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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 164

ANO DE 1956 12 DE JULHO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VI LEGISLATURA

(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)

SESSÃO N.º 164, EM 11 DE JULHO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmo. Srs.
Gastão Carlos de Deus Figueira
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 15 minutos.

Antes da ordem do dia. - Leu-se um oficio do Sr. Presidente do Conselho a comunicar à Assembleia que o Sr. Presidente da República foi convidado oficialmente a visitar a África do Sul, a Rodésia e a Niassalândia.
Foi aprovado um voto de pesar pelo falecimento do pai do Sr. Deputado Agnelo do Rego.
O Sr. Deputado Pereira da Conceição apontou a necessidade de se ajudarem as corporações de bombeiros voluntários.
O Sr. Deputado Calheiros Lopes falou sobre a crise económico-social de Setúbal e a industrialização do País.

Ordem do dia. - Prosseguiu o debate acerca da proposta de lei que institui as primeiras corporações. Usaram da palavra os Srs. Deputados José Sarmento, Melo Machado e Carlos Manterá.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 15 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 5 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge.
Albino Soares Finto dos Reis Júnior.
Alexandra Aranha Furtado de Mendonça.
Alfredo Amélio Pereira da Conceição.
Américo Cortês Pinto.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calheiros Lopes.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
António Russel de Sousa.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancella de Abreu.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Eduardo Pereira Viana.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.

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João Ameal.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Finto.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim de Sousa Machado.
Jorge Pereira Jardim.
José Garcia Nunes Mexia.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís de Azeredo Pereira.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel Monterroso Carneiro.
Manuel Trigueiros Sampaio.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancella de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.

Tito Castelo Branco Arantes.

O Sr. Presidente:- Estão presentes 63 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 15 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente:- Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério do Interior a requerimento do Sr. Deputado Carlos Moreira, os quais vão ser entregues a este Sr. Deputado.
Estão também na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia a pedido do Sr. Deputado Pinto Barriga, a quem os mesmos vão ser entregues.
Encontra-se igualmente na Mesa um ofício do Sr. Presidente do Conselho, que vai ser lido.

Foi lido. É o seguinte:

Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Excelência.- O Governo tem a honra de participar à Assembleia Nacional os convites dirigidos a S. Ex.ª o Presidente da República para uma visita oficial à União da África do Sul e à Federação da Rodésia e da Niassalândia, por ocasião da viagem do Chefe do Estudo à província de Moçambique, nos próximos meses de Agosto e Setembro.
Dadas as excelentes relações de Portugal e designadamente das suas duas grandes províncias de África com o Estado da União da África do Sul e com a Federação da Rodésia e da Niassalândia e a importância dos interesses comuns, considera o Governo aqueles convites como actos do mais alto significado e espera que da realização das visitas se tirem os melhores resultados para o estreitamento das relações e, de mudo geral, para a política dos respectivos países naquela parte de África.
Tendo o Conselho de Ministros de 3 do corrente dado, por sua parte, assentimento às referidas visitas, venho rogar a V. Ex.ª o obséquio de submeter o caso à Assembleia Nacional, para efeito do artigo 76.º da Constituição.
A bem da Nação.

O Presidente do Conselho, Oliveira Salazar.

O Sr. Presidente: - Vai baixar à Comissão dos Negócios Estrangeiros.

Comunico à Câmara o falecimento do pai do Sr. Deputado Agnelo do Rego. Julgo interpretar o sentimento da Assembleia mandando exarar no Diário das Sessões de hoje um voto de pesar por este acontecimento.
Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Pereira da Conceição.

O Sr. Pereira da Conceição: - Sr. Presidente: na bela e ridente vila nortenha da Póvoa de Varzim acaba de encerrar-se o 12.º Congresso dos Bombeiros Portugueses, reunindo os comandantes de todas as corporações voluntárias do País e mais de 1500 bombeiros, numa afirmação de fé e de certeza pela nobre e elevada causa que, de alma e coração, abraçaram no seu entusiasmo e dedicação.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- Não pertenço a qualquer associação deste género, mas sinto o meu espírito sensibilizado pela segura certeza nos valores morais abraçados por esta gente de todo o País, mantendo nas raízes do nosso povo a abnegação humanitária pela vida do seu semelhante como facho luminoso a projectar-se sobre o alto da consciência humana.
E, exactamente por ser uma voz alheia ao movimento, sinto-me mais autorizado ainda para aqui me levantar a assinalar o facto nesta Assembleia, onde os problemas preocupantes da Nação tem o seu lugar próprio.
Na verdade, sentir latejar no coração dos homens do nosso povo, indistintamente entre o rico e pobre, entre o intelectual e o operário, entre o culto e o inculto, entre o patrão e o assalariado, entre o senhor e o homem da gleba, entre o citadino e o aldeão, uma identidade de sentimentos, uma ideologia humana acima dos vilipêndios, das más fés, das baixezas e das questiúnculas da vida, sentir esse latejar nas almas, em afirmação perene duma certeza de dar a vida pela própria vida, num voluntarismo espontâneo, é ter a certeza da existência de um clima saudável, de um clima moral, que dá às nações a certeza de uma vida que se eleva acima da própria vida dos seus filhos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- O facto não podia passar despercebido nesta Casa, e por isso aqui o trago, para que o apreciemos no elevado sentido que ele possui.
Apesar dos batalhões de sapadores bombeiros existentes nas cidades de Lisboa e Porto, magnificamente organizados e adestrados, apesar de algumas corporações de bombeiros municipais existentes nalgumas cidades do Pais, o nosso serviço de incêndios seria pavoromente reduzido em extensão se não existissem em quase todas as cidades e vilas portuguesas corporações de bombeiros voluntários.
Já tive ocasião, recentemente, nesta tribuna, de citar a admiração da Bélgica pela nossa instituição dos bombeiros voluntários e posso afirmar, sem receio de desmentido, que nela repousa uma segurança do País, invejável ato por nações mais extensas e poderosas.
O facto devo-se ao magnífico espírito de voluntarismo encontrado entre muitos portugueses, que, sacrificando as suas horas de repouso, se dispõem a receber instrução e adestramento, se dispõem a perder noites de descanso em serviço de piquetes e, mais, quando alertados pelas sereias ou pelos toques dos sinos abandonam as suas ferramentas e trabalhos, o seu ganha-pão e a sua labuta

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e ai se lançam, apressados, a oferecer os seus braços, o sen sangue e a sua existência para servirem o próximo.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:- E em toda esta faina, regra geral, têm de lutar com a carência de todos os recursos. Os subsídios e auxílios do Estado são sempre diminutos para tão grande e numerosa família, e dai vá de encarniçarem-se em dar vida à sua própria fé, havendo para tanto de bater à porta dos corações generosos para que os ajudem na aquisição dos seus meios e instrumentos de luta, e dai vá de dar voltas à imaginação para que a atracção das quermesses, das festas, das competições desportivas, etc., possa alimentar os sempre magros fundos da sua organização, na qual o serviço da colectividade consome constantemente combustíveis, deteriora e corrompe os materiais, exige imperativamente modernização e actualização de meios que possibilitem a sua acção.
Ao voluntarismo e à coragem física somam-se na exigência a tenacidade e a força moral para que não soçobrem.
Este magnifico espirito seria, por si só, elemento suficiente para que os Poderes Públicos olhassem este agrupamento de homens com o maior interesse e o maior desvelo, dando-lhes, senão o material mínimo de que carecem, ao menos todas as facilidades legais que fosse possível, e cito a propósito a isenção de taxas e licenças, a concessão de carburantes e óleos com benefício de preços, etc.
Mas, se a segurança de muitas vilas repousa ao presente nas suas corporações de bombeiros, quero lembrar que amanhã, em épocas trágicas e tempestuosas, a segurança das próprias cidades pode repousar, e em muito, na acção dessas mesmas corporações. Refiro-me, particularmente, ao caso de defesa da Nação contra os efeitos da guerra.
Muitas pessoas se apavoram com as explosões atómicas. Quero, porém, lembrar que estas, pela sua instantaneidade de acção, permitem ao socorro que monte imediatamente uma operação de ataque, com vistas ao salvamento, e desde logo, por utilização de colunas móveis vindas do exterior, dê início ao combate às radiações e aos focos de incêndio.
Porém, os exemplos de Hamburgo e de Berlim, na última guerra, e as lições tiradas da guerra da Coreia provam que as tempestades de fogo, conhecidas pelo nome de t ciclones de fogo», são muito mais graves.
Os incêndios provocados por bombas de térmite e mais modernamente por napalm, atingindo as mais altas temperaturas, exigem um combate que é difícil e moroso. Recordo, a propósito, que Hamburgo ardeu de uma só vez por oito dias consecutivos.
É nessas horas graves que se torna necessário concentrar todos os meios do serviço de incêndios, já não duma cidade, porque são absolutamente insuficientes, mas de todo um distrito ou de toda uma região do Pais.
Por isso, na prevenção destes males, urge ao presente encarar o valor efectivo que as corporações de voluntários representarão em circunstâncias tão graves e, como tal, encarar problemas que não podem ser relegados para soluções de última hora.
Por isso chamo a atenção do Governo para o facto, que é do maior interesse nacional, e ouso solicitar que se concedam a estas corporações:

1.º Facilidades que importa dar ao recrutamento destes voluntários, assegurando-lhes posição legal nos interesses da defesa nacional e como tal libertando-os das obrigações militares em caso de mobilização geral, pois devem ser afectos à mobilização da defesa civil. Outras soluções compensadoras, de natureza moral e legal, que lhes devam ser conferidas, a fim de facilitar o seu recrutamento;
2.º Facilidades na obtenção dos materiais, veículos e combustíveis, a que já fiz referência. Deve, porém, neste particular procurar obter-se a uniformidade nacional de materiais e meios de acção, para que não suceda, como no presente, que os calibres das bocas de incêndio, sendo diferentes de vila para vila e de cidade para cidade, possam vir a dificultar ou impossibilitar a utilização e emprego das corporações na concentração da luta contra o fogo numa cidade atacada por um «ciclone de fogo»;
3.º Uniformidade de ensino e de adestramento em todo o País, com as correspondentes exigências de cultura e conhecimentos técnicos, para os graduados e comandantes;
4.º Mais acentuada protecção em subsídios, reforçados pelo próprio Estado, como segurança da defesa colectiva, e buscados fora dos apertados limites até aqui estabelecidos pela verba anual recebida legalmente dos impostos de seguros. A margem tributária dos seguros parece-me ainda longe de atingir as suas possibilidades, e demais se atendermos a que os magníficos e poderosos imóveis em que as companhias hoje transformam os seus lucros sofrerão amanhã dos mesmos males dos seus segurados em caso de guerra.
Todos os meios que aponto servirão para difundir e cultivar esse magnífico espírito de voluntarismo, que é honra e orgulho nacional e que tanta gente ignora ou esquece.
No voluntarismo destes homens ingressaram figuras nobres e generosas, que lhe deram tradições e história. Refiro-me, entre outros, ao infante D. Afonso, 1.º comandante dos Voluntários da Ajuda, que chegou ele próprio a acorrer a quase todos os sinistros, guiando o carro dos voluntários; a Guilherme Cossoul, Marcelino Mesquita e José Elias Garcia, dos Voluntários de Lisboa; a Mariano Costa, dos Voluntários de Campo de Ourique; a Eduardo Pinto Bastos e Eduardo Macieira, dos Voluntários Lisbonenses, etc.
E, quanto ao Porto, não posso esquecer a figura de Guilherme Gomes Fernandes, dos Voluntários do Porto, que deixou afamado nome internacional.
Todo este belo e generoso espírito precisa de encontrar o carinho da Noção, e temos de nos convencer de que, a par dos cuidadosos progressos e do melhor interesse pelos corpos permanentes, não podemos deixar de contar com as corporações dos voluntários.
A sua têmpera e a sua fé merecem o apreço do País, mas a sua dedicação e a sua prestimosa acção, no caso da defesa nacional, exigem o interesse da Nação, para que esta organização viva e subsista.
Estas palavras têm o seu sentido próprio neste final do seu 12.º Congresso Nacional, no momento em que o mundo se vê dividido em campos tão opostos e em que a humanidade se debate em crises de materialismo e de ambição, que chegam a apavorar as consciências sãs.
Verificarmos, pois, que nesta terra portuguesa existem milhares de homens que não pensam em si, mas na vida do próximo, que pairam com seus ideais e sua fé viva acima das mesquinhices do mundo, é sentirmos que aqui, na nação lusitana, ainda existem muitos dos valores morais que fazem a vida e a história dos países.
Ao vermos, pois, florescer esse generoso voluntarismo bem podemos afirmar que ele tem de viver e subsistir,

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transumando do passado e projectando-se no futuro, para honra e glória do próprio Portugal. Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Calheiros Lopes: - Sr. Presidente: pedi a palavra para, deste lugar, onde a expressão dos anseios dos povos e a franca exposição dos problemas, de ordem nacional ou de simples âmbito regional, têm, porventura, maior e mais eficiente significado do que em qualquer outra parte, solicitar a atenção do Governo para a situação económico-social que, de há anos para cá, atravessa a cidade de Setúbal. Este importante centro populacional, de cerca de 50 000 habitantes, sofre as graves consequências de viver quase exclusivamente de uma indústria - a das conservas de peixe - sujeita às imprevisíveis contingências da escassez ou total falta de pescado.
O que representa a economia de uma cidade, assim alicerçada em base tão contingente, avalia-se com nitidez - e, além disso, com inevitáveis apreensões - ao examinarmos a baixa, a queda incessante que tem sofrido a indústria setubalense das conservas de peixe. Estou convencido de que a Assembleia partilhará do interesse e cuidados que me levaram a tratar aqui este problema quando tomar conhecimento dos ligeiros apontamentos estatísticos que peço licença para reproduzir.
No decénio do 1927 a 1936, época de que possuímos os primeiros elementos oficiais, a pesca da sardinha atingiu, em Setúbal, a média anual de 18 038 t.
No decénio seguinte (1937 a 1946J a média anual desceu para 10107 t.
Nos nove anos que vão de 1947 a 1955 essa mesma média não passou das 59 t.
Estamos, pois, em presença de uma quebra de actividade industrial, tanto da indústria propriamente da pesca como da das conservas, para que aquela fornece a matéria-prima, que se tem reflectido com extensão grave e pelas mais lamentáveis formas no panorama social da cidade e da região de que ela é o fulcro económico.
Se, independentemente das médias indicadas, verificarmos que no ano de 1955 somente se pescaram 2320 t, avaliamos ainda com maior rigor a seriedade da situação.
É certo que, graças ao desenvolvimento da camionagem, que trouxe ao nosso pais a melhoria da rede rodoviária incessantemente realizada pelo Governo, a carência do pescado que tem flagelado o porto de Setúbal foi, embora em grau reduzido, atenuada pela indústria local de conservas por meio de aquisições de peixe de outros centros piscatórios.
Setúbal, que foi sem dúvida o mais importante fornecedor de magnifica sardinha a todo o País, passou a depender, para alimentar as suas fábricas, de outros portos da costa portuguesa. Mas isso não evitou que, de uma produção de 425 709 caixas de conservas no ano de 1947, baixássemos, em 1955, para a verdadeiramente ruinosa cifra de 220 080 caixas. E, para dar mais completa ideia do lamentável reflexo desta queda de actividade industrial, veja-se que o número de fábricas, sendo de 42 ao redor dos anos de 1947 e 1949, está presentemente reduzido a 32 unidades ...
No que respeita n utilização da mão-de-obra, ao lado das consequências da escassez de matéria-prima, a evolução técnica do fabrico tem substituído, cada vez mais intensamente, o homem pela máquina, e até, numa natural defesa económica dos fabricantes, o trabalho do homem pela mão-de-obra feminina.
O problema social da cidade, por tudo isto, agrava-se de ano para ano. A medida que as fábricas se aperfeiçoam, a máquina dispensa o trabalho humano, e assim, nos escassos dias de laboração permitidos pelas exíguas quantidades de peixe obtidas, empregam-se hoje muito menos operários do que nos períodos áureos em que Setúbal viu desenvolver-se, talvez um tanto exagerada e ilusoriamente, a sua indústria quase única.
O reflexo social desta situação económica merece, sem dúvida, a cuidadosa atenção das entidades locais e dos Poderes Públicos.
Como vive hoje a população de Setúbal? São muitos os lares onde os que têm por missão granjear o sustento diário lutam com faltas pungentes de meios de existência normal. Há numerosos trabalhadores do mar e fábricas que, à custa de duros sacrifícios e longas caminhadas, buscam ocupações diversas em outras localidades, nos concelhos da margem sul do Tejo, nos campos ou nas salinas.
Algumas centenas de jovens que saem anualmente, com os seus cursos industrial ou comercial, da magnifica escola técnica com que o Estado Novo dotou Setúbal são atirados para a vida sem probabilidades de encontrar trabalho, meditando perigosamente sobre a inutilidade dos diplomas que levaram anos a tirar, à casta, sabe Deus, de quantos sacrifícios e privações.
Nestes jovens desocupados, assim como nos pais sem trabalho e sem pão, encontram tantas vezes terreno propício as perigosas infiltrações da terrível epidemia social da nossa era.
Penso, Sr. Presidente, que não podemos continuar a assistir a este avolumar da crise que Setúbal atravessa. É inegável o valor da acção da assistência com que as autoridades, a organização corporativa, a Igreja, todo um conjunto magnífico de obras sociais, têm combatido os perniciosos efeitos da crise social da cidade.
Multiplicam-se, nas épocas de maior desemprego, os trabalhos públicos de emergência ordenados pelo Governo; a Delegação de Saúde, os dispensários, os serviços médico-sociais, a Casa dos Pescadores, as associações de socorros mútuos, as obras religiosas, a Santa Casa da Misericórdia, toda a aparelhagem felizmente existente na nossa terra impregnada pelo espírito cristão do amor do próximo merece que se lhe reconheça o quanto tem contribuído para aliviar a doença, as privações e a miséria. Mas não será incoerente e anacrónico mesmo confiar apenas na assistência para ir mantendo precariamente na situação actual uma cidade de 50 000 habitantes, à espera que volte, com a miragem de uma nova era de peixe abundante, a prosperidade e o ouro e então a colocação para alguns desempregados?
O problema de Setúbal, segundo julgo, só pode ser resolvido pela criação de novas indústrias, que vão absorvendo, a pouco e pouco, a grande massa operária, hoje exclusivamente atida à pesca e às conservas. Embora haja ainda uma esperança de ver instalada em Setúbal uma nova importante industria, que insuflaria na precária vida económica da cidade o alento de novas actividades, não devem terminar por esse facto as diligências para resolvermos o problema crucial da substituição da indústria única pela indústria múltipla.
Evidentemente, estas simples palavras não podem conter quaisquer projectos formais ou iniciativas concretas de solução do caso. Mas peço licença para extrair das considerações formuladas uma sugestão que me permito concretizar nestes termos: não poderia o Ministério da Economia encarregar uma comissão constituída por representantes da Direcção-Geral dos Serviços Industriais e das autoridades e organismos económicos locais que, assistida dos técnicos que fosse conveniente recrutar, promovesse, em prazo curto, um estudo criterioso e prático das possibilidades de criação de indústrias novas em Setúbal?
Por sua iniciativa ou sobre sugestões o propostas que lhe fossem apresentadas, parece-me que a comissão que me permito sugerir, desde que a sua acção fosse orien-

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tada sob o signo das realidades e com o imperativo da urgência do problema, muito poderia concorrer para as soluções com que é mister acudir-lhe, para se não deixar criar numa das mais populosas cidades do País um foco de mal-estar social, destoante do ambiente de progresso e realizações que o Governo tem sabido desenvolver no Pais.
Como Deputado por Setúbal, penso que o ambiente social desta terra tão populosa - a terceira do País - pode e deve modificar-se substancialmente se justamente puderem transformar-se em realidades as perspectivas, que acarinhamos, do desenvolvimento da economia desta região, com base no trabalho que falta a uma parte numerosa da sua população.
Mais emprego, mais assistência, quer no trabalho, na doença ou invalidez, são imperativos da maior justiça social, são imperativos da nossa própria consciência.
Têm feito muito os Governos do Estado Novo. Estou absolutamente confiado em que continuarão a trabalhar pela melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras. Todavia, parece-me necessário prosseguir mais rapidamente no caminho do progresso que o País tem traçado e aperfeiçoar ainda a organização corporativa, mas cautelosamente, procedendo prudentemente, de forma a não abalar a estrutura económica e social da Nação, mas sim, precisamente, dando-lhe ainda mais vida.
Está Intimamente ligado a essa linha de conduta o desenvolvimento económico e social da Nação.
Há que desenvolver de uma forma intensa as duas fontes essenciais da produção: a agricultura e a indústria, entendidas ambas as actividades em forma extensiva, isto é, incluindo a pecuária, a exploração florestal, etc.
Portugal, nação essencialmente agrícola, mas em que nem toda a extensão do solo apresenta condições para uma razoável exploração, necessita, para equilíbrio da sua economia e do seu regime social, de elevar o nível de industrialização, meio imprescindível para o desenvolvimento e progresso económico e social do povo português.
O problema da industrialização indispensável no nosso pais, já o disse nesta tribuna, não se pode separar, na sua extensão, da necessidade de distribuir por todas as regiões da nossa terra a sua localização, por forma a valorizar, por um lado, a vida de trabalho do maior número das regiões, mas ainda, e sobretudo, a evitar, por outro, o êxodo rural e a concentração populacional em volta das duas cidades mais importantes do Pais.
A industrialização, de modo geral, representa uma inegável etapa da civilização, de que os povos não podem ser privados e a que têm de recorrer se não quiserem ficar em plano de inferioridade.
É absolutamente necessário estabelecer um plano geral da actividade industrial do Pais, de forma a aproveitarmos ao máximo as matérias-primas da metrópole e do ultramar, para podermos abastecer suficientemente os mercados do nosso império.
Temos de fazer um esforço considerável para conseguirmos um equipamento ao nível das outras potências industriais, assim como a necessária preparação técnica, absolutamente indispensável para o desenvolvimento da produtividade.
Torna-se, pois, necessário prosseguir com todo o empenho, e a um ritmo mais acelerado, na obra j á iniciada da industrialização do País: mas isto não implica nem pode prejudicar o incremento da actividade agrícola. Antes, pelo contrário, estreitamente ligado à industrialização deve encontrar-se o desenvolvimento da exploração agrícola, tanto pelo aperfeiçoamento dos sistemas de cultura, com vista a maiores rendimentos unitários e maiores produções, como pela introdução de novas culturas, como, por exemplo, a beterraba, o tabaco, etc., que constituiriam matérias-primas para a própria indústria nacional.
Os subprodutos da beterraba - que bem falta fazem todos os anos - seriam esplêndidos alimentos para o sustento dos gados.
Para tal poder-se-ia estabelecer um contingente para a produção metropolitana, correspondente à quantidade de açúcar que se importa do estrangeiro.
Não resta dúvida de que a agricultura e a indústria em numerosos aspectos se completam, e do seu equilibrado desenvolvimento depende a satisfação do nosso fim comum: ocorrer com mais largueza às necessidades de toda a população.
A melhoria da situação de todos os portugueses depende essencialmente da forma como se for intensificando o trabalho nacional e aumentando a produtividade em todos os sectores, especialmente em relação ao progresso da agricultura e indústria.
Não resta dúvida também que o nosso pais necessita de suprir, com o trabalho perseverante dos seus filhos, os bens que a natureza lhe negou.
E para isso confiamos na política do homem que salvou o Pais e tem dos problemas nacionais, sejam metropolitanos ou ultramarinos, uma visão inteligente e esclarecida.
A verdadeira unidade económica, metropolitana e ultramarina, em perfeita conjugação do esforços, é mais uma grande vitória da política do Estado Novo.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta de lei que institui as corporações. Tem a palavra o Sr. Deputado José Sarmento.

O Sr. José Sarmento: - Sr. Presidente: foi com a maior satisfação que tomei conhecimento do desejo do Governo de completar, com a proposta de lei que estamos o, discutir, a organização corporativa do Estado Português.
Quando da campanha eleitoral que precedeu as últimas eleições para esta legislatura tive ocasião de apontar aqueles pontos sobre os quais se debruçaria mais particularmente a minha actuação nesta Assembleia. A saber: interesses do sector económico (o vinho do Porto); defesa das populações rurais, no sentido da elevação do seu nível de vida; problemas do ensino superior, particularmente os relacionados com a física, e finalmente o problema fundamental de se completar a estruturação corporativa do Estado Português.
O meio em que tenho vivido desde que nasci permitiu-me sentir de perto os problemas actuais do vinho do Porto. As ruínas e mortórios das antigas quintas e casas nobres que no Douro se observam não permitem esquecer aqueles períodos alternados de miséria e abundância por que esta região tem passado. Por isso várias vezes tive de intervir nesta Assembleia para defender os interesses do sector do vinho do Porto.
Outros estudos a que também me dediquei, num domínio totalmente diferente, permitiram-me apresentar nesta Assembleia algumas sugestões sobre o ensino superior.
Infelizmente, as minhas modestas intervenções nestes sectores não realçaram tanto quanto eu desejaria os pontoe focados. No entanto, espero que tenham es-

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clarecido suficientemente a Assembleia e o Governo sobre a urgência na resolução de certos problemas.
Em condições totalmente diferentes apresenta-se-me agora a apreciação na generalidade da presente proposta de lei. A minha índole e as actividades que até hoje tenho desempenhado afastaram-me muito dos problemas relacionados com os que agora se discutem. Apesar disso, sinto-me obrigado a intervir, perante um problema de tal transcendência e importância, em que se marca uma viragem histórica que nos afasta do liberalismo individualista e também do socialismo, que preside a muitas das formas de governo do mundo civilizado.
Não possuo nesta matéria competência suficiente para a discutir com profundo conhecimento, pois, além de tudo o mais, muito pouco tempo nos foi dado para o estudo do douto e extensíssimo parecer da Câmara Corporativa. Por isso a minha intervenção se resume essencialmente em afirmar a grande satisfação e esperança de que a viragem corporativa que a presente proposta de lei vai originar mós afaste dos perigos que afligem, em maior ou menor escala, todas as nações do mundo ocidental.
As ideias liberais que surgiram do individualismo dos fins do século XVIII derrubaram totalmente a estrutura que tinha permitido viver muitos séculos em paz social. Dessa destruição nasceram problemas de profunda gravidade e de consequências bem funestas.
O trabalho passou a ser considerado uma mercadoria e como tal sujeito à lei da oferta e da procura.
Desencadearam-se as lutas entre o capital e o trabalho e entre empresas.
Desapareceu a paz social, etc.
Para resolver os problemas criados pelo liberalismo individualista aparece o socialismo, no qual em contraposição com o primeiro, o indivíduo se organiza em função da sociedade. A evolução natural deste sistema político-económico conduz-nos, com maior ou menor velocidade, ao Estado totalitário.
Bem sei que se objecta que em muitos países se tenta impedir, por intermédio de medidas oportunas mas sem bases doutrinárias, que se atinja esse termo fatal da evolução socialista.
No entanto, se apreciarmos a evolução política desses países, numa escala de observação que não nos permite distinguir fenómenos de curta duração, notar-se-á que a tendência da evolução não foi modificada. Quando muito, retardou-se a sua velocidade, mas a meta continua a sei a mesma.
Como terceiro sistema de organização política surge o sistema corporativo. Este elimina os malefícios do liberalismo, sem se cair no Estado totalitário. Não quero neste altura deixar de lembrar, prestando-lhe assim as minhas homenagens, que foi o Integralismo Lusitano que lançou a primeira semente da doutrina corporativa portuguesa.
A Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926, desencadeada pela necessidade, mais do que premente, de pôr termo definitivo ao estado de caos e desorganização a que se chegara, adoptou, passado tempo, as ideias corporativas, o que permitiu afirmar: «Temos uma doutrina, somos uma forças.
Aos poucos e através de vários diplomas vai tomando forma a organização corporativa do Estado Português». Assim, em 19 de Março de 1933 é plebiscitada a Constituição, a qual organiza o Estado Português em República unitária e corporativa.
Em Setembro do mesmo ano uma série de decretos-leis - n.ºs 23 048, 23 049 e 23 050 - dá o primeiro arranque à organização corporativa nascente. Mais tarde, a Lei n.º 1957 estabelece os grémios da lavoura. Os organismos pré-corporativos - organismos de coordenação económica - são criados em Dezembro de 1938, pelos Decreto-Leis n.ºs 29 110, 29 111 e 29 112, e assim novo impulso se dá à organização.
Isto é: aos poucos e com a lentidão necessária, para se poder marchar com certa segurança, a organização corporativa ensaia os seus primeiros passos. No entretanto sobrevêm a guerra. As suas repercussões impedem que o plano esboçado prossiga a sua marcha. O fim da guerra, devido a considerações de outra natureza, não tornou propício o desenvolvimento da política iniciada em 1933. Mas hoje as condições, são outras. O estado em que o mundo ocidental se debate, perante as ideias políticas que levam certos povos ao totalitarismo comunista, torna mais do que nunca oportuno o prosseguimento da política corporativa há muito iniciada.
Encontramo-nos, consequentemente, agora na altura própria para dar um novo arranque à campanha corporativista. Esta nova fase será caracterizada, pomo se indica na proposta de lei, pelo estabelecimento das primeiras corporações.
Como muito bem se foca no douto parecer da Câmara Corporativa, o nosso corporativismo é essencialmente realista.
De acordo com esse realismo, lêem-se no relatório da proposta de lei sobre as corporações as seguintes considerações:

Por isso mesmo torna-se mister, uma vez a funcionarem as corporações, estar bem atento à sua acção, para as adaptar progressivamente às necessidades que lhe cabe satisfazer.

Acrescenta-se mais como medida de prudência:

Um sistema político-social, muito embora alicerçado, como o nosso corporativismo, nas realidades da vida, não se ergue de uma só vez, como um bloco. Antes se vai desenvolvendo e aperfeiçoam! o com o rodar dos anos. e o aperfeiçoamento dos homens.

Mais adiante lê-se também:

Nesta, ordem de ideias se pensa que a teoria económica do corporativismo pode e deve ser aperfeiçoada e desenvolvida era face da experiência resultante da progressiva e integral aplicação do (princípio corporativo.

Em resumo: na proposta do Governo nota-se, desde logo, que a construção que se vai erguer não é rígida de modo a poderem aproveitar-se os ensinamentos colhidos e desta maneara se poder melhorar a organização.
Bem entendido, se a teoria carece de ser aperfeiçoada e deve, portanto, possuir uma certa fluidez, os princípios que as informam devem ser rígidos. Por isso, muito me congratulo ao verificar, pela leitura do relatório da presente proposta de lei, que a linha fundamental do pensamento que presidiu à sua elaboração se caracteriza por se negar o corporativismo de Estado e se proclamar, simultaneamente, a autonomia da corporação. Nestes pontos basilares não se poderia nunca admitir transigências, e por isso muito bem procedeu o Governo em fixar já a sua posição.
Como muito oportunamente se aponta no referido relatório, a competência da corporação é limitada pelo facto de o Estado não poder abdicar do direito e do dever de presidir superiormente à vida económica e social. Além disso, como se parte do princípio de que o somatório dos interesses dos grupos profissionais não é igual ao bem comum, será necessário, sem atentar con-

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tra a equitativa e necessária autonomia da corporação, impedir o estabelecimento de condições propícias que levassem esta a isolar-se e a fechar-se na defesa unilateral e intransigente das conveniências do grupo, tornando-o o centro de oligarquias indesejáveis.
Como muito bem se acrescenta no relatório, é preciso, para se não cair num totalitarismo de estado, que se não venha a cair no estatismo da corporação.
Em resumo, a oportunidade e as ideias directrizes que presidiram à elaboração da presente proposta de lei merecem a mais ampla e plena aprovação.
Mas quanto ao critério de integração, adoptado na presente proposta de lei, para a constituição de certas corporações reservarei a minha aprovação.
A título definitivo não entendo que se integrem todas as actividades agrícolas numa só corporação - Corporação da Lavoura; todas as actividades comerciais numa única corporação - Corporação do Comércio; e, finalmente, todas as actividades industriais na Corporação da Indústria. Gomo é que nestas corporações se poderá atender às intensas relações de instrumentalidade se forem suprimidos os organismos de coordenação económica?
Mas, mesmo que estes não desapareçam, as relações de instrumentalidade nunca poderão ser satisfatoriamente atendidas.
Bem sei que, devido à fluidez da presente proposta de lei, se podem, como fruto da experiência, criar novas corporações, lias quais se incluiria parcial ou totalmente o ciclo do produto.
Mas haverá alguma vantagem em unir agora aquilo que mais tarde virá a separar-se? Neste ponto não seria mais conveniente seguir o parecer da Câmara Corporativa, não fixando prazo para o desdobramento das secções das Corporações da Lavoura e Indústria em novas corporações?
Não tenho, por enquanto, opinião firme febre esta matéria, mas espero que ela se precise no decorrer do debate.
Terminadas estas breves considerações gorais sobre a apreciação na generalidade da presente proposta de lei desejo apresentar à Assembleia e ao Governo a posição tomada pelo sector do vinho do Porto sobre tão momentoso problema. Vou, por isso, resumir as considerações duma proposta apresentada pelo referido sector.
A tornar-se realidade a presente proposta de lei, a Corporação da Lavoura assimilaria na sua secção de vinhos a lavoura do Douro, como se houvesse de se reconhecer afinidades entre os seus problemas e os da restante lavoura vinícola, a ponto de os colocar em compartimentos que mais os relacionam com a restante produção do País do que com os assuntos relativos ao comércio do vinho do Porto. Este, por sua vez, seria colocado, a par do comércio de outros produtos, na secção respectiva da sua corporação.
Isto é, o critério de integração, função económica, não satisfaz.
No caso particular do vinho do Porto, tal como nu da pesca e conservas, impõe-se o critério de integração vertical. Senão vejamos: o vinho do Porto é um produto específico, original, definido essencialmente pela Bua ligação à terra de que nasce. Produzido e orientado na sua evolução, contém caracteres organolépticos que o qualificam e distinguem de todos os similares em todo o Mundo.
Definida pelos seus caracteres, tal como o produto. é a região demarcada onde é colhido. Não se pode dizer propriamente que foi o homem que a delimitou. Foi a natureza que. por forma bem clara, traçou a sua orla e adentro dela criou um conjunto agro-climático; o homem não fez mais do que se empenhar em ter na
natureza e definir formalmente a individualidade regional.
Em terras do Douro tudo tem as suas características: a produção e o homem. Existe uma espécie de identidade entre a terra do Douro e o seu trabalhador rural. O mesmo se pode repetir acerca do lavrador. O fundamento da exploração agrícola regional é a vinha, base tradicional da sua economia, atracção fatalista de todos os bens e de todos os males. Hortas e pomares não são mais do que modestos complementos.
Certo é que, por vezes, quando a extensão de terreno o permite e a economia do vinho não convida, se acrescentam à exploração amendoeiras e olivais. A terra, mesmo com essa derivante. continua a distinguir-se como a terra do vinho, proclamando os seus caracteres fundamentais.
Os interesses da região demarcada não se espraiam por fora. de forma alguma, no sentido da horizontalidade. Há forçosamente contactos económicos com outras regiões vinícolas, mas que não influem na marcha do produto e sua garantia de genuinidade. Esta existe e mantém-se graças às relações de interdependência verticais que a actual organização vertical permite assegurar.
A região vive delimitada, como se existissem muralhas ou fossos em seu redor.
O vinho do Porto, para que nada estranho possa maculá-lo, como que se canaliza para Gaia pelo rio ou pelo caminho de ferro, sob os olhares vigilantes da fiscalização. Tal como abandona a região assim o recebe o entreposto.
Em tanto semelhante, o comércio do vinho do Porto vive agremiado, submetido a regras de labor que estabelecem relações imperativas de continuidade com a produção, que são a um tempo medidas de separação relativamente às outras actividades vinícolas.
Tem de comerciar o produto vindo exclusivamente do Douro, depois de o ter envelhecido, isto é, depois de exercida por ele e pelo tempo a acção industrial que, implicitamente, lhe está cometida.
Para reaviver a similitude nem falta a demarcação. As instalações bacilares do comércio situam-se obrigatoriamente no entreposto, cujos limites a lei estabelece. Ligado ti região produtora pela via férrea e pela via fluvial, bem pode dizer-se que o conjunto constitui uma só região demarcada, formada por dois órgãos de funções diferenciadas - a produtora e a comercial. Lavoura e comércio encerram-se assim num bloco.
Produção e comércio são aqui actividades a quem as realidades a tradição e a lei impõem relações económicas de instrumentalidade, sendo condição vital do produto, relativamente à marca de origem de que usufrui, que nenhuma substância surja na horizontalidade a tentar imiscuir-se.
As afinidades entre os dois órgãos ou indivíduos que os constituem vão ainda mais longe.
Muitas casas exportadoras de Gaia possuem quintas no Douro. Para essas existe uma fusão de actividades - produtora industrial e comercial. Outros comerciantes trabalham em íntimo entendimento com os lavradores, promovendo nos armazéns destes uma parte do envelhecimento dos vinhos.
A garantia da genuinidade do produto implica, numa fusão indissolúvel, a actividade da lavoura e a actividade do comércio com a presença do Estado, que, através do Instituto do Vinho do Porto, assiste, coordena, protege, fiscaliza e responde perante os consumidores pela autenticidade da mercadoria. Produção e comércio não se podem separar.
Em resumo, os argumentos apresentados, tanto ou mais convincente do que aqueles que justificam a cria-

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ção duma corporação de pesca e conservas, militam a favor da criação duma corporação do vinho do Porto.
Sobre o organismo de coordenação económica (Instituto do Vinho do Porto) considera-se indispensável a sua conservação. Não se pode conceber este sector da economia nacional sem um organismo incumbido de velar pelo cumprimento das leis, disciplinador das actividades, e, portanto, revestido de prestígio e autoridade.
Em particular o serviço de fiscalização destinado a garantir a genuinidade e a qualidade do produto, não podendo ficar adstrito nem à produção nem ao comércio, terá forçosamente de caber ao Instituto do Vinho do Porto.
A proposta do sector do vinho do Porto que acabo de resumir conclui propondo a criação da Corporação do Vinho do Porto s a manutenção do Instituto do Vinho do {Porto na sua qualidade de organismo de coordenação económica, embora, se tanto for julgado conveniente, remodelado no sentido dum maior aperfeiçoamento.
Termino fazendo minhas todas as considerações acabadas de apontar.
Elas caracterizam com rara perfeição e precisão o problema económico social do vinho do Porto. Tenho a certeza de que, se a proposta do sector do vinho do Porto pudesse ser plebiscitada por todos aqueles que lhe estão ligados, desde o trabalhador rural até ao exportador, ela seria aprovada por unanimidade.
Para terminar chamo a atenção do Governo e da Assembleia para o desejo nela expresso. Se este não puder ser agora satisfeito espero que a sua solução não demore. Recordo que a organização do sector do vinho do Porto, constituído pela Casa do Douro, Instituto do Vinho do Porto e Grémio dos Exportadores, já deu há muito as suas provas e por isso já não é ousadia transformá-la numa construção definitiva.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Melo Machado: - Sr. Presidente: desta vez ocuparei pouco tempo e, VV. Ex.ªs, porque vou apenas fazer um exame, tão objectivo quanto possível, de proposta de lei do Governo e do respectivo parecer da Câmara Corporativa.
Entendeu o Governo ser este o momento oportuno para enviar à Assembleia esta proposta, através da qual se instituem as corporações.
Não há, julgo eu, sobre essa oportunidade que discutir, apenas temos que colaborar.
Enviada a (proposta à Câmara Corporativa, recebemos desta não propriamente um parecer, mas um tratado, que, pela sua extensão, não facilita o exame e a apreciação da proposta, tanto mais que dela diverge profundamente e apresenta emendas numerosas, que essencialmente a alteram.
Ao analisar-se a proposta e o parecer verifica-se que, enquanto o Governo prebende avançar cautelosamente para a instituição das corporações, cônscio de que o problema tem a maior delicadeza s a doutrinação indispensável não foi ainda feita, como aliás se comprova pela apresentação da proposta sobre o Plano de Formação Social e Corporativa, o relator do parecer pretende lançar-se impetuosamente na organização das corporações, embrenhado profundamente na técnica respectiva, mas fazendo tábua rasa das considerações e melindres de natureza política, das complicações e inconvenientes de natureza prática.
Mesmo assim o parecer está cheio de dúvidas ou de hesitações, que são muito bem postas em relevo pela declaração de voto dos Dignos Procuradores Sr». Drs. Afonso de Melo e Afonso Queiró.
Postos em frente destes dois caminhos, que, em certo aspecto, não são convergentes, mas opostas, temos necessariamente de decidir-nos pelo caminho a seguir.
A mim afigura-se-me que a voz do Governo é a do bom senso, da prudência, que nos indica com as indispensáveis cautelas como caminharmos para a realização dos corporações sem corrermos riscos excessivos, dando-lhe um princípio plausível de execução, cuja experiência nos permitirá, conjuntamente com a doutrinação a realizar, ir desdobrando, alargando e melhorando a organização a que agora se dá início.
Se nos decidíssemos pela execução do que pretende o relator da Câmara Corporativa iríamos lançar-nos perigosamente no abismo, sem que seja possível prever onde iríamos parar, nem as consequências que da execução dum tão vasto e fulminante plano de corporativização poderiam resultar.
Fez bem o Sr. Relator do parecer, a cujas qualidades de trabalho e a cujo saber presto as minhas homenagens, em juntar ao seu trabalho um gráfico, um esquema, da sua realização.
Esse gráfico nos revela, expressivamente, a confusão em que seria lançado o País sob o pretexto de ser organizado corporativamente.
Concepção corporativa utópica lhe chama o Sr. Dr. Afonso Queiró e creio que tem razão.
Besta saber se em matéria de tanta delicadeza como esta nos devemos lançar em construções utópicas, em vez de procurarmos seguir com a possível segurança de quem não avança sem se ter assegurado da firmeza do terreno que pisa.
Curioso é reparar que se pretendeu fazer tábua rasa de tudo o que, tendo dado as suas provas, pode e deve continuar a assegurar no campo económico uma actuação cuidada e medida pelo critério governamental, única que, com a responsabilidade inerente e os recursos de que dispõe, a pode assegurar.
Não creio que por muito tempo ainda a organização corporativa possa funcionar sem unia cautelosa, previdente e generosa tutela.
É disso testemunho o funcionamento das Casas dos Pescadores e das Casas do Povo.
Sem favor pode afirmar-se que as Casas dos Pescadores são dentro da organização corporativa as que melhor funcionam, e isto porque são (tuteladas, orientadas e vigiadas pelos capitães dos portos, que podem orgulhar-se da obra formidável que souberam levantar e amparar, com resultados inequívocos, que todo o pescador reconhece.
Quanto às Casas do Povo, regra geral, só onde um proprietário altruísta, inteligente, dedicado e respeitado lhes quis dar a sua assistência permanente funcionam com proveito para os associados e para a colectividade.
Não temos, pois, julgo eu, que caminhar abruptamente para uma corporativização complexa e particularista, cujo funcionamento viesse depois a ter de ser travado vigorosamente, mas antes para uma instituição cautelosa do regime, cujo funcionamento será o melhor guia, o melhor indicativo do sentido em que se deve caminhar.
As corporações são, na teoria, a Nação organizada em frente ao Governo, que para governar conta com a sua audiência, a sua consciência e ciência dos próprios problemas; mas o Governo tem de manter a livre discricionariedade, o poder de decisão e de orientação, que, se não escapa inteiramente aos dirigidos, é neles deformada pela acuidade com que sentem os próprios interesses e os não deixa observar o interesse geral.

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São do Sr. Procurador Dr. Luís Supico Pinto as seguintes afirmações, extraídas da sua declaração de voto:

Se é condenável que o Estado domine a vida económica e social para além dos limites definidos pela doutrina e que a Constituição e o Estatuto do Trabalho Nacional consagram, penso que não menos condenável será qualquer orientação que possa levar, na prática, a uma limitação dos poderes do Estado que nem os princípios nem os imperativos do bem comum justificam ou consentem.

Eis porque parece não poder dispensar-se a existência dos organismos de coordenação económica como instituições técnicas do Estado, cuja função é estabelecer a ligação entre na corporações e o Estado, orientados, todavia, por este último.
Em larga e bem fundamentada declaração de voto o Sr. Procurador Joaquim Moreira da Silva Cunha diz:

Mesmo depois de instituídas as corporações deve ficar assegurada a possibilidade efectiva de o Estado se desempenhar da sua função de orientador e coordenador supremo da vida económica.
É, pois, indispensável que no Estado existam órgãos adequados ao desempenho de tais funções.

As corporações têm um largo e importantíssimo papel a desempenhar, mas é evidente que precisam de dar as suas provas e que o Estado lhes outorgará a sua confiança se reconhecer que souberam, pela dignidade com que agirem, merecê-la.
Vamos fazer uma tentativa, uma experiência, arriscada, audaciosa, pura a qual não haverá porventura ainda a preparação necessária, o que não quer dizer que a não façamos. Quero crer que todos colaborarão, com o desejo sincero de demonstrarem que sabem merecer a confiança que o Governo demonstra ter ao promover a organização das corporações.
Quero crer que o trabalho a realizar poderá ser útil e fecundo, mas não nos esqueçamos de que, como sempre, esse trabalho será bom ou mau, útil ou pernicioso, consoante as pessoas que o orientem. O homem é sempre o elemento essencial para qualquer realização, s aqui não precisaremos de um homem, mas de muitos homens.
Ao ver no parecer a aspiração de realizar um tão copioso número de corporações acode-me ao espírito a interrogação: poderemos encontrar para as dirigir todos os que para tal e com bom espírito serão necessários?
Quando vejo advogar, em vez de uma Corporação da Lavoura, com as suas secções diferenciadas, uma corporação para cada cultura logo me ocorre a ideia de que a vida na lavoura não é assim. A vida na lavoura é quase sempre um conjunto de culturas, todas dirigidas pelo mesmo empresário.
Para representar a vida agrícola, os seus interesses e as seus peculiaridades uma corporação bastará, e ela será precisamente mais forte por poder representar os seus interesses no conjunto e na interdependência desses mesmos interesses, como o retrato vivo da propriedade agrícola, sem que isso, todavia, seja impeditivo de que os mais competentes para cada uma das culturas tenham podido estudar as suas dificuldades e as suas soluções, enquadrando-as, todavia, no interesse agrícola geral, isto é, não esquecendo, ao estudarem os seus próprios problemas, a sua posição de relatividade com todos os outros, com utilidade aliás para o Governo.
Este é, todavia, um outro problema que se põe distintamente na proposta e no parecer.
A questão da horizontalidade ou verticalidade da organização.
A proposta inclina-se nitidamente para a horizontalidade, embora não deixe de apontar cautelosamente e mesmo ensaiar a organização vertical.
O parecer envereda nitidamente pela organização vertical, que se me afigura manifestamente imprudente.
Não sei se estou a ver bem o problema, sei aporias que o vejo assim, e porque sempre me acostumei a apresentar nesta. Assembleia com honestidade e com verdade a minha opinião não iria agora em matéria tão pouco definida e viva a como esta deixar de trazer o meu contributo tal como o vejo, tal como o sinto, tal como o considero mais útil para a lavoura e para todos nós.
Devo dizer a VV. Ex.ªs que os membros das Comissões de Política e Administração Geral e Local, Trabalho, Previdência e Assistência Social e Economia, que se reuniram para estudar este diploma, assentaram em seguir a sua discussão com base na proposta do Governo. Da Câmara Corporativa apenas utilizaram algumas emendas por ela propostas. Foi, portanto, neste sentido que foram feitas as propostas que. vão ser apresentadas por aquelas Comissões.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Carlos Mantero: - Sr. Presidente: encontramo-nos perante um problema de grande transcendência. Da solução que lhe dermos e da forma como pelo Governo ela for aplicada depende muito do nosso futuro político, da paz interna e do prestígio exterior do País.
Hão-de permitir-me que exponha o meu ponto de vista sem preocupações ou preconceitos doutrinários, sem o propósito de condenar ou exaltar qualquer sistema, mas apresentando as minhas razões numa análise fria das doutrinas e na interpretação serena dos factos. Não pretendo enfileirar com esta ou aquela tendência, ser agradável a uns ou a outros; não pretendo tão-pouco ser ecléctico, mas pôr claramente o meu pensamento e tomar com coragem as responsabilidades que neste momento grave me cabem.
Como nasceram as primeiras formações corporativas, como se deformaram os princípios ao contacto das realidades, como degeneraram as ideias mestras sob a influência do espírito e da doutrina do Estado na sua marcha ascendente para o dirigismo?
Como e porque se modificou a fisionomia do corporativismo português?
Importa sobremodo a análise dos princípios que estas questões envolvem. O seu esclarecimento, a sua definição e o seu destino institucional estão nas nossas mãos.
Grande responsabilidade é a nossa, nesta hora - a de cada um de nós e a do órgão político que formamos.
Na medida em que atraiçoarmos a Nação, nas instituições que lhe dermos, condenaremos, a nossa própria instituição. Na medida em que a compreendermos e lhes dermos instituições que ela sinta, de que careça e que a sirvam utilmente, honraremos o mandato que o povo nos confiou, elevando em prestígio este alto orgão da soberania nacional.
Fui no meio da grita que levantara o anátema de Karl Marx, condenando a sociedade capitalista à proletarização e à miséria crescentes, foi no meio da agitação que criara a revolução industrial, que se ouviu a voz do Papa Leão XIII e tomaram corpo a ideias corporativistas.

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Então o problema da miséria generalizaria a grandes massas humanas era patente e real no Ocidente. Mas não quis a história ser agradável a Karl Max e as massas humanas tendem no mundo moderno a desproletarizar-se e a miséria, empurrada para a Ásia, esfuma-se no Ocidente livre com os últimos clarões do grande incêndio ateado pela Revolução Francesa.
Revolução industrial e de evolução Francesa não podem deixar de ser consideradas partes dum mesmo todo, a luta do indivíduo contra o grupo, a luta homem contra as limitações postas pela sociedade grupal à iniciativa individual, a mais precisamente, no económico contra as limitações postas à acção do elemento dinâmico ou empresarial, que é um dos mais poderosos elementos do crescimento económico.
Liberto o dinamismo criador do empresário, criado um novo condicionalismo social, elevado o indivíduo à plenitude da sua soberania, a sociedade sentiu-se impotente e voltou a pensar-se que o grupo tinha, afinal, alguma razão de ser.
O corporativismo, como doutrina político-social, nasceu, no fundo, do reconhecimento de que o homem não pode eximir-se ao imperativo do grupo e formou-se na preocupação de adiar remédio através da consciência do grupo para o chamado problema social, o problema da miséria.
Dizer-se que a sociedade é um conjunto de grupos é apenas uma meia verdade, porque a sociedade é simultaneamente um conjunto de grupos e de pessoas, com consciências diferenciadas. A consciência individual não coincide nem se limita às fronteiras dos. grupos em que se enquadra, afirma-se para além deles e integra-se, ou não, nas grandes correntes de ideias ou de sentimentos que se agitam no todo nacional ou mesmo internacional.
Todas as sociedades em Iodas as épocas são em certo modo simbioses de grupos. O problema mio é construir com este truísmo uma doutrina original, o problema é, sim, reconhecer que a aglutinação toma formas diferentes nas diversas épocas da história, o problema é, sim, interpretar a natureza e extensão da aglutinação nos vário? períodos. O problema para nós é o de perscrutar o processo de aglutinação dos grupos que compõem na hora presente a sociedade portuguesa e aquilatar do seu valor social para realizar na sua institucionalização um todo orgânico que contribua a melhor ajustar as instituições políticas aos imperativos do nosso tempo.
O problema está em valorizar as duas realidades - o indivíduo e o grupo -, articulando-as em instituições inspiradas e enraizadas nos factos sociais.
Para institucionalizar com acerto, criando órgãos verdadeiramente representativos, há que observar com precisão como é que a integração espontaneamente se opera.
Por isso, quando no decurso das minhas considerações falo de integração desvio-me, em certo modo, do seu significado entre os tratadistas do corporativismo. Para minha «integração» é um fenómeno natural de aproximação dos homens num mercado comum de valores sociais, é o esforço social para atingir o nivelamento, é a agitação em busca de entendimento na identidade de valores, é, em resumo, a arrumação espontânea dos homens segundo a natureza e equivalência das suas afinidades preponderantes, e é na medida em que essa espontaneidade se der que a solidez do grupo se afirma e, portanto, a importância do seu valor social se verifica.
Na terminologia corporativa corrente, «integração» lida com os métodos» de arrumação ou enquadramento a priori; no fundo, é a estruturação preconcebida em vista a criação de um todo orgânico.
Às instituições não se impõem, nascem espontâneas dos próprios factos sociais.
Existe, de facto, entre nós uma realidade corporativa.
Em que medida se verifica em Portugal a sua integração, que grau de generalidade tem, em que sectores se operou, que formas adquiriu?
Corresponde ela às tendências gregárias da alma portuguesa é isto o que temos de averiguar, é sobre a verificação do facto corporativo que temos de assentar as ideias e os planos, para não andarmos a criar instituições no espaço, só porque elas agradam à nossa formação intelectual, mais ou menos tomista, mais ou menos cartesiana. Estará certo o esquema corporativo inicialmente imaginado ou estará certo o que agora se arquitectou?
Corresponderão eles ao grau e ti forma da nossa integração, às tendências do espírito corporativo tal como ele se manifesta na sociedade portuguesa?
Não importa tanto estabelecer esquemas, o que importa é construir sobre realidades, ainda que não sejam senão realidades espirituais, estados de alma, ou receptividade revolucionária.
A integração como fenómeno social pode operar-se tanto no sentido horizontal como no sentido vertical, ou simultânea ou sucessivamente nos dois sentidos.
Ora vejamos:
O sentido horizontal da função determina a integração no plano sindical ou profissional propriamente dito. Poderia designar-se do primeiro grau esta forma de integração, e é a mais frequente.
A integração pode também operar-se entre diversos planos sindicais, em torno da identidade de fins dos vários planos, da solidariedade de interesses por eles sentida, vivida e compreendida - uma verdadeira integração do segundo grau.
Pode ainda conceber-se, para efeitos de raciocínio, a integração vertical, que começa na matéria-prima e acaba no balcão. Não creio que sejam muitos os exemplos de integração espontânea deste tipo na complexa e interdependente economia do nosso tempo.
No sentido vertical a solidariedade escapa quase sempre no mundo moderno e a integração corporativa não se realiza.
Não existe qualquer solidariedade sentida, vivida ou compreendida entre o conjunto mineiro nas minas de carvão e de ferro-gerência dos altos fornos-operário na fábrica de trefilagem-sócios de armazém distribuidor», e até pode suceder que no plano nacional a verticalidade se não ponha sequer, porque as minas podem muito bem estar no estrangeiro (como sucede na siderurgia italiana).

O Sr. José Sarmento: - No caso particular em que falei há pouco as relações de verticalidade a que V. Ex.ª se está a referir não só são actualmente muito intensa, mas também já o eram muito ante» de se ter iniciado a actual organização corporativa.

O Orador: - A economia do vinho do Ponto é um caso muito especial. Trata-se de uma economia muito simples, em franca decadência apesar de todos os esforços feitos para lhe acudir.

O Sr. José Sarmento: - Como os planos rígidos não são susceptíveis de se adaptarem às realidades humanam, nuns casos deve-se adoptar o critério da horizontalidade noutros o da verticalidade.

O Orador: - Eu compreendo muito bem as dúvidas de V. Ex.ª, mas, se me dá licença, continuo a minha

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exposição, para não nos perdermos nos casos particulares, a que procurei fugir, por serem pouco relevantes para a orientação que penso dar às minhas considerações.
Em resumo, a integração corporativa efectiva-se quando a realidade tiver dado vida a consciência corporativa, e isto não é obra de arquitectos sociais nem »e cria por lei.
No económico é ao nível da empresa que começa, a operar o fenómeno da integração corporativa.
O agregado social «empresa» é comandado por uma simbiose de quatro consciências, que nela se encontram e se defrontam. À primeira, que a todas subordina e a todas sobreleva, é «a consciência do dever para com a empresa».
E a alma do grupo. Sem ela não se concebe o funcionamento eficaz da empresa ou simplesmente o seu funcionamento. À consciência do dever para com n empresa integra a consciência do dever para com os superiores (a consciência da disciplina), a consciência de que todos e cada um se devem ao objectivo supremo de contribuir para o bom nome e prosperidade da casa, o bem comum do grupo. E a consciência corporativa na sua mais bela florescência.
Depois vem a «consciência individual», a dos interesses específicos de cada um por oposição aos dos outros.
Depois, a consciência colectiva dos trabalhadores, a sua solidariedade de interesses por oposição nos de empresário, a «consciência de classe». e, finalmente, a «consciência empresarial», consciência complexa, misto de social, económico e político. O empresário na economia moderna já não age como simples agente ou instrumento da função económica fundamenta. - o lucro -, que lhe pertence assegurar.
É na medida em que as quatro consciências se harmonizam no sacrifício das ires últimas à primeira que se consolida a consciência corporativa, que afinal não é mais do que a consciência do dever para com o grupo.
Toda a vida social da empresa se resume a um constante esforço para se atingir esse equilíbrio na prevalência da lealdade ao grupo sobre as outras lealdades.
É na medida em que a empresa satisfaz as aspirações materiais e espirituais dos que nela trabalham que a integração se reforça e a paz social se alcança. Estabelecida a paz na empresa, célula do corpo económico, ela propaga-se ao conjunto social, impondo-se como vontade indestrutível da comunidade nacional.
Na medida em que impedirmos ou dificultarmos a coordenação ao nível da empresa e sindicalizarmos desde a origem estaremos a fomentar a desintegrarão e não chegaremos nunca, impelidos pela força centrífuga da cisão sindical na base, a nenhuma integração corporativa perfeita nos vértice».
A medida das várias lealdades é o problema social fundamental. Essa medida não pode deixar de ser a utilidade social. A maior contribuição para o maior bem social é o limite de cada subordinação, de cada lealdade.
O equilíbrio melhor se estabelece, mais natural surge ao nível da empresa, porque ali é viva e clara a consciência do bem comum, formada no contacto diário com as realidades da vida comum.
A corporação surgiria assim como o enquadramento natural das empresas ou dos organismos primários que as tivessem antes enquadrado.
E esta a forma de integração que a natureza inspira. Como tudo o que se forma espontaneamente, é simples e pode ser eficaz.
Estamos bem longe do liberalismo individualista e perdeu muito do seu conteúdo a luta de classes. A empresa moderna evolucionou no sentido do social com a transformação da mentalidade do empresário. O chefe da empresa do nosso tempo tem outra visão dos problemas e outra compreensão da função empresarial.
A empresa moderna, a grande empresa, apoia a gestão administrativa na constante observação 'e análise do fenómeno económico e social e subordina todos os factores ao conceito que forma do bem comum, que é um conceito complexo que abarca a prosperidade nacional, a prosperidade da empresa, n mais útil distribuição dos rendimentos entre o capital e o trabalho, entre o merendo dos capitais e o mercado dos consumos, em vista à expansão da produção, u elevação do nível de vida, à rentabilidade dos capitais e ao pleno emprego, tetralogia que o chefe da empresa moderna tem sempre presente em todos os seus actos, porque do conveniente equilíbrio dos quatro objectivo» resulta a segurança da empresa, que se desdobra na permanência da sua prosperidade e na continuidade da paz social.
Por isso o chefe da empresa segue com atenção a política, nacional e mesmo internacional, a política económica e a política social na sua formação e na sua execução.
A consciência empresarial expande-se assim para além do plano específico da espécie económica, do produto. E uma consciência com duas faces: uma virada para o grupo-empresa e para a espécie, outra para o agrupamento empresarial no seu todo.
A consciência colectiva do grupo empresarial forma-se em torno das ideias, dos interesses gerais. Aproxima-se do bem comum geral.
O agrupamento empresarial como tal - interessa-se muito menos pelos casos particulares de âmbito restrito, que - melhor são encarados e resolvidos ao plano da empresa, do que pela política económica e social, ou pelas medidas tomadas pelos governos no prosseguimento da sua política, porque são estas que afectam ou podem afectar a generalidade das empresas. £ este o plano da sua solidariedade.
A consciência, empresarial é uma realidade própria da função, que se não pode ignorar e não convém entorpecer, mas antes valorizar como poderosa força social quo no processo de formação do bem comum geral se feita filtre ele e o bem comum da empresa.
Creio não atraiçoar a realidade se afirmar que é da empresa (cuja transformação profunda se não pode ignorar) que há-de nascer a nação orgânica do futuro.
Por isso é tão importante no mundo moderno a função empresarial.
Talvez tenha sido inconveniente a desmedida preponderância dada na doutrina corporativa ao económico em vista a encontrar solução para o social.
Suplantando a economia de mercados pela economia dirigida e o preço-função pelo preço-ético, procurou-se chegar ao social através do económico.
O progresso técnico, tornando possível a produção praticamente ilimitada de bens, pôs à disposição da humanidade, civilizada um manancial inesgotável de riqueza, em todo o caso mais do que ela é capaz de consumir.
Quero referir-me ao que se passa nos países mais avançados e pode ser seguido em qualquer parte em que a segurança política e o respeito da propriedade privada, o dinamismo empresarial, a capacidade de organização e a existência de quadros adequados tornem possível a aplicação sem reservas dos processos constantemente renovados que a técnica põe ao dispor da produção.
Na era electrónica em que estamos vivendo e a dois passos da era atómica, o problema social já se não situa no campo das satisfações materiais propriamente ditas. O bem-estar material das massas já não é a preocupação dominante do nosso tempo nos países mais avançados do Ocidente. Ele está relegado agora aos países subdesenvolvidos e simultaneamente sobrepovoados.

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A técnica se encarregará de ir resolvê-lo a breve prazo em toda a parte onde as cinco condições atrás apontadas se verificarem: segurança política, respeito pela propriedade privada, dinamismo empresarial, capacidade de organização e quadros adequados.
Hoje o problema já não é o da estabilidade do salário e do custo de vida. A estabilidade do salário real é um conceito ultrapassado, economicamente inconveniente, socialmente perigoso e politicamente inaceitável. O problema de hoje é o da estabilidade do custo de vida, sim, mas não da estabilidade do salário. Muito pelo contrário, hoje o que se pretende é o seu aumento real, constante e simultâneo com o aumento da produtividade.
São, pois, estes os dois problemas essenciais da ordem económica do nosso tempo. Todos têm a consciência deles a empresa, o operário e o Estado - e todos sabem também que a solução - está entregue à técnica v ao dinamismo empresarial e não constitui, por isso, um problema político activo «senão na medida em que tão Estado dependa ou possa depender o desenvolvimento da tecnologia e da sua aplicação, ou na medida em que a empresa ou o operariado atraiçoarem a sua missão, o que só por excepção pode ocorrer desde que funcionem os incentivos ou aumento da produtividade: o aumento de lucro para o empresário; o aumento do salário real para o trabalhador.
Creio, por isso, firmemente que o problema social deixou de estar indissoluvelmente soldado ao económico e que o problema que hoje se põe não é tanto o da miséria como o problema da insatisfação das massas.
Caminhamos num mundo em que o social vai estando crescentemente condicionado pelo técnico, em que o político e o espiritual terão de intervir mais e mais para corrigir as deformações mentais e morais a que o técnico conduz, para contrabalançar o seu crescente poder, a sua avassaladora tirania.
O problema social situa-se, assim, noutro campo, num campo mais vasto e transcendente: o da defesa da pessoa humana, da sua independência, da satisfação espiritual do homem; numa palavra, da sua felicidade.
Demos-lhe tudo o que poderia ambicionar os cómodos da vida, mas não lhe demos, com a riqueza, a felicidade. Nada do que possui é a sua obra, obra individual; nada criou, depende em tudo dos outros; sobra-lhe o tempo livre, vive na confusão publicitária; já não escolhe, escolhem por ele; já não pensa, pensam por ele; tudo está regulamentado, tem tudo ao seu dispor, num mundo de proibições; a lei persegue-o em qualquer sítio onde se mova, é guardado à vista como um criminoso.
A família descorou-se com a emancipação da mulher, primeiro, da criança, depois,- e, no fim, a degradação do chefe, sem poderes, sem autoridade.
A fiscalização intransigente mas humana dos vizinhos na terra ou no bairro, os companheiros na associação ou na igreja, da família em casa esvaiu-se no anonimato da cidade imensa e na dissolução das instituições intermédias, e o homem ficou só abandonado em faço do Estado absoluto, frio, inexorável na sua justiça abstracta, tardia, dura e preventiva.
O enfraquecimento dos grupos intermédios atirou o homem para a tribo irresponsável, em que se integrou para não viver isolado numa sociedade de indivíduos, sociedade ecléctica, corrompida, em que a noção do bem e do mal, do bom e do mau, do belo e do horrível, da normalidade e da aberrarão, já não são antíteses nem dilemas, nos valores homólogos, que não dignificam nem rebaixam.
O problema social está de pé, como um fantasma a quem a opulência não tenta.
O problema social está de pé, mas num campo bem diverso do económico.
E para este mundo que temos de legislar, para este mundo que é do nosso tempo, que será a nossa grande preocupação de amanhã.
Se a corporação ainda hoje tem muito a dizer entre nós no económico-social, pelo atraso em quo andamos, é, sobretudo, no social-político e no político propriamente dito que o futuro a espera. E como órgão político que a corporação atinge a máxima expressão da sua vontade colectiva.
Canalizando as forças políticas quo estão atrás das actividades e dos interesses, tornando-as orgânicas, a corporação evita que, abandonadas a si próprias, essas forças se dispersem.
As forças, políticas são poderosos factos sociais e têm a sua origem em duas fontes distintas: as consciências colectivas e; as consciências individuais.
As consciências colectivas podem existir em estado potencial ou organizadas. O sistema corporativo pretende articular na corporação as que derivam dos interesses. A vontade política das corporações é assim a vontade dos interesses.
As consciências individuais expressam estados de alma, sentimentos que são realidades políticas, ou ideias, mesmo ideologias, que também são realidades políticas.
O conjunto de umas e outras são a expressão política da Nação. O conjunto dos órgãos que as articulam à sua imagem política.
Não vejo, por isso que uma simples representação corporativa expresse a plenitude das forças políticas que comandam a vontade nacional.
Não vejo tão-pouco que a representação emanada do sufrágio directo ou popular seja capaz, só por si, de articular e dar expressão à vontade colectiva da comunidade nacional o simultaneamente servir a Nação com eficácia.
Não podemos manter intactas as instituições contemporâneas da revolução liberal. Século e meio de avanço no económico, no social e na técnica, os progressos da organização em tojos os sectores das actividades humanas, a propagação da cultura fazem ressaltar o atraso do político, portanto a incapacidade das instituições políticas para satisfazerem as exigências dos outros sectores sociais, indo ao encontro da nova mentalidade quo eles determinaram e condicionam.
Assim é que o problema da organização política se situa como o problema mais premente do nosso tempo. Daí a luta de ideologias, daí o temor do comunismo, daí o ódio ao capitalismo. E, no entanto, nem um nem outro fornecem todos os dados para a paz política, sem o qual não há tranquilidade nos espíritos. As certezas em que a vida assunta escapam às instituições políticas do nosso tempo e a humanidade sente-se desamparada e n homem insatisfeito.
A estruturação política exige, assim, novas soluções, que se apoiem na realidade pluriforme da sociedade, fugindo aos sistemas padronizados, às ideologias inspiradas de um racionalismo puro. A nova estruturação política requer que todas as realidades sociais sejam consideradas e avaliadas na sua relativa importância (extensão e permanência). Nenhuma pode ser ignorada, porque todas são parte deste aglomerado humano em que vivemos e que formamos. É preciso que as instituições políticas que criarmos se lhe adaptem perfeitamente.
Temos de articular a consciência colectiva das actividades. Precisamos que elas intervenham na vida e

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estruturação do Estado, lhe dêem forte e permanente esteio, sem perderem a sua independência, para que o Estado seja par elas e não elas para o Estado.
É na medida em que o Estado se não torna impotente perante as actividades ou as actividades se não burocratizem numa subordinação total ao Estado que se atinge o equilíbrio funcional no campo político. Nem anarquia, nem totalitarismo. Difícil compromisso entre dois poderes que se medem e que só poderão harmonizar-se nu medida em que se equilibrem.
Mas será a base corporativa do sufrágio menos particularista do que a base popular?
Não será mais acentuada a demagogia dos interesses do que a demagogia da rua?
Não expressará o sufrágio directo, na multiplicidade das consciências individuais formadas no conflito de um sem-número de interesses, de sentimentos, de ideias, com maior exactidão u vontade nacional em todos aqueles problemas simples, mas por vezes fundamentais de interesse geral, por oposição aos problemas específicos das corporações?
Não será a cada indivíduo, cada voto» a única possibilidade deixada ao homem de afirmar a sua vontade política como ela surge na consciência individual da luta. entre a lealdade ao grupo e a afirmação da independência da pessoa humana, entre a compreensão da disciplina e o temor da escravidão?
O que seria uma câmara única corporativa, uma câmara de especialistas, uma câmara sem políticos, uma câmara sem homens capazes de sentir e pensar sobre os problemas de conjunto no plano nacional, problemas que saem para além das actividades, dos interesses seccionais, que não são a sua soma, nem a sua fusão, mas podem ser decisivos para a vida nacional, sem, contudo, afectarem substancialmente nenhuma das actividades?
Não será o voto dos intelectualizados mais revolucionário do que o das massas?
Para fugirmos às flutuações do sufrágio universal não cairemos num sistema de sufrágio muito mais perigoso, politicamente mais dinâmico e por isso mesmo mais subversivo?
Não iremos transportar para o seio das corporações a mesma luta de ideologias, de partidos imperfeitos, de grupos rivais, de pessoas, que constitui a realidade da vida nacional?
Limitar-se-ão as corporações, no exercício dos seus direitos políticos, a pronunciar-se, a votar conforme os seus interesses funcionais?
Não serão os seus delegados tentados, muitas vezes, a ultrapassar esses interesses específicos, ou, quando esses interesses não estiverem em jogo, não se desviará o seu voto para o campo ideológico, ou será ele comandado pelas afinidades ou simpatias pessoais?
Não será preferível equilibrar os dois grandes grupos de forças - o dos interesses e o dos sentimentos, das ideias gerais, das aspirações no plano nacional -, articulando-os convenientemente?
Para que seja verdadeiramente funcional a representação política que incumbe à corporação, tem de ficar assegurada a sua independência. As corporações são as raízes do Estado, são órgãos vivos apenas subordinados u disciplina constitucional.
Por isso mesmo as funções deixadas às corporações têm de ser limitadas àquilo que elas possam verdadeiramente exercer com utilidade.
Por isso mesmo ao Estado não devem caber funções económicas para além do planeamento geral, com exclusão portanto da intervenção directa normal na vida económica (planeamento, por oposição a dirigismo), porque aquilo que nesse campo for vedado à corporação com mais forte razão deverá ficar vedado ao Estado.
Temos, por isso, de assentar se queremos um corporativismo coexistente com a economia de mercados ou se queremos um corporativismo dirigista, agrilhoado ao Estado através do cordão umbilical dos organismos de coordenação ou por qualquer outra forma.
Constitucionalmente pertence ao Estado «coordenar e regular superiormente a vida económica e social», por forma a estabelecer o equilíbrio dos diversos factores da produção, mas não se diz na Constituição em que medida nem por que forma se efectiva a coordenação. Por isso não será inconstitucional discuti-las.
Parece opinião assente de muitos tratadistas da doutrina corporativa que a coordenação é a grande função, a razão de ser, a essência mesma do corporativismo. s Ë que a competência coordenadora - diz o parecer da Câmara- está tão ligada à hierarquia corporativa que pode considerar-se implícita na ideia de corporação».
Mas como se efectiva a coordenação?
Os critérios divergem. Uns entendem que o Estado deve intervir sobre a concorrência tomada no seu significado mais amplo, outros entendem que a deve substituir (pelo menos em determinados aspectos, como o preço), outros, ainda, que a coordenação pode nada ter que ver com u concorrência, porque se trata da função arbitrai do Estado ou dos órgãos corporativos nas suas sucessivas camadas hierárquicas.
Seja como for, o que não só compreende é que. sendo a coordenação uma função constitucional do Estado, as corporações a possam exercer, a não ser com seu consentimento ou sob a sua autoridade suprema. Por outro lado, também se não compreende como a função coordenadora do Estado se possa harmonizar com o princípio da autonomia ou independência da corporação, pois a coordenação concebida pelo Estado será imposta por ele à corporação. Quando a corporação for pela concorrência e o Estado contra ela, como funcionará a coordenação?
Pela supressão da concorrência ao nível da corporação?
Será antes o Estado que deverá limitar-se u assegurar o eficaz funcionamento dos mercados em concorrência, defendendo-os contra desvirtuamentos?
O que não pode ser, o que não pode funcionar é a coexistência de duas autoridades coordenadoras independentes, como parece deduzir-se da Constituição, que atribui ao Estado a função coordenadora, e do Decreto-Lei n.º 29 110, que a concede às corporações.
Mesmo que fosse possível delimitarem-se os campos ficando reservada à corporação a coordenação interna e ao Estado a coordenação intercorporações, a corporação ficaria subordinaria ao Estado num vasto campo de coordenação, a coordenação exterior, que acabaria por afectar no seu funcionamento a própria função coordenadora interna da corporação, destruindo-lhe a independência.
No campo da coordenação económica estamos colocados em face de uma alternativa: ou saneamos n nossa economia, para nos fixarmos num sistema ciam de activa concorrência em mercados organizados, em que a coordenação é função natural, ou nos fixamos num sistema económico conduzido sob o signo da justa remuneração dos diversos factores da produção, em que a coordenação não pode deixar de ser autoritária.
Num caso a coordenação resulta suas reacções espontâneas de milhões de vontades, no outro das lucubrações de algumas inteligências.
Uma economia de meio termo não pode funcionar eficazmente, e, das outras duas, qual funcionará melhor?
Temos longa experiência da primeira; são muito limitados os ensinamentos que da segunda nos vêm.

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Aceita-se que o Estado absorva ou regule e fiscalize estreitamente aqueles sectores que no seu crescimento atinjam a idade do monopólio, sempre que se trate de actividades com as quais a generalidade do público tenha relações directas e constantes ou aqueles empreendimentos novos que, pela sua grandeza, excedam a capacidade da iniciativa privada.
O problema da coordenação tem tão grande importância, pela vastidão das suas repercussões económicas e sociais, que temo que os riscos que envolve e as reacções políticas que provoca possam atingir o paroxismo num sistema de coordenação autoritário.
A gestão autoritária da função coordenadora pode levar muito rapidamente a uma economia totalitária, se a prudência e a renúncia constante às solicitações que lhe façam não guiarem a autoridade gestora. Mas não estará nessa limitação consentida a condição da sua própria ineficácia?
Ao teorizar sobre a coordenação autoritária não haverá a tendência de ignorar o elemento humano da coordenação? E, no entanto, não há coordenação sem coordenador.
Não haverá a tendência para subavaliar as qualidades requeridas para o exercício desta função?
E o problema da liderança que se põe, com relação a um sector que pretende comandar toda a vida económico-social no seu mais amplo significado.
Lê-se no parecer da Câmara Corporativa a propósito dos organismos de coordenação:
Nascidos com um âmbito limitado de atribuições coordenadoras, a pressão das circunstâncias, pela imperiosa necessidade de fazer chegar a coordenação a todo o ciclo produtivo, arrastou-os quase imediatamente a ultrapassar os seus quadros legais de competência (p. 889).
Com efeito, a coordenação não conhece limites. Uma vez que a autoridade se substitui à natureza no comando do fenómeno económico, tem de a substituir totalmente, do princípio ao fim, porque não existe coordenação económica parcial.
A coordenação é o cisterna nervoso da economia, comanda todo o seu corpo na mais completa interdependência.
O que sucede num ponto reflecte-se por reacções sucessivas sobre todos os outros pontos.
A coordenação de um ciclo produtivo não fica por ali atinge todos os outros ciclos produtivos por uma série interminável de acções e reacções. Mas há mais: é que a coordenação perfeita não se pode realizar no plano nacional, porque a economia do nosso tempo não tem fronteiras. O mercado é o mundo. Quem pode em Portugal ter na mão o comando de um ciclo, um simples ciclo produtivo? A não ser que se sonhe com uma economia auto-suficiente.
Será, acaso, possível comandar eficazmente o ciclo do algodão, em vista ao justo equilíbrio dos factores da produção, quando uma parte da matéria-prima é produzida fora dos nossos territórios e o seu preço fixado no mercado internacional, quando uma parte da produção se escoa para fora do País, quando não está nas mãos de ninguém a vontade dos consumidores e, por consequência, a intensidade da procura?
E que diríamos das metalomecânicas e das indústrias eléctricas, cujas matérias-primas ou materiais primários nos vêm em grande parte do estrangeiro?
E a própria cortiça, cujo mercado de consumo está quase totalmente fora do País?
Por isso esta meia coordenação em que andamos envolvidos, e que acabará, afinal, por trazer-nos mais complicações e dificuldades do que vantagens, há-de elevar mais os custos do que reduzi-los; há-de fazer subir mais os preços do que baixá-los. Umas vezes há-de favorecer o empresário mais do que o consumidor e outras o consumidor mais do que o empresário.
No primeiro caso, o lucro sacrificará o nível de vida, o investimento sacrificará os consumos; no segundo caso, os consumos, descapitalizando a produção, acabarão por impedir a expansão produtora e, finalmente, retraí-la.
A coordenação é uma função autoritária, suma forma de comando» (p. 882 do parecer) aplicada à corporação, que é suma unidade económica totalitária>, na expressão do Decreto-Lei n.º 23 049.
Generalizá-la é arriscar-se a acabar naquilo que se pretende evitar.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Se bem interpreto as considerações de V. Ex.ª, o problema apresenta-se assim: com a coordenação não se atinge nenhum resultado útil; portanto, fiquemo-nos pelo equilíbrio automático.

O Orador: - Parece-me que V. Ex.ª levou às últimas consequências as minhas palavras. Eu estava apenas a focar alguns dos pontos fracos da coordenação autoritária; não estava a querer demonstrar as virtudes do laisser faire.
Sempre que se foge à concorrência activa trabalha-se contra o consumidor, no objectivo de proteger o lucro e o salário, e, afinal, retrai-se a produção e afecta-se o nível de vida e o emprego e provocam-se iníquas desigualdades.
Por isso tão grande é o clamor que por toda a parte se ouve a favor da reabilitação da concorrência, não só no plano nacional, mas também no plano mundial. As leis do crescimento económico fizeram do mundo o mercado. A integração opera-se no plano mundial simultânea e paralelamente com a integração no plano continental, no plano dos grandes espaços e no plano nacional. Aquelas subordinam esta. O mundo ri-se dos esforços que no plano nacional se fazem para lhe resistir.
A interdependência do grupo empresarial (que é o elemento dinâmico do crescimento) e dos outros grupos e forças que actuam no económico aconselha a maior prudência na compartimentação apriorística das actividades e na intervenção autoritária sobre o funcionamento do fenómeno económico, para não pormos em jogo o futuro do nosso próprio crescimento, ou cairmos nas mãos do Estado dominado pela plutocracia capitalista, como o via Karl Marx, ou do Estado dominado pelos elementos hostis à economia empresarial, como o vê Shumpeter.
O corporativismo encontrará a sua justificação económica na medida em que contribuir para acelerar o nosso crescimento económico ou a sua condenação na medida em que o retardar. Por isso é tão importante cuidar do seu sucesso.
O sentido corporativo é da ordem humana; não existe entre empresas ou associações na ordem abstracta ou impessoal. Não se foz uma arquitectura corporativa - a Na determinação das corporações não é o grau de uniformidade, a clareza das linhas de demarcação da função ou dos produtos (clareza de linhas que não existe na vida social, onde os contornos são sempre

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esbatidos) que fundamentalmente conta. O que conta é o grau de integração, de consciência corporativa existente no agregado, porque onde não há consciência corporativa não na agregado corporativo. Existe na realidade social, antes de se tornar instituição formal.
A corporação é uma realidade social, não uma realidade estritamente económica. A integração faz-se no plano social, não no plano económico restrito. Assumir que a integração corporativa é uma forma de enquadramento orgânico da economia, em vista ao seu comando e para a intervenção no social através do económico, tem conduzido a grandes erros de doutrina e de prática.
Uma coisa é organizar corporações em obediência ao preconceito do ciclo de produção, outra coisa é a existência da consciência corporativa generalizada aos seus componentes, sem a qual não existe verdadeira integração. Constituir a corporação antes da existência de consciência corporativa é o mesmo que querer produzir energia antes de criadas as suas fontes.
A consciência corporativa não se cria artificialmente nem se padroniza. Não se impõe à sociedade - é ela que a determina e impõe. Brota da natureza das coisas, surge dos próprios factos sociais.
Existem em Portugal três sectores perfeitamente integrados: a igreja, o exército e o comércio, que correspondem precisamente às nossas três forças políticas tradicionais. Os dois primeiros institucionalizados, fortemente hierarquizados.
A igreja, mais que autónoma, independente, e ao exército, com forte consciência corporativa, que lhe confere certa independência, não se toca, e muito bem, e ao comércio, mal institucionalizado, apesar de fortemente integrado, procura o parecer da Câmara Corporativa desmembrá-lo como corporação, dispersando-o pelos sectores organizados verticalmente, de fraca ou nenhuma consciência corporativa, sem que, portanto, qualquer grau de integração real neles se verifique.
A terceira grande forca da sociedade portuguesa desintegrada! Ignoram-se os factos sociais em plena era corporativa ou, pelo menos, na era do advento do corporativismo institucional entre nós! Não se pode ser nem menos realista nem mais incoerente!
Quando se propõe a desintegração corporativa do comércio é certamente porque se teima em subordinar a organização corporativa ao chamado «ciclo da produção», ignorando-se a (realidade social e a verdadeira função comercial, que por muitos é tida ainda, e por outros é tida agora, como um simples serviço de distribuição dos bens móveis, quando na realidade a função do comércio é bem mais transcendente e essencial: é a de constituir e fazer viver o mercado, que é um todo interdependente de artigos e produtos, que não pode ser compartimentado em sectores mais ou menos estanques, que não conhece, sequer, fronteiras, e ultrapassa, portanto, o plano nacional. E nessa função o comércio é o principal detentor da massa dos capitais flutuantes (mercadorias), cuja gerência lhe pertence.

O Sr. Cortês Pinto: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Cortês Pinto: - Mas V. Ex.ª é de opinião que desde que o comércio se integre dentro do ciclo económico da produção, fica desorganizado, quer dizer: que há mais afinidades para o comércio quando se ocupa de variados artigos do que quando está integrado dentro de um ciclo económico?

O Orador: - V. Ex.ª na sua pergunta deu a resposta. Há mais afinidades. Desmembrar o comércio é desintegrá-lo, é pervertê-lo.

O Sr. Cortês Pinto: - E uma opinião; porém, para mim, a pergunta implica a resposta contrária. Dizer que a resposta de V. Ex.ª esteja implícita na minha pergunta não é exacto, porque não está, antes pelo contrário.

O Orador: - O comércio está integrado secularmente numa determinada forma. Tem uma consciência colectiva própria. Tem uma função económica própria.
Constitui uma força na estrutura nacional.

O Sr. Cortês Pinto: - Está adaptado a um sistema que, do ponto de vista social, nada indica que seja o melhor. A corporação vem justamente modificar sistemas. E julgo que, se do ponto de vista de classe pode ser preferível a organização actual, não o é do ponto de vista social, em que julgo a organização pelo ciclo nitidamente superior.

O Orador: - O comércio representa uma força tradicional da sociedade portuguesa, que tem mantido a sua fisionomia própria através dos séculos. Tal como existe, na realidade, o comércio é um agrupamento poderosamente integrado, com carácter bem definido, com uma função económica fundamental a exercer, a que adiante novamente me referirei.

O Sr. Cortês Pinto: - São me parece que a razão de existir com uma determinada forma implique a sua superioridade sobre novos sistemas. A razão de ordem histórica não se pode opor a modificações que a vida social determine.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Parece-me que há um pequeno equívoco. Num caso trata-se de integração de comerciantes - ao falar-se de comércio quer-se dizer comerciantes. Noutro caso trata-se de integração de actividades económicas. Eu digo: o comerciante, como função, tem mais ligação à classe dos comerciantes do que à dos industriais ou agricultores.
Mas se, em vez de classe, se falar no objecto do comércio do comerciante, então dir-se-á que o comerciante de lanifícios tem muito mais ligação com o industrial de lanifícios do que com os outros comerciantes de outras formas de comércio.
Na lógica do pensamento desenvolvido por V. Ex.ª, tem V. Ex.ª razão; na lógica do pensamento que estava por detrás da observação do Sr. Dr. Cortês Pinto, este Sr. Deputado tem razão. Há mais solidariedade entre os comerciantes como classe do que entre comerciantes e industriais como classes. Há menos solidariedade entre os comerciantes em geral do que entre os comerciantes especializados e os industriais do produto sobre o qual o comerciante especializado trabalha. E neste sentido que se fala de ciclo económico, de corporação vertical.
Era só isto o que eu queria dizer. Tenho estado a acompanhar com o maior interesse e interior consolação os desenvolvimentos que V. Ex.ª tem estado a fazer, o que não quer dizer que concorde com eles.

O Orador: - O comércio, na minha opinião, tem uma consciência colectiva própria que se perde no momento em que for cindido, e com esse desaparecimento desaparece o espírito da função, e se desarticula a classe média, de que é forte esteio.
No desenvolvimento que vou dar à minha exposição VV. Ex.ªs verão melhor qual é o meu pensamento.
Talvez não valha a pena estar a fazer agora resumo antecipado.
As funções a que antes me referi são funções económicas fundamentais donde deriva infinidade de serviços e sem as quais não existe a economia de mercados,

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com todas os suas implicações na formação do preço, aia expansão e retracção da produção e dos consumos, na formação dos capitais e na sua subdivisão em fixos e flutuantes. E sem a economia de mercados dificilmente se pode conceber a existência da empresa privada, da iniciativa particular e da concorrência, requisitos essenciais de um sistema económico não totalitário, qual o sistema económico do Ocidente, em que temos de viver, quer queiramos quer não. Não vale n pena, por isso, construir para qualquer outro sistema económico. Seria utopia inconsequente e perigosa.
Da universalidade do comércio nem velem a pena falar (tão evidente ela é) se não vivêssemos numa época estranha de autocegueira, em que os que deveriam ver se obstinam em não querer abrir os olhos.
Não há riqueza produzida que não seja objecto de um ou mais actos de comércio. A atitude mental do comerciante, a sua arte, as regras da técnica comercial suo claras e uniformes na sua pluralidade. O seu objectivo é comum na variada gama da sua intensidade.
O comerciante é o defensor funcional do consumidor, o seu mais eficaz defensor, porque a prosperidade do comerciante depende da capacidade que demonstrar para atrair fregueses e estes conquistam-se, sobretudo, pela tentação dos preços mais baixos. E, assim, o comércio colabora constantemente na elevação do nível de vida real. Por isso o comércio é pela concorrência e, na medida em que o é, contraria a formação dos lucros excessivos e está no pólo oposto dos monopólios.
O comércio é um agrupamento poderosamente integrado, com uma forte consciência colectiva, é a suprema essência da concorrência, poliédrica, concorrência activa e incondicional em todas as facetas em que ela se opera: não só no preço, que é o essencial, mas também na qualidade, no trato com os fregueses, no arranjo das instalações, nas facilidades de pagamento, na variedade do sortido - que sei eu ainda?

O Sr. Cortês Pinto: - Compreenderia que houvesse modificações; agora considerar-se desvirtuada a função social do comércio é que não vejo como possa ser.

O Orador: - O comércio funcionando agrupado em sectores económicos separados em que a tendência para o preço fixo parece estrutural deixaria de constituir um verdadeiro mercado, perderia a iniciativa e o estímulo dos riscos, e isto deformaria a mentalidade do comerciante.
Mas continuo nas minhas considerações, porque nelas encontrará talvez V. Ex.ª resposta ao reparo apresentado.
Assim como o comércio tende para a concorrência ilimitada, a indústria tende para a concentração e o monopólio. Assim como o comércio tende para o preço mais baixo, a indústria tende para o preço mais remunerador (que não é o mais baixo e pode não ser o mais alto que em regime de concorrência se estabeleceria, mas sim aquele que render o maior produto).
São diferentes em cada uma das três funções (agricultura, comércio e indústria) os valores e a medida da integração.
Perdida a independência no seu enquadramento contranatura nas corporações de indústria ou da lavoura, subordinado o seu pensamento ao pensamento industrial e ao do lavrador, o comércio sofreria grave deformação na sua arte e na sua técnica.
Desvirtuada a sua função social, uma nova economia surgiria no horizonte, menos humana, menos funcional, a fugir dos mercados, a destacar-se do Ocidente, de que depende e donde, afinal, se não poderia emancipar. Por que preço lhe ficaria acorrentada?
Repetirei aqui o que algures disse sobre o alto grau de integração que se verifica no agrupamento comercial:
No comércio, patrões e empregados trabalham juntos ao mesmo balcão ou no mesmo estabelecimento, conhecem-se pessoalmente e estão frequentemente ligados por relações de parentesco. O pessoal tem larga permanência na empresa. Quando entra ao serviço é para ficar.
No comércio a segurança social realiza-se espontaneamente, sem esforço, como coisa indiscutível, segurança que a consciência colectiva tornou um imperativo das consciências individuais.
No comércio as hierarquias superiores formam-se em regra, por ascensão 'dais camadas inferiores. Ao patronato chega-se por via hierárquica. O comércio renova-se com o seu próprio sangue.
Assim é de facto a corporação do comércio; assim está constituído o vasto aglomerado humano que exerce entre nós esta função económica, esta função social.
Desmembrá-lo é desintegrá-lo, o que significa destruí-lo. No seu aniquilamento arrastaria consigo a economia de mercados, e com ela essa força insubstituível do progresso: a concorrência.
Destruído o clima económico próprio ao seu desenvolvimento e prosperidade, a livre empresa some-se na socialização e a iniciativa privada, sem estímulos e sem instrumento, deixa de ter razão de ser.
Desaparecido o comércio independente em activa concorrência, socializados ou comandados autoritariamente os capitais flutuantes, desmembra-se uma poderosa força política, uma das mais poderosas forças que integram a nação - a classe média -, que foi através da história e hoje mais do que nunca é poderoso baluarte da pessoa humana, classe média que, na medida em que se desligue do comércio, irá reforçar essa temível aristocracia nascente dos tecnocratas, que ameaça subverter o mundo.
Por tudo isto, não é de aceitar a doutrina e a proposta da Câmara Corporativa.
Ao institucionalizar-se o comércio não devemos também esquecer-nos do poder da tradição e do prestígio das instituições existentes. Quero referir-me ao vasto sistema das associações comerciais da comunidade luso-brasileira, criação portuguesa da primeira metade do século XIX, com a suo designação tipicamente portuguesa, que distingue o tramo luso-brasileiro dentro do sistema mundial dos câmaras de comércio em que se integra. Sob essa designação genérica se aglutinou o comércio em Portugal, na África e Ásia Portuguesa e no Brasil. Mais de duzentas dessas associações existem no mundo português, com os suas federações e a sua confederação brasileira, enquadrando mais de cem mil associados, representando mais de um milhão de pessoas directamente ligadas à função empresarial, pelo capital ou na gestão dos negócios.
O desaparecimento do ramo português do sistema que oriámos e se tornou vasto e influente, sobretudo no Brasil, onde o elemento português nele prepondera, quebranta um dos mais poderosos elos de integração política no plano nacional e no plano da comunidade - realidade que também conta.
Ao alvorecer do corporativismo português como doutrina política aplicada pensava-se no corporativismo de associação. Mas também ao despontarem os primeiros organismos o Estado, ou, melhor, o Governo, quis imiscuir-se na vida e orientação das actividades organizadas corporativamente, precisamente por ver neles um instrumento da sua política ou por ter pressentido que lhes concedia um monopólio colectivo.

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12 DE JULHO DE 1956 1289

As perturbações que esta orientação tem trazido, os problemas que tem suscitado, os apuros em que tem colocado constantemente o Governo, o artificialismo que imprimiu à economia portuguesa, a perda de elasticidade a que a conduziu no seu inevitável ajustamento de constante mutação dos factos económicos, parecem reconstituir prova de experiência suficientemente ampla para se poder por ela aquilatar das transformações que se impõem.
O pior foi que o vício criou raízes e se agravou, em vez de se atenuar com o tempo, numa ânsia por parte de Estado de satisfazer o pedido generalizado de segurança nos negócios, de estabilização do custo de vida, procurando assim servir a empresa e o consumidor, e, por reflexo, alcançar a estabilidade do salário e a constância do emprego, ao mesmo tempo que se fortalecia e consolidava o poder do Estado, do Governo a melhor dizer, de quem afinal tudo e todos dependeriam.
Tal como o sindicato operário nasceu no período áureo do liberalismo individualista para lutar contra a omnipotência do empresário perante a massa dispersa dos trabalhadores, assim o corporativismo expressa nu mundo moderno uma forma de estruturação da nação mais orgânica do que o parlamentariam), capaz de contrariar com eficácia a marcha ascensional do Estado para a omnipotência e dar-lhe simultaneamente, esteio funcional e técnico-político que corresponda no político ao avanço da tecnologia (com todas as suas» implicações na ordem material e moral) e ao progresso das instituições sociais e económicas, realizando assim a suprema aspiração da humanidade de hoje: «O Estado ao serviço da nação, e a nação organizada ao serviço do homem», porque é, afinal, da felicidade do homem que se trata, supremo objectivo da criação.
O espírito corporativo ou é uma realidade social que vive nas almas, e pode, portanto, tornar-se institucional sem dificuldade, ou não é uma realidade social, e as instituições que se criarem sem consciência própria não lograrão ter vida independente e estiolar-se-ão a breve trecho, sem chegarem a ter qualquer significado social, ou serão absorvidas pelo Estado, acrescendo a sua armadura e poder a entorpecer a vida da Nação com mais algumas repartições públicas.
No relatório e na proposta do Governo insiste-se em mais de um passo sobre a personalidade das corporações. Fala-se constantemente do Estado, por um lado, das corporações, por outro, e dos órgãos de ligação que devem estabelecer o contacto entre ambos.
Não se trata, portanto, de organizar um Estado corporativo. O que se pretendia é organizar corporativamente a Nação, a Rex Publica, para que o Estado seja dela e não ela do Estado, para que a organização, articulando a consciência complexa dos interesses, possa contrabalançar a poderosa consciência do Estado, para que o seu poder funcionalmente estruturado possa fazer frente ao poder dominador do Estado e chegar assim a um equilíbrio de poderes, que ti totalmente inexistente nos nossos dias e sem o qual o homem e a sociedade se encontram à mercê do Estado omnipotente.
A Nação organizada corporativamente discute com o Estado, não se lhe submete incondicionalmente.
É precisamente para fazer frente, para. lutar contra o poder excessivo do Estado, que no seu natural crescimento, tende para o domínio total da sociedade, que o corporativismo se situa, opondo à apertada estruturação do Estado a estrutura corporativa da Nação.
É da independência das duas organizações, e não da sua fusão ou da subordinação de uma à outra, que se trata.
É este o problema que nos defronta: em que medida é o espírito corporativo uma realidade nacional? Existe ele em todos os sectores da actividade social? E que forma toma? Quais os sectores que deverão permanecer no Estado ou vir a ser absorvidos por ele e quais os que lhe deverão ficar estranhos, conservando a sua independência.
É evidente que num corporativismo totalitário (não confundir totalitário com integral) todas as actividades estariam organizadas e o seu conjunto constituiria si Estado, enquanto num corporativismo antitotalitário só fariam parte do Estado aquelas actividades que derivam dai. funções que lhe estão reservadas, e que são as que não pulem ser satisfeitos com eficácia pelo agregado social agindo autonomamente.
É este o tipo de corporativismo que parece informar a proposta do Governo e encontra a simpatia de muitos dos nossos homens públicos responsáveis a melhor reage às propensões da Nação Portuguesa nu sua espontânea integração e ao espirito que a informa, conforme se expressa em inúmeras manifestações da sua vontade. E, no final, é ela que couta, porque, contra a Nação e a sua vontade soberana nada há a fazer. Contra ela nenhum sistema se torna realidade. A integração faz-se num sentido e o sistema segue noutro. Nação e sistema volvem-se as costas. A realidade divorcia-se da utopia.
É isto o que tem de original o corporativismo: a possibilidade de coexistência harmónica, entre a Nação organizada e o Estado forte, por oposição à Nação inorgânica ante o Estado impotente, ou ao Estado totalitário perante a Nação aterrada.
E aqui põe-se o problema de como há-de estabelecer-se o contacto entre a corporação e o Estado.
Podem conceder-se quatro soluções: ou dois sistemas independentes, a Nação organizada corporativamente e o Estado em busca de equilíbrio funcional, possivelmente através de uma câmara intermédia em que os dois poderes se defrontem, ou corporações autónomas em contacto com o Estado unicamente através da Câmara Corporativa, ou corporações autónomas em contacto com o Estado através da Câmara Corporativa quanto a determinadas funções e através do Governo quanto a outras, ou, finalmente, o enquadramento total das corporações na estrutura do Estado, que por ele seriam comandadas.
Nesta última hipótese, o corporativismo seria apenas uma forma de estruturação do Estado, porque, perdida a personalidade, que a independência gera e preserva, a corporação teria deixado de ser.
Quando no relatório do Decreto-Lei n.º 29 110 se diz que «constitui fim superior a integração (no Estado) de todas as manifestações da vida da Nação - na sua máxima projecção mural e material», corre-se um grave perigo, se o propósito expresso for na sua aplicação levado às máximas consequências. Poderia chegar-se ao Estado totalitário por querer evitá-lo.
No decurso da minha exposição disse o suficiente, para se poder ajuizar da posição que assumo, frente a este problema.
Assim como o Governo e a Câmara divergem sobre princípio da autonomia e a sua medida, assim também divergem o Governo e a Câmara Corporativa quanto à forma dos organismos.
Enquanto a Câmara procura a uniformidade, e só tansige em desviar-se dos padrões quando não pode deixar de ser e só no mínimo indispensável, o Governo aceita a realidade e procura institucionalizá-la num corporativismo multiforme.
O Governo foge no critério mecânico de organização e evita provocar artificialmente a integração, em obediência a nana estruturação abstracta. Procura institucionalizar o que observa no mundo real.

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1290 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 164

Enquanto a Câmara toma posição pela multiplicidade das funções das corporações, o Governo é pela sua limitação, procurando até não acentuar a função coordenadora, que lhes não retira, como parece supor a Câmara Corporativa, mas que tão-pouco lhes não reconhece em toda a sua plenitude como função essencial.
No campo puramente económico, quero supor que o Governo aceita aquela medida de coordenação natural (espontânea) que resulta são funcionamento dos mercados em concorrência sempre que não ocorram desvios que considere contrários ou inconvenientes u política que prossegue. Neste caso excepcional reserva para o direito de intervenção.
Permito-me incitar o Governo a que no prosseguimento da sua política nunca se aparte do reconhecimento da integração portuguesa tal como ela se apresenta na sua formação espontânea, de maneira a não perverter os valores reais do nosso complexo social.
O princípio da presença do Estado, do seu universalismo funcional, como constante que é da doutrina política portuguesa, reaparece na proposta do Governo e no parecer da Câmara Corporativa, se bem que se afirme em grau diferente numa e noutro.
Este nosso princípio da presença do Estado tem sua originalidade no que se diferencia do socialismo e do Estado-polícia.
E essencialmente fiscalizador e moderadamente intervencionista.
Na equilibrada medida das duas funções está o segredo do seu sucesso.
Tudo tem limites na vida, mesmo o que é bom. Também a fiscalização tem limites, também a intervenção tem fronteiras, para além dos quais a iniciativa morre com a independência perdida, deixando o caminho aberto à irresponsabilidade.
Diz o ilustre relator da Câmara Corporativa que apor maior alcance que tenha o problema da base sobre a qual deve edificar-se a corporação, ... o interesse da questão posta em Portugal é, sobretudo, doutrinário neste momento». Assim o entendo também.
Estamos, portanto, colocados ante um problema de consciência e de política.
Por isto, não deverá estranhar-se que tão grande preponderaria tenha dado nas minhas considerações às questões doutrinárias e, por consequência, às implicações económicas, sociais e políticas dos princípios informadores e das formas propostas.
Desculpe-me a Câmara de na minha análise tanto me ter atardado, mas é bem mais importante neste momento fixar e esclarecer a nossa (posição doutrinária, definir, assentar princípios, do que discorrer sobre a articulação das corporações e a redacção dos textos ou febre a vida ou morte dos organismos de coordenação.
Colocados à frente de um movimento de princípios revolucionário que sairá vitorioso na medida em que traduzir as aspirações do nosso tempo ou será um estrondoso insucesso se não passar de palavras vãs e frases retumbantes, lugares-comuns sem qualquer conteúdo substancial, assumimos perante o País e perante a nossa consciência tremendas responsabilidades.
Por isso, Srs. Deputados, tão grande importância tem o espírito em que o nosso voto for dado, porque é ele que ilumina o significado da votação, indicando ao Governo o sentido que entendemos dever tomar a estruturação orgânica do País para se conformar com os imperativos do nosso tempo e as realidades nacionais. Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - O debate continua na sessão de amanhã.
Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 45 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

André Francisco Navarro.
Carlos Mantero Belard.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
João Luís Augusto das Neves.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Manuel Maria Múrias Júnior.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Bui de Andrade.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Venâncio Augusto Deslandes.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Adriano Duarte Silva.
Agnelo Ornelas do Rego.
Alberto Cruz.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
Antão Santos da Cunha.
António de Almeida Garrett.
António dos Santos Carreto.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
João Afonso Cid dos Santos.
João Alpoim Borges do Canto.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Maria Porto.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim de Moura Relvas.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José dos Santos Bessa.
José Soares da Fonseca.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Miguel Rodrigues Bastos.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
Ricardo Vaz Monteiro.
Urgel Abílio Horta.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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