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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 115
ANO DE 1959 4 DE JUNHO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VII LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.º 115, EM 3 DE JUNHO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos Srs.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues
Júlio Alberto da Costa Evangelista
SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 20 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o Diário das Sessões n.º 114.
Leu-se o expediente, tendo o Sr. Deputado Amaral Neto dado explicações acerca de uma exposição do Grémio Nacional dos Comerciantes de Lãs.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Martinho da Costa Lopes, que se referiu à recente posse do governador de Timor; Amaral Neto, acerca de assuntos ligados a problemas lanares; Duarte do Amaral, sobre a crise da indústria têxtil algodoeira; Peres Claro, que chamou a atenção para o papel desempenhado pelas sociedades de recreio na difusão da cultura; Manuel Nunes Fernandes, acerca da acção fiscalizadora da Comissão Reguladora das Moagens de Ramas, e Augusto Simões, para explicações quanto às considerações do Deputado anterior.
Ordem do dia. - Continuou o debate sobre a proposta e projectos de emendas à Constituição Política.
Usou da palavra o Sr. Deputado Cortês Pinto.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas.
Nota. - No Diário das Sessões respeitante à sessão de 27 do Maio último na lista dos Srs. Deputados ausentes foi, por lapso, incluído o nome do Sr. Presidente (pois S. Ex.º presidiu à sessão), em vez do do Sr. Deputado Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 16 horas e 10 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Afonso Augusto Pinto.
Agnelo Ornelas do Rego.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Aires Fernandes Martins.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior.
Américo Cortês Pinto.
Américo da Costa Ramalho.
André Francisco Navarro.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calapez Gomes Garcia.
António Calheiros Lopes.
António Carlos dos Santos Fernandes Lima.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Cortês Lobão.
António Jorge Ferreira.
António José Rodrigues Prata.
António Maria Vasconcelos de Morais Sarmento.
António Pereira de Meireles Rocha Lacerda.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
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Artur Proença Duarte.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Avelino Teixeira da Mota.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Coelho.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando António Muñoz de Oliveira.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jerónimo Henriques Jorge.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Augusto Dias Rosas.
João Augusto Marchante.
João de Brito e Cunha.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pedro Neves Clara.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Pais de Azevedo.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Pereira Jardim.
José António Ferreira Barbosa.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José de Freitas Soares.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gonçalves de Araújo Novo.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Hermano Saraiva.
José Manuel da Costa.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Rodrigo Carvalho.
José Rodrigues da Silva Mendes.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Tavares Neto Sequeira de Medeiros.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Ângelo Morais de Oliveira.
Mário de Figueiredo.
Martinho da Costa Lopes.
Paulo Cancella de Abreu.
Ramiro Machado Valadão.
Rogério Noel Peres Claro.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Amaro Salgueiro dos Santos Galo.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 90 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 20 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário das Sessões n.º 114.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como nenhum dos Srs. Deputados deseja fazer uso da palavra acerca deste Diário, considero-o aprovado.
Deu-te conta do seguinte
Expediente
Exposição
Do Grémio Nacional dos Comerciantes de Lãs relativa à intervenção do Sr. Deputado Amaral Neto acerca da situação criada à lavoura pela falta de procura dos lãs.
O Sr. Presidente: -Vai ser publicada no Diário das Sessões a exposição que acaba de ser mencionada.
O Sr. Amaral Neto:-Por graciosa concessão de V. Ex.ª foi-me facultado o conhecimento do documento cuja presença na Mesa acaba de ser anunciada. Apenas quero dizer, a propósito, que ele versa matéria não abrangida na minha intervenção e que, se tem algum aspecto curioso, é justamente o da preocupação de prova por parte de um sector que eu expressamente exceptuei nas minhas considerações.
Tenho dito.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Martinho Lopes.
O Sr. Martinho Lopes: - Sr. Presidente: pedi a palavra para me referir a um acontecimento que, pela sua importância e projecção na vida ultramarina do País e pelo seu carácter político, entendo não dever deixar passar despercebido nesta Assembleia.
Trata-se, com efeito, da investidura do Sr. Major Temudo Barata na honrosa função de governador da província ultramarina de Timor.
Realizou-se no dia l do corrente, pelas 17 horas, o acto solene em que o Sr. Almirante Vasco Lopes Alves, Ministro do Ultramar, deu, efectivamente, posse, naquele departamento do Estado, ao novo governador de Timor, brioso e distinto oficial do nosso exército, o Sr. Major José Temudo Barata.
Forçado a interromper a carreira que livremente escolheu, desprendido, por um lado, da vã cobiça de mandar, como diria Camões, sem se deixar fascinar pela vertigem das alturas, que tem desvairado a tanta gente, dotado, por outro, de predicados e qualidades que de há muito o tornaram credor da confiança do Governo, que mais uma vez o quis distinguir, escolhendo-o para a delicada missão em que acabou de ser investido, o Sr. Major Temudo Barata tem nas suas mãos, a partir de anteontem, as rédeas da administração de Timor, o mesmo é dizer as responsabilidades da chefia dos destinos daquela longínqua parcela do território português.
Sr. Presidente: tem-se dito repetidas vezes nesta Assembleia e fora dela que vivemos numa época de crise de valores ou de élites.
Efectivamente, se é verdade que no mundo de hoje nem sempre abundam os chefes de Estado e os homens de Governo capazes de conduzir com acertado critério os destinos das nações, creio que bem se poderia afirmar o mesmo, mutatis mutandis, acerca dos governadores das províncias ultramarinas.
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Na verdade, a variada complexidade dos problemas do ultramar, desde o económico ao social, político e religioso, incidentes no plano nacional ou internacional, requer, de facto, do alto magistrado ultramarino um somatório de qualidades tais que o coloquem acima do vulgar dos chefes e o imponham ao respeito de todos
- estrangeiros e nacionais- junto dos quais tem de exercer a sua acção.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Daqui resulta naturalmente a necessidade de se proceder a uma selecção rigorosa de tais elementos.
Por isso, o Sr. Ministro do Ultramar, nas breves palavras proferidas no acto da posse, a que tive a honra de assistir, deixou transparecer nitidamente essa preocupação quando acentuou que, se a escolha de um governador ultramarino nas actuais conjunturas históricas do Mundo não constituía tarefa fácil, esse mesmo problema se revestia de particular acuidade quando se tratava do governo da província de Timor.
E bem se compreende qual o alcance das palavras desse ilustre membro do Governo. É que governar com criterioso senso político qualquer das províncias ultramarinas no momento presente em que o Mundo se debate numa barafunda caótica de ideologias as mais perniciosas, no intuito de aberta ou veladamente lançar a confusão e a desordem no seio de povos habituados, de há séculos, a viver irmanados à sombra protectora da mesma bandeira gloriosa das quinas, constitui, na realidade, tarefa não só difícil como, por vezes, ingrata.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-E por isso do governante que parte para o ultramar e que, antes de mais, se deve rodear, tanto quanto possível, de elementos também de escol, que são ou devem ser os seus imediatos colaboradores, com os quais tem necessariàmente de contar, sob pena de ver minada, torpedeada e condenada a fracasso toda a sua acção governativa, e sobre quem recaem, em última análise, as responsabilidades da administração de uma província ultramarina, seja ela qual for, se exige que tenha profundamente arreigado no sen espirito, a par de um entranhado amor à Pátria, sempre presente a seus olhos nas horas boas ou más, um alto critério de justiça, de prudência, de senso comum, de fino tacto político e administrativo, de perfeita isenção e imparcialidade, de
nítida compreensão dos problemas ultramarinos, que, permanecendo embora no fundo quase os mesmos em todas as províncias, oferecem aspectos de pormenor que não convém nunca perder de vista e podem variar, como de facto variam, com o condicionalismo do espaço e do tempo e com a idiossincrasia desse mesmo povo cujos destinos lhe estão confiados.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Mas, por isso mesmo que é difícil a arte de governar povos, que não são meros autómatos, mas sim seres livres, dotados de corpo e alma, mais nobre e gloriosa é, sem dúvida, a tarefa daqueles que, pelo seu reconhecido mérito e invulgares dotes que possuem, merecem ser guindados a altos postos de comando, que se não confiam a qualquer um, mas somente a espíritos de escol, perfeitamente integrados na orientação política do Estado Novo e no valor histórico, humano e cristão da missão civilizadora de Portugal no Mundo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Ora as palavras do novo governador de Timor, proferidas no acto da posse, palavras lúcidas, serenas e firmes com que tentou definir as verdades fundamentais que informam o seu espirito, não deixaram lugar a dúvidas quando disse no seu notável discurso:
Acredito nos valores e nas possibilidades da civilização cristã e na missão de Portugal no Mundo, não como quem visiona epopeias, mas como quem sabe que o fim de uma nação não é a contemplação do seu passado, mas sim a construção do seu futuro ...
De facto assim deve ser, e ai dos povos que não sabem preparar e construir o seu futuro! ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Investido no poder pelo Governo Central, que não lhe regateará o apoio e o auxílio necessários em todas as circunstâncias, como lhe assegurou o Sr. Ministro do Ultramar, o novo governador de Timor está decididamente empenhado em valorizar e defender aquela província ultramarina, o mesmo é dizer em servir a Pátria, onde quer que ela reclame a sua presença.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Por isso, na firme certeza de que esta Assembleia me acompanhará nos mesmos sentimentos, daqui formulo votos muitos sinceros por que o Sr. Major Temudo Barata faça em Timor um bom governo, a bem da Nação.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Amaral Neto: - Sr. Presidente: na sessão do dia 22 último o Sr. Deputado Carlos Coelho teceu algumas considerações -teceu parece-me ser termo particularmente adequado ao caso-, que o seu talento soube apresentar bem concatenadas, acerca do projecto de instalação de uma secção de fiação de lãs, com carácter de fábrica-piloto, em determinado estabelecimento industrial de Lisboa.
S. Ex.ª confessou lealmente o sen interesse pessoal no caso, como mandatário de uma massa eleitoral que entende poder ser afectada pelas respectivas consequências; é também interesse de análoga ordem, embora de certo modo noutro sentido, que me provoca a pedir a atenção de V. Ex.ª e da Assembleia para o esclarecimento de alguns pontos que, creio, poderão contribuir para definir mais rigorosamente e limitar a proporções mais exactas a questão abordada pelo nosso ilustre colega. E só não o fiz mais depressa por uma ligeira indisposição de saúde me ter impedido de vir cá na passada semana.
Acresce, porém, que na minha intervenção estou, sob um aspecto, em posição mais singularizada do que a do Sr. Deputado Carlos Coelho: é que, por força de um jogo de circunstâncias que não provoquei nem desejei, me encontro individualmente ligado à empresa visada nos comentários do Sr. Deputado, em posição, aliás, nem directiva nem lucrativa; mas, se entendi que isto não deveria desviar-me de procurar servir um interesse mais geral, considero que me impõe a abstenção de todas as considerações subjectivas, e vou limitar-me, portanto, à recordação ou apresentação de factos notórios ou fáceis de verificar.
O primeiro deles é o da oposição de interesses que naturalmente se estabelece entre os criadores de gado
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ovino, produtores de lã, e os industriais de lanifícios, que lha compram como matéria-prima da sua indústria; até ao nível da transacção, cada sector forja as suas pretensões no calor desses interesses e põe ao serviço destes as forças adjuvantes de que pode socorrer-se. Donde resulta que o Estado tem sido chamado a arbitrar muita divergência e a fixar, constrangendo aqui, auxiliando além, os limites impostos pelo seu conceito do interesse comum e do superior da Nação.
Aqueles de VV. Ex.as que aqui já tinham assento há uma dúzia de anos poderão talvez lembrar-se ainda da vivacidade -reflexo daquela oposição- com que se desenvolveu o debate de um aviso prévio sobre problemas lanares e que, se não me falha a memória do relato lido, até provocou a um Deputado, simples ouvinte, aparte irónico sobre o calor gerado pelas lãs ...
Como é lógico, nesta luta de interesses os industriais têm sempre a seu favor a relativa unidade mais fàcilmente consentida pelo menor número e maior coesão geográfica das suas empresas, além da presença constante às portas das nossas alfândegas de grandes massas de lãs de origem estrangeira, a oferecerem-se em melhores condições às vezes de preparo ou de qualidade, ocasionalmente de preço e sempre de pagamento.
Decerto pelo reconhecimento deste facto, foi por despacho de 10 de Maio de 1949 autorizada a instalação de «uma fábrica de penteação de lãs e secções de escolha, lavagem e cardação», com as condições acessórias, além de outras, de da fábrica fazer parte «um laboratório de ensaios têxteis e uma secção de fiação-piloto, com vista às necessidades da própria empresa e dos serviços oficiais», e ainda de ser admitida suma comparticipação do organismo de coordenação económica interessado no ciclo lanar, com representação permanente na administração da empresa».
A empresa que se constituiu para executar este despacho é precisamente a visada pelas considerações do Sr. Deputado Carlos Coelho; mas importa, e é lícito assinalar, que, embora se trate de uma empresa privada, ela é de carácter marcadamente sui generis, que a desloca do campo da simples concorrência fabril para o da verdadeira defesa sectorial. Aliás, como a sua capacidade não vai além de um quinto da matéria-prima consumida no País, não será por força dela que poderá dizer-se essa defesa injustamente favorecida.
De facto, a empresa em causa tem por disposição estatutária o seu capital atribuído e subscrito em 15 por cento pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários e em 60 por cento pelos grémios da lavoura, com obrigação de o transferirem às cooperativas de produtores de lãs logo que se vão constituindo. Apenas em 20 por cento - aliás, na posse, principalmente, de comerciantes de lãs e seus derivados e de industriais- a empresa é de capitalismo livre.
Relembrada assim a sua peculiar idoneidade, que não é a de qualquer tentando «furar» o condicionamento industrial - e que o fosse, diferentemente do que crê o meu distinto e estimado antagonista, encontraria precedentes abonatórios na mesma indústria de lanifícios -, resta-me precisar ainda alguns factos.
O primeiro é o da pretensa ilegalidade da instalação pretendida, por caducidade do despacho que a permitiria. Estou habilitado a informar que esta circunstância não pode dizer-se verificada à luz do critério usual. Com efeito, o prazo caducou na verdade em 3 de Janeiro do corrente ano; mas os maquinismos estavam encomendados e pagos por créditos abertos em 28 de Outubro anterior. E consta-me ser entendimento da Direcção-Geral dos Serviços Industriais, muitas vezes já aplicado, que as aberturas dos créditos provam a aquisição dos maquinismos para instalar.
O outro facto é o confundir-se, propositadamente ou não, instalação industrial-piloto com instalação laboratorial ou experimental. O despacho de 10 de Maio de 1949 não confundiu: distinguiu muito claramente, como partes obrigatórias da fábrica, o laboratório de ensaios têxteis e a secção de fiação-piloto - secção da fábrica, e portanto de carácter industrial.
O seu papel não é o de fazer ensaios e experiências, sobre amostras só por hipótese representativas e em condições que desde o ritmo ao ambiente e à formação dos operadores diferem das da verdadeira laboração industrial.
Parece óbvio que estas últimas só se reproduzem numa instalação com máquinas de dimensão corrente, funcionando com regularidade e permanência, para aceitarem todas as variações da matéria-prima em grosso e estudar os acidentes possíveis e o custo real da sua transformação; e isto é de todo o ponto diverso de uma instalação destinada exclusivamente a ensaios e experiências, nos exactos termos do nosso colega da Covilhã.
A própria acepção da palavra o diz: piloto não é o homem que apenas tenteou caminho, mas sim o que aprendeu a conhecê-lo no trânsito aturado, sob todas as contingências, e que, sujeito a todos os percalços, aprendeu a vencê-los ou torneá-los.
Não é para aqui, nem para mim, discutir quantos fusos competem a uma instalação de fiação-piloto; mas a conjugação do número de sessenta a oitenta fusos repetidas vezes mencionado, com o objectivo de meros ensaios e experiências também várias vezes correlacionado, levar-me a aceitar que a crítica foi apontada a um alvo bem diverso do governamentalmente estabelecido. O que conviria seria elucidar-nos da capacidade mínima das máquinas industrialmente rendáveis e demonstrar a desproporção dessa com o pedido, e não foi o que ouvimos. Com a segurança de se tocar um ponto a que a Assembleia é justamente sensível - e logo o mostrou -, foi ainda, a propósito da projectada e autorizada fiação-piloto, evocado o congestionamento industrial de Lisboa, como mal a não agravar com mais esta unidade. Não insistindo na sua relação lógica com o que já está instalado - e precisamente na área consignada a expansão fabril da cidade -, talvez seja mais significativo e proveitoso, para todos os efeitos, explicar que o pessoal requerido para a laboração das máquinas serão tão-sò-mente dois homens e dez mulheres!
Um último facto: a questão posta depende em primeiro despacho do Sr. Subsecretário de Estado da Indústria, embora toque também à produção. O actual titular do departamento foi até há meses presidente da Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios e neste posto testemunhou pelos interesses ao sen cuidado um zelo demonstrativo da sua capacidade de dedicação às funções que aceita. Elevada dos estreitos limites de um sector individualizado à largueza do plano nacional, essa mesma capacidade nos pode assegurar uma resolução justa e imparcial do problema discutido.
Consciente deste facto me vou calar, em matéria que não valera talvez ser trazida aqui, mas, desde que o foi, exigia o esclarecimento que vim prestar.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Duarte do Amaral: - Sr. Presidente: volto a levantar a minha voz nesta Câmara para falar sobre a indústria têxtil algodoeira. E faço-o porque continuo muito preocupado quanto ao estado deste sector da nossa vida económica, quero dizer, quanto à crise que esta indústria atravessa.
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Já aqui referi a importância que tem na economia do País, mas de novo a sublinho, porque é tão grande que não podemos andar distraídos sobre o seu valor nem sobre as repercussões económicas, sociais e políticas do seu possível aniquilamento. Esta indústria, onde estão investidos, repito-o, mais do 4 milhões de contos, representa o trabalho de cerca de 70 000 operários, com salários distribuídos anualmente da ordem dos 500 000 contos. Trata-se, na verdade, de problema muito grave para a região nortenha e para o País, e entendo, por consequência, dever apontar, ainda que em poucas palavras, a importância que tem e a gravidade que representa a crise que a indústria atravessa.
Tudo o que, portanto, se fizer para a tornar próspera é obra eminentemente nacional e por isso me atrevo a tomar mais tempo a VV. Ex.as e a chamar novamente para ela a atenção do Governo.
Sr. Presidente: se quisermos apresentar em linhas gerais um esquema actual da indústria têxtil algodoeira, poderemos dizer - segundo creio - que ha uma parte ela que se mostra com uma estrutura industrial moderna, ao passo que outra se apresenta com uma estrutura industrial de todo obsoleta.
O Sr. Camilo de Mendonça: - Muito bem!
O Orador:-A primeira é constituída pelas fábricas antigas que se conseguiram adaptar e modernizar a tempo e pelas que foram criadas de novo já depois da última guerra; aquele segundo grupo é o das fábricas que por incapacidade dos seus dirigentes ficaram paralisadas e o daquelas que, por várias razões estranhas à própria vontade dos proprietários, e entre as quais se contam a falta de crédito adequado e um errado e prejudicial condicionamento industrial, foram impedidas de se desenvolverem. Logo se viu que as primeiras unidades, rejuvenescidas e com capacidades muito aumentadas, e sobretudo as unidades novas representavam para a indústria já estabelecida um perigo de morte.
Um perigo de morte, mas também uma injustiça. Quer dizer: em vez de se cumprir a lei e de se estudar uma reorganização do toda a indústria, procurando agrupar as fábricas, dar-lhes dimensão capaz e modernizar-lhes o equipamento fabril e os processos de exploração e de administração, actuou-se como se não existisse a Lei n.º 2005, de fomento e reorganização industrial, e deixou-se que fortes unidades fizessem uma pressão fatal sobre as mais fracas, a ponto de se chegar onde se chegou.
Assim, foi muito aumentada a capacidade de laboração, os custos da indústria passaram a ter extremos inadmissivelmente afastados, ao mesmo tempo que as diferenças de qualidade dos produtos fabricados se acentuavam cada vez mais. De tudo isto, embora não só disto, evidentemente, resultou que cerca de 15 a 20 por cento da capacidade de produção da indústria algodoeira está por utilizar e resulta também que para a indústria viver nas actuais circunstâncias é preciso manter uma exportação igualmente da ordem dos 15 a 20 por cento.
O Sr. Rodrigo de Carvalho: - Muito bem!
O Orador:-Que poderá fazer-se e que se tem feito ultimamente em beneficio e para resolução destes problemas? O Governo mandou, em fins de 1955, princípios de 1956, estudar a reorganização da indústria, nomeando para isso uma comissão.
Perguntei em fins de Março de 1958 qual era o estado desses trabalhos e pedi o envio dos relatórios parciais ou do relatório final, se porventura tivessem sido entregues. Nem uns nem outro foram até agora concluídos, mas fui informado de que, no princípio do mês de Janeiro deste ano, a citada comissão já tinha reunido vinte e sete vezes.
Dada a reconhecida competência dos seus componentes e sobretudo do seu ilustre presidente, vamos ter certamente um trabalho bem feito, útil e de sentido prático; e vamos ter um trabalho, creio-o bem, imediatamente utilizável. Mas é necessário tornar a insistir pela entrega do relatório, porquanto o tempo já não sobra para estudos, antes são urgentes e inadiáveis as resoluções, e ninguém melhor do que o Sr. Ministro da Economia, que é também ilustríssimo Secretário de Estado da Indústria, pode dar garantias de por em prática a reorganização industrial em boa hora incluída no II Plano de Fomento, como aqui tive a honra de pedir.
Em todo o caso, outros problemas há que podem ser imediatamente resolvidos, e julgo alguns em vias de resolução. Referem-se estes não só a problemas de natureza industrial mas também comercial. Assim, aflige a indústria o problema do algodão ultramarino, dos seus preços e da sua qualidade.
Os elementos que o ilustre Deputado Sr. Rodrigo de Carvalho aqui nos trouxe sobre 100000 contos de algodão armazenado no porto de Leixões sem aplicação imediata são de molde a abrir os olhos aos que até agora os têm conservado fechados.
Por outro lado, e ainda quanto ao comércio, é preciso curar não só de certos problemas do mercado interno como ainda da exportação para o ultramar e para o estrangeiro. No ultramar os tecidos portugueses estão a ser batidos por tecidos estranhos, entre os quais japoneses, que, passando por Macau, nos fazem uma concorrência impossível de bater.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Quanto à exportação e quanto a outros problemas de tipo comercial, creio que tudo está a correr de molde a haver esperança de bons e imediatos resultados. Pelo menos os interessados que estão em contacto com a Comissão Reguladora do Comércio de Algodão e com o Sr. Secretário de Estado do Comércio mostram-se contentes e optimistas, e nós estamos igualmente confiantes nas qualidades de decisão do ilustre homem público.
Outro problema se me afigura grave. Uma indústria em crise, e parcialmente em grave crise, não tem organização que a represente; há umas comissões, mas não há organização. E porquê? Diz-se, sem se pedir segredo, que a pequena e média indústria não tem ou não tem tido força para criar uma organização e que certa grande indústria o tem impedido, sobretudo para garantir a sua influência junto do Estado.
Ora, só por intermédio de representação organizada nos moldes possíveis é que esta indústria pode fazer valer os seus legítimos direitos e zelar pelos seus interesses, porque é evidente também que no sector do algodão a indústria precisa de ter uma representação que permanentemente olhe por ela e ajude ao seu progresso.
Peço também a atenção, já aqui solicitada, aliás, para a forma como estão tributadas algumas fábricas. Há queixas de que as que estão para fechar pagam na mesma proporção das que estão prósperas, daquelas que trabalham com vários turnos. Ora isto, a ser assim, vai com certeza corrigir-se a tempo.
Igualmente me permito citar como muito importante o problema das transferências de Angola, mas, a esse propósito, limitar-me-ei a ler parte de uma carta recebida este mês de uma firma do Norte, que mostra, pela modéstia da operação comercial citada, as dificuldades existentes: «... vendemos para Angola, já não falamos em Moçambique, porque isso lá tudo corre- bem, até pá-
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rece que lidamos com o continente. Mas em Angola leva tanto tempo a chegar cá o dinheiro que chegamos à conclusão de que não vale a pena para lá vender. Em 1957 vendemos para um cliente de Vila Luso fazenda na importância de 2.834$, importância esta que o banco vai enviando lentamente, e ainda hoje recebemos 123$70 por conta. O cliente pagou em devido tempo ao banco, mas ainda nos ficaram a dever agora 572$10».
Sr. Presidente: devo ainda chamar a atenção para as repercussões sociais e políticas destes problemas. É claro que os trabalhadores não compreendem que as fábricas nas quais trabalham reduzam os dias ou fechem até e que ao lado outra instalação trabalhe com dois e três turnos.
A questão, do ponto de vista económico, se pode mostrar que a indústria está doente, cabalmente se compreende; do ponto de vista social, porém, é mais difícil de explicar.
Nestes termos, o encerramento de fábricas, o pleno trabalho de outras, a diminuição do número de operários, fatal consequência do encerramento de unidades fabris e da montagem dos teares automáticos, os salários fatalmente baixos de uma indústria em grave crise, o acordo colectivo de trabalho desactualizado, a mistificação do subsídio de parto às operárias, as dificuldades da falsa indústria caseira e mesmo as da indústria domiciliária, com os seus salários de miséria, ...
O Sr. Dias Rosas: - Muito bem!
O Orador: -.... são problemas que afligem os trabalhadores e que tornam as massas operárias - o que é gravíssimo - apropriado caldo de cultura de bacilos ideológicos, que até agora nunca tinham afectado a maior parte das regiões do Norte.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- É indispensável, Sr. Presidente, estudar os problemas do trabalho com coragem, com decisão e com franqueza. Não vale a pena esconder a verdade; dá sempre mau resultado. É melhor explicar aos trabalhadores, na sua maioria esmagadora gente honesta e boa, que enquanto a indústria estiver em crise não podem gozar certas regalias que lhes tinham sido dadas, prometidas ou que ardentemente desejam; é melhor dizer-lho do que continuar a manter essas regalias no papel e faltar-lhes com elas na realidade.
O Sr. Melo Machado: - Muito bem!
O Orador:- Outras questões mais é preciso esclarecer. Os operários prefeririam, por exemplo, que fosse estabelecida, quando possível, a semana inglesa, embora, como é evidente, descontando as horas nos outros dias, e gostariam também que fosse dispensada para as suas mulheres com mais de 35 anos e com filhos a obrigatoriedade da escola primária.
Na verdade, se não aprenderam a ler até esta idade, não me parece justo coagi-las agora. A uma operária que trabalha oito horas, que tem de tratar da roupa e de fazer a comida para si, para o marido e para os filhos, não me parece bem obrigá-la a frequentar a escola; nem sei que calma poderá ter para desperdiçar o tempo - noutras circunstâncias ganhá-lo-ia- que é necessário para aprender a ler, a escrever e a contar.
O Sr. Melo Machado: - Muito bem!
O Orador:- Do mesmo modo pedem o cumprimento da legislação relativa às horas das refeições e a proibição do trabalho das mulheres e crianças de noite, etc.
Outras reivindicações poderiam talvez ser satisfeitas se a indústria estivesse reorganizada.
Mas tudo isto, Sr. Presidente, são problemas que é forçoso agarrar, agarrar rapidamente, com vontade férrea de os resolver.
Sr. Presidente: vou terminar. Antes, porém, quero fazer minhas as brilhantes palavras do nosso colega Sr. Deputado João Rosas relativamente à fatal diminuição do nível de emprego na indústria de que estou a falar e da urgente necessidade de encaminhar para aquelas regiões outras actividades que absorvam os braços desempregados e já habituados a trabalho fabril.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Peço, por isso, o estabelecimento das novas indústrias, sempre que não seja concreta e indiscutivelmente contra-indicado, nos concelhos onde fecharam fábricas e na proporção dos estabelecimentos encerrados.
Sr. Presidente: os pobres mais pobres são os que já tiveram. É aos concelhos onde eles existem que é preciso acudir primeiro, como manda a caridade e a justiça.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Peres Claro: - Sr. Presidente: a presença, há dias, do Sr. Ministro do Interior num serão promovido, no Pavilhão dos Desportos, pela Federação Portuguesa das Colectividades de Cultura e Recreio foi mais um testemunho oficial da consideração que ao Governo merece tão forte baluarte da vida recreativa portuguesa.
De facto, as sociedades de recreio têm desempenhado entre nós, há mais de um século, um papel de notória importância na difusão da cultura entre as chamadas camadas populares. Por isso do seu meio têm surgido alguns dos grandes valores artísticos do nosso país, sobretudo nos campos do teatro e da música.
Mas as modificações por que a sociedade portuguesa tem passado nos últimos cinquenta anos, mercê de solicitações novas do progresso; as concepções modernas da construção civil e da segurança das pessoas; a complexidade crescente da organização social, impondo a adopção de normas de actuação, estas e outras razões servirão de explicação à longa crise que têm atravessado muitas dessas sociedades, agora animadas na frequência da sede pela televisão - justo cavalo de batalha das casas de espectáculos por esse País fora, diga-se em abono da verdade.
Apreciando certos casos, tenho algumas vezes a mim mesmo formulado a pergunta de se não teria já passado o tempo das sociedades de recreio. Tendo apenas como actividade três ou quatro bailes por ano e um aparelho de televisão todas as noites ligado; tendo apenas como resultado de exercícios um déficit permanente, que a bolsa de já poucos carolas vai cobrindo, essas sociedades não estão hoje a desempenhar a sua função específica, tornando-se elementos de certo modo perturbadores, pela insistência com que solicitam subsídios a diversas entidades, espécie de reforma a que se julgam com direito por serviços prestados, esquecidas de que, tendo sido fundadas por vontade dos sócios, naturalmente acabarão quando eles se dispersarem por desinteresse.
Mas, apreciando outros casos de vitalidade associativa em que o espírito de sacrifício sinónimo de dedicação, de fogo interior- atinge expressão infelizmente rara nos tempos de hoje, apreciando programas
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do actividade que abrangem, com resultados concretos, todos os sectores da cultura, não posso deixar de considerar que as sociedades de recreio continuam a desempenhar entre nós função de marcada importância social.
Decerto, considerando, por um lado, a necessidade do estímulo e, por outro, a de galardoar, o Secretariado Nacional da Informação instituiu há pouco prémios pecuniários, no valor total de 54.000$, a atribuir às melhores interpretações teatrais de originais portugueses pelos grupos cénicos amadores das sociedades recreativas, não esquecendo os ensaiadores, cujo trabalho é verdadeiramente exaustivo e apenas interessado no êxito da representação. Bem haja o Secretariado Nacional da Informação por mais esta acção demonstrativa da consideração que o Governo dispensa aos problemas da cultura popular.
As sociedades de recreio têm, porém, problemas seus que gostariam de ver resolvidos e que são já do conhecimento do Governo, através de exposições e pareceres que lhe têm sido dirigidos. São de difícil solução, sem dúvida, até porque colidem com interesses de outrem, e isso terá motivado a demora das soluções desejadas. Creio, contudo, que o seu estudo está a merecer o melhor cuidado da parte do Governo, cioso do bem-estar de todos e por ele responsável. Pelo que têm feito, pelo que prometem, as sociedades de recreio bem o merecem.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Nunes Fernandes: - Sr. Presidente: as oportunas e justas intervenções que o ilustre Deputado Augusto Simões tem feito nesta Assembleia a propósito da actuação da Comissão Reguladora das Moagens de Ramas tiveram o singular resultado de concitar contra os pobres moleiros da minha região a acção fiscalizadora deste organismo.
