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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 120

ANO OE 1959 15 DE JUNHO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VII LEGISLATURA

(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)

SESSÃO N.º 120, EM 12 DE JUNHO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 10 horas e 35 minutou.

Ordem do dia. - Continuou a discussão na generalidade da proposta e projectos de lei do alteração à Constituição Política.
Usaram da palavra os Srs. Deputados José Saraiva, Manuel Nunes Fernandes e Castilho de Noronha.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 12 horas o 45 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 10 horas e 25 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Afonso Augusto Pinto.

Agnelo Ornelas do Rego.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Aires Fernandes Martins.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto da Bocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Finto dos Beis Júnior.
Américo Cortês Pinto.
Américo da Costa Ramalho.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calapez Gomes Garcia.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Cortês Lobão.
António Jorge Ferreira.
António Maria Vasconcelos de Morais Sarmento.
António Pereira de Meireles Bocha Lacerda.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Máximo Saraiva de Aguilar.
Artur Proença Duarte.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Avelino Teixeira da Mota.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Coelho.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando António Muñoz de Oliveira.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Augusto Dias Rosas.
João Augusto Marchante.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
João Mendes da Costa Amaral.

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Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Pereira Jardim.
José Fernando "Nunes Barata.
José de Freitas Soares.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gonçalves de Araújo Novo.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Hermínio Saraiva.
José Manuel da Costa.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Rodrigo Carvalho.
José Rodrigues da Silva Mendes.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Laurénio Cota Morais dos Reis.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Tavares Neto Sequeira de Medeiros.
Manuel Colaras Pereira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Angelo Morais de Oliveira.
Mário de Figueiredo.
Martinho da Costa Lopes.
Paulo Cancella de Abreu.
Ramiro Machado Valadão.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Amaro Salgueiro dos Santos Galo.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 86 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 10 horas e 35 minutos.

O Sr. Presidente:- Vai entrar-se na

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continuam em discussão, na generalidade, a proposta e os projectos de lei de alteração à Constituição Política.
Tem a palavra, para concluir a sua intervenção, o Sr. Deputado José Saraiva.

O Sr. José Saraiva: - Sr. Presidente: tinha ontem concluído as minhas considerações por afirmar que, entre dois sistemas de eleições - e universal e restrito -, o primeiro era o que estaria de acordo com a posição primacial do Chefe do Estado, dentro do conjunto das nossas instituições políticas.
Foi uma afirmação que, por falta de tempo, não demonstrei, e passo, se mo consentem, a demonstrá-la.
Tenho, pois, como assente que, dos dois sistemas de eleição - o universal e directo e o restritíssimo que acabaria por resultar da proposta -, o primeiro seria, em princípio, o que estaria de acordo com a posição fundamental e activa que na nossa Constituição se marca ao Chefe do Estudo. Foi, aliás, por assim se ter entendido que se adoptou inicialmente aquela solução.
A eleição restrita, feita praticamente no seio das Câmaras, seria a indicada para um Presidente de função apenas simbólica e moderadora: o Presidente que, adaptando uma conhecida fórmula, preside, mas não decide.
A Constituição Portuguesa repele essa concepção, que é a característica dos governos parlamentares. Em 1935 dizia, a tal respeito, o Sr. Presidente do Conselho: «Desviou-se a nossa Constituição do tipo corrente das Constituições europeias do século XIX, em que o Chefe do Estado aparentemente era tudo e realmente não era nada, a não ser a figura decorativa das solenidades oficiais e o sancionador de deliberações de actos de que não tinha a iniciativa nem o comando ... A um Presidente decorativo e inerte a Constituição substituiu o verdadeiro Chefe do Estado, guia activo da Nação, responsável pelos seus destinos».
É difícil pensar que, alterado tão completamente o próprio acto de origem do poder presidencial, a alteração se não traduza em enfraquecimento do seu grau de autoridade e prestígio. E a primeira prova de que essa repercussão se vai dar leio-a já no parecer da Câmara Corporativa, que, para justificar o novo sistema de eleição, nos descreve o Chefe do Estado como suma entidade indiscutida e indiscutível, grandeza neutral, moderadora e apartidária, espécie de pouvoir neutre, de que falava Benjamin Constant. Benjamin Constant é, como se sabe, um dos mestres do parlamentarismo liberal e foi na sua doutrina que se fundaram em boa parte aquelas mesmas Constituições do século XIX que a nossa concepção presidencialista superou.
Há, manifestamente, um abismo de distância entre um Presidente que seja apenas uma «grandeza neutra e moderadora» e o «guia activo da Nação», que «traça,
com toda a independência, à vida do Estado as grandes directrizes». No parecer não se expõem os motivos de doutrina ou as considerações de oportunidade política que levaram a uma tão radical mudança de ideias sobre a posição presidencial. Parece-nos que tudo conduziria a uma solução contrária; até ao presente, o Chefe do Estado poderia ter sido neutro ou simbólico, sem que daí adviessem prejuízos efectivos para a vida da Nação: nós estávamos e estamos tranquilos sobre esse ponto. As apreensões são sobre o futuro; um futuro que desejamos distante, mas que não está na nossa mão. E é para o futuro que estamos a rever a Constituição.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O condicionalismo concreto da política portuguesa não explica, portanto, que precisamente agora se reduza o Chefe do Estado a uma grandeza neutra. Só vejo, pois, para essa doutrina uma explicação, que vem reforçar a minha tese: a de que os próprios autores do parecer sentiram que, na verdade, com uma base de eleição tão restrita como se propõe, o Chefe do Estado não poderia ser mais do que isso.
Poderia dizer-se que o artigo 81.º da Constituição não é alterado e que, portanto, a competência do Presidente da República fica intacta. Eu penso que seria confiar muito na força dos preceitos: não basta que a lei dê um poder; ela tem também de criar as condições de autoridade e prestígio que tornam possível o seu exercício efectivo; daí vem a força que é a seiva do poder, e sem a qual o preceito pode transformar-se em letra morta.
Uma outra dificuldade a referir é a de que a supressão do sufrágio universal e a manutenção de um poder dominante que nele se baseava vem introduzir na

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nossa teoria constitucional contradições, dificuldades teóricas, e, mima palavra, ferir o nosso principal estatuto político de um hibridismo perturbador, que o priva completamente de harmonia lógica e de equilíbrio doutrinal.
As Constituições dos países do Ocidente dividem-se em duas correntes: a do parlamentarismo e a do presidencialismo. À primeira é a que predomina nos estados da Europa; a segunda a que caracteriza a maioria das Constituições americanas. O critério da distinção está, precisamente, em ser o Chefe do Executivo eleito em sufrágio universal pela Nação, e portanto completamente independente das instituições parlamentares, ou em ser designado por estas mesmas instituições, as quais, por isso mesmo, se consideram como o primeiro órgão da soberania. A Constituição Portuguesa de 1911 foi para a segunda solução, e fez-se a experiência, que, a revelou inadaptada às condições próprias do nosso país. A Constituição de 1933 preferiu a primeira, cujos méritos - também há que o acentuar - ainda não foram submetidos à prova da experiência, por durante todo o período da sua vigência se ter verificado uma paz política que se não explica apenas pelo mérito as instituições.
Ir-se-ia agora para uma solução inteiramente diferente; porque, e esse respeito, a emenda proposta representa mais que um aperfeiçoamento resultante de um desajustamento dos tempos às leis; é, de facto, uma modificação profunda no próprio sistema do nosso direito constitucional..
De acordo com a proposta, o nosso regime, sob o ponto de vista da origem dos mandatos, teria de ser classificado como parlamentarista, visto que a representação nacional ficaria como o único órgão directamente eleito pela Nação e como eleitora, ainda que parcial, do Chefe do Estado; sob o ponto de vista das funções, permaneceria a classificação anterior, que é a do presidencialismo, visto que o Chefe do Governo é escolhido pelo Presidente da República, independentemente de qualquer intervenção do Parlamento, nem mesmo para ratificar.
A falta de coerência doutrinal salta aos olhos; e as apreensões dos que vêem na reforma do artigo 72.º da Constituição uma indicação no sentido de um futuro regresso ao parlamentarismo não me parecera falhas nem de lógica nem de previsão política; encaradas as questões de frente, é forçoso reconhecer que, quando no conjunto dos órgãos da soberania apenas um fosse designado por sufrágio universal e directo, e todos os outros por modos indirectos, esse apareceria sempre como o primeiro órgão do Estado. E uma primazia que se impõe dentro da construção dogmática; mas toda a teoria tende a converter-se em prática, ficando, portanto, aberto o caminho para o regresso a um parlamentarismo, que já deu provas e que, certamente, não interessa renovar.
Aproveito o ensejo para esclarecer que parlamentarismo como método de governo, e reconhecimento da importância fundamental da Assembleia Nacional - poder fiscalizador e crítico cuja necessidade cresce na mesma medida em que crescer a autoridade do Estado - são coisas tão diferentes que eu nem admitiria que pudessem ser confundidas, se, de facto, o não houvessem sido. já. A autoridade estadual e instituída em vista de um fim superior e é legítima enquanto se exercer conformem ente a esse fim; à Assembleia Nacional compete, não o julgamento, mas a discussão dessa conformidade. Para que possa exercer a sua função, tem de ser prestigiada e têm de lhe ser dados os meios de um exercício profícuo e efectivo - se bem entendi, é esse o alcance dos projectos dos ilustres Deputados Drs. Carlos Lima, Homem de Melo e Duarte Amaral. Se a função
da Assembleia Nacional é ou não do maior interesse, se ela precisa ou não de rever em alguns aspectos a Constituição no sentido de se prestigiar e tornar mais útil, isso é matéria que, na generalidade, nem tem de ser posta; o simples facto de termos aqui assento exclui a possibilidade de entendimentos divergentes.
E, fechado este parêntese, retomo o fio das minhas considerações. As razões que expus levam-me a pensar que a solução em estudo não corresponde às duas primeiras condições: necessidade de uma, organização forte do poder político; necessidade de institucionalizar a chefia efectiva do aparelho estadual. Falta acrescentar algumas palavras sobre os motivos que me fizeram dizer que também não satisfaz ao terceiro requisito de defender a unidade da consciência portuguesa. E a tal respeito faço duas observações: uma sobre os efeitos políticos imediatos ou resultantes da oportunidade escolhida para a revisão; outra sobre os inconvenientes que podem resultar da abstenção das vias de contacto entre a Nação e o Estado.
Veio a público a notícia de que se projectava alterar profundamente o regime da eleição presidencial quando ainda não se tinha concluído de todo o rescaldo de uma campanha eleitoral particularmente violenta, que rasgara feridas, originara ódios e revelara uma evidente diminuição de confiança política, patente nos números averiguados. Poderia ter-se previsto que esta sequência temporal não deixaria de ser interpretada, precisamente por aqueles cuja confiança é necessário motivar de novo, como uma prova de fraqueza e de má fé, que consistia em extinguir uma consulta, com o fim de evitar uma prova difícil ou até de não ouvir uma resposta desagradável.
A suposição não é fundada. Basta lembrar que a eleição presidencial vem ti seis. anos de distância e dentro de dois terão lugar as eleições parlamentares, para as quais a proposta mantém o sufrágio universal e directo: parece-me que, se a intenção fosse conjurar um perigo, se teria começado pelo que está próximo, indo-se depois ao que vem remoto. Suposição portanto errada e baseada em aparências vulgares; mas ninguém pode surpreender-se de em política as aparências gerarem opiniões.
Ora esta opinião, que é o primeiro efeito político da proposta, é um mal em si mesma, porque envolve uma desconfiança sobre os métodos políticos do regime e até sobre a recta intenção das pessoas; é um erro que não deixará de ser explorado contra nós e que portanto melhor seria ter evitado se formasse, ou que, já que não se evitou, importaria desde logo esclarecer: O parecer da Câmara Corporativa teria sido o lugar mais próprio para esse esclarecimento; mas o assunto não pôde lá ser aflorado, e até sucede que as reiteradas alusões ao último acto eleitoral poderiam ser interpretadas por leitor desprevenido como uma tácita confirmação daquele vicioso entendimento.
Importa pôr a questão claramente.
Não: não se trata de fraqueza, nem de medo, nem de falta de confiança - ou de respeito - pela vontade nacional. Não poderia tratar-se disso, porque todos estamos integrados na ordem social e política estabelecida na própria Constituição, e o axioma fundamental da Constituição é o de que a soberania reside na Nação, donde corre que só a Nação pode decidir dos seus próprios destinos, formular a sua própria vontade. O papel dos governantes não é o de se substituírem à vontade nacional, mas o de a defenderem e preservarem de atentados e deturpações, e ainda esta defesa em posição directa da soberania nacional: precisamente porque é soberana e tem de ser obedecida, a vontade da Nação não pode ser falsificada.
Não é, portanto, um direito mas um indeclinável dever do Estado esta correcção, feita à luz das lições

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colhidas em cada nova experiência eleitoral, dos factores de adulteração que se possam ter infiltrado. A vontade resultante do sufrágio é válida e é obrigatória, não pelo facto de sair das umas, mas porque se supõe exprimir o sentimento comum; não pode, portanto, correr-se o risco de conspurcar o processo com ludíbrios, demagogias, enganos, ou com paixões, que são, por natureza passageiras, mas podem gerar consequências irremediáveis.
Creio que esta é que é a questão. Mas anoto que de tal legitimação resulta imediatamente um limite: o de que a revisão visa garantir a genuinidade dos resultados, e por isso consiste na revisão dos processos, suprimindo as fontes de engano. O que não poderia era suprimir os próprios processos.
Se passarmos desta zona aborrecida das consequências políticas imediatas ao campo dos efeitos futuros, teremos de recordar a. lei constante de que à medida que a política se fecha sobre si mesma a Nação vai deixando de lhe compreender o sentido, a necessidade, a verdade. O divórcio entre o organismo nacional e a superstrutura política tem sido uma das enfermidades constantes da história portuguesa desde o advento do liberalismo. E a incompreensão entre o «país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias» e o país nominal das abstracções políticas que já preocupou Alexandre Herculano e o levou a procurar no municipalismo a solução do problema da projecção da Nação no Estado.
Ficaria ainda, dir-se-á, aberto um caminho de diálogo: o das eleições parlamentares. Mas isso significa que se desloca a consulta essencial da eleição mais importa ate para a menos importante, e, concentrando nesta toda a intensidade do debate político, pode surgir por efeito que tenhamos de ouvir permanentemente a discordância ou a perturbação, que procuramos impedir se manifestem de sete em sete anos.
São estas as principais objecções que me suscita a solução constante da proposta governamental.
Em face delas sou levado a concluir que o condicionalismo actual impõe uma revisão no modo da eleição do Chefe do Estado; mas que essa revisão tem de obedecer a características diversas das que resultariam da aprovação sem emenda dos termos da proposta em discussão.
A Câmara Corporativa chegou, no seu estudo, a uma conclusão completamente diferente. Não só aprova, como aplaude, e aplaude calorosamente. Ora eu parti de uma base objectiva: o exame das realidades; mantive-me sempre dentro do sistema definido pelos grandes princípios que informam o nosso sistema constitucional; tive unicamente a preocupação de examinar se as soluções correspondiam no que se pode objectivamente definir como sendo de interesse nacional. Não concebo que se possa usar de método diferente, nem vejo que se possam visar diferentes objectivos; e, sendo assim, sou o primeiro a surpreender-me por tão completa diferença de resultados.
A Câmara Corporativa tem prestado ao País grandes serviços e a colaboração por ela prestada à Assembleia tem sido de indiscutível valor.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita:- Muito bem!

O Orador: - O presente parecer vem subscrito por nomes que são, só por si, uma garantia de proficiência, ilustração e qualidade. E tudo isso nos obriga, não, evidentemente, a concordar, mas a examinar com redobrada atenção os argumentos que lá se formulam. £ uma homenagem à qual a Câmara Corporativa tem direito e. que eu gostosamente passo a prestar-lhe.
Vejo, em primeiro lugar, que no parecer não se discutiu a proposta, isto é, não se seguiu o caminho de a confrontar com as necessidades emergentes da realidade política. Houve, em vez disso, a intenção de a justificar, isto é, de descobrir e reunir as razões que em seu abono pudessem invocar; por isso mesmo o parecer não pode poupar a esta Assembleia o trabalho de um exame crítico na generalidade e na especialidade.
O conjunto da justificação desenvolve-se em dois planos diferentes: o doutrinal e o circunstancial. No primeiro apresenta-se a proposta como um resultado do desenvolvimento dos princípios corporativos- da Constituição. No segundo devem distinguir-se duas direcções: a que visa mostrar que a proposta se autoriza na lição do direito comparado e a que pretende mostrar que ela se impõe pela necessidade de evitar os desmandos que costumam acompanhar os debates eleitorais. Parece-me que nestas poucas linhas resumo, desadornado de desenvolvimentos e reduzido à suma do teor, o elenco das razões apresentadas no parecer.
Começo pela questão doutrinal, porque ela, a ser procedente, seria para mim decisiva. O que se pretende é que o novo sistema de designação do Chefe do Estado seria o que mais de acordo está com a concepção corporativa da Constituição, concepção essa que não tem sido possível levar às suas naturais consequências em virtude e dificuldades várias, mas que teria agora, cora a criação das primeiras corporações, o ensejo próprio para se completar.
Não é um argumento novo; desde há muito, todos os que não acreditamos na veracidade do sufrágio directo e mecânico e não aceitamos que a Nação seja apenas uma soma invertebrada de indivíduos, interrogamo-nos sobre a viabilidade de novos sistemas de apuramento da autêntica vontade nacional e meditamos sobre se seria possível dar uma valência política às outras valências da organização corporativa da Nação.
Interrogamo-nos; meditamos. Mas não se poderá honestamente dizer que se tivesse já encontrado uma resposta satisfatória.
Este ponto afigura-se-me especialmente importante, e eu autorizo-me a chamar para ele a atenção de todos. É que as ideias, às vezes, tornam-se tão familiares, à força de as repetirmos ou ouvirmos repetir, que nem já nos lembramos de que elas nunca foram, demonstradas - nada tem tanta força contra a lógica como a força do hábito.
Importa, portanto, muito não passar à acção sem filtrar os conceitos por um rigoroso exame crítico; e sobretudo, se se trata de ideias que nunca no Mundo foram confirmadas pela acção, é indispensável analisá-las escrupulosamente, estabelecendo-lhes de modo indiscutível a legitimidade teórica. Outra atitude seria pôr à prova hipóteses e esperar pelos resultados; é um método que se usa nos- laboratórios, mas que ninguém teria o direito de pôr em prática quando o campo da experiência fosse uma vida humana: com a agravante de que a experiência não seria agora feita sobre apenas uma ou muitas vidas, mas sobre o corpo sagrado da Pátria.
Ora este raciocínio de que a concepção corporativa da Constituição implica a substituição do sufrágio universal pelo voto orgânico e de que chegou o momento oportuno para mudar de sistema suscita-me dificuldades que ainda não vi esclarecidas ao longo deste debate e que, por minha parte, não consigo transpor.
Em primeiro lugar, não vejo qualquer fundamento para a afirmação de que o processo que se propõe para substituir o sufrágio universal seja um processo orgânico ou corporativo. O Presidente da República continuaria a ser eleito por votos individuais: três ou quatro centenas de pessoas, em vez de algumas centenas de

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milhares. Votos qualificados, sem dúvida; votos de pessoas que, por serem quem são, oferecem a garantia de serem portadoras de uma opinião verdadeira, esclarecida quanto aos problemas, isenta das máculas que procedem as paixões, da ignorância, do estrabismo mental. Mas sempre votos de pessoas, e não votos de órgãos, os quais não foram consultados nem apuraram um voto colectivo de que o pretenso representante seja o portador. Pode-se, portanto, dizer que de um sistema democrático se passou a um sistema aristocrático: mas está alguém disposto a aceitar a responsabilidade da equivalência entre as ideias de governo aristocrático e governo orgânico?
Em segundo lugar: não me parece tão evidente que não precise de ser fundamentada essa afirmação de que chegou o momento de extrair mais amplas consequências corporativas dos princípios constitucionais. Porque é que teria agora chegado esse momento? Porque - responde-se - se instituíram as primeiras corporações. Seria uma boa razão se tal instituição não fosse um simples acto de governo, mas a consequência de um autêntico e profundo enraizamento da organização e da consciência corporativa. A pergunta que tem de ser feita é esta: o corporativismo, como organização e como mentalidade, como enquadramento normal das actividades e como estilo de viver, é já hoje aquela realidade que nós desejaríamos que fosse, ou, pelo contrário, apesar de todos os esforços, continua a ser apenas uma aspiração que a custo vegeta e não consegue enraizar no solo hostil de um cepticismo quase geral?

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Se a resposta a dar fosse a segunda, era evidente que a tal oportunidade não teria chegado. Há mais de um quarto de século que o programa corporativo se anuncia como objectivo a conquistar, e, todavia, até agora não se tiraram dele consequências constitucionais, porque se reconhecia que enquanto o objectivo se não transformasse em realidade viva não podia servir de alicerce à própria disciplina do Estado. Ora, se o obstáculo se mantém, porque é que a consequência haveria de desaparecer?
As duas dúvidas precedentes são de forma ou de tempo, mas há objecções de fundo, isto é, há dúvidas sobre se o corporativismo reúne às suas utilidades naturais e específicas a valência política que se lhe quer atribuir. Ou, noutros termos: se a organização corporativa da Nação estivesse completa, não nas leis, mas no plano da realidade, seria possível utilizá-la como aparelho político destinado a apurar a vontade nacional, em particular no tocante & designação dos governantes?
Sei que essa possibilidade é para alguns artigo de fé. Mas terá sido o mérito próprio do voto orgânico, ou, pelo contrário, a falsidade do voto directo e a consequente necessidade de achar alguma outra solução, o que conduziu a pensar dessa maneira? Também aqui é indispensável examinar os conceitos com grande atenção, porque, se de dois caminhos divergentes um é errado, não se segue que o outro tenha de ser verdadeiro.
Sem a preocupação de ser exaustivo, alinho alguns dos mais vivos contornos da questão; enquanto não lhes encontrar uma completa resposta, não posso aceitar, mesmo em simples tese, que o voto orgânico sirva de instrumento adequado à soberania nacional.
Como se sabe, a totalidade dos grupos corporativos que seria possível organizar abrangeria um vasto campo de interesses, o qual, em todo o caso, seria sempre menos vasto que o quadro dos interesses nacionais. A Nação é mais que a soma aritmética dos indivíduos, mas também é mais que a soma aritmética das instituições.
Há interesses que são de todos, mas que nenhum grupo, colocado dentro da sua finalidade institucional, pode interpretar. Não vejo a legitimidade de nenhuma corporação em especial para se ocupar, por exemplo, de problemas ligados com a unidade do mundo português. A legitimidade para votar aí vem do simples facto de ser português, ou seja, é anterior a qualquer enquadramento corporativo.

O Sr. Mário de Oliveira: - Muito bem!

O Orador: - Depois sucede que em cada unidade organizada haveria sempre que fixar uma vontade orgânica. Isso é simples enquanto se trata de vontade sobre assuntos do interesse do técnico ou profissional, mas deixa de o ser quando se trata de assuntos de ordem social ou política. Na definição dessa vontade teria de se ir por um de dois caminhos: ou o do sufrágio interno ou o da expressão do voto através dos representantes institucionais. No primeiro caso estaríamos a colocar na base do voto orgânico o voto mecânico e individualista, anulando assim em grande parte a vantagem que se pretendia tirar; no segundo caía-se no grave problema da designação daqueles que hão-de interpretar a vontade de todos; essa designação ou se faria eleitoralmente - mas nesse caso os eleitos corresponderiam a um ideal político, o que destruía a finalidade institucional da representação - ou teria de ser feita por via de autoridade, através da nomeação; mas esta segunda solução afecta, evidentemente, a genuinidade da representação, porque ninguém considera ser verdadeiro representante aquele que não escolheu e em quem não confia.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - São objecções teóricas, mas o exame dos factos, no terreno da escolha dos actuais representantes corporativos, confirma que, quando as ideias logo no plano da teoria se mostram deficientes, não há que esperar senão que a prática lhes amplie e agrave as contradições.
O terceiro espinho é o da qualificação do voto. Os grupos corporativos não são equivalentes entre si sob o ponto de vista do valor da sua verdadeira participação na formação da vontade nacional. O argumento do P. Mariana é também neste campo inteiramente cabido: se os votos não têm o mesmo peso, é erro. contá-los em vez de os pesar. (Risos). Mas como se pesariam? Mas com que critério se poderia introduzir uma hierarquia qualitativa entre os vários votos? Os coeficientes a aplicar, ou seriam de ordem puramente aritmética e na proporção das pessoas agrupadas em cada estrutura corporativa, ou teriam em consideração a diversidade de valor das estruturas, consideradas nelas mesmas. No primeiro caso manter-se-iam todos os inconvenientes do voto nivelador e igualitário; no seguindo cair-se-ia na completa ficção, porque, se é certo haver diferenças de grupo para grupo, também o é que se não descobriu padrão para medir valores dessa espécie, nem órgão competente para estabelecer a medida a atribuir a cada voto.
Vem depois a questão da incompatibilidade prática entre os interesses internos, profissionais ou institucionais, e os interesses de ordem política. O que dá coesão ao grupo corporativo é a prossecução de um fim acerca do qual todos estão ou podem estar de acordo; mas a observação revela que a chamada a fins políticos introduz nos grupos A divisão, politiciza-os, com prejuízo imediato do próprio fim institucional.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

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O Orador: - O exemplo de alguns sindicatos de profissões liberais, onde o próprio Governo procura a todo o transe impedir que se intrometa a política, não para se defender a si mesmo, imas para defender a própria instituição, é perfeitamente esclarecedor do que pretendo dizer.

O Sr. Araújo Novo: - Muito bem!

O Orador: - Estes quatro obstáculos são de ordem técnica, mas procedem todos da mesma raiz teórica, e creio que ela é a de que interesse corporacional e interesse político são realidades de plano diferente, que se não podem confundir sem prejuízo mútuo.
Surgem ainda as dificuldades resultantes do condicionamento nacional. Há mais de uma; a falta de autenticidade da representação orgânica e o estado actual da opinião pública quanto à organização corporativa não podem deixar de se lembrar. Mas há um motivo de especial gravidade que me parece andar um tanto esquecido: Portugal não é a metrópole, e qualquer sistema de política geral que apenas se pudesse aplicar na metrópole não serviria para Portugal.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - O ultramar não está organizado corporativamente, nem parece que as condições locais permitam que o venha a estar, num futuro previsível. Haveria, portanto, que aplicar um sistema de direito político geminado, com soluções diferentes, consoante se aplicassem às províncias da metrópole ou às de além-mar. Não sei se isto favoreceria a unidade política do Mundo Português.
E ocorre, por fim, aludir às dificuldades do voto orgânico, quando encaradas do plano superior da filosofia moral. O homem não é analisável em termos mecânicos e não se compõe de partes distintas que se possam separar. O homem-operário, o homem-munícipe, são abstracções necessários, mas nenhuma delas traduz todas as virtualidades morais da pessoa. Reduzir a um aspecto determinado da vida soei ai a possibilidade da relevância política de cada homem é negar o facto evidente da sua unidade. E é negar igualmente a sua essência da liberdade. Porque, se se admite que o homem integrado numa estrutura tem, pela força da integração, a sua opinião limitada a certo ângulo de vista, e só se aceita que através dele a possa afirmar, porque só então será válida, estamos a cair no determinismo: o homem seria determinado pelo conjunto social. A concepção do homem que está na base das nossas instituições é inarmonizável com essa mutilação: é a do homem-consciência, livre por natureza e com vocação para se decidir independentemente dos condicionamentos resultantes da sua inserção no tecido social.
As objecções que acabo de enumerar não puderam até hoje ser resolvidas em nenhum país, apesar de - creio que em todos - se terem desde há muito tempo tornado claros os inconvenientes do sufrágio directo, cómoda ilusão aritmética cuja veracidade não resiste ao primeiro exame. Não há, por isso, nenhum exemplo de nação que tenha adoptado o voto orgânico como forma de designação dos dirigentes. Pelo menos, de nenhuma nação que tenha do homem aquele alto conceito a que acabo de aludir. Creio que na Rússia soviética, onde, como se sabe, não há eleições, se justifica a selecção dos governantes por uma escolha apurada através de uma série de organismos sucessivos. Discute-se muito se esse sistema de governar se tem mostrado eficaz em aspectos técnicos; mas ninguém - nem mesmo os que por sistema defendem tudo quanto vem de lá - ousa sustentar que o problema político da Rússia esteja resolvido. No tocante à chefia do Estado, tudo se passa como se nenhuma lei existisse. O Governo pertence ao que, mais hábil ou mais brutal, consegue o massacre doutros concorrentes: devia ser esse o sistema dos primeiros tempos do Mundo, quando a força física era a única lei que se invocava.
Fora deste exemplo, o que se vê é que se reconhece à organização, corporativa uma importante função para a normalização das relações entre os homens, entre os interesses, entre os sectores; um papel especialmente produtivo no domínio do económico e susceptível de úteis extensões ao campo social; que se assinala aos seus mais altos órgãos uma função consultiva, de informação técnica e de colaboração com os sectores da direcção do Estado. Mas fica-se por aí: não se pôde concluir ainda que a tantos méritos reúna o de servir de aparelho político do Estado.
E, se bem virmos, é exactamente esse o lugar que lhe está marcado na Constituição Portuguesa; que assinala aos organismos corporativos o seu domínio próprio - cultural, assistencial, de aperfeiçoamento técnico ou de solidariedade de interesses; que restringe a sua participação na organização política do Estado à interferência nas eleições para as autarquias, e que, no tocante à feitura das leis, define para a Câmara Corporativa uma função apenas informativa, e portanto acessória, dos órgãos políticos propriamente ditos. De tudo resulta que, quando se fala da concepção corporativa, da Constituição, se parte logo de um pressuposto falso: o de que a Constituição é de concepção corporativa. Há aí uma confusão entre Nação e aparelho político nacional: o que é corporativo não é a Constituição em si mesma, mas a Nação tal como a Constituição a compreende. A Constituição, estatuto político da Nação, não corporativa, mas política. Decerto se coloca a questão de saber se ó estatuto político de uma nação corporativa deve ou pode ser corporativo; ora eu creio ter mostrado que a questão do poder ser ainda não foi decidida, pelo que a questão do dever ainda não pode ser posta.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita:- Muito bem!

O Orador: - Em conclusão, a parte doutrinal da justificação que se quis dar improcede completamente: nem a fórmula da eleição proposta seria de tipo orgânico, nem, quando o fosse, estariam verificadas os condições da oportunidade da sua aplicação, nem, finalmente, tal aplicação estaria na lógica dos nossos princípios constitucionais.
Há que examinar o mérito da justificação circunstancial; ela vai - recordo-o - em dois sentidos: no de autorizar a proposta na lição do direito comparado e no de lhe demonstrar a necessidade em vista dos desmandos que costumam acompanhar o sufrágio directo.
O argumento do direito comparado pouco poderia, só por si, provar. Se algum direito tem de ser inteiramente nacional, rigorosamente moldado às exigências e condições próprias de cada país, esse é o direito constitucional. Nós temos, aliás, uma experiência dos males que podem vir da sugestão dos modelos estrangeiros neste domínio: foi o ter-se quebrado subitamente com toda a tradição governativa forjada em sete séculos de história que lançou o País no estado de sobressalto e inadaptação política que encheu de lutas o século passado.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Mas os primeiros legisladores liberais pensavam muito nó exemplo alheio, e parece que em

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especial os seduzia a Constituição Francesa, que servilmente imitaram.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - Mas ainda com estes limites o, argumento aparece formulado em termos inaceitáveis. Inventariam-se os vários tipos de eleição do Chefe do Estado, mas omite-se o que seria fundamental acrescentar: quais são, em contrapartida, os poderes das Assembleias representativas. Bem se sabe que o sufrágio universal não é a única forma de designação do supremo magistrado nacional. Mas o que o direito comparado revela, é que à medida que os seus poderes vão sendo mais latos, mais larga tem de ser a base da sua eleição ou que, a medida que a base é mais restrita, maiores são os poderes das assembleias. O facto de se ter limitado a exposição a um dos dois termos dessa relação retira todo o sentido aos exemplos dados.
Invoca-se depois, e com insistência, o exemplo da recente Constituição Francesa, e fica-se na ideia de que se pretende achar qualquer afinidade entre ela e o caso português. O que me parece gritante não é a semelhança, mas a contradição: ao passo que lá se sentiu que o Chefe do Estado não podia continuar a ser eleito no âmbito restrito das Câmaras e que o prestígio da função exigia um sufrágio amplo, indo-se para uma solução com todas as características de um sufrágio nacional em dois graus, aqui propõe-se a solução inversa, isto é, a de se abandonar um sufrágio amplo por um regime fechado, de dimensões que de facto pouco excederão as das duas Câmaras reunidas. Se o que se pretende significar é que na proposta se segue o caminho de dar voto aos representantes dos concelhos de cada distrito, o que teria semelhança com o voto dado em França pelos representantes das comunas continuo a apreender dissemelhança em vez de parentesco.
O equivalente da comuna francesa não é o concelho, mas a freguesia, ainda a beneficiar de que cada uma das nossas freguesias tem, em média, o dobro dos habitantes das comunas francesas. Por isso mesmo, os eleitores das autarquias são em França perto de oitenta mil, e no nosso caso não passariam de poucas dezenas, dado que se pretendeu agrupar concelhos para efeito de designação de representantes.
Em resumo: não se pode concluir que os argumentos tirados do direito comparado contribuam para esclarecer o assunto.
A outra ordem de argumentos circunstanciais desenvolve-se no sentido de justificar a reforma do sistema eleitoral pela necessidade de impedir que a designação do Chefe do Estado sirva de motivo a debates ideológicos e tão acesos e encarniçados que chegam a roçar pelo desmando e pela desordem pré-insurreccional». O ideal seria, segundo a doutrina do parecer, que a eleição decorresse sem debate, até porque não é a ideologia que está submetida à discussão. Em conformidade com esse pensamento, vem proposto pela Câmara Corporativa que se emende o § 4.º do artigo 4.º da proposta, o qual ficaria a proibir toda a forma de debate durante o acto eleitoral.
É visível que no conjunto das preocupações que estavam no espírito dos ilustres Procuradores que subscrevem o parecer esta era a predominante. E não há dúvida de que se trata de um problema grave, que tem de ser corajosamente posto e definitivamente resolvido.
Deixo agora de lado as observações que gostaria de fazer à ideia de que nos períodos eleitorais não são as ideologias o que se deve discutir, ideia que conduz a pensar que a discussão deveria incidir sobre as pessoas, o que seria ainda pior.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita:- Muito bem!

O Orador: - E porei só a questão seguinte: se o que leva a proibir o debate é apenas o perigo de desmando, terá primeiro de se demonstrar que o desmando é inseparável do debate. Penso que o vício fundamental do parecer corporativo é precisamente a falta de tal demonstração, isto é, conclui pela necessidade de acabar com eleições por sufrágio universal sem ter verificado se todas as modalidades desse sufrágio enfermam dos males que se apontam.
E necessário assentar em alguns pontos de vista fundamentais, sem os quais não será possível chegar nunca a uma conclusão. Esses pontos são para mim os seguintes: o debate eleitoral não é um mal, mas um bem; os desmandos que o acompanham são um mal, e um mal tão grave que tem de ser em qualquer caso eliminado. E em consequência das duas premissas: o debate, por ser um bem, deve ser mantido na medida em que não implicar o mal do desmando.
Penso primeiro que o debate é um bem. Ele é hoje uma instituição da vida política, de todos os povos civilizados. E também uma imposição do direito natural: é obrigação de todos os membros da comunidade preocuparem-se com os problemas comuns e colaborarem utilmente na sua resolução. É ainda um direito decorrente da nossa ordem constitucional, que, ao declarar que a soberania reside na Nação, implicitamente legaliza os meios do exercício dessa soberania. Decerto que os conceitos de soberania nacional e soberania popular se não correspondem; mas sem se cair na ditadura das umas tem de se aceitar que de algum modo válido a Nação há-de fazer ouvir a sua voz.
O direito de todos à discussão pública dos problemas nacionais tem um limite: o que for imposto pelo próprio interesse nacional. Mas precisamente a luz do interesse nacional importa reconhecer que a supressão sistemática da discussão política tem efeitos perigosos: conduz aos abusos, à inércia, à estagnação, ao autoritarismo e, em especial, a perda dos pontos de referência do Estado em relação à opinião pública, mal de que pode resultar a disgnosia governativa, isto é, a perda da noção do real por parte dos governantes.
O caso das últimas eleições tem sido aproveitado unicamente para salientar os males que se podem seguir de certas modalidades de debate; é uma invocação verdadeira, mas unilateral, porque o mesmo exemplo pode servir para demonstrar até que ponto essas provas podem ser úteis; foi à sua luz que se tornaram claros muitos factos que andavam ocultos ou que alguns insistiam em ocultar: necessidade de renovação de métodos, programas e quadros, afrouxamentos de ritmo, urgência de soluções indefinidamente adiadas, descontentamento, falta de confiança, falta quase completa de doutrinação, insuficiência dos quadros doutrinadores, falta de eficácia do serviço político propriamente dito. É certo que todas essas lições, talvez por terem sido aprendidas muito contra vontade, tendem a esquecer rapidamente. Mas, se elas fossem convenientemente aproveitadas, não sei se as consequências benéficas do último debate não viriam a compensar-nos dos seus inegáveis efeitos nocivos.
Repito: o debate em si não é um mal, é um bem.
Mas os debates eleitorais estabelecidos à volta das consultas directas costumam trazer consigo um cortejo de inconvenientes, dos quais o acto eleitoral de 1959 é exemplo doloroso e expressivo. Pode, em resumo, dizer-se que eles constituem um factor grave de perturbação na vida nacional; que são origem de divisões que permanecem mesmo depois do acto e afectam a unidade da família portuguesa; que são fontes de desprestígio para os contendores, dos quais, todavia, um há-de as-

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pender à suprema dignidade do Estado; que podem chegar a constituir um ensejo de insurreição e, portanto, são a porta aberta para a subversão violenta de todos os valores e de todas as instituições. E acresce - como português o digo, cheio de vergonha - que n paixão leva a transpor o pleito para o plano internacional, numa renegação de que a Pátria é o único campo para as nossas lides e de que a opinião dos Portugueses é a única que pode decidir dos interesses de Portugal.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Pode, e não sem fundamento, responder-se que estas consequências não são, por si o resultado necessário do sufrágio directo, visto haver países onde tudo se passa com suficiente dignidade cívica. E de facto assim. Mas a política não ó a dedução de fórmulas a partir de princípios abstractos, mas sim a arte da realização do bem comum no seio de uma comunidade nacional, determinada e definida por características que têm de ser tomadas em consideração.
No nosso país o que se verifica é que o sufrágio directo vem normalmente acompanhado daqueles efeito»: é nesse sentido a lição de já quase século e meio de experiência histórica. E a reflexão faz descobrir que o fenómeno tem a sua explicação, não em circunstâncias fortuitas que se verificaram ontem, mas se poderiam amanhã afastar, mas em condições permanentes que se mantêm e que por isso mesmo conduzem sempre ao» mesmos efeitos. São condições históricas, culturais e temperamentais. Talvez o sufrágio directo nos não esteja na massa do sangue; ele foi implantado simultaneamente com um conjunto de instituições novas, decalcadas, desconhecedoras da realidade portuguesa e contrárias a um sistema de governação muito antigo, no qual a soberania popular tinha papel de relevo e se exercia por uma foi-ma tradicionalizada. Daí uma resistência viva da Nação contra o Estado e a instalação de um clima de crise política, cujos últimos efeitos ainda hoje se poderiam encontrar. Depois, acontece que o baixo nível cultural do País, expresso nas taxas do analfabetismo e nu escolaridade limitada, faz com que o eleitorado não tenha opinião política; a competição, que é o meio, aparece aos seus olhos como o próprio fim, e a campanha de agitação torna-se indispensável para forjar as opiniões que não existem.
Por último, nós somos um povo de emoção à flor da pele e é muito conforme à nossa natureza não saber manter n calma durante o jogo, qualquer que seja o jogo.
(Risos).
Por tudo isto, tem de se concluir que o sufrágio directo arrasta em Portugal às consequências que todos conhecemos; e aquelas consequências são bastante graves para, só por si, imporem a condenação do sistema.
O parecer da Câmara Corporativa deve, porém, também neste ponto, sofrer um reparo: o de que limitou a sua crítica ao voto directo aos aspectos mais superficiais, aos inconvenientes que não estão tanto no próprio voto, como nas suas concomitâncias ou repercussões Eu penso que o sistema é, em si mesmo, mau. Como se sabe, o sufrágio directo tem em vista recolher de cada eleitor a opinião que ele, eleitor, teria sobre o problema submetido à consulta pública. A ideia de que cada eleitor tem uma opinião e ide que os votos são declarações de opinião é a própria base do sistema.
Sabe-se, porém, que essa opinião não existe, nem poderia existir. No caso concreto da eleição do Chefe fio Estado, trata-se de indicar de entre várias pessoas (que de todo em todo, antes de iniciada a campanha, a maioria do eleitorado desconhecia ou de quem apenas conhecia o nome) aquela que reúne maior número de condições para o exercício de um cargo (cujas precisas atribuições também, em regra, se ignoram) durante um período de tempo com características próprias, definidas pela problemática nacional concreta e pelas circunstâncias internacionais - tudo coisas que só podem ser do conhecimento daquele raro número de pessoas que faz da política preocupação habitual.
Por isso mesmo, o voto directo seria possível se exercido por uma elite; mas nunca poderia ser universal. Sabe-se bem que, colocado diante da uma e acompanhado apenas da sua própria opinião, o eleitor não votaria por falta de motivos de opção, isto é, sabe-se que ele não teria uma opinião para exprimir.
É precisamente para resolver essa dificuldade que se procede a uma campanha eleitoral; ninguém admite a eleição directa sem tal processo de mobilização dos votos, porque sem ele as umas ficavam vazias. Mas daqui resulta uma consequência paradoxal: se a existência e opiniões é a base teórica do sistema, a inexistência das mesmas opiniões é a base prática do seu funcionamento.
Supõe-se que, concluída a campanha, já cada qual pode votar. Admitido que a campanha tenha chegado a todos os eleitores, põe-se agora em causa o valor do voto como declaração de opinião: é uma opinião verdadeira, que define a posição permanente de cada eleitor em relação aos problemas, ou é uma opinião emprestada, nascida da adesão momentânea a um ponto de vista exterior? Tem de se concluir pela segunda alternativa; se assim não fosse, a campanha não teria sido necessária. Porém, nesse caso a voz das umas não traduz a vontade da Nação, mas simplesmente o eco de uma campanha. E isto seria muito pouco para poder valer tanto como se pretende.
Talvez que a este argumento me respondessem que o melhor ponto de vista é o que encontra maior aceitação e que a dimensão do eco despertado pelas concepções concorrentes permitiria concluir qual das duas tinha maior mérito.
Mas os factos não permitem concluir com essa simplicidade. Considerado o nível cultural médio do eleitorado, não pode pressupor-se nele o espírito crítico, que é normalmente a característica de um alto grau de desenvolvimento cultural.
Por isso, o que determina a audiência e a aceitação não é a veracidade mas a popularidade dos argumentos. E isto conduz à inversão dos valores: quem não entender a dificuldade dos problemas e anunciar resolvê-los imediatamente; quem não prezar muito a verdade e prometer o que sabe que não poderá cumprir; quem não pense que a vida nacional é a sucessão de muitos dias, e, portanto, não receie comprometer o dia de amanhã ao dia de hoje; quem não se preocupe com a paz social e se preste a lisonjear os sentimentos de uma classe, ou até a desvendar-lhe perspectivas de predomínio ou vindicta - quem estiver disposto a tudo isso encontrará decerto um eco mais caloroso e extenso que aquele que poderão despertar palavras em que se peçam sacrifícios, em que se exponham dificuldades, em que se diga que só pelo trabalho de longos anos poderemos merecer o que outros anunciam logo para o dia seguinte.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Quero, em resumo, dizer que, em eleições directas, o que decide não é o mérito, mas a demagogia.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

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O Orador: - Um último ponto deve ser recordado.
A campanha eleitoral; além da sua função de suscitadora de opiniões, para o efeito do voto, tem um outro importante papel: o de luta pela conquista dos sufrágios. Não se trata só de elucidar, mas, sobretudo, de convencer e atrair. É a sua função de propaganda.
Desde que exista mais de um candidato - e esta condição é essencial, porque sem alternativa não há opção -, a concorrência entre as várias propagandas transforma-se numa verdadeira competição. E, como não pode deixar de ser, a competição, em que participam massas de milhões de pessoas e em que os trofeus disputados são os próprios comandos da vida colectiva, origina um intenso estado emocional, que, aliás, é próprio de todas as competições, e que no nosso país assume as formas exacerbadas que se podem observar era qualquer certame desportivo.
A semelhança entre a pugna eleitoral e a desportiva é tão evidente que, nos momentos de paixão mais viva ou de tumulto mais ruidoso, o que as pessoas serenas aconselham é precisamente isto: que se mantenha o espírito desportivo. É significativo que, quando se discutem coisas tão sérias, nós já nos contentamos com guardar só aquela compostura e disposição de ânimo que são requeridas nos divertimentos dos estádios.
Ninguém põe em dúvida que o estado emocional obscurece a razão, destrói o equilíbrio dos motivos e impede a formação de um juízo correcto. Também isto é da observação mais correntia, e todos sabemos que, quando exaltados, podemos dizer coisas que não traduzem aquilo que efectivamente pensamos. Este facto é tão comum que as leis o reconhecem e regulam, estabelecendo a atenuação da responsabilidade penal para as frases ditas ou actos praticados em estado de exaltação.
Com esta matéria poderiam fixar-se as seguintes premissas: o sufrágio directo não pode funcionar sem campanha eleitoral, isto é, sem mobilização emocional do eleitorado; a opinião declarada em estado emocional não exprime o pensamento verdadeiro. A conclusão resulta necessariamente: o sufrágio directo não exprime um pensamento verdadeiro.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Estas críticas são mais que suficientes para ter de renunciar ao sufrágio universal directo. Não é a condenação da ideia em abstracto; não é esse aborrecimento a democracia que vejo às vezes solfejar, sem que primeiro se tenha demonstrado que, fora da democracia, há no nosso tempo caminho para a organização do Estado. É apenas a observação das coisas tais como elas efectivamente são; é talvez o próprio respeito pela ideia democrática, que é a de que a Nação tem o direito de afirmai a sua voz e a ser conduzida na obediência dessa mesma voz. Porque é essa mesma razão que nos impõe o dever de dispor as coisas por tal forma que a Nação não possa ser nunca enganada ou que a flua voz seja sempre verdadeiramente, profundamente sua.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - S. Tomás de Aquino.

O Orador: - Eu estou sempre em boa companhia.
Considero, portanto, assente mais este resultado: o método do sufrágio directo, até hoje em vigor, deve ser substituído. Aceito, portanto, a proposta governamental na medida em que ela exprime uso mesmo: a condenação do sufrágio directo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Se, porém, bem observarmos, a proposta não se limita a abrir o sufrágio directo; o que nele realmente se suprime é o próprio sufrágio universal.
Creio que não se distinguiu entre um e outro destes dois conceitos, e a falta de distinção conduziu a uma conclusão inadmissível, porque sufrágio directo e sufrágio universal são ideias que se não podem confundir.
No sufrágio universal todo o eleitorado se pronuncia: ou directamente, tomando posição quanto ao problema de fundo, ou indirectamente, escolhendo um representante a quem passa mandato para votar em seu nome; destas duos modalidades a primeira constitui o sufrágio directo e a segunda o sufrágio indirecto, que se pode articular em dois ou vários graus.
Isto é: o sufrágio universal, que resulta do princípio básico da necessidade de audiência da Nação, realiza-se tecnicamente por vários processos, entre eles os do sufrágio directo e o do sufrágio indirecto. Assim, a supressão do sufrágio universal constitui alteração de princípio; a substituição de um processo por outro será apenas aperfeiçoamento técnico, com vista à realização do princípio.
Verifica-se que todas as críticas, quer as constantes do parecer corporativo, quer as que entendi dever aditar-lhe, se dirigem ao processo do voto directo, e apenas a ele; foi-se, portanto, para a condenação do género em nome de acusações que se dirigiam à espécie e postergou-se um princípio pelas dificuldades de um processo:
Não se levantam dúvidas sobre a inconveniência do sufrágio directo, mas não se verifica que essa inconveniência afecte igualmente o indirecto.
O que deve determinar o emprego de uma ou outra das modalidades do sufrágio universal é o carácter da consulta feita e a natureza e nível cultural da população consultada. A consulta directa deve ter lugar quando o eleitor pode, por si, cumprir o dever eleitoral com genuinidade, conhecimento do assunto e consciência da posição tomada. A consulta indirecta impõe-se quando essas condições se não verifiquem, tornando-se necessário eleger um corpo de escol, constituído por pessoas com qualidade bastante para emitir votos plenamente válidos e acreditado como intérprete do sentir comum por uma eleição directa, de carácter rigorosamente pessoal e cujo sentido não é, portanto, o da tomada de posição num pleito ideológico, mas o da outorga de confiança em procuração colectiva.
Pode dizer-se que para designar os eleitores de segundo grau tem de se recorrer ao sufrágio directo. Teve; mas em condições tais que esse voto já é plenamente relevante. Desde que a eleição se faça nas pequenas comunidades - no caso português seria naturalmente a freguesia - e desde que se exija que o eleito tenha ali a sua residência permanente, essas condições ficam asseguradas.
O eleitor de base não pode, honestamente, decidir qual de dois homens eminentes pode servir melhor os negócios públicos; não pode mesmo, na regra, distinguir, dentro de duas propagandas, qual é a mais fundada, objectiva, conforme ao interesse português. Mas pode sempre dizer, dentre dois moradores da sua freguesia, e portanto seus vizinhos, qual é o que lhe merece maior respeito ou maior confiança. Trata-se apenas então de escolher um homem bom, um procurador político.
O fundamento lógico desta exigência de um mandatário habilitado é evidente e pode filiar-se em princípio pacificamente aceite cela ordem jurídica de todos os povos: o de que a prática dos actos que supõem conhecimento especial obriga à intervenção de representante qualificado. E esse, por exemplo, o fundamento do ins-

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titulo do patrocínio judiciário: o próprio interessado não é admitido a fazer, no tribunal, a defesa dos seus interesses ou da sua liberdade, tendo de escolher quem nessa defesa o represente. E nessa obrigação nunca ninguém viu uma redução dos direitos individuais, mas, bem pelo contrário, uma consequência da necessidade que há de os garantir.

O Sr. Araújo Novo: - Muito bem!

O Orador: - A solução do sufrágio universal em dois graus apresenta-se-me assim como o ponto de encontro das duas ordens de considerações que deixo feitas: por um lado, necessidade de alicerçar a autoridade do Presidente da República numa base ampla e num sufrágio sobre cuja genuinidade representativa ninguém possa ter dúvidas; por outro, a falta de verdade dos resultados obtidos em consulta directa, e perigas que haveria em fazer depender de tais resultados a eleição do Chefe do Estado.
A Câmara Corporativa, passando com muita ligeireza sobre este assunto, limitou-se a invocar o exemplo americano, para à face dele concluir que, em última análise, as eleições indirectas acabam por se transformar em eleições directas, visto que ninguém vota no eleitor por ele mesmo, mas já em função do candidato em quem ele, eleitor, se propõe votar.
Mas eu suponho que este efeito só poderia surgir com intensidade se existissem organizações partidárias permanentes e quando a votação do primeiro grau se fizer depois de conhecidos os candidatos, ou, pelo menos, quando se situe muito proximamente da eleição propriamente dita. E, portanto, questão para ser resolvida na lei eleitoral. E não me parece que aquele inconveniente pudesse surgir se a constituição dos colégios de eleitores se fizesse com uma anterioridade que poderia ir de seis meses a um ano, escalonando-se durante um semestre as eleições dentro das várias freguesias de cada distrito, de forma a evitarem-se eleições gerais simultâneas e a tornar possível que todas as assembleias de voto pudessem ter a garantia de legalidade que a presidência de um magistrado judicial sempre representa.
Nenhuma campanha eleitoral poderia ter lugar numa primeira eleição porque o objectivo da votação não era o de definir uma atitude política, mas tão-sòmente o de constituir um mandatário idóneo; e, sendo assim, os únicos motivos válidos dos votos seriam os que resultassem do conhecimento directo da pessoa votada, das suas virtudes e dos seus defeitos.
A proibição de agitação política seria nesse caso uma exigência da genuinidade do acto eleitoral; o debate situar-se-ia no segundo grau, interessando a um número limitado de pessoas já suficientemente qualificadas para que não fossem necessárias, nem possíveis, as manobras demagógicas.
Não vou, porém, agora alongar-me em justificações cuja oportunidade, nos termos do Regimento, se situa noutra fase do debate.
Não deixarei, porém, de dizer que a constituição de um colégio amplo, estável, esclarecido, formado por pessoas capazes de se imporem à consideração nos meios locais - o que em regra se consegue mas pelos bons actos e pelos exemplos nobres que pelos manejos demagógicos -, poderia vir a ser um importante factor de estabilidade na vida política portuguesa. Sob o ponto de vista sociológico, teríamos então conseguido evitar um doa inconvenientes mais graves da nossa vida pública: o da projecção da cidade sobre q campo, projecção que nos períodos eleitorais se faz violentamente, através dos meios de difusão que o levam a toda a parte um vento quente de agitação, violência, mal-estar, que pouco a pouco vai crestando as reservas ainda sãs da opinião nacional.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita:- Muito bem!

O Orador: - Sob o ponto de vista político, teríamos respeitado o princípio de que o chefe de todos 03 portugueses por todos deve ser escolhido; e isto com a garantia de uma escolha consciente, feita por aqueles que tinham merecido ser credenciados como intérpretes do pensamento comum.
Votarei pois a aprovação do artigo 4.º da proposta; mas votá-la-ei com a emenda cuja formulação resulta das razões que acabo de expor!
Guardei para o fim uma palavra que preferia não ter de dizer, mas que, infelizmente, é necessária.
Alguns dos argumentos expostos podem ter perturbado; talvez alguma expressão possa ter soado agrestemente; e prevejo já que em torno do que acabo de dizer venham a esboçar-se especulações: a dos que consideram excesso de crítica tudo que passe de rasteira apologia e a dos que andam apostados em descobrir intuitos ocultos ou sinais de divisão em todas ás palavras que se digam nesta Casa.
Como uns e outros se enganam! Estes não sabem que nesta Casa não pode haver divisões, porque nela não há outra disciplina que não seja a fidelidade de cada um à sua própria consciência, nem se recebem mandamentos que não sejam os impostos pelo interesse nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Aqueles esquecem que a maior homenagem a quem governa, se quem governa é digno de governar, não é a apologia, mós a colaboração da crítica desinteressada, alicerçada aia reflexão e ao estudo dos problemas.

O Sr. Cortês Pinto: - Muito bem!

O Orador: - Supor que tal atitude possa desagradar é que me parece injúria ao carácter e à inteligência de quem sentiria o desagrado.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:- É impolítico pôr as questões claramente?
Não posso acreditá-lo. Bem sei que em política se oferecem em alternativa dois caminhos: o primeiro é o de amoldar o carácter as conveniências da política; o segundo o de subordinar a política às exigências do carácter. Talvez o primeiro seja o caminho mais fácil; por isso dele nunca faltaram exemplos. Mas do segundo dá-nos o exemplo Salazar, que é, nesta matéria, o único exemplo que vale a pena seguir.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Nunes Fernandes:- Sr. Presidente: mais do que nunca sinto a responsabilidade que me cabe, como representante da Nação, nesta hora grave em que se discute e vai culminar com a sua votação a reforma constitucional.
Temos, na verdade, o dever de legislar normas que sejam o substrato natural do pensamento da Nação e que tenham em vista dar a esta ordem, paz è bem-estar.
Como estatuto fundamental da vida da Nação, a Constituição terá de conter as ideias-mestras que interessam

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à vida política, social, económica e moral do povo português.
Deve ela traduzir, pois, o modo de ser da gente portuguesa e reproduzir os principias que através do tempo se vão formando o radicando no cadinho imenso que é a alma humana.
Ora, Sr. Presidente, se a Constituição de um povo tem uma amplitude que visa especialmente a traçar os caminhos do futuro, o receio de que dei conta no princípio destas ligeiras considerações mais avultará se se considerar que a presente reforma pode não dar cabal satisfação aos anseios do povo português, nem resolver o seu problema político-social, tendo em vista esse mesmo futuro.
A história dá-nos conta das inúmeras experiências realizadas através dos tempos, no que diz respeito à organização política das nações, sempre na busca de novas ideias que pudessem dar satisfação à sempre insatisfeita aspiração do homem, na descoberta de novos rumos para o estabelecimento de um sistema político-social duradouro.
Muitas dessas experiências resultaram em verdadeira catástrofe e os seus malefícios fazem-se sentir mais ou menos em todo o Mundo.
Aos povos mais atingidos nem sequer se lhes propiciou a possibilidade de arrepiarem caminho para a defesa do grande património espiritual amealhado através dos séculos.
A inquietação que a todos nós nos preocupa traduz-se bem na série de propostas de alteração apresentadas.
É que, embora cada um dos Srs. Deputados possa ter uma posição ideológica divergente, todos eles, como é norma das pessoas honestas, se encontram animados do ideal comum de bem servir, convergindo todos para o ponto comum de dotar a Nação de um estatuto eficiente e completo.
Temos, na verdade, de revestir a Nação da armadura mais eficaz e que possa resistir às investidas do demo--liberalismo e aos diabólicos desígnios dos ventos de Leste, mantendo-a inatacável, permanente e duradoura.
Vivendo o meu ideal político, é manifesto que não descortino, na reforma ora em discussão, a calina certeza de continuidade na acção política que evite os periódicos e inevitáveis sobressaltos no sufrágio para a eleição do Chefe do Estado.
Sem estarem possuídos de qualquer fim especulativo, os monárquicos portugueses, o mesmo que é dizer os defensores do principio da continuidade das instituições, desde a primeira hora e em obediência ao imperativo da trilogia que os norteia, acorreram a dar o seu desinteressado contributo ao movimento que o honrado e glorioso Exército Português entendeu por bem levar a cabo numa hora angustiosa em que os alicerces da própria Pátria estavam prestes a ruir.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:- Fizeram-no porque o seu patriotismo estava para além e acima do próprio regime que defendem.
Havia, antes de tudo, de tratar de Portugal doente, para o que todo o esforço era indispensável, e criminoso seria todo aquele que, possuído de alto sentimento patriótico, não tivesse tomado o seu lugar na defesa da Pátria em perigo.
Se neles existisse, nessa altura, um grosseiro espírito especulativo, talvez fosse de mais interesse para a cansa que defendiam aguardar serenamente os acontecimentos . e os seus inevitáveis resultados.
Não o fizeram, dizia eu, e, pondo de lado a questão do regime, acorreram em massa para a defesa e prestígio do bom nome de Portugal, que eles desejarão projectar no futuro como uma Pátria honrada e gloriosa, com as mesmas virtudes que a tornaram grande através dos séculos.
Não foi posta, então, a questão do regime e não se pode assacar aos monárquicos qualquer oculta intenção que entravasse a marcha de verdadeiro triunfo que os homens do Estado Novo, sob a autorizada voz de comando de Salazar, encetaram há mais de trinta anos.
Milagre de vontade, milagre de patriotismo sem par.
Não houve, da parte dos monárquicos, incoerência servindo um estado republicano, pois eles visavam mais alto, porque serviam Portugal.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- Entretanto, quando chamados a tomar posição com relação a alguns dos princípios consignados na reforma constitucional, é manifesto que surjam para eles graves problemas de consciência e que só esta poderá resolver.
Li as correctas, brilhantes e desassombradas intervenções que os ilustres Deputados monárquicos tiveram na última reforma constitucional e a todos quero prestar as minhas homenagens pela forma como o fizeram.
E entre eles sobressai a aprumada atitude do nosso decano, Sr. Dr. Cancella de Abreu, sempre coerente com o seu credo, sempre igual a si mesmo, em todos os tempos e em todos os lugares, lição viva de persistência e de fé.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- Além de outras divergências, aquela que mais vincadamente foi tratada diz respeito à eleição do Chefe do Estado.
Sujeitar a escolha deste ao sufrágio eleitoral, ele, que deve ser intocável no seu prestigio e no seu nome, brigava, efectivamente, com o princípio monárquico, que vê no rei a única garantia da estabilidade, independência e continuidade na governação.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Por isso mesmo não deixaram esses Deputados de tomar uma posição de absoluta coerência com o ideal professado.
Surge de novo, na actual reforma, o mesmo problema, apenas diluído quanto à forma de eleger, possivelmente mais eficaz e, acima de tudo, menos desordeiro e subversivo.
Do sufrágio directo passa-se a um processo mais restrito, pelo qual são chamadas a votar pessoas que podem, de verdade, com ciência e consciência eleger o cidadão que apresente melhores títulos para o desempenho do alto cargo.
Mudaram os termos, é certo, mas os princípios permanecem, embora, justo é reconhecê-lo, mais apropriadamente utilizados pela forma como se elege.
E porque, quanto a mim, a solução não se apresenta à minha consciência como sendo aquela que garanta a continuidade e permanência tão indispensáveis a um sistema político, a atitude que vou tomar na votação do artigo 72.º terá de ser condicionada à linha de pensamento que acabo de expor.
E com ela, certamente, não faço injúria ao homem admirável que desde a primeira hora tenho servido desinteressadamente, como consequência lógica do devido e natural agradecimento pela obra altamente patriótica levada a cabo em trinta e um anos de fecunda, feliz e brilhante governação.
Se, na verdade, considero Salazar um precioso dom com que a Providência nos dotou, tenho de o acompanhar e de o defender, lamentando apenas que ele não

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possa ser eterno para afastar de mim o caso de consciência que acabo de expor.
Tive a honra, Sr. Presidente, de subscrever o projecto de lei n.º 23, o qual visava, nos suas linhas principais, a consignar no diploma constitucional princípios que se encontram na alma do povo português e que bem merecem ser transportados para a Constituição.
Outros desses princípios suo a resultante da nova idade que nasce e aos quais temos de traçar os contornos definitivos, na frase feliz de um escritor.
E porque legislamos para o futuro não podemos perder de vista a agitação das ideias no campo político-social para melhor podermos fixar aquelas que se mostrem mais aptas para a defesa da Nação.
São de Salazar estas luminosas palavras:

As constituições Vivem, em primeiro lugar, da adaptação do regime ao sentir e ao modo de ser dos povos e, em segundo lugar, da institucionalização dos seus preceitos, isto é, da extensão e intimidade com que os preceitos abstractos tenham entrado na vida real.
Nesta orientação afigura-se preferível que a Constituição e, portanto, as alterações constitucionais vão acompanhando a organização e que os maiores esforços se empreguem para a fazer progredir, se não para a completar.

Ora o projecto de lei n.º 23 está perfeitamente dentro dos princípios que acabo de transcrever.
Entretanto, a Gamara Corporativa, à qual tributo o maior respeito e consideração, reconhecendo que muitos dos seus membros são expoente brilhante da cultura e da mentalidade,- não o reconheceu assim, sugerindo a sua não aprovação por esta alta Assembleia.
Opôs-lhe o seu veto indirecto, já que para o directo não tinha competência.
Não escapou à sua critica o preâmbulo em que o povo português afirmava a sua fé em Deus, isto num pais em que os ateus são em tão reduzido número.
Deus, que está no princípio e no fim de todas as coisas, foi relegado para o lugar das inutilidades.
Devo confessar que a argumentação empregada nem me venceu nem me convenceu, e no momento próprio da votação não deixarei de proclamar a minha fé e considerar também meu tudo quanto se disse nesta Assembleia, por forma brilhante, a propósito de tão admirável princípio, que se encontra, felizmente, bem radicado na alma e no coração da gente portuguesa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - O projecto de lei a que me venho reportando tem a profunda inspiração do estabelecimento de uma justiça social perfeita e que dê satisfação aos anseios do homem dos nossos dias.
Foi ele buscar às encíclicas sociais os seus princípios informadores.
Há, na verdade, que por cobro às pretensões injustificadas, quer do capital, quer do trabalho, estabelecendo entre estes dois factores de produção uma intima associação segundo o princípio de justiça, como proclamava o Santo Padre Pio XII no seu formosíssimo discurso na celebração do aniversário das encíclicas sociais.
Nem sempre o critério de justiça está presente nas relações entre o capital e o trabalho.
Certo é que o Estado Novo já tem obtido conquistas apreciáveis nesta melindrosa questão e o Estatuto Nacional do Trabalho, publicado há vinte e seis anos, é um padrão glorioso a atestar o desejo do Governo no sentido de conseguir um eficaz ordenamento na vida económica, social e política da Nação.
Entretanto muito há que caminhar neste sentido para que possa surgir, com toda a sua nitidez, o conceito de Spinosa quando diz:

Homem justo é aquele cuja permanente vontade consiste em atribuir a cada um aquilo que lhe ó devido.
Para que tal aconteça é necessário concluir como Garrett:

É indispensável preparar uma nova concordata entre a sociedade e o Evangelho, rico de caridade e de justiça.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-Não se pode esquecer na vida político-social da Nação o carácter marcadamente humano do trabalho e dor a este o lugar de relevo que deve ter numa sociedade em que a justiça predomine.
Se o capital e o trabalho são ambos factores da produção e da vida humana, completando-se entre si, dúvida não pode existir sobre o carácter eminentemente humano desta relação criada.
Assim os n.ºs 3.º e 4.º do artigo 31.º da Constituição, segundo o projecto de lei n.º 23, pretendem fixar bem no nosso estatuto fundamental os princípios que devem nortear as relações entre o capital e o trabalho:

Nem aquele reclamará para si a totalidade do beneficio, deixando à classe trabalhadora o mínimo, nem o trabalho poderá chamar a si todo o lucro, dedução feita das exigências de amortização e reconstituição do capital.
Equacionado o problema, cujo desenvolvimento nos poderia levar muito longe, ao Estado incumbe estabelecer as normas directivas da actual concepção de capital e
trabalho, não esquecendo que o social e o humano prevalecem sobre o económico.
Assim foi entendido, publicando-se o Estatuto do Trabalho Nacional e inserindo-se na Constituição o n.º 3.º do artigo 31.º, embora sem o complemento do sentido de humanidade social que o projecto apresentava.
E até se torna mais inexplicável a condensação deste principio por parte da Camará Corporativa quando, como ela própria reconhece, o n.º 2.e do artigo 31.º leva em consideração os interesses superiores da vida humana quando possam ser prejudicados pelas actividades das empresas contrárias a tal fim.
O artigo 31.º da Constituição encontra-se, de facto, transcrito, em boa parte, no Estatuto do Trabalho Nacional, no seu artigo 7.º
Não se diga, porém, que dal poderiam surgir inconvenientes de ordem formal, unia vez que a Constituição, o diploma maior do País, consignasse a proposta alteração, que mais não era do que o complemento de grande parte da obra levada a cabo pelo Governo do Estado Novo neste sector.
Prometi, Sr. Presidente, que a minha intervenção no debate em curso seria ligeira e não passaria de rápidos apontamentos referentes a alguns dos pontos basilares das propostas de alteração à Constituição.
Aqui me quedo, pois, visto me faltar o tempo e o engenho para poder ir mais longe.
Desejo, porém, antes de terminar, formular o voto veemente de que as alterações ao estatuto fundamental da Nação sejam fecundas, eficazes e úteis para a vida da mesma.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

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15 DE JUNHO DE 1959 949

O Sr. Castilho de Noronha: - Sr. Presidente: a Assembleia Nacional exerce na presente sessão legislativa a delicada função de constituinte.
No debato que está. a correr ressalta a nota da elevação e do crescente entusiasmo que bem merece a transcendência do assunto em apreciação.
Vão já decorridos oito anus sobre a última revisão da Constituição. A lei não pode ter a rigidez de um dogma, a consistência de um axioma. Está sujeita a sofrer as alterações que as 'circunstâncias impuserem.
Está nisso a razão de ser da proposta de lei n.º 18 do Governo e de oito projectos de lei apresentados por vários Srs. Deputados.
Na proposta do Governo a disposição da maior transcendência política é o seu artigo 4.º com os respectivos parágrafos, que vêm alterar o artigo 72.º e parágrafos da vigente Constituição, os quais tratam da eleição do Presidente da República.
A disposição da proposta do Governo à qual me refiro, pela sua relevante importância merece que à sua volta se façam algumas considerações.
Os anti situacionistas tem de concordar em que, pelo menos no que diz respeito à designação do Presidente da República, o Estado Novo foi muito mais liberal, muito mais democrático do que a República de 1910, que se dizia ser democrática. Pois, enquanto a Constituição Política de 1911 dispunha que o Chefe do Estado devia ser eleito pelo Congresso da República, formado de duas Câmaras - Deputados e Senado -, o Estado Novo, pela sua Constituição de 1933, dispôs que o Chefe do Estado devia ser eleito pela Nação.
Pela Constituição de 1911 o colégio eleitoral era limitado ao reduzido número dos membros do Congresso. Pela Constituição de 1933 o colégio eleitoral era tão amplo como o próprio País.
Assim, a Constituição de 1933 assegurava melhor a autoridade e a independência do Chefe do Estado em relação ao Parlamento, que não intervinha na sua eleição. Outra razão justificativa do artigo 72.º da Constituição de 1933 estaria talvez em que o Chefe do Estado é o mais alto representante da soberania nacional, convindo, por isso, que seja eleito pela Nação.
Essas razões, porém, não têm valor quando o eleitorado não tenha uma adequada educação cívica que o leve, antes de mais nada, a antepor o interesse nacional aos interesses dos grupos ou facções partidárias. Sem essa preparação o eleitor não está apto para exercer convenientemente o seu direito de voto, podendo dal resultar que o sufrágio directo não seja a expressão genuína da vontade do povo. O eleitorado que não tem a consciência da responsabilidade que sobre ele impende é facilmente manejado pela galopinagem eleitoral, que quase sempre desanda numa nefasta propaganda, a qual não prima pela seriedade, pelo bom senso, valendo-se, pelo contrário, de todos os meios indecorosos para atingir o fim que se tem em vista, desde a ruim mentira até à mais torpe calúnia.
É o que tem sucedido entre nós, principalmente na última eleição presidencial.
Nem é bom relembrar a temerosa tempestade de ódios, rixas, malquerenças, insultos, atingindo até pessoas que nos deviam merecer o maior respeito, que se desencadeou no período eleitoral de tão triste memória.
Era forçoso arrepiar caminho. Impunha-se o regresso a tradição que nos foi legada pela República de 1910.
É o que o Governo pretende com o artigo 4.º da sua proposta. Nos termos desse artigo, o Presidente da República será eleito pelos membros em exercício efectivo da Assembleia Nacional e da Camará Corporativa e pelos representantes municipais da metrópole e das províncias ultramarinas ou de cada província ultramarina não dividida em distritos.
Nestes termos, temos para a eleição presidencial um colégio eleitoral mais limitado, mas mesmo assim muito mais amplo do que o da Constituição da República de 1911.
Outro assunto que me merece atenção nesta intervenção é o constante do artigo 6.º do projecto de lei apresentado pelo Sr. Deputado Homem de Melo.
Segundo esse artigo a Assembleia Nacional tem atribuições de legislar para o ultramar, independentemente de proposta do Ministro do Ultramar, ao contrário do que dispõe a vigente Constituição.
Ao fim e ao cabo, o que o Sr. Deputado Homem de Melo propõe é a eliminação das palavras «mediante propostas do Ministro do Ultramar», do n.º 1.º do artigo 150.º da Constituição em vigor.
A Câmara Corporativa entende, no seu douto parecer, que não é de aprovar o projecto neste ponto.
Em reforço da sua opinião invoca a Lei n.º 1005, de 7 de Agosto de 1920.
Quer-me parecer, salvo o devido respeito, que não foi feliz a invocação dessa lei. Verdade é que ela restringiu a determinadas matérias a faculdade que o Congresso tinha de legislar para o ultramar, passando assim o mesmo Congresso, como diz a Câmara Corporativa, de legislador normal que era a legislador de excepção.
A faculdade de legislar para o ultramar fora das matérias de exclusiva competência da Assembleia Nacional era atribuída ao governador, com o Conselho Legislativo na respectiva colónia, e ao Poder Executivo, tratando-se de mais de uma colónia.
Convém observar, porém, que o Poder Executivo só podia legislar ouvindo previamente o respectivo Conselho Legislativo, devendo submeter ao Congresso da República os actos que praticasse contra essa informação.
Vê-se daí que o Congresso da República continuava a ser, ainda em face da Lei n.º 1000, o supremo legislador para o ultramar. E se neste ponto ainda alguma dúvida subsistisse bastaria para a desfazer o artigo 7.º dessa lei, se dispunha nada mais, nada menos, do que isto: o Poder Executivo exercia a faculdade de legislar para o ultramar por delegação do Congresso da República.
O Ministro do Ultramar, que tem a seu cargo a superintendência e a fiscalização de todas as províncias ultramarinas - cada uma das quais tem os seus problemas, às vezes muito complicados -, não pode ter tempo nem vagar para atender às necessidades de tantos territórios cuja superior direcção lhe compete. Por mais especializado que ele seja em assuntos de administração ultramarina não lhe será possível estudar com a necessária largueza de visão as circunstâncias que condicionam a vida económica, financeira, social e cultural de cada uma das províncias.
Nestes termos, não será muito admitir que uma outra entidade tome a iniciativa de legislar.
Mas não sucederá que a Assembleia Nacional aprove uma lei contrária ao interesse nacional, dado o seu clássico desinteresse pelo ultramar, como diz a Câmara Corporativa?
Observe-se antes de mais nada que a faculdade que a Assembleia Nacional tem de legislar para o ultramar restringe-se a determinadas matérias. Mas nem por isso rejeito a hipótese de que a Assembleia Nacional possa aprovar um projecto de lei sem medir os prejuízos que daí possam resultar.
Obviava-se, porém, facilmente a esse inconveniente dispondo que nenhum projecto de lei relativamente ao ultramar seria discutido pela Assembleia Nacional sem previamente ser ouvido o Ministro do Ultramar.
Assim, se as razões que o Ministro do Ultramar aduzisse contra o projecto fossem plausíveis, a Assembleia Nacional não iria, decerto, aprová-lo.

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Foi em 1926, como a Câmara Corporativa reconhece, que o Ministro João Belo introduzia nas suas a bases orgânicas da administração colonial» a alteração em virtude da qual a competência exclusiva do Congresso só podia ser exercida por este, mediante proposta do Ministro das Colónias.
Mas já vai distante a época das bases orgânicas da administração colonial do Ministro João Belo. A própria Lei Orgânica do Ultramar e o estatuto que rege o Estado da índia, aprovando o regime de descentralização administrativa e financeira, em vez da apertada centralização como era a decretada nessas bases, vieram provar que elas - as bases - estão bera longe de corresponder às actuais exigências.
Referir-me-ei por último - the last but not the least - ao artigo 1.º do projecto de lei apresentado pelo Debutado Sr. Carlos Moreira e subscrito por mais dez Srs. Deputados.
Trata-se de uma disposição em virtude da qual a Constituição é precedida de um preambulo em que se invoca o nome de Deus.
Também esse artigo não Logrou parecer favorável da Câmara Corporativa - opondo-se-lhe, declara a mesma Câmara, que não é sem constrangimento que recomenda a rejeição da inclusão no pórtico da lei positiva suprema de uma invocação religiosa que está de acordo com a fé, a consciência e os sentimentos cristãos da unanimidade dos seus membros.
Não me estenderei, porém, em longas considerações sobre o assunto, de todo dispensáveis em face do muito que sobre ele disseram alguns dos Srs. Deputados que me antecederam no uso da palavra.
Direi apenas que não vejo razão plausível que se oponha a que a nossa Constituição seja precedida de um tal preambulo. A fórmula preconizada no projecto, ou qualquer outra que se limite a invocar o nome de Deus, é tão inofensiva, ou, melhor, tão inconfessional, que não há, não pode haver, religião nenhuma que não possa adoptá-la sem comprometer o corpo de suas doutrinas ou de sua moral. Deus é o primeiro dogma da religião, seja ela qual for. São incontestáveis e indiscutíveis os direitos do Ente Supremo sobre o indivíduo, sobre a família, sobre a Nação. A fórmula de que se trata não é senão o reconhecimento dos direitos de Deus.
Se for aprovada a disposição à qual me venho referindo, Portugal não será a primeira nação a invocar o nome de Deus na sua Constituição. A fórmula que só propõe não chega a ser nem um pálido reflexo das adoptadas por muitas nações.
Mencionarei algumas delas.
A Constituição da Irlanda, aprovada em 29 de Dezembro de 1937, começa assim: «Em nome da Santíssima Trindade, da qual vem toda a autoridade e à qual, como ao nosso último fim, se devem referir todos os nossos actos, tanto dos indivíduos como do Estado, etc.»
A Constituição da Grécia, aprovada em 1952, tem este preambulo: «Em nome da Santa, Consubstanciai e Indivídua Trindade, o Parlamento resolve».
A Constituição da União Sul-Africana reconhece no seu preambulo a soberania de Deus.
A Constituição da Confederação Helvética, aprovada em Maio de 1871, abre com estas palavras: «Em nome de Deus Todo-Poderoso».
A Constituição do Paraguai tem este preâmbulo: «A Nação, com o auxilio de Deus Todo-Poderoso, Supremo Legislador do Universo».
A Constituição das Filipinas, aprovada em 1935, começa assim: «O povo filipino implorando o auxílio da Divina Providencial».
Finalmente, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, aprovada em 26 de Setembro de 1946, tem este preâmbulo: «Nós, representantes do povo do Brasil, reunidos em Assembleia Constituinte, sob a protecção de Deus, decretamos e promulgamos».
Ao lado dos diplomas da lei fundamental das nações que mencionei não será fora de propósito citar a Concordata de 1140 entre a Santa Sé e Portugal, na qual se faz profissão da fé cristã pela invocação da Santíssima Trindade.
Verdade é que essa Concordata tem o valor de um tratado internacional. Mas não esqueçamos que ela foi ratificada por esta Assembleia Nacional e vigora como direito interno português (artigo n.º 61 do Decreto n.º 30 615).
As considerações que acabo de fazer não são uma manifestação mórbida do clericalismo. Assumi esta posição como cidadão de um pais que na sua Constituição reconhece que a religião católica é a religião da Nação e onde polo preceito da mesma Constituição a educação da juventude é orientada pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País, e são mantidas, protegidas e auxiliadas as missões católicas.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão.
Antes de o fazer quero prevenir os membros da Comissão de Política e Administração Geral e Local de que haverá reunião às 15 horas e 15 minutos, antes da sessão da tarde, a qual terá a mesma ordem do dia.
Está encerrada a sessão.

Eram 12 horas e 40 minutos.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Adriano Duarte Silva.
Alberto Pacheco Jorge.
Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior.
António Calheiros Lopes.
António Carlos dos Santos Fernandes Lima.
António José Rodrigues Prata.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João da Assunção da Cunha Valença.
João de Brito e Cunha.
João Maria Porto.
João Pedro Neves Clara.
Joaquim Pais de Azevedo.
José António Ferreira Barbosa.
José Dias de Araújo Correia.
José dos Santos Bessa.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel José Archer Homem de Melo.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Rogério Noel Peres Claro.

O REDACTOR - Luís de Avillez.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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