido, dos presidentes da Câmara Municipal de Lajes (Pico), da comissão distrital da União Nacional da Horta, da comissão concelhia da União Nacional de S. Roque (Pico), da Junta Geral do Distrito da Horta, da Câmara Municipal das Velas (S. Jorge), da comissão concelhia da União Nacional da Calheta S. Jorge), do Grémio da Lavoura da Horta, do Grémio do Comércio da Horta, da comissão concelhia da União Nacional da Horta, do Sindicato Nacional dos Carregadores e Descarregadores do Distrito da Horta, do Grémio da Lavoura da Horta e da Câmara Municipal de S. Roque (Pico).

O Sr. Presidente : - O Sr. Presidente da República dignou-se enviar-me um telegrama, de agradecimento pela manifestação de pesar da Assembleia, a propósito do falecimento de sua mãe, e que é do seguinte teor:
«Tocou-me profundamente a expressão dos sentimentos de pesar que V. Exa. e a Assembleia Nacional tiveram a bondade de manifestar pelo falecimento de minha mãe. Aceite V. Exa., e peço que transmita à Assembleia, o meu sincero reconhecimento».
Também desejo comunicar que o Sr. Presidente da Câmara Corporativa quis ter a gentileza de, pessoalmente, vir apresentar à Assembleia Nacional os seus cumprimentos e agradecer o acolhimento dado às suas palavras na última sessão desta Câmara, afirmando também os seus propósitos dum perfeito entendimento entre as duas Câmaras. Pensei que seria grato à Câmara tomar conhecimento do facto.

Vozes : - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Encontra-se na Mesa, acompanhada do parecer da Câmara Corporativa, a proposta de lei relativa ao regime jurídico do solo e subsolo dos planaltos continentais.
Vai baixar às Comissões de Economia, de Política e Administração Geral e Local e do Ultramar.
Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia em satisfação dos requerimentos dos Srs. Deputados Camilo Mendonça o Sá Linhares, apresentados, respectivamente, nas sessões de 13 e 29 de Abril último, os quais vão ser entregues a estes Srs. Deputados.
Enviada pela Presidência do Conselho, foi recebida na Mesa cópia do oficio n.º 891/P. 9 do Ministério da Economia relativamente ao requerimento do Sr. Deputado Urgel Horta apresentado em sessão de 29 de Abril último. Igualmente foram recebidas as respostas fornecidas pelos Ministérios do Interior, Justiça, Finanças, Exército, Marinha, Estrangeiros, Obras Públicas, Educação Nacional, Comunicações e Corporações em satisfação do requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Pinho Brandão.

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7 DE DEZEMBRO DE 1955

Esses elementos vão ser enviados aos Srs. Deputados interessados.
Está ainda na Mesa a resposta do Ministério da Justiça em satisfação do requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Pinto Barriga em 7 de Maio do corrente ano. Vai ser entregue àquele Sr. Deputado.

Pausa.

O Sr. Presidente: - O ciclo das comemorações do nascimento de Mouzinho de Albuquerque encerrou-se antes da reabertura da Câmara. Mas nem por isso a Câmara quererá deixar de se associar às justas homenagens prestadas à sua memória.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Mouzinho de Albuquerque pertenceu e foi certamente a figura mais expressiva daquela plêiade de construtores da nossa grandeza ultramarina que no final do século passado afirmou, no meio de certos aspectos depressivos da nossa vida colectiva, as qualidades viris e o génio heróico da raça. Mouzinho foi, sem dúvida, o que reuniu em mais alto grau essas qualidades; mas sem aquele conjunto de oficiais e de colonialistas quo colaboraram nessa epopeia da ocupação da nossa África, porventura, a sua gesta gloriosa ou não teria sido possível ou teria sido um gesto tocado da mais alta e nobre beleza, mas menos eficiente para os destinos positivos da Pátria.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - A Câmara certamente se associa colorosamente às comemorações do centenário do Mouzinho, que no hagiológio da Pátria tem um lugar do mais alto relevo e a quem Deus terá perdoado as inevitáveis imperfeições terrenas.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Havendo aqui dentro alguns ilustres oficiais, portadores das grandes virtudes militares das forças armadas portuguesas, quero dar-lhes oportunidade de se manifestarem e dou a palavra ao Sr. Coronel Ricardo Durão.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Ricardo Durão: - Sr. Presidente: depois da síntese apropriada e perfeita que V. Exa. acaba de construir, com os recursos exuberantes da eloquência que sempre lhe assiste e que praza a Deus nunca lhe falte, seria ridículo da minha parte embrenhar-me no desenvolvimento dum assunto já tratado por conhecedores mais profundos e mais bem apetrechados.
Depois das lições brilhantíssimas dos ilustres professores e Deputados Mendes Correia e Mário de Albuquerque; depois de ter sido recordada na imprensa, com o titulo de «Mouzinho - capitão da mocidade», uma notável conferência do Dr. Marcelo Caetano, cujas afirmações, com a autoridade que lhes empresta a sua isenção admirável, ressoam de novo aos nossos ouvidos, redivivas e sempre moças como outrora; depois de tantos e tão substanciais discursos proferidos acerca do centenário de Mouzinho - seria pretensiosa a ideia de acrescentar ao assunto qualquer coisa digna de interesse.
Pedi a palavra principalmente para não deixar sem o eco devido e sem as reflexas naturais, numa Assembleia desta natureza, um acontecimento de tal projecção. Mas V. Exa. antecipou-se. Bem haja, Sr. Presidente.
Surge entretanto no jornal A Voz um artigo de vigorosa construção, a três páginas maciças, com a acreditada chancela do Dr. Águedo de Oliveira. Esse artigo, que poderia intitular-se «Da vida e da morte de Mouzinho», exacerbou o meu interesse sobretudo pela sua parte final, porque a primeira, que se refere à vida do herói, essa não tem discussão, não oferece dúvidas, nem suscita reservas.
Transcrevo textualmente a seguinte passagem: «A tese que vi por nos últimos dias, aliás com brilho cultural, de que o pessimismo conduziu Mouzinho para um gesto irresgatável não parece de admitir por inteiro».
Tem razão o nosso ilustre colega. Mas eu vou mais longe: não é só por inteiro; é que nem por diferença nem por excesso essa tese, a meu ver, se pode aceitar.
Toda a reserva que se ponha ao trágico fim do «capitão da mocidade» só contribuiria para lhe empanar a glória. Com isso não podemos concordar.
Mouzinho foi grande em tudo, até no supremo instante em que quase todos são pequenos. Mouzinho sacrificou-se em holocausto à honra, perante o dilema pungente em que tantos outros moralmente se liquidam ou miseràvelmente se apagam.
Na ética do soldado há casos em que a honra é incompatível com a vida.
O comandante que em plena batalha se afunda com o seu navio nessa trincheira gloriosa que as ondas abrem para os marinheiros é também um suicida. E se o não for, todavia? Que respondam a esta pergunta os meus camaradas da marinha de guerra.
O general Margueritte, que à frente dos seus cavaleiros, em Sedan, depois de a batalha perdida, se atirou contra as baionetas prussianas, bradando: «Soldats, à Ia mort, charger!», foi um suicida também. Não havia outra forma de salvar a honra da França. E esta era a honra do exército francês, a honra da sua farda.
Para Mouzinho o problema nacional era inseparável do conceito dinástico. A base das suas aspirações assentava no prestigio da coroa.
Por outro lado, o rei e o povo eram os dois pólos do seu pensamento.
D. Carlos possuía, de facto, pelo seu temperamento e pelo seu carácter, pelo seu espirito galhardo, portuguesismo castiço, simpatia irradiante e bondade imanente, requisitos natos para conquistar a estima do povo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas a sua apatia perante o descalabro económico, resultante de erros sucessivos da Administração, a sua frouxidão de epicurista e a sua bonomia tolerante...

Vozes: - Não apoiado!

O Orador: - ... para o descalabro político, proveniente dum rotativismo estéril, reduziam-lhe a popularidade. Seria, pois, difícil conciliar os dois pólos.
Entretanto a maledicência, a intriga, a calúnia, duma maneira geral, a cobardia e a corrupção pululavam em torno de Mouzinho. Ele trazia de África uma folha de serviços ou, melhor, uma epopeia que o obrigava a reagir. Era o mais lídimo representante do Exército, o seu mais fulgurante ornamento, o seu mais incontestado caudilho. Podia ter desembainhado a espada -podia e devia-, porque o Exército é a última célula que morre no corpo da Nação, o último posto de escuta a sentir bater o coração da Pátria, e por isso lhe compete impor-se ao País, quando todos os outros organismos falecem. Além disso, Mouzinho recebia de todos os lados, de todos os partidos, solicitações tentadoras. Para um aventureiro sem escrúpulos estava aberta a estrada do triunfo. Mas para um soldado da sua têmpera a morte ó o único direito que se adquire ao nascer.

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O seu «cruel enigma» era afinal um cruel dilema; um dilema em que ele não podia optar sem trair.
A sua alma alanceada pela dúvida, a sua alma lealíssima oscilava, na angústia das grandes perplexidades, entre a corte e a grei, entre um regime decrépito e uma nação abúlica, entre um rei manietado pela Constituição e um povo iludido pelas paixões libertárias.
E, assim, a sua espada, que relampejara ao sol da glória nas plagas africanas, teria de permanecer para sempre inerte na bainha. Mas a inacção era o conformismo: e ele não tinha o direito de abdicar, alienando o seu prestígio, que era já pertença do património nacional; ele não podia transigir com um estado de coisas contra o qual todo o seu passado constituía um libelo.
E, antes que a perversidade, a hipocrisia e a injustiça quebrassem definitivamente todas as molas de aço do seu coração viril, Mouzinho preferiu eliminar-se a corromper-se.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ainda e sempre em sua desafronta, consegui apurar que Mouzinho se confessou e comungou na manhã do seu último dia; e não me consta que tenha sido posta, por quem de direito, qualquer objecção ao seu funeral religioso. Tudo leva a crer, portanto, que foram saldadas as suas contas com Deus. E se Deus lhe perdoou, porque não hão-de os homens compreendê-lo e justificá-lo?
Como muito bem diz o Dr. Águedo de Oliveira, Mouzinho sentiu em certa altura que tinha «as saldas cortadas».
E, com efeito, perdido no seu dédalo de angústia, ele devia ter pensado que era aquela a solução lógica, premente e única, do seu problema lancinante.
Não se trata dum desvairado que actua em delírio. Segundo os relatos da época, ao chegar a Palhavà, Mouzinho mandou parar o cupé que o conduzia, apeou-se junto dum marco postal, onde meteu uma carta, e voltou tranquilamente para o carro, onde momentos depois, já em marcha, desfechou o seu revólver.
Ao certo nada mais se sabe. Ouvi dizer, no entanto, que o destinatário dessa carta, cujo conteúdo se ignora, era um palaciano ilustre, seu amigo íntimo e também oficial de cavalaria, que a levou consigo para o segredo eterno do túmulo.
Fica assim pairando sobre a figura de Mouzinho não a suspeita dum escândalo galante, como certos espíritos tacanhos ou mal intencionados ignòbilmente engendraram, mas aquele mistério insondável que envolve num perfume de lenda a recordação dos grandes mortos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não há dúvida que Mouzinho não procedeu como um desvairado. Todos os passos que deu no seu último dia revelam a serena firmeza duma deliberação inexorável. Nem os desvairados nem os apaixonados defrontam a morte com esta serenidade. Un bel morir tutta la vita onora.
Mouzinho não precisava deste verso de Petrarca para escolher uma morte que lhe honrasse a vida, porque foi a própria honra que o matou.
Ele merecia e desejava, com certeza, morrer de espada em punho, acutilando os infiéis de toda a espécie.
Não importa. Mesmo assim morreu em beleza e a sua morte não diminui a sua glória. Não foi uma derrota; no seu caso excepcional e transcendente, foi o seu último acto de bravura.
Poucos anos depois morria, também tràgicamente, el-rei, o maior amigo de Mouzinho, que por mais duma vez o salvara das artimanhas dos políticos da época - dos «milandos dos brancos«...
O monarca andava nessa altura empenhado numa vigorosa tentativa de recuperação moral. Entretanto, assinara em Vila Viçosa a sua sentença de morte. Ele sabia-o, sabia que uma seita esotérica preparava o regicidio, e foi ele próprio quem o disse, tranquilamente, sentado à sua secretária, sem a pena lhe tremer na mão.

O Sr. Carlos Moreira: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Carlos Moreira: - Aí tem V. Exa., no que acaba de dizer, a demonstração de que não fui feliz quando considerou apático uni rei que morreu pela forma como morreu o rei D. Carlos.

O Orador: - Pois das minhas afirmações devo V. Exa. inferir que o seu «não apoiado» foi intempestivo.

O Sr. Carlos Moreira: - V. Exa. é que não foi justa, chamando ao rei D. Carlos um rei apático.

O Orador: - Estou convencido de que naquela altura o era. Só mais tarde deixou de o ser.

O Sr. Carlos Moreira: - Nem nessa, nem noutra altura.

O Orador: - Ao regressar a Lisboa, desembarcou no Terreiro do Paço, diante duma multidão estática, impassível, suspeita. Aguardava a corte uma fila de carruagens prudentemente fechadas.
D. Carlos mandou abrir a capota do seu landau e recomendou ao cocheiro que seguisse devagar.
Na acepção rigorista do rermo, não se podo chamar a isto um suicídio. Em todo o caso, D. Carlos deixou-se matar. É que ele tinha também a alma dum soldado.
Malograda e fatídica previsão! A dum pai que lembra ao preceptor de seu filho que este havia de ser rei.
Estranho e cruciante paradoxo! O dum rei que se ergue a toda a altura dos heróis sobre um trono que desaba.
Veio isto a propósito do centenário de Mouzinho; e são estas, Sr. Presidente, as palavras de homenagem, do justiça e de resgate que entendo dever prestar à memória dum herói que nunca deixou de o ser, nem mesmo no dramático desfecho da sua vida edificante.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Daniel Barbosa: - Sr. Presidente: a instalação da indústria da siderurgia em Portugal tem de ser encarada como um dos empreendimentos de maior vulto em que podemos pensar, pelo que respeita ao reflexo que inevitàvelmente há-de vir a ter no equilíbrio económico-social da Nação.
Por isso mesmo devemos cercá-lo das maiores cautelas para evitar que se possa sacrificar a solução que mais interessa ao País em beneficio de soluções que minimizem os factores técnico-económico-sociais que a devem condicionar.
Acresce que, tendo sido a necessidade de encontrar uma solução verdadeiramente nacional o que retardou durante largo tempo a possibilidade de uma produção rentável sem artificialismos nem sacrifícios de maior, muito estranho seria que, após tanto se ter falado e ponderado nas condições que para tal era imperioso criar, tivéssemos de concluir agora pela impossibilidade de resolver o problema no campo da independência que se impõe.

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O assunto, pela sua indiscutível relevância, não poderia passar despercebido à, Assembleia, Nacional, muito mais quando é certo que esta Câmara sobre ele assentou suas ideias com base em posições peremptòriamente assumidas no relatório do Governo e parecer da Câmara Corporativa que acompanharam o Plano de Fomento que discutimos e aprovámos em 1953.
Por mim, e como Deputado pelo distrito do Porto, que a tão magno e momentoso problema está ligado por interesses directos, que são interesses directos da Nação -e que, por isso mesmo, se dispõe a pugnar por eles até ao fim-, desejo ficar desde já habilitado a discuti-lo num plano em que só razões objectivas contem; solicito, portanto, do Governo o fornecimento, a título devolutivo, se tanto for necessário, e no mais curto prazo de tempo, dos dados que constam deste requerimento que tenho a honra de enviar para a Mesa:

Requerimento

«Requeiro que me sejam fornecidos, com a maior urgência, os seguintes elementos:

a) Dados técnico-económicos fornecidos ao Governo e sobre os quais se baseiam, quer o processo de fabrico proposto, quer a localização para a siderurgia nacional;
b) Informação do Ministério da Economia quanto à possibilidade ou não possibilidade de o País dispor de energia eléctrica em quantidade e em preço que permitam considerar a viabilidade da electrometalurgia dentro de um prazo compatível com a entrada em serviço da instalação em causa;
c) As informações que acerca do projecto da instalação da siderurgia em Portugal foram prestadas pelas Direcções-Gerais dos Serviços Industriais e de Minas;
d) Informação quanto às possibilidades - que creio se poderão desde já presumir como satisfatórias - do escoamento do tráfego através do porto de Leixões, que uma instalação siderúrgica situada no seu hinterland não poderá deixar de lhe criar, mas que pode exactamente encontrar, no início da sua laboração, este porto devidamente ampliado e apetrechado por razões que subsistiriam mesmo que a siderurgia se instalasse no Sul, visto tal ampliação e apetrechamento estarem incluídos no Plano do Fomento, promulgado pela Lei n.º 2058, e constarem de projecto já aprovado pelo Governo e em via de execução, portanto».

Sr. Presidente: em princípios de Janeiro do ano corrente requeri ao Governo, entre outros elementos, alguns dados que particularmente tocavam às estranhas e tão injustificados deficiências que impediam e continuam impedindo - uma melhor utilização do Aeroporto das Pedras Rubras.
Não me foi, porém, possível -em parte pela demora da entrega dessa documentação, em parte por razões meramente particulares - tratar, à base deles, tão importante assunto na passada sessão legislativa.
Ao preparar-me para o fazer agora -mais convencido ainda por factos que dia a dia conhecemos, a demonstrar razões que então invoquei, e mais apoiado também pelas vozes de apelo e de protesto que se ouvem na cidade, no distrito e na província em defesa de uma solução lógica que interessa ao Norte e à Nação - tenho de admitir que neste espaço de tempo decorrido algo se possa ter modificado quanto ao sentido que se colha dos elementos que então pedi.
Nestas circunstância, e no desejo de actualizar devidamente os dados de que disponho para fazer a minha anunciada intervenção, tenho a honra de enviar para a Mesa o seguinte

Requerimento

«Requeiro que, com a maior urgência, mee sejam fornecidas as seguintes indicações, relativas ao Aeroporto das Pedras Rubras, no Porto:

a) Quais as alterações nele realizadas durante 1955 com vista a criar-lhe características de aeródromo de alternância do Aeroporto de Lisboa;
b) Qual o derrube de arvoredo a que se procedeu também no decorrer deste ano e quais as verbas para o efeito concedidas e até agora despendidas;
c) Qual o número de aviões de passageiros que desde o começo do ano deixaram de aterrar no Aeroporto da Portela por este se encontrar fechado e qual o prejuízo que tal impedimento lhe acarretou».

Tenho dito.

O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: se me tivesse sido dada a palavra na sessão anterior ter-me-ia comovidamente associado aos votos de sentimento desta Assembleia pela morte dos Profs. Doutores José Alberto dos Reis e Armindo Monteiro. Não fui discípulo do primeiro destes ilustres professores, mas o meu saudoso pai ensinou-me a admirá-lo, e, pouco antes da sua morte, ao ser proclamado advogado honorário, sentiu uma íntima satisfação não só pela distinção honrosíssima e extremamente rara que lhe tinha sido conferida, mas ainda, e sobretudo, por ter sido feito na companhia do Prof. José Alberto dos Reis.
Armindo Monteiro foi meu companheiro de formatura e doutoramento e amigo dilecto, cuja fraternal amizade sempre apreciei. Do que valeu em vida testemunha a sua obra.
Em sessões passadas desta legislatura requeri informações que ou não me chegaram ou, quando foram expedidas, não correspondiam ao pensamento que me tinha guiado na redacção desses pedidos informatórios. Nunca é de mais testemunhar toda a justiça aos titulares das respectivas pastas, que têm sempre demonstrado a melhor boa vontade de atender aos meus requerimentos, mas as dilações de uma certa burocracia e de certos organismos diferem, delongam a expedição dos meus requerimentos.
Esses elementos burocráticos constituem como um segundo Estado dentro do Estado: podemos-lhe aplicar a saborosa expressão americana the big little powers.
Insisto, renovando, assim, em toda a sua extensão e intenção, os meus requerimentos não respondidos, mal ou evasivamente respondidos: o escol de técnicos de estatística, que os temos e dos melhores, infelizmente parecem não desejar acordar à realidade da vida económica e financeira certas burocracias, certos organismos, que preferem dormir sossegadamente em volta do material estatístico obtido em dados e enquadramentos de pura rotina. É o que continuamente verificamos com surtos sucessivos da alta do custo de vida, que as estatísticas negam radiosamente, com o manifesto gáudio do man in the street, do homem da rua, e a indignação das donas de casa, que sentem essa

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alta na pobre bolsa e muito mais no estômago da sua família!
Contra essa rotina é que me levanto enèrgicamente na medida que ela obscurece a realidade, essa realidade do quadro económico financeiro português que Salazar quis sempre conhecer para prever e bem remediar; essa realidade que se deve traduzir estatìsticamente em dados redivivos e perfeitamente actualizados.
Em Dezembro de 1953 anunciei um aviso prévio que passo a relembrar nas suas linhas gerais.
«Prestadas as mais altas e devidas homenagens aos Srs. Presidente do Conselho e Ministros, pela sua acção governativa, desejo, nos termos regimentais, tratar em aviso prévio das possibilidades de uma melhoria, ainda, da eficiência da nossa administração económico-financeira, bem relacionada com o nosso conjunto nacional.
Na efectivação e desenvolvimento deste aviso prévio procurarei demonstrar precípua e vultosamente:
1.º A necessidade de ultrapassar o equilíbrio, embora tão excepcional para a nossa época, meramente financeiro e quantitativo do orçamento, que, por si só, constitui um legítimo orgulho para Portugal e seus governantes, para finalmente alcançar um equilíbrio de estrutura, com perfeita coordenação e hierarquização do financeiro, do económico, do social e do político, bem acompanhada por uma nova e bipartida contabilização, remodelada com orçamentos; de administração (velhos e tradicionais serviços do Estado), de capital (investimentos, equipamentos e receitas próprias), e os extraordinários, para dar apenas guarida a meros casos fortuitos e imprevistos financeiros.
2.º Um rejuvenescimento nosso sistema tributário, de forma a atingir, mas com absoluta equanimidade, o anonimato, perfeitamente descontabilizado para efeitos fiscais, e os sinais sumptuários de fortuna, hoje quase destributados, fazendo-se o lançamento dos impostos não apenas pela noção isolada de rendimento fiscal, mas adentro de um critério de equidade, iluminada por uma hermenêutica em que não se observe a desierarquização da lei, do regulamento, da circular e dos despachos regulamentares, dando desde logo a imagem de uma certa propensão para uma decadência legalista.
3.º A imperiosa conveniência duma reactualização e ajustamento da estrutura e hierarquia dos vencimentos do funcionamento, tão louvavelmente estabelecida pelo Decreto n.º 26 115, com a indispensável reabsorção do suplemento, incorporado nestes vencimentos, de modo a, dentro das possibilidades do Tesouro, fazer face à alta de vida, que não afrouxa, dando também a todos os aposentados uma justificável equiparação de direitos aos do activo, embora essa equivalência não abranja a parte emolumentar.
4.º A estruturação tècnicamente cabal de um orçamento económico, bem alicerçado sobre o rendimento nacional, que possa permitir operar:

A) O reexame integral da nossa política de segurança social, enquadrada nos seus múltiplos aspectos económicos, sem esquecimento dos demográficos e monetários, financeiros sociais e políticos, incluindo a revisão extensional e actualizada da noção de risco social, mas muito para além:

a) De uma perigosa matemática do aleatório;
b) De um salário industrial e comercial, mal considerado como categoria dominante do nosso conjunto económico, com menosprezo inexplicável do agrícola;
c) De um abono de família que não pode nem deve ser tomado como o único meio específico de protecção deste agregado e da sua valorização imoral e social;
d) De um emprazamento dos riscos do doença, com evidente subterfúgio financeiro dos prazos dilatórios de carência e uma demasiada exiguidade de tempo e meios de tratamento, mais alinhado sobre a poupança do que sobre a terapêutica, tornando o risco social mal assegurado e caríssimo pelo pouco que é garantido;
e) De uma contínua hesitação entre a capitalização e a repartição, no meio dos refluxos das desvalorizações monetárias e com ignorância aparente da técnica da repartição dos capitais de cobertura, bem enfeixada com a especialização das quotizações e com o escalonamento das reservas técnicas, graduadas com um índice do utilidade económico-social, esteada por uma boa organização administrativa com um contencioso e jurisdições especializados, em que não se verifique a perigosa repercussão nem nas fornias tradicionais de medicina nem na coordenação dos serviços de saúde;
f) A recuperação do risco do desemprego, que, embora carinhosamente cuidado, foi absorvido pelo Ministério das Obras Públicas, quando deveria voltar ao seu primitivo círculo de segurança social e integrado no Ministério das Corporações, que por agora mais parece do Trabalho, porque aquelas se ausentaram prática, administrativa e politicamente para o da Economia.

B) A recriação de um corporativismo associonalista, aliado a boas e legítimas ligações de crédito, mas que deverá ser o espelho cristalino da nossa conjuntura económica, perfeitamente alheada de feudalidades económico-financeiras, autênticos criptocartéis que se aninham e vegetam nos refolhos da estadualização do nosso corporativismo, que abriga uma burocracia talvez um pouco menos prebendária do que politécnica, mas que as defende contra uma necessária mobilidade social em cómodas situações adquiridas que fogem de um certo ritmo de produção para assegurar monopolìsticamente a permanência de um elevado grau de rentabilidade, por superbenefícios, amparando aparentemente o fraco na indústria e no comércio na medida em que podem reabsorver as vantagens desta protecção, prosperando numa atmosfera maltusianista-económica».

Não o pude realizar, porque, então como hoje, não se cumpre o preceituado nas Portarias n.os 8364 e 9113, faltando-me, portanto, os elementos que deveriam estruturar essa realização e que ainda continuam a não chegar a esta Assembleia.
Na sessão de 6 de Dezembro de 1954 requeri informações pormenorizadas acerca da manifesta injustiça que feria os oficiais de terra e mar na situação de

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reserva, quer relativamente nos seus vencimentos, quer depois na situação de reforma ou aposentação; injustiça essa que nunca se podia fundamentar na letra espírito do Decreto-Lei básico n.º 26 115.
O mesmo sucedeu quanto à fiscalização e publicidade dos orçamentos e contas de gerência dos organismos de coordenação económica, corporativos e de previdência social, relativamente também ao requerido sobre problemas da Companhia dos Diamantes de Angola da refinação de petróleos e da poluição, por deficiência técnica de refinação, da atmosfera de Lisboa e seus termos.
O silêncio continua quanto ao conhecimento das diligências ultimamente efectuadas para o cumprimento da Lei n.º 1995, que tantos serviços podia prestar a uma rigorosa fiscalização das sociedades anónimas. The last but not the least: nada de útil me foi respondido sobre o nível de vida portuguesa e sobre a função da moeda como reserva de valores que possa permitir livremente repartir no tempo o seu emprego para custear despesas e fazer a sua colocação numa adequada e segura poupança, como requeri em 20 de Janeiro de 1953 e em 14 de Abril de 1955, como ouso relembrar à Câmara relendo o que solicitei nesta última data:
«Pretendendo procurar demonstrar - em aviso prévio que terei a honra de anunciar logo que me sejam facultados oficialmente os elementos estatísticos mais recentes, que comprovarei com os que obtive pelos meus próprios estudos- que será conveniente ao Governo pronunciar-se acerca de uma nova orientação em matéria económico-monetária e, consequentemente, fiscal, porque em Portugal -honra lhe seja ao Sr. Presidente do Conselho e também aos seus directos colaboradores - nunca se verificou uma inflação no sentido puramente monetário e patológico do vocábulo, mas foi-se insinuando econòmicamente, apesar do constante esforço governamental, um processo cumulativo de incitação e ampliação da tensão inflacionista, que tende lentamente a desierarquizar a sociedade portuguesa, atingindo e afectando gravemente o comportamento quer das receitas fiscais e orçamentais do Estado, quer dos diversos grupos e classes sociais, revelando-se assim mais um fenómeno económico de conjuntura do que de carácter monetário, com manifestações heterogéneas, com demarcadas deslocações institucionais e estruturais e acompanhadas de grave inquietação contraditória pela existência de diferentes zonas económicas, mas sob pressão inflacionista, outras sujeitas a um regime deflacionista e ainda outras em pleno estado de neutralidade ou de equilíbrio e estabilização monetários, assim perfeitamente abrigadas, o que parece acarretar um acréscimo aparente e nominal do rendimento nacional, embora com o seu decréscimo real, o que daria, a verificar-se, uma espécie de caricatura de prosperidade geral, com uma bolímia de investimentos cuja apreciação económica terá de se fazer em face do proveito nacional da colocação desses capitais e do seu rendimento; para tanto requeiro, nos termos regimentais, me sejam facultados, pelos Ministérios da Presidência, das Finanças, da Economia e todos os demais competentes, as indicações estatísticas da mais recente elaboração e que ainda não tenham sido publicadas, com referencia especial à discriminação dos investimentos, ao comportamento dos consumidores e ao chamado circuito monetário, com insistência particular quanto ao nosso comércio externo e ao problema cambial português, e com esclarecida determinação de reservas econòmicamente ociosas da poupança lusitana e da velocidade de rotação e de investimento das massas monetárias activas e úteis, sem por isso esquecer os dados estatísticos referentes ao rendimento nacional e ao nível de vida e preços».
Agora, o surto do alto da vida reaparece, encarecendo quase todos os géneros alimentares: carne, peixe, etc., acompanhado da sua rarefacção e, consequentemente, do rebaixamento de qualidade. Nada ganhou a lavoura, tudo perdeu o consumidor e só lucrou o intermediário!
Tenhamos orgulhosamente uma visão pletórica e muito macroeconómica da vida portuguesa, mas não esqueçamos cristãmente a existência cruciante desses problemitos da microeconomia, porque esses interessam à Nação - é bem de ver, à não plutocrática.
Antes de finalizar desejo expressar ao Sr. Ministro das Finanças toda a minha admiração pelo magistral relatório que precede a proposta de lei de autorização de receitas e despesas para o ano de 1956, aproveitando a ocasião para lhe lembrar a situação difícil dos pequenos funcionários das execuções fiscais e dos reformados, como secretários de finanças, aspirantes e tesoureiros da Fazenda Pública, a quem não foram concedidas pensões em função da média dos seus abonos dos últimos dez anos, sobre os quais incidiu o desconto da quota, e bem assim dos funcionários do quadro alfandegário, que nem sequer viram o limite dos seus emolumentos acompanhar o aumento geral dos vencimentos do funcionalismo público.
Disse.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Santos da Cunha: - Sr. Presidente: largos sectores da vida económica do País acompanham, com visível apreensão, a tendência, que parece acentuar-se, para a concessão de exclusivos e monopólios em diversos sectores da vida industrial e comercial.
O problema poderá vir a merecer apreciação mais detalhada.
Por agora desejávamos apenas chamar a atenção de V. Exa. e da Assembleia para um restrito aspecto daquele problema maior, solicitando ao mesmo tempo do Governo - através dos departamentos competentes - as medidas adequadas ao seu esclarecimento.
Trata-se do seguinte:
Pelo Decreto-Lei n.º 40 341, de 18 de Outubro de 1955, foram aprovadas as bases de concessão do serviço público da televisão em território português, competindo ao Governo a constituição de uma sociedade anónima de responsabilidade limitada, com a qual haverá de contratar a referida concessão.
Para a realização deste serviço público o Estado preferiu ao sistema adoptado para a radiodifusão -a administração directa - o sistema de uma empresa de economia mista, nos termos estabelecidos no citado decreto-lei.
O futuro dirá do acerto da solução.
As bases da concessão, anexas àquele diploma legal, definem os direitos é deveres da empresa concessionária, à qual se confia a exploração de tão delicado serviço, que oxalá possa, por orientação esclarecida e atenta, contribuir para a elevação do nível moral e cultural da gente portuguesa.
A concessão é dada em regime de exclusivo (base II) e tem por fim a instalação e exploração em território português do serviço público de radiodifusão, na sua modalidade de televisão (base I).
Estão, assim, marcados os limites e prerrogativas essenciais da empresa concessionária.
Simplesmente, e por evidente desvirtuamento do objectivo primário da concessão, à empresa concessionária foi outorgada a possibilidade de efectuar explorações comerciais, nos termos constantes da base XII.
Se algumas delas se harmonizam com o carácter da exploração, objecto da concessão, outras há que a ultrapassam e contrariam.

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Com efeito, é duvidoso se à concessionária - e dadas as regalias e privilégios de que giza (base VII) - devia ser permitida a venda e aluguer de aparelhos de televisão e seus acessórios.
Nunca ninguém se lembrou de pôr a nossa Emissora Nacional de Radiodifusão, ou mesmo as emissoras particulares, como tais, a vender ou alugar aparelhos de rádio e seus acessórios...
Mas nenhuma dúvida pode restar sobre a ilegitimidade de se permitir à concessionária a venda e aluguer de aparelhos de radiodifusão e seus acessórios [alínea d) da citada base XII].
Aqui é que se foi longe de mais, com evidente prejuízo para as actividades comerciais que, desde há muito, e com encargos de toda a ordem, se vêm dedicando a este ramo de actividade.
Com efeito, é fácil prever a concorrência desleal que a empresa concessionária pode fazer ao comércio estabelecido, sabendo-se que beneficia da «isenção de todos os impostos e contribuições, quer gerais, quer especiais, do Estado ou das autarquias locais» [alínea a) da base VII], e que ainda poderá beneficiar de certas isenções de direitos de importação [alínea b)] em termas que não estão concretamente definidos (último trecho do n.º l da base VII).
Ora, quer-nos parecer que o Estado não desejará - nem desejou, porventura - fazer tábua rasa dos interesses e direitos das empresas - e tantas são espalhadas por esse País - que exercem o comércio de artigos de rádio.
E não desejará por uma questão de justiça, e até porque bem pode acontecer que neste caminho de exclusivos com privilégios acabe o Estado por matar a galinha dos ovos de ouro.
São muitas e graves as dificuldades do comércio português, sobretudo do médio e pequeno comércio da nossa terra.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sobre elas nos temos debruçado, em diversos momentos, solicitados por inquietações sérias de alguns dos seus sectores.
As actividades comerciais, exercidas na disciplina e na subordinação devida ao interesse geral, desempenham um papel importante e necessário no quadro da nossa vida económica.
Têm indiscutível utilidade e são fonte de riqueza e bem-estar social.1
Não podem nem devem ser sacrificadas a um planeamento económico que, por evidente desvio dos nossos postulados doutrinários, se deixa enamorar pelas empresas superdimensionadas, em flagrante contraste com a realidade da nossa vida económica e social.
Sr. Presidente: a indevida inclusão na alínea d) da base XII da possibilidade da venda e aluguer de aparelhos de radiodifusão e seus acessórios pela empresa concessionária da televisão nacional não carece de demonstração.
Assim, não será ousado pedir ao Governo que, pela forma mais própria, faça cessar essa evidente anomalia.
Se a mesma não puder ser eliminada, pela revisão legal da citada base VII [alínea d)] - o que nos parece inteiramente possível -, que ao menos o Estado, que na sociedade concessionária terá posição destacada, quer na administração e conselho fiscal, quer no comissariado do Governo (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 40 341), tome as providências necessárias à justa defesa do conjunto de entidades que à radiodifusão, no seu aspecto comercial, tem prestado o concurso de uma vida de canseiras e responsabilidades.
É necessário e urgente que sobre este preocupante problema se pronuncie uma palavra autorizada e tranquilizadora.
Tratasse, afinal, de uma questão de justiça distributiva, que é certamente aquela a que os cidadãos são mais sensíveis.
E a esse sentimento de justiça não quererá o Governo - pelo que conhecemos dos seus homens e dos seus princípios - manter-se indiferente e distante.
Tal é o nosso voto e a nossa esperança.
Tenho dito.

Vozes : - Muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Urgel Horta : - Sr. Presidente : em sessão de 27 de Abril próximo passado, desta VI Legislatura, abordámos neste lugar problema de alta importância na vida da Nação - o problema da Indústria da siderurgia -, requerendo então, pelo Ministério da Economia, nos fossem fornecidos determinados elementos que nos habilitassem a esclarecer e a compreender assunto de tão notável magnitude e actualidade. Um dever de consciência, determinado pela seriedade e dignidade que ou todas as circunstâncias preside aos nossos actos, leva-nos neste momento a fazer certas considerações genéricas, necessárias e oportunas. E queremos também cumprir a palavra dada ao Sr. Ministro da Economia, a quem rendemos a homenagem da nossa admiração, quando com S. Exa. falámos acerca da siderurgia e lhe afirmámos que, fossem quais fossem as circunstâncias, não nos dispensaríamos de na Assembleia Nacional tratar de assunto de tanta importância como é o problema da siderurgia.
Sr. Presidente: exercemos com o maior orgulho e a mais ampla liberdade a missão que, como Deputado da Nação, nos foi confiada. Nunca dentro desta Casa nos foi levantada a mais ligeira sombra de embaraço à liberdade de expormos com toda a clareza e com toda a verdade as nossas opiniões. A crítica séria, objectiva, feita com aquela dignidade e isenção que deve orientá-la, tem efeitos benéficos, salutares. A crítica sistemática, revelando facciosismo, má fé, é deletéria, inimiga da acção, contrária aos interesses da colectividade, aos interesses da grei. E porque assim é, Sr. Presidente, julgamo-nos na obrigação de, ao abordar o problema siderúrgico, o fazer antecedido destas ligeiras considerações.
Mas, Sr. Presidente, queremos iniciar as nossas considerações fazendo uma afirmação: a melhor defesa da localização no Norte do País é feita pela Siderurgia Nacional, sociedade anónima de responsabilidade limitada, no relatório apresentado ao Governo, visto que as conclusões tiradas, umas à base de hipóteses falíveis, sujeitas nos maiores erros, outras absolutamente forçadas e outras destituídas de um fundo sólido em que possa assentar um conceito verdadeiro, assim o fazem compreender a quem atentamente lê essa exposição.
Não pode, Sr. Presidente, sobrepor-se a técnica às benéficas realidades com que a natureza nos dotou em recursos materiais, fonte da maior riqueza.
Sr. Presidente: a siderurgia. indústria do ferro e, especialmente, do aço, pode e deve considerar-se como indústria da maior projecção e da maior importância no Mundo, como valor excepcional das actividades económicas e sociais. Movimenta como nenhuma outra uma quantidade extraordinàriamente grande de matérias-primas, exigindo investimentos de tamanha enormidade, de grande volume, quer para a sua montagem e organização, quer para aperfeiçoamento dos seus equipamentos de natureza técnica.

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Impõe-se, para seu completo êxito, num país como o nosso, que pretende instituí-la, estudo profundo e consciencioso, orientado no melhor e mais proveitoso conceito para bem da economia. O seu desenvolvimento impõe directrizes a todo o desenvolvimento industrial, dependendo também desse esse movimento. Há muito se deveria ter iniciado a exploração dos nossos abundantes jazigos de minério. espalhados pelo País, como alta medida de valorizarão da nossa terra.
E agora chegada a oportunidade para tão grande empreendimento, e ao Estado Novo, com as sérias e vigorosas normas da sua Administração, instituídas por Salazar, se deverá a realização de tão marcado interesse na elevação do nível de vida e prosperidade de um povo que bem merece tudo o carinho dos seus governantes.
Sr. Presidente: tudo quanto vamos expor é fruto do apaixonado interesse que dedicamos à siderurgia e de conhecimentos obtidos na consulta de publicações nacionais e estrangeiras e ainda de relatórios subscritos por autorizadas personalidades especializadas na matéria. E é à volta do problema da localização da indústria - que entendemos deve estabelecer-se no Norte do País - que vão girar as nossas considerações, baseadas no aspecto técnico, económico, social, político e moral, e em franca concordância com os pareceres emitidos em relatórios de entidades responsáveis e de opiniões claramente expressas por membros desta Assembleia, a quem não falta autoridade para poderem pronunciar-se.
A escolha obedece a múltiplos factores a considerar em problema de tanta importância, necessitando estudo consciencioso e atento, olhando o presente, mas não esquecendo o futuro.
Há que atender a dados de natureza económica, técnica, social e política. A melhor localização seria evidentemente onde existisse minério de ferro, onde existisse o carvão de coque ou coquizável.

O Sr. Mário de Albuquerque: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Mário de Albuquerque: - O que V. Exa. acaba de dizer é apenas uma teoria.

O Orador:- É a minha opinião.

O Sr. Mário de Albuquerque: - Está bem, é uma opinião que muito prezo, mas a verdade e que grande parte da siderurgia, nomeadamente na América, não está nos centros produtores das matérias-primas e sim nos centros consumidores. Se na Europa a siderurgia continua a não seguir os centros consumidores, a razão é a de que se criou nos centros produtores uma atmosfera própria para esse desenvolvimento. Há, por assim dizer, na frase de um economista recente, um mimetismo económico, pois aí se criaram operários especializados, para aí se abriram vias de comunicação apropriadas e para aí se canalizaram todas as energias. É uma pura questão de tradição, o que não acontece entre nós, onde a indústria vai aparecer pela primeira vez.

O Orador: - Mas a coexistência do ferro e carvão seria a localização ideal. Seja-me, porém, permitido citar opiniões de pessoas e entidades que vêem independente e objectivamente o problema, colocando acima de qualquer interesse o interesse da Nação.
Assim, em 1943, o engenheiro Ezequiel de Campos, perfeito conhecedor do problema, afirmava «que lhe parecia que o Note do País se avantajava muito ao Sul para fabrico do ferro».
Em 1952 o Prof. Ferreira Dias afirmava a «que a localização óptima para o conjunto parecia estar na região do Porto, por ser a que conduz ao mínimo de transporte para a siderurgia».
Já em 1950 o Ministro da Economia, num dos seus despachos, asseverava:
«Que a situação no mapa das nossas grandes massas de minério de ferro condiciona a localização da indústria, que não pode deixar de ser no Norte do País e de preferência junto à costa».
O parecer da Câmara Corporativa sobre o Plano de Fomento, na parte respeitante à siderurgia, exprimia-se assim:
«Por outro lado, os estudos já feitos, tendo em conta a localização do minério de ferro e de carvão e das principais fontes de energia eléctrica, levam à conclusão, que não oferece dúvidas, de que a localização óptima da indústria é na vizinhança do Porto. Fica, portanto, assente que haverá uma única laminaria instaladas na vizinhança do Porto. Aí se reunirão as gusas, as lupas e as sucatas».
Em 1952 os peritos americanos que vieram estudar os recursos energéticos e minerais da bacia do Douro deram parecer afirmando que deveria pertencer ao Norte a instalação da siderurgia.
Ainda em 1952 a Companhia de Cimento Tejo, ne projecto apresentado do local a escolher para as oficinas de siderurgia, opinava:
«Será no Porto, naturalmente aconselhada para distribuição no País dos principais elementos que interessam directamente as indústrias».
Algures, no mesmo projecto, diz:
«A disposição geográfica dos centros fornecedores o a localização no Norte do País dos elementos em que se terá de buscar o futuro desenvolvimento da indústria leva, só por si, à implantação da nova unidade siderúrgica numa zona dos arredores do Porto e junto do mar, que representa um centro de gravidade industrial».
«Altos fornos, electrossiderurgia da gusa, aciaria, laminagem, tudo se fará nos arredores do Porto».
Sr. Presidente: após a citação das opiniões que acabamos de ouvir, e muitas outras poderia apresentar, recordemos as condições a que deverá obedecer a escolha do local para estabelecimento da indústria. Em princípio, deveria atender-se a tudo quanto represente embaratecimento dos materiais, o que, evidentemente, se reflectirá no preço do produto acabado.
Situação relacionada com o local de origem das matérias-primas, com a rede nacional de comunicações, com a rede de energia eléctrica, com abastecimento de água em quantidade suficiente para uso da indústria. Condições de terreno para fundações; vizinhança dos centros industriais, etc. E não será descabido lembrar o que um engenheiro ilustre, o Sr. Nobre da Costa, considera como condições mínimas para se poder montar uma oficina siderúrgica:
Localização junto a um centro de comunicações de importância, com estradas e instalações ferroviárias, assim como a existência de um porto com capacidade suficientemente grande para, através dele, se efectuar o tráfego inerente à indústria. Proximidade de um centro populacional onde facilmente possa fazer-se o recrutamento do pessoal para funcionamento da indústria.
Existência de um manancial abastecedor de água doce, necessária ao funcionamento da indústria, e ainda localização perto de uma rede eléctrica capaz de satisfazer as necessidades de energia.

Ora, Sr. Presidente, pode bem afirmar-se que todo esse conjunto de condições citadas em parte alguma se encontram tão reunidas como na região situada no

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Norte do Porto, especialmente entre Matosinhos e Vila do Conde.
Sr. Presidente: nunca, até ao presente, o problema respeitante à localização no Norte do País da siderurgia nacional foi objecto de discordâncias.
Não existiam dúvidas a tal respeito e essa ideia vivia em certeza no pensamento da sua população. Se algumas discordâncias havia, eram discordâncias de natureza técnica, que não brigavam com a escolha do local.
O próprio Governo o compreendia da mesma forma.
Mas os tempos mudaram e os homens, hesitantes nos seus desígnios e fracos na acção, não sabem ver o problema colocados em plano superior, obstinando-se na defesa de soluções por nós julgadas menos próprias e monos úteis ao interesse da grei.
É no Norte que existe a maior quantidade de matéria-base donde se há-de extrair o ferro, ou melhor o aço, sob as diferentes formas da sua utilização. É no Norte que existem os mais notáveis e mais abundantes jazigos de minério.
Alguns são de tanta grandeza, possuem reservas de tanto volume que não é possível avaliar com justiça a sua enormidade. Queremos referir-nos aos situados no concelhio de Moncorvo e em Roboredo e Cabeço da Mua, donde diariamente saem em três comboios de via estreita 800 t destinadas à exportação, e mais sairiam se os meios de transporte o permitissem.
Ainda em Trás-os-Montes existem os jazigos de Vila Cova do Marão, cujas reservas devem exceder em muito os 20 000 000 t, sendo estas hematites os minérios mais conscientemente estudados.
A 30 km de Bragança, zona noroeste, perto da fronteira, existem os jazigos de Guadramil - limonites e siderites -, cujo reconhecimento está efectuado até à profundidade de 50 m, calculando-se as reservas no valor de l 000 000 t de limonite e 2 500 000 t de siderites.
No Sul - Cercal e Odemira - existem os jazigos de hematites e limonites do litoral alentejano, e ainda Orada, que são classificados por alguns como dos melhores minérios da Europa.
De norte a sul do País existe uma extensão de jazigos que poderão vir a ser explorados. E ainda as cinzas das nossas pirites do Alentejo, resíduos do fabrico do ácido sulfúrico, e que se encontram junto das instalações industriais do Barreiro, da Póvoa de Santa Iria e de Setúbal, podendo presentemente dispor-se de 100 000 t, cinzas a que alguém pretende dar a primazia na nossa siderurgia. Não se roube às pirites a importância que elas possuem, o valor que representam, mas compare-se o seu valor com o dos outros jazigos, olhando não só o presente, mas não esquecendo também o futuro.

O Sr. Mário de Albuquerque: - Eu li um relatório oficial do director do porto de Leixões em que se afirma que no fim do século esse porto deve ter atingido a sua saturação, e que o grande porto deve vir a ser o de Aveiro.
Parece que o porto de Leixões é de estende-encolhe, conforme as necessidades dialécticas.

O Orador: - Sr. Presidente: uma oficina do siderurgia necessita de um porto como o de Leixões, satisfazendo as necessidades de um tráfego pesado, com instalações capazes e susceptível ainda de ser alargado na sua capacidade. Não se compreende a lembrança de outra instituição portuária, que terá de criar-se à custa de elevados capitais e cujo estudo está ainda por fazer. Os meios de transporte por caminhos de ferro, quer para materiais, quer para expedição do fabrico siderúrgico, desempenham notável papel neste grande ramo industrial, e a sua rede de ligação aos locais da sua instalação no Norte ou no Sul é bem diferente na sua extensão e, portanto, no seu custo. E no respeitante a água, «a solução no Norte é clara e segura, o mesmo não sucedendo no Sul, navegando no mar das hipóteses, dependente de estudos a fazer, devendo considerar-se incerto».
O não conhecimento da existência de água própria, indispensável à manutenção da indústria, é contra-indicação absoluta ao fim que se pretende. No Norte as fontes necessárias para tal fim, vindo das mais diversas proveniências, são de uma abundância a toda a prova. E não falta o terreno com as condições indispensáveis para as fundações a realizar.
Parece haver no problema da escolha da localização uma preocupação bem demonstrada e bem clara de fazer das cinzas das pirites um minério base para os leitos de fusão. Mas as reservas totais das pirites estão calculadas apenas para vinte anos e, a continuar-se no ritmo actual de extracção, estariam somente garantidas para a exploração por dez anos e, segundo opinião de um técnico muito distinto. E diz mais: sendo assim, é necessário não se fazerem exportações como até aqui, visto existirem indústrias que delas necessitam.
As cinzas das pirites estão ligadas ao desenvolvimento do fabrico do ácido sulfúrico e seus derivados - superfosfatos, sulfato de amónio, etc. -, e, portanto, na sua dependência, e as suas reservas são, portanto, limitadas. O emprego das cinzas na base em que se pretende fazê-lo é problema capaz de trazer muita complicação.
Ora nós temos observado o suficiente para afirmar que não existe nenhum país -não somos técnicos mas podemos fazer esta afirmação, confirmada por técnicos- que haja montado a sua siderurgia partindo das cinzas das pirites, existindo nos seus territórios, aliás, jazigos de ferro de tão notório e comprovado valor.
A siderurgia devia, em nosso entender, ter a sua base nos jazigos naturais, que só o Norte do País possui em abundância. Pretende-se quis a capacidade do produção atinja 150 000 t anuais, compreendendo gusas e laminados.
E eu pergunto: as pirites serão em quantidade tal que possam suportar as necessidades da siderurgia à base da sua produção? Já vimos que tal não pude ser. Não devem repetir-se os erros cometido nas instalações de outras indústrias.
Outro aspecto: por tudo quanto se sabe, julgamos poder afirmar que se caminha para a solução do alto forno a coque. E será esta a melhor solução? Teremos de importar a hulha para fabrico do coque, carvão que deverá ser proveniente de países estrangeiros ou vir da nossa província de Moçambique, se ali existir em quantidade suficiente.
Quer dizer: a nossa indústria siderúrgica, que deveria ser verdadeiramente nacional, ficará na dependência de mercados estranhos e, pelos cálculos, acarretar-nos-á esse facto um encargo calculado à volta de 100 000 contos.
Mas esse encargo dá possibilidades iguais ao Sul e ao Norte para a sua instalação. O coque importado via Leixões, em barcos vindos do Norte da Europa, que a maior parte das vezes têm frete de retorno, poderá ser favorável à solução Norte para a siderurgia.
O que é fundamental é obter-se o cálculo do custo fabril do produto acabado, posto que para esse cálculo se tenha de entrar no campo das hipóteses. E é curioso.
Para se chegar a determinados fins, organizaram-se quatro leitos de fusão, com quatro lotes de minérios em diferentes percentagens, provenientes de Moncorvo, cinzas de pirite, Cercal e Orada, estabelecendo relação com cada um dos locais que se candidatavam à sede da indústria: Leixões, Alcochete e Setúbal; atendendo de-

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pois ao custo dos transportes do minério, ao custo do coque, das castinas e das sucatas, e seu consumo; no custo local da mão-de-obra, existo de transporto de produtos acabados para os centros de Lisboa e Porto e ainda encargos de instalações complementares.
Pois, Sr. Presidente, verificaram-se assim diferenças mínimas nos preços fabris a que se chegou, baseando entre l e 2,5 por cento, verificando-se assim que as três localizações se equivalem, apesar de as hipóteses adoptadas serem reveladoras de muita incerteza.
E porque não poderemos fazer hipóteses mais aceitáveis, mais em harmonia com a realidade e com a independência exigida pelo interesse nacional, dando ao coque o mesmo valor no Porto e em Lisboa, o que não se fez; desenvolvendo a indústria de sucata no Norte em igualdade de preços com o Sul, e a diferença sensível existente de Lisboa para o Porto, Porto-Matosinhos, onde a mão-de-obra é mais barata? Facilmente se conseguirá uma diminuição bem sensível no preço de toneladas de laminados, e, portanto, igual o custo dos fabricos; mas isto sem favor.
Conclui-se dos estudos feitos, em harmonia com as hipóteses apresentadas, conclui-se, Sr. Presidente, apesar de tudo, que não existem diferenças no custo do produto fabril acabado, e como os leitos de fusão donde se partiu têm apenas 15 e 31 por cento de minério do Norte temos de admitir ser vantajosa, excepcionalmente vantajosa, a localização no Norte, que suporta o transporte de 69 a 85 por cento de minérios do Sul. Esta é a grande e indesmentível verdade.
Sr. Presidente: já o disse aqui mais de uma vez e não me cansarei de o repetir: a nossa siderurgia deverá ser eminentemente nacional, vivendo dos nossos próprios recursos, das matérias-primas espalhadas pelo País, orientando-se numa finalidade de melhoria e progresso da nossa balança económica e tendendo para a constituição de grandes unidades, das quais se obtenha o maior rendimento e o maior proveito público. Possuímos minério de ferro em jazigos riquíssimos, com milhões e milhões ide toneladas. Não nos faltam carvões minerais, antracite, lignite e trufa, carvões não coquizáveis, como seria necessário, mas cujo valor calorífero, do ponto de vista metalúrgico, não está ainda convenientemente estudado. Não possuímos, infelizmente, o coque, produto da extracção da hulha, o que nos obrigará a importá-la, não alterando para mais o seu transporte dirigido a Leixões. Temos calcários em abundância em Cantanhede e no Marão; mármores e lioz brancos ou corados por óxidos de ferro no distrito de Bragança e noutras; localidades. E temos as sucatas, cuja existência o Ministro engenheiro Daniel Barbosa avaliava em 20 000 t, o que não será suficiente, havendo necessidade de importar.
E possuímos ainda em franco progresso de criação e existência as grandes barragens, os notáveis aproveitamentos hidroeléctricos, cujas centrais se multiplicam dia a dia, uma das maiores e mais benéficas realizações do Estado Novo, fonte que encerra uma enorme parcela do nosso ascensional revigoramento económico e social, cujo potencial dentro de período relativamente curto poderá fornecer energia u nossa indústria siderúrgica e a Iodos os sectores da vida nacional que dela careçam e com ela aproveitem. E o emprego desse enorme potencial, que na sua utilização não se presta a jogos de números, poderia fazer da nossa siderurgia a nossa electrossiderurgia, aproveitando recursos próprios, dando-nos uma independência perante estranhos. Não estará aqui a grande chave do problema?
Sr. Presidente: mas o problema terá de ser encarado ainda sob o seu aspecto social, de tão grande importância, ou mais ainda, como o aspecto técnico, visto aquele não se prestar a confusões ou a erros de cálculo. A este respeito existe uma diferença, um notável desnivelamento, entre Lisboa e Porto.
O engrandecimento industrial, a concentração maciça que se pretende fazer à volta de Lisboa, à custa do Porto e do Norte, estabelecendo tantas actividades industriais, precisa de ser encarado corajosa e inteligentemente, dando possibilidades às populações mais inferiorizadas e mais desprotegidas nas condições da sua existência, tão falha de meios de luta pela vida.
Atenda-se à densidade da sua população, mesmo sob o aspecto industrial; olhe-se para o crescimento demográfico, que se verifica quase nu razão de um para quatro nas zonas do Norte; atenda-se ao seu baixo nível de vida, às dificuldades da sua manutenção, à elevada emigração que se regista no Norte, fruto da sua miséria, e dê-se-lhes u necessária compensação, visto ser ali que existem as condições necessárias e suficientes para a instalação da indústria.
E, ainda encarando o problema social para a vida das populações cujo nível é dos mais baixos do País, os membros da comissão do parecer sobre o Plano de Fomento, o escol dos economistas nacionais nos seus respectivos campos de actividade, Prof, Fernando Emídio da Silva, Arantes de Oliveira, Ferreira Dias, Afonso de Melo, Supico Pinto e outros, ao admitirem uma variante para a solução do forno Krupp-Reun, destinado a tratar os minérios de Moncorvo, declararam que a sua montagem naquela terra «teria, assim, a vantagem de constituir um interessante elemento de colonização interna no Alto Douro, que seria subtraído aos arrabaldes do Porto, e ainda porque a montagem em Moncorvo embaratece, pois, o transporte; as castinas pesam pouco».
O problema social é problema fundamental; problema essencial de vida a que tem de dedicar-se toda a atenção que ele merece e a que estão ligadas todas as actividades laborantes.
Sr. Presidente: em nossa opinião, o local que satisfaz todas as exigências, oferecendo todas as garantias, está situado numa larga faixa de terreno colocada entre Matosinhos e Vila do Conde. Não falta espaço para a montagem de todos os serviços, com terrenos de boa natureza e, portanto, próprio para as necessárias fundações.
A água poderá utilizar-se de várias origens e procedências. Leixões está pronto a ser utilizado e a ser alargado na sua capacidade, se isso se tornar necessário. As vias de comunicação estão facilitadas, quer por estrada, quer por caminho de ferro.
A relativa proximidade de grandes centros populacionais está bem clara. Situa-se bem perto da rede eléctrica, condutora da energia indispensável às necessidades inerentes ao processo siderúrgico.
O desempoeiramento é hoje facilitado pelos modernos processos usados. As escórias terão fácil escoamento e a utilidade no seu emprego não será esquecida.
Como redutor, só nos falta o coque. Este terá de ser importado, calculando-se numa importância aproximada de 100 000 contos a quantia a despender com a sua importação, e pena é que assim seja, porque se assim não fosse a nossa siderurgia seria quase inteiramente nacional.
Os cálculos do montante a despender neste investimento ultrapassarão l milhão de contos ma sua fase preliminar, o que demonstra a grandeza da obra.
Um país como o nosso, para gozar vida medianamente desafogada, precisa de resolver este problema, produzindo ferro e aço necessários ao seu labor fabril. Estamos no caminho da sua efectivação, o que honra o

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Estado Novo, que tão devotadamente tem sabido cumprir as suas obrigações perante a Nação.
E a título informativo e histórico recorde-se que nesta Câmara foi, em 21 de Abril de 1914, apresentado pelo Deputado engenheiro Lúcio de Azevedo um projecto de lei em que era concedido direito exclusivo da exploração da indústria siderúrgica a uma companhia, pelo prazo de quinze anos. Posto que se tratasse de um grande empreendimento, só três anos depois esse projecto era convertido na Lei n.º 678. Muito se trabalhou então, mas os tempos eram diferentes e não se chegou a qualquer solução útil ...
Sr. Presidente: aguardemos com serenidade e confiança as resoluções que vão tomar-se acerca de problema de tanta magnitude, de tonta grandeza e de tanta responsabilidade. Gastar-se-á l milhão de coutos numa 1.ª fase, o que a muitos se afigurará como quantia exagerada, e nós julgamos aceitável, perante os quantitativos gastos com instalações recentes noutros países. A capacidade inicial de produção adoptada será e 150 000 t de produto, sendo 130 000 t de laminados e 20 000 t de gusa.
O processo metalúrgico que deve ser escolhido para o fabrico da gusa é a redução pelo alto forno a coque, cuja importação custará aproximadamente 100 000 contos. Por este número se avalia da importância do empreendimento, que será, dentro do espaço de tempo necessário para a sua montagem, notável realidade. A sua influência sobre a vida da Nação far-se-á sentir nos seus mais diversos sectores, como forte motivo de melhoria na sua balança económica e tranquilidade no meio social.
Sr. Presidente: a todos quantos vivem a hora de renovação e engrandecimento que atravessamos, hora bendita, filha de heróicos, mas bem compensados sacrifícios, se exige a serena confiança sempre depositada no Governo que nos guia e levou ao prestígio que presentemente desfrutamos no Mundo. E como português e como Deputado, exposto o nosso pensamento, cumprindo o nosso dever, nada mais nos resta do que esperar a resolução final. Mas. seja ela qual for, continuaremos animados da mesma fé, depositando u confiança máxima um quem tão devotadamente tem sacrificado a vida a bem da Nação.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Carlos Moreira: - Pedi a palavra paru enviar para a Mesa o seguinte

Requerimento

«Requeiro, ao abrigo do artigo 96.º da Constituição e nos termos regimentais, que me sejam fornecidos polo Ministério do Interior os seguintes elementos referentes aos municípios da província de Trás-os-Montes e Alto Douro e respeitantes a cada um dos últimos cinco anos:
1.º Total das despesas efectuadas por cada um dos referidos municípios;
2.º Totais das verbas orçamentadas e despendidas com as freguesias rurais;
3.º Total das despesas efectuadas com o pessoal;
4.º Total das despesas efectuadas com a instrução;
5.º Total das verbas despendidas com a saúde e assistência.

Quanto. aos n.º 4.º e 5.º, pretende-se a destrinça entre a sede e a restante área do concelho.
Mais requeiro que me seja indicado o número de doentes tratados gratuitamente dentro da área de cada. partido medico municipal, igualmente em relação a cada um dos últimos cinco anos.

Requeiro ainda que me sejam fornecidas cópias dos relatórios e actas dos trabalhos e sessões para a elaboração do Código Administrativo vigente».

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em discussão, na generalidade, a proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto de Araújo.

O Sr. Alberto de Araújo: - Sr. Presidente: vai a Assembleia Nacional discutir e aprovar a lei de autorização de receitas e despesas para 1956.
Tem-se acentuado a tendência por parte da Administração de esclarecer o sentido em que esta se moverá na execução da Lei de Meios, fornecendo ao Poder Legislativo os elementos que fundamentalmente interessam à vida financeira e económica do País.
Desde 1946 que o Ministro das Finanças juntava à, proposta de lei de autorização de receitas e despesas uma série de dados e cálculos tendentes à melhor determinação do seu alcance e a partir de 1950 passaram a ser enviados directamente pelo referido Ministro à Assembleia elementos o informações que, junto com o parecer da Câmara Corporativa, permitiam uma discussão fundamentada nau só da Lei de Moios como de toda a administração financeira do País.
Muito gostosamente quero aqui prestar as minhas homenagens ao último Ministro das Finanças, que, nunca esquecendo a sua qualidade de Deputado, teve sempre a preocupação de dar à Assembleia Nacional e às suas Comissões de Finanças e de Economia os elementos necessários para o esclarecimento de todas as questões e problemas que n própria discussão da Lei de Meios suscita e levanta.
No prosseguimento da orientação seguida, o actual Ministro das Finanças fez preceder a proposta de lei de autorização de receitas e despesas de um relatório, a que modestamente chama unia nota explicativa, e em que, a par da enunciação das normas fundamentais que regem a Administração, se traça o panorama da conjuntura económica, nos planos interno e externo, o ao mesmo tempo se explicam os objectivos do investimento, os princípios orientadores da política fiscal, como só agrupam e como se gastam as receitas públicas.
Ao iniciar-se a discussão da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956, creio que as primeiras palavras deverão ser de louvor para o Sr. Ministro das Finanças, não só pela sua ideia de fazer preceder a Lei de Meios dum relatório explicativo, mas também pela forma notável - e nunca este adjectivo foi empregado mais apropriadamente- como deu execução ao seu pensamento.
Esse relatório é caracterizado pela precisão e clareza e dominado pela fidelidade absoluta às regras fundamentais duma boa sanidade financeira.
A conjuntura económica, no plano interno e externo, mereceu ao Sr. Ministro das Finanças algumas páginas do seu valiosíssimo trabalho, dada a dependência da economia nacional do condicionalismo externo e a íntima interdependência dos factores económicos e financeiros.
A conjuntura internacional continua a ser dominada, efectivamente, por altos níveis de produção, emprego e rendimento.
Importante, continua e geral, tais são os três qualificativos com que se classifica a expansão da produção e do comércio europeus em 1954 e no decurso dos primei-

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ros meses do ano corrente. E regista-se também que é tanto mais satisfatória esta expansão quanto é certo que ela se deu através duma grande estabilidade de preços e que a liberalização progressiva do comércio e dos câmbios, que largamente contribuiu para esta evolução, não impediu a crescente acumulação de reservas de ouro e de dólares.
Alguns números ilustram com nitidez a expansão da produção europeia nos últimos dois anos: a Inglaterra construi, em 1954, l 038 000 automóveis, contra 835 000 no ano anterior; a Alemanha 680 000, contra 490 000; a França 600 000, contra 497 000; a Itália 217 000, contra 174 000.
Apesar desta tendência expansionista, nalguns países a oferta não acompanhou a procura e houve necessidade de restringir o consumo.
Quando, na Primavera de 1954, os negócios nos Estados Unidos acusavam uma tendência para a baixa e parecia desenhar-se o prelúdio duma crise, o governo americano, aumentando as despesas e a dívida pública, reduzindo as taxas de desconto, favorecendo o investimento, facilitando o crédito e aumentando os seus stocks, procurou restabelecer o equilíbrio económico interno. Como já se disse, embora se endividando, jogou na cartada da prosperidade.
Agora nalguns países o que era necessário era restringir o consumo.
O facto adquiriu excepcional importância na Inglaterra, onde importações em Larga escala ameaçavam diminuir as reservas em ouro daquele pais e afectar, assim, a posição do esterlino. E então procurou restringir-se o consumo, aumentando-se as taxas de desconto, restringindo-se as vendas a prestações, retirando subsídios para a construção de moradias e tomando outras medidas apropriadas. Que essas medidas parecem ter resultado prova-a a circunstância de em Novembro último ter melhorado a posição do esterlino e de os jornais ingleses terem dito que a libra podia, mais uma vez e de frente, encarar o dólar.
Tanto o que se passou nos Estados Unidos na Primavera de 1954, como o que acaba de passar-se em Inglaterra, demonstra que o cursados fenómenos da produção e do consumo não pode ser deixado ao acaso e que ao Estado incumbe estar vigilante e atento para, através de medidas apropriadas, restabelecer o seu equilíbrio.
O comércio intereuropeu deve, em grande parte, a sua actual expansão às medidas de liberalização adoptadas e ti substituição das trocas bilaterais por um sistema mais amplo de liquidações o pagamentos, do qual tem também, sob certo modo, beneficiado a nossa economia.
Não temos sido um tropeço na marcha regular da União Europeia de Pagamentos para a realização dos seus objectivos finais. Antes, pelo contrário, temos sido elemento operante e útil da reconstituição europeia, pela solidez cio nosso crédito e da nossa moeda, e não só temos sido dos primeiros a dar a nossa concordância às sucessivas propostas de liberalizarão, como os primeiros temos sido também a executar, na prática e em larga escala, os compromissos assumidos.
Esta política de liberalização comercial, se tem facilitado as importações no País, tem também permitido a maior exportação dalguns dos produtos tradicionais da nossa economia. É o caso das conservas, a que alude o relatório da proposta.
Tendo sido atingidas altas percentagens de liberalização do comércio intereuropeu, procura-se agora manter a alto nível as trocas internacionais e caminhar simultaneamente para fórmulas mais estáveis de convertibilidade monetária.
O relatório da proposta foca lapidarmente estes dois objectivos da política económica europeia.
Para intensificação e aumento geral do comércio não basta, porém, decretar uma ampla liberalização de trocas. ]5 necessário conjugar a liberalização com uma política pautai que, por demasiado severa, não a venha a prejudicar profundamente. E é indispensável também que as nações, como os indivíduos, se abstenham de práticas desleais e irregulares no campo da concorrência.
Se há nações que, pela solidez da sua posição monetária e das suas finanças internas, não receariam que se regressasse ao sistema da convertibilidade, parece estarmos longe ainda de atingir esse termos da actual evolução do comércio e dos câmbios.
Londres foi, durante muito tempo, a praça e a banca do Mundo, o esterlino continua a ter grande influência no altercado dos capitais e dos câmbios e não é possível falar de convertibilidade das moedas, pelo menus em bases estáveis, enquanto a libra não readquirir a sua. posição tradicional cie garantia e de solidez.
No fundo, o problema da convertibilidade das moedas europeias excede o seu quadro regional e está dependente de uma mais ampla comunicabilidade entre os mercados do Velho e do Novo Mundo.
A América tem, até agora, aplicado somas avultadas de ouro no continente europeu, sob a forma de empréstimos, compra de matérias-primas estratégicas, manutenção de forças militares, etc. Mas tem persistido em proteger o seu comércio e a sua produção internos através da manutenção e, por vezes, do agrava mento de elevados direitos aduaneiros.
A Europa reconhece o valor da ajuda americana. Mas desejaria que em época normal o equilíbrio entre a zona do dólar e a zona europeia se fizesse pelo jogo regular dos factores económicos e um condições, tanto quanto possível, iguais de competição e de concorrência. Só assim se poderia assegurar uma corrente recíproca, entre a Europa e a América, de divisas e cambiais que garantisse a estabilidade e duração da convertibilidade geral das moedas.
Ainda há pouco um economista britânico, o visconde Harcourt, num artigo publicado em The Commercial and Financial Chornicle, de 27 de Outubro último, afirmava que não se podia pensar na convertibilidade do esterlino enquanto essa convertibilidade não se pudesse manter, tanto com bom como com mau tempo. E escrevia que nada podia ser mais desastroso para o comércio mundial do que a repetição dos acontecimentos de 1947, quando o esterlino se tornou prematuramente convertível.
Na opinião daquele articulista, a primeira condição para a Inglaterra regressar à convertibilidade é ter a sua casa perfeitamente em ordem, a segunda será possuir reservas adequadas em ouro e a terceira ter garantias razoáveis de uma balança de pagamentos equilibrada com os Esta dos Unidos. Ainda segundo a opinião do mesmo articulista, a América, nos últimos cinco anos, enviou para os outros países do Mundo 10 biliões, de dólares mais do que recebeu destes, devendo os contribuintes americanos ter pago generosamente, neste período, perto de 12 biliões de dólares para ajuda ao estrangeiro.
É evidente que essa ajuda vai continuar, tanto mais quo para esse efeito o Congresso votou uma verba que se aproxima de 2 biliões de dólares para o próximo ano. Mas estas soluções de ajuda temporária não satisfazem os ingleses. O que estes desejam e com eles as nações europeias é que sejam autorizados a lutar pela obtenção de dólares no próprio mercado americano em condições razoáveis de concorrência. Querem, em suma, pelo seu próprio esforço ganhar, em regime normal de concorrência, os dólares necessários para pagar os pró-

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dutos de que a Europa precisa e que, no fundo, os americanos estuo ansiosos para exportar.
Mas, apesar de tudo quanto se tem dito em matéria de comércio livre, os Estados Unidos têm mantido as fronteiras aduaneiras que protegem a sua indústria e a sua produção, e ainda bem recentemente as relações comerciais anglo-americanas foram prejudicadas pelo agravamento, em Agosto último, de tarifas, que visava, sobretudo, a importação ,de determinados produtos ingleses.
Esse aumento pautai não se traduziu, de facto, por um encarecimento sensível dos produtos cujos direitos foram agravados no mercado americano. Mas produziu uma impressão de desapontamento nos meios financeiros e comerciais europeus, impressão essa qiws se acentuou em face do falado caso da barragem Chief Jo-seph.
Tinha sido uma empresa britânica que apresentara para o conjunto dos trabalhos a fazer a proposta mais vantajosa. Todavia, o Governo Americano recusou essa proposta e adjudicou u empreitada a uma empresa do seu país. Londres fez um enérgico protesto em Washington e o Governo dois Estados Unidos logo propôs uma modificação ao Buy American Act, pela qual as empresas estrangeiras não são autorizadas de futuro a concorrer aos grandes trabalhos públicos americanos.
Talvez para ateimar a má impressão destes incidentes, o Governo Americano anunciou que na próxima conferência, que deverá possivelmente reunir-se em Genebra no princípio do próximo ano, proporá uma redução de 15 por cento em iodos os direitos, u efectuar-se no período de três anos, ou seja à razão de 5 por cento em cada ano.
O problema da convertibilidade monetária acha-se, de facto, em grande parte dependente da atitude que os Estados Unidos venham a tomar, não só por virtude da sua posição no comércio internacional, mas também em consequência de possuírem o maior stock mundial de ouro e dominarem os seus movimentos e o seu preço.
Recentemente, ainda na reunião do Fundo Monetário Internacional em Istambul, o Ministro das Finanças da União Sul-Africana insistiu, como sempre, pela revisão do preço do ouro. Mas logo o Subsecretário do Tesouro americano interveio para dizer que a valorização do ouro, por implicar a desvalorização do dólar, era uma medida inflacionista. E com esta frase feita matou a questão.
Embora, portanto, a convertibilidade continue a ser o ideal monetário a atingir, é dentro dos quadros actuais e no sistema de compensação multilateral e de créditos automáticos instituído, com tão bons resultados, pela União Europeia de Pagamentos que nos tempos mais próximos terá de mover-se o comércio externo das nações do Ocidente.
No parecer da Câmara Corporativa põe-se em relevo os inconvenientes que resultam para o desenvolvimento da exportação mundial do facto de existirem vastas zonas que eram elementos importantes d« equilíbrio do comércio internacional e estão agora fora da organização que, através de um sistema de compensação multilateral, procura precisamente impulsioná-lo e desenvolvê-lo.
Como se nota naquele parecer, as condições de comunicabilidade económica existentes antes da primeira guerra mundial, e em que Londres era praça mundial e centro importante de negócios e compensações, estão hoje substituídas por via convencional. Todavia, a União Europeia de Pagamentos abrange uma área territorial restrita e a ela não pertencem, entre outros, nem os países do Leste europeu nem as nações sul-americanas.
O facto reveste especial importância para nós, sobretudo relativamente ao Brasil, pela possibilidade de desenvolvermos as relações comerciais com aquele país, se ele fizesse, juntamente connosco, parte de uma organização internacional em que interessa muito mais o equilíbrio do conjunto do que o equilíbrio das trocas recíprocas de um dos seus membros relativamente a outro.
Segundo o último relatório do Banco Internacional de Pagamentos, a posição cambial do Brasil sofre neste momento a dupla influência de uma política interna inflacionista e do preço do café no mercado mundial.
A evolução da situação económica interna e da balança de pagamentos do Brasil levou o Governo daquele país, em Abril último, a decretar unia nova revisão do câmbio mínimo aplicável às importações, e que varia entre 43.82 cruzeiros para as mercadorias da 1.ª categoria de 118,82 para as mercadorias da classe 5.ª, que são as que principalmente interessam à exportação portuguesa para aquele mercado.

O Sr. Melo Machado: - V. Ex.ª talvez nos soubesse explicar a razão dessa mutação nas nossas relações com o Brasil, porque justamente o que sucedia antigamente era o contrário, ao passo que agora, como que milagrosamente, surge um panorama quase completamente oposto.

O Orador: - O que eu quero dizer é que o actual sistema em vigor no Brasil que agrava o ágio do câmbio oficial, à medida que diminui a essencialidade das mercadorias, cria dificuldades à exportação dos produtos portugueses para o Brasil, dada, sobretudo, a circunstância de o s dois países possuírem economias paralelas.
Da lúcida e utilíssima exposição feita na última semana pelo Sr. Ministro da Economia à imprensa vê-se que as nossas exportações para o Brasil, de 1 de Janeiro a 31 de Outubro do ano corrente, andaram à volta de 50 000 coutos, e como se vê também da mesma exposição, o Governo, no prosseguimento da sua política de querer dar àquele país as maiores possibilidades de meios de pagamento, resolveu comprar ali as 1050 t de carne destinadas ao abastecimento público.
É, portanto, de desejar o alargamento da área territorial das organizações que visam precisamente estabelecer condições de maior comunicabilidade entre os povos, a não ser que o impeçam razões de segurança, como sensatamente se afirma no parecer da Câmara Corporativa.
A propósito do alargamento do comércio internacional a países que total ou parcialmente estão fura dele, é interessante registar que a Comissão Económica de Assuntos Europeus das Nações Unidas procurou recentemente avaliar, em ordem de grandeza, o valor total do comércio dos países do Leste, tanto entre si como com o resto do mundo. Segundo esses cálculos, o comércio externo destes países em 1953 atingiu 16,3 biliões de dólares, dos quais 3,5 biliões relativos a comércio com o Oeste e 12,8 biliões de trocas entre si. Nesse mesmo ano as trocas comerciais do Ocidente atingiram 140,3 biliões de dólares.
Sr. Presidente: em 1954 o nosso comércio externo metropolitano totalizou 10 085 milhares de contos na importarão e 7 297 milhares de contos na exportação, acusando um déficit que, embora no montante de 2788 milhares de contos, era menor em cerca de 0,5 milhão de contos relativamente ao de 1953, e isto em razão de o aumento do valor das importações ter sido largamente excedido pelo aumento das exportações (cerca de 1 milhão de contos).
Ainda relativamente a 1954 a balança comercial ultramarina, que no ano anterior fechara com um

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saldo positivo de 609 anilhares de contos, ressente-se da baixa de cotação de certos produtos, nomeadamente o café, cuja exportação diminui em Angola perto de 600 milhares de coutos relativamente a 1953.
Apesar da posição deficitária da balança comercial, o conjunto da balança de pagamentos apresentou em 1954 um saldo positivo de cerca de 1,5 milhões de contos.
No 1.º semestre de 1955, porém, depois de alguns anos de saldos positivos, a balança de pagamentos, pela primeira vez, regista um saldo negativo, no montante de 376 milhares de contos. Conforme se diz no parecer da Câmara Corporativa, tendo sido nos primeiros seis meses de 1954 de 912 milhares de contos o saldo positivo da balança de pagamentos, isso equivale a que a situação da balança de pagamentos gerais do País se agravou em 1288 milhares de contos relativamente ao 1.º semestre do ano passado. Essa diminuição no total de créditos do Pais deve-se ao agravamento do saldo negativo da balança comercial da metrópole (282 milhares de contos), à baixa do saldo positivo da balança comercial do ultramar e à diminuição do saldo positivo da balança de invisíveis (405 milhares de contos).
Só no fim do corrente ano, e conhecidos todos os factores que entram na composição da balança de invisíveis, se poderá ajuizar da sua verdadeira posição. Desde já se pode concluir que ela vem sendo directamente influenciada pela menor valia de algum dos produtos da nossa exportação ultramarina. Mas outros factores existem certamente que contribuíram para a diminuição do seu saldo positivo no 1.º semestre e aos quais o Governo está certamente, como sempre, vigilante e atento.
Na última conferência de imprensa o Sr. Ministro da Economia, trazendo a publico elementos recentes, esclarece o País sobre a posição exacta, neste momento, tanto da balança comercial como da balança de pagamentos.
Por eles se verifica que o déficit da balança comercial da metrópole no período de Janeiro a Outubro do corrente ano é de 2511 milharas de contos apesar de a percentagem da expansão das exportações ter excedido a percentagem no aumento da importação. Efectivamente, a um aumento de percentagem no valor das importações, relativamente a igual período de 1954, de 11,8 por cento correspondeu um aumento de 12,4 por cento no valor das exportações.
Baixaram as importações de géneros alimentícios, mas aumentou a importação de matérias-primas e registaram-se, aumentos consideráveis na compra de aparelhas, máquinas, veículos, etc.
Na exportação, os principais acréscimos registaram-se nas matérias-primas, substâncias alimentícias e manufacturas diversas. Aumentou em 26 por cento a exportação da cortiça, em 29 por cento a do volfrâmio e em 120 000 contos a exportação de conservas de sardinha.
Apesar do desequilíbrio da balança do comércio, o Sr. Ministro da Economia pôde dar ao País a notícia de que em Setembro último voltou a ser favorável o saldo da balança de pagamentos.
Relativamente aos países da U. E. P., o saldo foi desfavorável em 912 000 contos, mas, tendo sido favorável em 907 000 contos na área do dólar e em 41 000 contos noutras zonas, pôde a balança de pagamentos em Setembro fechar com um saldo positivo de 36 000 contos.
A inversão de sinal no resultado da balança de pagamentos no fim do 1.º semestre não exigia, conforme o parecer da Câmara Corporativa, medidas de emergência, dada a solidez da moeda e o volume das reservas cambiais de que dispõe o País. A competência do relator daquele parecer imprime autoridade especial a esta afirmação.
Todavia, o parecer da Câmara Corporativa acentua que a diferença de resultados da balança de pagamentos que se verificou no 1.º semestre, embora não seja motivo para alarme, deve ser considerada para o efeito de se procurar imprimir-lhe maior estabilidade, através do desenvolvimento da produção agrícola e industrial do País.
Foi o excesso da balança de invisíveis e a supervalia dalguns dos produtos da nossa exportação metropolitana e ultramarina que nos permitiram arrecadar importantes reservas cambiais. A própria intranquilidade do mundo foi-nos, sob esse aspecto, favorável. O receio de uma nova guerra levou governos e empresas a munirem-se de stocks de matérias-primas e produtos que não se podiam facilmente obter ou fazer transportar em épocas de anormalidade. A falta de garantias sociais em muitos países, a incerteza no dia de amanhã, as tributações quase confiscadoras, atraíram ao calmo ambiente político e económico português avultados capitais.
Mas esta situação excepcional não é natural que se possa manter indefinidamente. E muito menos pode e deve constituir alicerce ou segurança de uma economia.
A actual Lei de Meios é precisamente dominada pelo pensamento da necessidade de aumentar a produção agrícola e industrial do País e dar à estrutura da sua economia uma maior estabilidade.
Não só prossegue o Plano de Fomento como se prevêem outras despesas da mesma natureza à margem do Plano e pelo artigo 11.º da proposta de lei em discussão fica o Governo autorizado a adoptar as medidas de ordem fiscal consideradas convenientes a favorecer os investimentos que permitam novos fabricos, redução de custo e melhoria de qualidade dos produtos. E ainda na mesma orientação que no artigo 12.º se anuncia o propósito do Governo de promover a reorganização do crédito e organização do mercado de capitais com vista ao financiamento do fomento.
Do relatório da proposta concluem-se quais os objectivos fundamentais desta orientação de fomentar e desenvolver a riqueza do País. Em faço das contingências mundiais temos, antes de tudo, de criar uma maior suficiência económica e dar à nossa economia uma estabilidade e uma diversidade na produção que nos ponham, tanto quanto possível, a coberto dos riscos externos. Por outro lado, registando-se no País importações maciças de bens de consumo, muitos dos quais podemos produzir, é natural que se procure fomentar e desenvolver certos sectores da vida agrícola e industrial portuguesa e guardar as nossas reservas em divisas e em ouro, que são o produto acumulado do trabalho e da confiança nacionais, para aquisição daqueles bens de produção sem os quais é impossível manter o próprio ritmo do fomento.
Simplesmente este aumento de produção que se procura e se deve realmente atingir, como medida indispensável de prevenção e de segurança, tem os seus limites e tem de ficar subordinado a um certo condicionalismo. A preocupação de evitar a saída de ouro, embora de boa cautela, não pode efectivamente servir de pretexto para que se procure produzir tudo e satisfazer com produtos nossos todos os sectores do consumo. Embora no sistema actual de pagamentos inter-europeus não tenha relevância o desequilíbrio da balança de pagamentos de um país relativamente a outro é de interesse fundamental o equilíbrio do conjunto e se es factos provam ser desvantajosa uma posição permanentemente devedora a experiência já demonstrou também

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que a permanência de fortes saldos credores tem também as suas desvantagens. E como podemos nós vender os nossos vinhos, as nossas conservas, as nossas frutas se não dermos aos outros países meios de pagamento para liquidação das suas compras? É necessário, portanto, conciliar os objectivos do fomento da produção com a defesa dos sectores fundamentais da nossa riqueza tradicional.
Em épocas de normalidade, em que o mundo não disputa e paga por qualquer preço as matérias-primas e produtos necessários à guerra, e quando no nosso país estão nas fábricas as consertas, nos sobreiros a cortiça. por exportar nos armazéns e nas adegas os vinhos, toda a economia do País pode considerar-se em crise. E se é difícil alterar o carácter dos indivíduos não é também fácil modificar a fisionomia e a natureza económica das nações.
Eu creio que o Sr. Ministro das Finanças no relatório da proposta exprime com clareza as ideias do Governo quanto às directrizes a que deve subordinar-se o fomento económico.
Se eu bem apreendi o pensamento do Sr. Ministro das Finanças, procura-se sobretudo auxiliar a criação ou desenvolvimento de unidades industriais que tenham, pela natureza e preços de venda dos produtos fabricados, condições de viabilidade económica, por forma a poderem concorrer no mercado interno, e possivelmente em terceiros mercados, com produtos congéneres.
Temos de acabar com o complexo de não podermos concorrer com outras nações industriais e temos de encarar os campos largos e sadios da concorrência livre. Possuímos operários hábeis muitas matérias-primas nossas, um campo fácil e naturalmente aberto nos mercados ultramarinos. Podemos, por isso, lançar-nos numa mais ampla produção agrícola e industrial, tendo sempre, porém, em consideração que não é aconselhável fabricar produtos cujo custo de produção importe um sacrifício para o consumidor nacional, tanto mais, como já se disse, que é necessário deixar margem à importação estrangeira se quisermos assegurar a exportação dos produtos portugueses.
De resto, sempre que há uma diminuição na importação de um produto o Estado perde receita, através dos direitos aduaneiros que deixa de cobrar. De uma maneira genérica, e tendo em consideração o ponto de vista fiscal, só se compreende, como de uma maneira tão clara diz o Sr. Ministro das Finanças, que o Estado sacrifique receita quando a unidade de produção que se vem substituir ao comércio importador no consumo interno possa, pelo volume dos seus negócios, constituir uma fonte de matéria colectável que substitua em rendimento fiscal aquilo que o Estado deixou de cobrar nas alfândegas.
Fica por isso a marcar nas nossas leis de autorização das receitas e despesas do Estado um sábio e prudente princípio de política económica e de fomento - o artigo 11.º da proposta de lei em discussão, que autoriza o Governo a adoptar as medidas de ordem fiscal consideradas convenientes a favorecer os investimentos que permitam novos fabricos, redução de custo e melhoria de qualidade.
Em toda a parte se considera indispensável para que na indústria e a agricultura tenham condições desafogadas de vida e possuiu enfrentar a concorrência que produzam nas melhores condições possíveis de custo e de qualidade.
Este problema de menores custos, a que o artigo 11.º da Lei de Meios faz referência, é considerado hoje dos problemas mais importantes nas grandes nações produtoras do Mundo.
Os menores custos não dependem só de bons equipamentos, energia barata e matérias-primas a baixo preço. Dependem também da organização racional da empresa e do trabalho, com o fim de assegurar a este a maior produtividade possível.
Durante a última guerra certos países industriais, nomeadamente a Grã-Bretanha, procuraram examinar os métodos de produção americanos e a sua aplicação à Europa.
Chegou-se, então, à conclusão de que havia grandes diferenças nas taxas, de produtividade entre a América e a Grã-Bretanha e uma grande diferença também na produção por trabalhador num e noutro país.
Desde então, nomeadamente desde o aparecimento em 1948 da obra intitulada Co-mparative Productivity in British and American Industry, o assunto passou a ser aprofundado e tratado por diversos políticos e economistas, dada a importância da relação entre a produção e o número de horas de trabalho necessárias para essa mesma produção.
O problema da produtividade do trabalho não interessa apenas o custo de produção. Interessa também o nível dos salários, o consumo, o nível da vida em geral, dado que o homem ocupa o primeiro plano na vida económica, na sua qualidade de produtor e de consumidor. Não se deve nunca perder de vista que nas economias que atingiram o pleno emprego toda a expansão económica só se pode obter à custa de uma maior produtividade do trabalho.
Dada a importância deste problema, uma das modalidades que revestiu o auxílio americano à Europa foi e envio de numerosas missões aos Estados Unidos, muitas das quais ali estagiaram, a fim de estudarem as laxas de produtividade naquela grande nação industrial, e que publicaram numerosos relatórios e documentos coligidos depois pela O. E. C. E., para poderem servir de elementos de estudo aos países 'membros daquela organização.

De uma maneira geral as missões enviadas constataram que a média das taxa» de produtividade do conjunto dos países europeus estava relativamente u América iia proporção de l para 3, cifras estas que foram corroboradas pelos cálculos sobre o rendimento nacional por habitante.
Segundo uma publicação belga -o Bulletin d'Information et de Documentation, do Banco Nacional da Bélgica, do qual extraí estes elementos, as missões europeias que foram aos Estados Unidos chegaram nesta matéria a três conclusões fundamentais: em primeiro lugar, todas as missões ficaram impressionadas com o clima social nu qual se desenvolve a actividade económica das empresas americanas. E fora de dúvida que a fé no progresso, que caracteriza aquela nação, constitui uma força que anima os chefes de empresa, os quadros e os trabalhadores a procurarem, sem cessar, melhorar a produção. Este estado de espírito explica o valor que tinias as empresas dedicam à investigação científica, que dispõe, sem dúvida, nos Estados Unidos de recursos mais largos do que nos países europeus.
A segunda conclusão geral respeita à administração e à organização da produção e da venda, às quais os americanos ligam tão grande importância que são incluídas nos programas de ensino de diversos institutos e Universidades.
A terceira constatação das missões europeias põe em relevo aquilo a que chamam a incidência dos factores económicos. Há uma dezena de anos a preponderância americana em matéria industrial tinha explicação, segundo os chefes das empresas europeias, na extensão do mercado, na abundância de matérias-primas, na perfeição do equipamento industrial. Verifica-se agora que, além destes, outros factores, como sejam as técni-

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cas de organização e implantação, contribuem poderosamente para essa maior produtividade.
Esta consciência da necessidade de aproveitar as lições da maior organização industrial do Mundo tem tido o seu reflexo na Europa e nas nações mais poderosas e progressivas, onde se procura orientar racionalmente e em bases científicas a produção, organizar uma verdadeira técnica de venda, formar chefes de empresa competentes, instruir e aperfeiçoar trabalhadores e operários especializados.
Isto prova que, além do investimento e da mecanização, outros factores intervêm no aumento da produtividade das empresas. Como se escreve na já citada revista belga, o preço da energia, a taxa de juro, o custo da mão-de-obra e a extensão do mercado determinam duma maneira muito rígida as condições de rendabilidade, das quais dependem a utilização de novos equipamentos. Mas a aplicação generalizada dos princípios científicos da organização, da administração, da produção e da venda e o desenvolvimento das relações satisfatórias entre o capital e o trabalho são aplicáveis a todas as situações e a todas as empresas, qualquer que seja a sua grandeza, e permitem obter um aumento apreciável na produtividade do trabalho.
Não podemos estar nem estamos em Portugal alheios a estas exigências da produção moderna. E quando o Estado procura uma melhor eficiência dos serviços, combate o analfabetismo, cria as escolas de formação profissional, reorganiza o ensino técnico no sentido de formar um escol de verdadeiros dirigentes e, ao mesmo tempo, alarga a sua assistência à indústria e à agricultura, visa precisamente a maior produtividade do trabalho e o maior rendimento dos empreendimentos económicos. Muito há a fazer certamente neste sector, mas, se a harmonia entre patrões e operários é também hoje geralmente reconhecida como elemento fundamental duma maior e melhor produtividade, neste capítulo podemos orgulhar-nos de dar lições mesmo às nações mais ricas e poderosas do Mundo.

(Nesta altura assumiu a presidência o Sr. Deputada Joaquim Mendes do Amaral).

Sr. Presidente: se no campo económico a proposta da Lei de Meios exprime o pensamento do Governo de prosseguir no fomento, facilitar o crédito, auxiliar a constituição de novas unidades que, através de menores custos, melhor fabrico e maior produtividade, possam vencer o campo árduo e difícil da competição e da concorrência internacionais, desenvolver-se e prosperar sem contar principalmente com a complacente protecção pautai do Estado, sob o ponto de vista fiscal aquela proposta de lei, e afora o caso especial previsto no artigo 9.º, não se traduz em qualquer agravamento tributário.
Embora não sejam elevadas as taxas dos nossos impostos, comparativamente com outros países, há que ter em consideração diversos factores para avaliar do peso da carga fiscal. Somos um país de pequenas economias, de rendimentos reduzidos, de extrema sensibilidade às conjunturas externas e onde uni pequeno excesso ou déficit de produção muitas vezes asfixia o sector respectivo ou cria, no segundo caso, graves problemas de abastecimento.
O movimento do comércio interno depende fundamentalmente da prosperidade agrícola e a situação da indústria das maiores ou menores possibilidades do consumo interno. Não temos, por isso, uma solidez de estrutura que permita elevadas cargas tributárias.
Necessitamos, além disso, de criar capitais, favorecer o investimento, desenvolver o espírito de economia, e não é possível conciliar estes objectivos com fortes tributações.
Se algum aumento de receita se prevê no futuro, além daquele que deriva do natural alargamento e valorização da matéria colectável, é o que pode resultar de uma melhor justiça tributária. Esta afirmação do Sr. Ministro das Finanças não pode deixar de ser sublinhada nesta Câmara, porque envolve certamente o propósito de defender as pequenas e médias economias e encorajar entre elas o espírito de poupança.
O Estado, que se lança abertamente numa política de investimento, não pode querer, pela tributação, absorver o rendimento privado. Ainda em Fevereiro passado num pequeno país como o nosso o presidente do conselho de administração da Société de Banque Suisse, na assembleia geral daquela importante organização, afirmava que suprimir ou entravar fortemente a criação do capital equivalia a uma lenta ruína económica e cultural do país, visto não ser possível modernamente conceber o desenvolvimento económico sem a formação de capital. E perguntava como teria sido possível à Suíça, sem capitais suficientes, adquirir as máquinas e as instalações dispendiosas que permitem transformar em produtos fabricados mercadorias brutas importadas e compensar, assim, aquele país da sua pobreza em matérias-primas. Depois de acentuar que a melhoria das vias de comunicação, os aproveitamentos de energia e as medidas de protecção ao turismo exigem igualmente capitais consideráveis, aquele perito financeiro concluía por afirmar que quanto mais o espírito de poupança e de economia estiver arreigado no sentimento público tanto maior é a estabilidade do próprio Estado.

Sr. Presidente: afigura-se que a política fiscal de não agravamento tributário e os objectivos de fomento que a proposta de lei de autorização de receitas e despesas enuncia exprimem, afinal, uma mesma unidade de pensamento e de acção, a subordinação da economia e das finanças ao imperativo supremo do interesse nacional.

Sr. Presidente: por uma interessante coincidência o antigo Subsecretário de Estado do Tesouro subscreve, como Ministro, a lei de autorização de receitas e despesa para 1956; o Ministro anterior regressa aos trabalhos da Assembleia Nacional para lhe dar o brilho da sua inteligência e da sua alta cultura, e relata o parecer da Câmara Corporativa o estadista ilustre que foi o primeiro e digno sucessor de Salazar na gerência das finanças do Estado. Estes factos exprimem, por si, o espírito de colaboração de continuidade e de equipa que domina a vida política do País.
Periodicamente, vão sendo apresentados à Assembleia Nacional os diplomas e os documentos fundamentais da nossa administração financeira. Sem darmos por isso, vai correndo velozmente o tempo, mas, lendo as leis de meios, a Conta Geral do Estado e os relatórios que as acompanham, verifica-se que continuam a ser os mesmos os princípios austeros de sanidade financeira que os dominam e informam, embora todos os anos surjam novas promessas e novas realizações, como acontece às árvores de raízes sólidas e sadias que anualmente desabrocham em novas flores e frutos de maravilha.
E, lançando uma vista de olhos para o caminho percorrido, encarando confiantes o futuro, em cada dia que passa, em cada ciclo de tempo que se encerra, mais se fortalece e radica em nós a gratidão e o reconhecimento pelo homem que há vinte e sete anos, por entre a confiança alvoroçada da Nação, nesse sector árido e exaurido das finanças públicas, lançou à terra a semente fecunda e prometedora, que tornou possível o ressurgimento dum povo ë a própria renovação dos destinos duma pátria.

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Por incumbência do Sr. Presidente da Comissão de Finanças da Assembleia Nacional tenho a honra de, em nome desta, dar a aprovação, na generalidade, à proposta de lei em discussão.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

(Voltou a ocupar o seu lugar o Sr. presidente).

O Sr. Moura Relvas: - Sr. Presidente: a proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956 vem acompanhada de nota explicativa, que torna mais cómoda a apreciação da sua estrutura.
Mantêm-se as possibilidades de melhorar as condições económicas e sanitárias do País, com base nos princípios estabelecidos em 1928 pelo Sr. Prof. Salazar, sempre respeitados pelos dignos Ministros das Finanças que têm sobraçado a pasta de então para cá.
São dignos de especial atenção para mim, na qualidade de Deputado que se não esquece de que é médico, o capítulo V, sobre saúde pública, e o capítulo VII, sobre política rural.
A Câmara Corporativa, no seu douto parecer, analisa com muita clareza a proposta e sugere algumas modificações, não substanciais, pelo menos nos capítulos sobre os quais desejo fazer incidir a minha análise u consequente apreciação.
Tanto a proposta como o parecer consideram que devem ter preferência na política rural o abastecimento de águas, saneamento e electrificação e depois as estradas e caminhos.
Tanto esta orientação como a que vem expressa no capítulo v, respeitante à tuberculose, interessam muito a medicina rural, problema que está sem solução, pois é mais complexo do que à primeira vista pode parecer, não se reduzindo ao binário: módico de um lado e doente do outro.
No seu conjunto, o problema sanitário rural tem como fundamentais a educação das massas e o saneamento.
São factores de primordial importância os meios de medicar, os meios de transporte, a profilaxia (água potável, esgotos, higiene individual e colectiva).
Entre todos avulta o problema do saneamento, que leva o Prof. Ballesteros, catedrático de Higiene de Valhadolid, a afirmar: «para o médico rural e sua aldeia a profilaxia é hoje muito mais racional e económica que a terapêutica».
Mas as obras de saneamento, a higiene individual e a colectiva, exigem cooperação dos interessados, portanto a sua compreensão, e por aqui a educação passa a um primeiro plano. A educação das massas, graças ao dinamismo, à inteligência e ao poder realizador do Br. Veiga de Macedo, está em marcha. Aqui lhe deixo testemunhadas a minha admiração e simpatia pela magnífica obra que é a Campanha Nacional de Educação de Adultos.
O novo Subsecretário, Dr. Rebelo de Sousa, prossegue com entusiasmo o empreendimento do seu antecessor, com idêntico critério, como o provam estas suas palavras: A educação popular não pode propor-se apenas divulgar o conhecimento das primeiras letras, mas ainda valorizar e completar a formação moral e espiritual do nosso povo. Efectivamente, a aprendizagem da leitura e da escrita na idade adulta representa uma conquista de extraordinário valor, mas só atingirá a plenitude dos seus efeitos úteis se houver o cuidado de a consolidar e ampliar».
Por sua vez, o ilustre titular da pasta da Educação Nacional, num discurso cheio de brilho e elevação, afirmava há dias: «Não há dúvida de que o plano de educação popular constitui uma das providências de maior alcance da história do ensino em Portugal e unia das mais eficazes e úteis realizações do Estado Novo».
Quanto ao saneamento rural, é inegável que preocupa todos os países do Mundo e também não há dúvida de que é difícil e dispendiosa a sua realização. Difícil e dispendiosa, mas não impossível, como o prova a melhoria da vida no campo em países como a Dinamarca, a Holanda, a Suíça e a Alemanha. Nestes países a vida rural é, de facto, sol, ar puro e alimentação sadia. Não se pode dizer o mesmo das nossas habitações rurais, com falta de luz, ar confinado, convivência com animais, falta de água potável e acumulação, em vez de eliminação, das imundícies.
Que o problema sanitário rural é um problema nacional comprova-o o facto de ser a..nda rural cerca As 75 por cento da nossa população.
O urbanismo, característica do nosso século, tem-nos poupado mais do que a outros países de grande produção agrícola, como por exemplo a Dinamarca.
No princípio do século XIX cerca de 80 por cento da população dinamarquesa era rural, enquanto no princípio do século XX só era rural 45 por cento da população.
Para se atingir o devido saneamento, correspondente a três quartos da população, o nosso esforço tem de ser relativamente maior do que o exigido na Dinamarca.
Quanto à orientação adoptada nu política rural, está bem feito tudo o que se tem feito, na dupla função higiénica (abastecimento de águas, esgotos e cemitérios) e económica (estradas e caminhos) da mesma, mas tenho o dever de deixar aqui consignadas algumas preocupações e uma pequena sugestão.
Nas localidades com mais de 100 habitantes, apenas a sexta parte está abastecida de água potável. No ritmo que se tem seguido, talvez leve uns vinte anos a concluir-se o abastecimento de água a essas localidades. A sexta parte das localidades do nosso país. isto é, as que já têm água potável, está ainda muito atrasada quanto à evacuação das imundícies.
O dispêndio dessas obras de esgoto anda por metade do abastecimento de agiras dos cinco sextos que não têm ainda água potável.
A eliminação dos dejecto, com o vagar e a técnica adoptados, torna-se extraordinariamente caro e passa para um plano muito longínquo.
Admitindo que se gastem 800 000 contos na sexta parte das nossas localidades (que não têm esgotos, mas têm água), iríamos para a verba dos 4 milhões de contos para levar a cabo a obra nas restantes localidades do País. Portanto, calculando por alto, a despesa total do saneamento andaria por 5 a 6 milhões de contos.
Não tenho elementos que me permitam calcular as possibilidades financeiras do Governo para o saneamento rural, mas a lentidão com que temos caminhado permite-me deduzir que aquelas possibilidades são escassas. Custa-me pensar que morrerei sem ver realizado o saneamento do meio rural do meu país, que seria a coroação da obra de Salazar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quando o Dr. .José Lopes Dias, delegado de Saúde do distrito de Castelo Branco, deu o alarme, em 1948, acerca do nosso deficiente saneamento rural, notando a morosidade das obras, afirmou: «seria necessário modificar as condições sanitárias do ambiente, devendo promover-se; em larga escala ensaios de salubrização das águas de consumo, estabelecimento de esgotos, de balneários e de lavadouros públicos, de molde a constituírem exemplos de sani-

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dade, de objectivo utilitário e, no mesmo tempo, educativo, dispensando a intervenção complexa e por enquanto difícil dos organismos superiores em soluções de emergência económicas, mas apesar disso eficientes».
Encontramos consignadas as soluções de emergência a que se refere aquele meu ilustre colega nos tratados de higiene, escritos por professores da mais alta categoria.
Porque todos os higienistas estão de acordo sobre a magnitude dos encargos exigidos para o saneamento do meio rural, e daí o poderem ou deverem adoptar-se soluções menos dispendiosas.
Com efeito, nada terá de condenável higienizar poços e minas de consumo, o que ficaria muito menos dispendioso que a construção sistemática de fontanários. Pode dizer-se o mesmo dos esgotos, que poderiam ser substituídos por latrinas públicas em pequenas localidades.
Tem, pois a minha inteira concordância a forma como está redigido o artigo 19.º da proposta da Lei de Meios, onde a verba destinada a abastecimento de águas, electrificação e saneamento tem prioridade sobre as outras. Mas penso que esta verba deve ser substancialmente aumentada até onde for possível.
Passemos agora às relações da tuberculose com a medicina rural.
São cinquenta e seis os concelhos em que a taxa de mortalidade pela tuberculose ultrapassa a média nacional de 0,968 por mil (1952).
No distrito de Aveiro são os de Espinho, Feira, Ovar, Murtosa e Ílhavo; no de Beja são os de Aljustrel, Cuba, Alvito e Moura; no de Braga são os de Braga, Guimarães, Vila Verde, Póvoa de Lanhoso e Terras de Bouro; nos de Bragança e Castelo Branco não há nenhum concelho em que a taxa nacional seja ultrapassada; no de Coimbra são os de Coimbra, Gois, Figueira da Foz e Poiares; no de Évora não há nenhum concelho em que seja ultrapassada a taxa nacional ; no do Faro são os de Algezur, Lagos, Portimão, Alcoutim, Lagoa, Faro e Olhão; no da Guarda são os de Vila Nova de Foz Côa e Gouveia: no de Leiria são os da Marinha Grande, Nazaré e Peniche; no de Lisboa são os de Lisboa, Loures, Almada, Sintra e Vila Franca de Xira: no de Portalegre nenhum concelho ultrapassa a taxa nacional; no do Porto são os de Matosinhos, Gaia, Porto, Valongo, Gondomar, Póvoa de Varzim, Maia, Paredes, Vila do Conde e Penafiel; no de Santarém nenhum concelho ultrapassa a taxa nacional ; no de Setúbal são os de Setúbal, Barreiro, Moita e Alcochete; no de Viana do Castelo são os de Valença, Ponte de Lima, Caminha e Viana do Castelo; no de Vila Real são os de Peso da Régua e Mesão Frio; no de Viseu é o de Tondela.
Conclui-se, assim, que os concelhos mais pobres, com vias de comunicação mais precárias e com menos assistência clínica são mais poupados pela tuberculose que os concelhos ricos ou fortemente industrializados (Espinho, Barreiro, Vila Franca de Xira, Matosinhos, etc.), com vias de comunicação excelentes, derramando o germe através de mais íntimos contactos com os grandes centros.
Deve descontar-se, todavia, a circunstância de a deficiente assistência clínica dos concelhos isolados e pobres não permitir uma mais completa diagnose dos casos de tuberculose neles existentes, que devem ser mais numerosos do que rezam as estatísticas.
Podemos, todavia, afirmar que a mortalidade pela tuberculose não é particularmente alta nas áreas sem assistência.
Há males que vêm por bem, e a estes sítios nem os bacilos querem ir ...
Mas, exactamente por isso, convém exercer sobre eles mais apertada vigilância, porque no dia em que a tuberculose assentar ali arraiais ela tomará grande incremento, poderá assumir proporções dramáticas, se não se tomarem as medidas de saneamento e educação a que fiz referência.
Com efeito, nos países mais adiantados é nos campos que a taxa de mortalidade é maior, porque é evidente que nos campos o saneamento e a educação serão sempre inferiores aos dos grandes meios urbanos.
Só ontem me chegaram às mãos dados estatísticos mais recentes, de 1953, em que a taxa nacional de mortalidade pela tuberculose foi de 0,627 por mil.
São sessenta e quatro os concelhos do continente em que a taxa nacional foi ultrapassada.
No distrito de Aveiro são os de Aveiro, S. João da Madeira, Espinho, Ílhavo, Feira, Murtosa e Ovar; no de Beja são os de Mértola, Cuba, Aljustrel e Barrancos; no de Braga são os de Braga, Póvoa de Lanhoso, Guimarães, Cabeceiras de Basto e Fafe; no de Bragança é o de Vimioso; no de Castelo Branco, nenhum; no de Coimbra são os de Tábua, Pampilhosa e Coimbra; no de Évora, nenhum; no de Faro são os de Faro, Lagoa, Lagos, Monchique e Portimão; no da Guarda são os de Celorico da Beira e Gouveia; no de Leiria são os da Marinha Grande, Peniche, Alcobaça e Nazaré; no de Lisboa são os de Lisboa, Loures, Vila Franca de Xira, Lourinhã e Cadaval; no de Portalegre, nenhum; no do Porto são os de Valongo. Matosinhos, Gaia, Gondomar, Porto, Maia, Póvoa de Varzim, Vila do Conde e Pena fiel; no de Santarém são os de Benavente e Almeirim; no de Setúbal são os de Setúbal, Barreiro, Almada e Palmeia; no de Viana do Castelo suo os de Valença. Caminha, Arcos de Valdevez, Ponte de Lima, Viana do Castelo e Paredes de Coura; no de Vila Real são os de Peso da Régua, Ribeira de Pena e Santa Marta de Penaguião, e no de Viseu são os de Tondela, Resende, Armamar e Lamego.
Devo registar que os concelhos de Mértola, Cabeceiras de Basto, Fafe, Póvoa de Lanhoso, Vimioso, Pampilhosa, Arcos de Valdevez, Ponte de Lima, Ribeira de Pena e Resende têm fracas defesas sanitárias, sendo de temer o alastramento da tuberculose por falta de assistência médica, pois trata-se de concelhos onde o número de falecidos sem assistência é superior ao dos assistidos, como veremos adiante.
A tarefa do Governo quanto à luta antituberculosa entra em fase anais acesa, o que se deduz claramente da proposta da Lei de Meios. Farei ainda algumas considerações sobre este assunto antes de prosseguir no tema principal da minha exposição.
Segundo o capítulo v da proposta, pretende o Governo levar a efeito o desenvolvimento do programa de combate à tuberculose.
A taxa de mortalidade pela tuberculose no nosso país constitui por si só plena justificação do artigo 16.º a proposta.
A tuberculosidade (numa lista organizada para o ano de 1950) era muito alta (100 a 200 óbitos por 100 000 habitantes) em sete países; alta (60 a 100) em três; média (30 a 60) em dezasseis; baixa (abaixo de 30) em doze. Nós ocupávamos então o 4.º lugar entre os países com taxa muito alta.
Em 1954. segundo a informação dada pelo Sr. Subsecretário de Estado da Assistência, num discurso proferido em Braga em Maio do ano corrente, deixámos aquele lugar pouco honroso, passando para uma taxa de mortalidade quase média (61,5).
Mas, mesmo que a nossa tuberculosidade fosse baixa, estaria indicada uma campanha nacional antituberculosa.

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A Dinamarca, apesar de pertencer ao grupo de países com baixa tuberculosidade, intensificou a luta antituberculosa em 1950-1952.
No radiorrastreio, base primordial da profilaxia da doença, adoptou-se o método das duas leituras.
Os rolos de películas eram lidos, em primeiro lugar, no serviço provincial; no serviço central era feita segunda leitura por outro radiologista.
Como entre nós, desde que a radiofotografia revelasse suspeitas de alterações procedia-se à telerradiografia usual do tórax.
Foram submetidas ao radiorrastreio para cima de 400 000 pessoas. Só numa terça parte dos casos houve coincidência das duas leituras das radiofotografias.
Nos serviços provinciais a leitura indicava 2,14 casos sãos para l caso confirmado; no serviço central havia 1,57 casos sãos para l confirmado. Em 10 002 radiofotografias com suspeitas de alterações só 3095 eram, de facto, positivas.
O trabalho de confirmação com telerradiografias do tórax é feito na Dinamarca pelos dispensários provinciais.
Os leitores do serviço central enviaram aos dispensários provinciais 20 por cento a mais dos casos com tuberculose pulmonar activa e, quanto a outras afecções não tuberculosas, o mesmo serviço enviou 45 por cento a mais dos casos remetidos pelos serviços provinciais.
Parece, portanto, que seria vantajoso e económico introduzir entre nós e método das duas leituras.
Outra vantagem tem a abreugrafia na descoberta de muitos casos de afecções cardiovasculares, de doenças pulmonares não tuberculosas e até de afecções ósseas.
Os doentes portadores de formas avançadas de tuberculose pulmonar exigem enorme sacrifício de manutenção, de resultado terapêutico precário ou nulo nas formas incuráveis.
A toada burocrática que consiste em afastar dos sanatórios e deles expulsar os incuráveis não se justifica num país que não tem instalações próprias para incuráveis, por uma questão de humanidade e porque estes doentes, em regra muito bacilíferos, contribuiriam para aumentar em maior ou menor escala, no geral, e sempre em maior escala que os curáveis, a morbilidade tuberculosa.
Graças à acção decidida e oportuna do actual Subsecretário da Assistência, procura-se hoje internar todos os doentes, curáveis, e incuráveis.
Que a abreugrafia tem valor profiláctico insuperável mostra-o o que sucedeu no Rio de Janeiro e em S. Paulo, onde a tuberculosidade é muito alta.
No Rio de Janeiro praticou-se a abreugrafia desde 1945 a 1950; neste período o número de óbitos pela tuberculose baixou de 342 por 100 000 para 200 por 100000; no mesmo período em S. Paulo o número de óbitos baixou de 145 para 105.
Estes dados foram-me pessoalmente fornecidos pelo Prof. Manuel de Abreu em Londres, no Congresso de 1950.
Iniciou-se, graças a despacho recente do Sr. Subsecretário de Estado da Educação Nacional, a abreugrafia dos estudantes e professores das escolas de Coimbra e Porto, pois em Lisboa já se fazia desde 1947-1948, raças aos meritórios esforços do inspector de Saúde Escolar, Dr. Daniel Monteiro.
De 1948 a 1954 foram observadas 211 285 pessoas, compreendendo professores, alunos e empregados dos estabelecimentos de ensino de Lisboa. Dos 162 396 ra-diorrastreios efectuados desde 1951 a 1954 foram radiografadas 2151 pessoas, o que dá a percentagem de 1,3 por cento, muito inferior à usual de 2,3 por cento
que habitualmente se verifica no geral da população e mesmo na população escolar.
Em 1948 foram examinados na Turquia, pelo Instituto Radiológico de Istambul, os estudantes de 146 escolas, em número de 43 896; encontraram-se 67 casos de tuberculose evidente (0,15 por cento) e 1239 casos de tuberculose exigindo tratamento (2,8 por cento). Esta percentagem é que é bastante próxima da percentagem média de telerradiografias usuais do tórax que se costumam tirar em relação ao total dos examinados (2,3 por cento). E certo que a tuberculose evolutiva é rara nas escolas secundárias. Por outro lado, o contágio na escola pode fazer-se por três maneiras: pelo mestre tuberculoso, pelo aluno contagioso (tuberculose pulmonar aberta, adenopatias tuberculosas supuradas, fístulas ósseas, etc.) e por bacilos trazidos do exterior. Se a tuberculose é relativamente rara na escola, é precisamente porque, como já dizia Grancher, é nela que o aluno consegue muitas vezes escapar ao contágio familiar.
Além disso, a marcha da tuberculose e mais benigna na segunda infância, quando as crianças frequentam as escolas primárias, do que na primeira infância.
E se é certo que na puberdade, quando os alunos frequentam o liceu, esta relativa benignidade desaparece, a verdade é que se trata, por via de regra, de filhos de famílias mais abonadas, melhor alimentados e com melhor higiene de habitação.
Por tudo isto, só muito raramente tenho encontrado casos de tuberculose pulmonar acttiva no liceu onde sou médico
O contágio do exterior pode fazer-se pelo pessoal de serviço (contínuos, encarregados de limpeza) ou pelos vestuários dos alunos quando houver casos de tuberculose aberta na casa onde o aluno vive. Os próprios livros podem servir de veículo.
Nestas conjunturas o radiorrastreio deve prosseguir, desde os alunos até aos contínuos, pessoal de limpeza e professores. A mortalidade dos professores era causada, em primeiro lugar, pela tuberculose, seguindo-se-lhe as doenças do sistema nervoso e depois as afecções cardiovasculares. Com o combate à tuberculose e os meios curativos de que hoje dispomos, estes dados clássicos devem ser alterados.
A abreugrafia deve considerar-se um dos mais importantes capítulos da medicina social.
O seu valor aumenta nas regiões onde os operários são obrigados a trabalhar expostos às poeiras (mineiros) e aos que, por profissão, têm de manipular alimentos (padeiros, cozinheiros, carniceiros, etc.).
Na Argentina procede-se já há anos a abreugrafia de todos os recrutas. Que se intensifique a luta antituberculosa com a abreugrafia em escala nacional são os votos que formulo, de acordo com o propósito do Governo.
Também a abreugrafia nas áreas rurais tem valor educativo que não é para desprezar, não deixando, além disso, ali desenvolver-se a tuberculose em meios sanitariamente desprotegidos e educativamente inferiorizados.
Passo agora a analisar os factores individuais da clínica rural, tendo em vista médico e doente: situação económica da classe médica, situação económica dos doentes, falta de comando único, vencimentos e consultas, meios de medicar, etc., que sucessivamente irei tratando no decurso da minha exposição.
Antes de iniciar esta segunda parte das minhas considerações, desejo vincar que não me propus defender aqui os interesses pessoais de uma classe, mas sim comentar a Lei de Meios no âmbito em que ela pode vir a melhorar as condições da clínica rural.

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Tem a minha inteira concordância o Prof. Palanca, director-geral de Saúde de Espanha e catedrático de Higiene de Madrid, ao escrever: «é um erro que em qualquer reforma se trate de conceder vantagens pessoais; um interesse, uma protecção excessiva para uma classe, mais a prejudica que a favorece».
Não venho, portanto, pedir que sejam concedidas vantagens especiais para os médicos rurais, mas sim que se chegue a um plano de equilibrada justiça, dentro do condicionalismo imposto pelas realidades e pelas possibilidades.
Assentar primeiro em princípios bem definidos, que sejam o ponto de partida de uma acção que permita a completa regulamentação da medicina rural. A ordem de preferência do capitulo VII toma, assim, um aspecto diferente do simples dado estatístico dos pedidos feitos para os diferentes sectores da política rural; por outras palavras: a preferência torna-se planeada, doutrinária, imposta pela necessidade de melhorar as condições sanitárias do nosso meio rural, exactamente como se fez para o saneamento financeiro, imposto com severidade e justiça, de cima para baixo.
Examinemos as condições económicas da classe médica e expliquemos o que formos encontrando no nosso caminho, porque isso tem importância na conduta a seguir.
Num inquérito, recentemente levado a efeito, pelo Jornal do Médico, sobre o que pensam os grandes nomes da medicina portuguesa, foram ouvidos os Profs. Eduardo Coelho, Vítor Fontes, Maximino Correia, Costa Sacadura, Francisco Gentil, Almeida Garrett, Diogo Furtado, Bocha Brito, Lopes de Andrade, Egas Moniz, Henrique de Vilhena, António Flores, Salazar de Sousa, Freitas Simões, Aires de Sousa, Carlos Lar-roudé, Carneiro de Moura, Asdrúbal de Aguiar, Cid dos Santos, Vaz Serra e Cerqueira Gomes. Outros distintos médicos foram ouvidos, cujos nomes não cito para não alongar a lista.
Todos foram unânimes em concluir que a classe médica, no geral, vive com grandes dificuldades económicas.
Parece-me que a resposta, do Prof. Flores, quando fala do «desequilíbrio entre os proventos e as necessidades inerentes à própria situação social», é a que mais de perto se ajusta à realidade.
Muitos, muitíssimos, vivem apertadíssimos economicamente.
Não admira que alguns, desesperados, aceitem cargos com a remuneração de moço de fretes e que outros percam a vergonha e enveredem por uma desesperada dicotomia. A imensa maioria sofre e cala.
Para uma população de 8 441 000 habitantes há 6554 médicos inscritos na respectiva Ordem.
Destes 6554, há nada menos de 2511 especialistas: 346 estomatologistas, 326 cirurgiões, 229 ginecologistas, 210 pediatras, 202 tisiólogos, 138 parteiros, 123 radiologistas, 120 oftalmologistas, 111 urologistas, 111 otorrinolaringologistas, etc.
Na Inglaterra, se a distribuição dos médicos fosse homogénea, a cada médico caberiam 2200 pessoas, mas nalgumas cidades industriais, áreas mineiras e concelhos pobres há apenas um médico para 4000 pessoas. Considerando a totalidade, há em Portugal um médico para 1287 pessoas, portanto uma percentagem bastante superior à inglesa.
Mesmo descontando os especialistas, ainda ficaria um médico para 2000 habitantes, se a distribuição fosse homogénea.
Dentro de alguns anos corremos o risco de ter médicos numa superabundância indesejável. Por isso julgo podermos ser muito pessimistas quanto às perspectivas económicas futuras da classe médica portuguesa. A desigualdade da distribuição pode exemplificar-se com o distrito de Coimbra.
O distrito de Coimbra tem 224 262 habitantes e as cidades de Coimbra e da Figueira da Foz contam, respectivamente, 53 023 e 17 208 (censo de 1950).
O número total de médicos do distrito é de 418, dos quais 209 na cidade de Coimbra (112 são especialistas e 157 clínicos gerais) e 28 na Figueira da Foz.
Daqui resulta que em Coimbra - grande centro hospitalar - há um médico para 107 habitantes; na Figueira há l médico para 617 habitantes.
No distrito, excluindo Coimbra e Figueira, há 121 médicos, ou seja l médico para 1272 habitantes.
Mas se escolhermos dois concelhos rurais pobres encontramos a diferença seguinte:
No concelho de Pampilhosa da Serra há 14 375 habitantes e 3 médicos (um quarto médico, que está inscrito na Ordem, não exerce hoje praticamente clínica), ou seja l médico para 4791 habitantes; no concelho de Gois, com 11 023 habitantes, há apenas 2 médicos, ou seja l médico para 5511 habitantes.
Os doentes não têm recursos; são regiões ásperas e acidentadas, muito pobres, com vias de comunicação muito precárias.
Há certos factos que provam ser necessário olhar pelas populações rurais, no capítulo- da assistência médica, e os números que citei dão já uma indicação preciosa.
Os habitantes das nossas aldeias representam 58,8 por cento da população do País e os habitantes das vilas e aldeias representam 75,7 por cento.
No ponto de vista de assistência médica, há zonas que estão muito bem e há zonas que estão muito mal. Eu falo pelas que estão muito mal.
Pelo Anuário Demográfico de 1953 verifica-se que nos distritos de Guarda e Bragança faleceram sem atestado médico cerca de 50 por cento das pessoas, ou seja um número dez vezes maior que no distrito de Lisboa (respectivamente 50,48, 50,39 e 5,01 por cento).
No ano passado, o colega Dr. Rebolo de Sousa, que actualmente ocupa, com muito brilho, o cargo de Subsecretário de Estado da Educação Nacional, fez referência a esta angustiosa situação, mas convém descer a mais pormenores, porque daí se podem tirar conclusões de interesse prático.
Há concelhos, como os de Montalegre, Macedo de Cavaleiros, Vila Pouca de Aguiar e Vila Nova de Paiva, em que vamos encontrar uma percentagem arripiante de falecidos sem atestado médico (respectivamente 96,5, 96,45, 97,34 e 83,16).
Os distritos do nosso continente não mostram regularidade na falta de assistência médica; há distritos que estão muito melhor que outros, e convém saber os que estão pior servidos, ou seja os pessimamente servidos - aquilo que constitui a chaga que nos envergonha perante nós próprios.
Dos dezanove concelhos do distrito de Aveiro, só num (Arouca) o número de óbitos sem assistência médica foi superior aos do que tiveram assistência.
Nos catorze concelhos do distrito de Beja houve três (Almodôvar, Mértola e Odemira) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos treze concelhos do distrito de Braga houve cinco (Amares. Cabeceiras de Basto, Celorico de Basto, Fafe e Póvoa de Lanhoso) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos doze concelhos do distrito de Bragança houve seis (Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros, Miranda do Douro. Torre de Moncorvo e Vimioso) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.

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Nos onze concelhos do distrito de Castelo Branco houve nove (Covilhã, Fundão, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença, Sertã, Vila de Rei e Ródão) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos dezassete concelhos do distrito fie Coimbra só num (Pampilhosa da Serra) o número de não assistidos foi superior no dos assistidos.
Nos treze concelhos do distrito de Évora também só num (Alandroal) o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos dezasseis concelhos do distrito de Faro houve três (Albufeira, Alcoutim e Tavira) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos catorze concelhos do distrito da Guarda houve sete (Aguiar da Beira, Almeida, Figueira de Castelo Rodrigo, Guarda, Meda. Pinhel e Trancoso) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos dezasseis concelhos do distrito de Leiria só num (Bombarral) o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos catorze concelhos do distrito de Lisboa não houve um único em que o número de não assistidos fosse superior ao dos assistidos.
Neste ponto de vista podemos considerar boas as suas condições.
Nos quinze concelhos do distrito de Portalegre só num (Gavião) o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos dezassete concelhos do Porto também só num (Marco de Canaveses) o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos vinte e um concelhos do distrito de Santarém não houve nenhum em que o número de não assistidos fosse superior ao dos assistidos, tal qual como sucede com o de Lisboa.
Nos treze concelhos do distrito de Setúbal só num (Santiago do Cacem) o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos dez concelhos do distrito de Viana do Castelo houve dois (Arcos de Valdevez e Ponte de Lima) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos catorze concelhos do distrito de Vila Real houve seis (Chaves, Momdim de Basto, Montalegre, Ribeira de Pena, Valpaços e Vila Pouca de Aguiar) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Nos vinte e quatro concelhos do distrito de Viseu houve nove (Castro Daire, Moimenta da Beira, Penalva do Castelo, Penedono, Resende, Sátão, Sernancelhe, Tarouca e Vila Nova de Paiva) em que o número de não assistidos foi superior ao dos assistidos.
Os distritos de Bragança, Castelo Branco e Guarda são particularmente desfavorecidos quanto a assistência clínica.
São também dignos de menção pessimista os distritos de Braga, Vila Real e Viseu.
São, portanto, merecedoras de atenção particular dos Poderes Públicos, quanto a assistência clínica rural, as províncias de Trás-os-Montes e das Beiras.
Quanto às Beiras, a linha da Beira Alta foi criada, para as servir e fazer progredir. Mas este último facto só se poderá verificar quando a linha terminar num porto - o da Figueira.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -Não me é licito duvidar dos esforços do Governo, mas não posso inibir-me de lamentar a demora das experiências e portanto o atraso do projecto.
Entretanto, os Estaleiros Navais do Mondego continuam a fabricar belos barcos, o Sr. Ministro da Marinha continua a olhar pelo Figueira com carinhosa atenção. Compreendo a fé intransigente do Ministro e dos Estaleiros, porque creio que o porto desafrontaria as Beiras e lhes permitiria um certo desafogo.
Com efeito, uma das causas de não assistência clínica é a pobreza, e esta é apanágio das Beiras.
Nos nossos meios rurais talvez ande por 70 por cento o número de pessoas que só podem ter assistência clínica se esta lhes for facultada gratuitamente.
Mas, ao lado da pobreza, que estranhos casos são os que por vezes presenciamos.
Foi bater a uma clínica cirúrgica de Coimbra um casal já entrado em anos. O marido era portador de hérnia estrangulada, sendo necessária uma operação de urgência. Posto o problema dos honorários, a mulher reflectiu e disse para o homem:
«Olha, isto vai ficar mais caro do que pensávamos. Temos bastantes courelas, mas acho um desperdício vender uma; é um roubo que fazemos aos nossos filhos. Estamos velhos, poucos anos cá andaremos: não achas que será melhor morreres?».
«Pois sim, mulher, eu morro», foi a estóica e espantosa resposta do moribundo.
Na medicina reina uma certa confusão: médicos em excesso e mal distribuídos, dificuldades económicas, a Ordem sem estatuto actualizado, os médicos fora da orientação de grandes sectores sanitários, vários Ministérios tendo nas mãos a medicina individual de muitos e importantes aglomerados - às vezes na mesma localidade o médico municipal, o médico da Casa do Povo, o médico das caixas- e não há um elo quo articule todas estas actividades, que se desencontram por modo que em certas localidades não há sequer um médico.
A confusão que reina actualmente há-de agravar-se, e posso garantir que à medida que o tempo passa mais difícil e complicada se tornará a solução.
Fui médico rural durante mais de quatro anos; conheço as qualidades que deve possuir o médico rural; por lá me encontrei com eles na minha labuta, modesta, sem dúvida, mas de que me orgulho e tenho grandes saudades. O médico rural, mais do que o dos centros urbanos, tem de possuir, além da competência profissional, imposta pelo respeito que deve a si próprio, certas qualidades morais: intrepidez, resistência física, bondade e esclarecido cepticismo quanto às novidades terapêuticas.
Ao aliviar o sofrimento o triunfo de curtos médicos de aldeia reside mais na bondade insinuante e na persuasão firme do que nas drogas ministradas. Com efeito, a doença orgânica não é tudo na prática clínica. As notícias publicadas nos grandes quotidianos, nas revistas de ciência recreativa e até nas ilustrações dão ao público a falsa noção de que os progressos da cirurgia permitem abolir mecanicamente a maioria dos males orgânicos e de que, pelos antibióticos, se descobriu um método maravilhoso e infalível de combate às infecções.
As pessoas mais prudentes, mesmo essas, ficam com a impressão de que é esse o caminho que as coisas levam nas ciências médicas.
Neste clima se ajusta bem a observação de Debray, secretário-geral da Ordem dos Médicos de França: «uma tal concepção afasta os médicos de um conhecimento verdadeiramente humano da sua missão».
Está outra vez a pôr-se de pé a medicina psicossomática, depois de aproveitado o que de útil podem dar-nos a era pasteuriana e a era cirúrgica. A minha experiência de médico rural deu-me a exacta medida do grande número de nevrosados que procuram na medicina o alívio para seus males, mais imaginativos que orgânicos.

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97 7 DE DEZEMBRO DE 1950

A pequena espinha irritativa de carácter orgânico que por vezes se encontra no subsolo é coisa fie pouca monta em relação às intensas e por vezes dramáticas repercussões psíquicas que ocasiona em terreno neurótico.
Penso que alguns sucessos que contei no activo da minha vida de médico de aldeia se devem mais à acção psíquica, a uma palavra suavizadora e calmante, do que à minha competência em diagnosticar e tratar pelos modernos processo de então, competência a meu ver bastante limitada, pois não tinha feito o estágio hospitalar que hoje com toda a razão é exigido aos médicos depois de concluído o seu curso.
Gostei muito dessa vida de clínico rural, bem remuneradora e muito calma, exigindo, é certo, grande resistência física (eu tinha-a).
A impressão que me ficou desse tempo em relação ao de hoje é que deixei um oásis de tranquilidade para me meter em turbilhão infernal, onde nunca faço o que quero e só o que as obrigações me exigem. Lá deixei e de lá trouxe grandes saudades.
Mas, se eu pertencia, àquela plêiade de médicos rurais cientificamente apagados, a verdade é que muitas vezes na medicina rural salta a faísca e o rasgo de talento, iluminando o desejo e a fé de servir uma grande causa.
Bastará citar as palavras do grande médico e escritor Ricardo Jorge ao lembrar esses médicos superiormente dotados: «nem rasgos de sagacidade faltam no desvendar do diagnóstico, em que, não raro, tropeçam os que se julgam maiores». E o médico de Ribadouro a anunciar a meningite cerebrospinal, é o jovem médico serrano que vê desabrolhar a peste, em que não acreditam, e que tem de seguir até ao Porto, açodado, para então ali se organizar a caravana de socorro, e não faltam exemplos de devoção, como estoutro, citado pelo mesmo professor: «Estava prostrado no leito de agonia o médico municipal de Manteigas e logo outro do concelho vizinho, num impulso cavalheiresco, se oferece para tratá-lo e substituí-lo no posto de combate».
Os próprios enfermeiros irmanam com os médicos na devoção profissional: «No hospital de isolamento de Vila do Conde, finado o enfermeiro, é a própria mulher que não abandona a enfermagem - causa fatal da sua viuvez».
Tive de sair da aldeia onde fiz clínica principalmente por causa do problema da habitação.
Vivia em casa que me tinha sido emprestada por um bom homem daqueles sítios, que me cedeu a casa nova para continuar a viver na velha.
Nunca quis receber uni centavo de renda; a sua generosidade foi tão inesperada como cativante.
Nunca se quis conformar com os pedidos que lhe fiz de legalizar a minha presença e de minha família naquela risonha vivenda. Outra casa não existia na localidade onde me pudesse alojar condignamente com a família.
Enquanto solteiro, vivia nos modestos quartítos da casa de uma velhota, e tinha de dormir num quarto interior sem janela ...
O meu caso para que o problema da habitação do médico rural é por vezes o seu principal, se não único, problema em certas localidades.
Hoje em dia deve custar menos a viver na aldeia que no meu tempo.
Com as boas estrados que possuímos, com luz eléctrica, com a telefonia, pode viver-se em contacto com o progresso, pode saber-se o que vai pelo mundo.
Com a próxima televisão poderão apreciar-se o teatro, o cinema e as próprias pugnas desportivas, sem sair da casa de aldeia.
Desde que as condições sanitárias da localidade o permitam, desde que se ocupe uma habitação em regulares condições de higiene e conforto, não há razões poderosas que levem o médico rural a procurar outro destino.
De resto, o problema da habitação do médico rural reveste hoje uma acuidade que não existia em tempos antigos.
Antes da publicação e entrada em vigor do actual Código Administrativo os médicos municipais eram nomeados pelas câmaras municipais, que tinham larga margem para o seu recrutamento. Aqueles eram, em regra, pessoas da região, com casa de família na localidade.
A escolha do médico recai agora no que apresente melhor prova documental. Com a pletora, muitos vêm de longe, e a primeira dificuldade que lhes surge é a que diz respeito à habitação.
Nas circunstâncias apontadas devia seguir-se o critério adoptado para os magistrados.
Fazem-se Casas do Povo, que por vezes são construções importantes, de cantaria; bem poderiam ter anexa a habitação do médico, sem grande dispêndio complementar.
Isto poderia não se adoptar em princípio, mas de acordo com as exigências próprias e particulares de cada caso.
Em Espanha enveredou-se decididamente pelo caminho das realizações e já há centenas de habitações para médicos rurais na nossa vizinha.
Só na província de Soria, em 1954, informa o Prof. Palanca que foram inauguradas setenta vivendas para médicos rurais.
Depois da habitação, vou referir-me aos vencimentos e honorários, em breve apontamento.
Os vencimentos dos médicos rurais estão estabelecidos de harmonia com as distâncias às sedes dos concelhos.
Este critério prova que houve necessidade de compensar os médicos com sedes de partido muito distantes das sedes dos concelhos, isto é mais isolados.
Assim os médicos em partido com centro na sede do concelho ou que desta distam menos de 15 km têm o vencimento de 1.200$ mensais, enquanto é de 1.500$ o vencimento dos médicos em partido com centro distante mais de 15 km da sede do concelho.
Ora as condições que merecem maior compensação consistem na área do partido, na sua orografia e nas suas comunicações.
As queixas mais agudas que tenho ouvido partem de médicos em partidos de vastas áreas muito acidentadas e de precárias vias de comunicação, tanto mais que, em regra, estas condições coincidem com a pobreza, a incultura e a falta de educação do meio.
Também por ali não há enfermeiros, e ali temos também a impossibilidade de o médico encontrar pessoa apta para o ajudar em pequenos actos de enfermagem .
Isto torna os médicos também enfermeiros, e enfermeiros até ao mais pequeno pormenor.
Quanto às consultas e visitas, podemos dizer que a actualização das mesmas é mais aparente que real.
Servir-me-ei do exemplo do concelho de Penela.
Em 1912 o custo de uma consulta era de 200 réis, o da visita 300 réis e o do alqueire de milho de 400 a 500 réis.
Em 1955 o custo de uma consulta é de 10$, o da visita 20$ e o do alqueire de milho de 19$ a 20$.
O custo da consulta e o do milho subiram cinquenta vezes, mas parece-me que o custo de vida subiu cerca de cem vezes em relação a 1912.
De resto, este aspecto depende em grande parte de os médicos de cada concelho terem unidade de vistas e espírito de solidariedade, isto é, uma psicologia própria

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diferente daquela de que os acusava Ricardo Jorge: «O médico português é, por psicologia própria, um trabalhador isolado, de jeito egotista e egotista nos seus processos interprofissionais».
Quero agora fazer uma referência às caixas da previdência e às companhias de seguros.
A tendência para quem dirige ou orienta estas organizações é de poupar ao máximo e de fazer produzir o máximo com o mínimo de despesa. Da minha observação pessoal deduzo (e isto pode ser verificado em escala nacional, se o Governo entender que vale a pena) que estão em piores condições económicas os médicos que trabalham em zonas rurais industrializadas do que os das zonas rurais propriamente ditas.
As pretensões dos médicos de Paredes correspondem ao desejo da maioria da classe médica:

1.º Que o beneficiário possa escolher livremente o seu médico;
2.º Que a Federação estabeleça uma justa recompensa pela prestação de serviços clínicos, sobretudo no que respeita à assistência domiciliária ;
3.º Que a assistência a prestar pela Federação se limite estritamente aos economicamente débeis;
4.º Que todos os clínicos que queiram trabalhar para a Federação possam ser escolhidos pelos beneficiários.

É digna de registo e merecido louvor esta atitude de sã camaradagem, dentro de uma solidariedade profissional que se conjuga com um honroso interesse cultural, promovendo sessões que denunciam o propósito do seu aperfeiçoamento clínico.
Não parece aconselhável a centralização dos serviços médicos na clínica rural, não só por causa da dispersão das populações como também pelas dificuldades de comunicações.
Se a dotação para os serviços médicos é pequena, que se aumente dentro da medida do possível, porque um médico rural em zona industrializada sem pulso livre não se aguenta sem subsídios das caixas convenientemente ajustados às circunstâncias.
As companhias de seguros, dada a pletora, jogam na lei da oferta e da procura; a tendência de quem está de fora é só olhar para umas dúzias de médicos com bons proventos, sem descortinarem as imensas dificuldades da generalidade dos médicos.
Bem sei que o excesso de médicos traz vantagens, ao lado dos prejuízos. As suas vantagens consistem em contribuir para elevar o nosso nível cultural e ao mesmo tempo estimular a concorrência, melhorando a assistência aos doentes. Mas com o aparecimento de grande número de intelectuais falhados na vida profissional ou assoberbados por inquietações económicas, torna-se evidente um perigo para a Nação e para a própria classe, onde processos condenáveis rio exercício da profissão farão descer o seu nível deontológico.
«Deixem descair os honorários, explorem, envilecendo os preços, a fartura de médicos à busca de situação, não se importem que, no aviltamento do mercado, se rebaixe a profissão, e verão que o resultado final é uma depressão das aptidões e competências. O nível económico e moral a descer, o nível científico seguí-lo-á. Não valerá a pena queimar as pestanas; o consumidor é que paga, que terá cada vez pior medicina e pior higiene». Estas palavras de Ricardo Jorge, ditas em Fevereiro de 1911, permitem concluir que a pletora traz mais inconvenientes que vantagens.
Sobre meios de medicar, haveria muito a dizer, se u ocasião fosse oportuna, mas algumas palavras são necessárias para completar o enquadramento do problema.
Os médicos iniciam a prática clínica nos grandes centros hospitalares, onde todas as novidades científicas e, sobretudo, as terapêuticas são objecto de estudo e experiência.
Esta atitude estratégica no combate às doenças devia ser corrigida,- e nem sempre o é, pelos professores, pois muitos dos seus alunos vão exercer a sua futura actividade em meios rurais muito pobres, onde não há condições para efectivação de alguns desses novos processos de curar.
Assim é que a grande voga dos antibióticos, abrangendo um vasto cenário, que vai desde a blenorragia à febre tifóide, deu ao público e ao estudante, futuro médico, uma atitude de ilimitada confiança nos seus resultados, de mérito indiscutível.
Mas é discutível uma supremacia absoluta dos antibióticos? Sem dúvida. Bem recentemente, o jornal O Médico, numa local com o título «Cuidado com os antibióticos», recolhia, com aplauso, as seguintes afirmações de um jornal francês:
Que os médicos se não deixem levar pelas sugestões dos seus doentes, que estes saibam esperar quarenta e oito horas ou setenta e duas horas pelos efeitos felizes das terapêuticas clínicas antigas, sem perigo, e que os antibióticos sejam reservados para os casos que deles necessitem.
Os estados alérgicos e até intoxicações graves produzidas por alterações sanguíneas com o uso de antibióticos levaram o jornal português a este justificado grito de alarme.
Mesmo com o abaixamento do seu custo, a terapêutica pelos antibióticos é muito dispendiosa para pessoas de modestos recursos.
A farmácia galénica, injustificadamente rejeitada, foi substituída pelas especialidades, mais cómodas de receitar, mas muito mais dispendiosas.
Que as nossas Faculdades olhem para estes factos e lhes prestem a atenção devida, ensinando os seus alunos a formular como se fazia antigamente, parece oportuno e necessário.
Quanto às farmácias, encontram-se por vezes muito longe dos aglomerados rurais, o que é deplorável quando não há boas ligações por caminhos ou estradas municipais razoáveis.
Para citar um exemplo entre muitos, direi que a freguesia de Dornelas do Zêzere, com cerca de quatrocentos fogos, no concelho de Pampilhosa da Serra, não tem estrada nem caminhos apropriados a ligá-la com a sede do concelho, da qual dista cerca de 30 km e onde fica a farmácia mais próxima.
Eis aqui um exemplo de estrada vicinal passar a constituir obra de saneamento.
Nos concelhos serranos alguns médicos fazem o seu giro clínico utilizando jeeps. Mas por tais caminhos de cabras nem de jeep por vezes se pode avançar e até se torna perigoso andar por ali a cavalo. Poderia contar algumas anedotas curiosas acontecidas com médicos e pessoas que os acompanhavam em visitas por aquelas veredas escarpadas, mas não vale a pena. A verdade é que o esforço físico exigido por grandes percursos a cavalo ou de jeep seria muito atenuado com bons caminhos. Serviços destes exigem grandes despesas e brilham pouco.

A estrada nacional n.º 2 foi interrompida exactamente pela aspereza do terreno. Mas a verdade é que, após o que no ano passado disse nesta Câmara, se começou a trabalhar. Seja lícito testemunhar ao Sr. Minis-

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tro das Obras Públicas os agradecimentos dos concelhos que com esta obra vão beneficiar.
Sei que está feito o projecto, com aprovação do Conselho Superior de Obras Públicas, dos 5 a 6 km que vão de Mega Fundeira à Venda da Gaita. Ainda não está feito o projecto do troço restante, de cerca de 7 km, ou seja de Álvares a Mega Fundeira, por causa da ponte a construir em Alvares, serviço que depende da Direcção do Serviço de Pontes da Junta Autónoma.
Sem uma decisão desse organismo quanto à localização e vias de acesso da ponte, problema difícil por causa do acidentado do terreno, em combinação com a categoria da estrada, a estrada nacional n.º 2 continuará interrompida, ficando isolados por uma unha negra os concelhos de Gois e Pedrógão Grande.
Por outro lado, as numerosíssimas, ainda que pequenas, povoações que por ali há ficarão privadas das estradas municipais que as hão-de ligar à referida estrada nacional.
Aproveito este ensejo para, em nome dos Deputados pelo círculo de Coimbra, agradecer ao Sr. Ministro das Obras Públicas a possibilidade que a Câmara de Coimbra teve de fazer a adjudicação, em princípio de Novembro, da estrada municipal entre Marco dos Pereiros e a estrada nacional n.º 110-2.ª
De tudo o que disse pode concluir-se que existe um «mal-estar» médico em Portugal, mas não nos aflijamos.
O Dr. Debray, em artigo escrito já há anos, denunciava um mal-estar médico em França, que atribuía aos três factores seguintes:

1) Desinteresse do público, desconfiança e até hostilidade em relação ao corpo médico no seu conjunto;
2) Incompreensão manifestada pelos Poderes Públicos em relação nos problemas médicos, traduzindo-se esta incompreensão por carências graves, por um lado, e por gestos inconsiderados, igualmente graves, por outro lado;
3) Diminuição do prestígio do médico na sociedade actual.

Com a autoridade forte e honesta do nosso Governo não se verificam, não se registam integralmente entre nós, os factores anunciados por Debray em França, mas a necessidade de um estatuto actualizado da Ordem dos Médicos começa a fazer-se sentir de fornia bastante aguda.
Não posso alongar-me sobre este assunto, porque sai fora do quadro das minhas considerações.
Em conclusão: considerando a redução do analfabetismo unia das bases do nosso saneamento rural, concordo com a alteração ao artigo 17.º da Lei de Meios, tal como é sugerida pela Câmara Corporativa. Com efeito, ali se manifesta a continuidade e a finalidade de uma política merecedora do maior aplauso. A preferência dada a Campanha Nacional de Educação de Adultos na alínea f) da referida alteração está justificada nas minhas considerações.
Dentro dos mesmos princípios, concordo com a ordem de preferência dada pelo Governo e pela Câmara Corporativa quanto ao artigo 19.º, alíneas a) e b), tendente à melhoria das condições sanitárias da vida rural.
As verbas para este fim deveriam ser substancialmente aumentadas. Compete ao Sr. Ministro das Corporações providenciar para que de futuro as Casas do Povo possam ter anexa a residência do médico, quando as condições e necessidades locais o impuserem.
Finalmente, faço votos por que seja criado um organismo superior de saúde, que, á falta de Ministério, congregue, articule e discipline a sanidade portuguesa, trabalhando em colaboração com a Ordem dos Médicos, mas uma Ordem rejuvenescida com o seu estatuto, de modo a evitar-se o aviltamento de uma classe que não pode ser considerada de somenos importância em relação às outras.
As minhas derradeiras palavras dirigem-se aos incrédulos e aos pessimistas, que, dada a magnitude e complexidade do problema da medicina rural, o consideram sem solução ou de solução muito remota.
Para esses servir-me-ei da frase lapidar dos Romanos: infantum gemitus in limine primo.
Que as dificuldades que temos pela frente e o sacrifício que faremos para levar a cabo a obra sejam o nosso estímulo, pois a recompensa será larga e merecerá as bênçãos de Deus e a gratidão dos homens.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. A próxima será amanhã, com a mesma ordem do dia da de hoje.
Está encerrada a sessão.

Eram 19 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Mantero Belard.
Luís Maria da Silva Liana Faleiro.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Agnelo Orneias do Rego.
Alberto Pacheco Jorge.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
António de Almeida.
António Russell de Sousa.
Artur Águedo de Oliveira.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Afonso Cid dos Santos.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
João Maria Porto.
Joaquim de Sonsa Machado.
Jorge Pereira Jardim.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Miguel Rodrigues Bastos.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

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Proposta de lei e parecer referidos pelo Sr. Presidente no decorrer da sessão:

Proposta de Lei n.º 29/5O7

O progresso recente da investigação científica e o correspondente aperfeiçoamento da técnica chamaram a atenção para os recursos naturais dos «planaltos continentais» e implicaram a necessidade de determinar o regime jurídico dos seus solo e subsolo.
A parte a definição contratual da linha de separação dos planaltos continentais situados entre Estados ribeirinhos, como aconteceu com o tratado, firmado em Caracas em 36 de Fevereiro de 1942-, entre a Inglaterra e a Venezuela, referente às áreas submarinas do golfo de Paria, entre a Venezuela e a Trindade, os Estados, surgida a oportunidade de aproveitar tais recursos naturais, têm considerado justo e razoável que a jurisdição sobre o planalto continental pertença exclusivamente ao Estado ribeirinho, porque é a extensão da massa terrestre da nação costeira a quem naturalmente pertence, porque o seu aproveitamento e conservação depende do apoio do litoral e porque os seus recursos usualmente' são apenas continuação de depósitos que se encontram no território não coberto pelo mar. Neste sentido se manifestaram, sucessivamente, os Estados Unidos da América do Norte, México, Chile, Argentina, Peru e Brasil e mais de duas dezenas de outros Estados, ao mesmo tempo que os institutos científicos internacionais têm procurado coordenar a incontestável soberania dos Estados sobre o planalto continental com o regime de mar alto das águas epicontinentais.
Na presente proposta de lei procura-se estabelecer as condições em que será possível utilizar os recursos dos planaltos continentais pertencentes a Portugal, definindo somente a linha de apropriação que de momento parece acessível, em face dos recursos da técnica, e salvaguardando os limites que decorrem, sobretudo pelo que respeita ao regime do mar alto, do direito internacional livremente consentido.
As relações que felizmente se mantêm com todos os Estados cuja fronteira possa encontrar-se com a nossa sobre o mesmo planalto continental exigem que, por cortesia indispensável, o aproveitamento desses planaltos seja nesse caso precedido de prévio acordo sobre a linha de separação.
Nestes termos, o Governo tem a honra de propor à Assembleia Nacional o seguinte:

BASE

Pertencem ao domínio público do Estado Português o solo e o subsolo dos planaltos continentais contíguos às costas marítimas portuguesas.

BASE II

Salvo quando lei especial dispuser de outro modo, não poderão ser feitas concessões para além da parte dos planaltos continentais limitada pela linha de 200 m de profundidade das águas.
§ único. Sempre que o planalto continental se estenda até às costas marítimas de outro Estado só poderão ser feitas concessões depois de prévia definição da linha de separação.

BASE III

A exploração do planalto continental não implicará outros limites para o regime de mar alto das águas epicontinentais que não sejam os consentidos pelo direito internacional.

BASE IV

As concessões relativas a recursos naturais existentes no domínio público definido nesta lei dependem de consentimento do Conselho de Ministros, de cuja aprovação dependerá também a transmissão dos direito» concedidos.
§ único. O concessionário prestará caução para garantir a indemnização de quaisquer perdas e danos emergentes da violação do disposto na base III.

Lisboa, .21 de Fevereiro de 1955. - António de Oliveira Salazar - Joaquim Trigo de Negreiros - Américo Deus Rodrigues Thomaz - Paulo Arsénio Viríssimo Cunha - Manuel Maria Sarmento Rodrigues.

Propostas enviadas para a Mesa durante a sessão:

Proposta de aditamento

Concordando com o parecer da Câmara Corporativa, propomos que ao artigo 3.º da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956 se acrescente o seguinte:

«e bem assim a proceder à classificarão, caracterização e definição adequadas, segundo o grau de autonomia que pela legislação própria lhe seja atribuída, de todos os serviços do Estado cujas dotações não estejam descritas no orçamento, nos termos gerais da contabilidade pública».

Lisboa e Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 6 de Dezembro de 1950. - Pela Comissão de Finanças, Joaquim Mendes do Amaral. - Pela Comissão de Economia, Francisco Cardoso de Melo Machado.

Proposta de emenda

Concordando com o parecer da Câmara Corporativa, propomos que ao artigo 9.º da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956 seja dada a seguinte redacção:

«Fica o Governo autorizado a elevar até ao limite de 20 por cento a taxa fixada na alínea c) da tabela do imposto complementar, aprovada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 37 771, de 28 de Fevereiro de 1950, a aplicar sobre os dividendos das acções emitidas por sociedades com sede no continente e ilhas adjacentes cujo pagamento seja ordenado durante o ano de 1956, bem como sobre os dividendos das acções emitidas por sociedades com sede no ultramar pagos na metrópole durante o mesmo ano, e bem assim a rever, em ordem à sua justa limitação, ti isenção estabelecida no n.º 5.º do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 35 594, de 13 de Abril de 1946, na parte que se refere a rendimentos de acções pertencentes a sociedades anónimas».

Lisboa e Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 6 de Dezembro de 1955. - Pela Comissão de Finanças, Joaquim Mendes do Amaral. - Pela Comissão de Economia, Francisco Cardoso de Melo Machado.

Proposta de eliminação

Propomos que seja eliminado o artigo 15.º da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956.

Lisboa e Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 6 de Dezembro de 1955. - Pela Comissão de Finanças, Joaquim Mendes do Amaral. - Pela Comissão de Economia, Francisco Cardoso de Melo Machado.

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Proposta de alteração

Propomos que o artigo 19.º da proposta de lei de autorizarão de receitas a despesas paru 1956 tenha a seguinte redacção, a seguir as palavras «ordem de precedência»:

«a) Abastecimento de águas, electrificação e saneamento ;
b) Estradas e caminhos;
c) Casas para as classes pobres;
d) Construções para fins assistência is ou instalações de serviços;
e) Matadouros e mercados.»;

que seja eliminada a alínea e) da proposta e que sejam aditados os seguintes parágrafos:

«§ 1.º As disponibilidades das verbas inscritas no Orçamento Geral do Estado para melhoramentos rurais ou quaisquer dos fins previstos no corpo deste artigo não poderão servir de contrapartida para reforço de outras dotações.

§ 2.º Nas comparticipações pelo Fundo de Desemprego observar-se-á, em medida aplicável, a ordem de precedência do corpo do artigo».

Lisboa e Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 6 de Dezembro de 1955. - Pela Comissão de Finanças, Joaquim Mendes do Amaral. - Pela Comissão de Economia. Francisco Cardoso de Melo Machado.

Proposta de eliminação

Propomos a eliminação do artigo 20.º da proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1956

Lisboa e Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 6 de Dezembro de 1905. - Pela Comissão de Finanças, Joaquim Mendes de Amaral. - Pela Comissão de Economia, Francisco Cardoso de Melo Machado.

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CÂMARA CORPORATIVA

VI LEGISLATURA

PARECER N.º 2O/VI

Proposta de lei n.º 29/507

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 105.º da Constituição, acerta do projecto de proposta de lei n.º 507, elaborado pelo Governo sobre o regime jurídico do solo e subsolo dos planaltos continentais, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Justiça e de Política e economia ultramarinas), à qual foi agregado o Digno Procurador José Caeiro da Mata, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. A presente proposta de lei declara a incorporação do planalto continental no domínio público do Estado.
Para determinação exacta do alcance da providência legislativa projectada e sua conveniente apreciação é indispensável averiguar, com o possível rigor, o significado da expressão e o estado actual da prática, do direito e da doutrina internacionais acerca do planalto continental.

Z. A expressão planalto continental é a fórmula adoptada na proposta para traduzir (diga-se desde já com pouca felicidade) a expressão inglesa continental shelf, a que correspondem em francês as expressões plateau, plate-forme, socle ou senil; em espanhol, zócalo, cornisa, escalón, meseta, estribo, reborde, banco, terraza e planície; em alemão, Sockel, Flashsee e Plattform, e, em italiano, banco ou piattaforma.

Por estas diversas formas se designa uma zona do fundo do mar adjacente às terras emersas e que se considera, do ponto de vista geológico, como seu prolongamento.
Os limites desta zona não foram até hoje determinados com precisão, mas admite-se geralmente que dela faz parte o fundo do mar até à isobata das 100 braças (entre 180m e 200m).
Para além destas profundidades começa bruscamente o declive (ou talude) para as grandes profundidades pelágicas e abissais, as primeiras formadas pelas terras submersas até cerca de 5000 m, as segundas pelos grandes abismos oceânicos para além daquele limite.

3. A plataforma continental pode interessar aos Estados ribeirinhos por motivos de segurança e de utilidade económica.
Por motivos de segurança, porquanto, com os recursos da técnica moderna postos ao serviço da arte da guerra, pode ser utilizaria como bafe de acções ofensivas dirigidas contra o seu território ou contra o respectivo mar territorial.
Por motivos económicos, porque nessa zona do leito marinho se encontram, ou podem encontrar, recursos naturais consideráveis, como a fauna e a flora subaquática, e, no subsolo correspondente, minerais de grande valor.
Entre estes últimos avultam o carvão e o petróleo, hoje já em exploração por alguns Estados.

4. Com base nestas razões certos Estados mais directamente interessados na exploração imediata das plata-

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formas correspondentes procuraram reservá-las para sua exclusiva jurisdição, com vista ao aproveitamento dos recursos económicos já conhecidos ou que eventualmente venham a ser descobertos.
Os primeiros a tomar essa iniciativa foram a Grã-Bretanha e a Venezuela, que celebraram, em 26 de Fevereiro de 1942, um tratado, dividindo entre si a jurisdição exclusiva sobre as «áreas submarinas do golfo de Pária», entre a costa venezuelana e a ilha da Trindade.
Nos termos do artigo 1.º do tratado, por áreas submarinas deve entender-se o leito do mar e o subsolo correspondente, fora das águas territoriais.
Posteriormente outros Estados adoptaram u mesma atitude, mas por meio de simples declarações unilaterais, geralmente seguidas da publicação de providências legislativas internas.
Assim procederam os Estados Unidos da América do Norte. Em 28 de Setembro de 1945 o Presidente Truman publicou uma proclamação na qual declarou:

Tendo em atenção a urgência de conservar e utilizar prudentemente os seus recursos naturais, o Governo dos Estados Unidos considera os recursos naturais do solo e do subsolo da plataforma continental sob o alto mar, mas contígua às costas dos Estados Unidos, como pertencendo a estes e sujeita à sua jurisdição e controle. No caso de a plataforma continental se estender até às costas de outro Estado, ou de ser partilhada com outro 'Estado, os limites devem ser determinados equitativamente pelos Estados Unidos e o Estado interessado. O carácter de alto mar das águas que cobrem a plataforma e o direito à livre navegação não poderão ser afectados por qualquer forma.

Declarações semelhantes, ou legislação interna, foram publicadas posteriormente pelo México (29 de Outubro de 1945) pela Argentina (11 de Outubro de 1940), pelo Panamá (l de Março de 1946) pelo Chile (23 de Junho de 1947), pelo Peru (l de Agosto de 1949), pelas Honduras (Janeiro de 1951), pelo Paquistão (9 de Março de 1950), por S. Salvador (7 de Setembro de 1950) e pelo Brasil (8 de Novembro de 1950), etc.
A Grã-Bretanha tomou providências semelhantes a respeito das Bahamas (26 de Novembro de 1948), da Jamaica (26 de Novembro de 1948), das Honduras Britânicas (9 de Outubro de 1950) e das ilhas Malvinas ou Falklands (21 de Dezembro de 1950).
De todas estas providências são de pôr especialmente em relevo as que foram publicadas pela Argentina, pelo Chile e pelo Peru, por não se limitarem a afirmar o direito à jurisdição e controle sobre o solo e o subsolo da plataforma continental e reivindicarem o direito a extensas zonas do mar, para além dos limites das águas territoriais.
No decreto argentino de 11 de Outubro de 1946 declara-se, no artigo 1.", que pertence à soberania da nação o mar epicontinental e a plataforma continental argentina, dizendo-se, porém, no artigo 2.º, que, «para o efeito de livre navegação, o regime das águas do mar epicontinental e da plataforma continental argentina não é prejudicado».
Na declaração do Presidente do Chile de 23 de Junho de 1947 o Governo Chileno confirma e proclama a soberania nacional sobre a plataforma adjacente ás costas continentais e insulares do território e, além
disso, proclama a soberania sobre os mares adjacentes às costas, qualquer que seja a sua profundidade, em toda a extensão necessária para reservar, proteger, conservar e aproveitar todos os recursos e riqueza naturais de qualquer natureza que nos ditos mares se encontrem.
Afirma ainda que, desde logo, a protecção e o controle do Chile se exercerão sobre o mar compreendido entre a costa e uma paralela matemática projectada no mar a 200 milhas marítimas de distância do litoral chileno.
A declaração termina com a afirmação de que a proclamação da soberania chilena sobre as zonas acima mencionadas não prejudica os legítimos direitos semelhantes de outros Estados, na base da reciprocidade, néon os direitos à livre navegação no alto mar.
O decreto peruano de l de Agosto de 1947 proclama também a soberania sobre a plataforma continental e sobre o mar adjacente às costas, em termos semelhantes aos da declaração chilena, reivindica o direito de delimitar as zonas de controle e protecção das riquezas nos mares continentais e insulares peruanos e afirma que, desde logo, o Peru exercerá os seus direitos numa zona compreendida entre o litoral e uma linha imaginária paralela traçada sobre o mar a 200 milhas marítimas de distância, medidas seguindo a linha dos paralelos geográficos.

5. Do que anteriormente se expôs o que interessa pôr em relevo é que certos Estados reivindicam direitos exclusivos sobre a plataforma continental.
Pode haver dúvidas quanto à qualificação, perante o Direito Internacional, dos direitos reivindicados, mas há que contar, como dado de facto da vida internacional, com a sua reivindicação.
Qual será, porém, o regime jurídico internacional da plataforma?

6. No Direito Internacional convencional são escassos os princípios relativos ao regime jurídico do mar.
Os princípios fundamentais nesta matéria constam do Direito Internacional comum, formado exclusivamente por regras consuetudinárias.
O princípio mais importante, que a este respeito se pode considerar consagrado pelos costumes internacionais, é o da liberdade dos mares, que sintetiza o regime de utilização das águas marítimas não integradas- no território dos Estados. De tal princípio resultam, como seus corolários, o direito de livre navegação, o direito de pesca e o direito de imersão de cabos submarinos no alto mar.
O principio está, porém, sujeito a certos limites impostos por normas convencionais ou consuetudinárias.
O que mais interessa pôr agora em relevo s o que resulta de certas zonas de mar estarem reservadas à jurisdição exclusiva dos Estados, como elementos constitutivos dos seus territórios.
Essas zonas são formadas pelas faixas marítimas imediatamente adjacentes às costas e constituem o que comummente se denomina mar territorial, jurisdicional, litoral ou nacional, ou águas territoriais, jurisdicionais, litorais ou nacionais.

7. À respeito do mar territorial suscitam-se ainda hoje vários problemas no Direito Internacional.
Pode dizer-se mesmo que a única regra geralmente aceite a seu respeito é a de que o território dos Estados que confinam com o mar compreende o mar adjacente numa certa extensão.
A medida exacta desta não consta do Direito Internacional e a prática das relações internacionais, ato hoje, tem sido no sentido de deixar a determinação de

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tal medida à decisão unilateral dos Estados, embora haja a este respeito uma certa uniformidade de procedimento (normalmente a extensão do mar territorial varia entre 3 e 12 milhas marítimas).
Nos limites do mar territorial é princípio assente que o Estada exerce a plenitude dos direitos soberanos sobre as águas, o solo por elas coberto, o subsolo correspondente e o espaço aéreo superior. Tais direitos, porém, estão sujeitos a limites, impostos pelo Direito Internacional, dos quais o mais importante é o que deriva de um costume internacional consagrar, a favor de todos os Estados, um direito geral de navegação nos mares territoriais, habitualmente denominado direito à pastagem inofensiva.

8. Os limites ao princípio de liberdade dos mares, derivados do reconhecimento, a favor dos Estados, de certos direitos que incidem sobre as águas marítimas tendem nos últimos tempos a alargar-se.
Assim, desde há muito que se vem desenhando nu prática e, correlativamente, nas doutrinas dos jusinter-nacionalistas, a tendência para admitir que aos Estados deve reconhecer-se a faculdade de exercer certos direitos na zona do mar contígua ao mar territorial, tendo em vista a defesa de interesses nacionais de segurança e de protecção económica e sanitária.
Nesta zona - denominada zona contígua, e que se situaria fora dos limites das águas territoriais, no alto mar, portanto -, o Estado não gozaria de direitos de soberania, mas disporia de certas faculdades consentidas pelo Direito Internacional.
Os internacionalistas mais autorizados admitem que os direitos dos Estados, relativamente à zona contígua, dizem respeito à fiscalização aduaneira, à fiscalização sanitária e à defesa da sua segurança geral.

9. Definido assim o esquema geral do regime jurídico internacional do mar, interessa considerar especialmente, por dizer respeito à matéria de que trata a proposta de lei em exame, o aspecto particular do regime jurídico do solo coberto pelas águas marítimas e do subsolo correspondente.
A este respeito dispõe-se desde já de um dado positivo.
O solo coberto pelas águas territoriais e o subsolo correspondente estão sob jurisdição exclusiva do Estado a cujo território pertence o mar territorial.
O problema coloca-se, portanto, exclusivamente quanto ao alto mar, e a este respeito não há que ter em conta a zona contígua, porque os eventuais direitos dos Estados quanto a esta até há pouco tempo só respeitavam às águas.

10. Até às primeiras declarações dos Estados relativamente à plataforma continental a prática e a doutrina internacionais eram hesitantes acerca do regime jurídico do solo e do subsolo marinhos, fora dos limites do mar territorial.
As opiniões variavam entre considerarem-nos rés nullius, e, portanto, susceptíveis de ocupação, ou res communis, e, consequentemente, passíveis de utilização por todos os membros da sociedade dos Estados.
Eram unânimes, porém, todas as opiniões em sustentar que, fosse qual fosse o regime jurídico daquela parte do mar, sempre os direitos que viessem a ser reconhecidos aos Estados não poderiam prejudicar o princípio de liberdade dos mares com os seus corolários.
Pode afirmar-se ainda que a tendência dominante era no sentido de considerar que, se tais limites não fossem ultrapassados, os Estados marginais podiam livremente explorar os recursos do solo e do subsolo marinhos mesmo fora dos mares territoriais.

Na prática vários Estados assim procederam ou planearam proceder.
Como exemplo pode apontar-se a exploração de minas de carvão pela Grã-Bretanha (minas da Cornualha, cuja exploração é regulada pelo Cornueall Submarino Act, de 2 de Agosto de 1858) e pela França (minas de Dielette, na Mancha).
Num e noutro caso as galerias de exploração prolongam-se par vários quilómetros no subsolo marinho.
Ainda como exemplo do mesmo género pode indicar-se a exploração de petróleo pela Superior Oil nos mares da Califórnia, utilizando instalações à superfície das águas.
Dos planos de utilização do subsolo marinho que não chegaram a ser postos em prática são de citar especialmente os projectos de túneis sob o canal da Mancha, entre as costas britânica e francesa, e sob o estreito de Gibraltar, entre as costas europeia e africana.

11. As declarações mencionadas, reivindicando direitos específicos sobre a plataforma continental, deram nova feição ao problema do regime jurídico do solo e do subsolo do mar fora dos limites do mar territorial.

A posição assumida por grande número de potências, entre as quais se contam duas das maiores potências mundiais (Estados Unidos da América e Grã-Bretanha), e as maiores potências da América do Sul (Brasil, Argentina, Chile e Peru), representa o início de uma prática nas relações das potências que não podia deixar indiferentes as instituições que se ocupam, por interesse científico ou político, do estudo das questões inerentes ao regime jurídico das relações internacionais.
Por isso, tais declarações suscitaram uma série de estudos e de projectos com o objectivo de definir um regime jurídico preciso da plataforma continental.
Dos trabalhos realizados sobre esta matéria interessam especialmente, por motivos evidentes, os que foram efectuados pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas.

12. Na sua primeira sessão, que teve lugar em 1949, esta Comissão incluiu no seu programa de trabalhos o estudo do regime do alto mar.
Na sessão seguinte, em 1950, a Comissão apreciou o relatório apresentado sobre o assunto e em que, entre outras matérias concernentes ao regime do alto mar, se tratava dos problemas relativos à plataforma continental.
Novo relatório sobre a mesma matéria lhe foi presente em 1951, do qual foi dado conhecimento aos Estados membros das Nações Unidas.
Da revisão do relatório à luz dos comentários quo lhe foram feitos pelos Estados resultou a elaboração, em 1953, de um projecto de artigos relativos à plataforma que, pelo seu interesse, a seguir se transcreve:

ARTIGO 1.º

Neste articulado, a expressão «plataforma continental» (continental shelf) significa o solo e o subsolo da área submarina contígua á costa, mas fora da área das águas territoriais, até à profundidade de 200 m.

ARTIGO 2.º

O Estado ribeirinho exerce direitos soberanos sobre a plataforma continental, para o fim de investigar e explorar as suas riquezas naturais.

ARTIGO 3.º

Os direitos do Estado ribeirinho sobre a plataforma continental não afectam o estatuto legal das águas suprajacentes como alto mar.

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ARTIGO 4.º
Os direitos do Estado ribeirinho sobre a plataforma continental nau afectam o estatuto legal do espaço aéreo superior.

ARTIGO 5.º
Sem prejuízo do direito de pôr em prática providências razoáveis para a investigação científica na plataforma continental e para a exploração das suas riquezas naturais, o Estado ribeirinho não Poderá impedir o estabelecimento ou manutenção e cabos submarinos.

ARTIGO 6.º
1. Da investigação científica, na plataforma continental e da exploração tias suas riquezas naturais não poderá resultar qualquer interferência injustificada na navegação, pesca ou produção de peixe.
2. Sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e e), o Estado ribeirinho poderá construir e manter na plataforma continental as instalações necessárias para a investigação e exploração das riquezas naturais nela existentes, definir zonas de segurança a distâncias razoáveis em redor de tais instalações e estabelecer dentro de tais zonas as medidas necessárias para sua protecção.
3. Tais instalações, apesar de ficarem sob protecção do Estado ribeirinho, não gozarão de estatuto de ilha. não terão mar territorial próprio e a sua presença não afectará a delimitação das águas territoriais do Estado ribeirinho.
4. Deverão fazer-se avisos das instalações a construir e adoptar-se sistemas de sinalização das instalações construídas.
5. Nem as instalações nem as respectivas zonas de segurança poderão ser estabelecidas em canais estreitos ou em passagens reconhecidamente essenciais para a navegação.

ARTIGO 7.º
1. Quando a plataforma continental for contígua aos territórios de dois ou mais Estados cujas costas sejam fronteiras, o limite das zonas da plataforma pertencentes u cada um desses Estados é, na falta de acordo, ou se outra linha divisória não se justificar por circunstâncias especiais, a linha média de todos os pontos equidistantes das linhas-base, a partir das quais se mede a largura dos mares territoriais respectivos.
2. Quando a plataforma continental for contígua ao território de dois Estados adjacentes, o limite das zonas da plataforma pertencente a cada Estado, na falta de acordo, ou se outro limite se não justificar por circunstâncias especiais, será determinado pipila aplicação do princípio da equidistância das linhas-base, a partir das quais se mede a largura dos mares territoriais respectivos.

ARTIGO 8.º
Os conflitos que possam surgir entre Estados acerca da interpretação ou aplicação destes princípios serão resolvidos por arbitragem a pedido de qualquer das partes.
O projecto acima transcrito foi submetido à apreciação da Assembleia Geral das Nações Unidas, que, por resolução de 7 de Dezembro de 1953, decidiu não o apreciar, por considerar que o problema devia ser estudado conjuntamente com os restantes pelo regime jurídico internacional do mar.
Resolução semelhante foi aprovada em 14 de Dezembro de 1954, na qual se recomendou à Comissão do Direito Internacional a preparação de um novo relatório em que fossem analisadas conjuntamente as questões inerentes ao regime do alto mar, do mar territorial, das zonas contíguas e da plataforma continental e águas superjacentes.
Prevê-se a discussão de tal relatório na sessão da Assembleia que terá lugar em 1906.

13. Além da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, têm-se ocupado do estudo do regime jurídico da plataforma continental algumas instituições científicas internacionais, como a International Law Association, a International Bar Association e o Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional.
A International Law Association na sua 43.º reunião, em Bruxelas, em Agosto-Setembro de 1948, ocupou-se do problema dos «direitos ao subsolo do mar», questão que compreendia, evidentemente, a dos direitos à plataforma continental.
Na 44.º reunião, em Copenhaga, em Agosto-Setembro de 1950, o estudo do problema foi retomado, tendo continuado a sua discussão na reunião seguinte, em 1952, em Lucerna.
A International Bar Association, em Julho de 1950, numa reunião realizada em Londres, ocupou-se, entre outros assuntos, do estudo da «natureza e objecto dos direitos reivindicados ou exercidos pelos Estados do hemisfério ocidental sobre as águas adjacentes às costas e subsolo correspondente».
O Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional também se ocupou do problema no Congresso de Madrid (2 a 12 de Outubro de 1951) e no Congresso de S. Paulo (2 a 12 de Outubro de 1953).

14. Descrito, nas suas linhas gerais, o movimento de interesse suscitado na esfera internacional pela questão do regime jurídico da plataforma, pode dizer-se que a orientação geral que o domina é caracterizada pela tendência muito acentuada para admitir a favor dos Estados marginais direitos exclusivos, pelo menos quanto à exploração è aproveitamento dos recursos naturais nela existentes.
A mesma orientação se verifica nos autores que do problema se têm ocupado sob o ponto de vista doutrinal.
Citam-se, apenas para ilustrar a afirmação, Gilbert Gidel, La Plataforma Continental vante el Derecho, Valladolid, 1951, José Luís de Ascárraga, La Plataforma Submarina y el Derecho Internacional , Madrid, 1952, Tereza H. I. Flouret, La Doutrina de la Plataforma Submarina, Madrid, 1952.

15. A presente proposta de lei vem definir a posição portuguesa no movimento internacional que descrevemos.
Para sua apreciação, e especialmente para determinar o seu alcance exacto, tem interesse situá-la no actual panorama da ordem jurídica portuguesa acerca dos espaços marítimos.
Por isso, a seguir se expõem as linhas gerais do direito português sobre a matéria.

16. Na ordem jurídica portuguesa não há actualmente nenhum preceito de ordem geral que defina a extensão do mar territorial português.
O Alvará de 4 de Maio de 1805, em harmonia com o princípio enunciado por Bynkershoek. segundo o qual

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imperium terra finitur ubi finitur armorum potestas, dizia pertencerem ao domínio do Estado:

Os mares territoriais e adjacentes em tanta distância quanta abranja o tiro de canhão, ainda que não haja baterias em frente da situação (§ 2.º).

Posteriormente, em nenhum preceito de ordem geral se repetiu regra semelhante ou equivalente.
O Código Civil, depois de classificar as águas em públicas, comuns e particulares, integrou na primeira categoria as águas salgadas das costas, enseadas, baías, fozes, rios, esteiros s seus leitos (artigo 380.º, n.º 2.º), sem definir a extensão de tais águas.
Igual orientação foi seguida no Decreto n.º 8 de l de Dezembro de 1892, relativo à organização dos serviços hidráulicos e respectivo pessoal, que qualificou como públicas «as águas salgadas das costas, enseadas, baías, portos artificiais, docas, fozes, rias, esteiros e seus respectivos leitos, cais e praias, até onde alcançar o colo da máxima preia-mar de águas vivas» (artigo 1.º, n.º 1.º).
A Lei das Águas (Decreto n.º 5787-IIII, de 10 de Maio- de 1919) semelhantemente diz que são do domínio público «as águas salgadas das costas, enseadas, baías, portos artificiais, docas, fozes, rias, esteiros e seus respectivos leitos, cais e praias, até onde alcançar o colo da máxima preia-mar das águas vivas» (artigo 1.º, n.º 1.º).
Esta orientação foi acolhida pela Constituição Política de 1933, que, no seu artigo 49.º, n.º 2.º, inclui no domínio público do Estado «as águas marítimas com os seus leitos».
Posteriormente, o Decreto n.º 35 463, de 23 de Janeiro de 1946, reproduziu para o ultramar a regra do artigo 1.º, n.º 1.º, da Lei das Aguas (artigo 1.º, n.º l.º).
Nenhum destes preceitos, como se vê, toma posição quanto ao problema da extensão das águas marítimas que fazem parte do domínio público, ou que, porventura, sem pertencerem ao domínio .público, estão sob jurisdição soberana do Estado Português.
Há, porém, diplomas especiais em cujas disposições o problema está previsto.
São os diplomas relativos à fiscalização aduaneira, à pesca e ao policiamento, para certos fins, das águas adjacentes às costas portuguesas.
Quanto à fiscalização aduaneira, o artigo 46.º do Decreto n.º 31 665, de 22 de Novembro de 1941 (Reforma Aduaneira), reproduzindo o que se dispunha no artigo 211.º, n.º 1.º, do Decreto de 27 de Maio de 1911, diz:

A jurisdição das alfândegas exercer-se-á, com carácter habitual ou permanente, sob a sua acção directa ou por intermédio dos seus delegados:

2.º Na zona marítima de respeito considerada de 6 milhas.

Relativamente à pesca, as Leis n.º 735, de 10 de Julho de 1917 (artigos 1.º e 2.º). e 1514, de 20 de Dezembro de 1923 (artigos 1.º e 2.º), proíbem a pesca por embarcações estrangeiros nas águas territoriais portuguesas e dizem que o limite de tais águas será determinado, em relação aos pescadores estrangeiros, pela linha adoptada na legislação em vigor nos respectivos países.
O Decreto n.º 14 354, de 29 de Setembro de 1927 (artigo 1.º), tornado extensivo às províncias ultramarinas pelo Decreto n.º 14 853, de 5 de Janeiro de 1928, proíbe o derramamento de óleos, gasolina, petróleo, nafta, etc., e dos seus resíduos, dentro das águas territoriais portuguesas, ou seja até 6 milhas de distância das costas portuguesas.
Quanto à pesca, ainda se pode citar a Convenção Luso-Espanhola de 27 de Maio de 1893, segundo a qual, para efeitos de pesca por embarcações espanholas, e fixou também em 6 milhas a extensão do mar territorial.
Em face desta uniformidade de orientação, embora falte uni preceito geral que defina a extensão do mar territorial português, pode afirmar-se que existem elementos na ordem jurídica portuguesa que permitem considerar que essa extensão é de 6 milhas.
Tem-se discutido na doutrina o problema de sabei-se o mar territorial, em toda a sua extensão, se deve considerar no domínio público ou, pelo contrário, se este só compreende aquele até certa extensão, exercendo o Estado na parte restante apenas direitos de soberania.
Não compete à Câmara tomar posição na polémica.
Apenas se notará que, seja qual for a natureza dos direitos do Estado por que se deva concluir, em qualquer hipótese, tais direitos, em harmonia com os princípios do Direito Internacional geralmente aceites, dizem respeito não só às águas territoriais, mas também ao solo u ao subsolo correspondentes.
Nestes termos, a zona da plataforma continental correspondente ao mar territorial já hoje está sob jurisdição exclusiva do Estado Português.
A proposta de lei submetida à apreciação da Câmara só inova, portanto, na medida em que se refere u parte da plataforma que está fora daqueles limites.

17. Os aspectos da proposta que cumpre agora examinar, visto que, por enquanto, se trata apenas da sua apreciação na generalidade, são os da sua conveniência e oportunidade.
Quanto ao primeiro aspecto, parece não haver dúvida de que a providência legislativa proposta é conveniente.
Na verdade, perante o movimento internacional que descrevemos não pode deixar de se considerar conveniente que Portugal tome posição quanto à plataforma correspondente ao seu território.
Embora, como oportunamente se pôs em relevo, a tendência geral da opinião internacional seja no sentido do reconhecimento dos direitos dos Estados marginais sobre aquela zona do solo do mar, o certo é que muitas dúvidas ainda se verificam quanto à natureza e ao meio de aquisição de tais direitos.
A Câmara não tem de tomar posição ao debate, mas, a título de esclarecimento, indicam-se quais as principais teses em discussão, para se ver como é de aconselhar a definição da posição de Portugal.

18. Do conjunto de opiniões individuais e colectivas emitidas sobre o problema apuram-se as seguintes orientações fundamentais:
a) A plataforma continental não pode ser apropriada exclusivamente por nenhum Estado, porque a sua superfície, isto é, o seu solo, é res communis, como as águas do alto mar que a cobrem, e, consequentemente, pertence à comunidade internacional;
b) A plataforma, continental pode ser apropriada por qualquer Estado, porque toda ela -solo e subsolo- é res nullius, e, como tal, susceptível de apropriação pelo primeiro ocupante (tal ocupação, dizem alguns, não tem de ser efectiva, bastando a mera ocupação simbólica, nominal ou fictícia, com base numa simples declaração oficial, come as que já foram publicadas por alguns governos);

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c) A plataforma continental pertence ipso jure ao Estado adjacente e está submetida à sua soberania ou, como alguns autores dizem, ao seu controle e jurisdição;
d) A plataforma continental, independentemente do alcance do seu significado geográfico e da sua natureza jurídica, está sujeita ao controle e jurisdição do Estado ribeirinho, com vista à exploração e aproveitamento dos sem recursos naturais;
c) A plataforma continental é uma esfera de influência e interesse dos Estados ribeirinhos.

19. Excluindo a mencionada na alínea a), que é a que menus adesões tem merecido, as opiniões variam, como se vê, entre a atribuição da titularidade ipso jure de poderes aos Estados sobre a plataforma e a sua aquisição por meio de actos de ocupação, que geralmente se aceita poder ser meramente simbólica.
Não é possível determinar com rigor qual será a este respeito o sentido da evolução do Direito Internacional.
Basta, portanto, esta dúvida para justificar que os Estados interessados na exploração da plataforma continental marquem posição, proclamando expressamente os seus direitos.
Assim se evitarão eventuais dificuldades no futuro, se o Direito Internacional positivo acolher as teses de que a plataforma. é res nullius, susceptível, portanto, de apropriação pelo primeiro ocupante, ou simples esfera de influência do Estado marginal.
Mas, mesmo que o Direito Internacional venha a acolher a tese de que a plataforma pertence, ipso jure, ao Estado marginal, há todo a vantagem, sob o ponto de vista do Direito interno, em definir claramente a posição do Estado quanto ao aproveitamento dos recursos que eventualmente nela existam.
Para estas razões a Câmara Corporativa, encarando a proposta sob este prisma, considera-a conveniente e merecedora de aprovação pela Assembleia Nacional.
Não haverá, porém, outras razões que a desaconselhem?

20. São aparentemente impressionantes os argumentos que põem em relevo que. aceite o princípio da jurisdição exclusiva do Estado marginal sobre a plataforma continental, correlativamente se cerceiam ou excluem 03 direitos de todos os Estados ao aproveitamento dos recursos nela existentes.
Este aspecto do problema teria particular importância no que respeita à pesca e interessaria especialmente ao nosso país, dado que a nossa frota pesqueira exerce normalmente a É evidente que a impossibilidade de exercício desta actividade viria afectar gravemente a economia nacional.
A Câmara não considera, porém, estes argumentos relevantes.
Desde que se defina no Direito Internacional uma regra consagrando os direitos dos Estados sobre a plataforma, e parece indubitável, como se mostrou, estar-se a caminho disso, é evidente que, se Portugal se abstiver de definir a sua posição, isso não impedirá que os outros Estados o façam.
Além disso, a tendência das regras em formação é para respeitarem apenas ao solo o subsolo da plataforma, não afectando o regime da utilização das águas do alto mar para a navegação, pesca e imersão de cabos submarinos.
É de pôr em relevo, especialmente a este; respeito, o artigo 3.º do projecto da Comissão do Direito Internacional da Organização das Nações Unidas, que se transcreveu no n.º 12, e que as únicas declarações estaduais acerca da plataforma continental que suscitaram reacção foram as da Argentina, do Chile e do Peru, na parte em que reivindicam direitos especiais sobre as águas do alto mar.
Efectivamente, o Governo dos Estados Unidos da América, em notas de 2 de Julho de 1948, dirigidas àqueles Estados, e todas de igual teor, depois de manifestar o seu regozijo pela aceitação dos princípios relativos à plataforma continental, contesta n validade das reivindicações de direitos sobre as águas marítimas para além dos limites do mar territorial.
Não há, portanto, razões que levem a modificar a conclusão anterior.
Será, porém, oportuna a apresentação da proposta neste momento?

21. A questão da oportunidade da proposta pode perfeitamente colocar-se, embora se admita o princípio da necessidade da publicação de uma providência legislativa acerca dos direitos do Estado sobre a plataforma continental.
Na verdade, se a proposta vier a ser aprovada na Assembleia Nacional, Portugal será o primeiro Estado da Europa a proclamar, em termos gerais, os seus direitos à plataforma continental em toda a extensão dos seus domínios territoriais.
Poderia julgar-se ser mais prudente aguardar que se definisse com mais clareza o regime jurídico internacional da plataforma.
As razões atrás aduzidas acerca das vantagens de se definir posição no assunto justificam, porém, que desde, já se legisle sobre a matéria.
De resto, assim se contribuirá para a formação de uma prática internacional, através da qual se poderá originar uma norma consuetudinária sobre a matéria, ou se apressará a negociação de um tratado internacional em que o assunto seja objecto de regulamentação jurídica expressa.
Não se esqueça também que nem só na Europa se situa o território português e que temos noutros continentes territórios, relativamente aos quais a oportunidade se pode apresentar com aspectos diferentes dos da aparente indiferença europeia.

II

Apreciação na especialidade

BASE I

22. Esta base é a fundamental na economia da proposta.
Antes de se pronunciar sobre o fundo do preceito, a Câmara entende dever observar que a terminologia nele adoptada não é a mais conveniente e rigorosa.
Como se observou na primeira parte deste parecer, a expressão planalto continental é tradução infeliz da fórmula inglesa continental shelf.
A palavra planalto, nos melhores dicionários, é dado o significado de terreno elevado e plano, de planície sobre montes ou de terreno elevado que se estende em planície (Cândido de Figueiredo e Caldas Aulete), o que evidentemente não sugere a ideia da terra submersa.
Por isso, embora a expressão planalto continental tenha uma certa tradição em Portugal (veja-se, por exemplo, o relatório da Comissão Permanente de Direito Marítimo Internacional, de que foi relator o vice-almirante Vicente de Almeida de Eça, in Boletim da Faculdade de Direito, de Coimbra, vol. VIII, pp. 381 e

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seguintes), não nos parece muito apropriado o seu emprego.
Na literatura estrangeira da especialidade as expressões mais geralmente usadas são as que correspondem à expressão portuguesa plataforma continental.
Esta, porém, também não é de um grande rigor, porque a zona do fundo do mar que por ele se quer designar pode ser contígua a territórios continentais ou a territórios insulares.
Parece, por isso, preferível a expressão plataforma submarina, proposta por José Luís Ascárraga.
A Câmara, porém, julga que a última palavra na matéria pertencerá ao Direito Internacional quando definir os princípios fundamentais sobre o regime da plataforma.
Embora, como se disse, dele não constem regras precisas sobre a matéria, verifica-se que nos projectos e trabalhos doutrinais referidos nos n.º 12 e 13 a expressão anais usada é a correspondente à expressão portuguesa plataforma continental.
É de supor que venha esta a ser adoptada no Direito Internacional. Por isso se afigura preferível à Câmara a sua adopção na presente proposta de lei.
Quanto à doutrina da base, observa-se que a qualificação da plataforma como parte do domínio público do Estado implica a aceitação do princípio de que ela faz parte do território nacional.
Poderá, portanto, parecer preferível que na base I a declaração de dominialidade da plataforma procedesse da afirmação da sua integração no território do Estado.
O território do Estado está, porém, definido no artigo 1.º da Constituição Política, por referência, em função de localização geográfica, às diversas partes do domínio terrestre.
Não se julgou necessário incluir no texto constitucional referência expressa aos outros elementos do território (domínio fluvial e lacustre, domínio aéreo e domínio marítimo), por se considerar que a referência genérica ao território abrange necessariamente todas as suas partes constituintes.
Desde que do Direito Internacional venha a constar que a plataforma faz parte, em todas as hipóteses, do território dos Estados, não haverá, efectivamente, necessidade de o mencionar expressamente nas respectivas legislações internas.
A Câmara considera, por isso, que a declaração de dominialidade é suficientemente expressiva de integração da plataforma no território nacional.
Em harmonia com as considerações feitas, sugerem-se, por isso, apenas alterações de redacção da base destinadas a torná-la mais clara e mais harmónica com a terminologia consagrada pelas instituições internacionais. A redacção que se sugere é a seguinte:

O leito do mar e o subsolo correspondente nas plataformas submarinas contíguas às costas marítimas portuguesas, continentais ou insulares (plataformas continentais), fora dos limites do mar territorial, pertencem ao domínio público do Estado.

BASE II

23. A matéria desta base respeita ao problema dos limites da plataforma.
A questão pode ser discutida sob o aspecto dos critérios gerais a adoptar para a definição de tais limites e sob o aspecto, subsidiário do primeiro, da forma de aplicar tais critérios em concreto.
No segundo aspecto, a questão fundamental que se suscita é a da delimitação das zonas sob jurisdição dos Estados marginais, quando a mesma plataforma seja contígua ao litoral de vários Estados.
Ainda se não assentou num critério geral indiscutível para a delimitação da plataforma.
O critério mais geralmente usado até hoje baseia-se na geomorfologia do solo do mar e define como limite da plataforma a linha onde começa o declive ou talude para as grandes profundidades oceânicas, que é, como se disse, a linha definida pela isobata das 100 braças.
A aplicação deste critério encontra várias dificuldades, resultantes da irregularidade do fundo do mar.
As principais são as seguintes:
a) Podem existir várias isobatas contíguas de 100 braças;
b) A plataforma pode ser descontínua, isto é, podem existir vales submarinos ou fracturas e maiores profundidades do que as normais na plataforma.

A consideração destas dificuldades tem feito hesitar as instituições internacionais quanto ao critério de delimitação a adoptar.
A Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas, por exemplo, no seu projecto de 1951, adoptou o critério da explorabilidade dos recursos da plataforma, segundo o qual os direitos dos Estados à plataforma deveriam incidir sobre as zonas «em que a profundidade das águas super jacentes permite a exploração dos recursos naturais do solo e subsolo». No projecto de 1903, porém, já se adoptou o limite da isobata 200 m.
Na base em exame não se toma posição expressa no problema.
O limite dos 200 m de profundidade funciona apenas para definir a competência de Estado para fazer concessões relativamente a plataforma.
Daqui parece poder concluir-se que se pretendeu marcar a posição de que os limites da plataforma serão aqueles que vierem a ser apurados no Direito Internacional.
A Câmara considera que este momento é esta a melhor orientação, em face da incerteza de prática e da doutrina internacionais.
Não pode, porém, deixar de notar que é de prever que, a respeito dos limites da plataforma, suceda o mesmo que em relação à extensão do mar territorial, sobre a qual ainda se não definiu doutrina internacional uniforme.
A verificar-se esta hipótese, será indispensável completar, neste aspecto, a providência legislativa agora proposta, definindo-se expressamente, como em relação ao mar territorial, até onde se estende a jurisdição do Estado Português.
Quanto ao segundo aspecto do problema, isto é, quanto à aplicação em concreto dos limites da plataforma no caso em que sobre fia incidam direitos de vários Estados, os processos que têm sido propostos são as negociações directas e o acordo entre os Estados e a arbitragem.
No § único da base n prevê-se o problema e define-se o princípio de que, a verificar-se a necessidade de delimitação, as concessões só poderão ser feitas depois de previu definição da linha de limite.
Não se dizem quais os meios ti usar para esse fim.
Pressupõe-se, portanto, que serão os meios geralmente admitidos no Direito Internacional para a resolução de problemas que interessem conjuntamente a vários Estados, nomeadamente os processos praticados na sociedade internacional para delimitação de territórios de Estados contíguos.

Em face do que se expõe, a Câmara entende que a base n da proposta pode ser aprovada, substituindo-

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-se, como ira anterior, a expressão planalto continentais pela de plataformas continentais.

BASE III

24. Nesta base define-se o regime da plataforma relativamente nos princípios internacionais aplicáveis ao alto mar.
Como já se observou, os direitos do Estado à plataforma continental não contundem com tais princípios, dos quais o dominante é o princípio da liberdade de utilização dos mares ou princípio da liberdade dos mares.
Este princípio não é, efectivamente, prejudicado pelo reconhecimento da jurisdição exclusiva, dos Estados sobre parte do solo que as águas do alto mar cobrem. Tem de se admitir, porém, que o Direito Internacional evolua no sentido de garantir o exercício dos direitos sobre a plataforma, permitindo certas derrogações à regra.
Na verdade, a exploração dos recursos do solo e do subsolo da plataforma, desde que se faca com base em instalações à superfície das águas, supõe necessariamente a ocupação, pelo menos temporária, de parte das águas do alto mar.
Em que medida tais limites virão a ser reconhecidos pelo Direito Internacional não se pode prever.
É de citar, como orientação que possivelmente virá a ser acolhida, o que se dispõe no artigo 6.º do projecto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, transcrito no n.º 12.
À redacção da base da proposta agora em exame foi delineada em termos tais que harmoniza o respeito pelos princípios do regime jurídico do alto mar com a admissão de limites a tais princípios impostos pelo Direito Internacional.
Por isso, a Câmara lhe não faz qualquer observação, ressalvada a modificação de nomenclatura já referida com respeito às bases anteriores.

BASE IV

25. Nesta base define-se como órgão competente para fazer concessões para exploração dos recursos naturais existentes na plataforma o Conselho de Ministros.
A particularidade dos problemas que pode suscitar a exploração de tais recursos, derivada da sua importância e das implicações que pode ter com questões internacionais, justifica plenamente que se revista de todas as cautelas o acto de concessão.
Por isso, a Câmara aprova plenamente a atribuição da competência, para conceder ao Conselho de Ministros, porque assim cada caso poderá ser examinado sob todos os aspectos relevantes para os interesses superiores do Estado, incluindo o dos seus interesses internacionais.
Ás mesmas razões justificam que do mesmo órgão dependa a transmissão de direitos pelos concessionários.
A este respeito, porém, a Câmara sugere que a intervenção do Conselho se faça não a posteriori, mediante aprovação das transmissões, como consta da base em exame, mas a priori, mediante autorização.
A doutrina do § único da base merece inteira aprovação.
A exigência da prestação de caução pelos concessionários acautela a defesa dos interesses do Estado, garantindo o pagamento pelos directos responsáveis das indemnizações devidas por eventuais prejuízos de terceiros.

26. A Câmara sugere ainda que na proposta se inclua uma nova base, na qual se declare expressamente a aplicação do regime legislativo em projecto a todo o território português.
Assim se evitarão as dúvidas que eventualmente possam suscitar-se quanto u aplicabilidade da lei em estudo ao ultramar, em consequência do princípio expresso no artigo 149." da, Constituição Política, segundo o qual as províncias ultramarinas se regerão, em regra, por legislação especial.
A redacção que se propõe é a seguinte:
A presente lei aplica-se a todo o território português.

III

Conclusões

27. A Câmara Corporativa, tendo examinado na generalidade e na especialidade o projecto de proposta de lei n.º 507, relativo às plataformas continentais contíguas às costas marítimas portuguesas, e atendendo ao que se expôs, é de parecer que a proposta deve ser aprovada, com as modificações de redacção sugeridas, ficando, portanto, assim redigida:

BASE I

O leito do mar e o subsolo correspondente nas plataformas submarinas contíguas às costas marítimas portuguesas, continentais ou insulares (plataformas continentais), fora dos limites do mar territorial, pertencem ao domínio público do Estado.

BASE II

Salvo quando lei especial dispuser de outro modo, não poderão ser feitas concessões para além da parte das plataformas continentais limitada pela linha do 200 m de profundidade das águas.
§ único. Sempre que a plataforma continental se estenda até às costas marítimas de outro Estado, só poderão ser feitas concessões depois de prévia definição da linha de separação.

BASE III

A exploração da plataforma continental não implicará outros limite» para o regime de alto mar das águas epicontinentais que não sejam os consentidos pelo Direito Internacional.

BASE IV

As concessões relativas a recursos naturais existentes no domínio público definido nesta lei dependem de consentimento do Conselho de Ministros, de cuja autorização dependerá também a transmissão dos direitos concedidos.
§ único. O concessionário prestará caução para garantir a indemnização de quaisquer perdas e danos emergentes de violação do disposto na base III.

BASE v
A presente lei aplica-se a todo o território português.

Palácio de S. Bento, 4 de Abril de 1955.

José Gabriel Pinto Coelho.
Adelino da Palma Carlos.
Albano Rodrigues de Oliveira.
Francisco José Vieira Machado.
Francisco Monteiro Grilo.
Vasco Lopes Alves.
Joaquim Moreira da Silva Cunha, relator.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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