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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 123

ANO DE 1959 18 DE JUNHO

VII LEGISLATURA

(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)

SESSÃO N.º 123 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 17 DE JUNHO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs. José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues
Júlio Alberto da Costa Evangelista

Nota. - Foram publicados dois suplementos ao Diário das Sessões n.º 122, inserindo o 1.º o texto, aprovado pela Comissão de Legislação e Redacção, do decreto da Assembleia Nacional acerca da nacionalidade portuguesa, e o 2.º os textos, aprovados pela Comissão de Legislação e Redacção, dos decretos da Assembleia Nacional, sob a forma de resolução, acerca da Conta Geral do Estado e das contas das provindas ultramarinas referentes ao ano de 1957 e das contas da Junta do Crédito Público relativas ao ano de 1957.

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.
O Sr. Presidente comunicou que recebera da Presidência do Conselho vários decretos-leis para os fins do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição.
A Assembleia negou autorização ao Sr. Deputado Alberto Crua para depor como testemunha num tribunal de Braga.
O Sr. Deputado Manuel Nunes Fernandes requereu informações sobre a actividade da Comissão Reguladora das Moagens de Ramas.
O Sr. Deputado Augusto Simões ocupou-se da grave crise em que se debate a indústria de camionagem de carga.

Ordem do dia. - Continuou o debate na generalidade sobre a proposta e os projectos de alteração da Constituição Política.
Falaram os Srs. Deputados Augusto Cerqueira Gomes, Águedo de Oliveira, Martinho da Costa Lopes e José Soares da Fonseca.
O Sr. Presidente declarou encerrado o debate na generalidade e a, sessão às 20 horas e 10 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 55 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Afonso Augusto Pinto.
Agnelo Orneias do Rego.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Aires Fernandes Martins.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Américo Cortês Pinto.
Américo da Costa Ramalho.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha;
António Bartolomeu Gromicho.
António Calapez Gomes Garcia.
António Carlos dos Santos Fernandes Lima.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Cortês Lobão.
António José Rodrigues Prata.

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António Maria Vasconcelos de Morais Sarmento.
António Pereira de Meireles Rocha Lacerda.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Máximo Saraiva de Aguilar.
Artur Proença Duarte.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Avelino Teixeira da Mota.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Fernando António Muñoz de Oliveira.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Jerónimo Henriques Jorge.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Augusto Dias Rosas.
João Augusto Marchante.
João de Brito e Cunha.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pedro Neves Clara.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Pais de Azevedo.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Pereira Jardim.
José António Ferreira Barbosa.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José de Freitas Soares.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Hermano Saraiva.
José Manuel da Costa.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Rodrigo Carvalho.
José Rodrigues da Silva Mendes.
José dos Santos Bessa.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Laurénio Cota Morais dos Reis.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Tavares Neto Sequeira de Medeiros.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Angelo Morais de Oliveira.

ário de Figueiredo.
Martinho da Costa Lopes.
Paulo Cancella de Abreu.
Ramiro Machado Valadão.
Rogério Noel Peres Claro.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.
Venâncio Augusto Deslandes.
Virgílio David Pereira e Cruz.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 89 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia

Deu-se conta do seguinte:

Expediente

Telegramas

Da Câmara Municipal de Santo Tirso a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Duarte Amaral relativa à crise da indústria têxtil algodoeira.
Da Companhia de Fiação e Tecidos de Guimarães no mesmo sentido.
De Maria Alice Dias Ferreira, do Porto, a apoiar a inclusão do nome de Deus na Constituição Política.

O Sr. Presidente: - Enviados pela Presidência do Conselho, para os fins do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, encontram-se na Mesa os n.ºs 115, 122, 125, 126, 127 e 128 do Diário do Governo, 1.ª série, respectivamente de 20 e 29 de Maio último, e 2, 3, 4 e 5 do corrente, que inserem os Decretos-Leis n.º 42 271, que aprova o plano das estradas municipais do continente e revoga o Decreto n.º 38 051; n.º 42 289, que autoriza o Ministério da Marinha a contratar com os Estaleiros Navais de Viana do Castelo a construção e fornecimento de um navio petroleiro de 9000 t; n.º 42 293, que fixa as gratificações a abonar aos oficiais que prestam serviço na Fábrica Nacional de Cordoaria; n.º 42 294, que define os objectivos necessários ao reajustamento das funções de intervenção económica exercidas por organismos corporativos dependentes da Secretaria de Estado do Comércio; n.º 42 299, que dá nova redacção ao § 3.º do artigo 15.º e ao § único do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 42 093, que estabelece o regime por que deve reger-se durante o ano de 1959 o Fundo de Socorro Social; n.º 42 301, que autoriza o Ministro das Finanças, mediante parecer fundamentado da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, a conceder determinados benefícios de ordem fiscal às emissões de títulos de empresas privadas cujo produto se destina à realização de empreendimentos integrados em planos de fomento; n.º 42 302, que determina que os créditos do Estado pelos adiantamentos concedidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 39 755 (obras de hidráulica) gozem He privilégio imobiliário sobre os prédios beneficiados e revoga os artigos 3.º e 4.º do citado decreto-lei; n.º 42 308, que cria no quadro do pessoal da Direcção-Geral de Fazenda do Ministério do Ultramar o lugar de adjunto do director-geral.
Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério da Justiça em satisfação do requerimento apresentado na sessão de 14 de Maio findo pelo Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu. Vão ser entregues àquele Sr. Deputado.
Está também na Mesa um ofício do Tribunal do Trabalho de Braga solicitando a esta Assembleia autorização para que o Sr. Deputado Alberto Cruz ali possa depor como testemunha no próximo dia 3 de Julho, pelas 11 horas.
Informo que o Sr. Deputado Alberto Cruz vê inconveniente para a sua actuação parlamentar em que a Câmara lhe conceda a autorização solicitada.
Consultada a Câmara, foi negada a autorização.

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bons horários e boas viaturas, o mesmo mão sucedeu à indústria transportadora de mercadorias, à qual, por mais temida pela sua congénere ferroviária, muito mais duro condicionalismo foi imposto para despropositada defesa desta.
Assim, enquanto o imposto de camionagem integrante do sistema tributário das empresas exploradoras do transporte de passageiros se baseia em tarifas efectivas praticadas, que a própria disciplina das concessões não deixa perturbar, o da indústria de transporte de mercadorias é já absolutamente arbitrário, porque o seu imposto de camionagem é fixado com base em tarifas imaginárias e elevadíssimas que nunca realmente existiram.
Além disso, as fórmulas de determinação deste imposto apavorante têm-se comprazido em desconhecer inteiramente as realidades.
Na verdade, criado para o já referido equilíbrio económico, na mira de, em cada caso, ser utilizada a forma de transporte mais de harmonia com os interesses da colectividade, o imposto de camionagem desta indústria tem experimentado agravamentos incompreensíveis, que totalmente se evadem ao comando de qualquer aceitável justificação. É o caso, por exemplo, do aumento dos valores de K das fórmulas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 37 272, coeficiente variável com a natureza do transporte e com a área dentro da qual o mesmo se efectue, que, fixado nos valores de 1,2 e 2 em 1948 para os industriais utilizando raios de 100 e superior a 100 km de actuação, foi inconcebivelmente elevado em 1951, pelo Decreto-Lei n.º 38 248, respectivamente, para 1,8 e para 4... sem qualquer conhecida razão.
Como, concomitantemente, foi também agravado o imposto de compensação e não diminuíram - antes aumentaram também - os encargos corporativos, a situação na indústria transportadora tornou-se efectivamente muito difícil e especialmente grave a dos industriais de camionagem de carga.
Mas o fenómeno não alcançou de impressionar os departamentos do Estado.
Pàlidamente desenhado nas minhas aludidas intervenções nesta Câmara, a imprensa em geral - e em especial o jornal O Século - apresentou-o com impressionante nitidez, fazendo-se eco das múltiplas reclamações, queixas e petições dirigidas ao Governo, e principalmente ao Ministério das Comunicações, onde sempre encontraram uma intransponível barreira de indiferença, bem pouco justificável e ainda menos compreensível.
No entanto, eram absolutamente cabidos os argumentos invocados e sugestivos os números apresentados perante aquele departamento do Estado.
Não se quis ter ali em conta que o progressivo desenvolvimento da vida nacional não se compadecia com as fórmulas editadas sob a timidez do pavor há pouco referido, e, por isso, a indústria transportadora rodoviária de mercadorias, apertada num condicionalismo arbitrário de despropositado contingentamento, com tonelagens limitadas e passível de dificuldades de toda a ordem, não pôde acompanhar esse surto de progresso.
Como, por sua vez, a indústria ferroviária não tinha possibilidade de aumentar a sua zona de influência, estabelecendo novas linhas para desvendar o território nacional ainda não servido, nem lhe era fácil criar uma apreciável melhoria do tráfego, as constantes solicitações das necessidades nacionais do sector dos transportes, na sua irreprimível expansão, fizeram com que ao lado da indústria legalizada, mas agonizante, pelas aludidas razoes, começasse a florescer, completando-a e substituindo-se-lhe a concorrência dos transportadores particulares. Esse florescimento tem algo de impressionante pela ampla facilidade que lhe tem sido concedida.
Libertos do pagamento de impostos e contribuições específicas, por expressa determinação legal, podendo agir sem quaisquer peias através de todo o território nacional, tomaram os particulares conta dos mercados que pertenciam à indústria transportadora e defendem avaramente as suas conquistas pelas mais especiosas e engenhosas formas de acção, apresentando muitas delas verdadeiros atentados à dignidade profissional e à própria economia nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Mas os números elucidam um pouco melhor do que a simples alegação.
Em 1946 a indústria de transportes de carga contava com 3172 veículos pesados e 229 ligeiros, estando ao serviço dos particulares 10 600 viaturas.
Dez anos mais tarde, em 1956, a indústria dispõe de 702 viaturas ligeiras e 3922 pesadas, tendo os veículos explorados pelos particulares atingido já o número de 35 785.
Em fins de 1958 estes números evoluem por tal forma que apresentam já cerca de 4550 viaturas dos dois tipos ao serviço da indústria transportadora, contra mais de 50 000 veículos pertencentes aos transportadores particulares...
A robusta desproporção destes números demonstra com clareza que se chegou a um estado verdadeiramente lamentável na coordenação dos transportes terrestres...
Efectivamente, e antes de mais, ressalta a impressionante força da concorrência - deslealíssima na maioria dos casos - que as 50 000 viaturas dos particulares estão a fazer aos profissionais, tornando-lhes a vida cada vez mais tormentosa.
Por outro, nota-se a forte iniquidade que resulta de, exercendo uns e outros uma mesma actividade, só a uns se aplicar o sistema tributário criado para fomentar entre todos o equilíbrio económico que se desejou ver instituído no sector dos transportes...
É, na verdade, um tremendo paradoxo...
E tão grande e tão perturbador ele é que teve finalmente de o encarar o próprio Ministério das Comunicações.
Assim, o anterior titular desta pasta governamental, quase no fim do seu longo mandato, forçado a reconhecer a gravidade dos problemas acumulados em quase dez anos de vigência do defeituoso sistema coordenador, que tanto desconhecera, dignou-se finalmente, por despacho de 22 de Janeiro de 1958, que foi publicado no Diário do Governo apenas em 27 de Fevereiro do mesmo ano, nomear uma concorrida comissão para proceder ao estudo da revisão desse sistema, dentro da orientação que se encarregou de traçar-lhe.
Denunciando certa insuficiência funcional dos órgãos de trabalho do Ministério das Comunicações, nomeadamente da Direcção-Geral de Transportes Terrestres, essa determinação significa, sem embargo, o oficial reconhecimento do malogro do regime. Que largo tempo se perdeu... entretanto!
Desconheço em absoluto o ritmo de trabalho dessa comissão, que sei estar integrada de bons técnicos, certamente animados do melhor desejo de não dilatarem a indicação das soluções que lhes foram pedidas.
Como quer que seja, porém, a verdade é que mais de um ano já vai decorrido e os muitos males do sistema, onde avultam os da iníqua tributação, continuam a flagelar os industriais transportadores com redobrada intensidade.
Tudo lhes tem sido adverso.

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bons horários e boas viaturas, o mesmo não sucedeu à indústria transportadora de mercadorias, à qual, por mau temida pela sua congénere ferroviária, muito mais duro condicionalismo foi imposto para despropositada defesa desta.
Assim, enquanto o imposto de camionagem integrante do sistema tributário das empresas exploradoras do transporte de passageiros se baseia em tarifas efectivas praticadas, que a própria disciplina das concessões não deixa perturbar, o da indústria de transporte de mercadorias é já absolutamente arbitrário, porque o seu imposto de camionagem é fixado com base em tarifas imaginárias e elevadíssimas que nunca realmente existiram.
Além disso, as fórmulas de determinação deste imposto apavorante têm-se comprazido em desconhecer inteiramente as realidades.
Na verdade, criado para o já referido equilíbrio económico, na mira de, em cada caso, ser utilizada a forma de transporte mais de harmonia com os interesses da colectividade, o imposto de camionagem desta indústria tem experimentado agravamentos incompreensíveis, que totalmente se evadem ao comando de qualquer aceitável justificação. É o caso, por exemplo, o aumento dos valores de K das fórmulas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 37272, coeficiente variável com a natureza do transporte e com a área dentro da qual o mesmo se efectue, que, fixado nos valores de 1,2 e 2 em 1948 para os industriais utilizando raios de 100 e superior a 100 km de actuação, foi inconcebivelmente elevado em 1951, pelo Decreto-Lei n.º 38 248, respectivamente, para 1,8 e para 4... sem qualquer conhecida vazão.
Gomo, concomitantemente, foi também agravado o imposto de compensação e não diminuíram - antes aumentaram também - os encargos corporativos, a situação na indústria transportadora tornou-se efectivamente muito difícil e especialmente gravo a dos industriais de camionagem de carga.
Mas o fenómeno não alcançou de impressionar os departamentos do Estado.
Pàlidamente desenhado nas minhas aludidas intervenções nesta Câmara, a imprensa em geral - e em especial o jornal O Século - apresentou-o com impressionante nitidez, fazendo-se eco das múltiplas reclamações, queixas e petições dirigidas ao Governo, e principalmente ao Ministério das Comunicações, onde sempre encontraram uma intransponível barreira de indiferença, bem pouco justificável e ainda menos compreensível.
No entanto, eram absolutamente cabidos os argumentos invocados e sugestivos os números apresentados perante aquele departamento do Estado.
Não se quis ter ali em conta que o progressivo desenvolvimento da vida nacional não se compadecia com as fórmulas editadas sob a timidez do pavor há pouco referido, e, por isso, a indústria transportadora rodoviária de mercadorias, apertada num condicionalismo arbitrário de despropositado contingentamento, com tonelagens limitados e passível de dificuldades de toda a ordem, não pôde acompanhar esse surto de progresso.
Como, por sua vez, a indústria ferroviária não tinha possibilidade de aumentar a sua zona de influência, estabelecendo novas linhas para desvendar o território nacional ainda não servido, nem lhe era fácil criar uma apreciável melhoria do tráfego, as constantes solicitações das necessidades nacionais do sector dos transportes, na sua irreprimível expansão, fizeram com que ao lado da indústria legalizada, mas agonizante, pelas aludidas razões, começasse a florescer, completando-a e substituindo-se-lhe a concorrência dos transportadores particulares. Esse florescimento tem algo de impressionante pela ampla facilidade que lhe tem sido concedida.
Libertos do pagamento de impostos e contribuições específicas, por expressa. determinação legal, podendo agir sem quaisquer peias através de todo o território nacional, tomaram os particulares conta dos mercados que pertenciam à indústria transportadora e defendem avaramente as suas conquistas pelas mais especiosas e engenhosas formas de acção, apresentando muitas delas verdadeiros atentados à dignidade profissional e à própria economia nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Mas os números elucidam um pouco melhor do que a simples alegação.
Em 1946 a indústria de transportes de carga contava com 3172 veículos pesados e 229 ligeiros, estando ao serviço dos particulares 10 600 viaturas.
Dez anos mais tarde, em 1956, a indústria dispõe de 702. viaturas ligeiras e 3922 pesadas, tendo os veículos explorados pelos particulares atingido já o número de 35 785.
Em fins de 1958 estes números evoluem por tal forma que apresentam já cerca de 4550 viaturas, dos dois tipos ao serviço da indústria transportadora, contra mais de 50 000 veículos pertencentes aos transportadores particulares...
A robusta desproporção destes números demonstra com clareza que se chegou a um estado verdadeiramente lamentável na coordenação dos transportes terrestres...
Efectivamente, e antes de mais, ressalta a impressionante força da concorrência - deslealíssima na maioria dos casos - que as 50 000 viaturas dos particulares estão a fazer aos profissionais, tornando-lhes a vida cada vez mais tormentosa.
Por outro, nota-se a forte iniquidade que resulta de exercendo uns e outros uma mesma actividade, só a nus se aplicar o sistema tributário criado para fomentar entre todos o equilíbrio económico que se desejou ver instituído no sector dos transportes...
É, na verdade, um tremendo paradoxo...
E tão grande e tão perturbador ele é que teve finalmente de o encarar o próprio Ministério das Comunicações.
Assim, o anterior titular desta pasta governamental, quase no fim do seu longo mandato, forçado a reconhecer a gravidade dos problemas acumulados em quase dez anos de vigência do defeituoso sistema coordenador, que tanto desconhecera, dignou-se "finalmente, por despacho de 22 de Janeiro de 1958, que foi publicado no Diário do Governo apenas em 27 de Fevereiro do mesmo ano, nomear uma concorrida comissão para proceder ao estudo da revisão desse sistema, dentro da orientação que se encarregou de traçar-lhe.
Denunciando certa insuficiência funcional dos órgãos de trabalho do Ministério das Comunicações, nomeadamente da Direcção-Geral de Transportes Terrestres, essa determinação significa, sem embargo, o oficial reconhecimento do malogro do regime. Que largo tempo se perdeu... entretanto!
Desconheço em absoluto o ritmo de trabalho dessa comissão, que sei estar integrada de bons técnicos, certamente animados do melhor desejo de não dilatarem a indicação das soluções que lhes foram pedidas.
Como quer que seja, porém, a verdade é que mais de um ano já vai decorrido e os muitos males do sistema, onde avultam os da iníqua tributação, continuam a flagelar os industriais transportadores com redobrada intensidade.
Tudo lhes tem sido adverso.

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Tenha-se em conta que a máquina burocrática deste sector é extremamente complexa, pois nele mandam ou interferem com maior ou menor suserania, além do Ministério das Comunicações, o Ministério das Finanças, o Ministério da Economia, o Ministério das Corporações e Previdência Social, o Ministério das Obras Públicas e o Ministério da Justiça.
Assim, se se tiver em consideração que é praticamente impossível harmonizar as hierarquias e serviços de todos estes departamentos, em que há uma manifesta tendência para o trabalho em compartimentos estanques, pode chegar-se à avaliação das dificuldades a vencer e da forte perturbação que tal sistema vem causando na vida da indústria transportadora.
Só assim se pode explicar - mas não compreender - que, havendo sido reconhecida pelo aludido despacho do Ministro das Comunicações a crise a que chegou esta indústria, por virtude das distorções e deformidades do regime de coordenação dos transportes terrestres, aliás também já evidenciada em inquérito feito pelo Ministério das Finanças, se tenham desconhecido tão impressionantes conclusões no Ministério da Economia e, raciocinando-se em sentido diametralmente oposto, se haja ali decretado para o ano corrente um novo aumento do preço do gasóleo para toda a indústria rodoviária de transportes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Como, em geral, esta indústria utiliza este combustível na quase totalidade das suas viaturas, sofreram os empresários um novo e rude golpe na rentabilidade das suas explorações, já seriamente afectadas pelo aumento de $50 anteriormente decretado a propósito das dificuldades emergentes da aventura do canal de Suez, que foram meramente passageiras.
É que aos aumentos referidos não correspondeu qualquer elevação das tarifas estabelecidas e estudadas para o gasóleo, cotado a um preço de 1$70 cada litro e actualmente já elevado para 2$50. Por isso, gerou-se um forte agravamento na vida de toda a indústria transportadora rodoviária, cuja perturbação ainda permanece por não se ter eliminado a sua estranha causa, sem embargo de, no clima ordeiro que é seu timbre, a representação corporativa da indústria ter feito chegar ao Ministério da Economia o valioso acervo das ponderosas razões da sua dificuldade.
Na verdade, o somado aumento de $80 em cada litro de gasóleo nos gastos de muitos milhares de litros que cada empresa faz representa uma verba vultosa que lhe retira a justa remuneração dos serviços prestados, por não ter contrapartida.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E, se para os empresários de concessões do transporte colectivo de passageiros essa diminuição de rendimento afectará a eficiência dos seus serviços, com evidente prejuízo da grande multidão dos utentes, para a sacrificada camionagem de carga este novo e rude golpe mais aumentou o pavoroso infortúnio em que tem vivido o grande número dos seus industriais e de que dá conta o grande volume de execuções fiscais por falta de pagamento dos impostos.
Mas o País não pode, de nenhuma maneira, continuar com a sua indústria de transportes rodoviários submetida a semelhante sistema, que nenhuma garantia também confere aos transportes ferroviários, igualmente em crise.
A circulação das pessoas e dos bens carece de ter convenientemente assegurado o seu eficiente desenvolvimento no quadro das necessidades nacionais.
Não pode continuar-se, sob o pavor há pouco referido, a sacrificar ingloriamente tantos dos bons valores da nossa grei, permitindo que sejam escravizados por interesses injustificáveis. Vive da ou para a indústria dos transportes rodoviários numeroso grupo de famílias, que não devem continuar sob o cortejo de inibições, a que têm estado submetidas como se os seus chefes se houvessem dedicado a uma ocupação maldita.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Urge, por consequência, aproveitar a dolorosa lição do longo decénio percorrido desde 1948 e fazer uma coordenação de justo equilíbrio entre todos os transportes terrestres, onde haja direitos e deveres suficientemente avaliados e convenientemente fixados, sem pavores nem favoritismos que nada pode justificar.
É necessário que esses direitos e deveres, de todos perante todos, constem de legislação apropriada e do inteiro conhecimento da Nação e deixem de viver na esfera de poderes discricionários, usados pelas formas mais díspares.
No Sr. Ministro das Comunicações, que assumiu a gerência da sua importante pasta com integral aprazimento da Nação e que já demonstrou o seu intento de instaurar os primados da Revolução Nacional no vasto sector a seu cargo, depositam as maiores esperanças os que até agora muito têm sofrido de fome e sede de justiça.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Tarefas difíceis, provindas da grave herança que lhe foi transmitida, certamente o esperam; mas o Sr. Ministro já as conhece, e, porque as não enjeitou, a sua abnegação e a sua lúcida inteligência garantem-nos que as resolverá sem pavores nem favoritismos, mas com a temperança e sabedoria do governante ilustre em que a Nação confia inteiramente, e que o fará sem mais delongas.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua o debate na generalidade sobre a proposta e os projectos de lei de alteração à Constituição Política.
Tem a palavra o Sr. Deputado Augusto Cerqueira Cromes, para concluir as suas considerações iniciadas na sessão de ontem.

O Sr. Augusto Cerqueira Gomes: - Sr. Presidente: passarei agora a considerar o outro grande problema que, a meus olhos, sobressai com destacado interesse de entre as questões abrangidas nesta revisão constitucional - o problema do modo de designação dos detentores do poder político e da representação nacional. Tema sempre candente, eterno objecto de divergências e de disputas, em que tantas vezes prevalece mais o calor das paixões e o peso dos preconceitos do que a luz saudável da razão e do bom senso e que, neste passo da evolução do regime e ante as realidades políticas do nosso tempo, se reveste da maior importância e acuidade.
A organização do poder do Estado perfila-se na nossa estrutura constitucional como uma pirâmide que tem

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no vértice a chefia do Estado - chave de todo o sistema político. E bem. O Estado exerce uma missão de unificação e de comando superior que implica um Poder forte e de feição monocrática. Onde o Poder está sujeito a dúvidas e disputas internas a autoridade dilui-se, degrada-se, e a sociedade dissolve-se na anarquia e na desordem.
Considerando o problema no plano dos princípios, tenho para mim que normalmente é a designação hereditária a que melhor assegura ao poder supremo do Estado condições de eficácia e de excelência para o exercício da sua altamissão. Só por ela também pode constituir-se um Poder que seja símbolo, adequado e fiel, da Nação, verdadeiramente representativo da sua essência e da sua vida histórica.
Só a realeza é, por natureza e virtude de posição, Poder nacional, Poder unificador, Poder contínuo, Poder humano e paternal.
Poder nacional. A realeza é uma instituição que identifica todo o ser de uma família com todo o ser e interesse profundo da Nação. Por dever profissional - esse é o seu ofício, para que nasceu, para que foi criado e ungido por egoísmo -, os seus interesses são os interesses do Estado; por sentimento de paternidade e de família - o trono é pertença dos seus filhos e foi já legado dos seus pais; por amor - na medida em que a Nação é obra dos seus antepassados e o mando aproxima os povos e os reis, e até, se quiserem, por temor, o príncipe está vinculado e confundido com a própria vida da Nação, uma dádiva total e identificação indissolúvel que dura e se prolonga indefinidamente, para além da morte, no andar dos tempos, através da dinastia - sucessão de homens solidários pelo sangue, pela formação e pela responsabilidade.
A famosa sentença atribuída ao rei Sol: L'Etat c'est moi, se a desligarmos do sentido erróneo em que a tomou o absolutismo, exprime esta verdade, tantas vezes patente na vida e na história, do casamento místico de uma família com o destino e a missão de uma comunidade nacional.
Assim, tudo o que é humano - desde o egoísmo à virtude - prende a realeza ao serviço do Estado, incitando-a à sua grande missão pelos estímulos mais vivos que podem mover o cérebro e o coração do homem. Assim se nacionaliza o Poder, órgão do interesse nacional, é a expressão que mais adequadamente define a função política da realeza. Sequestrando nas suas mãos o poder supremo, fica este sobranceiro às forças sociais, não está o Estado à mercê da conquista e ocupação pelos interesses ou as ambições de uma fracção social. E é por isso que a monarquia se impõe, destacadamente, como a mais alta forma de poder social, como a mais perfeita realização da ideia de Estado.
Poder unificador. Porque melhor garante a unidade - e a unidade é verdadeiramente a missão do Estado -, o que é de si uno. E o poder da realeza é, substancialmente, uno - unidade orgânica, unidade de cada hora, unidade de origem, unidade no tempo que é a continuidade.
Poder contínuo. E a continuidade é mais que a duração, é sequência, é sucessão coerente no desenrolar da vida e da história. Continuidade que é, do ponto de vista político, uma das grandes virtudes da realeza. Porque todas as grandes realizações políticas são obra do tempo e dos esforços orientados numa linha de conformidade com o objectivo final. Se, como disse Goethe, a obra-prima do homem é durar, a monarquia então realiza, em política, a obra-prima de que fala Goethe.
Poder independente. Independência na origem, independência no exercício. Porque o poder não vem da vontade dos homens, não fica maculado pelo pecado original da sua instituição, tutelado pelos que o erigiram e fizeram. O poder dá-o o sangue, em virtude de uma lei. É livre.
Poder humano e paternal. Poder encarnado e vivo. Poder fonte de amor. Nada mais frio do que o poder sem carne e sem alma, ser funcional e anónimo. Nada mais desolador do que a lei nua e a norma sem comunicabilidade nem calor humano.
E só a presença do homem, do homem que se identifica com o povo, que o acompanha e o rege desde o berço até à morte; o homem que o povo vê, infante e gracioso, a crescer na vida para um dia o servir e depois no trono, rei e senhor, associado para sempre ao seu destino, nas horas boas e nas horas más, até morrer e se continuar nos do seu sangue - esta presença do homem que dura e irmana é que cria o amor, o amor que tantas vezes existiu, na nossa história destacadamente, quase sempre existente entre governantes e governados. E o amor também é preciso no governo dos homens.
Os homens têm necessidade de amar, e, se há neles um sentimento de autonomia e de rebeldia, também o há de submissão e de reconhecimento para os que mandam, com brandura e para o bem.
Pode até dizer-se que o governo se mantém, sobretudo, pelo medo ou pelo amor. Que seja pelo amor. Como entre os pais e os filhos, o amor adoça a voz dos que comandam e torna mais fácil a obediência e a submissão.
A vida política não será, como no reinado da soberania popular, perpétua disputa de litigantes, a confrontar direitos e limites de governantes e governados. Será a vida de uma grande família que o amor liga, criadoramente, num destino colectivo. Tem razão Alfredo Pose. O drama da ausência do homem é uma das maiores razões da divisão da cidade moderna.
Um dos grandes problemas do nosso tempo é o da reencarnação do Poder, dando seguro o coração humano a quem comanda. E é pela sua orfandade política que o homem do nosso tempo, governado por abstracções e a frieza impassível da lei, não tendo diante de si um ser humano com quem tratar, ou a ser governado por homens transitórios que passam a correr, sem criar vínculos nem afectos, é por isso que o homem moderno se entrega tão depressa ao ditador de aventura que lhe conquista a alma, porque é um homem.
Desço do plano dos princípios à vida das realidades e do condicionalismo dos tempos. E, já que dentro do sistema electivo há-de solucionar-se o problema, tentemos, ao menos, rodear a escolha das possíveis garantias de boa selecção e de dispor as coisas para que do sufrágio não resulte diminuição para o prestígio do eleito. E este desígnio impõe que os que escolhem sejam altamente qualificados, valores consagrados com títulos de capacidade indiscutível. E que, por outro lado, a eleição se faça em ambiente da maior compostura, da maior dignidade e elevação.
Propôs o Governo um colégio eleitoral composto pela Câmara Corporativa e a Assembleia Nacional e delegados dos municípios portugueses.
No meu projecto sugeri que, em lugar dos delegados dos municípios, se confiasse o alto encargo às figuras que ocupam os cargos e posições mais eminentes no País, o que pode, com a maior legitimidade, chamar o seu escol, os seus grandes, os seus notáveis.
Assim me parece altear-se o mais possível o nível do sufrágio, rodeá-lo de grandeza e de solenidade. Seria título da mais alta consideração e garantia do maior prestígio sair eleito de uma assembleia onde concorriam os valores supremos da Nação, muitos desses valores de todo independentes do Poder e muitos, também, exercendo funções ou detendo cargos a um nível verdadeiramente nacional.

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Assim propus e continuo convencido de que esta eleição, genuinamente aristocrática no melhor sentido, é solução a preferir para a escolha do Chefe do Estado. Há quem pretenda, ou por vício de formação política, ou ainda pela força de preconceitos democráticos, que a razão e o bom senso condenam implacàvelmente, há quem pretenda - dizia eu - que o sufrágio político será tanto mais genuíno e válido quanto mais se aproximar da base; e o mais puro e o que mais consagra e legitima o eleito será o sufrágio universal e popular.
Pois eu penso, e tenho razões para isso, que o sufrágio só é legítimo e dignifica o escolhido quando está à altura dos problemas que a eleição envolve e de medir bem as responsabilidades que cada um se assume no acto da opção. A democracia, o sufrágio popular, parece-me bem ao nível da paróquia e, quando muito, do município. E daí para cima entra francamente no plano da deficiência e da irresponsabilidade e, ao nível dos problemas do Estado, torna-se escandalosamente incapaz e inadequada.
Para a designação dos membros da Assembleia Nacional propus o sufrágio por círculos distritais e colégios eleitorais, constituídos pelos municípios e alguns representantes dos organismos corporativos locais, a indicar por lei, conforme as realidades de cada um.
A minha intenção é dar à escolha o carácter fundamentalmente municipal. Aliás, a intervenção dos elementos corporativos não desfiguraria o meu propósito, porque, enraizadas no seu meio, não deixariam de se integrar no espírito regional de colégio formado pelos municípios.
Talvez mesmo a redacção mais conveniente da proposta seria atribuir a função eleitoral à reunião dos conselhos municipais de cada distrito, onde já se integram todos os elementos considerados.
Sendo assim, a minha proposta não sugere de modo nenhum um sufrágio corporativo, pelo menos no sentido restrito e corrente de corporativismo, como erradamente se diz no parecer da Câmara Corporativa. E caem pela base as objecções ali formuladas com esse fundamento. Objecções, aliás, em inteira contradição com outros passos do parecer da mesma Câmara sobre a proposta governamental. Mas isso não interessa.
Parece-me que esta minha sugestão se justifica plenamente pelo nível de consciência que já implica a escolha dos Deputados. Mais uma vez aqui o sufrágio universal se pode considerar muito abaixo das responsabilidades da eleição.
Os conselhos municipais constituem já o resultado de uma primeira selecção eleitoral a partir das eleições primárias, tanto das autarquias locais (paróquias) como das actividades corporativas. E até deste modo já podem satisfazer os pruridos democráticos de muitos a quem isto interessa.
O que já representam, evidentemente, é uma camada eleitoral muito mais à altura de escolher os representantes distritais.
Pode objectar-se que não é de representantes distritais que se trata, porque os Deputados são constitucionalmente representantes da Nação. Mas a objecção seria igualmente cabida para o actual modo de eleição individualista territorial, também realizado por distritos.
Sem dúvida que nada tiraria aos escolhidos a tendência a olhar com algum carinho para os problemas da sua região; mas isso, que é naturalíssimo e humano, já se verifica, agora nesta Assembleia. E não me parece grande mal.
Os municípios são uma realidade na vida portuguesa, instituições cheias de vitalidade, com dignidade secular e que merecem também estar representadas junto do Poder.
Não me parece que a exígua representação que têm na Câmara Corporativa esteja em relação com a sua importância e a sua imponente realidade.
O que é preciso, para que não seja um mal, é que os homens escolhidos, para além desse aspecto, estejam à altura de considerar os problemas que aqui se debatem no plano nacional.
E isso é que a minha proposta parece garantir muito melhor que o actual modo de sufrágio. Porque, ao elegerem os representantes distritais, os municípios deverão naturalmente inclinar-se para as figuras de maior relevo e superioridade no meio, pessoas evidentemente destacadas pela sua proeminência social, pela sua cultura, pelas posições que ali ocupam.
E estas serão sem nenhuma dúvida, ao menos em grande parte, perfeitamente qualificadas e ao nível dos problemas que competem a esta Câmara.
Mas, a par disto, a minha proposta viria pôr de acordo esta eleição com as imposições mais claras da nossa doutrina político-social. Repudiamos abertamente a visão individualista da sociedade entendida como poeira amorfa de indivíduos autónomos.
E consideramo-la como trama complexa de relações humanas, um todo orgânico diferenciado e hierarquizado, constituído por sociedades menores, grupos em simbiose de relação e de dependência, onde os homens se associam por parentesco, por amor, por necessidade, por preferências do espírito. E que são, no plano geográfico, as paróquias, os municípios e as províncias - expressão das relações de vizinhança. São, no plano das actividades sociais, a vasta e multiforme rede de associações de fins económicos, culturais e morais. E através desses grupos menores que o homem se enquadra no Estado, e não directa e imediatamente.
E, portanto, a representação social deve ter por base esses grupos intermediários, e não os indivíduos. No caso ficaremos a ter, em vez de um sistema territorial individualista, um sistema territorial orgânico.
O sufrágio individualista é um erro e a negação dos princípios que perfilhamos. São horas de varrer impiedosamente todo esse lixo do passado.
Além de todos os outros defeitos - o seu desacordo com as realidades sociais, a sua incompetência insanável, a sua versatilidade, a sua irresponsabilidade, o seu fácil aproveitamento por todos os poderes, bons ou maus, claros ou ocultos, nacionais ou antinacionais, desde que tenham possibilidades para isso, o sufrágio individualista tem o perigo grave de se volver a instrumentos gigantescos de perturbação e de subversão social.
Na sua lógica, aliás, estaria a liberdade de criação de partidos. Mas, sobretudo, o que há a considerar é o problema gravíssimo das campanhas eleitorais, que, neste sistema, não podem deixar de ser permitidas.
Ora essas campanhas, com o pretenso objectivo de esclarecer a opinião pública, só servem para turvar o sossego dos espíritos e das almas, desencadear ódios e paixões, semear discórdias e divisões e não raro levar a sociedade à guerra civil e à desordem, deixando atrás de si um rasto de agitação que leva muito tempo a serenar.
Recorde-se a história de todas as campanhas eleitorais que se tem feito na vida do regime, com uma oposição sem limitações de nenhuma espécie nos meios de que se serve para a propaganda e para a disputa.
A sua violência vem crescendo sempre, e todos assistimos, há meses, a uma obra de agitação do mais nítido carácter insurreccional e subversivo.
Pergunto solenemente à consciência dos que me ouvem se havemos de consentir que a sorte do País, o destino da obra reconstrutiva que estamos a erguer e,

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até, a nossa liberdade e a nossa vida possam estar periodicamente à mercê destes riscos, destas ameaças e destas balbúrdias?

Se num país que recuperou o sentido da sua dignidade e a linha de correcção nos costumes políticos pode tolerar-se esta sobrevivência de política degradante, sem que isso represente, da nossa parte, uma traição de princípios e uma cobardia de afirmação?
Por minha parte, não tenho dúvidas sobre a resposta a dar e resolutamente o fiz no projecto que apresentei. Mas eu sou uma voz apenas. E, se mais não posso, fica aqui a minha afirmação de princípios, o clamor da minha inteligência e o voto da minha consciência de português que ama a sua terra até à paixão e quer ser aqui ardoroso servidor do bem comum.
Outras questões gostaria de aqui abordar. Não mo consentiu o exíguo tempo de que pude dispor para escrever estas palavras - algumas horas apenas. Será para as tratar na discussão da especialidade, porque todas, nessa hora, virão forçosamente à discussão.
Para concluir, quero ainda fazer uma declaração solene e também declaração de princípios.
Alguns Deputados que aqui elevaram a voz e compartilham das minhas preferências monárquicas declararam que, por coerência de princípios, não tomariam parte na votação do artigo relativo à eleição do Chefe do Estado. Sem menos respeito por esta atitude, devo declarar que, por minha parte, os não posso acompanhar e também por lógica de princípios, nesse propósito de abstenção. E defino assim a minha posição em relação ao regime e a esse problema constitucional.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - O que V. Ex.ª acaba de dizer, em parte, diz-me respeito, mas eu não disse que me abstinha de intervir na votação do artigo 72.º, nem podia, regimentalmente, proceder desse modo.
O que eu e outros nossos colegas dissemos foi que rejeitávamos pura e simplesmente esse artigo, como todos e quaisquer que se refiram à eleição do Chefe do Estado. É diferente.

O Orador: - Peço desculpa, mas está feita a rectificação.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Nas considerações que fiz também defini a minha posição, idêntica à do Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu, com uma pequena alteração.

O Orador: - O Estado Novo realizou uma obra de restauração nacional verdadeiramente prodigiosa, que há-de projectar-se na história como a era de maior afirmação reconstrutiva e criadora da nossa caminhada multissecular.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Proclamou e conseguiu impor, na ordem prática, certos princípios e normas de sábia política, a que se deve - sem excluir os méritos dos governantes - a grande eficiência do esforço desenvolvido, a imponência dos resultados e a possibilidade de conceber e levar a cabo a obra produzida.
Mas esses princípios enormes estão em contradição com a base electiva do regime e só puderam ser instaurados por uma confluência de razões, forçosamente casuais e transitórias, que permitiram superar os seus malefícios - a primeira das quais foi o advento de Salazar - , o seu génio político, o seu alto ascendente moral, a sua luminosa inteligência, o prestígio da sua obra, a singularidade do seu momento histórico. Desfeito este condicionalismo e entregue o regime à lógica do seu alicerce mortal, o País, se não entrar de roldão nas baixezas e misérias da democracia, com o retorno das desgraças do passado, seguramente agravadas pelo clima de violências e a desorientação dos nossos tempos, verá o desabar dramático de tudo que se fez à custa de trabalhos e sacrifícios.
Só a solução monárquica, pelas suas virtudes institucionais, pode salvar o destino da obra da Revolução e assegurar, para bem do País, a institucionalização dos seus princípios, a continuidade dos seus métodos e o prosseguimento da sua obra.

O Sr. José Sarmento: - Muito bem!

O Orador : - Considero, assim, que não está resolvido em Portugal o problema basilar do regime.
Mas também reconheço que não é a hora de levantar este problema.

Vozes : - Muito bem, muito bem!

O Orador : - E, sem abdicações, todos os que têm a consciência da gravidade da hora que atravessamos ante as ameaças que pesam sobre o País e sobre o Mundo, todos os que sentem as suas responsabilidades e põem a Pátria no mais alto dos seus desígnios, devem dar-se as mãos lealmente e irmãmente e, por imposição do interesse nacional, manter-se unidos e firmes ao serviço da Nação.

Vozes : - Muito bem!

O Orador : - Sou nacionalista por princípios, monárquico por conclusão. E porque nesta hora não está em jogo a questão do regime, como nacionalista e português me tenho ainda de determinar.

Vozes : - Muito bem!

O Orador : - E, em face de cada problema concreto, perfilhar a solução que mais convenha ao País.
Sobre o problema da eleição do Chefe do Estado já disse lealmente o meu parecer. E, dentro desta lógica, declaro também que tomarei parte na votação do artigo em que se há-de definir a forma da sua escolha.
Tenho dito.

Vozes : - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Águedo de Oliveira: - Sr. Presidente: desde 1938, em que a Constituição Política foi sujeita a plebiscito, se sucedem as revisões da lei fundamental, formando uma série de actos adicionais que alteraram artigos, melhorando a sua técnica, aclarando-os, corrigindo aqui e além, actualizando sempre.
A lei fundamental mantém assim as suas características e corresponde à ideia de perpetuidade dos regimes e de estabilidade das instituições, que são, por assim dizer, os seus grandes objectivos, de maneira que o poder dos governantes se veja limitado e ela constitua, como diziam os antigos, um muro de segurança para todos.
Importa por isso tomarmos em conta as circunstâncias extraordinárias em que decorre o debate e considerar os factores gerais que acompanham o desenvolvimento

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da governação, os quais dão consistência à tranquilidade e noções do futuro que os governados são levados a acalentar e no qual estabelecem os seus cálculos e noções.
Nos últimos tempos, como é do geral conhecimento - e pondo, por agora, de lado as impugnações de ordem eleitoral -, se instalaram entre nós, em grande escala, não direi costumes inéditos, mas hábitos, práticas e tácticas a que não estávamos inteiramente habituados. Também de fora provêm notícias singulares.

tacaram-se instituições que até agora haviam sido poupadas.
Procurou-se, sem nobreza, nem lisura, denegrir os grandes homens do Regime.
Foi-se mais longe, retomando uma tese indecorosa: afirmou-se que vivíamos senhores, livres e independentes apenas pela graça da protecção alheia. E para coonestar o absurdo pretendeu-se que os destinos de Portugal fossem entregues às comissões antifascistas de Caracas, Havana, S. Paulo e, se não estou em erro, de Buenos Aires, constituídas originariamente para atacar os nossos vizinhos e onde avultam intelectuais esquerdistas estrangeiros, revolucionários profissionais, estudantes em greve e outros, que pretendiam invadir-nos com o auxílio de destroyers e de aviões.
Tem havido entre estes políticos inovadores, e que armam em donos dos nossos destinos, elegantíssimas questões de dinheiro e não menos elegantes questões de precedência.
Parece que o mealheiro se partiu e que não sofreremos os rigores da invasão, mas a ideia de que vivemos sem autonomia e sem razão própria é que ninguém arrancou àqueles senhores que querem pautar o destino da Europa Ocidental por alguns paradigmas da jovem América.
Portanto, as agruras do sufrágio e a insubmissão à decisão popular do mesmo sufrágio, as tentativas de demolição do conjunto institucional e dos homens, a intromissão absurda de revolucionários profissionais de origem não portuguesa, levantam problemas constitucionais, não no sentido propriamente da sua reforma, mas no sentido da chamada defesa constitucional e de ver cumprida serenamente a Constituição e as leis.
Contra os desmandos e impropérios - legalidade!
Este clima social e político entendo que não favorece a vulnerabilidade da Constituição, antes recomenda a intangibilidade das grandes leis fundamentais; não facilita nem vulgariza reformas, antes impõe cuidada acentuação técnica; não autoriza o regresso ao parlamentarismo, o qual, como dizia Barthélémy, fazia do Deputado a principal personagem dos regimes; não permitirá que à crise declarada pelos opositores ao regime nacional se junte qualquer perturbação do nosso lado que a confirme e, muito mais, a dilate e agrave.
Por isso, Sr. Presidente, se me é lícito, felicito V. Ex.ª pela forma elevada, tranquila, raciocinada e segura como se tem comportado a Câmara neste debate e o nível atingido pelos oradores que me precederam.
E entendo de louvar ainda que, funcionando as assembleias em regime de livre iniciativa e de livre crítica, atribuindo-se ou arrogando-se cada Deputado uma missão soberana e incondicional, os meus colegas tivessem trazido aqui as suas sugestões e iniciativas destinadas a vitalizar as instituições, a facilitar os contactos entre órgãos colaboradores para o mesmo fim, a acelerar a construção corporativa, a sujeitar a imprensa a um estatuto que a liberte e responsabilize, enfim, a não bulir com o arranjo da Nação em Estado, tal como o imaginou o legislador constitucional.
Sr. Presidente: julgo conveniente acrescentar este apontamento sobre a marcha dos acontecimentos políticos do traçado das rotas de direito constitucional pelas quais actualmente singram as naus do Estado e que os escritores usam chamar de nova constitucionalidade. Que nos diz aquele direito?
Parece curioso notar de entrada que, no sopro renovado da doutrina explicada há anos e de que as Constituições recentes se tem feito eco, a chamada escola positiva se tem visto suplantar pela preocupação de alojar a Nação num regime de Estado de concepção institucionalista, em que dominam, explicam e senhoreiam, por inteiro, os princípios da ordem jurídica e política e de equilíbrio social, inspirações fundamentais do nosso texto.
Chegou-se na corrente das ideias à necessidade dramática de regulamentar e disciplinar os partidos políticos, a fim de assegurar a unidade suíça, a unidade italiana, a unidade francesa, a unidade histórica - vamos! - a unidade histórica desses países!
São particularmente instrutivas as discussões, propostas e contrapropostas relativas ao artigo 49.º da Constituição italiana, onde as regulamentações, exigências de idoneidade, limitação de critérios sectoriais e de acção facciosa pretendem evitar que o partido se sirva, em vez de servir o País, e sobretudo que. o desconjunte para o desmantelar.
Também, nestes últimos anos a figura jurídica da democracia se estendeu espantosamente, a ponto de perder grande parte da sua nitidez conceptual.
A Checoslováquia, o país mais bolchevizado da Europa, a Polónia, sofredora e resignada, a Hungria, inquieta e indómita, a Jugoslávia, de vigorosa personalidade colectiva, são pelos professores de Direito consideradas como democracias populares, verdadeiros governos do povo pelo povo, embora sujeitos à fortíssima preponderância dos partidos únicos e realizando uma actividade construtora para a qual não há limitações. Portanto, se estes países são democracias populares, nós seremos o que quisermos!
Sobre a forma de pôr o problema das liberdades, sobre a sua essência, sobre os direitos que lhes correspondem e as abstenções que implicam, também a literatura política registou ultimamente grandes avanços, de que muitos se não dão conta.
A liberdade foi concebida como uma faculdade de resistência, capaz de pôr o indivíduo a afrontar os governos e a impedir na sua vizinhança a intervenção das autoridades.
Economicamente era a iniciativa e a concorrência sem peias e sem fim. Mas a liberdade não pode conceber-se sem protecção no tempo, e muito antes dela está o seu respeito.
Tem de ser ajustada aos movimentos de justiça social e de elevação económica.
Portanto, a liberdade é hoje o respeito devido a outrem, mas numa sociedade que ascende em meios e capaz de eliminar as formas de exploração. Onde há verdadeira liberdade é na expansão pessoal, na família e na associação.
Outro traço curioso, que coincide com as graves preocupações do bem comum na realização das políticas, está na revivescência, no ressurgimento dado ao clarão resplandecente da cultura portuguesa por dois nomes - Suarez e Spinosa. Estudos recentes avivam o nome do P.e Francisco Suarez, que, apontando a natureza social do homem, acreditando o desenvolvimento dos valores humanos, preconizou uma ordem social baseada no bem comum e geral; Spinosa professava que as sedições, violências, desprezo pelas leis, deviam ser imputadas a uma má organização do governo: os homens teriam transferido o direito de defesa aos governantes e, dessa forma, condenariam por si mesmos a revolta e a insurreição.
Portanto, a literatura recente não põe em causa certos aspectos discutidos da Constituição de 1933, não se opõe à sua filosofia social e política, não desvia das suas

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directivas de acção política, não altera a partilha do Poder, ou, melhor, a sua determinação de competências.
O próprio primado administrativo é preocupação geral das sociedades políticas actuais.
Mas devo considerar outros aspectos.
Assim, esta Constituição, cuja defesa se reforça ao considerar os sinais destes tempos e que, ao contrário do que se faz crer, não tem contra si a evolução do direito nas Universidades e nos escritores, contém obviamente formas lógicas de intangibilidade.
E compreende-se.
O direito é um processo de vida, não é um processo de autodestruição.
A ordem natural e humana repugna o suicídio e, no ser colectivo, repugna o crepúsculo e a decadência permitidos ou perfilhados.
Sabe-se que certas Constituições contêm normas impeditivas de certas revisões, como a nossa de 1911. Embora discutíveis, incumbe aos que governam ou aos que aplicam a lei fundamental servir-se dos intuitos originais, não substituir as mecânicas e conservar vivo o seu espírito.
Compreende-se, portanto, que uma Constituição possa ser revogada, substituída por outra, mas, no que tem de profundo como filosofia social ou como método político, seria difícil considerá-la modificável ou alterável em parte, elasticizá-la em demasia - virá-la contra ela própria.
Viram-se no primeiro parágrafo por mim desenvolvido as horas de truculência e injustiça que nos enovelaram e levantaram tanto pó à entrada do processo constitucional.
Contrariamente a vários que entendem que é preciso elasticizar e apagar nos textos, creio que há muito que defender na pureza dos princípios. A eficiência dos processos constitucionais depende de nós, sobretudo depende da realização que aos mesmos princípios for dada.
Seria excessivo obter primazias em matéria legislativa, reforçar os poderes, alargar a competência, e depois não utilizar os poderes existentes, não tomar iniciativas, não apresentar projectos de lei.
O segundo parágrafo serve-me para afirmar que a reivindicação da liberdade absoluta não se compadece com a doutrina, nem tão-pouco com as condições das actuais formas de convívio. Ela não é uma palavra vã.
E a liberdade assenta no respeito devido.
Sr. Presidente: postas estas considerações à maneira de prólogo, devo agora destacar os assuntos que dizem respeito à minha intervenção no debate constitucional.
Em primeiro lugar vou expor a minha opinião sobre a prioridade da iniciativa constitucional quanto à chefia do Estado.
Em segundo lugar referirei o que determina o abandono do sufrágio universal nesta ultima.
Em terceiro lugar exponho o significado tradicional da invocatória do Santo Nome de Deus.
Em quarto lugar procurarei expor as bases actuais dos problemas da liberdade de imprensa.
Por último, os pouco numerosos princípios e técnicas jurídicas dos tributos e as leis de finanças podem pôr a Câmara e o Governo num caminho de solução.
Sr. Presidente: refiro-me agora a um primeiro problema posto neste momento à consciência nacional.
A quem pertenceria a iniciativa de uma medida inovadora sobre sufrágio presidencial?
Qual o órgão do Estado naturalmente capacitado para dar um primeiro passo e provocar assim a actividade da central parlamentar das leis?
Não se tem escondido nesta Câmara uma certa apreensão em pôr a questão com autoridade representativa e responder-lhe por forma a tranquilizar quaisquer pruridos de prioridade ou de competência especializada no processo legal.
Convinha saber até que ponto a iniciativa de uma lei sobre sufrágio presidencial podia ser desviada do jogo da nossa competência e atribuída, num primeiro passo, à competência iniciadora do Governo.
Não há dúvida nenhuma de que, do ponto de vista jurídico, tanto pertencia à competência da Câmara como pertencia ao Governo, embora assim fosse por motivos e razões de ordem diversa.
Era um problema do Governo - e como tal pertencia à sua direcção política e suscitava a sua responsabilidade.
O Governo saíra de uma remodelação consequente do acto eleitoral, vira alguns dos seus elementos preponderantes refrescados, fora constituído com uma habilidade indiscutível e encarara os problemas postos pelos grandes acontecimentos que haviam toldado o último período de vida do Governo anterior.
Fora assim convidado, ao tomar conta das pastas, a analisar o final da gerência anterior, a dar balanço às situações criadas ou desenvolvidas; faria assim o exame das responsabilidades novas, traçaria diferentes directivas e encontraria uma medicina política para remediar o que faltava.
Não podia estranhar-se que, disposto a governar, a dominar as circunstâncias - e não a deixar dominar-se por elas -, tomasse uma iniciativa que, embora contando com a colaboração activa da Assembleia, se lhe afigurara ter de dizer nela a primeira palavra.
Nas nações modernas é o Governo que conduz a política, que a comanda e regula da sua central directora, que está atento aos ponteiros que lhe dão a temperatura, mudam a força e assinalam os ventos, e por isso tinha aqui um problema cuja solução lhe incumbia, antes dos mais, apresentar à formação da lei.
Mas há outro argumento a favor da prioridade governativa.
O Governo actual, como o anterior, é da muito superior presidência de S. Ex.ª o Presidente do Conselho, que o coordena, impulsiona e dirige. Ora, fora o Presidente do Conselho quem prometera que o arruído do escândalo e da especulação partidária, perante um acto eleitoral da chefia do Estado, conduzido às alturas plebiscitarias e sofrendo sempre escusada e juridicamente impossível impugnação, e sofrendo desvirtuamento contrário a toda a substância do direito público, não poderia, não deveria vir a ser repetido.
Esta promessa formal, tomada publicamente, não fora logo cumprida, não por transigência com o passado ou com os impugnadores irreformáveis, mas, por prudência, pelo jeito do Sr. Presidente de mover sómente quando é altamente indicado.
Mas as promessas dos estadistas obrigam mais do que os chamados contratos de adesão, em que o público é juiz de pontualidade. Logo, em tais circunstâncias, não havia que estranhar; o Governo fez o que era lícito esperar-se, e mandava mesmo a cortesia que a iniciativa pertencesse ao órgão mais activo e responsabilizado.
Já não ventilo a qualificação do Sr. Presidente, dos seus cabelos brancos, da estabilização da sua herança no tempo e na vida do regime, porque esses aspectos
os próprios opositores se encarregam de vincá-los com o vigor necessário.
Não tenhamos dúvidas: potencial financeiro e de crédito, recuperação internacional, segurança interior e externa, grandes obras públicas, integração ultramarina, são herança que todos quererão receber como sua, de braços abertos, não a benefício de inventário, mas como, um legatário que nem impostos tem de pagar.
Vejamos o problema do outro lado. A reorganização do método de eleição presidencial era um problema de reforma constitucional e, como tal, de criação legislativa.

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A Assembleia dispõe de uma função de primazia e a Constituição dá-a como qualificadamente competente. E porque não?
Podia a Câmara, que levanta por sessão uma dúzia de questões, pelo menos suscitar aquele problema, chamar a atenção para ele e interessar o Pais no seu estudo.
Mas fê-lo sem essa preocupação de método.
Verberou o arruído, registou a contrafacção opositora.
Vibrou com os lances e explorações políticas, com a contrafacção histórica, mas não passou à análise da metodologia jurídica de pôr termo a um tal estado de coisas.
Fez bem?
Fez mal?
Estava no seu pleníssimo direito.
Se a Câmara, pelas suas comissões e pelos seus jurisconsultos - e hei-de referir-me a estes aspectos noutra altura -, se tem preocupado mais com a jurisdicidade do que com a política, não tenho dúvida de que teria chegado à iniciativa de duas ou três bases, tomaria a dianteira ao Governo e surgiriam aqui duas ou três bases na assunção dos poderes constitucionais, que assim o teriam sido da maneira mais efectiva e que qualificariam e levantariam a iniciativa da Câmara.
Havia também um processamento no tempo.
A Câmara podia levar meses antes de funcionar como constituinte e encontrar depois a conveniente oportunidade para pôr em marcha o mecanismo constitucional. Essa iniciativa seria de vários Srs. Deputados, depois de largo amadurecimento do assunto.
Portanto, Governo e Câmara podiam levantar a iniciativa de remodelar o processo de eleição, mas aquele, mais pronto, obedecendo a programações e a prometimentos, julgou indispensável fazê-lo mais cedo.
É da ordem institucional a prontidão de um lado e a reflectida preparação do outro.
Mas trata-se apenas de iniciativa. E começa-se pelos alicerces.
Sr. Presidente: a Constituição de 1933 substituiu ao Presidente da República apagado e neutro de 1911 um magistrado supremo, órgão proeminente na realização do bem público, escolhido pela maioria dos Portugueses.
Cedia-se assim à teoria, dominante nos meios dirigentes europeus e desenvolvida por volta de 1875, do chamado governo representativo, pela qual os órgãos constitucionais ficavam periodicamente sujeitos à eleição popular. Até os Ministros...
Nunca fui propenso a acreditar nas virtudes do sufrágio como ele se desenvolvia à nossa vista, mas tinha de reconhecer algumas das suas certezas e tranquilidades.
Dizia Churchill que o sufrágio lhe assegurava uma retirada tranquila da cadeira e do Poder e uma velhice isenta de dúvidas de consciência e de responsabilidades.
Dizia isto, mas antes que o seu país, inesperadamente, tivesse votado, por grande maioria, contra o seu governo.
Também eu pensava que o sufrágio garantia uma certa soberania inimpugnável e que a minoria, se não acabava por fazer coro com a maioria, se achava na situação de ter os seus argumentos esgotados e se via reduzida ao silêncio próprio de um gentleman que sabe perder.
Tenho na memória, e bem vivas, as últimas imagens do constitucionalismo monárquico sobre a teoria e a prática do sufrágio.
As mesnadas eleitorais vinham formadas e de caçadeira ao ombro, avançando assim para a igreja matriz, tal como as pintou Júlio Dinis.
O secretário de Fazenda apontava os votantes da parte contrária, para os causticar na matriz.
As beatas fechavam o abade na sacristia durante as horas de voto e de espera, para que não fosse dar o seu aos correligionários da véspera.
Durante dois ou três dias homens armados de espingardas e cacetes guardavam as urnas, não fossem roubadas antes do apuramento e escarnecer da soberania popular. Muito teria que contar.
Proclamada a República, aqui, em Lisboa, os bacharéis em Direito eram eliminados dos cadernos eleitorais pelo eufemístico motivo de não saberem ler nem escrever.
Mas o sufrágio universal, individualista, aritmético, destinado a popularizar o elegível, a mostrá-lo, a assegurar-lhe contacto com o maior número, não era discutido como princípio, embora fosse muito discutido como técnica.
Ele era um tabo e um rito do nosso tempo, e países como o México, que passaram pelas maiores perturbações religiosas e políticas, encontraram num sistema de feudos eleitorais e de influências locais a paz social e a ordem que tornam o desenvolvimento possível.
Portanto, o intuito constitucional, apesar dos defeitos reconhecidos, era bem evidente: o Chefe do Estado sairia dignificado pela decisão do maior número, tornar-se-ia mais popular ainda, a sua elevação impor-se-ia à minoria vencida e ver-se-ia isento de agravos e de dúvidas na sua natural e paterna autoridade.
Como às vezes sucede, os princípios entre nós foram deformados por motivos de estratégia eleitoral e as minorias não quiseram dar-se por vencidas nem convencidas.
Foram os propugnadores puros do sistema e da democracia popular que transformaram os actos eleitorais em começo de motim, que o interpretaram de forma paradoxal e que, ou negavam os seus efeitos ou contestavam, por sistema, as consequências jurídicas.
Mais: em lugar de elevarem à candidatura da chefia do Estado os seus homens de Estado, procuravam acreditar os trânsfugas ou os anónimos, para que a confusão nas massas participantes passasse à confusão das interpretações.
Os odres de Eolo foram então soltos para libertar todas as fúrias represadas, converter o operação de paz pública em estado insurreccional e para que a vida normal do Estado fosse a crise mais aguda do Estado!

O Sr. Melo Machado: - Muito bem!

O Orador: - E assim os actos eleitorais perderam a sua finalidade jurídico-política, para que, em vez de tranquilidades e certezas, houvesse inquietação permanente e impugnação constante. A chefia do Estado não era o altíssimo cargo de benovelência paternal, de moderação, de arbitragem que não se faz sentir, mas um posto avançado para a guerra a seguir.
E o que se passava pela Europa?
Na França actual muitos seguiam a tese de os males sociais e políticos de que o país padecia derivarem do sufrágio universal, que a proporcionalidade agravou ainda.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Na própria Inglaterra, o sufrágio universal, que permitira assegurar-lhe durante cem anos uma constelação de grandes primeiros-ministros e de estadistas mais que capacitados para a direcção política, não aguentara as provações contemporâneas e se tinha por duvidoso que a elite dirigente fosse achada por este meio.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O Chefe do Estado detém em primeiro lugar a soberania, representa a Nação no que ela tem de perdurável e melhor, exerce uma função prestigiosa

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e prestigiante; a sua suprema magistratura concebe-se como paternal e benévola, as responsabilidades assumidas radicam e entroncam nos séculos; o papel de discrição tomado perante os negócios públicos pretende constitucionalmente abrigá-lo de críticas e discussões.
Não deixemos que a sua designação esteja à mercê dos vícios e fraquezas de um sistema e não corresponda às vantagens conhecidas e incontestadas do mesmo sistema.
Não se pode deixar dizer do candidato à Presidência e do Chefe do Estado o que em tempos se disse do rei e da rainha.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ele não pode ser um homem sozinho debaixo de uma tempestade.
Tem de sentir bater os corações dos que o designaram e investiram, do povo todo que o sabe respeitar. Não pode ser objecto de uma justiça política truculenta e ignara, nem alvo de denegações sistemáticas.
Se os apologistas do sufrágio universal concebem este método como precário e torcido e já não acreditam no veredicto popular, não há senão que tomar por outra via.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-Os recursos pertencem à justiça, e não ao arruído ou às interpretações. Tomemos a dianteira aos factos e barremos o caminho às Euménides.
Sr. Presidente: foi aqui feita, com grande autoridade e a maior eloquência, pelos ilustres Deputados Mons. Castilho de Noronha e Dr. Agostinho Gomes a defesa da proposta do meu querido amigo Dr. Carlos Moreira, que pretende antepor ao texto constitucional como nota preambular, a posteriori, a invocação como que inicial do Santo Nome de Deus.
Reveste-se assim a discussão e a votação da maior delicadeza e, à primeira leitura, dificilmente poderia suscitar outra coisa senão adesão ao seu pensamento fundamental, que não é despido de melindres infinitos.
Porém, a ideia, provinda de olhos e de pensamentos elevados bem alto - a consagração no amor cristão da Pátria, de que, como dizia o Santo Padre Pio XII, Deus é causa primária e último fundamento da vida individual e social -, toca no carácter terreno das nossas fórmulas jurídicas e mostra a nossa fragilidade ao estabelecer-se o paralelo entre o direito divino e o direito humano.
Seja, portanto, permitido a um velho cultor do direito público trazer algumas glosas que, sem ilustrarem o texto fundamental, se destinam a aclarar juridicamente o assunto.
Devo fazê-lo, porque com facilidade na nossa terra são chamados tíbios os que não respondem senão por silêncios ou por ecos aos assuntos, e para que o Poder não seja atacado por emulação, que só existe no entusiasmo sem reservas da critica.
Sr. Presidente: peço a V. Ex.ª que as minhas palavras sejam bem medidas e, mais ainda, que a água clara destes intuitos não venha a ser agitada.
Se estou bem lembrado, qual é a ideia constitucional que corresponde ao chamamento de Deus, ao recurso à sua protecção, para que nos valha? Fonte de inspiração dos legisladores; moderação e benignidade dos governos ; piedade capaz de adoçar as decisões da judicatura rigorosa.
Portanto, não deve apenas ser invocado - e em vão - o Santo Nome de Deus; é necessário que desta invocatória derive para os órgãos superiores da vida do Estado sentido, temperança e misericórdia.
Esta é a ideia constitucional, que o processo histórico deverá esclarecer, pois pode ser que nas leis fundamentais que estabeleceram de maneira perpétua o regime nacional do Estado lusíada, e no âmbito da sua soberania, se trate de uma repetição já formulada anteriormente e com a maior solenidade.
D. Afonso Henriques acolheu-se à protecção suprema da Santa Sé, proclamando assim a formação cristã do Estado Português incipiente e a submissão do regime à ortodoxia religiosa. Era o zelo nas coisas divinas que movia os actos do Poder, a vontade dos príncipes e dos conselheiros, as guerras e aventuras, as realizações e obras de bem nacional, iluminando-os, voltando-os para o comum e exalçando-os.
Portanto, Portugal, em que o Estado precedeu a Nação, ficou para sempre preso à eternidade de Deus, de Cristo e da Sua Igreja.
D. João IV, depois de reintegrado Portugal na sua soberania plenária, consagra o reino à Imaculada Conceição, proclama-A como celestial padroeira e pela Sua intervenção medianeira solicita a benemerência divina.
D. João V obtém da corte de Roma o título de Nação Fidelíssima, ou seja de constante, segura e completa dedicação de governantes e governados portugueses ao pensamento cristão.
Vi demoradamente as Constituições e actos adicionais promulgados neste país - por me não parecer muito claro ou afirmativo neste particular o trabalho magnífico do abalizado mestre de Coimbra Queiró, que à sua grande cultura jurídica e social alia um carácter tão firme que se diria de uma só peça -, vi demoradamente, e sómente no projecto da Constituição Política da Monarquia Portuguesa apresentado na sessão desta Câmara de 25 de Junho de 1821 é que encontro uma invocatória da ordem daquela que nos é proposta.
O projecto começava assim: «Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade:
As Cortes Gerais extraordinárias e constituintes da Nação Portuguesa, havendo considerado que as desgraças públicas,...».
Vejo em Lopes Praça que a Constituição de 1822 adoptou a fórmula, como também vejo que o famoso assento dos três Estados escrito em 11 de Julho de 1828 não se iniciara com qualquer invocação divina.
Mas aquela referência à Santíssima e Indivisível Trindade figurava apenas como fórmula cartulária, como expressão formal do título, e não como declaração expressiva de consagração, porque essa havia sido histórica e perfeitamente lavrada. Não acrescentava nada à submissão de D. Afonso Henriques, à veneração de D. João IV e à munificência de D. João V.
Passando sobre a impropriedade rio tempo e o constitucional da fórmula, receio que ela se não ajuste por inteiro à ordem evolutiva das leis fundamentais e dos actos solenes de consagração do Estado Português. Embora seja expressiva, comovedora, gratíssima aos corações portugueses, a Câmara terá de dizer se atinge a dimensão desejável em matéria de tanta monta e se, pretendendo remediar uma deslembrança, não determina uma correcção.
Portanto, só uma solenidade perfeitamente ajustada a uma linha de conduta secular como expressão de acatamento e reverência incondicional e obedecendo perfeitamente às injunções, técnicas deveria ser posta a esta Câmara.
Sr. Presidente: para mais fácil entendimento e para comodidade da exposição, vou pôr desde já os meus colegas diante das grandes ordens de soluções de uma questão tão intricada como dispersiva, que é a do regime jurídico da imprensa hodierna, abrangendo a gráfica e a ilustrada.
Em primeiro lugar: deixar o problema da imprensa às provisões da lei geral é o mesmo que confiar apenas na Divina Providência;, supor que vivemos no melhor dos mundos possíveis; acudir com optimismo liberal a

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todos os conflitos de ideias e de interesses; reconhecer a soberania privada como ilimitada em casos públicos e que nunca poderá tomar tais foros no nosso tempo.
Em segando lagar: levá-la ao texto constitucional, perfilhando detalhes ou estabelecendo regulamentação específica, firmar em novas alturas os problemas das empresas publicitárias, excede o perímetro da construção política, excede as barreiras do factor opinião pública e talvez contrarie o intuito e à técnica com que o legislador constitucional encarou a matéria e perturbe a ordem estabelecida, que dos cidadãos passa à família, da família aos organismos corporativos, dos organismos corporativos às autarquias e das autarquias à mesma opinião pública, abrangendo o carácter público da imprensa.
Assim poderia ser se o Estado Novo perfilhasse a chamada teoria socialista da imprensa, de que adiante falaremos.
Em terceiro lugar: entregar a solução legal dos problemas que preocupam a imprensa dos nossos dias a uma lei especial ou mesmo a uma lei especialíssima apresentará sempre as dificuldades de navegar num canal estreito entre dois escolhos e um privilégio, absolutamente contrário às modernas tendências igualitárias, ou uma excepção, que, como todas as excepções, não poderá deixar de ser odiosa.
Países há onde os jornalistas não pagam impostos, usufruem toda a espécie de regalias e entradas livres, vivem em apartamentos de renda pouco menos que simbólica e fazem tremer os dirigentes da economia, do teatro, da política e da vida social, tão descomedida a sua força e tão incerta a sua justiça.
Mas este exemplo não se recomenda para quem blasona de ter eliminado as castas e extirpado os privilégios.
Vejamos agora a marcha das ideias e dos acontecimentos e a caminhada do tempo para aquelas ou para outras soluções, até chegarmos aos factores actuais.
Quando eu andava pelos Gerais, de capa e batina, ensinavam-se ainda as fórmulas individualistas e categóricas da Declaração dos Direitos de 1789.
A liberdade de imprensa -a liberdade de imprensa. era o direito de o cidadão político exprimir crenças, opiniões e conceitos por forma impressa e sem dependência de autorização ou censura prévia.
Toda a gente - na teoria legal, é claro - podia ter uma tipografia, imprimir e editar livros, folhetos, hebdomadários, anúncios, cartazes, reclamos, jornais e brochuras, com plena independência e sem temer nem os vizinhos nem as autoridades. Tal era a teoria.
Não tinha uma tal soberania individual que temer senão exceder-se, atentando contra a liberdade alheia ou ocasionando prejuízos e acobertando actividades criminosas. Os abusos, raros e característicos, eram entregues a um júri especial, com a repressão adequada.
Está entre nós o Dr. João do Amaral, que foi director de um jornal académico vivo e de rica substância social e política.
Ele pode atestar como essa liberdade era compreendida, exercida e legalmente protegida.
Só digo que a lei previa as publicações «despejadas» para atacar um jornal de oposição e que entrava nos eufemismos do tempo o termo «empastelar».
Os novos hão-de supor que se tratava de pâtísserie digna do Chiado. Não senhor; tratava-se da prática discricionária de alguns cidadãos avantajados entrarem nas oficinas e redacções e das sacadas atirarem para a rua todo o material tipográfico e de redacção.
Não direi mais senão que para ser director de um jornal o Dr. João do Amaral era um herói!
Por esse tempo, Duguit, já velhote, mas sempre admirado, ensinava realisticamente que a liberdade de imprensa era uma liberdade teoricamente incontestada, mas no seu país - a pátria-mãe da Declaração dos Direitos - uma liberdade particular e profundamente ultrajada.
Entretanto aproxima-se e depois sobrevêm a grande guerra 1914 é, uma data marcada com a tampa de uma lousa.
E que aconteceu?
A derrota de Sedan fora atribuída a uma indiscrição da imprensa diária.
A Inglaterra e a França, pátrias da liberdade, e até poderia dizer-se seus berços políticos, sentiram-se inferiorizadas, do ponto de vista da segurança e da defesa nacional, com o tom e as manifestações dá sua imprensa em face da atitude uniformemente assumida pela imprensa germânica.
Datam daí as censuras prévias e a conservação de manchas de informação destinadas a notícias e informes oficiosos ou semioficiosos.
Os jornais começam a ser apreendidos por ofensas ao Chefe do Estado, ao mesmo Estado e à segurança nacional.
A Alemanha e a Itália - a seguir - integram a imprensa no regime de Estado, com direcções-gerais, ajustamento de quadros e intervenção na sua administração.
Os governos explicam que pretendem libertar a imprensa da servidão a interesses de grupo e que não há outro processo de garantir-lhe a independência senão pela acção decisiva do Estado.
É nesta altura que a Rússia declara a imprensa uma propriedade burguesa e privada exercida contra o Estado, e que, por isso, tem o dever de expropriá-la e convertê-la em orgão do partido dominante.
Nalguns países ocidentais a libertação política traduz-se em regresso às concepções tradicionais, mas os órgãos comprometidos ou participantes no estado de coisas anterior são paralisados ou proibidos de uma vez para sempre.
A segunda guerra mundial é teatro de novas formas jurídicas atentatórias da liberdade de imprensa - censura, fiscalização da administração e das redacções, supressão dos espaços em branco, admissão de propaganda oficial.
A própria ocupação militar encontra advogados e servidores.
Surge uma verdadeira praga de publicações clandestinas.
Algumas livrarias também habilmente adquirem intuitos políticos, e seguem uma táctica hábil, mas política, nas edições e séries publicitárias.
Depois da paz novos problemas surgem e novos métodos complexos se firmam ao substituir-se a censura preventiva pelo regime de suspensão, de apreensão, de inserção obrigatória, de participação e administração das empresas e de sustentação e financiamento de agências-oficiosas, direito de fixar preços, etc.
Estou referindo-me ao conjunto dos factos europeus e à linha geral de evolução, devendo destacar que os socialistas, que consideravam perniciosas as leis emanadas por volta de 1907 contra o anarquismo libertário, preconizam agora, defendem e lutam pela seguinte concepção : logo que a empresa jornalística adquire interesse, extensão ou dimensões de serviço nacional, toma a forma de um monopólio indiscutível e deve ser implacàvelmente expropriada.
No Ocidente surge também uma série de projectos destinados a criar um regime novo especial, a facilitar a missão do Poder e a garantir a fé e a tranquilidade do público.
Feito este rápido bosquejo da evolução, falemos dos novos tempos.
A imprensa diária e as revistas ilustradas adquiriram novo e formidável potencial.

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Tornaram-se senhoras todas-poderosas, valorizam e desvalorizam. Enchem tudo de sons, mas também podem sentenciar silêncio.
Levantam reis nos escudos como os Normandos, mas, como Miguel Angelo, também podem vestir um cardeal de Diabo e precipitá-lo nas profundezas.
Distribuem nas páginas e pelas páginas os seus favores e a sua justiça.
O coro que ouvem nos meios menos acessíveis é, muitas vezes, de lisonja e submissão.
Felizmente, a nossa imprensa, como os grandes empreendimentos em Portugal, é respeitável e procura correcção.
Não há entre nós campanhas de intuitos sombrios, nem preçário a tanto por linha.
Os directores e administradores dirigem e administram sem ter medo a um soviete de segunda linha.
Outros aspectos do problema geral das condições em que é viável a liberdade tradicional podem pôr-se agora. Embora o número de diários diminua e o poder de expansão pareça ter atingido uma taxa de saturação, vê-se ilaqueado pelos meios novos de publicidade.
A luta contra a miséria, a degradação, a rapacidade internacional, põe os governos e empresas em colaboração franca. A televisão, a rádio, o cinema, assaz velozes e até enfáticos, absorvem e cultivam uma parte do público, que deixa de ler e comprar os jornais, surpreendido pela rapidez, pela sugestão è pela despreocupação com que são recebidas as notícias.
Surdem agora novas doenças com esta competição - o abuso das imagens, o sensacionalismo, a distorção, e até a paralisia informadora.
Tudo isto vem afirmar que não pode haver liberdade simples nem liberdade total; mas a dificuldade está em marcar até onde se pode ir no respeito pela liberdade alheia. Nada menos de cinquenta países mantêm actualmente uma censura.
E nas democracias chamadas populares a apregoada liberdade é apenas para os órgãos reconhecidos como servidores indefectíveis do partido dominante.
Muito mais poderia trazer como esclarecimento àquelas soluções iniciais e em abono às teses que vou perfilhar. A matéria é vastíssima e não cabe nos moldes de um debate constitucional, Sr. Presidente.
Portanto, para o legislador, para o construtor jurídico, para o técnico da formulação do direito, como se põem estes problemas?
Como política, técnica e juridicamente se podem encontrar soluções?
Vejamos:
Primeiramente temos de tomar algumas decisões no conflito das ideias, ou, melhor, na luta de princípios em competição. Encontramo-nos perante a liberdade de imprensa, reivindicada pelas empresas e pelos jornalistas.
Encontramo-nos perante o direito de cada um de nós, do leitor e do público, a uma informação completa, fornecida com lealdade. Encontramo-nos perante o poder governamental, que na sua função actualizada de condução da política e de acção social e corporativa tem de manter a segurança e afirmar o prestígio do Estado e defender a paz pública.
Isto do lado dos princípios, mas, no seio das próprias empresas, na sua actuação publicitária, acentuam-se contrariedades, que importa considerar para defender o direito que há-de vir disciplinar o conjunto e que não é a sua ligação à plutocracia ou aos meios dirigentes.
Por um lado, as empresas jornalísticas são empresas públicas, destinadas ao público, cultivando a publicidade, funcionando com regularidade e sem interrupções, aproximando-se assim de verdadeiros serviços públicos.
Mas as empresas nem sempre estão de acordo com estes caracteres e consideram a direcção e administração do jornal como um negócio privado, como soberania de iniciativa e empreendimento absolutamente livre.
Muitas vezes, quando se fala em liberdade de imprensa, não é a liberdade entendida no sentido da Declaração de 89, mas quer-se afirmar o carácter privado e soberano do empreendimento.
Assim creio que me foi possível dar ideia das dificuldades de organização corporativa e de formulação técnica de um regime actualizado o mais livre possível da imprensa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - O projecto n.º 23, da autoria do meu querido conterrâneo e amigo Carlos Moreira, confirma que a imprensa portuguesa exerce uma função especial e que uma lei especial deverá definir os direitos e deveres das empresas jornalísticas e profissionais da imprensa.
O artigo 22.º da Constituição fizera-se eco de um imperativo legal usado e consagrado já pelas realidades.
O artigo 23.º particulariza o princípio da hospitalidade forçada das notas oficiosas, o que não me parece inteiramente dentro do planeamento constitucional.
Não exageremos, pois, esse desvio quase regulamentar e, de harmonia com as considerações feitas, estude-se o problema numa fase ampla. Publique-se uma lei especial capaz de enfrentar os conflitos de princípios e interesses, que atenda ao factor social e que dê satisfação a pretensões jurídicas tão amplas e firmes como as desenhadas a este propósito pelos jornalistas, pelo público e pelos governantes e que a tornem verdadeiramente independente, sim, mas factor de desenvolvimento.

Vozes: - Muito bem!

Q Orador: - Chego ao último ponto, que demanda alguns esclarecimentos adicionais: as reformas fiscais, na sua essência, constituírem matéria de lei.
É um direito tradicional que os tributos sejam lançados com assentimento dos representantes dos povos ou, pelo menos, que a sua cobrança seja consentida parlamentarmente.
Quando Cromwell e os Ingleses descobriram esta teoria política, já as cortes portuguesas a praticavam. Sabemos, no entanto, que as Cortes nem sempre eram ouvidas, nem sempre foram especialmente convocadas, nem sempre as suas decisões mereceram acatamento.
Mas não há dúvida de que o recurso existiu e foi formulado ou, pelo menos, considerado corrente na prática parlamentar. Suarez negava que este consentimento fosse de direito natural, mas nem por isso impugnava a sua valia.
Como a lei tributária é bastante regulamentar, técnica e altamente especializada, facilmente se pode ver que as codificações, reformas e diplomas emanam dos governos aqui e lá fora, mas temos dúvidas sobre se devem as assembleias fiscalizadoras abrir mão inteiramente dos seus princípios de justiça. E como, além disso, o Executivo concorre com o Legislativo na expedição das normas tributárias, pode perguntar-se em que altura estamos e se tal regalia caiu em desuso, ou anda inteiramente obliterada.
Devemos notar que todos os anos, pela lei de finanças, fica autorizado o Governo, por parte desta Câmara, a arrecadar a receita e que também deve permitir-se expressa e anualmente a cobrança dos impostos lançados por tempo indeterminado ou por mais de um ano.
Portanto, a fiscalização da capacidade tributária e a autorização para ela fica resolvida e pode ser atingida assim e manifesta-se e exprime-se por uma ou duas formas em cada ano económico.

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Deveria a Assembleia reservar, porém, para si a faculdade legislativa e repelir a comparticipação de competência do Governo?
No estado actual das coisas, parece-me difícil encontrar uma solução que seja, por assim dizer, aceitável por todos: pelos teóricos, pelos técnicos, pelos Ministros e pelos Deputados.
Mas a lei tributária nunca foi elaborada numa oficina silenciosa e recôndita, nem sobre ela se exerceu apenas a tecnicidade dos técnicos.
Parece-me dificílimo assim entregar à competência da Assembleia, mesmo através das suas comissões, a elaboração de diplomas complexos, minuciosos e técnicos sobre os tributos; mas outra coisa são os grandes princípios de justiça fiscal.
A tributação obedece a directivas várias, políticas e político-sociais, e não apenas a motivos financeiros. É gizada, organizada e lançada de harmonia com princípios complexivos de economia, de justiça, de política e de administração.
E estabelelecida e regulada tendo em vista os seus efeitos, incidências e repercussões, a longo e a curto prazo.
Estes cuidados e afazeres não se coadunam, porém, com a missão de legislador das assembleias e do Deputado, que são os defensores da capacidade tributária.
Mas não duvido de que, se a questão um dia pudesse ser retomada e analisada de novo - e longe da autorização já conferida em matéria de reforma fiscal-, se poderia encontrar uma solução satisfatória.
Se viéssemos a definir como matéria exclusiva de lei os grandes princípios jurídicos e até as técnicas fundamentais inovadoras da tributação, o problema simplificar-se-ia enormemente e a sua solução adquiriria rigor e significado político bastante.

O Sr. Melo Machado: - Não se esqueça V. Ex.ª, que me dá licença, de que nós só aprovamos bases.

O Orador: - É exactamente isso.
Os princípios são quatro ou cinco - desde o mínimo de sacrifício até à utilidade social.
As técnicas ainda são menos - desde o desconto na base até à declaração pessoal.
Seria precisa a colaboração geral para se chegar a uma solução política, à solução constitucional, vamos!
Não apresentaria dificuldade um projecto de lei de duas ou três bases que, depois de constitucionalmente prescrito, cristalizasse os princípios e técnicas novas, diferentes e inovadoras, aos quais o consentimento dos representantes da Nação emprestaria grande autoridade, traduzida assim expressivamente e na ordem tradicional.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - Seja como for, a porta da discussão não fica fechada, e também pela lei de autorização das receitas e despesas e pela lei especial que condiciona os dinheiros públicos levantados e gastos não faltará ocasião adequada para a Assembleia esclarecer ulteriormente tais assuntos, pois o debate não me parece até agora concludente.
Mas seria vantajoso para todos que o consentimento pudesse revestir forma solene e especial, suplantando o regime continuado das autorizações anuais, que realmente não satisfaz.
Sr. Presidente: ao finalizar esta longa exposição sobre temas capitais de direito, afirmarei apenas, com simplicidade: temos de construir o futuro, mas guardando bem as lições do passado.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Martinho Lopes: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: ao subir a esta tribuna para intervir neste debate parlamentar move-me apenas o único objectivo de contribuir com o meu modesto depoimento para que se esclareça tanto quanto possível esta Assembleia, a fim de se pronunciar com inteiro, conhecimento de causa sobre o momentoso problema da reforma constitucional.
Vários pontos foram já discutidos e focados com a amplitude que merecem neste lugar e espera-se que, após o debate na especialidade, possamos brevemente ver coroados de êxito o nosso esforço e o nosso trabalho.
Estamos, pois, Sr. Presidente, em face da lei suprema da Nação, sobre a qual nos vimos debruçando, perfeitamente cônscios da especial gravidade do acto, que irá reflectir-se naturalmente na vida da colectividade, com todas as consequências dele derivantes.
Na certeza, porém, de que vozes mais autorizadas que as minhas em matéria de política constitucional, que já se fizeram ou vão ainda fazer-se ouvir com o brilhantismo que lhes é peculiar e com a autoridade incontestável que possuem na matéria em causa, deter-me-ei apenas sobre três pontos, que, pela sua especial relevância e directa incidência no plano dos interesses de toda a Nação e, portanto, da província de que sou porta-voz nesta Assembleia, me mereceram desde o início particular atenção.
Refiro-me em primeiro lugar, Sr. Presidente, à alteração do artigo 72.º da proposta governamental, no sentido de a designação do supremo magistrado da Nação ser feita daqui em diante por um colégio eleitoral composto de membros das duas Câmaras e de representantes municipais.
O problema, apresentado por vezes, a meu ver, um tanto ou quanto deslocado do seu verdadeiro âmbito, poder-se-ia resumir, ao que parece, nos seguintes termos: em face da situação concreta de jure et de facto da instituição vigente - a República unitária e corporativa -, trata-se simplesmente de apurar entre as formas possíveis a que mais convém na actual conjuntura política do País à eleição do Chefe do Estado.
Posta a questão nestes termos, e só nestes termos, julgo eu, se poderia abordá-la, afigura-se-me não só oportuna como até necessária a proposta governamental.
Efectivamente, Sr. Presidente, se a concepção corporativa, que a nossa Constituição Política consagra no seu artigo 5.º, se deve entender no sentido, da doutrina corrente como a de um corporativismo que, longe de negar o indivíduo, o reconhece e, integrando-o na estrutura da vida da comunidade nacional; efectivamente o defende na organização corporativa; se o corporativismo português só pode ser, na realidade, caracterizado de corporativismo integral na medida em que as forças vivas da Nação corporativamente organizadas participarem na eleição do Chefe do Estado através dos seus genuínos representantes, livremente eleitos pelas respectivas corporações, temos de concordar que, pelo menos, a proposta governamental, sob este aspecto, não obstante as deficiências que possa ter, constitui, em boa verdade, um esforço decidido, um passo em frente na realização do ideal corporativo.
Na verdade, analisando friamente a alteração do artigo 72.º proposta pelo Governo e tendo em vista a amarga experiência das campanhas eleitorais dos últimos anos, parece-nos, tudo ponderado, ser a forma de eleição do Chefe do Estado preconizada no texto governamental a que mais se coaduna com os tempos difíceis que decorrem e com os princípios basilares de um Estado que, por força da Constituição, é corporativo.

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Sendo assim, não vemos dificuldades de maior em lhe dar na generalidade o nosso aplauso, reservando o nosso voto para a discussão na especialidade.
Sr. Presidente: bem poderia ficar por aqui e passar a outro assunto. Simplesmente, como Deputado por Timor, cujos interesses tenho por obrigação especial zelar junto desta Assembleia, cumpre-me, a propósito, fazer o seguinte reparo: numa província, como Timor, onde apenas existe estruturada uma câmara municipal, que é a de Díli, se nos cingirmos tão-sòmente à letra da proposta governamental, afigura-se-me que a representação da província seria demasiadamente diminuta para poder figurar, como convém, num colégio eleitoral, como o que vem proposto no já citado artigo em causa.
Por isso, eu sugeria ao Governo que, em virtude das condições especiais em que se encontra Timor, se ampliasse a representação da província de forma a abranger também os delegados do Conselho do Governo local, e isto provisoriamente, até se verificar a existência efectiva, em número suficiente, de câmaras municipais em toda a província.
O segundo ponto que me proponho tratar nesta intervenção limita-se a uma pequena observação que vou fazer a propósito do artigo 3.º do projecto de lei apresentado pelo nosso ilustre colega Sr. Deputado Carlos Lima.
Nele se pretende, se bem entendi, que sejam sujeitos à ratificação da Assembleia Nacional os decretos-leis publicados pelo Governo, fora-os casos de autorização legislativa, e tratando-se de decretos-leis que revoguem total ou parcialmente as leis emanadas da Assembleia Nacional pode apenas um Deputado, diz o projectado § 3.º-A do citado artigo, requerer que sejam submetidos à apreciação da mesma.
Sem desconhecer inteiramente o melindre e os perigos que se poderiam suscitar à volta do problema proposto com lealdade pelo autor do projecto, seja-me permitido observar o seguinte: há que reconhecer, antes do mais, que tanto a Assembleia Nacional como o Governo não são duas forças divergentes, mas sim convergentes para um único bem, a saber: o bem nacional; são dois órgãos distintos, sim, mas que pertencem ambos ao mesmo aparelho estadual e foram criados não para se guerrearem mutuamente e sim para se completarem numa função altamente moderadora e ao mesmo tempo coordenadora, tendente a assegurar, de um modo estável, o equilíbrio do poder político.
Efectivamente, a história da vida política dos agregados humanos tem registado de forma bem patente que, se, por um lado, o abuso das prerrogativas constitucionais das assembleias representativas facilmente descamba no parlamentarismo, de ruinosas consequências para a vida social e política dos povos, por outro, o demasiado absorcionismo da parte do Poder Executivo resvala frequentemente para o autoritarismo.
Entre os dois escolhos há que escolher o meio termo. In medio stat virtus, diz o brocardo latino.
Afigura-se-nos, pois, indispensável para a manutenção do equilíbrio que, se, por um lado, a Assembleia Nacional deve delegar ao Executivo parte do seu poder legislativo, em virtude do condicionalismo imposto pelas realidades concretas da vida social e política da Nação, por outro, deve o Governo, por seu turno, ter em mais consideração as decisões da Assembleia Nacional, legislando de forma a que se acatem as disposições dela emanadas e se não repitam as infracções lamentavelmente verificadas no passado, que contribuíram de certo modo para o desprestígio da mesma Assembleia, que o mesmo é dizer da Nação, que ela representa.
Finalmente, o terceiro e último ponto que pretendo focar aqui diz respeito ao artigo 1.º do projecto de lei n.º 23, subscrito por onze ilustres colegas nossos. Pretende-se com ele introduzir um pequeno preâmbulo no diploma constitucional, com a seguinte redacção:

A Nação Portuguesa, fiel à fé em que nasceu e em que se engrandeceu, invoca o nome de Deus ao votar, pelos seus representantes eleitos, a lei fundamental que segue.

Independentemente da fórmula que venha definitivamente a adoptar-se na Constituição como a menos equívoca possível, no caso de ser aprovado por esta Assembleia o projectado preâmbulo, não me parece haver sérias razões para a rejeição do conteúdo do artigo em causa, que visa, afinal de contas, invocar simplesmente o nome de Deus.
A Clamara Corporativa, porém, opõe-se terminantemente, baseando-se, sobretudo, em duas objecções fundamentais, que passaremos a analisar.
Primeira objecção: «... não dexaria de chocar -diz o parecer da Câmara Corporativa - que em 1959 se fizesse à Constituição o adicionamento de um preâmbulo que ... passaria a figurar como se dela constasse desde 1933 .....
Salvo o devido respeito aos ilustres subscritores do parecer, não me parece consistente tal argumento.
Com efeito, sabe a Câmara Corporativa e sabemo-lo todos nós que a nossa Constituição Política, entre a demasiada flexibilidade ou a excessiva rigidez de normas constitucionais, adoptou, preferentemente a outros, como se deduz do preceituado no artigo 176.º e § l.º da mesma, um sistema que a doutrina classifica, com razão, de semi-rígido, porque, além de ter uma certa e relativa estabilidade dogmática, possui ao mesmo tempo a elasticidade necessária de molde a permitir num espaço de tempo cronologicamente fixado o reajustamento das suas normas, adaptando-as às realidades concretas da vida social no seu permanente fluir, próprio de tudo quanto é humano e temporal.
Assim se refundiram na Constituição várias normas, introduzindo nela novas disposições legais, como, por exemplo, o § único do artigo 97.º; assim se procedeu ao aditamento do n.º 4.º ao artigo 6.º e n.º 1.º-A ao artigo S.º, etc., disposições estas que dela não constavam desde 1933.
Donde parece poder concluir-se que, pelo facto de uma norma jurídica não ter constado da Constituição desde 1933, não se segue que a Assembleia Nacional, dotada de poderes, constituintes, não possa ter competência suficiente para poder fazer um simples aditamento à lei constitucional, quando entenda dever fazê-lo.
Poderia ainda objectar-se que a competência da Assembleia só deve ser usada para introduzir na Constituição alterações que as exigências da realidade nacional requerem. Vou já responder.
Segundo a mesma Constituição, as únicas restrições impostas à competência legislativa da Assembleia Nacional são as que constam do preceituado no artigo 97.º, que diz a... não poderão, porém, estes (membros da Assembleia) apresentar projectos de lei ... que envolvam aumento de despesa ou diminuição de receita do Estado, criada por leis anteriores».
Ora quer-me parecer que a invocação do nome de Deus na nossa Constituição não envolve nem aumento de despesa, nem diminuição de receita para o Estado.
Sendo assim, e uma vez que a Assembleia Nacional é chamada a pronunciar-se sobre o preâmbulo em causa, eu pergunto: não será uma exigência da realidade nacional a invocação do nome de Deus na Constituição Política de uma nação que prima acima de tudo por ser católica, que se orgulha de possuir o título de Fidelíssima?

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E passemos à segunda objecção. A Câmara Corporativa recomenda ainda a rejeição do projectado preâmbulo baseando-se no facto da falta de unidade religiosa dos Portugueses, espalhados por todo o Mundo.
Aceito o facto, mas o que me não parece é que ele, por si só, possa constituir motivo suficiente para se recomendar a rejeição de uma simples invocação do nome de Deus na lei positiva suprema da Nação.
Antes de responder, direi apenas, a título de esclarecimento, que há nesta Assembleia duas correntes de opinião acerca do significado da palavra «Deusa, que figura no preâmbulo em causa.
A primeira perfilha a opinião de que ela deve ser entendida no sentido meramente teísta, significando o Ente Supremo, o motor immobille, a causa incausata, na frase lapidar de S. Tomás de Aquino. A segunda pretende afirmar abertamente a sua fé no Deus da religião católica.
Na primeira corrente, e com isto respondo já à objecção acima formulada, não há nada que contrarie a invocação do nome de Deus, porquanto todos os portugueses dispersos pelos quatro cantos do Mundo, qualquer que seja o seu credo, qualquer que seja o modo de culto, pelo facto de professarem religiões diferentes, admitem explícita ou implicitamente o dogma fundamental comum a todas as religiões, que é Deus.
E que dizer da segunda corrente? Será ao menos defensável a opinião dos que preferem entender a palavra de Deus no sentido genuinamente católico?
Inclinamo-nos a responder afirmativamente.
Com efeito, para não fatigar demasiadamente esta Assembleia com longas citações dos preceitos contidos nos artigos 4.º, 6.º, 43.º, § 3.º, e 140.º, que vêm corroborar largamente o que vimos afirmando, basta-nos, por ora, considerar o artigo 45.º da Constituição, que começa assim: «É livre o culto público ou particular da religião católica como da religião da Nação Portuguesa». Do enunciado se deduz que o artigo 45.º considera, ainda que implicitamente, a religião católica como religião da Nação Portuguesa. Mas, considerando a religião católica como religião da Nação Portuguesa, segue-se, logicamente, que o Deus da religião católica é considerado o Deus da Nação Portuguesa.
Sendo assim, parece-me ter suficientemente demonstrado que não há nada mais natural, mais conforme aos preceitos constitucionais, do que invocar no preâmbulo o nome de Deus, tal-qualmente nos revela a fé cristã.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Soares da Fonseca: - Com mira a evitar penosas surpresas, rogo me seja permitido, Sr. Presidente, começar por uma singela advertência:
Não trago na minha despretensiosa oratória parlamentar nem a perfeição do ordenamento lógico e as cintilações da beleza formal de uma conferência polí-tico-literária, nem a profundidade dos conceitos e a riqueza da erudição de uma lição político-cultural - daquelas conferências e lições a que esta tribuna parece às vezes andar habituada; mas, em meu modesto entender, mal habituada. (Risos).

O Sr. José Saraiva: - Essas lições só têm dignificado essa tribuna.

O Orador: - Tenho, como V. Ex.ª vê, opinião diferente, mas felicito-o se V. Ex.ª se considera um dos conferencistas.
Digo, Sr. Presidente, e perdoe-se-me que repita: mal habituada.
Na verdade, salvo melhor critério, e sem embargo da minha incomensurável admiração por esta nobre forma de eloquência, ela afigura-se, a meus olhos, descabida no uso normal da tribuna parlamentar.
Iria dizer até que, não obstante a inegável deleitação dos ouvintes desta Casa e dos leitores do Diário das Sessões, diante de tão pouco fácil género oratório, deverá talvez situar-se aqui uma fonte de certa ineficiência das intervenções parlamentares, que assim perdem em vigor actuante o que foi ganho em esplendores formais e perdem, não digo em ligeireza, mas em leveza estimulante, o que foi ganho em densidade de saber.

O Sr. José Saraiva: - Nada há tão prático como uma boa teoria.

O Orador: - Responderei que nada tão teórico como uma teoria, ainda que boa. Não é disso, em todo o caso, que eu trato.
Quero, entretanto, dizer a V. Ex.ª que se os seus apartes são só por simples vício dos apartes, não haverá apartes.
Não venho, portanto, Sr. Presidente, pronunciar enfaticamente uma conferência ou proferir conspicuamente uma lição, para o que, além do acabado de expor, de todo me falecem o ânimo e a aptidão.

O Sr. Amaral Neto: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Tenha a bondade.

O Sr. Amaral Neto: - Há pouco quis interromper V. Ex.ª para dizer, como mero ouvinte, que quando a beleza formal se associa ao rigor da análise e à propriedade da conclusão está-se muito acima do nível referido, embora não do dessa tribuna.

O Orador: - Sem dúvida. Mas não é esse propriamente o problema que apontei.
Desta vez, Sr. Presidente, não farei, sequer, um discurso no rigoroso sentido da palavra. Limitar-me-ei, em rápido bosquejo, como creio adequado à generalidade do presente debate, a apontar os traços mais relevantes da proposta e dos projectos de alteração constitucional e a formular aqui ou além um breve comentário, cujos desenvolvimentos, se deles houver mister, melhor caberão durante á discussão na especialidade.
A primeira nota saliente a indicar é, sem dúvida, a respeitante à modificação do sistema de eleição do Chefe do Estado - conforme iniciativa da proposta governamental, ao depois retomada, em moldes diversos, no projecto do Sr. Deputado Augusto Cerqueira Gomes.
Para não invadir abusivamente o terreno próprio da especialidade, nada alegarei, por agora, dos méritos da primeira sobre a segunda ou das eventuais pequenas modificações de que ela será susceptível.
De momento importa sublinhar que se abandona o sufrágio directo da colectividade nacional, passando a eleição a ser feita através de um colégio eleitoral especial, constituído pelos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa e pelos representantes de outros órgãos da vida pública.
O douto parecer da Câmara Corporativa expõe com lúcida clareza as razões de oportunidade e os inegáveis merecimentos que militaram em favor do sistema até agora vigente, ao mesmo tempo que põe em relevo os fundamentos de natureza filosófico-política e os aspectos pragmáticos abonadores das virtudes do novo sistema proposto.

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Dele ressalta, em resumo, o seguinte:
Ao constitucionalizar-se a Revolução Nacional, quero dizer: ao passar-se do regime de ditadura para o jogo normal das novas instituições políticas, era impossível deixar de buscar no sufrágio directo e universal a fonte imediata do poder político do Chefe do Estado, uma vez que, acima de tudo, se tinha de garantir a necessária independência do Supremo Magistrado da Nação, agora investido de real poder de soberania - conforme a melhor sabedoria política e a ética do novo regime.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - A eleição directa pela colectividade nacional não seria o processo dotado de mais coerência com o rigor dos princípios doutrinários; mas as realidades também comandam. Sacrificando este aspecto, salvaguardou-se o mais essencial do momento - que era a criação do condicionalismo jurídico-político destinado a assegurar aquela independência.
Entretanto, porém, tendo-se partido do nada que era ao constitucionalizar-se o regime, começou a surgir - dizia- a nova ordem promissora, e não já confinada ao mecanismo da vida do Estado, mas levada até à estrutura da Nação.

O Sr. Rodrigues Prata: - Muito bem!

O Orador: - Designadamente, consolidou-se a Assembleia Nacional e criou-se a organização corporativa - cedo sustada no seu normal desenvolvimento e mesmo desviada das suas específicas finalidades pelas adversidades dos ventos soprados com o incêndio que o desvairo dos homens ateou no Mundo. Eis, porém, que ela está a retomar o seu curso natural e a cuidar de completar-se, começando a revelar-se capaz de novas inferências nas expressões da vida colectiva da Nação e no ordenamento da vida política do Estado.
Do mesmo passo, a experiência colhida nas últimas duas campanhas de eleição presidencial mostra que o actual processo de designação do Presidente da República ameaça agora comprometer a sempre almejada dignidade da função presidencial e se foi desvirtuando em processo de destruição do próprio regime através do chamado golpe de Estado constitucional.
É assim tempo, e parece estar-se em condições, de abandonar o sistema eleitoral em vigor e de avançar mais um passo no sentido do aperfeiçoamento, ainda longe de inacabado, das nossas instituições políticas.
Tendo, porém, de continuar a «escolher» qual a solução mais adequada na presente conjuntura?
Recusado favor à eleição directa pela colectividade nacional, eliminada fica também a chamada eleição em segundo grau, isto é, o processo de designação através de um colégio eleitoral expressamente constituído para este fim através do sufrágio universal directo. Mais do que toda a dedução lógica de puros raciocínios, anda bem patente na consabida experiência alheia que a eleição indirecta é, afinal, simples modalidade da eleição directa, pois nesta se converte praticamente.
Assim, devemos tê-la por tão inadequada ao nosso condicionalismo político-social como a primeira.
A eleição pela Assembleia Nacional ou por esta e pela Câmara Corporativa tem contra si o defeito de o colégio eleitoral parecer demasiado reduzido para a designação de um Chefe do Estado, que se pretende revestir da maior autoridade moral e do mais forte prestígio político. Contra ela milita também, e acima de tudo, o defeito de facilmente levar à concepção prática de um Presidente da República limitado pela fonte imediata do seu poder e dela dependente, por parecer emanação exclusiva das duas câmaras - o que seria correr o grave risco de lançarmos na voragem uma das virtudes fundamentais do regime, constituída precisamente pelas condições de independência de que se tem cercado e pretende continuar a cercar o Chefe do Estado, árbitro constitucional da vida política. Daí o colégio eleitoral misto, em que aos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa se juntam os representantes de outros órgãos da vida pública. Por este processo alarga-se suficientemente a composição do colégio eleitoral e evita-se o exclusivismo da eleição pelas duas câmaras - parecendo ficar garantida, dentro das possibilidades humanas do processo, a eleição em atmosfera de ordem e dignidade, civismo e prestígio.
Não será, ainda, a perfeição; mas é razoável admitir-se que é imperfeição menor.
Creio ser este, Sr. Presidente, o sentido construtivo do douto parecer da Câmara Corporativa.
Nele assentei tranquilamente as certezas humanas indispensáveis de momento ao meu espírito, e guardava-ma para intervir apenas na especialidade, com vista a um apontamento sobre o que o novo sistema irá implicar de ajustamentos noutros domínios, designadamente no da constituição da Câmara Corporativa - onde, além da segurança da genuinidade da representação dos vários interesses, é mister alargar a representação dos de natureza espiritual e moral, agora bastante diminuta, quer tendo em conta simplesmente a sua própria relevância, quer comparando-a com a forte representação dos de ordem material.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Estas humanas certezas não tinham sido perturbadas, até há pouco, durante o longo debate a que vimos assistindo - salva a natural inquietação de alguns Deputados para quem a aceitação constitucional da «preexistência do direito ao Poder», segundo a palavra do ilustre Deputado Sr. Dr. José Saraiva, vai sendo uma das nossas urgências políticas.
Eis, porém, que subiu à tribuna este nosso prezado colega e se nos mostrou portador de uma mensagem nova, proclamada no final de um longo e carregado cortejo de hipercriticismo - em que o brilho da vivacidade intelectual, o cuidado da ordenação do pensamento e a originalidade atraente de certas formas de expressão não conseguem disfarçar a nota dominante de niilismo.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª dá-me licença?
Peço a V. Ex.ª que me diga simplesmente e sem rodeios se está ou não disposto a ouvir apartes, se está disposto a dialogar.

O Orador: - Estou disposto a ir até ao fim sem diálogo, se o diálogo se revelar inútil.

O Sr. José Saraiva: - E que V. Ex.ª poderia poupar-me o esforço de ir amanhã à tribuna explicar o que se poderia esclarecer desde já. Mas no ponto em que se encontra pode V. Ex.ª continuar com todas as imputações vagas de niilismo, criticismo, negativismo. Que mão são justas resulta, evidentemente, do facto de se ter dito quanto a Pátria deve ao regime e de se ter afirmado como preocupação dominante a de, por isso mesmo, o continuar.

O Orador: - Repito: se os apartes de V. Ex.ª são verdadeiros apartes, poderá fazê-los, mas se forem exposições, isto é, discursos a intercalar no meu próprio discurso, não poderá. E continuo.

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Perdoar-se-me-á, Sr. Presidente, se com este comentário me coloco ao arrepio das intenções do ilustre Deputado - o qual, antecipando-se-me, considerou «necessária» uma palavra explicativa da perfeita lisura dessas intenções. Eu não duvido delas, nem sequer um momento. Mas há-de reconhecer-se que sucede nos discursos políticos o mesmo que sucede na própria política, a saber: o que parece, é.
Isto determinou, em boa parte, a minha subida à tribuna, não obstante a já fatigante duração do debate e, portanto, a longânime paciência que tenho de pedir à Câmara para benevolamente me ouvir.
Sr. Presidente: três aspectos substanciais feriram de modo especial a minha atenção no discurso a que me estou referindo.
Em primeiro lugar, não o ocultarei, impressionou-me vivamente. o negativismo quase sistemático das abundantes, alusões, nem sempre apropositadas e muitas vezes inteiramente fora do elenco dos problemas em debate, feitas à vida e à obra do regime.
Exactamente porque mal cabidas, comentá-las-ei apenas com a seguinte observação:
A uma crítica persistente e em tom de excessiva generalidade, parecendo envolver tudo e todos na medida mesma em que se não refere especificamente a nada nem a ninguém, falta a necessária condição de objectividade. Diante dela apetece lembrar a necessidade da «autocrítica» aludida, no Evangelho, quando nos convida a meditar sobre de que espírito somos.
Entre o justo horror à lisonja e a abominação do hipercriticismo há a verdade do que na sabedoria das nações se chama a posição da virtude.
Ai de nós se, para vitoriosamente fugirmos ao feio pecado da lisonja, só sabemos procurar refúgio nas ásperas cavernas dos maus espíritos denegridores!
O segundo aspecto que pretendo salientar é ainda de natureza crítica. Refiro-me, Sr. Presidente, à tentativa de dissecação do parecer da Câmara Corporativa, contra o qual nesta tribuna se investiu com denodo apaixonado, quase como se se tratasse de rija contenda pessoal - em que do adversário nem as cinzas se ficariam a aproveitar ...
Também não irei fazer aprofundada crítica desta crítica. Duas notas bastarão para dar a ideia do merecimento que me pareceu dever extrair-se dela.
Ao ouvir o discurso em questão, todo repassado de negro pessimismo sobre os vários processos praticados ou buscados para determinar a vontade nacional na escolha do Chefe do Estado, cheguei a admitir, não sem espanto de alma, que o orador viesse a concluir pelas excelências da hereditariedade na Suprema Magistratura da Nação. Hei-de confessar publicamente que neste meu engano fui até ao ponto de lhe chamar «monárquico envergonhado», quando sinceramente o felicitei pelas inegáveis e invejáveis qualidades intelectuais e literárias da sua intervenção parlamentar.
Depois, reflectindo melhor, vi como o discurso era uma espécie de selva de contradições internas e como a conclusão por mim entrevista poderia, afinal, não passar de mais uma das tais contradições.
Relembremos, Sr. Presidente, alguns passos do discurso e, em primeiro lugar, a viva diatribe contra o sufrágio universal directo.
Em todos os países, afirma-se, «desde há muito tempo» se tornaram «claros os inconvenientes do sufrágio directo, cómoda ilusão aritmética cuja veracidade não resiste ao primeiro exame». Pelo que em especial toca ao nosso país, não corresponde às nossas «condições históricas, culturais e temperamentais», não nos estando «na massa do sangue». Nele não pode exprimir-se «um pensamento verdadeiro» e nem «é o mérito» que decide, mas a «demagogia», triunfante na «ditadura das urnas». Os «debates eleitorais estabelecidos à volta de consultas directas» costumam trazer consigo um cortejo de inconvenientes «graves», entre os quais se apontam a «perturbação da vida nacional», as «divisões que permanecem mesmo depois do acto e afectam a unidade da família portuguesa», podendo chegar a constituir «o ensejo de insurreição violenta de todos os valores e de todas as instituições».
Naturalmente que, sendo estes males intrínsecos à própria natureza do sistema, ele é de rejeitar sem contemplações tanto para a eleição do Presidente da República como para a eleição dos Deputados - o que expressamente é reconhecido ao acentuar-se que a lição condenatória de tal sistema vem «de já quase século e meio», período durante o qual só uma reduzida parte abrangei a eleição presidencial; não deixando de se pôr em especial relevo, quanto a esta, que a «revisão constitucional corresponde a uma necessidade» urgente e que O «condicionalismo actual» a impõe.
Pois, Sr. Presidente, não obstante o fogo vigoroso que arde em toda a diatribe acabada de resumir, o ilustre orador entende:

Por um lado, que pode passar em silêncio a revisão do processo eleitoral dos Deputados, mantendo para estes o ... abominável sistema do sufrágio directo e considerando-os até expressão autêntica da vontade da Nação, exactamente por serem «eleitos directamente» (repito: directamente) por ela; e
Por outro lado, quanto à chefia do Estado, entende que deve considerar-se prematuro e inoportuno o abandono do sufrágio directo, pela «desconfiança», embora injustificada, que gera (pasmemos, Sr. Presidente!) «sobre os métodos políticos do regime e até sobre a recta intenção das pessoas», mais entendendo (pasmemos de novo, Sr. Presidente!) que o sufrágio universal e directo (repito: universal e directo) seria, «o que estaria de acordo com a posição primacial do Chefe do Estado, dentro do conjunto das nossas instituições políticas», e é o que tem já «um quarto de século», isto é, «mais de metade do tempo de duração das instituições republicanas em Portugal».

Onde está aqui um pensamento vertebrado, isento dos «hibridismos perturbadores», das faltas de «harmonia lógica» e do vício de desequilíbrio «doutrinal»- de que tão duramente se acusam a proposta do Governo e o parecer da Câmara Corporativa?
Os exemplos de contradições poderiam multiplicar-se.
Mas passemos, sem outras detenças, ao exame dos fundamentos invocados para recusa da proposta do Governo

O Sr. José Saraiva: - Aí não há contradição absolutamente nenhuma, como depois explicarei a V. Ex.ª

O Orador: - Muito bem! Aguardarei a prometida explicação.
O mais importante fundamento, e até, ao que parece, de si mesmo decisivo, é este: vai criar-se, em substituição do sufrágio universal, um colégio eleitoral restrito e o ilustre Deputado considera indefensável todo o colégio eleitoral de base menor do que a do sufrágio universal.
Mas onde se demonstrou ou poderá demonstrar-se inequivocamente que tal colégio restrito não é forma legítima de apurar a vontade da Nação?

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Não ficou expressamente reconhecido, pelo mesmo Sr. Deputado, que o sufrágio universal, todo o sufrágio universal, tanto o indirecto como o directo, não é «a única forma de designação do supremo magistrado nacional»?
Como lograria alguém convencer-nos, em todo o caso, de que terá de ser forma única perante a hipótese nobre (não direi, para não melindrar, aristocrática ...) de o supremo magistrado ser efectivamente magistrado e, portanto, magistrado supremo da Nação?
Ou, porventura, está patenteado e tem foros únicos de autenticidade o processo original preconizado pelo. ilustre Deputado, até agora desconhecido da doutrina e ignorado da prática?

O Sr. José Saraiva: - Desconhecido da doutrina, não; desconhecido de V. Ex.ª O sufrágio universal em dois graus é conhecido por toda a gente.

O Orador: - Refiro-me ao processo pessoal encontrado por V. Ex.ª para, através do sufrágio universal, determinar a escolha do chefe do Estado.

O Sr: José Saraiva: - Isso é desconhecido da doutrina?

O Orador: - Refiro-me, repito, ao processo que irá concretizar-se na proposta de V. Ex.ª, que não conhecemos ainda.
O que todos buscamos é uma forma correcta de interpretação da vontade nacional, mas ninguém jamais logrará descortinar forma única, indiscutível - que não há absolutos neste domínio, contra o que poderia depreender-se das tonalidades categóricas do discurso que venho comentando.
Ainda se nele se tivesse chegado a reconhecer, no meio de tantas dúvidas inquietantes, que deverá ter-se por menos discutível a solução que prefere os chamados menores azares do nascimento aos chamados maiores azares de qualquer eleição! Mas esta precisamente a têm pela mais discutível todos os que se embrenham na floresta das outras discutíveis temporalidades.
Ora, se não puder ser acolhida esta solução natural, a melhor ainda é, para cada lugar e momento, a ... menos pior.

O Sr. José Saraiva: - Não nego, porque em minha inteligência não poderia negar, que a fórmula da proposta, do Governo seja uma fórmula legítima. O que nego é que a Nação, em consequência dessa fórmula, sinta que o Presidente da República seja eleito por ela. Se V. Ex.ª entende que a Nação, com essa fórmula, continua a sentir que o Presidente da República é eleito por ela ...

O Orador: - O problema é um pouco diferente: trata-se de saber se podemos legitimamente entender que é a Nação que continua a escolher. E isto não parece sofrer contestação válida.
Continuando: eis aí um critério que deve reunir duas virtudes invejadas, na matéria vertente, pelo ilustre Deputado: é eminentemente prático, quero dizer, respeitador da realidade dos factos, e não há dificuldade de se encontrar para ele suporte ideológico adequado, no meio da «feira dos mitos» teoréticos. No fundo, também nestes problemas deverá o interesse nacional ser o nosso dominador comum, rectamente interpretado à luz de um nobre pensamento e de harmonia com o juízo das contigências da sociedade em que vivemos. Claro que fica ainda, mesmo assim, larga margem para subjectivismos preferenciais; mas procuremos, também aqui, o essencial de uma união eficaz dos nossos esforços comuns.
Vejamos de seguida, Sr. Presidente, a crítica específica formulada sobre cada um dos sectores de que se compõe o colégio eleitoral restrito.
No entender do ilustre Deputado, os membros da Assembleia Nacional não dispõem de legitimidade bastante para funcionarem como intérpretes da Nação no referido colégio eleitoral. E certo que estão dotados daquilo a que aprouve chamar-se c legitimidade técnica», no sentido de terem sido eleitos pelo sufrágio universal - o célebre sufrágio directo, que, no dizer do orador, não passa de ilusão falaz, de resultados sempre inverídicos. Mas, adverte-se-nos, falta-lhes alguma coisa de mais essencial, que é terem, além do que se chamou «representação directa» do interesse nacional, uma «representação indirecta», considerada para o efeito, talvez por ser ... indirecta, título mais autêntico - «a representação das opiniões políticas». Por outras palavras também do discurso a que me venho referindo, a minimização dos Deputados ou a desqualificação da Assembleia para intervir na eleição do Presidente da República resulta da seguinte mácula original: em vez de «mandatários de partidos», nesta casa há «Deputados da Nação»!

O Sr. José Saraiva: - É V. Ex.ª que lhe chama «mácula», pois eu chamo-lhe «virtude».

O. Orador: - Vê-se que não vemos as coisas pelo mesmo cristal.
Parece assim, e muito bem, que os partidos não são a Nação; mas parece também, e muito mal, que não é a esta que verdadeiramente pertence eleger o chefe do Estado!
Valerá a pena, Sr. Presidente, pôr mais em evidência o ilogismo desta posição teorética ou aduzir qualquer comentário pôs ressaibos de partidarismo que ela denota ? Não! Não vale a pena; mas talvez a valha lembrar, também a este propósito, a conveniência de frequentemente nos reencontrarmos a nós próprios, examinando bem de que espírito somos.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª não apreendeu a dificuldade a que eu aludi. E que, sempre que se trata da eleição do Chefe do Estado, a Nação divide-se em sectores, correspondentes a orientações políticas divergentes. E é exactamente porque nós aqui não podemos interpretar essas várias opiniões que isso não deixaria de ser intepretado como uma falta de genuinidade representativa.

O Orador: - O que V. Ex.ª disse aqui é que os Deputados eram Deputados da Nação, e não mandatários dos partidos, o que significa que, se fossem mandatários dos partidos, não eram Deputados da Nação.

O Sr. José Saraiva: - Isso não resolve a dificuldade. V. Ex.ª sabe que a massa eleitoral, no momento da eleição do Chefe do Estado, se divide em sectores divergentes, e esses sectores divergentes não se encontrariam representados no escrutínio feito no seio da Assembleia. E isto ecoaria lá fora, de modo chocante; anoto até que qualquer observador estrangeiro não deixaria de se impressionar, por ver evidente divisão na base de uma votação que aqui poderia concluir por uma unanimidade.
A votação na Assembleia era legítima, e, num sentido superpartidário, interpretava o interesse nacional; mas resultaria uma falta de correspondência que havia de ser explorada contra nós. Em política, o que parece, é, como V. Ex.ª acaba de dizer. E então parecia o que não era.

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O Orador: - Responderei a V. Ex.ª que: 1.º Não me interessa grandemente a interpretação que possa ter em certos meios uma certa atitude; interessa é saber se ela é legítima;
2.º As votações da Assembleia Nacional não são, necessariamente, e não têm sido muitíssimas vezes, unânimes. Ou por preferências derivadas da formação mental ou por outros motivos explicáveis, podem formar-se, e têm-se formado, correntes de opinião a propósito de cada problema. Mas não são correntes organizadas, sistemáticas, partidárias.

O Sr. José Saraiva: - Creio que V. Ex.ª está a fazer uma injúria à Assembleia.

O Orador: - Pois pedirei desculpa à Assembleia, ou a V. Ex.ª, se é a V. Ex.ª que estou a fazer a injúria.

O Sr. José Saraiva: - Se se acata a lição de Salazar de que a política, para ser nacional, tem de repudiar completamente as formas partidárias, não pode deixar de se entender que qualquer candidatura de tipo partidário seria aqui dentro unânimente repudiada. Mas nem por isso deixa de ser verdade que um sector permanece agarrado a velhos mitos, e esse sector apoiaria uma candidatura com tais características. Admitir que, posta tal alternativa, e dada a nossa formação, nos não pronunciássemos .por unanimidade, seria fazer-nos injúria.
Não apoiados.

O Orador: - Sr. Presidente: negada assim legitimidade aos Deputados para fazerem parte do colégio eleitoral, era evidente que tinta de ser recusada, de igual modo, aos Procuradores à Câmara Corporativa. O ilustre orador entendeu, porém, que convinha acentuar a inautenticidade dos Procuradores.
A este respeito, começa por discordar de que se afirme que a nossa «Constituição é de concepção corporativa», porquanto, explica, c o que é corporativo não é a Constituição em si mesma, mas a Nação tal como a Constituição a compreendei».
Eis, Sr. Presidente, o que me atreverei a chamar simples jogo de palavras ou, se me é lícita a expressão nesta tribuna, um esquisito gosto de embirrar. Respondo por um processo» idêntico: acaso se poderá falar, no terreno doutrinário como no histórico, em Constituições de concepção liberal, se o que verdadeiramente é liberal não são as Constituições em si mesmas, mas as instituições tais como as constituições as compreendem? Todavia, ninguém jamais pôs em dúvida o perfeito emprego da expressão a Constituições de concepção liberais ou «Constituições liberais».
Sublinha-se noutro passo do- discurso a discordância de que o voto orgânico possa servir de «instrumento adequado à soberania nacional».
Mas como assim -anoto eu-, se simultaneamente se entende que a Nação é mais do que a soma dos indivíduos, abrangendo, portanto, instituições, e até se reconhece uma aplicação prática de tal princípio quando se aceita o voto do município, por ser uma das «mais autênticas corporações»?
Sr. Presidente: a selva de contradições é demasiado densa para me embrenhar demoradamente por toda ela. Tenho de deixar para trás o matagal das mais rasteiras, que, à sombra das acabadas de apontar, se desenvolveram no terreno corporativo. Aponto apenas, a título de curiosidade, aquela planta parasita em cujas raízes laterais se tenta chegar a absorver todo o espírito corporativo, negando-se aos dirigentes, por mais bem eleitos que tenham sido pelo sufrágio universal dos seus pares, quer directo, quer indirecto, o direito de verdadeiramente os representarem e em nome do respectivo organismo agirem para além dos actos de mero expediente, pois que parece deveriam, em tudo o efectivamente substancial, munir-se de prévio voto expresso das assembleias ou conselhos gerais. Custará, talvez, a acreditar que tão estranha concepção venha num discurso em cuja abertura se defendeu a conveniência de «institucionalizar a própria personalização do Poder»!

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª conhece, como talvez mais ninguém, os problemas concretos do corporativismo. V. Ex.ª é um dos mais formosos, cintilantes, espíritos desta Casa ...

O Orador: - Simplesmente amabilidade de V. Ex.ª Muito obrigado.

O Sr. José Saraiva: - E sem se embrenhar em selvas (nem matagais - o discurso de V. Ex.ª não tem nada de selvático, antes o diria chamar-lhe um jardim, se não me parecesse antes uma estufa -, V. Ex.ª pode realmente negar que nessa questão momentosa, grave, da designação dos representantes dos organismos corporativos - concretamente, dos representantes sindicais - estejamos longe de atingir aquele nível de veracidade, de autenticidade, de realidade, de genuinidade, que seriam indispensáveis para que pudessem plenamente funcionar? É ou não é verdade que essa matéria, essa, sim, tenha sido uma verdadeira floresta de dificuldades, que até hoje não vencemos?

O Orador: - Não é verdade, desculpe o tom categórico da negativa.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª diz que não é. E nós ouvimos.

O Orador: - V. Ex.ª apelou para o meu directo conhecimento da matéria, que considerou autorizado. Com base nele, posso assegurar que, salvo talvez dois ou três casos em que informações fidedignas mostraram estar-se perante candidatos a dirigentes não integrados na ordem social, isto é, comunistas, o Ministério de que tive a responsabilidade directiva deixou sempre agir livremente a iniciativa dos sócios dos organismos corporativos na designação dos respectivos dirigentes - havendo também o cuidado de só em casos extremos, aliais bastante raros, se nomearem comissões administrativas.
Aceito, sem dificuldade, que algumas vezes os interessados não terão sabido escolher bem ou poderiam escolher melhor; mas isto resulta da falta deles próprios, quero dizer, do imperfeito uso da perfeita liberdade de escolha, por culpa, naturalmente, dos mesmos interessados.

O Sr. José Saraiva: - Estamos de acordo. Há uma culpa, não interessa de quem. Se há culpa, há um facto que a origina.

O Orador: - O que foi negado ou de que V. Ex.ª duvidou foi a genuinidade da eleição, e esta é que eu afirmo. Uma coisa é ter sido autêntica a eleição e a outra é terem sido eleitos os bons ou os melhores; mas, mesmo quando tal não haja sucedido, não foram as directrizes ou intervenções ministeriais, que vieram a escolher.

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O Sr. José Saraiva: - A esse respeito V. Ex.ª disse muitas palavras, e para bom entendedor meia palavra basta.

O Orador: - Ou isso não responde nada ou eu não sou bom entendedor.

O Sr. José Saraiva: - Do meu discurso parece que não.

O Orador: - Salvar-se-á, ao menos, Sr. Presidente, a intervenção da representação municipal? Parece que sim; mas também parece que não!
Parece que sim, visto ter-se considerado «justo» o «princípio da representação municipal», atendendo a que o «município é talvez á mais (...) autêntica das nossas estruturas corporativas» e a «mais justa das formas existentes de agrupamentos de interesses».
Mas também parece que não, se atentarmos noutras afirmações. Na verdade:
Por um lado, reconhecendo-se que á Nação é mais do que a soma aritmética dos indivíduos, acentua-se que «também é mais do que a soma aritmética das instituições», para se concluir daqui (não discuto agora se lógica ou ilògicamente) que a «legitimidade para votar» é completamente «anterior a qualquer enquadramento corporativo», vindo do «simples facto de ser português», ou seja de ser pessoa individual. Mas como legitimar então o voto da instituição município?
Por outro lado, reincide-se nesta contradição quando, no propósito deliberado de rejeitar o voto corporativo e dos Procuradores à Câmara Corporativa, se considera pura abstracção inatendível tanto o «homem-operário» como ... o «homem-munícipe» e se apela ingloriamente, em nome de uma filosofia dita moral, para a pessoa-indivíduo como realidade única, e, portanto, única susceptível de «decidir, independentemente dos condicionamentos resultantes da sua inserção no tecido social». Mas, sem discutir agora a falsidade desta asserção, como admitir então o município no colégio eleitoral?

O Sr. José Saraiva: - Eu disse que o município é realmente a mais autêntica das nossas estruturas corporativas porque no município não estão representados unicamente interesses profissionais, mas toda a riqueza dos interesses humanos. Ora, quando digo que a Nação é mais que a soma dos grupos corporativos, é no sentido do interesse nacional, que não é absorvido pela soma dos interesses técnicos e profissionais representados nas corporações. Mas já se poderia admitir se exprimisse através da totalidade dos interesses não representados pelos municípios, mas enquadrados por eles. Eu aceitaria por isso, em princípio, eleição de base municipal, e por isso proponho a paróquia como base da eleição, porque ela é, verdadeiramente, historicamente, a representante dos municípios tradicionais, a que mantém a sua dimensão humana.

O Orador: - O problema é outro - o de saber se é ou não legítimo que o município intervenha. V. Ex.ª disse que é «justo» que ele intervenha; mas, logo a seguir, afirmou que o direito de votar é anterior ao município e que só o indivíduo pode votar. Aqui é que eu vejo a contradição.

O Sr. José Saraiva: - Eu disse anterior a qualquer corporação.

O Orador: - Pois disse, e disse também que o município é a melhor das corporações.

O Sr. José Saraiva: - Chamei eu, mas não V. Ex.ª

O Orador: - Palavras! O que importa é que lhe chamou a melhor das corporações e, como tal, a considerou com legítimo direito a intervir na eleição; mas, simultaneamente, nega-lhe esse direito ao entender que só o indivíduo vota, porque o direito de voto é anterior a qualquer corporação.

O Sr. José Saraiva: - Eu disse que o direito ao voto era anterior a qualquer enquadramento corporativo; em sentido técnico, o município não é um enquadramento corporativo.

O Orador: - V. Ex.ª disse que o direito de votar é anterior a qualquer enquadramento corporativo e, ao mesmo tempo, que o município não só dele fazia parte como até é a melhor das estruturas corporativas, mas parece agora que já não é ...

O Sr. José Saraiva: - Aludi concretamente a problemas ligados à unidade do mundo português e que o direito de votar é anterior a qualquer enquadramento. Eu excluí dessas corporações os municípios porque, se eles são corporações verdadeiras no sentido mais amplo, já o não são na acepção técnica do termo, que era aquele a que eu aludi ao falar do enquadramento corporativo. Está V. Ex.ª esclarecido?
É que, efectivamente, há aqui uma confusão que V. Ex.ª pretende estabelecer entre o meu conceito estrito de organismo corporativo e o conceito de estrutura humana, muito mais amplo. Quando eu digo «corporação», em sentido técnico, não incluo aí o município. Digo que me parece que o voto do orgão corporativo stricto sensu é incompatível com a dignidade da pessoa humana. Se mo permite, exemplifico. Acontece que eu faço parte de uma estrutura corporativa - a Ordem dos Advogados -, e é manifesto que nesse organismo a relevância do meu voto está limitada pela minha qualidade profissional. Más então fica de fora quase tudo: o estudioso,-o chefe de família, o pai de muitos filhos, o homem preocupado pelos problemas humanos - todos os aspectos de uma personalidade que nada tem que ver com o aspecto profissional, e que são justamente aqueles que determinam o sentido do voto.

O Orador: - V. Ex.ª desviou a questão. Seria preferível ter-se mantido no terreno preciso em que se está a discutir - o caso concreto do município. V. Ex.ª faz agora intervir o exemplo da Ordem dos Advogados e fala-nos do marido, do pai, do homem preocupado com os problemas humanos - tudo para significar que só o indivíduo, a pessoa singular, pode votar.
Admitamo-lo, por momentos, mais uma vez. Mas, também uma vez mais, como admitiu V. Ex.ª, simultaneamente, que é justo atribuir-se o voto à pessoa colectiva do município?
Esta contradição é que ainda não VI desfeita, e este ponto é que eu vinha criticando.

O Sr. José Saraiva: - É tão simples! Há duas questões diferentes: a primeira consiste em saber se, dentro de uma concepção de voto orgânico, a solução da proposta é satisfatória. Isto é, se, dentro dessa concepção, um colégio formado pela Câmara dos Deputados, pelos Dignos Procuradores e pelos representantes dos municípios pode ser um processo idóneo. Independentemente de saber se o voto orgânico é ou não é de aceitar, trata-se de ver se esses três órgãos seriam qualificados. E, quanto ao município, penso que sim. O que me parece também é que nem essa representação municipal

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aparece na proposta em termos aceitáveis, nem os outros órgãos em termos isentos de crítica.
A segunda questão é a seguinte: a própria concepção de voto orgânico não suscita dificuldades? E um outro problema; examinei-o, e concluí rejeitando a própria ideia do voto orgânico. Tudo isto é claro. Não vejo onde esteja a selva virgem: mais me parece o meu discurso uma herdade ordenada, onde há semente para o pão que as nossas incertezas reclamam. Em matagal é V. Ex.ª que o quer transformar.

O Orador: - Tudo isso é literatura, que não interessa ao fundo da questão. Estamos a discutir um caso concreto. Não tratamos de pão, mas de votos. E vamos adiante, porque está visto não ser possível esclarecer a contradição. Não vejo que se lucre mais coisa alguma com o diálogo.
A crítica de que me venho ocupando, Sr. Presidente, repugna a arrumação dos municípios por distritos para efeito de escolha dos seus representantes ao aludido colégio eleitoral. Donde vem a repugnância? Deste facto, apresentado com a candura de um didáctico ensinamento: é que a verdadeira estrutura corporativa a ter em conta é o município, e não «o conjunto de municípios de cada distritos, simples categoria administrativa- do que resultaria uma «representação (...) convencional, destituída de toda a genuinidade representativa».
Ora, tenho por mais que evidente que os distritos não aparecem aqui, diversamente do inculcado com certa ligeireza pela crítica, como categoria administrativa, mas na mesma qualidade com que se nos apresentam para a eleição dos Deputados. São simples forma de organização do mapa político do País. Aproveitam-se, em vez de se criar uma organização ad hoc, para definição dos círculos eleitorais, isto é, como processo técnico de recolher os votos dos municípios, sem que perigue no mínimo a autenticidade da instituição municipal. Tão meridiana me parece esta interpretação que não faço à Câmara a injúria de me deter com ela. Mas já me não espantarei se, ao fim e ao cabo, o sistema que se pretende instaurar, em substituição da proposta do Governo, vier a transformar o município - e aqui deturpando toda a verdade da instituição - em simples área territorial para efeitos eleitorais ou mesmo a negá-lo totalmente, esquecido de como era ajusto» considerá-lo.
Vi discordar-se também «do processo de designação dos representantes» municipais. Porquê?
A proposta do Governo cuidou de afastar da designação dos representantes municipais ao colégio eleitoral todas as câmaras que estejam em regime de comissão administrativa e até todos os presidentes, enquanto forem de nomeação. Por isso fala de vereações, eleitas nos termos da lei. Compreende-se que tinha de ser assim e vê-se que a proposta o não entendeu de outro modo.
Pois bem! O criticismo demolidor resolveu abalar as colunas do templo e destruiu todo o edifício: está escrito «vereações eleitas», mas sabe-se (sabe-se!) «como a Administração Central, mercê da sua própria eficiência», pode levar a que as vereações «formalmente eleitas» sejam «efectivamente designadas». Por estes ínvios caminhos nada resiste, sem exclusão do sistema original preconizado ou improvisado do alto desta tribuna para a eleição do Presidente da República ... Convenhamos, pelo menos, em que estamos perante uma atitude bizarra!

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª não pode negar que isto seja verdade.

O Orador: - Desculpe V. Ex.ª, mas, efectivamente, nego que seja verdade. Ainda que, porventura, haja algum caso dessa natureza, a afirmação de V. Ex.ª não poderia tomar-se para uma generalidade de casos.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª é sincero nessa sua afirmação ?

O Orador: - Desculpe-me de novo V. Ex.ª, mas aí está uma pergunta que não é lícito fazer-se a alguém nesta Casa. Por isso mesmo não pus e não quero pôr em dúvida a própria sinceridade de V. Ex.ª
Acrescento: não conheço, e V. Ex.ª também não apontou, casos concretos de vereações formalmente eleitas, mas praticamente designadas. O que sei do problema diz-me que tal se não verifica, nem é fácil verificar-se, mas, por concessão, aceitei que pudesse haver um ou outro caso raro em contrário e acentuei que daqui se não pode partir para a afirmação de um uso corrente, de um sistema habitual, de uma generalidade de casos; por existirem três, não pode raciocinar-se como se existissem trezentos - que seria tomar a parte mínima pelo todo.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª apenas conhece três casos ?

O Orador: - Não vale a pena discutir mais este assunto, porque o que para mim são três para V. Ex.ª são trezentos. Isto sucedeu, aliás, em todo o discurso de V. Ex.ª Entenda V. Ex.ª como quiser ...
Sr. Presidente: um reparo, todavia, me parece ter alguma pertinência, embora lhe não reconheça a força procedente que lhe VI atribuída. Refiro-me à falta de certos complementos na designação dos representantes municipais - número total e distribuição por distritos. E defensável entender-se que deveriam constar do texto constitucional; mas também é aceitável reconhecer-se que podem ser deixados para a lei ordinária.
Justifico a minha asserção: não levantou dúvidas, até agora, que se tenham excluído da Constituição matérias importantes relativas à Câmara Corporativa. Deliberadamente se quis furtá-las à rigidez do texto constitucional, para se não tolher a experiência da vida nova que era, na organização política da Nação, a mesma Câmara Corporativa - admitindo-se, portanto, a necessidade de ajustamentos fáceis às lições trazidas pelos factos. Sabe-se como bem avisada tem sido esta prudência, que não embaraçou as exigências da vida real com a dureza da vida legal. O mesmo pensamento, sem dúvida, presidiu à proposta em discussão, ao preconizar a experiência que é a admissão dos municípios no novo colégio eleitoral - sem termos de rebuscar nos escaninhos da alma eriçada motivos ocultos de tal determinação.
Acrescentarei, para tranquilidade dos mais confiantes na desnecessidade de nos atermos a lições da experiência, que, por um lado, não fica deixado ao puro arbítrio da lei ordinária a regulamentação de tais matérias, pois se lhe fixam critérios de orientação a que deverá obedecer, e, por outro lado, sempre a esta Assembleia assistirá o direito de se pronunciar sobre a mesma lei.

O Sr. José Saraiva: - E se a lei for publicada quando a Assembleia estiver fechada ?

O Orador: - Tem V. Ex.ª sempre a possibilidade de aqui apresentar um projecto de lei para modificação dessa lei.
Sr. Presidente: embora, como avisei, não tenha pretendido fazer a, crítica da crítica da proposta e do pare-

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cer, alonguei-me demasiado. Também não tive tempo de ser mais curto. Hás hei-de dizer ainda que tiro de todo o exposto uma conclusão - que outra não posso tirar. É esta: o criticismo de que dei conta a V. Ex.ª e à Câmara existe e redundou na selva de contradições de que também dei conta, certamente pela tortura permanente de um espírito inquieto, em busca de não encontráveis firmezas, e pela ânsia constante de uma alma intranquila, em busca de não encontráveis seguranças. Por isso me tinha chegado a assomar a impressão de que iríamos assistir à procura de refúgio, como melhor abrigo, nas possíveis menos incertezas do princípio dinástico.

O Sr. José Saraiva: - Sabe V. Ex.ª que penso que esta Câmara não é uma Câmara de facções, por isso, qualquer que seja a nossa posição ideológica, devemos deixá-la lá em baixo, ao fundo da escada. Por isso, entende que não tinha sequer o direito de definir qual era a minha posição quanto a esse assunto.

O Sr. Cerqueira Gomes: - Mas eu fiz essa afirmação porque entendi que tinha de definir a minha posição. Mas ressalvei que, na prática, a minha atitude era de apoio.

O Orador: - Eu disse que tudo isto são as inevitáveis incertezas humanas, as incertezas do que é contingente.
Sr. Presidente: tinha-me enganado ! De tanto duvidar parece ter nascido a luz e a fé - a luz de um sistema novo e a fé na sua originalidade.
A Câmara ignora ainda o que será exactamente esse sistema, pois não foi logo apresentada qualquer proposta em que ele se concretize.

O Sr. José Saraiva: - A proposta está na Mesa. Trata da eleição dos representantes das freguesias pelos chefes de família residentes nas freguesias.

O Orador: - Nem a Câmara nem eu a conhecemos ainda. Mas, como V. Ex.ª considerava indispensável o sufrágio universal - e nisto era categórico -, se na proposta não está o sufrágio universal ficaremos perante uma nova contradição.

O Sr. José Saraiva: - Continua a não existir contradição alguma. O meu discurso até agora está intacto e tão completamente de pé como um roble das tais florestas de que V. Ex.ª fala e sob cujos ramos passam carreiros de formigas... O que eu esperava era que, tendo-se nele afirmado que o sufrágio universal era a única solução, V. Ex.ª hoje me indicasse outro caminho.

O Orador: - V. Ex.ª considera o sufrágio universal indispensável, mas propõe simplesmente sufrágio pelos chefes de família. Parece que isto não é sufrágio universal.

O Sr. José Saraiva: - E, com a modalidade que parece mais adequada. O sentido da proposta foi muito pensado.

O Orador: - Isso é outra coisa. Um problema desses linha de ser necessariamente muito pensado. V. Ex.ª, no seu discurso, disse que considerava errada toda a solução prática que não tivesse por base o sufrágio universal - não o directo, mas o indirecto. Se a proposta -,em por base tal sufrágio - e eu ignoro-o -, será lógica; se o não tem, é ilógica.

O Sr. José Saraiva: - O problema é outro.

O Orador: - A suposição de que parto é a de que V. Ex.ª terá apresentado uma proposta no sentido das considerações do seu discurso, onde se considerava basilar o sufrágio universal.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª, na sua proposta ...

O Orador: - Quer V. Ex.ª dizer: na proposta que defendo, porque eu não apresentei nenhuma proposta.

O Sr. José Saraiva: - Eu queria dizer a proposta do Governo.

O Orador: - Felizmente não sou Governo, do mesmo modo que, decerto infelizmente, também o não é V. Ex.ª

O Sr. José Saraiva: - Infelizmente quanto a V. Ex.ª Quando os homens da craveira de V. Ex.ª estão no Governo, só temos que nos felicitar.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Cautela, que daqui a pouco pergunta-lhe pela sinceridade.

O Sr. José Saraiva: - Na proposta pretende-se descobrir uma base de eleição do Presidente da República mais sólida e mais estreita. Eu pretendo manter a solidez sem apertar o diâmetro.

O Orador: - Não vale a pena o diálogo. Desviando a questão ou gastando só palavras, estamos a perder tempo.

O Sr. José Saraiva: - Vale. Quando as artérias se apertam, pode cair-se numa verdadeira arteriosclerose das vias intérpretes do verdadeiro sentir comum.

O Orador: - Não é de nada disso que eu trato.

Q Sr. Cerqueira Gomes: - Não trazem o sangue da periferia, mas levam-no do centro para a periferia.

O Orador: - Do que eu tratei é que V. Ex.ª, no seu discurso, considerava ilegítimo todo o processo que não tivesse na base um sufrágio universal, ao menos o indirecto. Se a proposta de V. Ex.ª não assenta num sufrágio universal, embora indirecto, V. Ex.ª é mais uma vez ilógico.

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª importa-se de me responder a uma pergunta simples? O regime até hoje era de sufrágio universal?

O Orador: - V. Ex.ª, no seu discurso, diz que sim. Se V. Ex.ª não foi sincero nisso, a culpa não é minha.

O Sr. José Saraiva: - Não fujamos do assunto. Sufrágio universal é um conceito...

O Orador: - V. Ex.ª é que continua a fugir à questão. Estamos a discutir se o sufrágio universal indirecto constituirá base indispensável para a designação do colégio eleitoral e nada mais.
Se na sua proposta está sufrágio universal, V. Ex.ª é lógico; mas se não está, é ilógico.

O Sr. José Saraiva: - O sufrágio universal é, em sentido rigoroso, aquele em que se atribui voto a todo o cidadão. Mas na linguagem corrente continua a chamar-se sufrágio universal à concessão de direito a voto a uma larga massa de cidadãos. O sistema usado até hoje no nosso país, no sentido técnico, não é universal - e V. Ex.ª, se pegar em qualquer manual de instituições políticas, verá isso -, mas pode chamar-se univer-

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sal por o voto ser conferido a uma enorme massa de cidadãos.
Eu, na proposta, mantenho o princípio do sufrágio universal, mas condiciono-o a ser exercido pelos chefes de família.
Esta solução integra-se no longo ramo dos sufrágios universais mais ou menos limitados.
Se V. Ex.ª quiser fazer dialética de palavras, poderá ver contradição. Mas se quiser usar as palavras pesando-lhe o seu verdadeiro sentido, reconhecerá que não é indiferente dizer que a minha proposta é a do sentido de sufrágio universal ou que é no sentido de sufrágio de chefes de família. Esta é modalidade de um sufrágio universal condicionado; mas nessa tribuna há vantagem em se empregarem as expressões com a precisão possível; por isso entendo que se exprime mal o sentido da minha proposta dizendo apenas que é a do sufrágio universal.

O Orador: - Sr. Presidente: deixei que de novo os apartes se tornassem discursos intercalados no meu próprio discurso, com risco de este me ficar desfigurado, por difícil reconhecimento do fio lógico por onde procurei conduzi-lo. De novo também, em nada foi prestado qualquer esclarecimento útil ou resposta pertinente à crítica que vinha fazendo.
Estava eu a acentuar que se ignora ainda, na Câmara qual o novo sistema preconizado pelo ilustre Deputado Sr. Dr. José Saraiva, visto não ter sido apresentada logo qualquer proposta, que se vê estar agora na Mesa.
Até agora, sabe-se apenas vagamente - porque, depois de talvez mais de duas horas dedicadas ao minucioso exame do sistema que se entendia não poder ser, só cerca de dez minutos terão sido consagrados à exposição da linha geral do novo sistema que se entendia dever ser, tendo-se relegado para o debate ma especialidade os desenvolvimentos naturalmente indispensáveis. Haverá, anunciou-se, um certo amplo colégio eleitoral, designado por um certo sufrágio dito universal directo, e não poderão ser dispensados nem a apresentação pública de candidaturas nem o debate eleitoral - aquele célebre debate que nos fora dito ser «um problema grave, que tem de ser corajosamente posto e definitivamente resolvido».
Este simples desvendar da solução basta, quanto a mim, para a recusar. Sabemos, por alheia experiência vivida, que a eleição indirecta pelos chamados eleitores ide segundo grau se converte, na prática, em eleição de sufrágio directo. Não está provado e não há raciocínios capazes de convencer que iria suceder agora de outro modo, para mais em país considerado de muita exaltação de temperamento e insuficiente «dignidade cívica».
Sr. Presidente: não terminarei este capítulo das minhas mal ataviadas considerações sem uma referência merecida à nobre coragem moral com que alguns Deputados aproveitaram o ensejo do presente debate para reafirmar, coram populi, a fé das suas convicções monárquicas.
Como o Regime não obriga ao sacrifício das preferências políticas de ninguém, respeitado que seja o denominador comum do interesse nacional no quadro de meia dúzia de princípios essenciais (e, no dizer do Sr. Presidente do Conselho, embora não cabendo nele Deputados monárquicos, do mesmo modo que não cabem Deputados republicanos, isto é, Deputados de partido, é desejável que existam monárquicos Deputados), parece perfeitamente explicável que os aludidos Srs. Deputados tenham proclamado, a propósito do artigo 72.º da Constituição, as excelências da hereditariedade na chefia do Estado.
Por o terem feito, admiro a fortaleza dos seus temperamentos e a solidez das suas convições. Não pertencem, Deus louvado, àquela raça moderna de apolíticos (uns inconscientes e outros mal disfarçados), a quem, se lhes perguntarmos se sào situacionistas ou anti-situacionistas, respondem que são médicos ou advogados ou engenheiros ou industriais ou comerciantes. Esses Deputados sabem e proclamam que há um ideário temático para todo o homem verdadeiramente digno, onde não cabe nem o exclusivismo nem o primado dos valores materiais - cientes, de resto, de que a própria vida profissional anda na estreita dependência das boas ou más estruturas do País.
Todavia, consinta-se-me a lealdade e a franqueza de, afirmar que, para além do talvez excessivo acento posto na defesa da ideia, que pôde parecer a alguns Deputados mais do que serena afirmação de princípios, suponho de mau aviso, por certo mais emotivo do que raciocinado, concluírem pela rejeição da preconizada substituição do artigo 72.º

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não estando em causa o princípio da hereditariedade na chefia do Estado, votar contra a proposta não pode validamente significar votação a favor de um sistema que se situa por completo fora do elenco dos problemas em debate. O verdadeiro valor jurídico-político de tal voto seria de outra força - a de que deveria continuar com força de preceito constitucional o actual processo de eleição do Presidente da República.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Ora, como nobremente reconheceu o ilustre Deputado Sr. Cortês Pinto, o sistema da proposta atenua os inconvenientes do até aqui consignado na Constituição e é, portanto, preferível a este; mas votar, apesar de tudo, contra ele, ou seja pela manutenção do actual, significa, salvo o devido respeito e a muita consideração, optar pelo pior.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nem me parece que, se por absurdo quisermos admitir que votar o artigo 72.º é votar antimonárquico, seria menos antimonárquico votar, mercê da sua recusa, pela manutenção do mesmo artigo na sua redacção actual, resultado à que se chegaria se, também por absurdo, admitíssemos a decisão da maioria da Câmara neste sentido, ao lado daqueles Srs. Deputados.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Isso quer dizer que esses Deputados não se decidem por absurdos. Guiam-se pela consciência, e suponho que V. Ex.ª não admite que sobre esta prevalecem os absurdos.

O Orador: - Estou a falar de questão de inteligência, e não de questão de consciência - o que é diferente. Quero acreditar, Sr. Presidente, que se desfará
o equívoco deste errado estado de espírito e que uma serena reflexão, bem própria das pessoas inteligentes que são os mesmos Srs. Deputados, varrerá o mito criado certamente numa hora de explicável intensidade emocional. Para mais, sabe-se que eles próprios entendem, antes de ninguém, que, conforme as autorizadas palavras do ilustre Deputado Sr. Dr. Cortês Pinto, hoje. talvez mais do que nunca, continua a ser necessário «colaborar com a situação vigente para defender a Nação».

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Ponho de lado, Sr. Presidente, a alteração referente à constituição da Assembleia Nacional, que aparece na proposta e em dois projectos, bem como as alterações respeitantes à forma de eleição dos Deputados e à duração da legislatura, que se preconizam num dos aludidos projectos. São talvez questões irrelevantes para a generalidade do debate e que facilmente terão o comentário devido no decurso da discussão na especialidade.
Ponho igualmente de lado, reservando-a para idêntica oportunidade, a maior duração da sessão legislativa, constante de outro projecto - embora esta questão coubesse perfeitamente, por a ele me parecer de certo modo ligado, no problema do aumento dos poderes da Assembleia Nacional, de que me ocuparei em seguida.
O reforço de tais poderes vem consignado em três dos projectos e merece, sem sombra de dúvida, um apontamento especial na generalidade do debate.
Que noção temos nós de Assembleia Nacional?
A resposta a esta pergunta é indispensável para se tomar posição no problema.
E a Assembleia Nacional, sem embargo da sua função fiscalizadora, o órgão legislativo, de tal modo que não só a função legislativa tenha de estar no âmbito da sua competência, mas deva reservar-se-lhe o essencial da função de legislar?
Estaremos, mais do que paredes meias com a doutrina do regime de assembleia, dentro do próprio terreno dos sistemas parlamentares.
Diversamente, é a Assembleia Nacional, sem embargo da sua função legislativa, órgão predominantemente fiscalizador ?
Manter-nos-emos rigorosamente fiéis aos nossos princípios e à ética das nossas instituições, isentos da ameaça de escleroses ideológicas ou de germes de desagregações doutrinárias.

O Sr. Carlos Lima: - Para já, isso, o que V. Ex.ª acaba de afirmar -empregando uma expressão de V. Ex.ª, usada relativamente ao Deputado Sr. Dr. José Saraiva- é literatura. O que se torna necessário são factos e argumentos concretos.

O Orador: - Literatura ou doutrina, por agora. Ficará para mais adiante a demonstração, o apontar do exemplo concreto. Creio, Sr. Presidente, que o pensamento acabado de expor deve estar bem presente no calendário das nossas meditações - não vá rondar-nos o perigo de ficarmos elementos marginais da vida do regime ou autófagos do nosso organismo político. Ceder a tal perigo seria não cuidar de que a alma continue ligada ao corpo das instituições e tornarmo-nos, por mais que em palavras teimássemos dizer o contrário, refazedores do demo-liberalismo, uns perfeitos parlamentaristas retrouvés.
Ora: não só me parece evidente que alguns dos novos poderes que se pretendem atribuir à Assembleia Nacional levam facilmente ao sistema da omnipotência parlamentar, permitindo a organização do processo de a Câmara dominar o Governo, como me quis parecer que o substrato ideológico apresentado para suporte doutrinário de tais poderes melhor quadraria ao que um talentoso jornalista político, em livro recente, denominou a «república dos deputados».
Reflictamos, por exemplo, na voz perigosa de um dos próceres dos aludidos novos poderes.
Refiro-me ao ilustre Deputado Sr. Dr. Carlos Lima, e chamo-lhe voz perigosa pela sedução da rara vivacidade intelectual com que sabe conduzi-la e do extraordinário dom de simpatia humana com que naturalmente a profere.
S. Exa. aceita que as assembleias, c mesmo quando em condições de poderem concretizar todas as suas potencialidades de acção em termos de funcionarem em pleno rendimento, não podem fazer face às múltiplas e prementes exigência» legislativas de uma época cujas infra-estruturas sociais são imensamente complexas e caracterizadas por uma perturbadora mobilidade». S. Ex.ª aceita que elas, «menos em contacto com o conjunto das necessidades de administração pública, nem sempre tomam com presteza e oportunidade as iniciativas legislativas desejáveis». S. Ex.ª aceita, que elas «não raro» adoptam «na apreciação dos assuntos uma ordem de trabalhos menos ajustada e consentânea com as exigências do interesse público». S. Ex.ª aceita que muitas vezes não é «possível ou fácil submeter às assembleias os textos já elaborados relativos a matérias sobre que se impunha legislar». S. Ex.ª aceita que a «complexidade de certos assuntos» torna «arriscada a fixação de preceitos legais rígidos e demasiado regulamentados B, o que dificulta «o devido ajustamento e adequação das soluções de pormenor». S. Ex.ª aceita que elas fazem «verdadeiras guerrilhas de emendas às propostas governamentais», que não raro as desnaturam e desvirtuam nos seus objectivos. S. Ex.ª aceita que elas nem sempre têm «na devida conta os aspectos técnicos das matérias objecto de discussão» e que «normalmente os Governos adoptam as soluções legislativas mais indicadas e adequadas ao condicionalismo social e às exigências de cada momento». S. Ex.ª aceita que elas descambam cem exageros oratórios e dialécticos, não aprovando com a necessária rapidez e diligência certas leis fundamentais». S. Ex.ª aceita que «realmente» elas se revelam «lentas, pouco eficientes e desorganizadas no seu trabalho» e que «estes defeitos» são, «por assim dizer, originários« (o sublinhado é meu).
Quer-se objurgatória mais viva ou processo condenatório mais bem conduzido contra os regimes parlamentares?!
Assim parece, efectivamente; mas deve tratar-se de puro engano.

O Sr. Carlos Lima: - Aceito, é claro, ter afirmado tudo isso como defeitos que se apontam às assembleias; apenas, entendo que também não é maneira de resolver o problema, desde que se parte do princípio de que devem existir as assembleias, atribuir-lhes poderes sem consistência. E se citei todas essas apontadas deficiências das assembleias foi precisamente para frisar, como frisei, que têm sido, e podem ser, adoptadas várias soluções correctivas desses defeitos sem ir ao extremo de pôr em causa a própria subsistência das assembleias.
Mas V. Ex.ª tira conclusões, ou vai insinuando conclusões, que não correspondem ao meu pensamento nem aqui exprimi. Ora, a questão aqui tem de ser posta a claro mais uma vez. E permito-me chamar, desde já, a atenção de V. Ex.ª para o facto de no essencial do meu projecto se conterem soluções que, ou já estiveram consagradas na nossa Constituição, ou foram já defendidas por pessoas responsáveis da Situação. Portanto, na medida em que V. Ex.ª ataca o meu projecto de conduzir à omnipotência da Assembleia e a outras coisas, ataca verdadeiramente a Constituição e essas pessoas responsáveis. Isto quanto ao primeiro aspecto.

O Orador: - Quanto à Constituição, estou de acordo relativamente a algumas das soluções preconizadas por V. Ex.ª, mas isso só mostra que, inversamente ao aqui dito, houve ainda alguma timidez, porventura compreensível de momento, na reacção contra o «passado»

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no momento em que foi elaborado o texto primitivo da nova Constituição; quanto a pessoas responsáveis da Situação, é caso para averiguar, mas que, sem embargo, de modo algum modifica o meu asserto.
Na verdade, não obstante todo o exposto, para aquele ilustre colega continua a ser indispensável que a Assembleia seja o órgão legislativo de sua natureza «qualitativamente mais forte» do que o Governo e a ele «hierarquicamente superior», o «contrôle último e decisivo da actividade legislativa do Estado».
Mas ... aqueles apontados grandes males do sistema? ! Dir-se-ia que, no entender do ilustre Deputado Sr. Dr. Carlos Lima, não carecem propriamente de cura e que, ao invés, importa assegurar a sobrevivência do doente, ao qual, por isso, se ministrarão apenas as panaceias a tal fim adequadas.
Tornado, assim, o que poderá talvez chamar-se parlamentarista mitigado, mas parlamentarista apesar de tudo e talvez pouco mitigado, entende que se foi longe de mais na redacção da Constituição de 1933 contra os «incontestáveis e desenfreados excessos parlamentares» e que é necessário agora retroceder, num movimento de regresso - de que o seu projecto, dito de «atenuado e limitado alcance», seria o limiar, à espera de «outras aplicações e desenvolvimentos» no futuro (até onde, Sr. Presidente?!)...

O Sr. Carlos Lima: - Mas V. Ex.ª fala de assembleias e parece esquecer que há vários tipos de assembleia, cuja classificação implica a necessidade do exame dos respectivos poderes, sendo as assembleias parlamentares apenas um desses tipos. O que é preciso é justamente ver se a Assembleia Nacional dispõe ou não dos poderes suficientes, implicados pelo mero facto de se admitir a sua existência. Esta é que é a questão.

O Orador: - Lá iremos!
Procurando abalar a força probatória que por vezes se vai buscar - e se consigna no parecer da Câmara Corporativa - a outros países onde se está a processar viva tendência no estilo da evolução antiparlamentarista operada entre nós, o ilustre Deputado vem, afinal, aproveitar-se dela - mas em sentido diferente. E que - diz - a evolução nesses países não é de tipo tão reactivo, ou porque os desmandos das assembleias políticas não atingiram neles os «requintes inconcebíveis» verificados no nosso país ou porque nós começámos mais cedo o caminho dos Governos fortes. Parece preconizar-se, assim, um retrocesso da nossa Constituição para a linha mais benigna que vêm ocupando as alheias reacções.
Ora, Sr. Presidente, além de que, se foram mais excessivos e até inconcebíveis os requintes atingidos pelos nossos desmandos parlamentares, justificado se afigura manter também mais firme a nossa posição reactiva, o próprio Sr. Dr. Carlos Lima nega o seu rumo quando nos adverte de que nesses outros países se desenha «um processo evolutivo gradual e escalonado», e que, por isso, «ainda se está longe de atingir neles o grau de evolução atingido pela nossa contextura constitucional». Quer dizer: lá, o processo parece não estar findo; apenas começou. Onde acabará? Não virá em novas fases a aproximar-se mais das nossas conclusões?
Por outras palavras: se os exemplos estranhos valem efectivamente alguma coisa, é como afirmação de tendência geral antiparlamentar, no sentido apontado pela Câmara Corporativa, e não «ainda» como grau dessa tendência, no sentido em vão desejado pelo Sr. Dr. Carlos Lima.

O Sr. Carlos Lima: - O que é preciso é saber se, dados os limites mínimos entre nós atingidos no sentido restritivo dos poderes das assembleias, é ou não possível e conveniente, sem cair em excessos parlamentaristas, ensaiar soluções que aumentem os poderes da Assembleia, que efectivamente assegurem eficácia ao princípio de que a mesma deve existir.

O Orador: - V. Ex.ª disse entender que outros países que começaram mais tarde não foram tão longe, e que nós fomos longe de mais, mas que é preciso retroceder.

O Sr. Carlos Lima: - O país que a este propósito no momento mais se. tem em mente é a França. Ora, esta continua a ser um país essencialmente parlamentarista, e V. Ex.ª, para aplicar as considerações feitas ao meu projecto, tem de demonstrar primeiro que o meu projecto representa um arremedo de parlamentarismo. Sem a demonstração deste pressuposto nada adianta para esclarecer o caso, que V. Ex.ª, aliás brilhantemente, tem estado a expor.

O Orador: - O caso da França cabe perfeitamente no quadro das considerações que venho expondo. Tinha-o precisamente no meu espírito quando as formulei. Quanto à inserção de algumas das propostas constantes do projecto de V. Ex.ª no mesmo quadro, adiante ou na discussão na especialidade se verá melhor.

O Orador: - Nem se vá buscar um sinal de retrocesso para o reforço dos poderes da Assembleia no aumento da competência exclusiva desta posteriormente ao texto de 1933. Não só, simultaneamente, se reforçou a posição do Governo no que respeita à função legislativa, mas também em nada a competência privativa inicial ou posterior pode levar a qualquer arremedo de parlamentarismo. Eu próprio admito, sem esforço, alguns dos alargamentos agora advogados no projecto do Sr. Dr. Carlos Lima - quer em homenagem inofensiva às tradições parlamentares, quer em obediência mesmo a princípios de fundo.
Isto não significa, porém, que a Assembleia seja o orgão legislativo. Significa que é o orgão legislativo - isto é, exclusivo - para determinadas matérias e que é um órgão legislativo ao lado de outro, que é o Governo, para todas as demais, que são também as mais. O verdadeiramente importante está em que, no terreno da exclusividade, não entrem muitas matérias e não entre nenhuma das que de si mesmas estejam sujeitas a legislação pouco constante ou respeitem a domínios de particular delicadeza ou sejam susceptíveis da embaraçar a actividade administrativa e até dominar o Governo - hipóteses em que a máquina parlamentar se revela sempre, de sua própria natureza (são ... «vícios originários»), ou instrumento pesado ou aparelho ineficiente ou engenho perturbador.
Tal se verificaria ou correria sério risco de se verificar, como melhor há-de ser demonstrado na discussão na especialidade, onde o problema tem seu perfeito lugar, se viessem a alargar-se as hipóteses de sujeição dos decretos-leis à ratificação parlamentar ou a incluir-se na (competência privativa da Assembleia os problemas de impostos e taxas.
Tal sucederia de igual modo, como também na especialidade ressaltará devidamente, se viéssemos a dar guarida às sugestões constantes de outros projectos - dos quais, muito a meu pesar, não farei agora menção especial.
Digo «a meu pesar» porque, na verdade, me seria grato ocupar-me deles, como estimaria ter o prazer

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intelectual de prosseguir na análise do discurso do Sr. Dr. Carlos Lima. A hora, porém, vai adiantada e já não é possível recuperar o tempo perdido no anterior capítulo das minhas considerações.
No entanto, rogo a devida vénia, Sr. Presidente, para um ligeiro apontamento sobre a estranheza que me causou ver enfileirar com os pré-reconquistadores da omnipotência parlamentar alguns nomes que sempre me habituei a considerar nos antípodas de qualquer intelectualismo dessa tendência e para os quais até, segundo palavra que ainda recentemente VI escrita, a possibilidade de derrubar Governos era tão da «essência anárquica do princípio republicano» como um executivo estivei e forte era aplicação, mais ou menos inconsciente, do princípio monárquico. Decerto entram na liça sem míngua de optimismo na sua doutrina. Mas há por vezes - consinta-se-me o desabafo - optimismos trágicos!
Sr. Presidente: já abusei demasiado da paciência que comecei por solicitar da Assembleia. Alonguei-me para além de limites razoáveis. Metido na «floresta de enganos » que se me depararam no caminho, tenho agora de omitir as referências que cuidava ainda fazer a outros aspectos da reforma constitucional em curso.
Felizmente, não são já necessárias, depois da brilhante, profunda e judiciosa exposição feita há pouco pé! o nosso ilustre colega Dr. Águedo de Oliveira.
Assim, portanto, deixa em silêncio o problema das relações entre o Governo e a Assembleia e entre esta e a Câmara Corporativa; passo em claro as projectadas modificações na orgânica político-administrativa; guardo na sombra as questões relacionadas com a parte programática da Constituição; e até ao sugerido preâmbulo desisto de fazer um merecido apontamento final.
Terminarei, no entanto, com uma breve palavra sobre elo - para dizer que, sem embargo do respeito devido à magnitude do assunto, não se tratando de uma invocação de si mesma necessária ou de uma regra de conteúdo normativo, as razões de decidir não podem legitimamente pôr-se em termos de saber quem é pró ou contra Deus. Valha-nos Deus!
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. José Saraiva: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Já terminei.

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - V. Ex.ª não pode interromper um orador que já acabou o seu discurso.

O Sr. José Saraiva: - Sr. Presidente: pediria a palavra a V. Ex.ª se soubesse que ela não me seria negada, não obstante o adiantado da hora, para, em breve apontamento, convidar quantos me escutam, e depois de tudo quanto ouviram, a avaliar de que lado está o niilismo e o negativismo crítico.

O Sr. Presidente: - V. Ex.ª, Sr. Deputado, fez uma afirmação que, a meu ver, não estava autorizado a fazer, porque, se pedisse a palavra, ser-lhe-ia concedida.

O Sr. José Saraiva: - Sei muito bem que o alto critério, a fidalguia e a dignidade com que V. Ex.ª sempre tem dirigido a ordem dos trabalhos desta Assembleia são penhor de que, se eu pedisse a palavra, ela me seria concedida, apesar do enorme sacrifício que para todos isso representaria. Mas, devido ao adiantado da hora, não quero abusar da paciência da Assembleia, que, visivelmente, já está fatigada.
Unicamente para não a fatigar ainda mais, não pedi a palavra a V. Ex.ª Era isto que estava no meu pensamento. Dizer o contrário seria faltar à homenagem que a V. Ex.ª é devida.

O Sr. Presidente: - Não está mais ninguém inscrito para a discussão na generalidade da revisão constitucional. Considero, portanto, encerrado o debate na generalidade e passar-se-á na sessão de amanhã à discussão na especialidade.
Amanhã haverá sessão da parte da tarde, tendo por ordem do dia a discussão na especialidade da proposta e projectos de alteração à Constituição.
Está encerrada a sessão.

Eram 20 horas e 10 minutos.

Srs. Deputados que faltaram, à sessão:

Adriano Duarte Silva.
Alberto Pacheco Jorge.
Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Calheiros Lopes.
António Jorge Ferreira.
Belchior Cardoso da Costa.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Coelho.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Maria Porto.
José Gonçalves de Araújo Novo.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel José Archer Homem de Melo.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Urgel Abílio Horta.
Vítor Manuel Amaro Salgueiro dos Santos Galo.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

Propostas enviadas para a Mesa no decorrer da sessão:

Proposta de alteração do artigo 4.º da proposta de lei n.º 18

Proponho que o artigo 4.º da proposta de lei em discussão passe a ter a seguinte redacção:

Art. 4.º O artigo 72.º e seus parágrafos são substituídos pelo seguinte:

Art. 72.º O Chefe do Estado é o Presidente da República, eleito por um colégio eleitoral constituído por representantes das freguesias em que se acha dividido o território continental e insular, pelos membros dos conselhos legislativos das províncias ultramarinas de governo-geral e pelos membros dos conselhos de governo das províncias de governo simples.
Os eleitores indicados em primeiro lugar serão eleitos por sufrágio dos chefes de família residentes nas respectivas freguesias, devendo esta eleição estar concluída seis meses antes do último dia de cada período presidencial.

O Deputado, José Hermano Saraiva.

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Proposta de alteração do artigo 3.º do projecto de lei n.º 22 (alteração da Constituição Política)

Art. 3.º O corpo do artigo 123.º é substituído pelo seguinte:

Art. 123.º Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar leis, decretos ou quaisquer outros diplomas feridos de inconstitucionalidade, por infracção do disposto nesta Constituição ou ofensas dos princípios nela consignados, sendo sempre admissível recurso, até ao Supremo Tribunal competente, da decisão respectiva.

Palácio de S. Bento, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Afonso Augusto Pinto.

Proposta de aditamento

Propomos que a alteração constante do artigo 4.º da proposta de lei n.º 18 seja aditada nos seguintes termos:

Art. 72.º O Chefe do Estado é o Presidente da República, eleito por um colégio eleitoral constituído pelos membros em exercício efectivo da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa, pelos representantes municipais de cada distrito da metrópole e das províncias ultramarinas ou de cada província ultramarina não dividida em distritos e ainda pelos representantes dos conselhos legislativos das províncias de governo-geral e de governo simples, respectivamente. Os representantes municipais serão designados pelas vereações eleitas, nos termos da lei, a qual fixará o número que deve caber a cada distrito ou província ultramarina em correspondência com o número das respectivas câmaras; os representantes dos conselhos legislativos e de governo serão designados por estes órgãos, nos termos da lei, a qual fixará o número que deve caber a cada conselho em correspondência com o seu carácter representativo.

Os Deputados: Manuel Maria Sarmento Rodrigues - Frederico Bagorro de Sequeira - Avelino Teixeira da Mota - Alberto da Rocha Cardoso de Matos - Castilho de Noronha - Martinho da Costa Lopes - Artur Águedo de Oliveira - Jerónimo Henrique Jorge - Manuel de Lacerda de Sousa Aroso - Jorge Pereira Jardim.

Proposta de alteração

Proponho que ao artigo 4.º da proposta n.º 18 (alteração da Constituição) sejam feitas as seguintes alterações:

1.ª O primeiro período do artigo 72.º da Constituição passe a ter a seguinte redacção:

Art. 72.º O Chefe do Estado é o Presidente da República, eleito pela Nação, por intermédio de um colégio eleitoral constituído pelos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa em efectividade de funções e pelos representantes municipais de cada distrito ou de cada província ultramarina não dividida em distritos.

2.ª O § 4.º do mesmo artigo 72.º da Constituição passe a ter a seguinte redacção:

§ 4.º A eleição far-se-á, sem prévio debate, por escrutínio secreto, considerando-se eleito e sendo como tal proclamado o candidato que no primeiro escrutínio obtiver dois terços de votos do número legal dos membros do colégio eleitoral.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Mário de Figueiredo.

Proposta de alteração

Proponho que o artigo 5.º da proposta de lei n.º 18 (alteração da Constituição) passe a ter a seguinte redacção:

Art. 5.º E adicionado um artigo novo, com a seguinte redacção:

Art. 72.º-A. Se a data da eleição prevista no § 2.º do artigo anterior ocorrer depois do prazo em que devem ser apresentadas as candidaturas para nova legislatura o colégio eleitoral reunirá depois de eleita a nova Assembleia Nacional, realizando-se a eleição no décimo quinto dia posterior ao início do mandato dos novos Deputados.
Se a mesma hipótese se verificar em seguida à dissolução da Assembleia Nacional, a eleição presidencial deverá realizar-se no trigésimo dia posterior ao encerramento das operações eleitorais.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Mário de Figueiredo.

Proposta de alteração

Proponho que o artigo 10.º da proposta de lei n.º 18 (alteração da Constituição) passe a ter a seguinte redacção:

Art. 10.º E adicionado um artigo novo, com a seguinte redacção:

Art. 80.º-A. Nos casos de impossibilidade da reunião do colégio eleitoral, verificada pelo Conselho de Estado, a eleição do novo Presidente da República terá lugar no décimo quinto dia posterior àquele em que o mesmo Conselho considerar terminada a situação de força maior.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Mário de Figueiredo.

Proposta de alteração

Proponho que o artigo 12.º da proposta de lei n.º 18 (alteração da Constituição) passe a ter a seguinte redacção:

Art. 12.º A redacção da alínea a) e do § único do artigo 84.º é substituída pela seguinte:

a) Verificar a situação de impossibilidade da reunião do colégio eleitoral referida no artigo 72.º e a cessação dela para os efeitos do artigo 80.º-A.

§ único. O Conselho reunirá por direito próprio paxá exercer a competência a que se refere a alínea a).

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Mário de Figueiredo.

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Proposto de aditamento

Proponho que seja aditado um artigo novo na proposta de lei n.º 18 (alteração da Constituição), com a redacção seguinte:

Art. 17.º-A O § 2.º do artigo 110.º é substituído pelo seguinte:

§ 2.º Os membros da Assembleia Nacional ou da Câmara Corporativa que aceitarem o cargo de Ministro, de Secretário de Estado ou de Subsecretário de Estado não perdem o mandato, mas não poderão tomar assento na respectiva Câmara.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Mário de Figueiredo.

Proposta de alteração

Proponho que o artigo 18.º da proposta de lei n.º 18 (alteração da Constituição) passe a ter a seguinte redacção:

Art. 18.º O § único do artigo 113.º é substituído pelo seguinte:

§ único. Tratando-se de assuntos de reconhecido interesse nacional, poderá o Presidente do Conselho ou um Ministro por ele autorizado comparecer na Assembleia Nacional para deles se ocupar.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Mário de Figueiredo.

Proposta de alteração

Proponho que o artigo 22.º da proposta de lei n.º 18 (alteração da Constituição) passe à ter a seguinte redacção:

Art. 22.º É adicionado um artigo novo, com a seguinte redacção:

Art. 177.º-A. A lei determinará como hão-de ser substituídos os órgãos da soberania e quais as condições da sua actividade, quando, em estado de necessidade e para salvaguarda do livre exercício do Poder ante inimigo externo, não possam funcionar ou actuar livremente.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 17 de Junho de 1959. - O Deputado, Mário de Figueiredo.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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