O. Sr. Augusto Simões: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: - Faz favor.
O Sr. Augusto Simões: - Certamente que as minhas anteriores intervenções vão ficar mais valorizadas com a de V. Ex.ª Simplesmente, há-de V. Ex.ª perdoar que eu não possa aceitar a culpa de se dever a fiscalização dos moleiros da região de V. Ex.ª às minhas palavras. E st modus in rebus.
Suponho, na verdade, que a culpa não pode estar comigo, porque, se V. Ex.ª está bem recordado, sempre tenho pedido que se neutralize a maléfica acção da Comissão Reguladora das Moagens de Ramas.
Ora, se realmente antes das minhas palavras os moleiros da região de
V. Ex.ª não tinham sido incomodados, não quer dizer que por via delas o sejam agora.
O anal vem de não se ter já abolido esse organismo de coordenação, como tanto se impunha e impõe.
O Orador: - Respondo já a Y. Ex.ª Efectivamente, acho tão justa e tão oportuna a intervenção de V. Ex.ª que quando o mal tocou os moleiros da minha terra me lembrei logo de V. Ex.ª como defensor e campeão.
O Sr. Augusto Simões: - Agradeço a V. Ex.ª
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E quando faço aqui referência no termo «singular» quero dizer estranho resultado. Não provocado pelas palavras de V. Ex.ª, mas talvez por um sentimento de irritação da parte da Comissão Reguladora.
O Sr. Augusto Simões: - Precisamente esse sentimento é que quero que fique assente que não se deve a mim. Não quero que os moleiros da região de V. Ex.ª vão supor que foi pelo facto de eu falar aqui que passaram a ser fiscalizados.
O Orador: - O artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 26 695, de 16 de Junho de 1936, que criou a Comissão Reguladora, prevê a sua dissolução quando forem julgadas desnecessárias as suas funções.
O Sr. Pinho Brandão: - Muito bem!
O Orador: - Não sei se em algum tempo foi necessária a existência deste organismo.
Porém, nos tempos correntes, ela não só é desnecessária como inútil.
O Sr. Augusto Simões: - Apoiado.
O Orador: - Quem conhece a vida de miséria que levam os moleiros de centenas de moinhos da minha região, ...
O Sr. Augusto Simões: -De todo o País! .. .
O Orador: - ... laborando ainda por sistemas primitivos, fica confrangido ao saber que eles terão de pagar para um organismo que só conhecem pela forçada cobrança de quotas uma quantia maior do que a que resulta do pagamento da contribuição industrial e da licença do exercício de comércio e indústria.
O Sr. Augusto Simões: - Recorde-se V. Ex.ª de que falei dos destrambelhos tributários deste impossível organismo.
O Orador: - Não exerce essa Comissão qualquer espécie de assistência sobre os seus forçados súbditos, que passam o dia e a noite a conduzir para os seus moinhos o veio de água necessário à sua laboração e a subir e descer as encostas da região, transportando, muitas vezes a dorso, as farinhas provenientes do cereal que o público lhes confia, para ser moído em regime de maquia.
Estatuíra o decreto em referência a maneira de proceder à cobrança das taxas de laboração, que seria feita por meio das execuções fiscais, sistema esse modificado posteriormente.
Acontecia, porém, que a miséria dessa gente era tão grande que os agentes do fisco não encontravam, normalmente, que penhorar, pois os moinhos, por via de regra, não são pertença dos moleiros.
Assim, adoptou-se um critério mais drástico, qual seja o de selar as mós dos moinhos, o mesmo é dizer que selar a boca dos moleiros e família, privados do pão nosso de cada dia, que nem sempre basta para o seu sustento.
Os moleiros da minha região, na sua quase totalidade, têm vivido em paz sem pagamento de qualquer taxa.
O Sr. Augusto Simões: - São felizes, muito mais felizes que os seus companheiros do resto do País, que há muito vêm sendo torturados pelas tremendas exigências desta falada Comissão.
O Orador: - Não sei se a medida agora posta em prática traduz o «arranque do moribundo», e oxalá que assim seja.
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O Sr. Augusto Simões: - Praza a Deus que sim...
O Orador: - Entretanto sei, isso sim, que nestes últimos dias a fiscalização do organismo, dando nota da sua presença, até agora despercebida, se lança ardorosamente sobre os pobres moleiros e os reduz a uma forçada inactividade.
E não era por desrespeito à lei que os moleiros deixavam de pagar as suas taxas; era, sim, pela impossibilidade de pagamento.
Um pequeno exemplo, entre muitos, ilustrará o que se afirma. Os moinhos da região destinam-se agora a moer milho e centeio em regime de maquia, correspondendo esta a 1 kg de farinha por cada 15 kg.
Se trabalhassem em pleno, o que não acontece, a produção da farinha nas vinte e quatro horas não ia além de 8 arrobas por moinho.
Um moinho com dois casais de mós rende 16 arrobas diárias, o que daria para o moleiro 16 kg de farinha, que, ao preço de 2$20 por quilograma, representaria 35$20 de rendimento diário.
Por excesso, calcula-se que trabalhem 200 dias durante o ano, o que daria ao moleiro de rendimento anual 7.040$. Este moleiro para poder laborar tem de pagar 1.200$ de renda do moinho, 528$ de contribuição industrial, 202$ de licença do exercício de comércio e indústria, o que totaliza 1.930$.
Se tiver de pagar para a Comissão Reguladora os 480$ de taxas, o total dos encargos vão a 2.410$. Assim, o moleiro retiraria o saldo de 4.630$, com que teria de prover ao sustento da família e a todas as necessidades a ela inerentes.
Cumpre-nos a nós, representantes da Nação, denunciar os erros de organização e pedir a modificação daquilo que, em boa verdade, se encontra desarticulado e, consequentemente, inútil.
Pela acção negativa que exerce, visto nada produzir de útil e se limitar a carrear para o prestígio do Estado Novo bastantes antipatias, o organismo em referência, se alguma vez foi uma peça de algum valor na máquina económica nacional, deixou agora de prestar qualquer serviço e passou a ser prejudicial debaixo de todos os aspectos, mormente o político.
E, porque assim é, e dado que tanto se tem falado na simplificação dos serviços públicos, será da maior oportunidade extinguir esse organismo, que marcou a sua inutilidade.
Impõe-se, na verdade, a extinção de serviços desta natureza, cuja acção se possa limitar apenas à cobrança de taxas, sem qualquer compensação palpável para os seus subordinados.
E ao pedir a sua extinção faço-o no uso de um dever e no propósito de honrar o Governo da Nação, que necessita de libertar-se de certas organizações parasitárias que, por vezes, prejudicam o alto cunho da moralidade que norteia a acção dos governantes.
Se porventura, em ordem a uma disciplina económica, que neste particular não vislumbro, tivesse de manter-se este organismo, ao menos que se isentem do pagamento de taxas os pobres moleiros destas primitivas instalações que pululam no País, pois não conseguem auferir da sua actividade o mínimo indispensável para viver.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Augusto Simões: - Peço a palavra, Sr. Presidente!
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª pede a palavra para que efeito?
O Sr. Augusto Simões: - É apenas para me associar às palavras do orador que acaba de usar da palavra.
O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra para esse efeito.
O Sr. Augusto Simões: - Sr. Presidente: queria que ficasse também consignado no Diário a minha inteira concordância com as palavras do Sr. Deputado Nunes Fernandes. Elas merecem o meu inteiro aplauso.
Como os Srs. Deputados sabem, correspondem essas palavras à opinião dominante nesta Câmara desde há anos, ou seja a que refere a evidência da inutilidade irrefragável deste organismo de coordenação económica, organismo que, como muito bem disse o Sr. Deputado Manuel Fernandes, traz para o Estado Novo malquerenças com que é preciso acabar.
Deste modo, quero deixar aqui a minha afirmação de que esse organismo deverá ser abolido imediatamente, para bem de todos nós, especialmente para bem dos moleiros não só da região do Sr. Deputado Nunes Fernandes, como ainda dos de todo o País, tão incompreensivelmente flagelados por esta desnecessária e parasita Comissão.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continuam em discussão na generalidade a proposta e projectos de lei de alteração à Constituição Política.
Tem a palavra o Sr. Deputado Cortês Pinto.
O Sr. Cortês Pinto: - Sr. Presidente, permita V. Ex.ª que lhe dirija daqui os meus cumprimentos e o meu reconhecimento pela maneira superior, pela inteligência e simpatia com que vem dirigindo os trabalhos desta Câmara.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: iniciarei as minhas palavras por uma declaração prévia: a de que o faço como Deputado da Nação.
Semelhante esclarecimento poderá parecer supérfluo e compreendo que se possa achar estranhamente redundante pronunciado por quem, como é óbvio, apenas tem o direito de falar nesta Câmara precisamente em virtude da sua qualidade de Deputado à Assembleia Nacional.
Ser Deputado da Nação não implica, porém, ser Deputado de um regime. E tanto pior se a Constituição Política do Estado se particulariza no próprio título, não em Constituição Política da Nação, mas de um sistema de governo.
Feitas estas considerações, que me parecem menos bizantinas do que a outros parecerão, importa agora acrescentar que não me sinto constrangido ao apreciar um diploma que se elaborou de acordo com a situação política do Estado na época em que foi redigido, e que agora é sujeito a revisão. É que mais do que ninguém os monárquicos sabem e sentem que em determinados períodos as conveniências imediatas da Pátria devem sobrepor-se aos interesses que, embora mais perduráveis
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e mais altos, podem ser menos oportunos no momento que passa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E desta atitude encontram eles exemplo na actuação do último rei, banido pela República, quando do próprio exílio consegue, com o peso da sua influência, fazer triunfar para bem da Pátria, em plena guerra, as diligências promovidas pelo regime que o destronara!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Alto exemplo de civismo a meditar por todos os impacientes que pretendem destruir sem saber como reedificar...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ... e que importa pôr em paralelo com aqueles altos expoentes da democracia que, para guerrear uma situação que, afinal, é também republicana, não hesitaram nem hesitam em se dirigir a governos estrangeiros, procurando comprometer os interesses da Pátria para derrubar a situação que a tirou do caos!
E, pois, numa posição de consciente independência sentimental e intelectual que desejaria ver a Constituição Política do Estado com a flexibilidade necessária para se adaptar a todas as circunstâncias que possam ser úteis à sociedade portuguesa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - É para a realização dos seus interesses que compete ao Estado determinar na Constituição, e promover, o engrandecimento material e espiritual da Nação em todos os territórios que a compõem, defendendo a sua integridade e posição entre os outros Estados, na ordem externa, e ocupando-se da sua estruturação social e do seu progresso, tendo em vista o bem-estar material e a elevação espiritual do indivíduo e das populações, na ordem interna.
Para a consecução de todos estes fins de ordem material e espiritual necessita o Estado de garantir a ordem pública e de se firmar no exercício de uma autoridade indiscutível.
Para que esta autoridade seja indiscutível e tenha o direito moral de se impor coercivamente, compete à Nação estabelecer a forma mais natural da legitimidade do poder exercido pelo Chefe do Estado.
E tudo isto visa a lei fundamental; mas nas propostas de emenda agora sujeitas à votação da Assembleia o Governo atende principalmente a este último ponto, que é de facto o mais essencial na orgânica política da Nação.
Alguns acharão demasiadamente restritas, dentro da complexidade da Constituição, as alterações que se propõem. Sem poder contestar que não seja útil aproveitar a oportunidade para realizar outras modificações aconselháveis - e nós próprios as propusemos -, não podemos deixar de compreender que a importância deste ponto é culminante sobre todos os outros. E só teremos a lamentar que o aperfeiçoamento que se propõe não possa, por força do regime, resolver o problema cabal e definitivamente.
É necessário ter-se em vista que nos outros capítulos que respeitam à acção material e espiritual do Estado a obra realizada dentro das normas da Constituição vigente tem mostrado a eficiência das suas disposições. Não porque não haja erros a corrigir ou porque se tenham resolvido cabalmente todos os nossos problemas.
Longe disso. Mas porque no muito que se fez se verificou a suficiência da sua letra e espírito e porque os erros cometidos, com excepção de um - o das eleições presidenciais -, o não foram em obediência à lei constitucional.
E no campo da organização política enunciada logo na designação da lei que se torna flagrante a fatalidade da imperfeição da norma cujas defeituosas consequências agora se pretendem atenuar.
Efectivamente, foi dentro dos seus preceitos que, no respeitante à ordem externa, o estadista cuja obra no campo da política internacional bastava só por si para merecer a gratidão do País inteiro salvaguardou os interesses de Portugal num dos períodos mais difíceis de toda a nossa história.
Maior do que todos os estadistas europeus, soube Salazar servir os interesses da Pátria Portuguesa e do Ocidente, deixando-nos incólumes e livres das tremendas responsabilidades dos que não souberam olhar para além da excitação do momento, conquistando uma vitória fugaz para a oferecerem a um inimigo^ maior e comprometer todo o futuro.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Foi ainda dentro da letra e do espírito da Constituição que perante os acontecimentos da Índia, Portugal deu ao Mundo um alto exemplo de dignidade nacional, resistindo e mantendo aquela parcela da Pátria dentro do corpo da Nação, enquanto outros estados europeus, com superiores condições de resistência, perdiam no Oriente, mais por erro de política do que por impossibilidades materiais de os defenderem, vastos e seculares domínios e zonas de influência por onde se estendia a sua pátria.
Se da política externa passarmos a analisar os serviços prestados à Nação na ordem interna, veremos que no campo material, e no que respeita à gestão financeira e ao fomento económico, tem esta situação política realizado, e agora mais do que nunca, uma obra notabilíssima, que, partindo do caos administrativo que lançara o Nação na ruína, conseguiu atingir uma situação próspera.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não se trata, porém, de uma prosperidade restrita às finanças do Estado. O desenvolvimento económico e financeiro do País tem produzido uma incontestável subida do nível de vida das classes inferiores, que só os indivíduos de má fé ou os jovens, que nem sequer podem supor a anterior situação, serão capazes de negar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - É certo que estamos ainda longe de usufruir a posição económica que deve considerar-se desejável em todas as classes sociais. Não é menos certo, porém, que nos encontramos já em condições flagrantemente superiores às que usufruíamos antes da obra de ressurgimento que o Dr. Oliveira Salazar começou a erguer, dentro do condicionalismo indispensável de uma atmosfera de ordem que só a ditadura militar conseguiria estabelecer e impor para salvar o País.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E os benefícios produzidos pela Situação prolongam-se por todas as actividades administrativas, sociais e da educação nacional, sem esquecer a magnífica política do mar realizada pelo actual Chefe do Es-
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tado, o que tudo vai mostrando que se pode singrar no bom caminho dentro dos preceitos da Constituição que nos vem regendo.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Tendo-se conseguido tão apreciáveis resultados dentro das realidades concretas nos tão diferentes sectores da administração pública, e não sendo os erros existentes, e nesta Assembleia tantas vezes verberados, defeitos atribuíveis à lei constitucional, parecerá que se encontrou dentro da forma vigente a organização útil ao País. Esquece-se simplesmente que ela lhe não assegura a condição sine qua non da estabidade. E que esta falta de garantia é tão grave que, só por si, justificaria a revisão tendente a diminuir-lhe os inconvenientes. Independentemente, porém, dessa consideração primacial, quem não vê que para conseguir os benefícios obtidos houve que se ir buscar à doutrina monárquica o espírito necessário para fazer triunfar a demofilia sobre a democracia e criar a atmosfera possível ao trabalho realizado?
Nestas condições, e mantido na Constituição o aceitamento apriorístico do regime, bem compreensível se torna que o Governo sentisse que apenas existe um óbice à continuidade da sua acção.
Em face da grandeza de tal óbice - avultado mais do que nunca no último período eleitoral pelos distúrbios de uma propaganda democraticamente excitante, em que se exibiram todos os vícios de uma retórica irresponsável, destinada a excitar e desorientar a ambição das multidões apaixonáveis, inscientes e irreflectidas -, o Governo mediu o perigo que resultava para o País daquela periodicidade de agitação, que as disposições eleitorais da actual Constituição garantem. Daí o procurar atenuar os seus inconvenientes.
Ora atenuar pode ser bom. Mas evitar seria bem melhor!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A dificuldade ou, antes, a impossibilidade, está em que tais defeitos são fatalmente inerentes a um regime que por princípio não pode garantir a continuidade e indiscutibilidade do poder do Chefe da Nação. E desde logo se verifica que o óbice se encontra precisamente na impossibilidade de conciliar perfeitamente uma Constituição Política ajustada aos interesses da República com uma Constituição Política ajustável aos interesses do Estado e da Nação.
Sr. Presidente: a obra política torna-se sempre difícil na medida em que a autoridade reflectida e responsável do Estado tem de se defrontar com a psicologia irreflectida, irresponsável e emocional das multidões.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A eterna tensão entre o Estado e a Sociedade (que pela sua própria essência é necessariamente mais particularizadora) provém naturalmente, em parte, das aspirações desordenadas dos que pretendem que o Estado lhes resolva os problemas particulares. Ora estas aspirações nascem muitas vezes da incompetência dos indivíduos que, não sabendo tratar os seus próprios problemas, se julgam democraticamente autorizados a influir com a sua opinião na solução dos problemas do País. Deriva, por outro lado, da obrigação que sobre o Estado incide de coibir as ambições mais ou menos particularistas - ainda que às vezes isoladamente justas - de certos grupos, facções ou classes, tendo em vista as conveniências gerais da Nação.
Estas conveniências nem a própria sociedade está sempre em condições de as poder abordar na sua expressão global, devido ao entrechocar dos interesses das pequenas estruturas e até de aglomerados individuais extemporâneos e não estruturados que a compõem.
Os pequenos ou grandes conflitos, que os interesses antagónicos provocam, envolvem o próprio Estado, que uns e outros pretendem submeter, pondo-o ao serviço das aspirações parciais, quer utilitárias, quer abstractamente ideológicas, dos seus grupos.
Ora semelhantes conflitos, ou a simples tensão social mais ou menos latente, agravam-se singularmente com a obediência, mais ou menos reverenciosa, aos mitos democráticos, à sombra dos quais se desenvolvem e tomam posições todos os agitados e todos os inadaptados. E ao afirmá-lo não me coloco no plano especulativo, mas no plano mais objectivo das realidades científicas.
Dou a palavra ao insuspeito republicano e acatado mestre psiquiatra Prof. Júlio de Matos, que num livro, não de política, mas de psiquiatria para ensino dos alunos da Faculdade, nos ensina - ao tratar da etiologia das doenças psiquiátricas - que o número dos inadaptados que são objecto daquelas clínicas cresce na medida em que as sociedades se democratizam, em virtude das cobiças, aspirações e sonhos gerados em muitos cérebros de estreita capacidade a que a democracia abre caminho.
(Risos).
Sr. Presidente e Srs. Deputados! Não tenho em vista estabelecer aprioristicamente nenhuma espécie de princípios. Não posso, porém, furtar-me a reconhecer um certo número de conclusões experimentais ou científicas e de as aceitar a posteriori. Também depois disto não posso deixar de orientar por elas o meu pensamento, livre de quaisquer preconceitos de um mal compreendido pragmatismo.
Já no período legislativo em que foi revista pela última vez a Constituição Política do Estado tivemos ocasião de dar o nosso aplauso ao modo de ver expresso pelo ilustre leader Dr. Mário de Figueiredo, cuja inteligência e superioridade de espírito tornam grato a cada um de nós o reconhecimento da subida admiração e estima que por ele unanimemente sentimos, e muito me apraz ter a oportunidade de afirmar.
Hoje, tal como então, fazemos nosso o seu parecer de que os Deputados que fazem parte desta Assembleia não estão aqui a representar quaisquer partidos políticos; não estão aqui nem como monárquicos, nem como republicanos.
É certo. Porém, a sua actuação como Deputados nem por isso deixa de ser eminentemente política, e como tal não pode deixar de ser orientada pela formação do próprio espírito, desde que a sua inteligência e a sua cultura encontraram em determinados princípios a expressão do que consideram o problema fundamental de toda a sociologia: o da organização política do Estado.
O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Muito bem!
O Orador: - Até mesmo porque, independentemente da sua função de Deputado, cada homem, porque se destina a viver em sociedade, é, por imperativo do destino, um animal de natureza social e política, para empregar exactamente a expressão aristotélica.
E não se pretenda, como de vez em quando vejo fazer, dissociar o político do social para explicar uma falta de posição nítida no xadrez da vida política. Pretender semelhante dissociação não é definir ideias: é pôr em relevo a falta delas na concepção orgânica do Estado.
O Sr. Carlos Moreira: - Muito bem!
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O Orador: - Como ser político, a inteligência de cada um tem de conceber a vida da sociedade, por um lado, em função dos princípios que definem o seu pensamento e, por outro, dos condicionalismos que podem impor a sobreposição das conveniências de uma actualidade mais ou amenos transitória ao estabelecimento de uma orgânica social preferível, por melhor condizer Com os interesses permanentes da Pátria.
Ë certo que nos encontramos hoje em circunstâncias de verificar que o interesse nacional nos obriga -talvez mais do que nunca - a colaborar, como, aliás, o temos feito sempre, com a situação vigente, para defender a Nação. Entretanto, é caso para perguntarmos a nós próprios se nos intervalos destas crises de incompreensão social de quanto a Nação deve à política dirigida pelo Presidente do Conselho, não houve já oportunidades perdidas de cimentar em melhores alicerces uma estrutura política anais conforme à perenidade dos interesses da Pátria.
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - E se não será contraproducente, perante o alargamento contumaz da propaganda subversiva, manter um silêncio que a ninguém aproveita. Silêncio que ameaça destruir a sensibilidade necessária para discriminar até que ponto, ou partir de que momento, a colaboração útil à Pátria poderá começar a ser-lhe prejudicial, por conduzir ao enfraquecimento da vivência de princípios que, debilitados em prudências ani-quiladoras, acabam por se adulterar em renúncia.
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - E em proveito de quem ? Ao menos da Situação que apoiamos? E caso para reflectir. Não no que respeita à efectividade do nosso apoio, mas à limitação inconveniente da nossa actividade, pondo os olhos no futuro.
Bem sei que a força da tradição é de tal modo instituidora que até os antitradicionalistas procuram aplicá-la à sua antitradição. E, confundindo a simples continuidade com o tradicionalismo, como quem confunde a parte com o todo, procuram cultivar um neotradicionalismo bizarro, que goza da originalidade de não ter base em que se apoie, nem orgânica quê o mantenha. Mantendo um acatamento reverencioso, primeiro ao nome do regime, acabam por se adaptar ao próprio regime que fez da inquietação e da perturbação o clima normal da vida do País, enquanto pela gestão administrativa o conduziu à subversão económica, em que se lhe afogou o prestígio e se comprometeu a própria independência.
Por culpa da desonestidade dos seus mais eminentes político P Não. Quero prestar justiça à honestidade de muitos dos seus homens, que, apesar de honestos, foram vilipendiados pelos seus próprios correligionários em holocausto à democracia que eles criaram e os devorou. A muitos consumiu não só a dignidade, mas ainda a própria vida, acabando simbolicamente por devorar o próprio fundador da República. Como simbolismo nada poderia ser mais barbaramente significativo !
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - A esse estado de agitação sanguinária nos conduzira periodicamente a República nos seus diversos avatares.
Ë fado destes regimes de suprema autoridade electiva o verem-se obrigados a falecer periodicamente para que as pátrias não sucumbam totalmente no precipício a que vão sendo conduzidas ou para que, uma vez salvas, se regresse de novo ao caminho da perdição, voltando a sacrificar a pátria em holocausto à pureza da democracia.
E que, realizada a vivificação que se impôs, logo o egoísmo, o esquecimento dos males pretéritos, por um lado, a leviandade apaixonada e inconsequente, por outro, se aliam à sofreguidão das multidões para destruírem a organização do Estado, que não contém em si o espírito da permanência. E por virtude desta carência a alternativa continua.
O poder da direcção do Estado, comprometido pela desorientação eleitoral que submete a orientação especializada das elites estudiosas à aprovação da massa ignara, necessita de ser restaurado, vivificando-se novamente com a adopção de certas virtudes inerentes às instituições monárquicas. E, dentro desta alternativa sinuosa, a República passa a designar-se com um determinativo numeral ou ordinal.
(Risos).
Já mais do que uma vez foi necessária a decisão da classe militar, cuja formação moral, temperada pelo culto do sacrifício, se torna particularmente sensível aos interesses menos individualistas e mais sagrados da Pátria.
De uma maneira e de outra já vamos na 6." República ! Depois do movimento das espadas que iniciou a 2.º e do regresso à pureza democrática pela sangrenta revolução civil de 14 de Maio, que instituiu a 3.", depois da 4.º, a de Sidónio, também chamada República Nova, e da 5.º, que foi a Nova República Velha (risos), teve a ditadura militar de proclamar a 6.º República ou Estado Novo para salvar a Pátria. E tudo isto no espaço de dezasseis anos! Dezasseis anos que arruinaram o País e só em duas coisas foram fecundos: em revoluções e em governos! Em dezasseis anos quarenta e seis governos.
Depois disto, os agitados inconsequentes, entre os quais se encontram mancomunados extremistas vermelhos com agitados brancos, e mesmo muitos desgostosos bem intencionados, mas insuficientemente esclarecidos sobre a fatalidade inerente a certas instituições, preparam-se, uns para a fazer surgir revolucionàriamente, outros para a acatar em imprevidente expectativa, uma República n.º 7, que se poderá denominar o 3." Novo Estado Velho!
(Risos).
Semelhante estado de coisas não é exclusivo do regime no nosso país. Em França entrou-se já na 5." República para salvar o que resta da França ultramarina, parte da qual foi desportivamente perdida contra relógio (risos) por um estadista muito dinâmico que preferiu prejudicar a pátria a perder um record de velocidade estabelecido briosamente a trinta dias de prazo!
(Risos).
A coisa principiou com o início de novos conceitos das conveniências e da política da pátria, traduzidos, logo depois da vitória, pelo abandono da Síria! De entoo para cá já a Franca abandonou, desde a Indochina a Marrocos e pela África Negra, nada menos de vinte e uma possessões, com 53 milhões de habitantes!
O que os adversários da França não conseguiram levar-lhe em guerras durante séculos fizeram-no os seus políticos em quinze anos de democrática pureza!
Vozes: - Muito bem, muito bem !
O Orador: - Na verdade, o espírito monárquico não se traduz apenas na legitimidade do Chefe do Estado, mas também no sentimento de manter sagrada â inviolabilidade do território pátrio.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
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O Orador: - Este sentimento, que entre os monárquicos é unânime, não o é entre os que o não são. Haja em vista, em contraste com as atitudes da França, por um lado, a atitude do nosso Governo em face da índia e, por outro, o acordo dos adversários da Situação, pretendendo seguir o exemplo f rances de abdica cão e renúncia.
Vozes:-.Muito bem, muito bem!
O Orador: - E que nas autênticas-democracias a pátria perde todo o seu significado. A democracia é essencialmente niveladora e escrava do momento que passa. E, como nivela por baixo e não olha à continuidade, despreza as altitudes e o futuro. A pátria passa assim a considerar-se uma palavra mais ou menos obsoleta, que se vai esvaziando de sentido perante a palavra democracia», cujo idealismo agitante é abstracto para criar, mas veemente para destruir.
O Sr. André Navarro: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Assim é que na França tantos franceses de responsabilidade continuam a trair os interesses da pátria-mãe para se converterem em patriotas árabes, em holocausto à democracia patricida. E ao nosso ponto de vista político o que se nos afigura digno de meditação é que o empenho dos antipatriotas visa, afinal, apenas com diferença de sítios, resultados absolutamente iguais aos dos bons políticos do seu regime.
Também entre nós políticos de responsabilidade, cegos pela paixão, têm apelado para o estrangeiro, em atitudes de hostilidade u Situação, sem atender a se com elas comprometem os interesses da sua pátria. E até já surgiu um jornalista execrando mascarado de patriota selvícola (risos) incitando os habitantes das nossas províncias africanas a sacrificar a Pátria eterna para lhe satisfazer as ambições de triste e hediondo mortal.
(Risos).
Bem sabemos que a honestidade não é exclusivo de nenhum sector político e que entre os democratas convictos se encontram pessoas que nos merecem a mais alta consideração e respeito. Não deixa, porém, de ser digna de reparo a circunstância de ser sempre do mesmo sector, embora mais ou menos avançado, que provêm estes tristes exemplos.
E contra esta fatalidade lutam ingloriamente republicanos honestos e idealistas, que procuram uma situação de compromisso (por isso mesmo fatalmente comprometida e instável) entre idealismos condenados a manterem-se eternamente no campo teórico e um humanismo preconceitual concebido pela razão, mas continuamente desmentido pela lição dos factos.
Comparemos estas instabilidades periodicamente revolucionárias, particulares aos sistemas electivos, de que esta Assembleia se está ocupando, com a vida tranquila das sociedades que não têm que escolher. Comparemo-las em cada nação, consigo mesma no decorrer da História, e entre os diversas nações entre si nos últimos períodos da actualidade. E reparemos em que se não tire nenhuma lição dos factos, permanecendo à espera de que as soluções baseadas em racionalismos teóricos triunfem das fatalidades que lhes são intrínsecas.
A fatalidade de certos regimes está em que na realidade se encontram estabelecidos sobre um plano inclinado. E que não existe uma linha horizontal a ligar os conceitos políticos diametralmente opostos, e todas as situações - que pretendam estabelecer-se em posições intermédias hão de forçosamente resvalar do equilíbrio instável em que se encontram. E ou tenderão para se fixar numa estabilidade orgânica de base cristã, ou para se subverterem no abismo onde as utopias generosas se afogam em sangue e os mentores chamam depuração ao "assassínio dos próprios correligionários que lhes fazem sombra.
Quantos se encontram ainda presos ao prestígio romântico das palavras! Aqueles que não mantêm superstições dentro das próprias crenças é lhes indiferente a palavra república», que no seu polimorfismo serve paru tudo (até para confundir democracia com autocracia comunista) e tem, aliás, na tradição portuguesa um significado tal que os próprios reis se consideravam seus servidores.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E faziam-no em boa verdade, porque mais do que ninguém, pela garantia de uma unidade de soberania, eles estavam em condições de servir a rés publica sobre os interesses dos partidos, considerando a Nação como património comum de todos os portugueses, e que, por isso, não é pertença nem de monárquicos nem de republicanos.
E se a Situação merece desinteressado apoio e os monárquicos lho têm dado é porque eles nada têm a temer de qualquer sujeição aos interesses da Pátria, porque onde estiverem os interesses da Pátria está implícito o triunfo dos seus princípios.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E se é certo que o tempo não pode estar fora das suas ansiedades; não os interessa a satisfação precipitada dos seus ideais. Não está nos seus princípios n conquista da ordem pela desordem, mas sim a vitória das consciências esclarecidas de um escol que põe acima do momento que passa os interesses perpétuos da Nação.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Porém, repetimos: que o sacrifício transitório que entendem dever fazer não possa confundir--se com abdicação e passividade permanente! Ao verificar, como já afirmámos, que mais uma vez se impõe a colaboração leal e desinteressada que os monárquicos têm prestado à Situação desde o primeiro momento, não podemos deixar de considerar quanto esta se tem mantido, em prejuízo da sua própria obra, no apegamento estéril ao prestígio ecolálico de uma palavra, que tão insuperáveis, dificuldades constantemente impõe à continuidade da obra realizada. Palavra definidora de um sistema onde tudo ameaça incerteza e instabilidade, e que tem como condição de permanência o queimar-se periodicamente, para ressurgir das próprias cinzas revolucionárias, como uma fénix representativa da persistência totémica de um feiticismo tribal.
O apoio reflectido que, apesar de todas as discordâncias com numerosos factos (alguns dos quais se pretenderam, modificar no projecto de lei n.º 23 e em outros), tem sido conscientemente e desinteressadamente prestado na defesa de uma situação que vem garantindo a ordem necessária u prosperidade da Nação em nada se valoriza com uma atitude de renúncia e conformismo que falsamente possa interpretar-se como definitivamente acomodatícia.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Pois não será mais útil sei-mos decididos e activos, tanto no apoio ao que reputamos transitoriamente necessário, como na afirmação dos princípios capazes de garantir para além do transitório o
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estabelecimento de instituições capazes de dar estabilidade à vida social?
A quem aproveita uma atitude definitiva de absoluta passividade?
Enquanto uns de boa fé, outro» de má fé, 'propagam o erro com tanta pertinácia, pergunto a mim mesmo que valor pode trazer ao triunfo da verdade e à Pátria que todos servimos o recalque da nossa fé; o encobrimento da luz debaixo do alqueire; o assistirmos ingloriamente à queima silenciosa por um lume (que só não se extingue porque se alimenta de verdades eternas) de todos os ímpetos sufocados, dos princípios que se sobrepõem aos idealismos primários, aos instintos egocêntricos, às ambições insaciáveis que arrastam as multidões irreflectidas e cegas?
Teme-se a inconveniência de levantar ondas? Mas só os cegos não vêem que as ondas estão mesmo levantadas e revoltas. No maelstron da confusão e 3os ódios todos têm a ganhar em que se apontem aos transviados, ingenuamente arrastados na vertigem, o caminho da estabilidade e da salvação.
O Sr. Carlos Lima: -V. Ex.º dá-me licença?
O Orador: -Com todo o gosto.
O Sr. Carlos Lima: - Tenho estado a fazer um certo esforço para acompanhar a orientação do discurso de V. Ex.º Gostaria que me dissesse concretamente qual é o caminho que aponta como caminho da estabilidade. Claro que já interpretei em certos termos a posição de V. Ex.11 Mas já1 que V. Ex.º encaminhou as coisas em certo sentido, há que pô-las claramente. Por isso gostaria que V. Ex.º concretizasse qual é o caminho da estabilidade dentro da tese- que tem estado a defender. .
O Orador: - A tese é a tese monárquica e nas palavras que acabo de proferir* está implícito o resto da resposta.
O Sr. Carlos Lima: - Mas pergunto: ao abrigo de que disposições tem V. Ex.º orientado a intervenção no sentido em que o tem feito? Ao abrigo do Regimento e da Constituição? Não. Para mim o problema republicano ou monárquico está em determinada medida ultrapassado. Claro que, se me derem a escolher entre uma república soviética e uma monarquia inglesa, não tenho que hesitar: vou para a monarquia inglesa. Mas pergunto a V. Ex.º como é que, a propósito de uma proposta que não põe essa questão, V. Ex.º toma a orientação que tem estado a seguir. Julgo que o problema que está posto não compor-ta o desvio em que se traduz a intervenção de V. Ex.º, concebida em termos incisivos.
O Orador: - É de facto uma orientação incisiva V. Ex.º aplicou muito bem o termo. O a-propósito das minhas palavras é a forma de eleger a chefia do Estado. E a propósito desta matéria que se borda toda uma série de considerações relacionadas com a eleição desta chefia.
O Sr. Carlos Lima: -O Sr. Prof. Mário de Figueiredo pôs o problema aqui há dias com clareza, dizendo que há um primeiro problema que está entre nós resolvido no sentido de que o Estado Português é uma república. O problema que se discute agora é só o de saber em que termos se deve proceder à eleição do Chefe do Estado de uma república, e mais nada. •
O Sr. Carlos Moreira: - Não apoiado!
O Sr. Carlos Lima: - Se V. Ex.º me dá licença, eu direi ainda que em certo sentido as afirmações de V. Ex.º têm um carácter não só anti-regimental mas até anti-constitucional.
O Sr. Carlos Moreira: - Quer V. Ex.º dizer que é subversivo?
O Sr. Carlos Lima: - A questão a mim não me preocupa, mas choca-me que, a propósito deste debate, se vá levantar a questão que o orador levantou e que eu, além do mais, considero inoportuna.
O Orador: - Registo que Y. Ex.º ficou chocado com as minhas palavras. Creio que não vale a pena perder tempo a repetir o que já disse.
O Sr. Carlos Lima: - Entendo que vale a pena e, já agora, acrescentarei que lamento ter V. Ex.ª saído do âmbito traçado ao debate pela proposta de lei, V. Ex.ª tenha posto um problema cujo interesse é relativo e que, de qualquer modo me parece inoportuno , por várias razões.
O Sr. Cancella de Abreu: - Não apoiado!
O Sr. Carlos Moreira: - Em consideração das palavras que acaba de proferir o Sr. Deputado Carlos Lima eu farei, se. me permitem, uma afirmação: o estado actual é apenas o de um regime em evolução, que assenta fundamentalmente no prestígio de um grande homem público.
Ora eu pergunto se realmente, em face disso, é ou não motivo de preocupação que nos conduza, por conseguinte, a levantar-se o problema; a não ser que o Sr. Deputado Carlos Lima queira significar que ele não pode ser abordado.
O Sr. Carlos Lima: - Neste momento sou apenas muito respeitador das leis e principalmente da lei constitucional. Há um debate que está delimitado em certos termos. No plano jurídico é que o mesmo deve ser discutido. No entanto, Y. Ex.º desloca a questão.
O Sr. Carlos Moreira: - V. Ex.º labora, salvo o devido respeito, num grande erro: confunde uma afirmação doutrinária com uma proposta de alteração constitucional. O Sr. Deputado Cortês Pinto está a fazer considerações sugeridas pela proposta do Governo na parte que respeita às alterações ao artigo 72.º Está, pois, dentro do Regimento.,
O Sr. Paulo Cancella de Abreu: -O artigo 72.º é submetido ao voto da Assembleia e é tão fundamental como o artigo 5.º
O Orador: - Eu creio que já estão expressas as opiniões do Sr. Deputado Carlos Lima e nada mais teria a responder que não fosse a repetição do que já está dito. Por isso, vou continuar.
Porque havemos nós outros de considerar inoportuna a afirmação da nossa doutrina, firmada na ciência sociológica, no conhecimento do desvario romântico de Rousseau (tardiamente reconhecido por Napoleão, quando exclamava: Melhor fora para a Europa e para o Mundo que nem eu nem Rousseau tivéssemos nascido!»), deduzida do conhecimento das realidades humanas e da experiência negativa e positiva que nos fornece o passado e o presente, porque havemos ,nós outros, repito, de considerar inoportuna a afirmação dos nossos princípios quando verificamos a continuidade e insistência com
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que os outros - esses sim! - vão proclamando e propagando os seus?
Contrariamente ao que alguns porventura poderão pensar, julgo que o maior apoio que podemos dar à Situação consiste em o fazer manifestando a plena consciência dos nossos deveres, a reserva das nossas convicções mais profundas, e anunciando do alto desta tribuna, como d& toda a parte, que há outra solução, longe da revolta e dos seus ódios, para os insatisfeitos de boa fé; outros ideais para os preocupados pela solução definitiva dos problemas de ordem social.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Apoiemos o presente, mas preparemos o futuro.
E que do lado oposto ao estatismo despótico subjacente à democracia, para cujos caminhos, embora compelidos por uma generosidade impulsiva, se vão deixando capciosamente conduzir alguns insatisfeitos, existe, como regime definitivo, outra instituição em que o poder supremo não é ferozmente executivo, mas antes essencialmente moderador; em que a autoridade é a expressão transcendente da liberdade; e em que o político e o social se podem conciliar, em vez de fatalmente se oporem numa tentativa de mútua absorção.
Essa instituição de Estado, que a tradição consagra, os sistemas adversos mais a consagram ainda. Nela n autoridade e a humanidade consubstanciam-se e transmitem-se geneticamente, como uma alma que se encarna num corpo. E, por virtude desta encarnação e transmissão 'genética, contém, em si, a continuidade, a estabilidade e a indiscutibilidade do princípio mais vital para a existência da Pátria.
Só essa orgânica poderá garantir definitivamente uma estrutura de comando em que à autoridade instável dos governos saídos das umas se sobrepõe' a autoridade de uma soberania que é permanente por sua própria natureza, por isso intrinsecamente independente, e não sujeita ao fluxo e refluxo das lutas partidárias, que pretendem, não o equilíbrio social, mas antes o predomínio das facções e das classes.
Eleição pelas umas! Eleição pelas umas!
Enquanto a autoridade dinástica provém da própria lei da vida, aquela que se lhe opõe há-de sair das umas! Fatídico nome que, marcando a brevidade da função, parece impor-lhe a curto prazo o selo da morte!
Sr. Presidente! Srs. Deputados!
O douto parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de lei n.º 18, ao reconhecer os inconvenientes de envolver a eleição do Chefe do Estado muna luta de facções e dissídios ideológicos, proclama que tal entidade deve ser indiscutível e indiscutida. E bem se vê no estudo e comentário circunstanciado das variadas formas existentes nas diversas repúblicas do Mundo o embaraço em que se encontra para aconselhar um processo eleitoral que preserve a Pátria dos malefícios naturais da própria eleição.
Trabalho ingrato em boa verdade, pois aquilo que se pretende é defender o regime. Da quê? Do seu próprio espírito ! Ë manter-lhe os princípios, mas defendendo-os de quem? Dos próprios princípios! E organizar afinal um modus vivendo entre o sim e o não.
Se, porém, se torna difícil proclamar na Constituição da República Portuguesa a forma de eleição do seu Presidente, uma autoridade existe, superior à do Chefe do Estado, seja ele Bei da Nação ou Presidente da República, de que, por lapso grave, se não faz menção, nem de existência nem de acatamento na nossa Constituição Política. Refiro-me àquela autoridade que deve ser a suprema em todas as nações - a de Deus.
E se tal facto pode admitir-se como um lapso, torna-se, a meu ver, inadmissível como propósito!
Salvo o respeito devido aos doutos subscritores, afigura-se-me estranhamente incongruente o parecer da digna Câmara Corporativa ao tentar explicar esse propósito, invocando, por um lado, a circunstância de o Estado não ter religião própria e de muitos portugueses professarem credos religiosos diferentes, receando assim que tal invocação possa trazer complicações políticas, e aduzindo, por outro lado, que a Constituição considera já expressis verbis a religião católica como religião da Nação Portuguesa» e que são e particularmente de recordar a este respeito preceitos como os dos seus artigos 4.º, 6.º, 43.º, § 3.º, 45.º e 140.º».
Vozes: - Muito bem, muito bem I
O Orador: - Mas, sendo assim expressas tais afirmações de catolicismo e sem que tal tivesse levantado complicações políticas, porque as teme agora o parecer em face da simples invocação do nome de Deus?
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Religiões diferentes se professam, aliás, em todas as nações do Mundo e nem por isso muitas constituições deixam de fazer a invocação do seu nome e até muitos países de se consagrarem a Jesus e à Mãe de Deus. Ainda recentemente, em 1955, o Brasil, onde existem importantíssimos núcleos de religiões tão diferentes, se consagrou oficialmente ao Coração de Jesus pela boca do Chefe do Estado, ministros, magistratura e todas as supremas autoridades da Nação, sem que tal facto lhe trouxesse quaisquer complicações.
De resto, a invocação do nome de Deus não pode verdadeiramente chocar os adeptos de qualquer religião, pois tanto cristãos como não cristãos veneram o seu nome e Espírito Divino. Só uma espécie de gentes se poderia chocar. Esses, porém, não seriam os que adoram deuses diferentes, ou mesmo os simples ateus, mas apenas os que os odeiam a todos.
Da parte desses, porém, já aã complicações políticas estão garantidas com a aceitação ou não aceitação do artigo 1." do projecto de lei n.º 23. Esses são os inimigos natos de todas as situações de ordem e de moral.
A invocação de Deus poderá considerar-se, pois, como redundância -como o parecer parece indicar ao referir que a Constituição vigente está impregnada da concepção católica - ou como insignificativa, por se não traduzir em normas concretas, como o mesmo parecer perfilha no n.º 2.º do aartigo 1.º da sua apreciação
Julgo, porém, que seria excessivo, e mesmo impossível e até impróprio,, pretender que na lei constitucional ficassem definidas em pormenor todas as disposições legislativas capazes de responder às necessidade presentes e futuras da Pátria.
Em muitos capítulos à Constituição competirá mais traçar as linhas de rumo e os preceitos gerais do que as minudências, cuja concretização é mais conforme a leis especiais.
Porém, tendo em vista todas as deficiências possíveis, alguma coisa por isso mesmo deverá enunciar-se como norma suprema, capaz de suprir em tudo quanto seja
ou venha a manifestar-se omisso, orientando as leis e os seus intérpretes no mais alto sentido da suprema justiça, da suprema moral, da suprema ordem: esse enunciado é o do nome de Deus, de cuja essência espiritual procede tudo quanto nona Constituição possa ter de bom e tudo quanto de bom poderá inspirar a orientação do Estado ao rectificar os pormenores imperfeitos ou ao introduzir as disposições omissas.
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Eis porque me parece que numa revisão da lei que tem como principal objectivo que respeita à eleição da suprema autoridade da Nação se torna imprescindível começar por reconhecer e eleger acima de tudo o nome de Quem é fonte de soberania de todas as autoridades do universo.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. Amanha haverá sessão, com a mesma ordem do dia da de hoje. Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas.
Srs. Deputados quê faltaram à sessão:
Adriano Duarte Silva. Alberto Cruz.
Alberto Henrique» de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge .
Antão Santos da Cunha.
Artur Máximo Saraiva de Aguilar.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Francisco José Vasques Tenreiro.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Maria Porto.
José dos Santos Bessa.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
Laurénio Cota Morais dos Beis.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel José Archer Homem de Melo.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
O REDACTOR - Luís de Avilles.
Exposição a que o Sr. Presidente se referiu no decorrer da sessão:
Exº. Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Na sessão n.º 108 de 13 do corrente da Assembleia Nacional da digna presidência de V. Ex.ª fez o Ex.mº Sr. Deputado Engenheiro Amaral Neto várias considerações sobre a situação da lavoura nacional por falta de adquirentes das lãs da sua produção.
Referiu-se o Ex.mº Sr. Deputado à actuação dos comerciantes de lãs.
Na qualidade de presidente do Grémio que representa esta actividade, e depois de reunida a sua direcção, venho procurar esclarecer S. Ex.a, agradecendo que também, para conhecimento da digna Assembleia Nacional, V. Ex.º se digne mandar publicar a, presente no Diário das Sessões.
Disse o Ex.mº Sr. Deputado Engenheiro Amaral Neto: .«Estamos em pleno período de vendas de lã, segundo os calendários normais, pois as tosquias já se iniciaram há semanas, e os compradores, pelo costume, já deveriam rondar solícitos as portas dos lavradores; mas, com desapontamento destes, é escasso o interesse e são em pequena escala as vendas.
Já se previa que o preço baixasse relativamente aos anos anteriores; mão só esta parece ser a triste sina dos géneros agrícolas, como acontece que as cotações da lã, extremamente volúveis no mercado internacional, vinham desde há um ano baixando acentuadamente, embora com reanimação apreciável nos últimos meses. E as cotações. internacionais da lã influem imediata e directamente nas nossas nacionais, sobretudo quando descem ...».
E, mais adiante, também diz que: não me compete discutir os razões dos comerciantes ...>.
Em nome dos comerciantes devo informar do seguinte:
1.º Os comerciantes ou negociantes de lãs adquirem as lãs (nacionais, para as venderem à indústria, depois de transformadas de sua conta e, na sua quase totalidade, em lavados ou penteados.
2.º Também alguns comerciantes as exportam ou procuram exportar nesses estados de apresentação.
3.º Adquirem as lãs antes dos leilões efectuados pelos grémios da lavoura aos produtores que desejam antecipar a realização de fundos e nos leilões aqueles que desejara vendê-las por este meio.
4.º As diligências que habitualmente fazem junto da lavoura estão este ano retardadas por as tosquias terem sido atrasadas em consequência do mau estado do tempo, frio e chuvoso, logo pouco propício às tosquias.
5.º Quanto os aquisições em leilões, os comerciantes aguardam a fixação das datas pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários, em colaboração com os grémios da lavoura, mas deve-se assinalar que estes organismos só a fazem habitualmente para os meses de Junho a Agosto
6." No entanto, as diligências feitas por alguns comerciantes junto dos lavradores que têm já tosquiados os seus rebanhos têm dado resultados pouco animadores, visto os seus possuidores não saberem que preço hão de pedir este ano em face da baixa dos mercados internacionais e outros pretenderem o mesmo preço do ano passado, impraticável pelas várias razões a seguir indicadas:
a) O comércio tem, para fixar o seu preço, de se orientar sobre vários elementos;
b) O estado da lã quanto a limpeza, resistência, comprimento e cor;
c) O preço das lãs equivalentes nos mercados internacionais.
7.º Ora as lãs nacionais apresentam-se este ano, de um modo geral, mais curtas e menos resistentes, em virtude da falta de pastos verificados no período do seu maior crescimento, ainda que mais brancas e limpas, pelas asa chuvas dos últimos dois meses.
Os preços internacionais baixaram considerávelmente desde as vendas do ano passado até ao fim do ano.
As últimas altas verificadas resultam de estarem quase terminadas as vendas da África Do Sul e da Austrália, grandes produtores mundiais desta matéria - prima, o que consequentemente, faz valorizar os saldos existentes.
Dado que a indústria adquiriu matérias- primas estrangeiras a preços mais convenientes que aquele que se pretende para as lãs nacionais, e que não se sabendo que se pretende para as lãs nacionais, e não se sabendo se as últimas cotações das lãs estrangeiras se vão manter ,não pode o comércio estabelecer préviamente, sem grave risco, o preço de aquisição para a produção nacional;
8º Contráriamente ao que acontece nos países grandes produtores de lãs, em que as vendas se realizam práticamente em oito a nove meses, as lãs nacionais são
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vendidas em quatro meses, para serem satisfeitos os desejos da lavoura, e praticamente adquiridas ao mesmo preço nesse lapso de tempo, que depende mais do seu valor intrínseco do que do resultante da sua procura pela indústria;
9.º A lã nacional é praticamente absorvida, na sua totalidade, pela indústria nacional, visto que a sua exportação é onerada por encargos fiscais, aduaneiros e outros e depende da relatividade do seu preço cora o das lãs estrangeiras;
10.º Como o próprio Ex.º Sr. Deputado reconhece, aos compradores costumam rondar solícitos a porta dos lavradores». Logo, se o não têm feito este ano, algumas razões existem, e são aquelas a que acima me refiro.
11.º É preciso não esquecer que é o comércio de lãs o grande auxiliar da lavoura.
Com efeito, se a produção lanar já foi avaliada em 246 000 contos, segundo diz S. Ex.º, e a warrantagem sobre as lãs prestada, pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários anda à volta de uma dúzia de milhares de contos, são os comerciantes que suprem a diferença.
12.º Não pode o comércio de lãs adquirir uma matéria-prima a preços superiores à estrangeira e impor o seu consumo à indústria nem se pode impedir esta de fazer a aquisição da matéria-prima de que necessitar aos melhores preços.
13.º Que a lavoura procure o financiamento que diz necessitar achamos justo, mas ele será dispensável se os preços pretendidos forem os reais, e não artificiais, pois o comércio adquire normalmente as lãs antes e durante os leilões.
14.º Não deve ser esquecido que a economia europeia tende para uma grande modificação e que as indústrias nacionais só poderão concorrer obtendo matérias-primas u preços idênticos aos pagos pelos outros países u que há mais interesse em explorar produtos acabados do que matérias-primas.
15.º As importações a que se refere S. Ex.ª resultaram certamente das necessidades crescentes da indústria e principalmente do facto de as lãs estrangeiras serem nessa ocasião mais baratas do que as nacionais.
16.º O comércio tem a consciência de ter cumprido o seu dever no âmbito dos interesses da economia nacional, mas não pode por si só resolver problemas partindo de enunciados errados.
Apresentando a V. Ex. os meus cumprimentos, subscrevo-me a bem da Nação.
Lisboa, 23 de Maio de 1959. - Grémio Nacional dos Comerciantes de Lãs, o Presidente da Comissão Directiva, Carlos Farinha.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA