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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 74

ANO DE 1959 21 DE FEVEREIRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VII LEGISLATURA

SESSÃO N.º 74, EM 20 DE FEVEREIRO

Presidente: Ex.mo Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Ex.mos Srs.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues
Júlio Alberto da Costa Evangelista

SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horta e 22 minutos.

Antes da ordem do dia. - O Sr. Deputado Purxotoma Ramanata Quenin evocou a figura do general Joviano Lopes, recentemente falecido.

Os Srs. Deputados Venâncio Deslandas, Henrique Jorge, Vasques Tenreiro, José Saraiva e Sarmento Rodrigues evocaram a figura e os feitos do almirante Gago Coutinho.
O Sr. Presidente levantou a sessão em sinal de sentimento.
Eram 17 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai procedente à chamada. Eram 16 horas e 15 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Afonso Augusto Pinto.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Aires Fernandes Martins.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto da Bocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Finto dos Reis Júnior.
Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior.
Américo Cortês Finto.
Américo da Costa Ramalho.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calapez Gomes Garcia.
António Calheiros Lopes.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Cortês Lobão.
António Jorge Ferreira.
António José Rodrigues Prata.
António Pereira de Meireles Rocha Lacerda.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Máximo Saraiva de Aguilar.
Artur Proença Duarte.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Avelino Teixeira da Mota.
Belchior Cardoso da Costa. ,
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Coelho.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Augusto Dias Rosas.
João Augusto Marchante.
João de Brito e Cunha.
João Cerveira Pinto.
João Mendes da Gosta Amaral.
João Pedro Neves Clara.

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Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Faia de Azeredo.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Dias de Araújo Correia.
José de Freitas Soares.
José Garcia Nunes Mexia.
José Hermano Saraiva.
José Manuel ida Costa.
José Monteiro da Bocha Peixoto.
José Rodrigo Carvalho.
José Rodrigues da Silva Mendes.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Laurénio Cota Morais dos Reis.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Tavares Neto Sequeira de Medeiros.
Manuel Colares Pereira.
Manuel José Archer Homem de Melo.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Luís Fernandes.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Angelo Morais de Oliveira.
Mário de Figueiredo.
Martinho da Costa Lopes.
Paulo Cancella de Abreu.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Ramiro Machado Valadão.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.
Venâncio Augusto Deslandes.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Amaro Salgueiro dos Santos Galo.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 87 Srs. Deputados.

Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 22 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Purxotoma Quenin.

O Sr. Purxotoma Quenin: - Sr. Presidente: é com sentida mágoa que venho pronunciar nesta Assembleia palavras de homenagem ao ilustre português que foi o general Joviano Lopes, hoje falecido.
A minha qualidade de Deputado por Goa e, mais do que ela, a minha dedicada e respeitosa amizade por este ilustre oficial superior do nosso exército impõem-me este grato e triste dever.
Conheci-o como governador do distrito de Damão, e a sua inteligente e patriótica actuação naquela nossa parcela da terra portuguesa para sempre ficou perdurando no coração dos habitantes da índia Portuguesa.
Como oficial que foi dos mais distintos do nosso exército, dispenso-me de quaisquer considerações, pois pouco diria do muito que é devido a quem soube servir a sua pátria, quer nos campos de batalha, quer nos altos cargos da Administração.
Como goês, porém, não quero deixar de, pública e oficialmente, manifestar a minha grande dor, na qual sei estar acompanhado pelos habitantes da província da índia Portuguesa, que conheceram, estimaram e admiraram a, figura fidalga, insinuante e acolhedora que foi o general Joviano Lopes. Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Venâncio Deslandes, que vai folar sobre o falecimento do almirante Gago Coutinho. Convido, por isso, S. Ex.ª a subir à tribuna.

O Sr. Venâncio Deslandes: - Sr. Presidente: é dia de luto nacional.
Morreu Alguém!
Passado pouco mais de um ano sobre a data em que a Assembleia Nacional tomou a feliz iniciativa de sugerir a elevarão de Gago Coutinho à dignidade de almirante pelos méritos excepcionais então largamente explanados, não é altura e não seria necessário adjectivar e novo quem, no consenso unanime da Nação, tão alto se guindou.
Com Gago Coutinho não se deu o fenómeno de ingratidão colectiva, tantas vexes vulgar: não foi preciso desaparecer para que os homens lhe prestassem justiça.
De há muito se lhe abrira de par em par na história o mesmo lugar de eleição que soubera conquistai1 no coração de todos os portugueses. O «almirante das estrelas», como um poeta um dia lhe chamou, era ele próprio uma estrela na constelação dos céus de Portugal, de parceria, com tantos outros vultos que viveram glorificando a Pátria e ficaram para sempre nessa espécie de saudado que leva a ensinar os seus nomes nos bancos das escolas, para que jamais deixem do ressoar pelos séculos fora.
Mas, só à auréola que o envolve nada há a acrescentar para lhe aumentar o fulgor, nem por isso o seu passamento pode deixar de ser assinalado nesta Casa.
Para além de todos os inúmeros méritos que fizeram. dó seu nome uma legenda, razão que seria suficiente para nesta hora o recordarmos, fica o desgosto de não mais nos tornarmos a cruzar com a sua figura característica, inconfundível.
Revemo-lo ainda, dobrado ao peso de anos e canseiras,, atravessar, seguro do seu destino, os mais díspares caminhos, sem um traço de orgulho, com a simplicidade; dos grandes, e sentimos ainda o mesmo sorriso carinhoso, quase filial, envolvente de admiração e respeito, que em todos os rostos se espelhava!
Nem todos os dias se passa na rua por um herói ou por um sábio, especialmente quando no mesmo corpo débil um e outro se confundem e se continua tão humano e tão parecido com o comum dos homens que só o distinguimos pêlo hábito de o ouvirmos citado!
Morreu Gago Coutinho!
Chamei-lhe aqui, há um ano, relíquia nacional. Todos, nós, portugueses, perdemos alguma coisa de nosso quando nele se extinguiu o último sopro .de vida.
Mas Portugal enriqueceu-se: guardá-lo-à para sempre na galeria dos seus maiores.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem,!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Henriques Jorge: Sr. Presidente: foi hoje a enterrar o almirante Carlos Viegas Gago Coutinho.
Fechou-se a campa sobre essa figura de epopeia,, último herói da aventura e protagonista de uma vibrante página da nossa história de marinheiros e descobridores

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Simultaneamente sábio, historiador e geógrafo eminente, foi ainda o grande caminheiro das plagas africanas e o precursor glorioso da navegação aérea.
Nesta mesma Casa, e há apenas um ano, foi prestada ao ilustre português a mais justa das homenagens,- ao propor-se que lhe fosse conferido o posto de almirante.
Por isso afigura-se-me que não podemos, nesta hora de luto nacional, eximir-nos ao doloroso dever de recordar aqui o homem insigne que a morte acaba de arrebatar-nos e em cujo corpo franzino se albergava a alma de um grande português. Apesar dos anos decorridos, as suas faculdades de inteligência e de trabalho mantiveram-se vivas até final, como vivo e imorredouro há-de permanecer o seu nome na saudade de todos os que os conheceram, como na admiração dos vindouros.
Exemplo vivo das virtudes da raça, dele disse nesta Assembleia o ilustre Deputado comodoro Sarmento Rodrigues: «Em volta dessa figura nacional não há sombras nem reservas; cada um dos seus passos é um serviço à nossa pátria ».
Com efeito, em cada um dos aspectos da sua prodigiosa actividade, Gago Coutinho deu-nos uma lição de bem servir a terra gloriosa onde nascemos.
Serviu distintamente a marinha de guerra e como grande marinheiro nela se destacou.
Calcorreou Angola e Moçambique, vagueou pela nossa índia, por Timor, por todas as parcelas de um império de que ele foi o último obreiro, ao demarcar-lhe as fronteiras e ao coroá-lo com novos louros de imperecível fulgor.
Cruzou os mares dos Descobrimentos, estudou os ventos e as águas, na ânsia patriótica de não deixar que fossem por outros empolgados os méritos que nos cabiam.
Refez as rotas dos grandes navegadores de antanho, como emulo do Gama, de Gil Eanes, de Bartolomeu Dias, de Cabral e de Magalhães.
Depois, percorridas já as sendas marítimas, quis de demonstrar ao Mundo o poder inventivo dos Portugueses e, com Sacadura Cabral, seu amigo e companheiro de outras fainas, lançou-se à conquista do espaço e traçou no céu do Atlântico o destino seguido pelas naus de Quinhentos, em direitura a terras de .Vera Cruz, à pátria irmã, a que ele queria quase tanto como à terra onde nascera.
Completava-se assim a façanha, com triunfo absoluto. Enquanto um conduzia pelos ares a pequena aeronave assinalada com a Cruz de Cristo e as cores nacionais, o outro, utilizando instrumentos de- sua invenção, indicava a rota a seguir para que fossem topar, a milhares de milhas do ponto de partida, com os rochedos brasileiros de S. Pedro e S. Paulo.

ra um verdadeiro sábio, como tal reconhecido nos meios internacionais, em matéria de geografia e de geodesia; era ainda um escritor de merecimento, um investigador incansável, um português de lei, da tempera dos Castros fortes e de outros... «sobre os quais poder não teve a morte».
Também o seu nome não morrerá, mas há-de subsistir na história do sen pais, deste pais que tão intensamente fez vibrar de puro ardor patriótico e de febril entusiasmo aquando da ligação aérea Portugal- Brasil.
Esse traço de união entre as duas grandes nações irmãs perdurará como pagina de epopeia que será lida com assomos de orgulho por nossos filhos e nossos netos.
Porque é assim que se escreve a história: a golpes de audácia, mas ponderada, fria, consciente do que se quer e segura do que se pode. '
Gago Coutinho e Sacadura Cabral, irmanados pelo mesmo ideal e desprezo pela vida, sabiam, aquando das jornadas magnificas de Lisboa ao Rio, o que queriam e com o que podiam contar.
Ele próprio o disse, como aqui nesta Casa o sublinhou o nosso ilustre colega general Venâncio Deslandes, ao narrar mais tarde as condições do audacioso feito:
É nesta confiança - não cega; mas reflectida - que está a explicação do voo de Lisboa ao Brasil como Sacadura o concebeu. Se outros pilotos aviadores se não tinham ainda lançado, antes dele, em idênticas viagens aéreas no mar Largo, sem navios a balizarem-lhes o caminho, uma tal abstenção era devida a os outros aviadores não terem bases tão firmes para poderem avaliar, como ele, os resultados práticos a esperar da navegação aérea.
E se a aviação lhe ficou devendo o primeiro passo na arte da navegação aérea, a glória que o cobriu recaiu sobre a sua e nossa pátria e chegou providencialmente para levantar o ânimo e as energias nacionais numa hora de «apagada e vil tristeza»; nem poderão esquecer-se os seus inestimáveis serviços na delimitação das fronteiras dos nossos territórios do ultramar, nem os seus estudos profundos e exactos sobre os Descobrimentos e a arte de navegar à vela.
Considerado em todo o Mundo como homem de saber, foi ídolo das multidões e objecto de enternecido afecto do povo, que tanto o estimava e nas ruas de Lisboa, como nas cidades do Brasil, lhe tributava a homenagem carinhosa dos simples.
Viveu como herói de legenda e morreu como cristão - o espírito lúcido, o coração tranquilo, a alma em paz.
E em paz repousa, desde hoje, em terra portuguesa, em terra que ele tanto amou e tão bem soube servir.
Em terra portuguesa, é certo... _ Mas eu entendo que, se a tanto se não opõem disposições terminantes do insigne português, o seu lugar de repouso devia ser de destaque, ao lado de outros heróis da Descoberta, à vista do Tejo das caravelas e bem perto do local donde ele e Sacadura levantaram voo para a epopeia de Lisboa ao Rio.
E ali o seu túmulo, não longe dos de Vasco da Gama e de Camões, tendo talvez por motivos escultóricos o astrolábio e o sextante, deveria ter aos pés, aberto, um exemplar de Os Lusíadas, ao qual o grande nauta acrescentou mais um cântico patriótico, irradiando imortal esplendor.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Vasques Tenreiro: - Sr. Presidente: expresso os sentimentos do povo da minha terra ao tomar a liberdade de recordar mais uma vez nesta Assembleia a nobre figura do almirante Gago Coutinho.
O homem que foi hoje a enterrar, despido de qualquer ressaibo de vaidade, deixa no coração da gente de S. Tomé a mais grata recordação. Foi assim, com a despreocupação de quem .tem preocupações elevadas, que arrostou com as florestas, se perdeu nas capoeiras mais intrincadas, subiu a todos os cones vulcânicos, espreitou crateras, olhou panoramas dos picos mais acerados da ilha de S. Tomé.
Eu, que ali nasci e as contingências da vida atiraram para matérias afins às cultivadas por Gago Coutinho, não encontrei naquela ilha, e nesta época do jeep e do avião, grota profunda ou pico alto onde não colhesse informação, de gente que de tudo se recorda, de que ali havia estado Gago Coutinho, a pé ou a cavalo. Percorrendo de lés a lés a ilha, Gago Coutinho conseguiu

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fixar em mapa, a que o tempo ainda não roubou valor, a fisionomia da ilha de S. Tomé; a exactidão com que trabalhou e a existência providencial de um ilhéu permitiram-lhe trazer, nesses anos recuados, contribuição valiosa para a ciência, de grande repercussão no estrangeiro ; é quando no ilhéu das Rolas e através de cálculos minuciosos determina a passagem «exacta» do equador.
Ali está um marco, a meio de pequena ladeira que leva a formosa cratera, a atestar tão delicado trabalho; ali também, em tarde de gravaria, com o seu mapa desdobrado nos joelhos, tendo no horizonte a imensidão do Atlântico Sul, que tantas vezes cruzou, sentindo no rosto a candura do alísio, pensei em Gago Coutinho e na grandeza da sua alma - capaz de feitos de grande arrojo era também herói nas coisas aparentemente pequenas, mas de grande significado cientifico: um mapa que se desenha a rigor, uma determinação astronómica, um sextante que se adapta à navegação aérea, etc.
Perdura ainda na memória da gente de S. Tomé o homem afável, obcecado pelo trabalho, recto no tratamento, mas, sobretudo, a sua enorme simplicidade e a extrema amorabilidade pela natureza é o que mais acorda à lembrança. Para quem o conheceu, era como um português antigo, sobrevivência ou relíquia de um mundo desaparecido...
Morreu o último geógrafo das viagens de redescobrimento de sertões e desapareceu o navegador, o último dos Bartolomeus Dias! Morre tão modesto como grandiosa foi a sua vida. Receio até que com o desaparecimento de Gago Coutinho, símbolo de grandeza moral que os tempos vão conspurcando, se quebre o derradeiro liame que recordava à Nação que os homens são grandes quando são simples. Indo para o túmulo com o seu velho . fato de caqui que o acompanhou nas peregrinações de «campo», Gago Coutinho ofereceu a todos, uma vez mais, essa nobre lição; que nestes tempos tão enroupados de pedantismo isto seja aviso salutar.
Para a gente de S. Tomé, que assim o conheceu vestido, é como se na hora final Gago Coutinho lhes acenasse um adeus que, embora distante, era o adeus de um amigo.
Acenemos nós agora, os de S. Tomé, um adens de saudade ao «geógrafo africano».
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. José Saraiva: - Sr. Presidente: vi, esta manhã, baixarem à sepultura os despojos mortais daquele que mereceu, em vida, ser chamado o último nauta, o lídimo expoente do génio português no que ele tem de mais alto, heróico e universal, o símbolo das virtudes nacionais, ou, numa palavra breve que lapidarmente tudo isso exprime, o último herói lusíada.
Já a Assembleia Nacional, primeiro em sessão que ficou profundamente gravada na memória de todos nós e agora nas palavras que acabamos de escutar, prestou ao almirante Gago Coutinho as mais eloquentes homenagens que a algum português tem tributado. Recordo as três notabilíssimas orações que, do alto daquela tribuna, há um ano foram proferidas; e penso que agora não haveria mais que acrescentar uma palavra de luto, melhor que uma palavra, um respeitoso silêncio de luto, de um luto que os representantes da Nação neste momento sentem em uníssono com a Nação inteira.
Sinto-o. E, todavia, uma imposição da consciência me arrasta a erguer hoje a minha voz, neste lugar. Poderia dizer: um motivo pessoal, uma velha divida a saldar. E se me atrevo a falar dela, é porque penso que milhares de portugueses partilham comigo essa divida imprescritível, e que as palavras que trago para dizer, por sobre serem minhas, são as palavras de toda uma geração.
Eu estava ainda no balbuciar do tempo infantil quando o feito que imortalizou os aviadores portugueses fez soar, por sobre todas as fronteiras do mundo, o nome de Portugal.
Hora a hora, a viagem foi seguida ansiosamente pelas multidões de uma e outra margem do Atlântico. Pelas multidões e também pelas famílias recolhidas nos seus lares. Longínqua, velada pela neblina das reminiscências do tempo em que mal se desperta para a vida exterior, é a recordação que desses dias, na perspectiva do tempo vivido, se conserva ainda.
Há, no entanto, uma recordação que nitidamente se recorta na distância, uma experiência pessoal quê ficou em mim gravada para sempre: foi naquele dia em que chegou a noticia triunfal, recebida nas ruas e nos lares com estremecimentos de indizível júbilo, foi nesse dia que .me foi dado sentir, pela vez primeira, o orgulho de ser português.
O feito glorioso de 1922, para além do que em si mesmo foi, só pode ser entendido na sua verdadeira dimensão se for olhado na repercussão que teve sobre a alma nacional. Para a minha geração ele foi isso: a revelação, feita na madrugada da vida, de que o génio da Pátria permanecia vivo, de que, na grande cadeia de gerações que nós somos, o martelo da história vai sempre forjando, em cada novo século, novos elos de heroísmo.
Para as gerações que já então tinham entrado na vida, foi talvez lição mais necessária e, se pode ser, mais bela ainda: a de que nem tudo em sua volta eram destroços, remorsos, despojos de uma glória finda, e de que nas reservas mais fundas do génio nacional permanecia intacto o valor que podia sempre transmudar o crepúsculo na clara manhã da ressurreição portuguesa. O Almirante das Estrelas do Sul fui, para muitos portugueses ansiosos, a estrela de alva a anunciar, no céu nocturno, que um dia novo já não podia tardar.
As nações, de tempo a tempo, encarnam o próprio génio em filhos seus. São eles os intérpretes e os testemunhos do que o espirito das pátrias tem de mais próprio e de mais fundo, da mensagem original que cada povo tem por vocação de afirmar no inundo.
Foi destino de Gago Coutinho percorrer - nos mesmas condições de desconforto e dureza em que o fizeram os grandes exploradores sobre cujos passos- o Império se levanta- os ignorados caminhos das províncias da África e da Ásia; foram-se-lhe anos de vida a enfunar velas aos mesmos ventos que outrora levaram os descobridores, tisnando-se aos mesmos sóis, sentindo no rosto a espuma das mesmas ondas, buscando-lhes o heróico trilho sob as mesmas estrelas e sobre os mesmos mares; foi-se-lhe a vida inteira navegando, voando, estudando, marcando o risco das fronteiras onde Portugal começa, descobrindo os meios de conquistar o céu como nossos maiores descobriram forma de conquistar os mares ...

m todos os seu feitos parece nimbá-lo a própria alma dos heróis antigos. Tal como os navegadores de Quinhentos, cujas viagens se não fizeram indo a acertar, nunca o seduziu ò gratuito gosto da aventura: ele sabia que o demorado estudo, a meditação e o saber eram o único alicerce perdurável dos empreendimentos humanos, e que a audácia só é criadora e fecunda quando a inteligência a ilumina.
Em todos os momentos da sua vida, procedeu generosamente, desinteressadamente. A glória poderia tê-lo facilmente alcandorado aos púlpitos dá política ou aos tronos dourados da riqueza: ele era grande de mais para aspirar a tão pouco. Nada quis para si: cuidou sempre de dar, esquecido de receber. Assim também foi Portugal, terra mater de quatro impérios, nação pobre que

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esparzia tesouros, que de si deu tudo quanto era preciso fosse dado -riquezas, heroísmos, santidade, até o sangue e a vida dos seus príncipes, tudo -, até à exaustão gloriosa de ter assim cumprido o seu papel no mundo.
Lutador infatigável, quase obstinado-a vida do almirante serviu, todavia, sempre para unir, nunca para separar. Não consentiu que a glória ganha ao serviço da Nação fosse posta ao serviço de qualquer facção, fosse qual fosse, e assim atravessou a vida portuguesa sempre indiscutido, respeitado por todos, amado por todos. Uniu os Portugueses e trabalhou sempre por unir Portugal e o Brasil. Não foi só que depois da sua façanha as duas . grandes nações ficaram mais próximas; foi ainda um esforço vigilante, incessante, para conseguir que as almas dos dois povos, irmãs embaladas no mesmo grande regaço lusíada, se conhecessem sempre melhor, se amassem sempre mais profundamente.
É sobretudo à juventude que pertence o meditar sobre a vida dos heróis. A Mocidade Portuguesa, às legiões de gente nova que escolheu por seu sinal e orgulhosamente desfralda ao vento de hoje o estandarte imortal de Aljubarrota, compete tomar em suas mãos o culto do herói que acaba de entrar na história.
Ele ficará bem entre os seus vultos tutelares, entre aqueles cuja vida inteira constitui exemplo, cuja evocação desperta nas almas um sadio, varonil orgulho de ter nascido em Portugal.
Dirijo, pois, ao Governo o meu pedido de que se recomende e confie à Mocidade Portuguesa o estudo da obra, leitos e virtudes do almirante Gago Coutinho. Que em seu louvor se reúna o próximo acampamento nacional da Organização e que ali, nessas veladas de armas que são as chamas da mocidade, na presença de todos os rapazes vindos de todas as províncias de aquém e além-mar, se aponte o seu exemplo e se medite na lição da sua vida.
Sei, sei porque as vivi, o que são essas horas de meditação à ígnea luz da chama que entre as tendas se levanta. Sei como ai, a evocação das grandes páginas da história pátria, as almas juvenis se agitam, se inebriam, como pulsam em frémitos, clarões, de varonil arroubo.
Frémitos, clarões, que são iguais aos dos soldados de antanho, quando, antemanhã, unida a hoste e recebido o Corpo do Senhor, escutavam a voz dos capitães nas horas de ansiedade que precediam, o sol alto das batalhas. Iguais aos que deslumbraram os marinheiros, quando, nas madrugadas do descobrimento, as gaivotas vinham, voando, anunciar que para além do mar escuro a terra e a glória estavam.
Iguais, porque a iminência de batalha, véspera de descoberta, é o tempo da juventude: batalha e descoberta que foram a razão de viver do almirante e que são a própria razão de ser de Portugal.
Sr. Presidente: sei que a vontade dos mortos é para ser obedecida pelos vivos. É da lei da morte esse respeito silencioso diante das palavras derradeiras. E só por sabô-lo não exprimo já o reprimido desejo de muitos portugueses de que os despojos do último herói nacional sejam levados à sua campa própria, na grande catedral lusíada de Santa Maria de Belém.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador:-Desejo, porém, que, essa lei da morte, a Mocidade a não ouça. Ela canta nos seus hinos a memória de Camões, e Camões falou daqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando. Penso que é obrigação da Mocidade reclamar para si o direito de lutar ato que consiga levar aos seus ombros, numa apoteose que tem a sua data natural dentro do ciclo das comemorações henriquinas, o corpo do sen herói, desde a lousa humilde que para si escolheu, até ao túmulo ilustre que por seus feitos merece.
Sr. Presidente: são muitos os motivos que apontam a vida do almirante Gago Coutinho como lição aberta à meditação da juventude; creio que todos os conhecemos e não quero sobre eles demorar-me.
Contavam os jornais de ontem que momentos antes de expirar trabalhara ainda, introduzindo alguma correcção em desenho de vela de navio, destinado a servir de capa a uma edição á Os Lusíadas.
Aludo ao pequeno episódio porque também ele me parece do mais alto simbolismo: corrigindo o que há-de ser o invólucro do poema, adaptando-lhe alguma fantasia à sua verdade de argonauta. Todo o invólucro, todo o aspecto exterior, é sempre sujeito & correcção. O canto, esse não muda. Vem do fundo dos séculos e anuncia o tempo vindouro. Refulge em páginas de luz, como a vida desse herói que morreu. Concita os Portugueses ao amor da Pátria, à defesa de tudo quanto é grande e sagrado, e vem de longe, e nos faz a alma, e nos dá uma fé e uma luz para lutar.
O canto, esse não muda.
É a voz de Portugal que se não cala.
É a voz de Portugal que continua.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sarmento Rodrigues: - Sr. Presidente: subo a esta tribuna na certeza de que por alguns momentos, com os meus colegas nesta Câmara, comungarei no profundo sentimento de luto que a todos, sem excepção, nos domina.
Foi hoje a enterrar o almirante Gago Coutinho, o herói nacional que esta Assembleia ainda há bem pouco tempo mais uma vez consagrou. O seu passamento deu-se no dia seguinte à data para todos nós jubilosa em que completou 90 anos, e no próprio dia em que a Assembleia Nacional se associava à feliz lembrança do distinto colega Teixeira da Mota de o saudar por mais um aniversário, mais um ano de ininterruptos e valiosos serviços que findara, e o início de um novo ano da sua veneranda presença, sempre cheia de promessas de frutuosa e patriótica actividade.
Se os receios pela sua saúde eram grandes, também era licito esperar que o seu dóbil corpo, que tantos trabalhos suportara no mar e no mato, que a tantas fadigas resistira, pudesse ainda dar guarida, àquele espirito cintilante cuja corajosa claridade intelectual nunca abandonara.
Na verdade, os seus pensamentos, quando podiam sobressair do caos orgânico em que se encontrava, estavam sempre no .progresso, no bem-estar da humanidade e na glória da sua pátria. A energia nuclear e as possibilidades de felicidade geral que nela antevia; a exaltação dos feitos dos nossos maiores, que ele afincadamente procurava enaltecer, esclarecendo-os - eram estas as suas preocupações, os seus nobres cuidados.
Reconhecendo que teria de permanecer mais alguns dias no sen leito de doente, quis logo Os Lusíadas, os seus apontamentos, os seus óculos, para prosseguir na tarefa que tanto o interessava naquele momento: a interpretação da rota de Vasco da Gama, tal como Camões a descrevia.
Aceitara com entusiasmo participar na preparação de uma edição especial do poema destinada aos alunos da Escola Naval, e entendia que, com excepção da parte náutica, era de aproveitar o excelente trabalho do Dr. José .Maria Rodrigues, sen adversário nas eruditas polémicas de que todos certamente se recordam. Em tudo o mais

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Gago Coutinho aceitava a orientação do eminente camonianista; mas o seu conhecimento profundo, experimentado, das coisas do mar, permitira-lhe interpretar melhor e esclarecer definitivamente a descritiva náutica do Poeta. Por isso me dizia, no principio deste mês, na última e preciosa carta que me escreveu:

Reflectindo melhor, verifiquei que os comentários de J. M. Rodrigues são o melhor que se tem leito sobre Os Lusíadas, exceptuando a versão da dupla rota.

A sua alma intemerata de lutador era também a de um homem sinceramente justo.
Passou assim desta vida para a imortalidade da glória abraçado a Os Lusíadas. Estava dentro de Os Lusíadas: era o seu último herói. Com ele se fecha, em verdade, o ciclo dos Descobrimentos.
Não vai repousar para os Jerónimos, onde certamente seria o sen lugar, porque a sua admirável simplicidade outro destino escolheu. Das suas últimas vontades extraio estas palavras impressionantes, que entendo que esta Câmara e a Nação devem conhecer.
Há quatro anos dizia numa carta ao grande amigo comandante Camilo Laroche Semedo, seu companheiro na delimitação da fronteira do Barotze, em 1914, e der pois na Comissão de Cartografia:
O jazigo que está no Cemitério da Ajuda é raso, com três lugares. Só lá falto eu. Quero para lá ir vestido como andava no mato. Os calções sempre me acompanham. Tanto para o Rio como para Paris. Foçam o funeral o mais simples possível, e de manha cedo.

E em Dezembro passado insistia, num último documento que entregou ao seu íntimo amigo António da Costa Ivo:
Repito: aqui1 confirmo a minha vontade de ficar junto dos meus pais, no Cemitério da Ajuda, saindo o corpo não de casa, mas da Capela do Arsenal.
O caixão, de pinheiro, será pobre, para caber no jazigo, onde já está o meu nome. Vestir-me-ão os calções e casaco de caqui, como atravessei a África. Tudo pobre, como nasci. Aliás, nunca fui almirante a valer, mas autentico geógrafo de campo.
Vai assim para uma campa modesta, amortalhado numa simples andaina de sertanejo, num caixão de pinho pobre, sem honras militares, o grande almirante que deu páginas de glória a uma nação; que abrasou- de entusiasmo patriótico duas pátrias irmãs; que descobriu novas rotas; que nos deu, num período perturbado e cheio de dúvidas e ansiedades, uma nova confiança nas capacidades nacionais; o homem a quem cada um de nós deve horas de alegria e de exaltação patriótica, porque juntou nova expressão ao orgulho de ser português.
Deixou-nos para sempre o Almirante da Marinha Portuguesa.
Mas não é só a Marinha que se encontra de luto, porque a Nação inteira, da gente mais humilde à mais insigne, dos bairros de Lisboa aos confins de Trás-os-Montes, .de Angola e de Timor, chora a perda do que foi entre nós o símbolo vivo da gesta heróica dos Descobrimentos, da alma marinheira da Nação.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: felicito os oradores da sessão de hoje, que tão bem deram o justo relevo à figura do almirante Gago Continuo, pela maneira como souberam compreender e traduzir o profundo pesar desta Camará.
Na certeza de corresponder ao sentimento da Assembleia, que é certamente, neste momento, o sentimento do País, vou suspender os nossos trabalhos, que continuarão na próxima terça-feira, 24 do corrente, com a mesma ordem do dia da sessão de hoje.
Está encerrada a sessão.
Eram 17 horas e 20 minutos.

Srs. Deputados que faltaram à tendo:

Adriano Duarte Silva.
Agnelo Orneias do Rego.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Pacheco Jorge.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Carlos doa Santos Fernandes Lima.
António Maria Vasconcelos de Morais Sarmento.
António Sobral Mendes de Magalhães Ramalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
César Henrique Moreira Baptista.
Fernando António Munoz de Oliveira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Carlos de Sá Alves.
João- Maria Porto.
Jorge Pereira Jardim.
José António Ferreira Barbosa.
José Fernando Nunes Barata.
José Gonçalves de Araújo Novo.
José Guilherme de Melo e Castro.
José dos Santos Bessa.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Rogério Noel Peres Claro.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Urgel Abílio Horta.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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