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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 194
ANO DE 1957 29 DE MARÇO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VI LEGISLATURA
SESSÃO N.º 194, EM 28 DE MARÇO
Presidente: Ex.mº Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Ex.mos Srs.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues
Alberto Henriques de Araújo
SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 25 minutos.
Antas da ordem do dia. - Foi aprorado o Diário das Sessões n.º 192, com um pedido de esclarecimento por parte do Sr. Deputado Cid dos Santos.
Deu-se conta do expediente.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Magalhães e Couto, que apresentou um projecto de lei quanto às tributações a que estão sujeitos os grémios da lavoura; Manuel Vás, sobre problemas ligados à produção da batata no Nordeste do País; José Sarmento, que enviou um requerimento à Mesa, e Sócrates da Costa, sobre o caso de Goa.
Ordem do dia. - O Sr. Deputado Daniel Barbosa começou a efectivar o seu aviso prévio sobre o problema económico português.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 45 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 16 horas e l5 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Agnelo Orneias do Rego.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Alfredo Amélio Pereira da Conceição.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
Américo Cortês Pinto.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António de Almeida Garrett.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Gaiteiros Lopes.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
Artur Águedo de Oliveira.
Augusto Cancella de Abreu.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Eduardo Pereira Viana.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
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Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Afonso Cid dos Santos.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Dias de Araújo Correia.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís de Azeredo Pereira.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Monterroso Carneiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Trigueiros Sampaio.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancella de Abreu.
Ricardo Vaz Monteiro.
Rui de Andrade.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Ar antes.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.
O Sr. Presidente:-Estão presentes 82 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 25 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: -Está em reclamação o Diário das Sessões n.º 192.
O Sr. Cid dos Santos: - Sr. Presidente: pedi a palavra para dizer a V. Ex.ª que acabo de verificar que cinco dos seis documentos que tinha apensos ao meu discurso publicado neste número do Diário das Sessões não foram nele insertos. Agradecia a V. Ex.ª o favor de me explicar a razão de tal facto.
O Sr. Presidente: - Os anexos não foram publicados por se entender que, tratando-se de meras ordenações de assuntos destinados a maior eficiência dos trabalhos do ilustre Deputado e assim de elementos de índole particular e que não foram lidos à Assembleia, não podiam regimentalmente ser transcritos no Diário; nem aliás fazem falta à compreensão do discurso do Sr. Deputado e da sua actuação.
O Sr. Cid dos Santos: - Agradeço as explicações do V. Ex.ª
Pausa.
O Sr. Presidente:-Visto mais nenhum Sr. Deputado desejar fazer qualquer reclamação ao Diário, considero-o aprovado.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Do presidente do Grémio dos Industriais de Panificação do Porto a associar-se às palavras proferidas na Assembleia Nacional de homenagem ao governador civil cessante do distrito do Porto, Dr. Domingos Braga da Cruz.
Do presidente do Grémio do Comércio do concelho de Matosinhos a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Santos da Cunha sobre a organização corporativa.
Do presidente da assembleia geral da Associação dos Inquilinos Lisbonenses em apoio das suas representações à Câmara Corporativa sobre o problema do inquilinato.
O Sr. Presidente:-Tem a palavra, para anunciar um projecto de lei, o Sr. Deputado Magalhães e Couto.
O Sr. Magalhães e Couto: - Sr. Presidente: na sessão desta Assembleia realizada em 18 de Julho do ano findo anunciei a minha intenção de apresentar, nos termos regimentais, um projecto de lei que pusesse termo à incerta situação em que se encontravam os grémios da lavoura e outros organismos corporativos relativamente às tributações que lhes são exigidas em face de disposições menos claras do Código Administrativo.
Realizando hoje o meu intento, com permissão de V. Ex.ª passo a ler o projecto de lei a que na citada sessão de 18 de Julho me referi:
Projecto de lei
I) As dificuldades e embaraços causados aos grémios e outros organismos da lavoura por virtude das contribuições sobre eles lançadas tem sido motivo de constantes reclamações ao Governo por parte das direcções desses organismos, havendo por vezes esse assunto sido tratado em intervenções parlamentares com o relevo que a sua importância merece.
Os apelos da organização corporativa da lavoura não têm sido, porém, atendidos, agravando-se por isso, com o decorrer do tempo, as más condições da vida criadas a essa organização por uma tributação muito superior à exigida a qualquer actividade comercial ou industrial.
II) A publicação do Decreto n.º 26 806, de 18 de Julho de 1936, que sujeitou os organismos corporativos da lavoura ao pagamento de contribuição industrial, foi seguida, alguns anos depois, pela publicação do Código Administrativo (Decreto-Lei n.º 31 095, de 31 Dezembro de 1940), cujas disposições, algumas das quais por menos claras, levaram as câmaras municipais à exigência do pagamento, por parte dos grémios da lavoura e outros organismos corporativos, da licença de estabelecimento comercial ou industrial, como se tais organismos fossem «empresas» comerciais ou industriais compreendidas no artigo 710.º e seu § único do referido código.
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Tal encargo, somado à contribuição industrial paga ao Estado, tornando mais difícil ainda a situação já precária dos organismos corporativos da lavoura e considerado por parte destes menos justo, havia de levar as direcções desses organismos a recorrer ao Poder Judicial para se eximirem - pois doutro modo não poderiam fazê-lo- ao pagamento de impostos que na verdade só deveriam ser exigidos às empresas comerciais ou industriais, como no artigo 710.º do citado código se estipula, e não aos grémios da lavoura e outros organismos corporativos que de empresas comerciais ou industriais nenhum carácter possuem.
III) A falta de clareza de que enferma em algumas das suas disposições o nosso actual Código Administrativo havia de reflectir-se fatalmente nas próprias decisões judiciais. Assim, através de várias sentenças dos tribunais de 1.ª instancia e acórdãos dos tribunais superiores, pode notar-se orientação contraditória, que torna impossível prever qual o resultado que se obterá de qualquer pleito em tal matéria.
Todavia, as decisões desses tribunais favoráveis ao não pagamento, por parte dos grémios e outros organismos corporativos da lavoura, das licenças municipais de estabelecimento comercial ou industrial, constituem enorme maioria. Isto anima, por um lado, a recorrer a eles; mas, por outro, desanima, porque as despesas com o pleito, mesmo quando se obtenha ganho de causa, juntas aos incómodos naturais, são tanto ou mais gravosas do que o pagamento da licença. Summum jus, summa injuria.
Há que pôr cobro a isto. A incerteza do direito é uma forma chocante de injustiça.
As interpretações divergentes da lei são uma fonte de injustiça: levam a impor a uns aquilo de que outros se desoneram.
Para pôr termo a este estado de coisas há que fixar o sentido da lei. Isso pode fazê-lo a Assembleia Nacional, a quem compete (artigo 91.º, n.º 1.º, da Constituição) interpretar as leis.
É o intuito do projecto que tenho a honra de apresentar.
Artigo único. Os grémios da lavoura e outros organismos corporativos não são, para os efeitos do artigo 710.º do Código Administrativo, empresas comerciais ou industriais.
O Sr. Manuel Vaz: - Sr. Presidente: quando, na sessão de 12 do corrente, tomei a iniciativa de chamar a atenção do Governo para a situação aflitiva em que se encontravam os produtores de batata do Nordeste do País, tinha a certeza antecipada de que ele não deixaria de adoptar as providencias necessárias para atenuar a gravidade da crise em que a mesma região se debatia.
Sendo a produção da batata, por assim dizer, a única base em que assenta a economia regional, tornava-se indispensável providenciar com urgente decisão, no sentido de evitar, até onde isso fosse possível, a ruína da pequena lavoura da Terra Fria, constituída por gente laboriosa e humilde, que não dispõe de outros recursos para viver que não sejam os magros proventos que essa cultura lhes dá.
Certamente que nesta altura já não seria possível evitar os consideráveis prejuízos ocasionados pela necessidade e pelo pânico, mas ainda se estaria a tempo de impedir o total descalabro da economia privada desses pequenos agricultores, que se viam na contingência angustiosa de não encontrar compradores para as suas colheitas, em riscos de se perderem e na iminência de completa ruína.
A minha confiança não foi iludida. Mal teve conhecimento da situação e da sua gravidade, o nosso ilustre colega Prof. Vitória Pires, Subsecretário de Estado da Agricultura, não hesitou um momento e ordenou que os armazenistas de Lisboa e Porto procedessem à stockagem legal fixada para facilitar o descongestionamento das produções existentes e respectivas ofertas para o consumo.
Esta medida foi acompanhada por uma rigorosa fiscalização da existência, na percentagem legal, desses stocks e apenas encontrou algumas resistências por parte de escassos armazenistas, que comprometem o bom nome da classe a que pertencem e contra os quais se vão aplicar as sanções cominadas na lei.
O Sr. António Rodrigues: - V. Ex.ª dá-me licença?
Não sei se é do seu conhecimento que alguns armazenistas - segundo me informam- se recusam a comprar as quantidades de batata que um despacho do Sr. Subsecretário lhes impôs e que vão tornando público que esse despacho teve efeitos contraproducentes, visto que os retalhistas não lhos compram batata contando com a baixa de preço.
O Orador:-Tenho pleno conhecimento desse facto; a ele já aludi, insurgindo-me contra esses armazenistas, a quem vão ser aplicadas as sanções cominadas na lei.
O Sr. António Rodrigues: - Espero que assim seja.
O Sr. Calheiros Lopes: - Peço a V. Ex.ª que me informe de qual a quantidade distribuída para fins industriais e a quantidade para constituição dos stocks dos Srs. Armazenistas.
O Orador:-6 milhões de quilos são entregues à indústria.
O Sr. Calheiros Lopes: - Os números indicados por V. Ex.ª são realmente aqueles que chegaram no meu conhecimento.
Julga V. Ex.ª que assim fica resolvido o problema da colocação da produção em todo o Pais?
Para mim, penso que, retirando do mercado uma quantidade importante para fins industriais, e se os armazenistas receberem as quantidades dos seus stocks para justificarem até a sua denominação, o problema modificar-se-á inteiramente.
O Orador:-Parece-me que o problema fica resolvido, dentro do condicionalismo actual.
O Sr. Calheiros Lopes:- Estou satisfeito, desde que não venha prejudicar a entrada no mercado da batata produzida no Sul, imediatamente após a sua colheita, como habitualmente se tem praticado.
O Orador:-Mas isto, que era já alguma coisa, não era ainda tudo. Só por si não podia resolver as dificuldades momentâneas, mas angustiantes, da região. Reconhecendo-o, aquele ilustre membro do Governo ordenou ao presidente da Junta Nacional das Frutas, tão mal compreendida algumas vezes, que se deslocasse imediatamente a Chaves para estudar no local a situação e ver a maneira prática de a resolver, o que este fez na companhia do seu vice-presidente, partindo para ali no último domingo. As consequências desta viagem e desse estudo não se fizeram esperar. Constatou-se a existência de cerca de 2000 vagões, ou seja 20 milhões de quilos, de batata, por colocar.
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Nesta conformidade, reconheceu-se a urgência de retirar do consumo o total de 600 vagões, a fim de melhorar e promover o escoamento das existências em poder dos produtores, os quais serão entregues à indústria, com um encargo para a Administração de cerca de 4000 contos.
O Sr. Calheiros Lopes: - O mercado do Norte absorve maior quantidade de batata do que o do Sul.
O Orador:-Isso é verdade, mas os grandes centros consumidores são Lisboa e Porto e, deles, Lisboa é o maior, pois consome em média 30 vagões por dia.
O Sr. Calheiros Lopes: - O mercado do Porto e a região do Norte, mais densa em população do que a do Sul, absorvem a maior quantidade; simplesmente, a região do Norte tem uma produção maior do que a do Sul.
O Orador:-Foi rápida e enérgica esta medida, como a premência da situação aconselhava. Por tão decidida actuação tornou-se o Governo, e em particular o Sr. Subsecretário de Estado da Agricultura, credor dos reconhecimentos e gratidão dos humildes lavradores do Nordeste transmontano, que viram afastar-se a sombria ameaça que sobre, eles impendia.
É esse reconhecimento e essa gratidão que me apresso a testemunhar-lhe aqui, como Deputado eleito pela região, cujos interesses materiais e morais me cumpre defender.
O Governo da Nação, com esta atitude desembaraçada do Ministério da Economia, mostrou uma vez mais que sabe compreender e principalmente sentir as necessidades e preocupação dos povos cujos destinos lhe foram confiados e ao serviço dos quais desenvolve um esforço continuo pelo seu incessante e progressivo desenvolvimento e bem-estar. Este facto, reconhece-o, aplaude-o e agradece-o em plena confiança todo País.
E assim termino, Sr. Presidente, em nome das gentes da chamada Terra Fria do Nordeste transmontano, na expressão sincera do seu reconhecimento, com um muito agradecido «Bem haja» dirigido dum modo geral a todo o Governo e em particular a S. Ex.ª o Subsecretário de Estado da Agricultura.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. José Sarmento: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa o seguinte
Requerimento
«Desejando ocupar-me das deficiências das actuais instalações da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, assim como da reitoria da referida Universidade, requeiro, ao abrigo das disposições constitucionais, que pelos Ministérios competentes me sejam enviadas as seguintes informações:
1.º Indicação das construções já iniciadas na futura Cidade Universitária de Lisboa;
2.º Data provável em que cada uma das referidas construções ficará concluída;
3.º Razões que têm impedido o início ou que têm retardado a construção da reitoria;
4.º Estado em que se encontra o estudo do projecto ou anteprojecto da nova Faculdade de Ciências;
5.º Quando se espera concluir o referido projecto e qual a data provável do início da construção;
6.º Caso já esteja escolhido, qual o local e área reservada para a nova Faculdade;
7.º Todos os demais elementos que forem julgados convenientes para esclarecer tudo o que diz respeito à futura reitoria e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa».
O Sr. Sócrates da Costa: - Sr. Presidente: não desejava fatigar mais uma vez a benévola atenção da Câmara com a guerra injusta que a União Indiana move a Portugal.
Abstive-me, por isso, de voltar a protestar contra os repetidos actos de terrorismo, tais como os praticados ainda recentemente com o objectivo de destruir a rede de abastecimento de água a Goa, que há dias foi inaugurada.
Resisti, por igual motivo, ao natural impulso de prestar homenagem ao Governo pela amnistia concedida a alguns invasores do nosso território, os tais «satyagrahis», pois estou com os que pensam que são de boa política tais amnistias, ainda quando os beneficiados sejam relapsos e contumazes na prática dos crimes pelos quais foram justamente punidos.
Mas agora, que os jornais transcreveram algumas novas afirmações sobre Goa feitas pelo Primeiro-Ministro, Sr. Nehru, no Parlamento da União Indiana, sou impelido, num reflexo de defesa, a cansar VV. Ex.as - Sr. Presidente e Srs. Deputados - com algumas considerações.
Peço que me perdoem.
Segundo os jornais que dão a notícia da ocorrência, uma das frases teria sido esta: «É inevitável que o território de Goa venha para a nossa posse». E, a concluir, o autor dela, o Primeiro-Ministro, Sr. Nehru, teria dito também, textualmente, o seguinte: «A questão de Goa continua a inquietar-nos, não por causa da sua magnitude, mas sim porque Goa é essencialmente importante para nós».
Dizem também os jornais que a moção apresentada pelo Deputado Choudhry, um dos beneficiados pela referida amnistia, propondo a adopção de medidas práticas para aquilo a que ele chama eufemisticamente «libertação de Goa» e dos restantes territórios do subcontinente indiano, foi rejeitada na Câmara Alta do Parlamento indiano, por 168 votos contra 18.
Não é nada tranquilizador o resultado desta votação, como pode parecer à primeira vista, porque ele só serve para dar maior relevo a nova afirmação, tipicamente imperialista, do Sr. Nehru, de que a absorção de Goa pela União Indiana há-de fazer-se, independentemente e qualquer razão, direito ou doutrina, sem necessidade, segundo palavras suas, de fixar um horário para tal assunto, pois que no seu imperial e omnipotente entender é essencialmente importante para a União Indiana a submissão forçada daquele território à sua soberania.
Sr. Presidente: nenhum português esqueceu e jamais esquecerá a usurpação sangrenta de Dadrá e Nagar Aveli.
Sabem todos, sabe o Mundo e sabe o Sr. Nehru, que os Portugueses de Goa, dentro e fora do seu território, têm resistido às piores violências, tais como o bloqueio terrestre, congelamento das suas parcas economias, ataques à mão armada, incêndio e pilhagem de postos fronteiriços, com assassínio até de crianças, remessa de bombas pelo correio, expulsão de pessoas pacíficas, com a perda dos seus meios de trabalho, prisões, destruição de jornais defensores de Portugal e a todos os demais processos de aviltamento com que se pretendeu reduzir o seu moral e levá-los a renegar a Pátria.
Já outros disseram, e eu repito, que toda a nuvem tem a sua fímbria de prata.
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Essa negra nuvem de violências e crimes que, vindo das bandas da União Indiana, ainda paira sobre Goa, Damão e Diu tem também a sua fímbria de prata, que consiste no revigoramento da vitalidade das suas populações.
Na verdade, as perseguições da União Indiana têm sido um forte estímulo para a nossa economia, mediante o estreitamento das relações comerciais e marítimas com outros territórios de Portugal e ainda outros países, que virão substituir gradualmente aquela recente nação, que procura subjugar-nos.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Em 1949 exportaram-se cerca de 2 milhões de rupias de minério de ferro e manganês.
Estas exportações, de aumento em aumento, e numa ascensão vertical, atingiram, em 1956, cerca de 60 milhões de rupias.
Com o auxilio de Deus, com o nosso acrisolado amor pelo torrão pátrio e fortemente apoiada no regime de Salazar, Goa vai-se integrando nas grandes correntes do comércio internacional.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-O próprio porto e caminho de ferro de Mormugão, que as autoridades da União Indiana tentaram paralisar na noite de 31 de Dezembro de 1955, e que fora noutros tempos um cancro para o Tesouro central e para nós uma fonte de humilhações, tem de suportar agora, apesar de desligado das linhas da União Indiana, um tráfego quatro vezes maior que o anterior.
Em 1951 a exportação atingira 1300 t por metro quadrado de cais, ou seja saturação completa, que obriga a fazer os carregamentos no mar.
Paralelamente ao incremento da indústria mineira e consequente desenvolvimento do caminho de ferro e porto de Mormugão, estão em curso obras importantes, custeadas umas pelo orçamento da província e muitas outras pelo orçamento da metrópole, num ritmo e volume não conhecidos dantes em Goa e que demonstra não ser vã retórica a repetida afirmação de que «a Nação é a mesma em todas as partes do Mundo» e de que nas horas de perigo ou de desgraça as forças de todos são uma só força-que é Portugal.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Já estão em funcionamento, como se sabe, os aeroportos de Goa, Damão e Diu. Inaugurou-se há dias, como disse, a grande obra de abastecimento de água, essa que os pseudolibertadores de Goa tentaram inutilizar.
Estas obras, além dos enormes benefícios de ordem material que trazem a Goa, constituem boas escolas de treino e preparação da gente nelas ocupada, para uma economia autónoma que a riqueza do subsolo garante.
Milhares de pessoas aprendem novos métodos de trabalho nos escritórios, nas oficinas e nas obras da Luso-Dana, da Docenei e dos outros organismos e entidades que têm a seu cargo edificações e reparações que fervilham por todos os territórios que constituem o Estado Português da índia.
Isto vem para mostrar que a fímbria de prata da nuvem das atrocidades da União é o evidente despontar da economia autónoma de Goa, Damão e Diu e a própria preparação da sua população para a gozar digna e livremente, na fidelidade ao Estado Português.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Ora o Primeiro-Ministro, Sr. Nehru, conhece tudo isto. Sabe que o bloqueio falhou psicológica e economicamente e que Goa não é teatro de qualquer fenómeno colonial, mas uma província portuguesa como outra qualquer.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-De modo que, interpelado no Parlamento sobre «qualquer acção futura» em relação a Goa, perturba-se - quem semeia ventos colhe tempestades - e dá respostas que, embora ambíguas, mostram que o chamado «caso de Goa» foi um artifício para encobrir um pensamento que depois revelou em Bandung.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Como se sabe, a Conferência de Baudung teve por objectivo principal combater os países genericamente chamados ocidentais.
Entrevistado por Tibar Mende, o Sr. Nehru disse que a força asiática não os pode atacar, mas pode criar condições que tornem as coisas difíceis para qualquer deles.
Se, com a afirmação de que é inevitável a inclusão de Goa no seu território porque essa província portuguesa é essencialmente importante para a União Indiana, o seu Primeiro-Ministro pretendeu tornar pela intimidação «as coisas muito difíceis» para Portugal, então direi que tomaremos o aviso em devida conta e multiplicaremos as nossas forças para a defesa do direito e da justiça.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Mas se essa afirmação tem na base, segundo me parece, além da ameaça aos países ocidentais, a ideia de que o Governo da União é o representante do subcontinente indiano, com o direito de esmagar países que, por um defeito da vista, lhe pareçam borbulhas na face da Península Indostânica, então que, além dos países ocidentais, outros países da Península, designadamente Ceilão, vejam onde está o seu interesse, o seu direito e o seu dever.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:-Seja qual for o alcance das afirmações que venho comentando, uma coisa afigura-se-me certa: os Deputados da oposição não se cansarão de bombardear o Sr. Nehru com o chamado «caso de Goa», que ele inventou para outros fins, enquanto não encontrar uma saída para ele.
No seu discurso de 12 de Abril de 1954, sobre Goa e a União Indiana, o Sr. Presidente do Conselho, reconhecendo que seria difícil fazer chegar aos espíritos independentes da União uma palavra desapaixonada, dizia o seguinte:
Apesar de tudo, falarei, porque parece indispensável não deixar dissolver-se no azedume das paixões a essência de problemas sérios na vida e relações dos povos e porque, enfim, nunca se sabe onde pode ecoar uma voz, ainda que sob a impressão de clamar no deserto.
Pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, a voz do Sr. Presidente do Conselho teve eco na Índia do Sr. Nehru.
O Diário de Noticias de 7 do corrente transcreve passagens de uma carta aberta ao Sr. Nehru, escrita por um concidadão seu e publicada num jornal de Bombaim.
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O autor da carta, afirmando terem falhado redondamente todas as tentativas do Sr. Nehru quanto à absorção dos territórios portugueses da índia, sugere o seguinte, que muito me agrada dizer textualmente: «Sendo o Dr. Salazar considerado um chefe de governo ideal, porque é um homem franco, honesto, de clara compreensão e grande cultura, temente a Deus e praticando a caridade e a justiça cristãs, porque o não visita o nosso Primeiro-Ministro oficialmente e não tem com ele uma conversa franca, de coração nas mãos, baseado no principio de que dar é receber?» «Estou certo -acrescenta o autor da carta- de que a sua visita a Portugal produzirá resultados de valor».
Como se viu e é salientado no relatório do Sr. Governador-Geral do Estado da índia que precede as bases do orçamento para 1957, com as ameaças semelhantes às referidas e com outros actos de má vizinhança praticados pelo Governo do Sr. Nehru o Estado da índia só lucrou, porque se libertou de uma economia escusa-damente dependente para entrar numa economia acentuadamente autónoma.
Falhadas redondamente, como se viu, as tentativas de absorção de Goa, se o Sr. Nehru quiser evitar ataques de que é vítima no seu Parlamento e acreditar a sua apregoada mensagem da paz, terá de seguir a aludida opinião do seu compatriota.
Pode, assim, dizer-se que o chamado «caso de Goa» passa agora a ser o «caso do Sr. Nehru».
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Vai efectuar-se o aviso prévio do Sr. Deputado Daniel Barbosa sobre o problema económico português.
Tem a palavra o Sr. Deputado Daniel Barbosa.
O Sr. Daniel Barbosa: - Sr. Presidente: não desconheço, nem minimizo sequer, a delicadeza e a importância do assunto que resolvi tratar neste aviso prévio; delicadeza que, aliás, se avulta ao considerá-lo na contingência das interpretações que poderão surgir ou até das intenções que porventura lhe emprestem aqueles para quem o acto mais objectivo no terreno político tem fatalmente de ter atrás de si uma razão escondida, se não mesmo um fim inconfessado ou oculto.
Entendo, porém, que fugir a tratá-lo claramente pelo receio, ou pelo perigo, de tão lamentáveis confusões só pode contribuir para reforçar mais ainda certos hábitos de indiferente comodismo que se vão entre nós enraizando, mas que devemos corajosamente condenar; o reconhecimento aberto e franco das realidades precisa andar sempre à frente da política, buscando, com o à-vontade das claras situações a crítica e o apoio da gente que se governa: pôr problemas com honestidade e franqueza destituída de paixão só pode contribuir para facilitar a função dos governantes, e se há dúvidas que persistem, se há interpretações que injustamente se mantêm, se há críticas que indevidamente se amontoam, só há vantagem para o País e para todos que umas e outras se abordem, no fito de procurar assentar realmente no valor e na extensão dessas realidades, sem as quais se não pode governar.
Como norma imperiosa duma conduta que foi salvadora da Nação, lembrava o Sr. Presidente do Conselho -já lá vão quase trinta anos- que, tal como a vida social, a política e a administração pública se devem apoiar na verdade; e este princípio, que tanto o tem creditado ao respeito nacional, não pode deixar de ser um princípio aliciante para o bom entendimento entre o Governo e a Nação.
A formulação corajosa duma verdade na administração ou na política tem sempre atrás de si juventude e constitui, desde logo, um triunfo de largo alcance no campo das interpretações; nada melhor do que o receio de atestar a verdade para dar azo a que se espalhem mentiras e se criem os ambientes ideais para as críticas destrutivas que nascem das insinuações.
Quando se tem uma obra já realizada e se demonstrou ao País o mérito e o valor da política que a realizou, seria dar posição de domínio aos erros que dentro dela porventura se encontrem tentando esconder a verdade, que, reconhecida e apontada, os pode exactamente eliminar; depois, olhar à verdade para avaliar da situação em que se está, no fito de avaliar também do que ainda falta fazer, constitui ainda a melhor forma de preparar o futuro, não por força de actos do Governo, mas pela cooperação consciente de todos os valores nacionais.
Nós tendemos, porém, e quantas vezes, não digo a esconder a verdade, mas a adoçá-la ou a omitir-lhe, pelo menos, certas durezas mais vivas ou a crueza das cores, em prejuízo do «valor político» que ela às vezes também teria na simplicidade austera da sua real formulação; devemos fugir a isso, repudiando a influência daqueles para quem o cansaço, ou o comodismo das situações mais calmas, não se quadram com o reconhecer das realidades que implica luta, trabalhos e acção.
Não podemos esquecer até que no reconhecimento, na formulação da verdade, está frequentemente a melhor explicação para as grandes dificuldades com que o político depara ao querer estabelecer soluções que aos leigos parecem simples, mas que as circunstâncias do momento, ou as dificuldades do processo, obrigam a ser mais lentas do que à nossa natural ansiedade poderia parecer conveniente.
De resto, nunca há vantagem em querer atenuar certas verdades que, por sentidas e conhecidas por muitos, até convém referir francamente para as limitar ao valor que, na realidade, devem ter; valor que, aliás, nunca negaria o caminho que o País até agora percorreu. Depois, se há verdades que se notam, há verdades que se devem, e já o velho Sá de Miranda aconselhava, na sua experimentada filosofia: «Dizer em tudo as verdades a quem em tudo as deveis».
Pelo que respeita à importância do assunto deste aviso prévio, direi somente que ela se mede, ou, melhor, que ela se sente, dentro de muitos lares da gente de Portugal; para além, portanto, das preocupações dos governantes, dos economistas e dos políticos, para além, portanto, das responsabilidades daqueles a quem cabe a obrigação delicada de analisar e ponderar para resolver, há no País, pelas condições em que se situa a vida de muita gente, o ambiente preciso para manter o assunto em causa num lugar de primazia dentro das preocupações principais.
Tudo isso lhe confere, assim, não só o interesse político, mas foros de indiscutível merecimento para ser analisado e dissecado por nós, como representantes da Nação; e se nesta Câmara o pretexto da minha intervenção servir para que alguns dos seus melhores valores o abordem francamente, também apontando-lhe as soluções convenientes e sugerindo-lhe as medidas que julguem aconselháveis, pude contribuir - e só essa glória quero - para um desinteressado serviço aos superiores interesses nacionais.
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Sr. Presidente: a experiência tem mostrado que é, na realidade, difícil governar neste país, não só pelos seus problemas ou pelas suas naturais dificuldades, mas sobretudo por um facto que, ao contrário da lógica, deveria facilitar.
Embora dispondo de um território vasto, embora estendendo a sombra da sua bandeira às províncias mais longínquas, e cobrindo com ela as raças mais díspares, o certo é que a população do nosso continente, colocada ombro a ombro, escassamente ocuparia a modesta área molhada do actual porto de Leixões; e se dentro dessa população quisermos considerar, com o espírito mais aberto, aqueles que activamente vivem os problemas políticos e lhes ajudam a criar ambiente e a encontrar solução, não creio que se tornasse preciso um salão muito graúdo para os poder conter com relativo conforto.
Somos, neste sentido, muito poucos, embora avultem depois, e em grande número, aqueles que prontamente se encarregam da estranha actividade política de «espalhar» só porque ouviram dizer; e, por poucos que somos, todos afinal se conhecem nas suas qualidades e defeitos, nos seus atavismos e seus gostos, nas suas fraquezas e ambições.
Daí a tendência de tudo se discutir e analisar num campo estritamente pessoal, que tende a ver o governante, não na posição objectiva de quem pretende cumprir da melhor maneira o seu dever, mas sim na aceitação, por princípio, de que as suas ligações pessoais, de relações e de amizade, o subordinam de tal forma que o levam a subjectivar as suas mais importantes decisões.
Sendo assim, e por uma deformação latino-meridional que nos leva a preferir encontrar a falha do que aceitar o sucesso, é difícil ver procurar fazer a análise dum político na isenção da sua acção, visto notar-se francamente a tendência para querer principalmente ver nele o homem à sua semelhança e imagem, na Bíblia, da alegoria de Nabucodonosor.
Mas a inversa é, igualmente, verdadeira, visto que quando alguém procura trazer à bailha um problema de carácter político, ou com repercussões neste terreno, analisando-o friamente, sem outro objectivo que não seja formular a sua própria opinião, há quase sempre, também, um político ou um governante que se pretende visado, se na sua apresentação da tese ou no alinhar das conclusões, se julga vislumbrar um ataque disfarçado, ou mal contido, a actos da política nacional ou da nossa administração.
Devo por isso mesmo, Sr. Presidente, declarar desde já, e peremptoriamente, que o assunto que vou tratar não olha de qualquer forma a pessoas nem, muito menos, a políticos; olha unicamente à importância momentosa dentro daquela escala em que, afora raríssimas e valiosas excepções, a maior parte dos homens desaparecem ou se confundem.
Não me importarei, de resto, com o passado, se não para dele tirar qualquer lição que nos possa interessar para o futuro; e o presente não será, para mim, mais do que uma base, do que um ponto de referência, para balizar o caminho por onde se impõe seguir.
De resto. Sr. Presidente e Srs. Deputados, consideraria de grave deselegância servir-me da possibilidade honrosa de subir a esta tribuna só para me preocupar com pessoas que até, porventura, nem aqui se encontrassem para se poderem defender; poderei discordar duma atitude política, desta ou daquela orientação, mas os problemas da Nação são de tal forma dominantes que o melhor é sempre deixar os homens aos rigores do exame da sua própria consciência, na certeza daquela grande verdade que o nosso António Vieira afirmou num magnífico sermão do Advento: «Ninguém nos diz melhor o que somos do que os nossos próprios pecados».
Ao iniciar a exposição do assunto que consta deste meu aviso prévio, entendo dever começar por esclarecer , a Câmara do significado que para mim tem a forma como o intitulei, dado que a expressão «problema económico português» pode pretender-se demasiado vaga e, por consequência, incapaz de limitar o assunto, definindo-o.
A palavra «problema», de que hoje em dia tanto abuso se faz, é, afinal, uma expressão precisa, particularmente para aqueles que a empregam obedientes à sua formação matemática: refere, pura e simplesmente, a proposição duma questão cuja solução se procura; é problemático, portanto, tudo quanto espera ou aguarda uma resolução, e, assim, um simples indicativo chega, quase sempre, para precisar o campo da técnica, da ciência ou da política onde a proposição da questão se põe: problema de direito, problema de história, problema militar, problema social, problema económico.
Precisar, porém, qual a questão específica que se propõe através da simples palavra «problema» nem sempre - se não mesmo raramente - se apresenta dentro duma compreensão imediatamente possível: há milhentos problemas de direito, são inúmeros os da estratégica militar, não se comportam dentro dum número reduzido aqueles sobre os quais a ciência da economia se debruça; simplesmente podemos, desde logo, começar a estabelecer certas restrições, conforme quisermos encarar, não digo já a definição desta ciência no campo da teoria, mas o seu âmbito e os seus fins no campo de aplicações práticas: há, consequentemente, e por assim dizer, como que uma limitação que permite cobrir então com a generalidade do termo um campo já mais restrito de preocupações de análise.
De facto, se a economia, num certo âmbito dessas preocupações, busca a possibilidade de estabelecer as leis gerais e permanentes que regulam os fenómenos económicos -os quais, sendo, pelas suas consequências sociais, compreensível preocupação dos indivíduos, não podem deixar de ser elementos determinantes do governo dos povos-, ela tende, pela razão desse próprio aspecto, para um objectivo por natureza absoluto e abstracto que se integra dentro daquilo a que poderíamos chamar economia pura, racional ou geral; é, consequentemente, indiferente a todas e quaisquer causas que não estejam dentro desse objectivo de análise ou de investigação.
Prescinde, consequentemente também e para tanto, não só das condições do tempo e do lugar, mas, sobretudo, das reacções especificas do próprio homem -que é a primeira e mais expressiva preocupação dos governantes-, pelo que o transforma, permita-se-me a expressão, de ser psicofisiológico extremamente complexo, que é, numa hipótese abstracta e fria sem reacções e sem personalidade; seja num ser puramente imaginário, que nada tem de real ou de humano, tão esquematizado e tão artificial se considera. Não interessa, por isso mesmo, a quem governa.
Dentro de outro âmbito, porém, a economia tem por objectivo formular preceitos, elaborar reformas, fazer previsões, assentar critérios e definir princípios capazes de conduzir no particular ou no conjunto à solução dos diversos problemas económico-sociais que interessam ao indivíduo isolado ou à comunidade que a integra; já se confere, assim uma função relativa e concreta, que não poderia desligar-se então das contingências impostas pelas condições específicas do tempo e do lugar, que já não pode desconhecer igualmente as preocupações condutoras que a própria moral impõe e se obriga, sobretudo para permitir uma acção construtiva a reintegrar o «homem» em todos os ele-(...)
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(...)mentos que lhe conferem afinal a sua personalidade, a considerá-lo nas suas reacções subjectivas perante o embate constante dos sentimentos mais diversos e da influência que sobre ele exercem o meio, a política, as tradições e as paixões, a religião, as propagandas, etc.
É evidente que a estes dois aspectos do âmbito da economia correspondem preocupações diferentes, por definição diferenciada de campos de actuação, e o político e o governante - a não ser que seja um teórico, um sonhador ou um lírico - só pode encontrar no segundo o seu real campo de acção.
Tem de encarar, portanto, o homem, com todas as consequências das suas qualidades e defeitos e no verdadeiro sentido e realismo da sua personalidade humana, como centro principal do problema, seja na actividade da sua luta constante perante a natureza que o cerca, e a qual lhe presta um concurso valiosíssimo, mas limitado e penoso, seja nas reacções da sua personalidade perante o meio social que integra e cuja reacção resultante ele próprio ajudará a estabelecer. Uma população aparece-nos, desta forma e, em consequência, como base de interesse da economia aplicada, e o estado da técnica, a par da limitação dos recursos económicos disponíveis e das formas políticas que procuram a organização indispensável para o seu aproveitamento, determinará, por seu lado, as possibilidades de satisfação das necessidades que se oferecem a uma colectividade.
Deparamos então com certas proposições de questões de carácter universal, que se resumem nas três determinantes básicas duma organização económica no campo social: os bens a produzir e as suas quantidades, os meios e a técnica da sua produção e a sua distribuição.
Ao fim e ao cabo, a forma e os meios de satisfazer, na maioria dos casos, as necessidades do homem isolado e sempre as do homem agregado em grupos, familiares ou não; e o problema confunde-se ou sobrepõe-se, até, a qualquer outro que, de longe ou de perto, seja determinante dessa satisfação.
Sob este aspecto há, assim, um problema fundamental, ou central, de toda a sociedade económica, seja dum estado corporativo ou comunista, seja duma nação civilizada ou duma tribo africana, se não pretendermos que ele o possa ser também dum Robinson Crusoé.
A par, portanto, de problemas mais ou menos importantes de momento, ou específicos, para cada nação, este será o problema n.º l das nossas preocupações, e o qual, se se estende naturalmente no espaço, nunca deixou de dominar no tempo: é tão velho, de facto, como a própria humanidade, mas tem a presença e a frescura dos nossos próprios dias.
Já Confúcio e Mêncio proclamavam que a pobreza descontentava os povos e que uma situação económica satisfatória era condição necessária para a boa ordem social; por isso mesmo, a obtenção dos alimentos e a satisfação capaz de outras necessidades económicas são de há muito consideradas como tarefa principal dum bom governo.
Creio nada mais ser necessário dizer acerca do sentido que ligo à expressão «problema económico português», que melhor se irá, aliás, definindo no decorrer da minha exposição; «aspectos, tendências e caminhos para a sua solução» não passam de simples atributos que o limitam no presente e o pretendem encaminhar para o futuro.
Os indivíduos, ou os agregados familiares, que compõem uma sociedade como a nossa avaliam, na maioria dos casos, do grau de possibilidade de satisfação das suas necessidades através do seu poder de compra, e não há dúvida, portanto, de que um dos dados fundamentais na política económica do governo será o de procurar elevar esse poder de compra, directa ou indirectamente, a um nível que garanta a indispensável cobertura das necessidades principais da população do país.
Há, como é evidente, uma série de problemas afins ou circundantes no campo da produção e do consumo, que não permitem considerar aquela determinante só por si; mas o valor relativo, ou, melhor, os meios através dos quais se torna na realidade possível satisfazer tão natural desejo, toda a série de questões condicionantes dos processos e das limitações que restringem as possibilidades efectivas, não chegam para lhe negar, se não o lugar de primazia, pelo menos o lugar de ponto de partida para uma análise como aquela que me propus fazer.
Começarei, portanto, por aqui.
Há vários processos, mais ou menos rigorosos, mais ou menos falíveis, que nos podem ajudar a determinar o valor provável para o poder de compra médio dum indivíduo, dum agregado populacional ou duma nação ; e, conforme a maior ou menor falibilidade do processo, assim a necessidade duma espécie de coeficiente de segurança se impõe em maior ou menor grau para as conclusões a tirar.
A necessidade da maior cautela na escolha do método é, portanto e por natureza, evidente, e tudo quanto seja uma previsão ou um cálculo à base de dados estatísticos que enfermem de inexactidões ou se apresentem incompletos pode não traduzir o mínimo da aproximação indispensável para deduzir com segurança ou analisar com critério.
De resto, como ainda há relativamente pouco tempo alguém lembrava, com particular autoridade, a gente portuguesa é refractária, por desconfiança insuperável - que, aliás, não é só nossa-, a fornecer as indicações indispensáveis para uma compilação estatística completa; por outro lado, não será ainda entre nós também que as relações extremamente simples entre salários nominais e índices do custo de vida podem servir para encontrar ordens de grandeza que traduzam uma satisfatória realidade.
A determinação dum orçamento familiar-tipo, com base no custo de alimentação calculada em função das calorias necessárias, satisfaz, porém, plenamente e permite, como se verá, uma espécie de controle dos valores estatísticos de que porventura possamos dispor, auxiliando inclusivamente a sua interpretação; desta maneira disporemos duma espécie de padrão, se não mensurativo, pelo menos interpretativo.
Trata-se, de resto, de um processo hoje em dia corrente e que particularmente mereceu até, como método geral e na sua aplicação às coisas portuguesas, o maior apoio na Revue d'Histoire Economique et Sociale, de Paris, tendo levado à referência das suas conclusões na Economie Alimentaire du Globo, de Cépède e Lengellé.
Como observou, aliás, Jean Granié, na crítica do processo foge-se através dele ao simplismo perigoso daquelas relações que atrás referi, antes se podendo procurar até a constituição desse orçamento familiar-tipo, concebido em função das calorias necessárias e variando segundo os hábitos de cada país e as necessidades alimentares da sua gente.
O primeiro passo para o estudo do problema económico português será, portanto, o da determinação das possibilidades da sua alimentação, cuja importância na política económica não é preciso encarecer; de facto, se um dos principais objectivos da política económica, no momento actual, é o da estabilidade ou baixa de preços para o consumidor e o da estabilidade ou alta de rendimentos para os produtores agrícolas e não agrícolas, não se pode o Estado desligar da preocupação (...)
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(...) de determinar o nível, assentando nos meios em que um satisfatório equilíbrio se deve verificar. E, depois, porque a alimentação está na base da primeira preocupação material do homem, a importância no campo social da sua possibilidade é por natureza evidente.
Que o assunto se estude no agrupamento familiar é evidentemente, compreensível também, dado que nas sociedades do tipo da nossa a casa, no sentido de meio de família, é, essencialmente, um centro de produção de possibilidades, pelo que respeita ao facto de que o trabalho agrupado sob a égide do seu chefe tem de prover às necessidades vitais dos indivíduos que o compõem; e, se é certo que em diversos agrupamentos rurais a casa, no sentido ainda do grupo familiar, é a última etapa da produção alimentar pelo que toca às possibilidades diversas da caça, da pesca ou da agricultura, certo é também que na maior parte dos centros operários, do funcionalismo público, dos servidores do Estado e dos empregados comerciais só a prestação de trabalho a outrem conta como meio de obter possibilidades para satisfação das necessidades familiares.
Pelo que toca à composição alimentar, não podemos pensar talvez ainda entre nós numa política dietética capaz de considerar devidamente a raça, o trabalho, a idade e o clima, visto o problema se apresentar dominante, por enquanto, no aspecto quantitativo; mas os trabalhos que respeitam à alimentação dos povos tomaram já um incremento tal que há normas gerais acreditadas sobre as quais se pode raciocinar com a segurança precisa no campo da generalidade e das médias, muito embora.
De facto, a partir dos trabalhos realizados pela secção de higiene da Sociedade das Nações, entre 1930 e 1940, dos da F. A. O. (pela sua secção de nutrição), dos das organizações técnicas da O. N. U., materializados particularmente na World Population Conference, de Roma, em 1954, dispomos de elementos valiosos que nos permitem analisar e comparar.
Sabemos qual o número de calorias que, em média, o indivíduo precisa de ver supridas em determinadas circunstâncias, conhecemos o valor calórico dos princípios alimentares imediatos -tais como o das proteínas dos hidratos de carbono e das gorduras -, não nos faltam elementos para as dosagens relativas desses mesmos princípios alimentares, a par das dos sais minerais e das das vitaminas indispensáveis, etc.; conhecido, por outro lado, o volume demográfico e a composição etária da população de determinada região ou de determinado país, sabendo-se qual o valor provável do seu produto nacional bruto, dos proventos correntes e do custo da alimentação e das outras necessidades caseiras, podemos ter uma ideia aproximada das necessidades orçamentais familiares e, consequentemente, do poder de compra médio dessa população.
Dizer-se que um determinado país dispõe duma determinada média de consumos não quer, evidentemente, dizer que essa média corresponda exactamente aos quantitativos deveras consumidos pelos seus habitantes em geral; de facto, a desigualdade de proventos, perante as variadas necessidades de cada agregado familiar, traduz-se por uma variação - as vezes muito sensível - nas possibilidades de nada um com vista a suprir as suas necessidades alimentares mais instantes.
Em Portugal, então, este aspecto particular do problema apresenta-se sob uma forma deveras delicada; por isso mesmo o processo de determinação do custo de vida entre nós - por determinação do poder de compra da maioria da gente portuguesa - que vamos adoptar procura exactamente corrigir o erro que se cometeria, com certeza, partindo dos valores médios que a estatística aponta, com todas as suas deficiências, incorrecções e lapsos.
Deste modo se evitarão até naturais discordâncias que se podem observar entre as conclusões a que chegaram, e chegam, alguns estudiosos entre nós; na realidade, o preço das calorias alimentares consequentes de determinada ementa é o mesmo, em determinado local, seja a conta feita por quem for, como da mesma ordem de grandeza deverá ser o número de calorias atribuíveis a determinada função, sob determinadas circunstâncias, e o que o chefe de determinada família tem de procurar garantir para se sustentar a si e aos seus dentro de um mínimo de equilíbrio vital.
Acrescentaria, em defesa do método seguido, que qualquer processo de análise quantitativa, com base directa em médias estatísticas, pressupõe, não só um longo período de informação, mas, sobretudo, uma arrumação cuidadosa das contribuições procedentes da investigação nos mais diversos campos; e desde logo a primeira condição teria fatalmente de se apresentar muito pouco respeitada entre nós, dada a carência de elementos capazes de nos dizer quanto, em média, cada português consome de géneros alimentares, por exemplo.
A estatística é de facto, muito mais do que uma ciência uma resultante ou um somatório de métodos aplicáveis ao estudo numérico de conjuntos de factos numerosos ou de fenómenos de massa, constituídos por um certo número de unidades, de tal forma definidas que o agrupamento em causa se possa limitar nitidamente; para além dos fenómenos típicos ou puros, característicos das ciências exactas, estende muitas vezes, com satisfatório êxito, a sua acção aos fenómenos atípicos, constituídos por factos naturais e concretos, que sempre se acompanham, de modo mais ou menos sensível, das mais variadas circunstâncias, as quais quase sempre dificultam o necessário agrupamento sob um critério de homogeneidade absoluta. Tais os fenómenos de carácter demográfico, económico ou social, que interessam particularmente ao âmbito da economia aplicada e ao governo dos povos.
Erro grave seria, portanto, pretender-se que com a denominação da estatística se compreende o resultado simplista de qualquer enumeração; teríamos então que o estatístico, como observa Schott, não seria mais do que um pobre louco que enumera sem distinção tudo quanto cai em suas mãos; e a estatística, por seu lado, um método absurdo que tratasse de reduzir a um montão de números toda a portentosa beleza do Universo.
Mas isto nunca foi estatística, podendo ser, quando muito, aquilo que, na falta de preparo, muitos julguem que a estatística é. A estatística é, sobretudo, um meio de informação relativo a estudos ou a processos, em que se consideram, como homogéneos certos casos, abstraindo-os, dos seus elementos diferenciais; só um ignorante, de facto, poderia pretender a extensão descuidada de formulações matemáticas, ou de interpretações quantitativas, no campo social aos fenómenos em que mais abundem e mais se diversifiquem aspectos qualitativos ou manifestações da vontade individual: só pela obediência à lei dos grandes números -que pressupõe uma recolha exaustiva de elementos - poderíamos, em certos casos, obter satisfatórios resultados.
Os consumos alimentares, por exemplo, constituem uma forma típica de enumeração, que se reduz, no que respeita ao cálculo, ao campo extremamente simples da aritmética; a dificuldade existe na quantidade e na selecção da recolha dos elementos necessários, e então poderemos dizer que, pelo que respeita ao problema que pretendo analisar, os dados de partida, embora de classificação qualitativa simples, impõem uma extensão tal de recolha e uma tal segurança de informação (...)
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(...) que estamos muito longe ainda de os ter satisfatórios entre nós. Ninguém melhor, aliás, do que aqueles que manejam a estatística, e que têm formação matemática suficiente para bem compreenderem os seus métodos de elaboração e de interpretação, para sentirem quando o terreno é firme ou quando o terreno é falso.
No caso que agora nos preocupa teríamos terreno falso por insuficiência informativa, pelo que procuraremos o firme, abandonando a determinação daquilo que, em média, o português consome, para buscar aquilo que, em face do poder de compra do escudo, ele poderia, ou poderá, na realidade, consumir.
Desta maneira, avaliando do caminho até agora percorrido em face de tudo quando se tem realizado com vista a melhorar as condições e o nível de vida em Portugal, poderemos «fazer o ponto», para saber onde chegámos e o que nos faltará realizar ainda para atingir a meta onde se impõe chegar.
Como base de determinação, consideremos um agregado familiar composto de pai, mãe e dois ou três filhos, ao qual atribuiremos a necessidade de cobertura alimentar de cerca de 12 800 calorias diárias; partimos, assim, duma média da ordem das 3000 calorias diárias por indivíduo, dado que várias hipóteses se podem considerar dentro dos quantitativos médios de 3200 calorias para as quatro pessoas e das 2560 calorias para as cinco. Observemos que 3500, ou mesmo 3800, calorias alimentares não serão exageradas para corresponderem ao trabalho dum operário normal; e mais ainda: que para o quantitativo das calorias atribuído a qualquer indivíduo há sempre que considerar um coeficiente de correcção para perdas de aproveitamento de alimentos que poderá computar-se num mínimo de 10 por cento.
A determinação do custo desta necessidade alimentar não se apresenta com dificuldades de maior; para o efeito, vamos considerar uma ementa pobre, se não nos quantitativos globais dos princípios alimentares imediatos, pelo menos na sua distribuição relativa e na variedade dos alimentos; e mais ainda: constituída por géneros dos mais baratos que se possam encontrar no mercado.
Sejam eles, por exemplo: pão (1500 g), bacalhau (250 g), o equivalente de gorduras em quantitativo de azeite (250 g), leite ('/, de litro), carne (250 g), batatas (1500 g), açúcar (200 g), feijão (300 g), arroz (1000 g), acrescentando-lhe ainda 11 de vinho, cujo reforço de calorias não consideraremos para o cálculo.
A ementa assim composta correspondem cerca de 12 800 calorias, provenientes de umas 430 g de proteínas e quase 300 g e 2230 g de gorduras e de hidrocarbonatos, respectivamente.
O preço de custo das 1000 calorias alimentares seria de cerca de l$10 em 1939, passando para 2$75 em 1955, se aceitarmos a relação de 102/255 correspondente aos índices dos preços de retalho relativos àqueles dois anos, respectivamente; e a primeira conclusão é a de que, pelo que respeita aos alimentos essenciais e mais pobres, houve um agravamento no seu custo de 1939 para 1955 da ordem dos 150 por cento.
Esta é uma realidade incontestável, que se situa, aliás, dentro das realidades mundiais, e que ajuda a compreender por que razão muito trabalho feito, muito esforço realizado, não teve a contrapartida total que poderia ter tido se as circunstâncias exteriores - que escapam à nossa acção - e as circunstâncias interiores - que, às vezes, nem sempre soubemos comandar - se não tivessem conjugado para este agravamento, decerto mais fácil de corrigir nas causas do que atenuar depois sensivelmente nos efeitos.
Vamos fugir, porém aos índices de preços que as nossas estatísticas referem, pelo pouco rigor de que elas se poderão revestir. Consideraremos então os preços correntes desses alimentos na cidade de Lisboa em Outubro de 1956, seja no mercado propriamente dito, seja em cantina de organizações industriais: 2$45 e 2$30 seriam então na realidade, e agora, o custo daquelas 1000 calorias, respectivamente.
O cálculo seguido foi propositadamente efectuado à base duma dieta pobre, como já se disse, inferior em qualidade e em variedade àquela que a dietética actual torna aconselhável. As médias, conforme se considerem quatro ou cinco pessoas, oscilam entre 107 g e 86 g para as proteínas, 75 g e 60 g para as gorduras, 555 g a 445 g para os hidratos de carbono: entre valores altos e baixos em relação às médias consideradas normais, portanto. Quer isto dizer que a deficiência alimentar da dieta considerada se vai, como é natural, manifestando conforme o número de pessoas do agregado familiar vai aumentando, as crianças vão crescendo ou predominam os adultos e os adolescentes. Cada caso especial justificaria, portanto, uma correcção, mas a média deve situar-se entre os máximos e os mínimos que se consideraram, até porque outras correcções haveria que fazer para suprir defeitos. De facto, pelo que toca às proteínas, por exemplo, a sua riqueza aparente estaria desde logo comprometida na ementa em causa pela deficiente proporção das proteínas animais: menos de 30 por cento; e, por outro lado, e no fito de se obter a ementa mais barata, considerou-se a grande massa de gorduras na equivalência de azeite, para fugir a considerar os ovos, a manteiga ou o queijo, como, aliás, não se considerou, também, nem o peixe fresco, nem as frutas, nem o café, nem o chá. E para a própria carne se partia dum custo de 20$ o quilograma, preço que não se pode considerar como um exagero condenável.
É certo que se desprezou o reforço de calorias correspondentes no vinho admitido para a refeição, mas a razão está em que, segundo tenho ouvido dizer, o facto não tem significado como valor nutrícial, dado que as substâncias nutritivas que nele se contêm além do álcool - um pouco de açúcar e de outros hidratos de carbono- totalizam, na nação considerada, um quantitativo demasiado pequeno para representar um valor efectivo; o vinho tem, neste caso, de ser encarado muito mais como um estimulante do que como um elemento de valor energético capaz de constituir para o organismo humano um combustível -passe o termo - de qualidade acima da medíocre. De resto, todos nós conhecemos, em certas regiões do País, os malefícios causados pelo facto de se ir buscar ao vinho e a outras bebidas alcoólicas, não esse estimulante apetecível, mas o complemento energético da deficiente composição em quantidade e em qualidade das dietas alimentares mais correntes; a saúde paga muitas vezes bem caro essa euforia momentânea, que desgasta os organismos, em prejuízo certo da vida e da descendência.
A ligeira quantia, da ordem dos l$50 diários, que se considerou para «diversos», neste orçamento, nem de longe pretende satisfazer às realidades das necessidades alimentares mínimas do agregado familiar em causa; computando-se, de facto, para uma ordem dos 5 por cento dos custos totais determinados, confunde-se numa margem de erro francamente desprezível, que não chegaria, decerto, para se considerarem cobertos os custos do preparo da comida, dos temperos e de qualquer sobremesa, por modesta que fosse; nem tão-pouco para atender à redução entre as quantidades que se compram e as que efectivamente se consomem, e a qual chega a atingir valores de 20 por cento em certos casos.
Com esta dieta, de certo modo pobre e desequilibrada, encontraríamos um mínimo de 14$ exclusivamente para o custo diário dos géneros que comporiam a ali-(...)
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(...)mentação deste agregado familiar de quatro a cinco pessoas em 1939; comparações à base dos respectivos índices de preços levar-nos-iam para 35$ em 1955. Se quiséssemos, porém, números «reais» do mercado, fora, portanto, dos erros eventuais que os índices possam cobrir, toparíamos com cerca de 31$ em Outubro de 1956 na cidade de Lisboa.
Uma dieta mais equilibrada, como Ferreira de Mira preconizava, por exemplo, poderia tocar ou exceder mesmo, no momento actual, a quantia de 40$ diários.
Um indivíduo considerado isoladamente poderia conseguir já, porém, o seu mínimo de géneros, para uma alimentação equilibrada, com menos de 10$ diários.
Em conclusão: se o orçamento familiar considerado tem por receitas unicamente proventos consequentes de trabalho realizado durante a semana, aquele agregado familiar teria necessidade dum provento médio diário da ordem dos 16$50 em 1939 para poder adquirir os géneros alimentares indispensáveis ao seu sustento semanal; em Outubro de 1956 essa importância apresenta-se da ordem dos 36$. Os números referidos permitem-nos algumas conclusões da maior importância; são elas:
Em 1939 eram necessários proventos mensais de cerca de 430$ (correspondentes a um provento diário de 16$50) para satisfazer unicamente o custo dos géneros que estavam na base da satisfação das necessidades alimentares mínimas do agregado familiar que se considerou; se olharmos, porém, aos preços praticados no mercado corrente de Lisboa aqui há uns quatro ou cinco meses atrás, precisaríamos encarar um montante de proventos da ordem de 950$ mensais para cobrir as despesas com a aquisição dos géneros alimentares indispensáveis ao agregado familiar considerado. Teríamos sempre, portanto, de dobrar, pelo menos, os proventos de 1939 para nos mantermos numa equivalência de situação.
Em qualquer circunstância, se quiséssemos ver supridas no fim do ano passado, e na cidade de Lisboa, aquelas necessidades alimentares com uma margem de 1/3 para as despesas restantes, não poderíamos considerar um provento mensal total inferior a uns l.500$.
Observe-se que nada haveria de extraordinário neste provento quanto às possibilidades que ele, na realidade, traria àquele agregado familiar, dado que, com um aluguer de casa da ordem duns hipotéticos 250$ mensais, ficar-lhe-iam uns escassos 10$ por dia para melhorar eventualmente a alimentação de todos, para educar os filhos e cuidar da saúde, para vestir e calçar, para as despesas com a cozinha, higiene e luz, para as deslocações ao lugar de trabalho, etc.
Como é evidente, um indivíduo isolado, ou um casal sem filhos, teria já dentro dos proventos considerados uma situação de relativas possibilidades, dado que para aquele qualquer coisa como 300$ cobririam, dentro da dieta em que se assentou, o correspondente a 4000 calorias diárias de géneros alimentares e para este chegariam cerca de 500$ para garantir a aquisição de géneros correspondentes a 6500 ou mesmo 7000 calorias por dia.
Em compensação, um agregado familiar com maior número de membros do que aqueles que se consideraram na «família-tipo» necessitaria ainda de proventos maiores.
Estas considerações não impedem a conclusão, em face dos proventos correntes da maior parte das famílias modestas que vivem do trabalho em Portugal (operários, trabalhadores rurais, funcionários e servidores do Estado, empregados, etc.), do baixo nível de vida que grande parte da nossa população ainda tem.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª está tratando do problema em relação a famílias com um certo número de pessoas que vivam em Lisboa, mas o problema põe-se em termos diferentes, conforme se trate de populações que têm contactos com o rural, vivam ou não vivam nas cidades, ou de populações que não os tenham.
O Orador:- -V. Ex.ª tem razão na sua observação, à qual vou responder, adiantando-me, aliás, a alegações que adiante farei. De facto, quando se fala em populações rurais, há que fazer certas distinções. Simplesmente, essas distinções correctivas aparecem nos dois sentidos, dado que se é certo que às vezes nos meios rurais se vive melhor do que na cidade de Lisboa, neles se encontram também famílias com um nível de vida a traduzir-se numa miséria como aqui se não encontra nos meios correntes do trabalho.
O Sr. Carlos Borges: - Mas também nos centros rurais há certas facilidades de vida que têm de ser consideradas; por exemplo, o caldo verde é feito com a hortaliça criada nas hortas.
O Orador: - Mas também há a considerar o problema da habitação, pois vive-se muitas vezes em tugúrios, numa promiscuidade doentia, onde se não encontra a menor sombra de higiene, de dignidade ou de conforto.
É preciso conhecer certos meios rurais do Norte do País para se avaliar das razões desta minha afirmação.
O Sr. Carlos Borges: - Em qualquer centro rústico existe essa miséria.
O Orador: - Quando estou a pôr este problema é exactamente para ver como havemos de melhorar esta situação.
A conclusão está, de resto, evidente nas afirmações recentes de alguns dos nossos mais responsáveis governantes, a quem só é de louvar o corajoso e franco reconhecimento do facto, dado o desejo em que se encontram de incrementar a acção até agora levada a cabo, no fito de rapidamente se poder atingir uma situação de maior bem-estar e de mais possibilidades para o povo português.
Tal conclusão não invalida, como se torna evidente, a melhoria das condições de vida conseguida em Portugal no decorrer dos últimos anos; provam-no as obras levadas a cabo que, directa ou indirectamente, contribuem para a valorização de certas regiões e melhoria de bem-estar dos diversos agregados populacionais, que, se se não traduzem, muitas vezes, em aumento de poder de compra, traduzem-se quase sempre, em facilidades de vida.
Como não nega o esforço que se tem procurado realizar no que respeita à adaptação dos salários e vencimentos ao aumento do custo de vida em Portugal, sem que aqui, porém, se tenha conseguido ainda obter aquele sucesso que está indiscutivelmente ligado a várias obras de interesse para a economia nacional. Provam-no os números que atrás referi, demonstrativos do entusiasmo e do empenho que precisamos pôr ainda no seguimento e sobretudo, na intensificação dos trabalhos de reconstrução e de recuperação económica do nosso país.
Observarei, para impedir interpretações demasiado optimistas, que:
1.º O cálculo levado a cabo para a determinação de valores indicativos médios parte de necessidades por defeito: na realidade, vários elementos de análise le-vam-me a aceitar que o mínimo ideal para que um agregado familiar de quatro pessoas se pudesse manter, num (...)
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(...) meio citadino como o de Lisboa ou do Porto, com higiene, dignidade e satisfação das necessidades alimentares, dentro duma dieta rigorosamente equilibrada, seria o de um provento mensal da ordem dos 3.000$, que poderíamos supor assim distribuídos: cerca de 58 por cento (qualquer coisa como 14$50 por pessoa e por dia) para alimentação, 8 por cento para vestuário e calcado (sejam cerca de 720$ por pessoa e por ano), 10 por cento para habitação (300$ de renda mensal), 4 por cento para combustíveis e electricidade (cerca de 4$ por dia), 2 por cento para higiene (2$ por dia para os quatro) e 18 por cento para despesas diversas, ou seja qualquer coisa como uns 4$50 por pessoa e por dia para todas as despesas restantes que são, na verdade, indispensáveis na vida social actual. Creio que os números referidos se apresentam modestos à análise consciente de quem a quiser ter.
Como é evidente, quanto menor for o número de pessoas que compõem o agregado familiar a cargo do chefe de família, melhor nível de vida nesta, se poderá verificar; mas a inversa é igualmente verdadeira.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª conta só com os, proventos que provêm do trabalho do chefe de família ou conta também com os proventos do trabalho da mulher e dos filhos?
O Orador: - Tive toda a cautela de não falar em salários nem em vencimentos, mas sim em proventos, do agregado familiar, e isto é, na soma dos proventos mensais de todo o agregado familiar, e isto para evitar eventuais confusões.
O Sr. Mário de Figueiredo: - A coisa posta da forma como V. Ex.ª a enunciou conduz naturalmente; o público, que a não verá em pormenor, à conclusão seguinte: que um chefe de família, em Lisboa e Porto não pode ganhar menos de 3.000$ por mês.
Só estou a querer ficar de posse da ideia exacta expressa por V. Ex.ª para ver a medida em que será possível ou não aderir a ela. Para isso preciso do esclarecimento, e ainda para que o País fique desde já sabendo que quando se diz 3.000$ para Lisboa e Porto não se quer necessariamente dizer que sejam formados exclusivamente à custa do ordenado do chefe de família.
O Orador: - Eu vou explicar a V. Ex.ª, dizendo o seguinte: tenho a impressão de que da maneira como expus o caso o problema se apresenta, claramente.
Admitamos, porém, que não tenha conseguido ser suficiente claro.
Eu digo que um agregado familiar, nas condições apontadas, necessita de ter como mínimo de proventos mensais 8.000$. Se é um agregado familiar em que só o chefe ganha e ele não ganhar 3.000$, não satisfaz a esse mínimo. Mas se ele ganhar, por exemplo, 2.500$ e a mulher 1.000$, é evidente que esse mínimo de proventos mensais está então até ultrapassado.
O Sr. Carlos Borges: - V. Ex.ª parto do princípio de que é exacto o número de
calorias que apontou.
O Orador: - Não tenho que discutir agora esse problema. E não o poderia discutir até por razões de honestidade profissional. Não é a mim que compete definir se devem ser 3000 calorias, ou mais, ou menos, que um homem normal precisa.
Limitei-me a partir de números que outros, com autoridade, fixaram, e como vejo que nos países que se interessam por estes casos - e entre eles nos contamos - as entidades ou pessoas responsáveis não objectaram contra esses números, ou valores, que hoje são públicos ... eu, como se costuma dizer, formei atrás e fui na bicha.
O Sr. Carlos Borges: - É por ter fontes de informação diferentes dos de V. Ex.ª que contradigo as suas afirmações.
Orador: - Talvez sejam informações vindas de um vegetariano.
O Sr. Moura Relvas: - Os acontecimentos da última guerra demonstraram que o número de calorias consignado nos tratados de fisiologia e higiene era exagerado em relação às necessidades. Chegou-se à conclusão de que o homem pode viver com muito menos calorias trabalhando, sujeito até a trabalhos forçados ...
O Orador: - Nos campos de concentração?
O Sr. Moura Relvas: - ... com saúde, num regime de menos calorias. Não posso ir além desta pequena informação, que transmito a V. Ex.ª como sendo exactíssima expressão da verdade.
O Orador: - Não me atreveria, de modo nenhum, a discutir o problema das necessidades calóricas no campo da medicina. Limitei-me a ter a necessária cautela de me documentar suficientemente para garantir a pureza dos valores de que me pude servir. Por isso mesmo li bastante sobre o assunto, e até onde a minha cultura geral me permitiu.
Tenho, porém, a impressão de que a experiência mais curiosa da guerra a tal respeito foi a de permitir concluir que era sobretudo na qualidade da composição, na dosagem proteica da alimentação, e não nos quantitativos calóricos, que novas directrizes se impunham.
De resto, há aqui dois problemas totalmente distintos: o dos números donde parto e as conclusões que deles tiro. As conclusões, terei muito prazer em as discutir com VV. Ex.as; quanto aos números, VV. Ex.as os discutirão, se quiserem, com as tabelas e com os livros onde os colhi, à sombra de nomes insuspeitos. Não nego que encontrasse disparidades de critérios, mas não substanciais para o estabelecimento das médias callóricas de que me servi.
O Sr. Moura Relvas: - Não admira, pois que até nos trabalhos clássicos há diversidade. Tem de se atender às condições climáticas do meio ambiente. E, assim, em Portugal a questão alimentar é muito diferente da da Noruega, onde o respectivo nacional, para se manter, tem de absorver grande quantidade de gorduras.
O Orador: - E não é só isso. É que mesmo do indivíduo para indivíduo, com a mesma estatura e um peso aproximado, as necessidades de calorias variam muito, conforme o clima e conforme o trabalho.
O Sr. Pereira da Conceição: - Não percebo nada de calorias, ainda menos do que V. Ex.ª diz perceber. Mas o que tenho é a sensação real da vida, e é por isso que me afiro pelo quo V. Ex.ª tem estado a dizer.
O Orador: - Mas, como eu estava a dizer, quanto a indivíduos da mesma estatura e de peso aproximado, as suas necessidades podem variar muito, quanto às calorias, é certo, mas limitei-me a partir de médias que (...)
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(...) são correntes para trabalhar dentro de ordens de grandeza que não podem deixar de conter erros. Por isso mesmo me parece arriscado estarmos a pretender, como é corrente dizer-se, aproximar uma medida ao milímetro quando a fita métrica de que dispomos facilita o erro de um centímetro.
O Sr. Sousa Rosal: - Tenho visto que está a ser discutido o caso sob o ponto de vista de calorias, proteínas e gorduras, mas penso que é indispensável considerar também os sais minerais e as vitaminas.
O Orador: - Adiante me referirei ao caso, aliás, em comprovação da minha tese.
O Sr. Moura Relvas: -E é preciso também não esquecer que o trabalhador necessita de maior número de calorias que o intelectual.
O Orador: - Evidentemente. Mas, continuando:
2.º É evidente, também, a possibilidade de melhoria de condições em muitos casos verificados - a atestar um inegável progresso feito - por via de organizações de carácter social, pelos abonos de família, pelas rendas modestas, pela contribuição de possibilidades de bens próprios, pelo auxílio aos proventos familiares acarretado pelo trabalho da mulher e dos menores; contudo, e na generalidade, continua a impor-se a conclusão de uma acção persistente e viva para melhoria da situação em que ainda se encontra uma grande parte da população portuguesa; conclusão que, aliás, se pode tirar tranquilamente em face das possibilidades que o nosso território oferece nas condições actuais da técnica e da ciência.
3.º Muito embora, e dum modo geral, se tenha verificado melhoria nas condições de vida em Portugal, como se impõe reconhecer, zonas há em que essa melhoria está longe de se ter verificado ainda ou o grau em que ela se verificou está muitas vezes, igualmente também, longe de garantir uma alimentação modesta, mas relativamente equilibrada, e uma vida em condições normais de higiene e de dignidade; mesmo admitindo que os minerais indispensáveis à saúde vêm de mistura com os alimentos que consideramos - o que nem sempre é exacto-, o certo é que as vitaminas de que carecemos são-nos principalmente fornecidas pelas frutas, pelos legumes frescos, etc., de que uma grande parte da nossa população vive carecida, particularmente nas cidades. E convirá acrescentar que, para equivalência de proventos, é muitas vezes mais grave a situação económica do chefe de família da classe média - tal como o empregado comercial, o funcionário público, o servidor do Estado-, que, por um lado, tem, pela posição social que ocupa, certos encargos que o operário dispensa e, por outro, só raramente possui determinadas facilidades e auxílios que as empresas ou o Estado garantem no trabalho industrial.
4.º A nossa situação, pelo que toca à análise que fizemos, não é por enquanto comparável à situação corrente nos países de igual grau de civilização do nosso, particularmente na maioria daqueles que fazem parte da O. E. C. E. Temo-nos aproximado dela à custa dum louvável esforço, mas impõe-se um grande trabalho ainda para a poder igualar. De facto, e em relação a eles, os valores médios totalizaram, entre 1953-1954, 2860 calorias por habitante, nos quais se contavam 97 g de gorduras e uma distribuição, em 85 g de proteínas, de 44 por cento de origem animal, contra 56 por cento de origem vegetal.
De resto, aqueles valores já em 1953-1954 foram igualados, ou até ultrapassados, pela Dinamarca, Irlanda, Noruega, Suécia, Suíça e Inglaterra, pelo que respeita a calorias; pela Dinamarca, França, Irlanda, Noruega e Suécia, pelo que respeita a proteínas, e pela Bélgica, Luxemburgo, Dinamarca, Alemanha Ocidental, Irlanda, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça e Inglaterra, pelo que respeita a gorduras.
Em face dos custos alimentares que referi, fácil é compreender a impossibilidade que se poderá encontrar quanto a conseguir mo nosso país uma média calórica que tocasse aquela que a O. E. C. E. nos aponta; mais ainda: não nos podemos espantar de ver esse mesmo organismo internacional situar-nos, em relação ao balanço alimentar -Food Balance Sheet- para 1951-1952, num escalão ainda baixo, dando-nos por companhia a Itália, a Turquia e a Grécia, numa situação duma média inferior a 2600 calorias por habitante e por dia.
Colocam-nos assim, nesse campo de comparação internacional, fora ainda de qualquer dos outros quatro grupos restantes: 2600 a 2800 calorias, como para a França, a Alemanha Ocidental e a Áustria; 2800 a 3000, como para a Inglaterra, a Holanda e a Bélgica; 3000 a 3200, como para a Suíça, a Noruega e a Suécia, ou 3200, e mesmo mais, como para a Dinamarca e para a Irlanda.
Os últimos números publicados em La Situation Mondiale de PAlimentation de PAgriculture, em 1956, pela F. A. O. dão um significado especial à carência da nossa dieta alimentar média; de facto, num conjunto de países definido pela Áustria, Bélgica, Luxemburgo, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha Ocidental, Grécia, Irlanda. Itália, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça, Inglaterra, Jugoslávia -com um mínimo de 2500 calorias para a Grécia e um máximo de 3565 para a Irlanda -, Portugal era apontado entre os países de mais baixo consumo calórico. Deve observar-se, porém, que as próprias estatísticas da O. E. G. E. para 1954 já não só levantam o número do nosso consumo para 2450, como reconhecem o avanço realizado a partir do pós-guerra, no intervalo de 1950 a 1954; contudo, não admitem que naquele último ano tenhamos atingido valores considerados ainda como médias satisfatórias.
Há mesmo estatísticas responsáveis que chegam a pretender que alguns outros países, cujo nível é notoriamente baixo, se apresentariam com um consumo ca-lórico a confrontar com o nosso.
É evidente a precipitação que pode haver nesta confusão, por deficiência ligada aos números relativos a Portugal ou por exagero daqueles que respeitam a alguns dos países considerados: há erros graves de colheita de dados, com certeza, e o simples bom senso nos leva a crer que deverá ser assim ; seja, porém, como for, a nossa posição metropolitana, muito embora podendo não satisfazer a uma realidade de valores exactos, define-se por ordens de grandeza que, por muitas correcções a introduzir, e sob todas as eventuais rectificações a fazer, denunciam ainda uma deficiência alimentar média para uma grande parte da nossa população, deficiência esta que, aliais, o poder de compra dos diferentes proventos que podemos admitir numa larga generalidade deixava imediatamente prever, tanto mais que igual processo seguido para avaliar das possibilidades de cobertura dos outros países leva imediatamente ao confronto de posições relativas que nos desfavorecem.
De resto, a companhia, neste caso, de certos países do Mundo, ou até o facto de podermos considerar uns tantos em posição inferior à nossa, não aquece nem arrefece para concluirmos de uma situação que só a nós respeita e donde podemos e devemos sair.
Não faltam, de resto, hoje em dia trabalhos excelentes e sérios sobre as situações de possibilidades e de (...)
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(...) meios de alimentação das diferentes regiões e dos diversos países do globo; entre muitos, e em atenção aos problemas que mais nos interessam neste campo, poderíamos referir o magnífico ensaio de interpretação em que consiste o tratado Economie Alimentaire du Globe, de Cépède et Lengellé, já citado, cujos gráficos comprovativos ilustram claramente a questão. Traduz-se assim mini campo científico e de preocupações internacionais a coberto de um universalismo de dados e de pesquisas a preocupação de definir e de ajudar a resolver um problema que tem sido obcecação do homem desde os tempos mais recuados.
Para isso três grandes factos se produziram no decorrer deste século: a definição da alimentação em termos físico-químicos mensuráveis; a determinação científica dos malefícios da má composição dietética da alimentação ou da sua insuficiência; a formulação da composição das ementas diárias capazes de garantir às crianças um desenvolvimento psicofisiológico harmónico e aos adultos uma vida activa, prolongada e sã.
Pode dizer-se, concluindo, que a maioria dos trabalhos realizados não omite a posição de Portugal continental dentro da situação que atrás foquei.
Ela vem sendo, de resto, continuamente destacada nos mapas e estudos comparativos de organismos como a O. E. O. E., que, aliás, vem atentamente destacando também a nossa recuperação; não é de crer que tal situação seja, porem, fortuita, dado que, ou os dados de partida têm a nossa responsabilidade oficial a acreditá-los, ou então já de há muito que deveriam ter merecido a correcção ou a reclamação de quem de direito; não se iria, decerto, contribuir para uma posição relativa internacional que não é ainda brilhante só por prazer ou por incúria.
A comparação dos proventos necessários com aqueles que normalmente podemos observar explica a razão, entre nós, da substituição de alimentos que, em menor volume, contêm uma menor riqueza de princípios alimentares úteis, por um maior volume de outros alimentos de qualidade e valor inferiores; cai-se, por carência de possibilidades, na monotonia alimentar e também, como tão bem observa Jacquemyns, na necessidade imperiosa de cobrir as necessidades alimentares com um mínimo de despesa, ou seja: num consumo acentuado de hidrates de carbono, particularmente de batata e de cereais; de facto, e segundo outra fonte informativa da O. E. C. E., excedíamos em 60 porcento, no período de 1950-1951, a parte que cabia a batatas e aos cereais no consumo de calorias. Com percentagens superiores a esta só a Itália, a Grécia e a Turquia.
Pretende-se que em 1953-1954 aquela percentagem que referi poderá ter eventualmente descido para uns 58 por cento, mas, de igual modo, só a Itália, a Turquia e a Grécia nos superavam ainda nesta má composição alimentar.
Situamo-nos, assim, entre países que juntam a uma insuficiência média de calorias uma má composição alimentar.
De facto, só no consumo de peixe - acima de nós só encontramos a Noruega e a Suécia - e de legumes conseguimos certa posição de relevo, muito embora caiamos logo no que toca ao das frutas frescas e dos citrinos.
Pelo que se refere às proteínas, poderia concluir-se dos números que nos concedem que desde 1947 a 1954 estamos entre os países membros da O. E. C. E. que se apresentaram com valores ainda baixos (60 g a 66 g por habitante e por dia), com um desequilíbrio demasiado sensível a favor das proteínas de origem vegetal; pretendia-se que nos igualávamos então, com cerca de 21 g em 1953, à Itália (22 g) no consumo de proteínas animais, deixando abaixo de nós neste ano somente a Grécia (20 g) e a Turquia (13 g).
Só a Itália, a Grécia e a Turquia, aliás, nos acompanharam, com valores mais baixos, na capitação média de gorduras com que nos apresentam em relação aos países restantes: cerca de 74 g por habitante e por dia.
Em qualquer circunstância - repito -, dos próprios dados da O. E. C. E. se conclui o avanço que, embora dentro de baixas capitações e lentamente, viemos fazendo há uns anos para cá, quer no consumo da carne, quer no consumo dos ovos, quer no consumo do leite, por exemplo, tudo a traduzir-se numa evolução de sentido positivo em relação às capitações de proteínas e de gorduras.
Podemos, portanto, terminar este capítulo reafirmando que se impõe reconhecer uma certa evolução de melhoria nos últimos anos; não deparamos, portanto, ao analisar a situação actual, com uma estagnação ou com uma permanência de índices que permitam deduzi-la; precisamos, porém, de acelerar e de intensificar corajosamente o esforço que há muito se vem fazendo, dado que o nível de vida actual do País ainda está muito longe de ser aquele que convém.
De facto, no conjunto populacional português pesa ainda de tal modo a situação que foquei que não há margem de erro logicamente aceitável capaz de desfazer esta certeza: que o nível de vida em Portugal se situa, por enquanto e apesar de todo aquele progresso, numa posição incompatível com um grau, embora modesto, de bem-estar para uma parte importante da sua população.
A realidade salta, de facto, aos nossos olhos quando se penetra, com espírito de observação objectivo, em certos meios industriais e rurais do País. Foi talvez nos primeiros que em muitos casos a melhoria de situação se afirmou no decorrer destes anos; mas, pelo que toca à vida do trabalhador rural, percorra-se o Minho, o Douro, Trás-os-Montes, as Beiras, por exemplo, para se sentir a cruciante pobreza de grande parte da população.
Pelo que respeita ao modesto empregado, ao funcionário público, ao servidor do Estado, que vivem nos meios citadinos unicamente a coberto dos seus magros vencimentos, creio que a vida familiar ainda se lhes oferece com dificuldades pesadas e atormentantes.
Está nas nossas mãos ajudar a resolvê-las, mas para tanto é necessário que o País e o Governo se conjuguem numa cooperante actuação: o Governo intensificando, em novos moldes, se preciso, a sua política económica, os seus trabalhos de fomento, a sua acção de coordenação ; o País reconhecendo, ao fazer o ponto da situação actual, não só todas as dificuldades que surgiram para a sua reconstituição económica, mas, sobretudo, que houve que partir do zero para conseguir uma estrutura económico-política que, tendo melhorado já situações passadas, nos permite caminhar com segurança para situações mais desafogadas.
Imperdoável seria que o Governo adormecesse ou titubeasse sobre a obra feita, como perdão não haveria o País se a esquecesse, quando, na consciência das suas possibilidades e dos seus direitos, pretende - como é natural - muito mais e melhor.
O Sr. Melo Machado: - Se V. Ex.ª me dá licença, e enquanto descansa um bocadinho, vou contar um episódio curioso.
Diz-se que, quando as nossas tropas estavam em França, durante a grande guerra, lhes era distribuída a alimentação do exército inglês. E os nossos soldados queixavam-se de que tinham fome, o que levou o marechal Gomes da Costa a reclamar. E, então, o homem que tratava desse assunto respondeu que já tinha mandado tantas calorias. A resposta foi: «Nós não precisamos de calorias: precisamos de comedorias».
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O Sr. Amaral Neto: -Se V. Ex.ª me dá licença, Sr. Deputado Daniel Barbosa, e pedindo desculpa de me intrometer em matéria em que sou leigo, e em relação com o episódio a que o Sr. Deputado Melo Machado acaba de referir-se, queria notar que há regimes alimentares ricos sobre pequenos volumes e regimes alimentares pobres sobre grandes volumes. Parece-me que este seria talvez o caso dos soldados portugueses em França, como aliás é o caso de quase todos os portugueses.
O Orador: - Exactamente; esse é o nosso mal: procurar-se, por falta de poder de compra e pelo hábito que, em parte, é dele consequente, a quantidade alimentar em sacrifício da qualidade.
Seja-me permitido agora abordar, embora rapidamente, um ponto que me parece digno de referência e que respeita à injusta classificação que se nos está usualmente atribuindo, em consequência dos factos que atrás foquei, e a qual leva a considerar o nosso país, num critério de pecaminosa generalização, como país subdesenvolvido, como país atrasado no conjunto das nações civilizadas, ou seja particularmente em relação aos países do mundo ocidental.
É corrente, de facto, deparar com essa pejorativa classificação, no sentido não do particular, mas do geral, seja dada por pessoas, seja dada por entidades responsáveis ; de facto, ainda não há muito tempo, numa acreditada publicação económica inglesa, se dizia acerca da situação previsível para diversas nações em futuro próximo, consequente do estabelecimento do mercado comum: «Os países subdesenvolvidos -Grécia, Portugal e Turquia- desejarão juntar-se à área de livre câmbio como membros da O. E. C. E., mas não se encontram aptos, mo começo, a aguentar uma concorrência em termos iguais».
Nada tem de criticável a afirmação final, que, na realidade, é aplicável não só aos países referidos como a muitos outros mais; a própria França - que é mentora desta nova forma de economia internacional - sente a necessidade de períodos de transição, mais ou menos longos, para evitar males maiores, que o estabelecimento brusco do mercado comum tornaria inevitáveis.
Digna de crítica e de repulsa, portanto, é a generalização com que tal adjectivação se emprega, e a qual - repito- se está tornando frequente, implicando uma firme reacção correctiva que, infelizmente, ainda não notei.
Vejamos, então, porquê. Esta designação de «subdesenvolvido» traduz a preocupação dum problema dos países civilizados, atingindo actualmente uma particular importância não só em razão da evolução do colonialismo, do estabelecimento duma solidariedade internacional e da concorrência entre o mundo capitalista, mas também dos rápidos progressos da demografia mundial.
Como tão bem observa o presidente da Comissão da População das Nações Unidas -e que é um dos mais distintos demógrafos da França-, essa preocupação avivou-se nos últimos tempos de forma equiparável à preocupação que, no século XIX, o problema das classes pobres constituía para as classes abastadas.
Simplesmente, se nessa designação, que de certo modo amesquinha, se podem englobar países e regimes muito diferentes, certo é também que determinados caracteres comuns os ligam de certa forma entre si; poderão ser, segundo ele, por exemplo:
1.º Uma forte mortalidade, principalmente infantil, a par duma vida média curta, oscilando entre os 30 e os 40 anos;
2.º Uma fecundidade elevada, vizinha da fisiológica ou, pelo menos, não contrariada por práticas anticoncepcionais;
3.º Uma grande proporção de analfabetos, atingindo frequentemente os 80 por cento;
4.º A sujeição servil da mulher ao lar, sem direito de trabalho livre fora dele;
5.º O trabalho da criança, muitas vezes antes de ter atingido os dez anos;
6.º Ausência ou muito pequeno peso das classes médias;
7.º Uma grande proporção de agricultores ou pescadores;
8.º Subemprego, por insuficiência de meios de trabalho ;
9.º Alimentação insuficiente, inferior a 2500 calorias e, sobretudo, fraca em proteínas;
10.º Regime autoritário, sob diversas formas, com ausência de instituições democráticas.
Se considerarmos este conjunto de condições, mais ou menos comuns, como um teste, Portugal está, como é naturalmente evidente, fora dele; de facto, seria ridículo pretender que nos colocávamos, mesmo marginalmente, entre as cinco primeiras alíneas, a não ser para negar, pela inconsciência ou pela mentira, a realidade dos enormes progressos feitos nesses campos.
A inconsistência do n.º 6.º é evidente igualmente, como, alias, o é também a do n.º 7.º, dado que dentro do tipo agrícola, com que a economia portuguesa se tem firmado até hoje, se não pode considerar exagerada a proporção existente da nossa população agrícola, muito embora a podamos achar elevada em relação à nossa produtividade.
Pelo que respeita ao n.º 10.º, direi somente que «instituições democráticas» não significa «instituições inerentes a regimes democráticos»; é expressão puramente destinada a significar o direito de representação, de formulação de vontade eleitoral, de ausência de privilégios de castas e de classes perante e lei, etc.; enfim, de toda aquela série de princípios que cabem perfeita e logicamente numa forma corporativa de Estado como é a nossa.
Fica-nos, portanto, o n.º 9.º e, de certo modo, o n.º 8.º, com características da nossa economia actual, a definir uma situação desagradável, embora, que temos de remover, evidentemente, o mais depressa possível, mas que se têm de encarar como definidoras de um «estado» numa evolução de aproveitamentos ...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... de possibilidades e de utilização que de há muito vimos fomentando para bem duma política social que se define num conjunto, já, de realizações e de aproveitamentos cujo grau de progresso se integra perfeitamente nos diversos países que connosco definem a civilização ocidental.
Falta-nos, é certo, atingir, sob aquele aspecto, a posição de que precisamos, muito embora nos coloquem já no limite das 2500 calorias; mas é certo que a revolução industrial e o progresso económico, que levaram certas nações a um nível de vida muito mais alto do que o nosso, não foram consentâneos a todos, nem no tempo nem no espaço; e, em muitos casos, se não mesmo na maioria esmagadora de todos, o desenvolvimento das aplicações práticas da ciência a instaurar novas técnicas de aproveitamento de territórios, até então considerados pobres ou inaproveitáveis por condições físicas ou de lugar, só há poucos anos nos trouxe, na verdade, as possibilidades que temos hoje.
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Impôs-se-nos, por outro lado, criar uma série de circunstâncias novas capazes de utilizar tais possibilidades, das quais destaco, pelo seu relevo especial, as correspondentes à recuperação do nosso prestígio externo, à reorganização financeira - nunca será de mais repeti-lo- e à firmeza da continuidade dum notável e precioso equilíbrio político.
Na era de renovação que vimos atravessando cabe lugar agora - e com primacial cuidado - ao revigoramento da nossa economia e à procura aplicada e consciente dum mais alto nível de vida para o povo português.
Não se quer negar com isto - nunca é de mais repeti-lo também - a existência de obras já realizadas, ou em curso, que hão-de contribuir - e já estão contribuindo - para remediar o mal que se apontou; mas pretende-se -porque se impõe e é possível- não só um maior incremento delas, mas sobretudo a consciência do grau desse dever que se nos impõe e das reais possibilidades que temos para o cumprir depressa e bem.
O reconhecimento, porém, da impossibilidade que houve, durante largo tempo, de realizar no campo económico a obra verdadeiramente revolucionária que é precisa não significa aceitação da moderação dos processos muitas vezes seguidos, para a conseguir com brevidade, nem a acatação das hesitações, da descoordenação e dos vagares que às vezes a comprometem; é, na realidade, minha convicção arreigada - que desde há anos, aliás, aqui venho manifestando- que, sendo muito embora preocupação, tanta vez manifestada pelos mais directos responsáveis, levar a níveis mais altos o consumo e a produção nacionais, não se conseguiu ainda neste campo aquele indiscutível sucesso que noutros atesta já, de maneira iniludível, as razões da revolução levada a cabo e o mérito e o valor do regime que em sua consequência se instaurou.
Mas tal sentimento, que não é só meu e envolve, de certo modo, crítica a critérios e a processos, repudia altivamente a generalização daquela apelidação pejorativa que alguns pretendem destinar-nos, por a considerar não só injusta, mas imprópria da obra realizada e dos resultados positivos que através dela o País oferece a quem nos queira analisar com a honestidade que se impõe.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Mário de Figueiredo: - O epíteto de país subdesenvolvido é referido ao nível de vida ou à nossa posição económica.
Evidentemente que o nosso nível de vida não é aquele que todos desejaríamos que fosse, mas o que pode perguntar-se é se, tendo nós procurado caminhar na busca dum nível mais elevado, podíamos caminhar mais depressa, e a que meios havemos de recorrer para continuarmos a caminhar numa progressão mais acentuada do que aquela que se tem verificado.
O Orador: - Há oito anos que ando aqui a dizer que podíamos caminhar mais depressa e V. EX.ª a dizer-me que não. Por isso não poderíamos estar de acordo, hoje, nesse ponto.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª é mais novo e o coração consente-lhe maior velocidade; por isso também pode caminhar mais depressa do que eu. Não tenho ideia, porém, de alguma vez termos falado da matéria.
Quanto à fórmula «país subdesenvolvido», confrange-me ouvi-la, apesar de reconhecer que só quer apontar para o aspecto económico.
Noutros aspectos - cultura, sensibilidade, cortesia, delicadeza cristã de sentimentos - não somos ainda os iletrados inferiores aos outros: somos pobres e eles ricos ...
O Orador: - Tem V. Ex.ª razão quando diz que a designação que se atribui ao nosso nível geral de vida pode não estar certa sob certos aspectos. Exactamente para se definir o que se entende por «país subdesenvolvido» é que referi esta série de testes.
Do que não há dúvida é de que nestes últimos dois ou três anos começo a ver que esta apelidação de «país subdesenvolvido» se estende, quanto a nós, a uma generalização de comparações que não podemos aceitar.
Há certas regiões de muitos países, e mesmo do nosso - posso citar, por exemplo, no ultramar -, que podemos considerar como regiões subdesenvolvidas aos diversos aspectos; agora a generalização que se está a dar em relação ao nosso país, comparado com outros a quem já ultrapassámos há muito tempo, em certos índices e em certas realizações, é que me choca.
De entrada atendeu-se apenas ao aspecto económico, que está certo, mas hoje há tendência para fazer essa generalização sob o aspecto da comparação, o que é francamente inadmissível, como se o atraso no desenvolvimento económico fosse o único teste que interessa para avaliar do grau de civilização duma nação.
A palavra «subdesenvolvido» está a tender para um sentido de generalidade, quando tão fácil seria verificar primeiro a obra que temos feito - e a injustiça destacar-se-ia imediatamente.
Faço votos, Sr. Presidente, ao terminar este curto apontamento que a consciência me impõe, que as nossas entidades responsáveis, e para o efeito competentes, reajam ostensivamente sempre que tal injustiça se pratique, não como quem reage a um insulto -dado não insultar quem quer-, mas sim como quem depara com uma lamentável ignorância, que é preciso corrigir sem cerimónia, pela inconsciência petulante que demonstra.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª continuará as suas considerações na sessão de amanhã.
Vou encerrar a sessão.
Amanhã haverá sessão, com a mesma ordem do dia que foi designada para a sessão de hoje, ou seja a continuação da efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Daniel Barbosa sobre o problema económico português.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 45 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Artur Proença Duarte.
Herculano Amorim Ferreira.
Jorge Botelho Moniz.
Jorge Pereira Jardim.
José Garcia Nunes Mexia.
José dos Santos Bessa.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Malhou Durão.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Alexandre Aranha Furtado de Mendonça.
Página 491
29 DE MARÇO DE 1957 491
André Francisco Navarro.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Russell de Sousa.
António dos Santos Carreto.
Carlos de Azevedo Mendes.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Gaspar Inácio Ferreira.
João Cerveira Pinto.
João Maria Porto.
Joaquim de Sousa Machado.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luis Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Miguel Rodrigues Bastos.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
O REDACTOR - Luís de Avillez
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA