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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES Nº 51

ANO DE 1962 22 DE MARÇO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VIII LEGISLATURA

SESSÃO N.º 51, EM 21 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Mário de Figueiredo

Secretários: Exmos. Srs.
Fernando Cid Oliveira Proença
Luís Folhadela de Oliveira

SUMARIO: - O 8r. Presidenta declarou aberta a sessão as 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia. - Deu-te conta do expediente.
O Sr. Deputado José Manuel Pires falou sobre a situação de Moçambique.
O Sr. Deputado Armando Cândido referiu-se ao 4.º centenário do nascimento de Bento de Góis.
O Sr. Deputado Cutileiro Ferreira salientou a importância do Hospital do Patrocínio, a construir em Évora.
O Sr. Deputado Águedo do Oliveira ocupou-se de problemas do Nordeste transmontano.
O Sr. Deputado Teles Grilo tratou da localização de uma fábrica de desidratados em Chaves.

Ordem do dia. - Prosseguiu o debate na generalidade sobre as propostas de lei relativas à previdência e ao Estatuto da Saúde e Assistência.
Falaram os Srs. Deputados D. Maria Irene Leite da Cotia, Melo Adrião e Veiga de Macedo.
O Sr. Presidente considerou encerrados os debates na. generalidade sobre aquelas duas propostas.
Continuou a discussão do parecer sobre as Contas Gerais do Estado e das províncias ultramarinas referentes a 1960.
Usou da palavra o Sr. Deputado Vas Nunes.
O Sr. Presidente encerrou a sessão as 19 horas e 40 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se á chamada.

Eram 15 horas e 55 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alberto Pacheco Jorge.
Alberto dos Beis Faria.
Alberto Ribeiro da Costa Guimarães.
Alberto da Bocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Finto dos Beis Júnior.
Alexandre Marques Lobato.
André Francisco Navarro.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
António Augusto Gonçalves Rodrigues.
António Burity da Silva.
António Calheiros Lopes.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Gonçalves de Faria.
António Júlio de Carvalho Antunes de Lemos.
António Magro Borges de Araújo.
António Manuel Gonçalves Rapazote.
António Maria Santos da Cunha.
António Marques Fernandes.
António Martins da Cruz.
António Moreira Longo.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
Armando Cândido de Medeiros.
Armando José Perdigão.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Alves Moreira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.

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Artur Proença Duarte.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Augusto José Machado.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Alves.
Carlos Emílio Tenreiro Teles Grilo.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
D. Custódia Lopes.
Délio de Castro Cardoso Santarém.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Egberto Rodrigues Pedro.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco António Martins.
Francisco António da Silva.
Francisco José Lopes Roseira.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Francisco Lopes Vasques.
Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro.
Henrique Veiga de Macedo.
James Pinto Buli.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.

oão Rocha Cardoso.
João Ubach Chaves.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Sousa Birne.
Jorge Augusto Correia.
Jorge Manuel Vítor Moita.
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos.
José Alberto de Carvalho.
José Augusto Brilhante de Paiva.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís Vaz Nunes.
José Manuel da Costa.
José Manuel Pires.
José Maria Rebelo Valente de Carvalho.
José Mendes Pires da Costa.

osé de Mira Nunes Mexia.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Pinheiro da Silva.
José Pinto Carneiro.
José dos Santos Bessa.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Dias das Neves.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Folhadela de Oliveira.
Luís Le Cocq de Albuquerque de Azevedo Coutinho
Manuel Amorim de Sousa Meneses.
Manuel Augusto Engrácia Carrilho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Herculano Chorão de Carvalho.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel João Correia.
Manuel João Cutileiro Ferreira.
Manuel de Melo Adrião.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Amaro Salgueiro dos Santos Galo.
Mário de Figueiredo.
Olívio da Costa Carvalho.
Paulo Cancella de Abreu.
Quirino dos Santos Mealha.
Rui de Moura Ramos.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Dias Barros.

Sr. Presidente: - Estão presentes 108 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Do povo da região de Arrepiado n apoiar a intervenção do Sr. Deputado Amurai Neto acerca da construção da ponte sobre o Tejo.
Do povo da região de Tancos no mesmo sentido.
De Duarte Rodrigues n apoiar a intervenção do Sr. Deputado Nunes de Oliveira na sessão de 19 de Março.
Sem assinatura, no mesmo sentido.

O Sr. Presidente:-Tem ti palavra o Sr. Deputado José Manuel Pires.

O Sr. José Manuel Pires: - Sr. Presidente: constitui já um truísmo a afirmação de que o ultramar anda hoje na vanguarda de todos os problemas nacionais deste povo essencialmente ultramarino que só a ânsia de dar «novos mundos ao Mundo» moldou, transformando-o, ao longo dos séculos, no que hoje somos, por um subtil e maravilhoso processo de estruturação imanente, que modelou a nossa língua, a nossa literatura, a nossa arte, a nossa fisionomia étnica, o nosso direito, os próprios códigos políticos, até a Constituição que nos rege.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - Todos o sabemos. For isso, tudo quanto fira uma das nossas províncias de além-mar deixa logo em sangue o coração de todo o português de lei, do Minho a Timor.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Bem se viu, há um ano, quando o terrorismo brutal estalou sobre o Norte de Angola e, mais recentemente, durante a criminosa invasão de Goa.
Por isso esta Assembleia vive permanentemente virada paru os problemas do nosso ultramar. Temo-lo palpado, todos os seus Deputados, quando aqui nos debruçamos sobre eles. A desgraça teve, ao menos, o grande mérito de acordar a consciência nacional, levando-a a tomar contacto, cada vez mais informado e objectivo, com a realidade maravilhosa que intransigentemente precisamos de salvaguardar de todos os perigos que lhe rondam a porta. Certamente ninguém pretende encobrir nem adiar questões vitais que reclamem urgente revisão.

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As últimas reformas governativas, de há um ano para cá, falam bem alto, neste sentido, o caminho direito da verdade integral que todos unicamente buscamos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Temos pressa de chegar. Mas isso não impede que a marcha tenha de ser pensada, até para que a nossa imprevidência ou precipitação não vá servir de armadilha por que o inimigo astuto nos possa colher.

Vozes: - Muito bem1

O Orador: - Partimos da tábua comum da Constituição. Alegra-me verificar a absoluta concordância de todos nós dentro deste ponto intangível. Quaisquer reclamações devem vir enquadradas na perspectiva constitucional da Nação unitária.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - E assim que todas os nossas palavras dentro desta Casa, diga-as um Deputado do continente, das ilhas ou do ultramar, ampliam sempre um eco da Constituição ou visam atingir desvios que dela se fizeram.
A precisão de certos conceitos pode parecer que nos distancia, porque o desencontro dos termos que pretendem vestir as ideias nem sempre alinha pelo formalismo dos nossos próprios quadros mentais; mas a alma profunda dos factos é, felizmente, igual para todos nós.
Espero que as intervenções dos Deputados por Moçambique tenham tido para esta Camará a maior utilidade, tanto pelo ardente patriotismo que as ditou como pela objectividade que sempre as caracterizou.
Não nos foi possível, em tão breve espaço de tempo, desfibrar miúdamente cada um dos problemas. Algumas das linhas essenciais ficaram, porém, traçadas. Sinceramente acredito que esta Assembleia venha a consagrar ao nosso ultramar um amplo debate, em que os seus problemas vitais, depois de devidamente estudados e estruturados por especialistas de escol, seriamente se vejam, discutidos e prontamente solucionados.
Nunca pretendi insinuar que a prudência que nessa caminhada nos deve guiar haja- de excluir a prontidão nas medidas a adoptar, pois, numa altura em que precisamos de percorrer em semanas o que antes poderíamos levar anos a cobrir, um atraso, mesmo ligeiro, representaria, porventura, a perda irreparável. Não há muito que Salazar o afirmou desassombradamente. Rondam-nos ameaças apocalípticas de dentro e de fora. O nosso excesso de confiança é certamente uma delas. Bem se viu em Angola.
Na própria madrugada da sanguinolenta chacina de há um ano, apesar de há cerca de uma década alguns dos mais solertes conhecedores do fenómeno africano virem chamando a atenção das autoridades para a tempestade que se acastelava no horizonte e não obstante os avisos de serviçais fiéis de cor, feitos apenas a alguns dias do início da pavorosa sangueira, ainda havia quem não acreditasse, quem tudo considerasse criação de fantasias exaltadas. Lealmente me pergunto se em Moçambique não andaremos um pouco adormentados.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Atidos ao verniz exterior das aparências, nem sempre atentámos como devíamos a possíveis epicentros de futuros abalos, de que a lava subterrânea pode irromper, de uma hora para a outra, a tentar subverter a obra grandiosa de séculos.
Temos necessidade de inadiáveis reformas económicas, sociais e culturais, como os meus ilustres colegas o eu próprio já mais de uma vez sublinhámos à Cumaru. Mas, por veloz e eficazmente que venham, sairão todas, frustradas se previamente se não criar o ambiente de inteira segurança, capaz de prontamente eliminar os potenciais agitadores que se acoitam na sombra, à espera da hora marcada para tombarem como abutres sobre nós.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Quero ser mais claro do que nunca, Srs. Deputados.
A minha educação política, a posição inequívoca que, pela graça do Deus, sempre mantive desde os bancos escolares até hoje e um pouco as afirmações que tenho feito nesta Câmara não permitem que às minhas palavras de hoje possa atribuir-se outra intenção além da que liquidamente delas decorre.
Todos sabemos, Srs. Deputados, que a Rússia tem os olhos postos sobre o continente africano. O leitor português não precisa já de recorrer a obras estrangeiras paru ter à mão as provas irrefutáveis do longo processo histórico deste progressivo interesse do comunismo internacional pelo continente negro.
O documentado estudo de Alejandro Botzáris África e o Comunismo, juntamente com a obra Portugal na África Contemporânea, de Richard Pattee, bastam para para nos darem as peças fundamentais.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Há, porém, um pormenor para que ouso chamar a atenção de VV. Exas., Srs. Deputados. Se o bloco afro-asiático se empenhou, encarniçadamente, por que o ano de 1961 exterminasse em África toda a presença europeia foi porque, antecipadamente, Kruschtchev, o mais sanguinário déspota da história, proclamara que esse uno seria o da extinção de todos os colonialismos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Todos, entenda-se, com excepção do pior, do mais tirânico - o russo-, que implacàvelmente se exerce sobre milhões de homens livres, detentores de civilizações bem superiores à da própria Rússia.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Lenine prescrevera, já em 1920, no Esboço Preliminar das Teses sobre Problemas Nacionais e Coloniais:

Em primeiro lugar (...) todos os partidos comunistas devem ajudar o movimento de libertação burgueso-democrática nesses mesmos países, e (...) o dever primordial de prestar ajuda mais activa ao dito movimento corresponde aos trabalhadores das nações das quais depende o país atrasado, como colónia ou como país economicamente dependente.

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Não foi exactamente este o caminho seguido com Angola?
O lento trabalho de sapa veio-se operando desde longe, precisamente por intermédio dos comunistas portugueses.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Com efeito, o Movimento de Unidade Nacional Antifascista, inteiramente dominado pelos comunistas, ainda sustentava «a unidade nacional com as suas colónias» à roda de 1946. Mas já a IV Reunião Ampliada do Comité Central prescrevia pouco depois, no mesmo ano:
É dever do partido para com os povos coloniais oprimidos pelo capitalismo português ajudar a fortalecer as organizações comunistas e as organizações democráticas nas colónias, a fortalecer o seu trabalho e a criar condições de vida própria e independente.

Não tardou que o capítulo do «Projecto do Programa do Partido Comunista Português», em 1954, sancionasse o «direito de autodeterminação para os povos coloniais, inclusivamente o de se separarem do País».
Quem saiba um pouco as raízes do terrorismo angolano e como os focos de perturbação coincidiram exactamente com a localização de células activíssimas em Luanda, Malanje, Cateto e outras povoações do Norte da província anda também perfeitamente a par de que o triunfo momentâneo das hordas empurradas do outro lado da fronteira se deveu principalmente ao apoio interno dessas verdadeiras quintas colunas.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Se o Sul de Moçambique parece poder confiar nas suas fronteiras, mercê da garantia que a vizinhança com a União Sul-Africana e as Rodésias nos traz, já a larguíssima zona que se estende ao norte do Zambeze precisa de vigilância constante.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Por um lado, a recente independência do Tanganhica patenteou-nos o que já todos esperávamos - que teríamos ali um adversário que não desarmaria. Ainda confiavam alguns, ingenuamente, que Nyerére encontrasse no seu catolicismo convicto umas luzes de bom senso que lhe rasgassem caminho à compreensão. Mas não só ele foi apeado, como todos os brancos do seu Ministério corridos, ficando o novo Estado inteiramente nas mãos de governantes africanos.
Como a U. P. A. e os outros partidos comunistas que se batem contra nós em Angola têm as sedes e pontos de apoio em Casa Branca, Acra, Brazzaville e Léopoldville, da mesma forma os chefes e os movimentos de «libertação» moçambicana encontram em Dar Es-Salam, capital do Tanganhica, o seu principal campo de treino.
Na Niassalândia, o famigerado Dr. Banda sistematicamente afirma a intenção de anexar, pelo menos, toda a região do Zambeze para cima. E se chegar a constituir-se a sua projectada «Federação do Tanganhica com a Niassalândia», tenhamos a certeza de que os traidores que manobram do lado de lá das nossas fronteiras não hesitarão em lançar-se numa luta terrorista idêntica à do Norte de Angola.
A Rússia e os afro-asiáticos dar-lhes-ão todo o apoio moral e material para os conduzirem ao triunfo final.
O embaixador soviético, ao instalar-se há pouco em Dar Es-Salam, expressamente declarou que era preciso «libertar» Moçambique quanto antes, podendo os guerrilheiros lançados na fogueira contar com toda a ajuda da União Soviética. Eis aí o futuro pesado que aguarda Moçambique, Srs. Deputados.
Sei bem que o Governo está atento e que os dispositivos de defesa se encontram já montados para as piores emergências.
E a Nação pode também confiar na intransigente fidelidade da gente de Moçambique, dos colonos que lá trabalham e arrotearam aquela terra generosa, em largos anos de fadiga, com o suor do seu esforço e com os bons portugueses de cor, que sentem, como nós, na sua pureza de alma, o orgulho de pertencerem à mesma Pátria-Mãe.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: -Só receio a pequena, mas viva, quinta coluna do interior. Demasiado temos crido na aparente passividade da sua acção. Quando renunciaremos a acreditar em ultrapassados democratismos de cabeleiras empoadas, a que nenhuma astúcia consegue disfarçar o matiz vermelho que as filia e explicar

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Eça mofou já da «balbúrdia sangrenta das palavras que nada dizem». E ainda haverá, nesta hora trágica e decisiva para o nosso destino colectivo, quem acredite que palavrismo, cujas sinistras intenções só não vêem os rematadamente cegos, não passe de inofensivos rodriguinhos de impenitentes nefelibatas, perdidos na manhã de névoa que nunca o futuro lhes traz P Não, Srs. Deputados.
Se alguma vez precisámos de mostrar-nos realistas e dar às palavras toda a sua exacta dimensão, se nalgum momento devemos erguer a voz sobre o clamor de todas as vagas, levantando a cara ao perigo e opondo, intrepidamente, o peito à enxurrada, é precisamente quando se jogam os destinos últimos da Pátria.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - E não sei se em Moçambique não estaremos prestes a chegar a uma dessas encruzilhadas heróicas. Nunca propendi u farejar comunistas em todos que topo no meu caminho. Sempre acamaradei, fraternalmente, com amigos dos mais variados credos políticos e religiosos, por mais longe que andassem da estruturação católica e tradicionalista do meu espírito. Com uma condição apenas: que sempre colocassem a soberania e a integridade da grei muito acima de quaisquer discordâncias pessoais.
Quero até prestar o mais sincero testemunho da minha total admiração a tantos moçambicanos de alma direita que, apesar da sua anterior oposição ao Regime, depuseram as armas e se prestaram a colaborar connosco ante a onda invasora do exterior (de que o terrorismo angolano foi trágico sinal que, desgraçadamente, alguns ainda teimam em não compreender), lembrando-se que uma coisa importa, antes de tudo: salvar a Pátria ameaçada, na intransigente unidade de todos em torno- dos chefes que nos governam.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Aqui deixo a VV. Exas., Srs. Deputados, este brado firme de uma. consciência portuguesa de

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Moçambique, na esperança de que entre na vontade dos que devem andar atentos aos mais ligeiros rumores do perigo, para que a tempo tudo previnam e não tenhamos depois que chorar, amargamente, a nossa imprevidência e credulidade, atabalhoando remédios tardios e quem sabe se inúteis já.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Só assim essa nossa admirável província continuará integralmente portuguesa.
Só assim temos direito a fechar tranquilamente os olhos, certos de que as gerações de filhos que vierem render-nos, através da jornada adusta, séculos fora, hão-de empunhar, orgulhosos de nós, o facho sagrado que depusemos, a arder, nas suas mãos.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Armando Cândido: - Sr. Presidente: no próximo mês de Agosto o Município de Vila Franca do Campo pretende comemorar o 4.º centenário do nascimento de Bento de Gois.
Para despertar em todos os portugueses o mais patriótico interesse nada mais seria preciso do que esta breve notícia.
Bastaria ainda levar a deliberação daquele Município açoriano ao conhecimento do Governo para este lhe dispensar o seu melhor apoio.
Mas parece que tudo quanto Portugal fez no Mundo e para o Mundo, de modo a desafiar a força corrosiva dos anos e a acção demolidora das paixões, deverá agora ser lembrado e relembrado com abundante cópia de pormenores. E como se a verdade maciça e aceite como indiscutível tivesse constantemente de ser dissecada e patenteada, fibra por fibra, ou tivesse, para o efeito, de regressar, sempre que fosse posta em causa, às fases do seu processo, aos mesmos caminhos, lances e provas - a todo o itinerário da sua realização.
Nunca a história autêntica foi posta tanto em dúvida para ser tão diminuída, nem a consciência universal foi posta tanto em crise para ser tão abalada.
Também nunca se viu o interesse egoísta e a sanha ideológica procurarem entregar assim o valor do passado ao total esquecimento ou à total deturpação.
Isto nem é compreensível nem é tolerável e reclama da nossa parte a pronta mobilização de todas as energias.
Há que restaurar nas inteligências a dignidade de pensar, redobrar de esforços no apostolado da razão e do direito, travar intensa batalha pela supremacia do espírito. Puni tanto teremos de levar a cabo, ainda com mais ardor, a campanha de esclarecimento do público internacional em que estamos já tão profunda e convictamente empenhados.

O Sr. Pinheiro da Silva: - Muito bem!

O Orador: - À roda das nossas ameias não estão só os inimigos naturais. Também alguns que se dizem amigos se juntaram declarada ou disfarçadamente às hostes dispostas ao assalto.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ë a triste e espantosa aliança do ódio com a fraqueza ainda há pouco denunciada por Adriano Moreira.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Porque não entendemos, como ele não entende, que possa ser acusado de padecer de imobilismo «um país que sustenta ser necessário que o espírito europeu continue a projectar-se universalmente».
Porque não entendemos, como ele não entende, «que se considere dinâmica a política que reduziu a Europa às fronteiras actualmente mantidas com tanto susto e incerteza».
Porque também não conseguimos compreender o dinamismo da fuga às responsabilidades e à palavra dada.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Porque não damos outro nome á demissão suicida que não seja suicídio.
Porque não podemos acreditar em que as nações se livrem de prejuízos atentatórios da sua independência e muito menos se reforcem ou engrandeçam desperdiçando a sua integridade territorial e humana através de cedências e entregas injustificáveis que por vezes envolvem a exposição dos próprios flancos à preponderância ameaçadora do inimigo.
Porque repartimos pelo Mundo o pão da fraterna convivência, em vez do pomo da azeda discórdia.
Porque não desistimos de acreditar nos bens do sangue, na irradiação dos grandes exemplos que dormem iluminadameute no sossego do tempo, nos elos forjados pelas gerações que precederam a nossa e que devemos forjar também com o pleno sentido da fidelidade na continuidade.

O Sr. Pinheiro da Silva: - Muito bem!

O Orador: - Então, se a maior tarefa que se nos impõe é a de fazer valer a verdade, aproveitemos todos os argumentos, todas as ocasiões, todos os verdades.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Afinal quem é esse homem que nasceu na ilha de S. Miguel, em Vila Franca do Campo, e praticou tão extraordinárias obras que o Município da sua terra não tem dúvidas em festejar e exaltar-lhe a memória com a mais fervorosa vontade e a mais sentida compreensão, através de oportunas comemorações, às quais o País, representado pelo seu Governo, não deixará de associar-se inteira e justamente?
Com as águas do baptismo recebera o nome de Luís, e ninguém poderia suspeitar que a Providência lhe reservara um dos lugares cimeiros entre os mais destacados varões da Pátria.
Também numa terra pequena e distante, mais pequena por causa do terramoto que a destruíra 40 anos atrás e mais distante pela demora que tinham as velas em demandá-la, poucas ou nenhumas deveriam ter sido as oportunidades para Luís Gonçalves revelar o seu génio, capaz de acender estrelas nos armamentos da transcendência humana.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sabe-se que viveu em Vila Franca do Campo, pelo menos até àquele dia de Julho de 1582 em que se finaram no mar, em frente àquela vila, e com a derrota da armada de Strozzi, as esperanças da nossa causa, prolongadas na resistência do prior do Crato - o derradeiro lampejo de batalha, o último reduto em pé de guerra.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador:

A alma do moço vila - franquense - como observa um dos seus mais eloquentes biógrafos - devia adormecer imersa em profunda tristeza; mas também devia ser febril o seu acordar.
Que tempestade de pensamentos, fuzilando como relâmpagos, se formou no cérebro do fogoso mancebo?
Embarcar para a índia seria o seu anelo, a sua aspiração suprema.

O certo é que Luís Gonçalves se alistou no exército de Goa porque «não lhe sofreria o ânimo ficar numa terra» que tivera de receber «o último gemido da Pátria moribunda» e porque a índia era, nessa época, só único lugar onde encontrava gasalhado a antiga galhardia portuguesa».
Mas os homens talhados para grandes destinos nem sempre entram, desde logo, na senda luminosa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Luís Gonçalves foi combatente temerário e na sua mão não vacilaram as armas de Portugal. Em todo o caso, a sua mocidade exuberante levou-o a desmandos censuráveis.
Alguém, no escrever sobre a personalidade de S. Paulo, perguntou o que é que nós, principalmente nesta época de mecanização e materialismo, pudemos saber daquilo a que outrora se chamava o a misterioso intercâmbio da alma com o Infinito?».
Que podemos saber da luta que se trava na mente de um homem «com os problemas transcendentais do destino humano», com «a desesperadora e aparente falta de sentido da vida», no caminho para «a certeza súbita, talvez por uma revelação repentina, de que, a despeito de tudo, «por baixo estão os braços eternos», ou aquela voz que Pascal ouviu em certos acontecimentos, e que dizia: «Não poderias ter pensado em Mim, se já não me tivesses encontrado»?
Esse mesmo que formulou estas interrogações aquietou-se na conclusão de que em tal assunto o espírito sopra conforme deseja, como se fora sobre terreno sagrado, em que devemos ficar silenciosos, e até caminhar descalços, à semelhança do que fez Moisés ao aproximar-se da Sarça Ardente.
Luís Gonçalves, aquele soldado da índia de vida tão licenciosa, que chegou a ser pedra de escândalo para os seus camaradas, trazia em si o carisma das aluías predestinadas para as ascensões sublimes. Tu l vez não tivesse ouvido ainda, decisivamente, aquela voz que .Pascal escutaria mais tarde, ou não tivesse sido deslumbrado pelo clarão que convertera Paulo de Tarso às tarefas da santidade. Mas as suas forças vitais deveriam trabalhar já no sentido da sua transfiguração e o seu pensamento estava com certeza apto a raciocinar sem termos de eternidade».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ao abordar, de relance, estas profundas questões do ser, depois de observar que andámos, muito tempo enganados acerca do papel da inteligência, desprezando a substância do homem e julgando que o egoísmo hábil podia exaltar o espírito de sacrifício, Antoine Saint-Exupéry conclui, com impressionante naturalidade:

A semente do cedro, quer queira, quer não, há-de dar cedro. A semente da silva há-de dar silva.
Volto ao biógrafo eloquente, na parte em que o mesmo anota não ter a Providência jamais perdido de vista o mancebo açoriano para o penetrar com um raio de graça e transformá-lo em modelo de virtude:

E então que Luís Gonçalves troca o nome de baptismo pelo de Bento de Gois e despe a armadura coruscante dos combatentes para vestir a humilde roupeta dos obreiros da civilização.

Quer dizer: a semente do cedro, deu cedro.
A entrada da pequena Capela de Travancor construída pelos portugueses, marca o começo da senda luminosa que «o soldado de fortuna nas terras do Malabar», depois de ter implorado perdão para a sua turbulência pecaminosa, desejava percorrer com outro nome nada comprometido nas misérias do Mundo.
Por humildade, não passem de irmão coadjutor da Companhia de Jesus, então a grande ateadora da nossa acção missionária em todo o Oriente. Mas tomou a vida como um pleno sacerdócio. Assim, e pelos grandes merecimentos dia a dia provados, chegou a ser escolhido para na corte do Grão-Mogol Akbar colher benevolências e simpatias, e tal foi o êxito dessa sua missão, que o imperador abandonou o intento de conquistar a índia, deferiu o resgate de todos os portugueses, que tinha feito prisioneiros no assalto à fortaleza de Asirgarh, e os maometanos e hindus passaram a respeitar os missionários católicos.
Relevantíssimos serviços estes, que se impunham e impõem à gratíssima admiração da Pátria, mas a capacidade diplomática e missionária de Dento de Gois possuía fôlego para dar de si provas mais extraordinárias.
Haviam chegado à Europa referências a um reino porventura situado, algures, no Oriente, e onde vivia uma antiga cristandade.
Acumulavam-se as narrativas feitas por alguns viajantes, e o mistério, à medida que subia, mais despertava a curiosidade e a necessidade de saber onde ficava essa terra lendária a que tinham dado o nome de Cataio.
A viagem de Marco Polo pela Ásia Central não tivera outro fim que não fosse o de descobrir o misterioso país. Ingleses e holandeses ainda teimavam em igual propósito, e diz que Cristóvão Colombo abriu rumo mais ao ocidente, não para ir de encontro à América, mas para resolver o problema do reino invisível.
No entanto, e a despeito de todos os esforços, o mistério persistia, e até crescera na própria índia, onde o Visitador das Missões Nicolau Pimenta, nos princípios do século XVII, pensa numa viagem de exploração, que não tarda em promover, com os auxílios do Vice-Rei Aires Saldanha e até do próprio Grão-Mogol.
Mas quem seria capaz de se medir com os perigos e o alcance de tão árdua empresa?
Quem possuiria o valor, o esforço de ânimo, a arrojada competência?
Quem, sem outras armas que não fossem a Cruz e os Evangelhos, poderia ser o intrépido pioneiro?
Ninguém como o Visitador Pimenta conhecia melhor os seus missionários.
Havia um homem:
Havia Bento de Gois!

Obediente e resignado, forte e audaz, diplomata u conhecedor da língua persa, o mancebo açoriano foi, na frase de Ritter, «o encarregado heróico da difícil missão de abrir o caminho continental, então de todo desconhecido, da índia ao Cataio».

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E assim principia, verdadeiramente, a vida magnífica de Bento de Góis, que não se furta à enorme incumbência, que parte, arrimado à sua fé, à sua coragem e à sua perseverança, ao seu inexcedível estoicismo, e convence os trilhos mais duros, os povos mais hostis, os potentados mais difíceis. Nada o detém. Nem as montanhas mais altas, nem os vales mais profundos, nem as correntes mais impetuosas. Dificuldades da terra e dificuldades dos homens, tudo supera, num sobre-humano esforço, traduzido em quatro anos de jornada e 800 léguas de percurso, como corpo destroçado e a alma em fogo, no excelso cumprimento do dever - descobrindo gentes, caminhos e sinais, semeando a palavra de Deus, dilatando a presença de Portugal, varrendo as lendas que envolviam o decantado reino do Cataio, finalmente identificado com a China, que os portugueses já conheciam.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Perante a grandeza global do feito e dado o lugar em que estou usando da palavra e o tempo de que disponho para o fazer, não descreverei circunstanciadamente a famosa travessia do desbravador do Mundo e missionário português que foi Bento de Góis, falecido em Suchow, no dia 11 de Abril de 1607, aos 45 anos de idade, nessa mesma imensa China que acabara de percorrer para bem da ciência e da civilização, de tal modo que um dos nossos historiadores não hesitou em colocá-lo, como herói da ciência, ao lado de Albuquerque, o herói da conquista, e de Francisco Xavier, o herói da fé.

Sr. Presidente: Bento de Góis representa hoje, neste Mundo dividido e que ele procurou unir com a sua palavra e o seu exemplo, uma das mais inegáveis demonstrações do modo de ser português, aberto à convivência das raças em normas de superior humanidade.

O Sr. Pinheiro da Silva: - Muito bem!

O Orador: - Exaltemos a demonstração para que o Mundo aprenda mais uma vez que Portugal sempre o aumentou para melhor o servir e sempre o serviu para melhor o enobrecer.

As comemorações que o Município de Vila Franca do Campo pretende efectuar no próximo mês de Agosto têm, pois, além do seu significado nacional, uma forte expressão no plano internacional, que cumpre elevar ao máximo, com a solidariedade do País e a ajuda do Governo.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Cutileiro Ferreira: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: a grandeza do empreendimento de que vou falar-vos, tanto nos aspectos políticos como económicos e sociais, é tal que sinto, pobre de mim, que não estarei à altura dos factos, mas, e isso vos prometo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, procurarei suprir com a verdade dos argumentos - e essa será eloquente - o que faltar em brilho e recorte literário.

Vou falar-vos do Hospital do Patrocínio (hospital para cancerosos), que se pretende construir em Évora.

Todas as épocas têm tido as suas doenças, mais ou menos típicas, e que constituem o pesado tributo pago pela sofredora humanidade à dor e à morte. A ciência já venceu algumas, quer evitando-as, quer curando-as, mas outras há que continuam ceifando vidas após vidas, com um cortejo lúgubre e dramático que podemos tentar esquecer, mas que, por mal de todos ... novos ou velhos ... ricos ou pobres ... inteligentes ou tolos, com uma crueldade diabólica se furtam à vulgaridade de tratamentos e só cedem, quando cedem, em hospitais poderosamente apetrechados de pessoal e material. De entre essas doenças é o cancro talvez a mais pavorosa.

Não pretendo dramatizar as minhas considerações com reais e tétricas descrições, mas, e isso devo fazê-lo, peço a todos que me escutam uma lembrança para os que sofrem do terrível mal e, como complemento natural, que apoiem e ajudem, sempre que as circunstâncias o permitam, a luta contra essa doença, que é a mais grave da nossa época.

Há poucos dias ainda, um ilustre Deputado e clínico de nomeada, o Dr. Urgel Horta, lançou um grito de alarme, nesta Câmara, que todos ouvimos com o interesse que sempre merecem os apelos justos e as obras de projecção nacional, para que seja feita a necessária cobertura hospitalar anticancerosa, que, disse o ilustre Deputado, não deve limitar-se a Lisboa, Porto e Coimbra. Assim o entendem todos que são chamados ao estudo e solução do problema.

Como um dos precursores da ideia de disseminar a pesquisa, tratamento e cura do cancro em Portugal figura o Prof. Francisco Gentil, que, por de mais conhecido de todos nós, tanto pelos seus dotes de mestre insigne da medicina, como organizador dessa portentosa obra que é o Instituto Português de Oncologia, dispensa fáceis elogios, que, por maiores que fossem, ficariam aquém da obra que é reflexo do seu criador.

Foi o Prof. Gentil que teve a ideia de estabelecer em Évora um hospital anticanceroso. Exposta a mesma, em 1954, públicamente, teve logo a acarinhá-la esse valor positivo da Igreja Portuguesa que foi o saudoso arcebispo de Évora D. Manuel da Conceição Santos. O povo da cidade ... todo o povo do Alentejo ... rejubilou com a ideia e deu-lhe, desde a primeira hora, o mais decidido apoio. Todos compreendiam a grandeza do empreendimento e todos, todos sem excepção, se dispuseram a colaborar na grandiosa obra. Raras vezes se terá visto um movimento colectivo tão homogéneo e espontâneo.

Compreendia-se que a posição geográfica de Évora, a sua tradição cultural e as facilidades de comunicações, a impunham, sem contradita, como sede do futuro hospital. Mas havia outra razão, e essa infelizmente, mais premente: a incidência da doença no Sul do País. Para dar-vos, Sr. Presidente e Srs. Deputados, ideia real dos factos citarei que de 1957 a 1961 foram assistidos no Instituto Português de Oncologia 6174 doentes das seguintes proveniências: Portalegre 1110; Évora, 1508; Beja, 1898, e Faro, 1658. Se juntarmos a estes números mais 5446 de Setúbal, temos o horrível número de 11 620 doentes só do Sul do Tejo, em cinco anos.

A média, de 2324 doentes anual tende, infelizmente, a aumentar, e, quando se fizer uma séria pesquisa - o chamado rastreio -, não podemos calcular a que número chegaremos. Não sabemos, também, quantos doentes não são assistidos, nem quantos, para maior desgraça, são mal assistidos.

Não me alongarei com mais considerações estatísticas, pois as que vos dei não justificam um hospital, jus-

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tificam, certamente, mais do que isso, uma rede de dispensários que canalizem os doentes para o ou os hospitais.

O Sr. Meneses Soares: - Muito bem!

O Orador: - Conscientes do valor e necessidade do hospital anticanceroso de Évora, iniciaram-se, logo a partir de 1954, trabalhos preparatórios para a sua construção. A Liga Portuguesa contra o Cancro nomeou uma comissão local e a Câmara Municipal de Évora, num gesto que muito a honra, ofereceu o terreno necessário para o hospital. Tudo parecia correr pelo melhor, mas ... o eterno mas nacional começou a agir. Surgiram dificuldades com os primeiros técnicos encarregados de elaborar o projecto do hospital. Quando em Outubro de 1906 S. Ex.ª o Ministro das Obras Públicas visitou Évora não lhe puderam ser presentes quaisquer anteprojectos.

S. Exa. limitou-se a visitar o local, ouvir explicações verbais u, solicitado, prometeu a indispensável ajuda do seu Ministério. Novos técnicos foram contratados e tudo se teve de começar de novo. Surgiu, então, a ajuda substancial que impulsionaria o empreendimento - 5000 contos foram dados pelo Sr. Conde de Vilalva.

Évora, toda a Évora como uma só pessoa, foi, com o sorriso nos lábios e as lágrimas nos olhos, agradecer a generosa dádiva. Quem não viveu essa hora não pode dizer que conhece a gratidão de uma cidade.

Todos, até S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho, se interessaram pelo andamento dos trabalhos, mas, novamente o mas, por incompatibilidade entre os serviços e técnicos, houve que, outra vez, procurar novos técnicos e recomeçar. Alguns começaram a descrer e, a verdade deve dizer-se, outros sonharam em ser herdeiros dos largos bens de que se dispunha. Um só comentário ... perdoai-lhes, Senhor!

No decorrer deste anos, 1954 já ia longe, tudo havia evoluído. Na técnica da construção civil tínhamos o pré-esforçado, na técnica médica os isótopos radioactivos e a bomba de cobalto, na técnica política o Ministério da Saúde e Assistência.

Se os técnicos da, construção civil e os médicos tinham os seus problemas, não eram menores as dificuldades da técnica política. Felizmente que nas esferas superiores, no nível dos Ministérios, o problema teve audiência. Houve atritos, mal-entendidos e as naturais dúvidas, mas a inteligência comprovada do Prof. Leito Pinto, do Eng.º Arantes e Oliveira, do coronel Sclulz e do Dr. Martins de Carvalho - Ministros da Educação Nacional, das Obras Públicas, do Interior e da Saúde e Assistência - e o espírito conciso, claro e justo de S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho tudo levaram de vencida.

Uma fundação foi criada: a Fundação do Patrocínio.

Esta Fundação é a tentativa de colaboração Estado-Liga Portuguesa contra o Cancro-particulares na luta contra o cancro. Todos os interesses foram acautelados, visando o fim único de cuidar e tratar o doente. O doente é a entidade para a qual todos trabalham, o doente é a finalidade de todas as acções e de todos os pensamentos. Para o doente tudo se fará, a ele todos se sacrificarão.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Este será o espírito do Hospital do Patrocínio. A par da solução política, felizmente foram encontradas as soluções técnicas da construção civil e médicas. Dispensar-me-ei de vos descrever o que será o futuro hospital; apenas direi, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que se trata de um imóvel de proporções cuidadas e que figurará como uma das unidades mais brilhantes do apetrechamento hospitalar do nosso país.

Houve, por parte dos técnicos responsáveis, o maior cuidado na articulação e seriação dos serviços, a preocupação em estruturá-los de forma que a sua utilização ofereça sempre a maior comodidade para os doentes, ideia central a que tudo se subordinou.

Como o despacho de S. Ex.ª o Sr. Ministro das Obras Públicas, que em devido tempo aprovou o anteprojecto, determinou que se procurasse a coordenação de determinados serviços com outros de assistência local, existentes ou não, alargou o âmbito inicial do programa, de forma a conseguir a desejada complementaridade e da qual se espera resulte uma maior eficiência pelo aumento e volume de serviços destinados a prestar essa assistência. Pelo que acabo de vos dizer, Sr. Presidente e Srs. Deputados, fàcilmente se deduz que, felizmente, o projecto definitivo do Hospital do Patrocínio está em vias de conclusão. É certo. Os técnicos responsáveis marcaram a data de 30 de Abril próximo para a entrega do projecto definitivo. Do facto já foi dado conhecimento a SS. Exas. os Srs. Presidente do Conselho e Ministros das Obras Públicas e da Saúde e Assistência.

Para Évora, para o Alentejo, para o Sul do País, esse será um dia de profundo regozijo.

Mais um hospital, e um hospital especializado, será um factor de progresso e o progresso é querido e desejado em Évora. Cabe aqui referir que se não ignora que há os eternos velhos do Restelo que não aceitarão a ideia de um hospital de especialidade em Évora. Esses dirão que não haverá médicos, que não haverá pessoal, só não dirão que não há doentes.

Mas para esses responderemos que onde houver um hospital de categoria e com meios sérios de trabalho não faltarão os elementos médicos. Aliás, há que atender antes e acima de tudo ao doente. O doente tratado no seu habitual ambiente climático e familiar é mais facilmente recuperável. E todas as concepções filosóficas são pela breve recuperação do doente. Os simples materialistas considerarão as horas de trabalho perdidas ou ganhas; os espiritualistas, as dores mais fàcilmente suportadas ou totalmente aliviadas. Todos se encontrarão no fim a atingir: o menor período de doença.

Haverá ainda o factor económico a considerar. Quanto custará este hospital?

30 000 coutos, dizem os técnicos.

Ë muito dinheiro, eu sei, mas a Fundação do Patrocínio concorrerá para a construção do hospital com 50 por cento. O Estado concorrerá com os restantes 50 por cento.

O Sr. Melo Adrião: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Tenha a bondade.

O Sr. Melo Adrião: - Tenho estado a, seguir com toda a atenção as considerações de V. Ex.ª e não posso deixar de manifestar a minha satisfação por uma zona tão vasta poder agora ter assistência em condições mais regulares.

Creio que o seu problema número um será o de médicos, mas estou certo de que os encontrará, desinteressados e decididos a ajudar a resolver os problemas do novo
hospital.

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O novo hospital virá desempenhar um importante papel na investigação, no estudo aprofundado dos problemas e, sobretudo, no diagnóstico de tumores malignos, que, por vezes, exige alta especialização. Nós sabemos que a malignidade de um tumor não depende só das suas características, mas também da sua situação e extensão.

Além desse valor assistencial, o hospital representa uma nova riqueza no Alentejo como centro de investigação.

O Orador: - Muito agradeço a V. Ex.ª as suas palavras, tanto mais que vêm de um dos mais prestigiosos professores da medicina portuguesa.

Esta atitude, Sr. Presidente e Srs. Deputados, por ser invulgar, entendi que merecia ser conhecida desta Câmara, para que julgue como deve uma atitude nobre e a apoie, dando ao Governo da Nação a certeza de que ao aprovar o projecto definitivo do Hospital do Patricínio comete um acto de justiça, com o concurso unânime deste órgão da soberania nacional.

A única hipótese, que todos desejaríamos, de o projecto ser reprovado seria a de o reprovador brindar a humanidade com a descoberta da cura do cancro.

Não sendo o facto possível, infelizmente, graças daremos todos aos que se honrarem ligando o seu nome a uma obra do mais alto valor político, económico e, sobretudo, social.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Aguedo de Oliveira: - Sr. Presidente: peço à Secretaria de Estado da Agricultura e aos serviços florestais, os quais dispõem de uma experiência largamente acreditada, que, em colaboração com as autoridades administrativas e municipais do meu distrito de Bragança, procedam a novos estudos ou completem os seus elementos sobre as questões económicas e sociais ligadas ao florestamento.

Vivemos ali algumas ansiedades, algumas dúvidas, sentimos a perplexidade que vem das reacções dalguns povoados serranos que atingiram o cúmulo indefensável de actos criminosos perpetrados à traição e que prejudicaram o património de todos em milhares de contos.

Em 1928, no extremo nordeste, vivia-se uma hora inquieta; o trasmontano, o duriense, o beirão serrano, voltavam as costas às montanhas ingratas e degradadas pela erosão, tomando o caminho da terra alheia, não à procura da fortuna, mas simplesmente em busca de trabalho e de remuneração regular - do pão de cada dia.

Era um êxodo persistente, desesperado, gravíssimo, uma autêntica expatriação em massa.

Iam assalariados, rendeiros, pequenos seareiros das montanhas, pequenos proprietários, iam para não mais voltar.

Desapontados, quase sem pensar, bravos, tomavam o caminho do Brasil, das Américas, da África e da França, mas agora pela primeira vez sem ânimo de regressar a terra-mãe.

O Nordeste era assim gravemente lesado e a sua economia retrogradava, depois das perspectivas abertas pelo fontismo, pelo caminho de ferro e pela civilização da camionagem.

Oliveira Martins e Ezequiel de Campos, este ainda felizmente vivo, preconizaram o revestimento florestal das serras do Nordeste pelas vantagens climáticas, pelo acréscimo de combustível tão desejável e pela estabilidade que implicariam as novas tarefas e economia na vida naqueles altos severos, frios e fragosos.

Chamou-se nessa altura cruzada da arborização ao movimento de defesa do florestamento a empreender e à utilização dos baldios que as câmaras generosamente ofertaram ao Estado, os quais, em extensões enormes, permaneciam desaproveitados.

Os meus artigos na Voz foram secundados brilhante e inesquecìvelmente pelos editoriais do conselheiro Fernando de Sousa e Meneses Cordeiro.

Havia ali, naquela região, patentes as afirmações da experiência da família Meneres no Romeu, que, em larga área, aproveitara milhares e milhares de árvores espontâneas e plantara muitas mais num belíssimo ordenamento e em extensão não atingida ao norte do Douro, e daquele último uma obra menos concentrada e talvez mais vasta.

As perspectivas afiguram-se, mesmo com prudência, deslumbrantes e vastas - defender-se-iam as encostas; cresceria a geral riqueza; pôr-se-ia um obstáculo aos ventos cortantes da Espanha e um dique às torrentes, e haveria lenha para os pobres e necessitados.

Depois de vários incidentes processuais, os serviços florestais, acreditados por uma experiência brilhante, servidos por dedicações apaixonadas, misturando a devoção profissional à carolice de especialistas, abalançaram-se a essa grande obra montanhesa e arborícola, senhores já de uma prática concludente, mas lenta e limitada, nos anos contados após 1888.

A Lei n.º 1971, de Junho de 1938, inaugurou uma nova quadra mais benéfica e rasgada. O Estado Novo assegurava extensão, eficiência e planeamento jamais conhecidos.

Assim, surgiram no mapa do florestamento os carvalhais do Roboredo e de Nogueira; os castinçais de Bornes, Freixo e Vila Flor; os pinhais do monte de Morais, de Deilão e da serra da Coroa, e outros ...

Mas, como acontece a todos quantos semeiam e plantam, nem sempre os resultados se inseriram nos cálculos optimistas e rosados que fizemos, nem as iniciativas oficiais alcançaram todos os limites previsíveis.

Os carvalhais tirados das carvalheiras espontâneas ganham pouco corpo.

Os castanheiros espreita-os a tinta e bracejam preguiçosamente.

Os pinhais crescem menos do que os semeados e plantados por particulares.

O Sr. Egberto Pedro: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Se é para V. Ex.ª fazer um aparte ou observação, muito bem. Mas se é para este sistema dos contradiscursos, devo declarar que não considero isso regimental.

O Sr. Egberto Pedro: - Queria fazer uma ligeira rectificação. Sei muito bem qual foi a posição de V. Ex.ª como Ministro das Finanças. Disse V. Ex.ª que os pinhais do Estado vegetam em condições deficientes em relação aos pinhais dos particulares. V. Ex.ª deve ter esquecido que os pinhais dos particulares estão, normalmente, instalados em terrenos com óptimas condições do ponto de vista da criação dessas espécies. Os pinhais do Estado são, geralmente, relegados para as torrentes montanhosas e terrenos sem qualquer outro aproveitamento. O caso dos carvalhais que V. Ex.ª aponta ...

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O Orador: - Era melhor V. Ex.ª ouvir até ao fim, porque a matéria foi condensada e está em começo de exposição.

Referi-me à colaboração jornalística em 1928, e não à passagem pelo Ministério.

Tenho uma noção muito assente, e quando abro a janela vejo, por exemplo, o carvalhal do Reboredo num estado de atraso e definhamento.

O Sr. Gonçalves Rapazote: - Há um lindo carvalhal na serra de Nogueira.

O Sr. Egberto Pedro: - Em a esse que ia referir-me, se o Sr. Deputado Aguedo de Oliveira permitisse.

O Orador: - E os cedros, os eucaliptos, os abetos, os freixos e negrilhos só em escassa posição ocupam as zonas serranas, esperando-se muito mais do seu vigor e valorização.

Também os perímetros desceram nalguns casos até às povoações, comendo a terra quase livre, deixando desprovidas algumas pequenas aldeias, mergulhadas em ressentimento.

E, desta sorte, naquelas terras moutuosas, onde o dever moral e a seriedade colectiva são normas não difíceis, também houve reacções que tocaram pela baixa criminalidade e que não ficaram por explorar polìticamente.

Havia um problema de economia política a encarar como introdução a tudo isto:

De há séculos que existem gravíssimas dúvidas sobre a orientação a tomar na exploração do Nordeste trasmoutano e beirão e sempre houve tremendos debates sobre o método mais frutuoso para explorar a serra e as suas encostas.

O zénite das discussões, depois dos relatórios do visconde de Vila Maior e Pereira Cabral, deve ter sido atingido pelas monografias do lente Pereira Coutinho e do agrónomo Moura Pegado.

Ficou demonstrado que os fenos dos lameiros e prados naturais da terra fria não tinham rival no exercício da zootécnica.

Esses fenos espontâneos suplantavam em corpo e valor os franceses e alemães.

Mas uma cultura de grande investimento, dispendiosa e com ambições, levava a rasgá-los para obter produções maciças de batata, acompanhadas de produções mais modestas de milho e trigo.

Para prados naturais ficariam apenas as abas serranas mais pobres e as terras fundas entrariam em rotações apressadas.

Tal vinha a ser a teoria que as guerras e as crises económicas elevaram a tipo de vida activa.

Resultaram destas concepções agronómicas grandes especulações e conversão de capitais. Os lucros da operação foram momentâneos, se não ilusórios, e a pecuária estagnou, decaiu e não é senão hoje um pálido recordo dos velhos tempos de então.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Ao entardecer as vilas e povoados perderam o espectáculo característico do regresso dos gados.

A batata tornou-se uma fonte de inquietação e o lavrador nortenho não soube fazer, como o alemão, a sua conversão em sangue, pela exploração porcina de larga escala.

Assim, a floresta oficial vai revestindo as abas alpestres, mas com vagares e tardança, reconhecendo-se que influencia a luz, a radiação, a temperatura do ar e favorece as precipitações.

Vai melhorando gradualmente a economia geral, o clima, uma hora virá em que vai estar ao serviço da habitação, da defesa do solo e da vilegiatura.

Mas a floresta - como é geralmente sabido - absorve reduzida mão-de-obra nas primeiras décadas e não pode ser tomada como factor de articulação do pleno emprego nem saberia estancar o êxodo maciço dos serranos e cultivadores de centeio.

No meu entender houve um erro de concepção por parte do Estado.

Este, em vez de organizar os vários povoamentos florestais em modelo aproximado ao das empresas privadas, como se fossem herdades, quintas e montes, abrigando o pessoal, comportando dependências e viveiros no meio dos perímetros, ruralizando, deslocou os serviços locais para os centros urbanos, burocratizando mais do que devia ser.

Não faltaram a fiscalização nem mesmo as vistas do dono, mas quebrou-se aquele contacto, aquela intimidade, que são o segredo da economia privada.

Se assim tivesse sido feito, os domínios viveriam sobre si, alargariam pelos seus meios, participariam mais intensamente nos resultados; haveria entre eles frutuosa emulação.

Por outro lado, uma obra meritória de piscicultura, exuberante e viva, não tem sido acompanhada pelo repovoamento cinegético que se impunha também.

Acrescento ainda -folheando agora o notável parecer do engenheiro Araújo Correia- que, se me parece ínfima a verba destinada a assalariamento, julgo em demasia relevante o que se gasta com os quadros, ou seja umas cinco vezes mais.

Em vez de maciço contínuo de árvores, as matas deveriam ter sido entremeadas de pastos e pradarias.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ficaria um mosaico no género conhecido dos Alpes da Provença e da Sabóia, em que o verde-claro alterna com o escuro profundo, os tapetes herbáceos com os montes florestados.

Notáveis escritores, como o Dr. Egídio Ferrari, fazem a defesa económica, social e técnica da reflorestação acompanhada de clareiras para pastos e lameiros.

Em conclusão: é preciso vencer a hostilidade de certos povoados junto dos perímetros, combater o crime pela prevenção e pela persuasão, defender um património público de milhares e milhares de contos, que assegurará nas próximas décadas vantagens, benefícios, resultados úteis de que todos se compenetrarão facilmente, arborizar sem a preocupação de maciço continuado, abandonar as espécies de fraca crescença, desburocratizar - sobretudo reexaminar, guardar os ensinamentos das novas técnicas e da prática e rever onde for preciso.

As abas serranas, sobretudo as vertentes expostas ao sul, estão degradando, deixando escorregar as terras para os rios e torrentes. Já nem os matos maninhos resistem às fúrias demolidoras nem a urze junqueiriana desabrocha. Os tapetes herbáceos findam.

Uma obra de florestamento, de defesa contra a erosão, entremeada de pastos naturais, seria a fórmula ideal de fazer frente à fraqueza económica, à desagregação e à tristeza nativa do homem telúrico, que só terá horizontes geográficos.

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Estamos já longe de 1928, dos primeiros entusiasmos, do início da obra, das primeiras sementeiras, mas rectifique-se ou corrija-se o que for preciso.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Teles Grilo: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: desde que aceitei o honroso encargo de representar nesta alta Câmara os interesses do distrito de Vila Real e assumi deste modo a obrigação moral de estar atento aos problemas, e correlativas soluções, que a esse distrito especialmente respeitam, não podia ignorar, e muito menos deixar de acentuar, a extrema importância que para as gentes transmontanas do Noroeste da província teve, e tem, a boa nova da instalação no Norte do País de uma unidade industrial para desidratação de vegetais e outros produtos alimentares.

O facto reveste-se, efectivamente, do mais alto interesse económico e social para a região em que essa unidade industrial venha a constituir-se, bastando referir, a tal respeito, que ela deverá ter a capacidade para produzir de 6000t a 12 000t de desidratados por ano, conforme a sociedade interessada (a Sper - Sociedade de Intercâmbio Comercial e Industrial, Lda.) indica no requerimento que dirigiu a S. Ex.ª o Ministro da Economia a solicitar licença para a aludida instalação.

Além de que não é de menor importância saber-se que o empreendimento terá «de recorrer aos serviços de, pelo menos, vinte engenheiros agrónomos e regentes agrícolas que possam dar assistência técnica indispensável à lavoura local», como se escreve no memorial que acompanhou o requerimento atrás mencionado.

Desse memorial há que destacar, aliás, determinadas afirmações que bem demonstram a seriedade e a viabilidade económico-financeira de tal empreendimento e que são de molde a justificar esse alvoroçar de esperanças que irrompeu e agora acalenta o peito dos sacrificados rurais do Norte.

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - Por exemplo, diz-se aí que «Portugal é um país com grandes possibilidades de desenvolvimento da exploração de produtos hortícolas, especialmente no Norte, em regiões onde a água é mais abundante», e que «dadas as condições actuais do trabalho em Portugal, designadamente o nível dos salários, as condições gerais da economia e do fisco», podemos seriamente encarar a possibilidade de exportar os nossos produtos hortícolas e outros de natureza agrícola e pecuária, depois de desidratados, em óptimas condições.

Deste modo, uma indústria de desidratados montada em Portugal não só será fonte de divisas, tão necessárias à Nação, como satisfará uma necessidade fundamental interna, tornando-nos independentes do estrangeiro relativamente a um produto-base que é hoje de capital interesse nacional.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - No aspecto social - acrescenta-se no mesmo documento - esta indústria poderá fomentar o progresso económico da região em que se estabelecer. Além disso, poderá promover a constituição de cooperativas de agricultores, a quem fornecerá, além das sementes, assistência técnica e financeira que garantam à sociedade o fornecimento da matéria-prima adequada à produção de desidratados de primeira qualidade, competitivos no campo internacional.

O Sr. Rocha Cardoso: - E valorizar as barragens.

O Orador: - «Deste modo, o projecto em estudo assegurará o desenvolvimento da economia rural portuguesa, pois grande número de produtores na região em que o empreendimento se estabelecer poderão obter melhores preços pelos seus produtos e, consequentemente, assegurar aos trabalhadores melhores condições de remuneração».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Estas as perspectivas que a própria sociedade interessada nos descreve.

Excelentes, sem dúvida, são, por isso mesmo, susceptíveis de desencadear um largo movimento de influências junto das esferas competentes, em ordem a possibilitar que o benefício anunciado venha a ser concedido a determinada região, em detrimento de outra, com melhores direitos.

Ora é precisamente sobre este ponto que vou deter a minha atenção, pois me parece que o problema da escolha do local para a instalação da indústria de desidratados em referência deve merecer solução altamente conscienciosa, isenta, imparcial, só dependente da consideração de verdadeiro interesse nacional, neste caso aquilatado através do verdadeiro interesse da região que vier a ser escolhida.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Pretende-se uma solução justa que tome na devida conta todas as circunstâncias, todos os factores, todos os aspectos.

Há ainda que não perder de vista certas vantagens e especiais conveniências de ordem política, já que empreendimentos de tal envergadura, por não serem vulgares, e dadas as suas profundas e fecundas repercussões de carácter económico e social, fautorizam sempre um clima naturalmente propício à receptividade e expansão do ideário político do Estado Novo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A referida unidade será instalada no Norte do País, competindo aos serviços competentes do Ministério da Economia indicar o local que julgarem mais conveniente para essa instalação.

É, pois, o Governo que decidirá nesse aspecto.

E essa decisão envolverá um juízo de preferência sobre determinada zona, o qual só virá a ser formulado indubitàvelmente depois de muito estudo e de muita ponderação, já que o Governo tem de estar sempre postado naquele alto plano onde afloram, libertas de todo o condicionalismo, as eminências do interesse nacional, de que ele é, orgulhosa e permanentemente, submisso escravo!

O Sr. Rocha Cardoso: - E deve sê-lo sempre.

O Orador: - E tem-no sido.

Nesta ordem de ideias, e apenas no intuito de cumprir, aliás gratamente, com um dever de consciência imposto pelo honroso mandato que aqui me foi confiado, ouso chamar a atenção do Ministério da Eco-

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nomia, e em especial das Secretarias de Estado da Agricultura e da Indústria, para determinados factos que, embora do conhecimento geral, não poderão todavia ser esquecidos no momento em que aquela importantíssima decisão vier a ser tomada.

Como Deputado pelo distrito de Vila Real, um dos distritos do Norte do País, e portanto um dos possíveis contemplados pela escolha a fazer, desejo prestar assim o meu modesto contributo para a solução do problema posto, ciente sempre, como acima refiro, de que o bom senso e a justiça acabarão por imperar, sem margem a qualquer reparo ou censura.

Se bem que a escolha do local para a instalação da dita unidade industrial pertença ao Ministério da Economia, é evidente que tal escolha deverá confinar-se exclusivamente às regiões que disponham de boas condições para a cultura em grande de produtos hortícolas, pois são estes que constituem a principal matéria-prima da fábrica de desidratados.

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - Por outro lado, de entre as regiões que reunam os requisitos apontados hão-de naturalmente preferir aquelas em que a água for mais abundante e, de entre estas, ainda aquelas em que o aproveitamento da água estiver a ser feito da forma mais racional sob o ponto de vista técnico-agrícola.

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - Para a hipótese de haver duas ou mais regiões que tenham de ser consideradas no mesmo pé de igualdade adentro do condicionalismo apontado, parecerá então lógico atender a quaisquer especiais circunstâncias que onerem as respectivas conjunturas económico-sociais, sem esquecer os aspectos políticos que nelas se entremeiem expressivamente e por forma a tornar necessária e conveniente uma atenção ou prevenção cautelosa por quem de direito.

Ora, ponderados devidamente estes pontos e encaradas à luz de critérios puramente objectivos as cruciantes realidades que tais pontos sugerem, teremos de chegar à conclusão - e esta precisa de ser anunciada corajosamente - de que no Norte do País é a região de Chaves aquela que reúne as melhores condições para nela ser instalada a indústria de desidratados em causa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - E melhores condições, seja qual for o prisma sob que o problema deva ser encarado, até mesmo quando se ponha a questão de saber em que medida ou escala será possível verificar uma unanimidade de pontos de vista, ou mesmo uma comunhão entre os interesses estaduais e os particulares da empresa concessionária, caso a escol lia venha a recair na região apontada.

Na verdade, desde que é desejo da sociedade requerente organizar-se no Norte do País, sem formular qualquer exigência quanto ao local da instalação, que deixa inteiramente à livre escolha do Governo; desde que, dadas as especiais características da indústria a explorar, a dita sociedade terá, naturalmente, o maior interesse em que tal indústria se venha a fixar numa zona de grande ou médio regadio, sem que lhe importem, pelo menos de início, as actuais condições económicas e sociais aí imperantes; desde que, por outro lado, do empreendimento a levar a cabo hão-de, necessàriamente, resultar o fomento e o progresso económico da região eleita, com todas as subsequentes vantagens de ordem social, o que tudo sobremaneira interessa ao Estado, embora se venha a processar à margem dos verdadeiros fins, mediatos ou imediatos, a atingir pela empresa; desde que, de modo particular, à indústria em causa parece convir - como se revela no já citado memorial -, a formação de cooperativas de agricultores, e estas constituem decerto a aspiração-base, se não a realização-chave, de um racional ordenamento agrícola; desde que, e ainda, ao Estado há-de interessar, sem sombra de dúvida, que os efeitos acabados de apontar se produzam numa zona como a de Chaves, em que as causas da evolução económica e agrária se manifestam com notável persistência, a provocar eclosões cíclicas de crises mais ou menos graves, ...

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - ... por norma só remediáveis pela concessão de avultados subsídios, a rondar as dezenas de milhares de contos, o que,, constituindo solução de emergência e altamente antieconómica, jamais poderá interessar ao Estado como sistema a perfilhar; desde que tudo isto acontece, ressalta à evidência e de pleno se conjuga na região flaviense, o seu exemplo, com a impressionante realidade da sua economia em vias de desmoronamento completo, parece gritar bem alto que não é possível ser esquecido agora, no momento decisivo em que, por simples mas conscienciosa resolução, os seus angustiosos problemas de sempre podem ser definitivamente solucionados!

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: já em Janeiro passado tive oportunidade de afirmar, deste mesmo lugar, que a região flaviense, por virtude de um excepcional conjunto de circunstâncias que vem processando-se há largos anos e onde avulta e domina quase exclusivamente o problema da batata, está a atravessar a maior crise económica de toda a sua história.

E, modestamente, sem qualquer pretensão, que seria estulta, de formular juízos ou impor opiniões ex cathedra, sintetizei em sete pontos o programa de realizações que, a meu ver, poderiam contribuir para afastar o espectro da ruína económico-agrária e suas consequências no campo social dessa martirizada região.

Se nessa altura eu já tivesse conhecimento de que a Sper - a sociedade que venho referindo - pretendia instalar-se no Norte do País e em local a designar pelo Governo, tê-la-ia considerado, necessàriamente, como elemento fundamental a integrar no meu programa de sete pontos para a valorização e recuperação económica, agrária, social e educacional da mesma região.

E teria então sugerido que:

a) Executado o emparcelamento da veiga de Chaves;
b) Realizado um vasto plano de melhoramentos fundiários, a tomar em consideração e, assim, a emprestar verdadeiro sentido e real utilidade à obra de irrigação dessa veiga, já concluída;
c) Afectada toda a área emparcelada, melhorada e irrigada, à cultura racional e intensiva de produtos hortícolas;

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d) Constituída uma ou mais cooperativas dos agricultores interessados, a que não devessem faltar secções de maquinaria agrícola providas do material indispensável e apto a cumprir as solicitações de uma técnica agrícola evoluída;
e) Construídos, na dependência dessas cooperativas, grandes silos e armazéns nos locais mais aconselháveis; e
f) Melhorada e aumentada a produção e comercializados os respectivos produtos e subprodutos, com a adopção de técnicas adequadas e a aquisição de unidades de transporte em número adaptado às exigências da exploração agrícola,

só restaria solicitar do Governo que não ignorasse a magnífica obra realizada, e antes garantisse a sua frutuosa continuidade com a justíssima escolha da região de Chaves para nela ser instalada a indústria de desidratados da Sper.
Ora, a solução não pode ser diferente pelo facto de a veiga de Chaves não estar ainda emparcelada, nem toda afecta à cultura de produtos hortícolas, nem dotada de outros melhoramentos fundiários além da obra de rega, nem de dispor de uma vasta e eficiente organização cooperativa.
Pelo contrário: desde que existe a certeza de que a instalação da referida unidade industrial há-de facilitar o rápido surgir dos extraordinários benefícios apontados, o Governo parece ficar colocado na obrigação, maior ainda, de atender de pronto o ingente e aflitivo pedido que, por meu intermédio, lhe dirigem todos os abnegados e sempre lealíssimos agricultores da região de Chaves, que de há muitos anos a esta parte vêm sendo pertinazmente batidos pela adversidade, mas sem que algum dia lhes tenha esmorecido a esperança de ver atendidas as suas justas aspirações pelos homens com a responsabilidade do mando.
Junto, desta forma, e animado de vivo entusiasmo, os meus esforços aos já realizados, paralelamente, pelo Exmo. Sr. Governador Civil do Distrito de Vila Real, Sr. Dr. Manuel dos Santos Carvalho, a quem presto daqui as mais rendidas homenagens pelo elevado sentido de oportunidade, adequação, firmeza e justiça que vem imprimindo, inteligentemente, à governação do seu distrito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: -E termino, Sr. Presidente, renovando o meu apelo veemente ao Governo, e através das Secretarias de Estado da Agricultura e da Indústria, para que a instalação da indústria de desidratados no Norte tio País, requerida - e suponho que já autorizada - pela Sper - Sociedade de Intercâmbio Comercial e Industrial, Ltd., venha a ser feita na região de Chaves, a interessar toda a sua vasta, ubérrima e já irrigada veiga, excepcionalmente apta para u cultura de produtos hortícolas, que constituem a matéria-prima básica da mencionada indústria, e, portanto, a oferecer a esta as mais vastas possibilidades de êxito total.

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

O Orador: -O Governo tem agora ocasião, talvez a única realmente séria que se lhe proporcionou no decurso dos últimos 30 anos, de demonstrar a um vasto

sector da população do distrito de Tila Real, e mais concretamente às populações dos concelhos de Chaves e limítrofes, que a má sorte que as tem perseguido nas coisas agrícolas, e consequentemente nas coisas comerciais, financeiras económicas, sociais etc.-, sempre foi motivo de fortes preocupações para os dirigentes da E evolução Nacional, que, por isso mesmo, não podem ficar agora insensíveis à pretensão formulada, nem deixar de realizar a justiça que representa o seu deferimento sem reservas, já que esse acto consubstanciará a solução óptima, de há tanto ansiosamente aguardada, para os crónicos, difíceis e até a data insolúveis problemas de ordem económica, social e agrária que atormentam, asfixiam e esmagam uma das mais belas, mas também uma das mais duramente experimentadas, regiões do País: a região de Chaves.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se a

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continuam em discussão na generalidade as propostas de lei relativas à reforma da previdência social e ao Estatuto da Saúde e Assistência, que constituem a primeira parte da ordem do dia.
Tem a palavra a Sr. Deputada D. Maria Irene Leite da Costa.

A Sr.ª D. Maria Irene Leite da Costa: - Sr. Presidente: ao subir pela primeira vez, durante a presente legislatura, a esta tribuna quero que as minhas palavras sejam, antes de tudo, de saudação para V. Exa.
Se nos quatro anos de convívio e de participação conjunta nos trabalhos da Assembleia, na legislatura anterior, me foi possível apreciar em V. Exa., mais do que o leader, o parlamentar experimentado sempre pronto a guiar e orientar os passos hesitantes de quem, como eu, chegava pela primeira vez, hoje, na alta posição que V. Exa. ocupa nesta Câmara, não posso deixar de manifestar-lhe a minha admiração pela maneira elevada, digna e prestigiosa como tem sabido conduzir os trabalhos parlamentares.
Sr. Presidente: o Estatuto da Saúde e Assistência, em discussão, constitui diploma de alta importância para a Nação. Tem por isso de ser analisado com pormenor, ponderadas com escrupulosa minúcia as bases a que hão-de obedecer as actividades referentes a este largo sector da vida nacional.

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

A Oradora: - E uma discussão para especialistas, que abrange aspectos os mais diversos da técnica, da ciência, da sociologia, da administração, etc.
Por isso, o estudo e a resolução dos referidos problemas exigem hoje a colaboração de entidades as mais diversas, um trabalho de conjunto que vai até aos próprios fundamentos da organização social.
Dentro desta doutrina, sinto-me à vontade ao trazer o meu contributo para a discussão do diploma citado, ocupando-me de alguns aspectos que melhor conheço dentro do sector assistencial.

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Devo afirmar desde já que a proposta do Governo me merece os mais rasgados elogios; seja-me, por isso, permitido endereçar desta tribuna ao Sr. Ministro da Saúde as mais sinceras felicitações e encómios pelo critério esclarecido e pelo espírito elevado que presidiu à elaboração da proposta de lei.
Sr. Presidente: a política social em que o Estado se encontra empenhado tem como problemas fundamentais a promoção da saúde, a luta contra a doença e a miséria, visto que da resolução destes problemas depende, em grande parte, como é. sobejamente conhecido, a melhoria das condições de vida do homem, o progresso e o desenvolvimento do País.
O Estatuto da Saúde e Assistência agora em discussão considera, e muito bem, em primeiro lugar a pessoa humana, a sua natureza unitária e a necessidade de agir com respeito pelas suas virtudes naturais. Neste aspecto a doutrina contida na base II da proposta do Governo merece-me rusgado apoio, pois nunca será de mais acentuar o respeito que se deve ter pelo indivíduo.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: -Como não podia deixar de ser, é dado lugar de relevo à família, pois é através dela que o homem se integra na comunidade social. Da solidez, da harmonia, da formação moral e do desafogo da família dependem, essencialmente, a paz social e o progresso do País.
Um dos pontos que, a meu ver, marca um aspecto progressivo no Estatuto da Saúde e Assistência é a preferência dada às actividades preventivas e recuperadoras em relação às meramente curativas.
O primeiro lugar no campo da saúde e da assistência compete ao Estado, o que é lógico, embora deixando ampla margem à iniciativa particular e às instituições de caridade, cuja acção deverá ser integrada em planos de conjunto.
Os necessitados constituem legião enorme, em que se encontram os casos mais diversos. Aos doentes e diminuídos físicos juntam-se os doentes mentais, os desadaptados, etc.
O número crescente destes últimos representa hoje um problema inquietante, não só para os higienistas, como para os sociólogos e os governantes de todos os países.
Prevenir e evitar a génese das perturbações mentais e de conduta tornou-se, sem dúvida, problema de maior amplitude e transcendência do que tratar e curar os casos caracterizados das referidas alterações.
Se, como já afirmei aqui, aos doentes internados nos hospitais psiquiátricos se juntarem os numerosos casos de doentes mentais em liberdade, psicopatas, neurasténicos, débeis mentais e morais, etc., ver-se-á que o seu número ultrapassa, talvez, o de todos os outros doentes reunidos.
O domínio da saúde mental reveste-se de tal importância que deverá ser objecto de uma lei especial, cujo projecto está em estudo na Gamara Corporativa.
Nessa lei, como não podia deixar de ser, é dada larga atenção à higiene mental infantil.
Verifico com satisfação que no Estatuto da Saúde e Assistência proposto pelo Governo este assunto foi devidamente considerado.
No meu entender, este diploma marca um avanço quando reconhece a necessidade da reabilitação dos deficientes mentais e físicos e dos desadaptados psíquicos e sociais.
A política de saúde e assistência tem de orientar-se, como é óbvio, no sentido de criar condições de trabalho como base de sustentação dos diminuídos e elemento da sua dignificação.
Aprovo, por isso, inteiramente a base XLIII proposta pelo Governo, em que se diz que este «publicará a legislação necessária para permitir aos indivíduos com capacidades física diminuída, mas devidamente recuperados ou reabilitados, o exercício das profissões adequadas às suas possibilidades de trabalho».
E julgo mesmo que no n.º 2 da mesma base se deverá ir mais longe. Onde se diz: «... poderá ser desde já condicionado o direito de admissão de pessoal, em empregos susceptíveis de serem eficientemente desempenhados por indivíduos com capacidade diminuída», deverá dizer-se: s... deve ser desde já ...».
Há indivíduos que pelo facto de serem diminuídos, quer física, quer psiquicamente, não são necessariamente incapazes de realizar certas tarefas; por vezes realizam-nas até melhor do que outros indivíduos mais bem dotados.
Ninguém hoje ignora que os deficientes mentais e tísicos e os desadaptados psíquicos e sociais, quando convenientemente recuperados, são, na maior parte dos casos, capazes de uma actuação social útil e equilibrada.
É desde a infância que se manifestam as atitudes falsas e viciosas. Daí resulta que a acção profiláctica e terapêutica, para ser eficaz, deve iniciar-se logo desde os primeiros :mos ... se não puder ser antes, sobre os pais.
No dia em que pudermos assegurar conveniente educação às crianças deficientes, quer física, quer psiquicamente, teremos conseguido grande diminuição de elementos inúteis ou prejudiciais à sociedade (vadios, mendigos, delinquentes, etc.).
O indivíduo normal, equilibrado, com educação melhor ou pior, encontra em si as possibilidades de vir a triunfar na vida. Porém, o diminuído será implacavelmente cilindrado, atirado para a ociosidade, o vício, o crime, se não receber preparação adequada, ajuda conveniente.
Os problemas da mendicidade e da vadiagem não suo apenas assuntos de polícia.
São, em grande parte, problemas de educação e de recuperação. Como é sabido, a maioria dos indivíduos em tais condições é constituída por diminuídos física ou psiquicamente.
E preciso lutar contra os profissionais da assistência. Há, sem dúvida, os que não trabalham porque não querem. Mas há também os que não trabalham porque ninguém os ensinou a trabalhar ou não foram capazes de encontrar onde trabalhar.

O Sr. Jorge Correia: - Muito bem!

A Oradora: - Por isso, os n.ºs 2 e 3 da base II e as bases XIII e XLIII da proposta do Governo merecem todo o meu aplauso, pois duo satisfação completa ao que poderia ser pedido è aconselhado pelos especialistas na matéria.
Só me resta desejar que, uma ver, aprovadas, em breve sejam regulamentadas e postas um execução.
Permita-se-me que recorde aqui algumas passagens de um artigo que escrevi há mais de uma dúzia de anos, referindo-me à orientação profissional dos deficientes:
« Se é verdade que a má escolha da profissão pode conduzir a estados de grave desequilíbrio psicológico, não

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é menos verdade que o trabalho convenientemente escolhido pode ser óptimo meio de educação e readaptação.
A instabilidade profissional anda intimamente ligada à delinquência e aos desequilíbrios mentais. A falta de êxito na escola e na oficina, a incompatibilidade entre as aptidões naturais e o trabalho que o indivíduo p obrigado a executar, a mudança constante de emprego e de ocupação, a romagem trágica de profissão, depressa conduzem à vadiagem e ao crime.
A actividade profissional que não se amolde nem aos gostos nem às aptidões é, quase sempre, origem de perturbações psíquicas graves, provocando dessoramento e nervosismo, desinteresse e instabilidade, criando um estado cujas consequências podem ser trágicas. Não faltariam exemplos para o ilustrar.
A escolha da profissão é, frequentemente, filha do acuso; ora resulta da imposição da família, ora nasce da influência de qualquer sedutora miragem que. mais impressionou o indivíduo.
O problema do trabalho dos diminuídos, quer física, quer psiquicamente, assume excepcional importância, pelas consequências sociais que daí podem resultar.
A orientação profissional não é ciência que se aplique somente nos mais bem dotados. Procura, antes, o modo de obter o máximo rendimento, dentro da capacidade de cada um, de todos os indivíduos, qualquer que seja a sua inteligência ou nível mental.
Desde as ocupações agrícolas a trabalhos que exigem já certos dotes artísticos, todos podem ser executados por indivíduos intelectualmente deficientes, desde que recebam conveniente educação e que cada um não execute mais do que dada tarefa.
Deixar os deficientes, quer físicos, quer psíquicos, entregues a si, ou metê-los em asilos ou escolas, sem o fim imediato de educação profissional que compete a cada caso é quase o mesmo.
E bem sabido que os indivíduos nestas condições, especialmente aqueles cuja deficiência não é muito acentuada, abandonados, falhos de ocupação, se transformam rapidamente em elementos perigosos para a sociedade.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - Tornam-se associais e logo entram na senda do crime o da perversão.
A educação profissional livrá-los-á, portanto, da degradação, evitando crimes, tornando úteis indivíduos que, de outro modo, mais cedo ou mais tarde iriam cair nas mãos da polícia, pejar as cadeias.
A inteligência não é o único factor a considerar no progresso dos povos. Sem o trabalho persistente, cuidadoso, todos os dias igual, dos mais humildes e dos menos dotados, mui seria das nações. E os próprios débeis mentais quantas vezes não suplantam em bondade, em dedicação, em beleza moral, os inteligentes, os bem dotados.
A protecção e a orientação conveniente dos diminuídos, quer física, quer psiquicamente, é, por isso, missão importante de que os Poderes Públicos não podem desinteressar-se. Qualquer educação escolar que lhes seja ministrada deverá ter sempre em vista o destino profissional. Feita a despistagem, medidas as poucas aptidões de que o indivíduo dispõe, escolhido o trabalho que ele mais facilmente poderá executar, será no sentido dessa profissão que todo o ensino e toda a educação terão de ser dirigidos.
É indiscutível a necessidade de preencher a existência dos indivíduos diminuídos, quer física, quer psiquicamente, com trabalho próprio, não só para os libertar de viverem de esmolas, quer sejam da caridade pública, quer sejam das instituições do Estado, como para evitar que caiam em maior degradação; pela fácil sugestionabilidade e quase ausência de resistência moral. O ensino dos deficientes tem de sei, sobretudo, orientado no sentido da sua adaptação social.
Feita a aprendizagem, terá a própria escola de velar pela colocação do indivíduo, não se desinteressar nunca dele, o qual disporá, assim, de liberdade vigiada. Se, por virtude de acentuada deficiência, tal não é possível, ficará em instituições próprias onde trabalhe e produza, sem, portanto, sobrecarregar o Estado.
Nunca o atrasado mental deve ser abandonado ao destino do acaso. Pô-lo na escola ou interná-lo num asilo e deixá-lo mais tarde sozinho, entregue a si, é atirá-lo para uma luta que, de antemão, se sabe que lhe será fatal. O deficiente tem de sei constantemente encorajado, aconchegado, protegido.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - Nunca será de mais repeti-lo. E necessário olhar com redobrada atenção para o problema dos deficientes mentais, estreitamente ligado com a criminologia. Urge resolver de maneira larga, com objectividade e conhecimento, tão importante questão, que permitirá recuperar para a sociedade um número assaz elevado de indivíduos.
O dispêndio há-de ser, sem dúvida,, grande, mas a magnitude e a importância social da assistência aos deficientes justificam-se plenamente.
A compensação aparecerá como consequência lógica da obra empreendida, não só por tornar útil grande número de indivíduos menos aptos, mas, sobretudo, por evitar que caiam na miséria e na, degradação».
Sr. Presidente: felizmente u resolução do problema começa agora a ser encarada com decisão. A proposta de lei em discussão é disso a melhor prova.
Todavia, não se compreende qual a razão por que na base XI do texto da Câmara Corporativa foi eliminada, ao tratar da recuperação dos deficientes, a expressão «orientação profissional». Sei que pode argumentar-se que a orientação profissional está compreendida na recuperação. Apesar disso, em meu entender, aquela expressão foi bem escolhida e utilizada na proposta do Governo. Deverá, portanto, ser mantida.
Outro ponto do Estatuto da Saúde e Assistência a que dou a minha inteira concordância é a base XXIX da proposta do Governo, em que se diz: «A preparação e o treino do pessoal, quando este carecer de habilitações especiais para o exercício das actividades consideradas neste diploma, far-se-á: ... b) Em escolas ou cursos apropriados para o pessoal de administração, de enfermagem, de serviços educativos e recuperadores e de outros serviços técnicos de saúde e assistência».
De facto, para poder dar realização eficiente à base XIII toma-se necessário dispor de pessoal especializado capaz de poder pôr em execução com êxito a doutrina nela contida.
Causa-me, por isso, muita satisfação ver num texto legal a necessidade da existência de pessoal educativo convenientemente preparado para o trabalho de educação e recuperação das crianças confiadas aos serviços da assistência.

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Por várias vexes chamámos a atenção das entidades responsáveis para este aspecto do problema (por exemplo, no trabalho apresentado no IV Congresso Internacional de Psiquiatria Infantil; igualmente foi ventilado o assunto em trabalho colectivo elaborado pelos técnicos do Instituto António Aurélio da Gosta Ferreira).
O recrutamento do pessoal que deve ocupar-se das crianças em internato constitui, sem dúvida, uma das maiores dificuldades que encontram as instituições terapêuticas para as crianças diminuídas.
Todos os que lidam de perto com os problemas da educação ou da reeducação de crianças conhecem u dificuldade do recrutamento de pessoal de vigilância idóneo, convenientemente preparado e adaptado a finalidade em vista.
A questão da selecção e da preparação que deve ser exigida a este pessoal tem de ser estudada e regulamentada com muito cuidado.
Deve dizer-se que já há serviços, como os da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que dispõem de educadoras convenientemente preparadas em escolas especiais, embora estas sejam por enquanto apenas de iniciativa particular.
E já agora deixem-me dizer que a preocupação com o pessoal de vigilância deverá abranger não só o que só destina às casas de reeducação e assistência infantil, mas também o dos estabelecimentos oficiais e particulares de ensino, sobretudo quanto às pessoas que mais demoradamente contactam com as crianças.
Que provas de competência e tacto pedagógico, que preparação se exige aos candidatos a tais lugares? No geral, procura-se, apenas, que saibam manter o respeito, que saibam impor-se. Todavia, que enorme influência essas pessoas podem ter pela sua actuação na conduta futura do indivíduo!
Sr. Presidente: não posso, igualmente, deixar de dar o meu apoio a base XV da proposta do Governo quando diz que «no desenvolvimento das actividades previstas nas bases anteriores deve ter particular relevo o serviço social, geral ou especializado, quer individual e familiar, quer de grupo ou de comunidade».
Julgo, todavia, em relação com as considerações feitas a propósito do pessoal educativo e de recuperação, que nesta base se deveria acrescentar: «Deve dar-se particular relevo às actividades de recuperação, pela educação especializada e ...».
Conforme disse anteriormente, o diploma em discussão, na parte que se refere aos deficientes, não terá execução capaz enquanto não dispusermos de pessoal suficientemente habilitado e especializado.
Deve dizer-se, todavia, que o Puis dispõe de instituição idónea para a função a que aludo. O Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, verdadeiro centro de pedagogia curativa, integrado no Ministério da Educação Nacional, possui funções vincadamente psicopedagógicas, de formação de pessoal docente e técnico para satisfazer às necessidades deste ensino.
Decreto recente separou do Instituto António Aurélio da Gosta Ferreira o Dispensário de Higiene Mental Infantil da Zona Sul, que passou a estar integrado no Instituto de Assistência Psiquiátrica, do Ministério da Saúde e Assistência, e ao qual compete:
a) Observar e tratar as crianças e adolescentes da referida zona portadores de anomalias mentais e que por isso necessitem de assistência, tratamento, vigilância ou reeducação;
b) Promover a criação de instituições e estabelecimentos destinados a preencher essas finalidades;
c) Colaborar e prestar auxílio em base de reciprocidade com os serviços jurisdicionais de menores e outros estabelecimentos- oficiais ou particulares, a fim. de se efectivarem as medidas mais convenientes para o tratamento e recuperação social dos menores psicopatas.

Liberto da responsabilidade assistencial, o Instituto António Aurélio da Costa Ferreira continua a ter por funções, além de investigação científica no campo psicopedagógico e médico-social, a preparação de professores e outro pessoal docente e técnico para a educação dos deficientes, a observação psíquica de menores que frequentam qualquer estabelecimento de ensino pertencente ao Ministério da Educação Nacional e a orientação das classes especiais pertencentes ao mesmo Ministério.
Durante os últimos vinte anos este Instituto tem desempenhado papel importante. Desde 1941 foram observadas 18 775 crianças nos seus serviços.
Infelizmente o Instituto pouco mais podia fazer do que o diagnóstico, porquanto a maior parte das instituições que deveriam dar seguimento aos casos observados nunca foram criadas.
A solução encontrada agora é, sem dúvida, a melhor. O Instituto fira assim fundamentalmente com funções psicopedagógicas e de investigação, passando os problemas assistenciais para o Ministério da Saúde.
Sr. Presidente: a proposta do Governo merece-me, ainda, outra referência, que é a da esperança que nos deixa antever de a assistência médica se estender, uma vez o estatuto em execução, às populações rurais do País, ainda tão desprotegidas e abandonadas.
E preciso não esquecer que três milhões e meio de portugueses vivem nos meios rurais, carecidos de protecção sanitária e assistencial. O que se tem feito a favor dessas populações é na maior parte dos casos insuficiente e descoordenado.
Ë ocioso acentuar que um diploma da natureza u amplitude do Estatuto da Saúde e Assistência que estamos a analisar vale apenas na medida em que lhe for dada execução.
Existe, evidentemente, para além dos problemas técnico-científico, o problema financeiro.
O assunto é, todavia, daqueles cuja resolução não admite delongas.
Ao dar-lhe a minha aprovação nu generalidade, não quero deixar de formular os meus sinceros votos de que o Governo encontre os meios necessários para que este diploma tenha imediata e total realização prática.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A oradora foi muito cumprimentada.

O Sr. Melo Adrião: - Sr. Presidente: na época em que vivemos, tão rica em contradições, não é a menos flagrante o conceito de doenças profissionais.
Elevam-se os recursos técnicos, aperfeiçoam-se sistemas económicos, em utilização mais extensa dos meios que a Natureza nos coloca à disposição; mas, ao mesmo tempo, aumentam os factores agressivos à saúde do trabalhador, de tal forma que obrigam a- um sistema de previdência especial.
Desde as afecções do âmbito psiquiátrico até às doenças chamadas degenerativas, podemos dizer que o ho-

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mem que trabalha, como consequência das condições da sua actividade, sente perigosamente abalado o equilíbrio do seu organismo.
E se todas as soluções de aspectos a encarar são de importância bem definida, a todos supera a prevenção da doença.
Não se duvida de que, moral, humanamente, todos os esforços, todas as tentativas ou sugestões são de considerar atentamente no sentido de eliminar as doenças profissionais do quadro nosológico.
E assim se evidencia fundamentalmente um aspecto biológico médico que implica investigação cuidadosa e profunda.
Podemos dividir as doenças profissionais em dois grandes grupos: as que dependem de reacção específica do organismo e as que são a consequência da acção directa de agentes determinantes de doença e inerentes ao próprio meio onde o trabalhador exerce a sua actividade. Será, no primeiro caso, a doença-tipo, a alergia; no segundo, a silicose.
A alergia deve ser descoberta pelas provas necessárias, de maneira sistemática; ao operário em condições de reacção positiva será tentada a dessensibilização; se mantiver o seu estado reaccional particular, ser-lhe-á impedido o exercício da actividade determinante do fenómeno mórbido.
Pode, porém, a sensibilização manifestar-se a prazo mais ou menos longo; este caso deverá ser resolvido e encarado como acidente de trabalho.
Nas afecções do tipo silicose apenas o isolamento perfeito do operário, em relação ao ambiente carregado de partículas agressivas, pode ser eficiente.
Na realidade, todos os meios utilizados até hoje para diminuir a quantidade de poeira silinética apenas eventualmente conseguem produzir baixa inferior à concentração considerada perigosa.
Julgo que se poderá evitar esta terrível doença profissional, a silicose pulmonar, que abrange milhares de homens, votados inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo, a uma incapacidade de trabalho.
Com efeito, pela respiração em circuito fechado, processo empregado na anestesia geral por inalação e também utilizado pelos trabalhadores em imersão, a protecção contra as poeiras seria perfeita.
A questão técnica não deve apresentar dificuldades; é necessário apenas um equipamento estanque e de peso e volume compatíveis com o trabalho físico necessário.
Não nos esqueçamos do dever absoluto de resolver a situação, e é com veemência que faço o meu apelo, de dezenas de milhares de homens que poderão ser poupados a uma doença inexorável, irreversível, e que prepara o terreno para o desenvolvimento em formas graves da tuberculose.
Mais uma vez se determina que os problemas da saúde e assistência, tão profunda e proficientemente estudados nos planos económicos e sociais, têm de ser acompanhados por investigação e orientação especializadas, em conceitos médicos, humanos, dirigidos a casos individuais, porventura com solução imediata e eficaz dentro das possibilidades, previamente estudadas, do núcleo restrito de profissionais de medicina existentes no nosso país.
Muito se afirma a unidade do ser humano e a sua alta dignidade, mas pouco se baseia ulteriormente neste conceito; asseguremos que o Homem possui na sua individualidade valores naturais, mas mais para além, valores sobrenaturais, que nos tornam irmãos em Cristo, com a noção absoluta e insofismável de que é proibitivo sujeitá-lo a condições às quais não quereríamos ser submetidos.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Veiga de Macedo: - Sr. Presidente: como previ na última intervenção, reputo necessário prosseguir no exame das propostas de lei relativas à reforma da previdência social e ao Estatuto da Saúde e Assistência.
Desta vez, porei o acento tónico em certos aspectos doutrinários e políticos, o que, porventura, se coadunará mais com a índole desta Câmara e com a projecção actual e futura dos dois importantes documentos em debate.
É notório que as propostas reflectem tendências diversas, aliás de há muito em confronto adentro dos quadros da nossa política social. Não se ousará dizer que do facto advieram graves prejuízos para a elaboração e aplicação dos programas sociais do Governo, mas todos hão-de convir na necessidade de definir agora um rumo certo de orientação, já que as organizações dos seguros obrigatórios e as da saúde pública e assistência podem e devem coexistir, no respeito mútuo pelas suas funções específicas, e cooperar, em pé de igualdade e em perfeito entendimento, na realização dos seus objectivos sociais.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A esta Assembleia incumbe uma tarefa tão honrosa como delicada e aos seus Deputados uma responsabilidade especial, a que todos, como é norma do seu proceder, estão a votar-se com vivo empenho e objectividade.
Pois é neste mesmo espírito que me debruçarei de novo sobre questões para as quais nos cabe encontrar, através da definição da norma jurídica adequada, soluções satisfatórias.
Começarei por enunciar os princípios essenciais da proposta de lei sobre a previdência e por me referir a algumas das técnicas de acção social que se pretende ver legalmente consagradas.
Princípio institucionalista. - É nítida na proposta de lei a preocupação de manter todo o regime da previdência assente e estruturado em instituições autónomas, dirigidas pelos interessados, embora sob a orientação superior do Estado. A experiência até agora realizada neste sentido tem sido frutuosa. Haveria que prosseguir nela, em obediência aos postulados doutrinários da nossa lei fundamental, o mesmo é dizer, em obediência a razões profundas ligadas quer aos limites impostos por natureza à intervenção do Estado, quer à necessidade iniludível de os interessados participarem activamente na direcção dos organismos que visam à sua protecção social.
Certas experiências socialistas levadas a cabo lá fora têm seduzido entre nós alguns espíritos e influenciado mesmo diversas providências de carácter oficial ou oficializado. Por vezes ter-se-á esquecido, na verdade, a nossa concepção corporativa, o que, além de incongruente, é sobremaneira perigoso. Já disse algures: há muitos que só receiam os excessos do intervencionismo no terreno da economia. Por mim, continuo a temer mais as soluções totalitárias no campo da acção social - até porque aqui nem sequer se regista, a contrariar

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ou a amortecer as tendências estatizantes, a espontânea reacção que sempre surge quando se atenta contra os legítimos interesses da propriedade e do capital.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Método do seguro social obrigatório. - No notável parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de lei de que derivou o Estatuto da Assistência Social em vigor, afirmou-se: «A previdência é a fórmula da justiça que o trabalhador reclama. Só ela fará com que a solução das dificuldades a que todos, por humana fraqueza, estamos sujeitos se torne, para aqueles que ganham um salário insuficiente ou estejam impedidos de granjeá-lo, certeza resultante do exercício de um direito conquistado pelo trabalho, em vez de hipotético deferimento de uma súplica atendida por favor».
Noutro passo do mesmo parecer, de que foi proficientíssimo relator o Doutor Marcelo Caetano, diz-se que «algumas necessidades do País em matéria de assistência não devem ser objecto da assistência social senão transitoriamente, ao menos em parte. Trata-se de riscos a que todo o homem está sujeito em dadas circunstâncias de meio social e profissão e que, portanto, devem ser cobertos pela técnica do seguro. Mas, como esses riscos são corridos por um trabalhador - e não é justo que só ele suporte os seus encargos quando toda a sociedade beneficia do seu trabalho e lhe deve solidariedade e apoio -, o seguro não só é obrigatório, como é custeado por um prémio, cuja importância é paga em parte pelo patrão, em parte pelo segurado e, em certos sistemas, ainda em parte pelo Estado. Evitam-se assim as repercussões sociais dos danos individuais e o remédio de um socorro dado por esmola, nem sequer oportunamente, a quem tem direito, como homem e trabalhador, a encarar com segurança as contingências naturais da vida. O desemprego, a invalidez, a velhice, a doença, os acidentes no trabalho - continua o mesmo parecer -, são riscos que devem estar cobertos pela previdência social».
Já em 31 de Março de 1943, o Dr. Trigo de Negreiros, então Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, afirmava: «Há uma diferença fundamental entre a esmola que se dá e o subsídio ou pensão que se concede ... A assistência socorre o necessitado, mas não evita o estado de necessidade. Na medida em que enfraquece o sentimento da caridade e cresce o egoísmo, torna-se necessário obrigar o homem a socorrer os seus irmãos pobres e necessitados; mas o remédio para as calamidades que atingem os que vivem exclusivamente do seu salário só pode ser dado pela previdência, que supõe fundamentalmente a solidariedade, o espírito de sacrifício e o auxílio mútuo».
Foram estas ideias que levaram, e bem, a que no actual Estatuto da Assistência (Lei n.º 1998, de 15 de Maio de 1944), base VI, n.º 2, se dispusesse: «As actividades de assistência serão exercidas em coordenação com as da previdência, por forma a favorecer o desenvolvimento desta».
Este princípio é verdadeiramente fulcral e, por isso, importa que seja de novo consagrado de modo expresso, a fim de se evitarem dúvidas e confusões e de se não congestionar o Estado com encargos e responsabilidades que lhe não cabem directamente e que, a serem-lhe atribuídos, o colocariam em posição de não fazer obra útil.
De modo especial neste campo, importa manter, na pureza com que foi definido no Estatuto da Assistência Social em vigor, o conceito da, supletividade da acção do Estudo e ainda o da subsidiariedade da assistência perante a previdência.
Na remodelação da previdência, atendeu-se em tudo a esta ideia básica, no plano doutrinal e no terreno prático. Rumo diferente comprometeria uma política de sentido corporativo e de genuína ascensão social, e ameaçaria de morte as instituições de previdência, «quanto à ordenação dos seus serviços, à continuidade e linha de evolução dos seus esquemas de prestações, à segurança dos seus compromissos e à autonomia específica da sua organização».
Protecção familiar. - Não pode dizer-se que o tradicional regime da nossa previdência tenha base e sentido individualistas. Mas é certo que as prestações de previdência, sobretudo por motivos de ordem técnica e financeira, se destinavam, em muitos casos, à protecção directa do beneficiário contribuinte das caixas.
Tornava-se mister conferir à previdência e às suas prestações uma orientação tendente a assegurar a defesa não apenas do trabalhador, mas também do seu agregado familiar. Como já aqui foi dito, este critério geral vem sendo aplicado nos últimos anos, porque esse é o espírito da reforma em apreciação e por se haver confiado em que esta viria a ser aprovada, ao menos nas suas linhas fundamentais.
Com efeito, a projectada remodelação há-de permitir mais eficiente defesa da família, mais vasta protecção à mãe e à criança e o desenvolvimento ou a criação de modalidades de auxílio no domínio da habitação e das férias e nas do serviço social, educação familiar e infantil, e acesso à cultura.
Tudo está, agora, em que se deixe a previdência caminhar em frente e que, em vez de contrariada, como tantas vezes tem acontecido, seja estimulada por todos e, em especial, por aqueles que têm qualquer parcela de responsabilidade ligada à política social.
Princípio da solidariedade. - A previdência é, por definição, um sistema de solidariedade social. Todos os que ela abrange contribuem para que possa cumprir a sua alta missão. Mas os benefícios individualmente recebidos nem sempre estão em correspondência com as contribuições pagas por cada um, porque, a sua concessão só se efectiva quando se verificam determinados riscos ou circunstâncias.
Estamos, na verdade, muito longe, felizmente, do tipo de seguro individual, e cada vez se faz sentir mais a necessidade de abranger na previdência toda a população trabalhadora, de modo que da contribuição de todos resulte a atenuação do sacrifício que a cada um se pede e aumente a protecção, social, de maneira particular para os economicamente débeis.
A ideia, da compensação de encargos tem vigorado no campo do abono de família e no da acção médico-social. Pela nova reforma, amplia-se a aplicação deste princípio, imprescindível a melhor distribuição de rendimentos. Atribui-se, com efeito, à projectada Federação de Caixas a função de compensação de encargos em tudo o que se refere ao seguros de doença, maternidade e tuberculose, e, portanto, também à concessão de subsídios. Por outro lado, a adopção de um regime financeiro de capitalização mitigada e a criação de uma Caixa Nacional de Pensões permitirão a compensação financeira generalizada no plano da protecção aos inválidos e aos velhos e que importâncias substanciais, até agora afectas a estes seguros, possam ser utilizadas na melhoria da assistência e da acção médico-social.

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Este é, porventura, o passo mais decisivo agora dado. Terá, certamente, a incompreensão de um ou outro sector profissional ou comunidade de trabalho de nível económico superior no padrão médio dos trabalhadores portugueses. Vão surgir, por isso, alguns protestos, de inspiração e de intenção idênticas às dos que se registaram quando se pretendeu dar execução, em toda a latitude, ao princípio da compensação no regime de abono de família.
Há que lutar contra este tipo de egoísmo, contrário ao espírito de solidariedade que deve prevalecer em todo o mundo do trabalho, tanto mais que os beneficiários de nível económico superior não são afectados nos seus direitos adquiridos e ficam mais cobertos contra os riscos da desvalorização monetária.
De resto, a projectada remodelação não é de feição socializante, já porque a previdência se realiza através de instituições autónomas, já porque em regra os benefícios serão concedidos em função das contribuições que incidiram sobre os ordenados ou salários, já porque, para além do esquema mínimo de prestações, as caixas regionais, profissionais ou de empresas poderão propor-se adoptar melhoria nas modalidades de protecção ou mesmo a criação de novas formas de segurança social. E neste domínio, claro está, não entrará em funcionamento, porque seria menos justo, o mecanismo da compensação financeira.
Coordenação. - A proposta de lei em discussão é concebida ainda no propósito de se criarem condições para mais perfeita coordenação dos serviços da previdência entre si e com os órgãos da saúde e da assistência.

O Sr. Jorge Correia: - Muito bem!

O Orador: - Os problemas da coordenação são sempre muito delicados, e parece que a conjugação de esforços entre as diversas actividades sociais dependentes de mais de um Ministério só poderá alcançar-se quando as instituições e serviços ligados a qualquer sector público estejam organizados e funcionem em pleno entendimento e sem desdobramentos inúteis.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quer dizer: primeiro, ordem e ligação dentro de cada sector; depois, e só depois, estabelecimento, em plano intersectorial, de um sistema de coordenação.
Esta tarefa foi levada o cabo, quase integralmente, no Ministério das Corporações e Previdência Social, e sabe-se que idêntico esforço se fez no da Saúde e Assistência, a avaliar por estas esclarecidas palavras, proferidas em 6 de Dezembro de 1958 pelo Sr. Ministro da Saúde e Assistência: «Considera-se indispensável e urgente pôr termo, dentro do próprio Ministério, às duplicações assistenciais existentes: Portugal não é suficientemente rico para poder pagar a assistência pelo preço que lhe está a custar, em consequência dessas duplicações».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quanto ao problema da coordenação geral, a proposta de lei sobre a previdência não o deveria nem o poderia abordar. No entanto, abre novas e seguras perspectivas a uma coordenação eficaz, mas não à subordinação das instituições de previdência a departamentos oficiais sem atribuições no domínio dos seguros sociais obrigatórios.
São elucidativas estas palavras do preâmbulo da proposta de lei referente à projectada reforma: «As instituições de previdência, no desempenho dos seus fins estatutários, asseguram prestações que, de facto, se não distinguem de muitas das concedidas pela assistência social. Para tal desempenho pode incumbir-lhes organizar serviços, como meio necessário da realização dos seus fins. A possibilidade de duplicação de instalações e serviços congéneres das instituições de previdência e das de assistência requer uma coordenação que compete superiormente ao Estado, a qual, porém, não poderá ir no ponto de lesar certos interesses especiais dignos de atenção ou estiolar legítimas e benéficas emulações. Nessa coordenação, é princípio fundamental o desenvolvimento da previdência e dos organismos de feição corporativa, nos termos expressos no Estatuto da Assistência (base VI, n.º 2) e decorrentes do texto constitucional, e que, por isso mesmo, terá de inspirar a nossa política social e corporativa».
Dizia-se ainda: «Parece, pois, evidente que uma íntima e bem orientada cooperação entre as instituições de previdência social e as de assistência, ou outros serviços ou entidades, deverá assentar no respeito pela competência e natural autonomia das instituições e organismos, evitando interferências ou absorções, mormente quando se possa correr o risco de procurar a solução de problemas de carácter geral à custa dos recursos afectos, pela lei e pelos princípios, a fins específicos, provenientes, na realidade, de remunerações de trabalho».
A solução preconizada pela Câmara Corporativa sobre a criação de um Conselho de Ministros para a Segurança Social está na linha da doutrina contida na proposta de lei respeitante à reforma da previdência.
Congratulo-me com o facto de, no parecer sobre a proposta relativa ao Estatuto da Saúde e Assistência, se ter consagrado por forma inequívoca a mesma orientação, como se poderá verificar pelas seguintes afirmações dele constantes: «A este respeito (problema das relações entre os sectores da assistência e saúde, de um lado, e, do outro, o sector da previdência) estabelece o actual estatuto, na base VI, n.º 2, a regra de que «as actividades de assistência serão exercidas em coordenação com os da previdência, por forma a favorecer o desenvolvimento desta e a dos organismos de feição corporativa, em coordenação com a das instituições de assistência existentes na mesma área ou circunscrição» ... Semelhante regra não aparece reproduzida no projecto, talvez por se reputar desnecessária, tão evidente e imperiosa é a directriz ali imposta».
E conclui-se por reconhecer que «a organização da assistência desempenha, em relação à do seguro social, uma função complementar ... » e que «ao Estado cabe uma função normalmente supletiva, pelo que a coordenação, dentro destes princípios, deverá ser estabelecida por um Conselho de Ministros e, ao nível dos serviços, através de acordos entre os departamentos, organismos e instituições interessados ...».
A questão das duplicações tem sido muito discutida, mas nem sempre no sentido preconizado pela Câmara Corporativa. Reduzir ao mínimo essas duplicações é necessário, mas importa, para o efeito, responder primeiramente a duas perguntas essenciais:

1.º No caso de desdobramento, qual o serviço a sacrificar: o da previdência, destinado a dar satisfação a direitos assegurados através de contribuições pagas obrigatoriamente; ou o da assistência, encarregado de auxiliar, supletiva ou complementarmente, pessoas não

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cobertas pelo seguro que se encontrem em condições precárias e, ainda, os próprios inscritos nas caixas na medida em que os esquemas da previdência os não abranjam?
2.º Existindo duplicação, e desde que esta se mostre inconveniente, deverá desaparecer o serviço pertencente ao Estado ou o serviço de uma instituição? Por outras palavras: será legítimo criar ou manter serviços públicos em duplicação dos serviços das instituições, comprometendo a consolidação e alargamento da orgânica corporativa?

Evidenciando ainda mais, se possível, o espírito da reforma da previdência, recordarei estas afirmações que tive ensejo de fazer há cerca de três anos:
«Assim, antes de se insistir na necessidade de evitar duplicações escusadas e gastos supérfluos, importa ver o que se pretende: se valorizar os organismos corporativos, entregando-lhes na prática as atribuições assinaladas pela lei, pelos princípios e pelas próprias conveniências nacionais; se fomentar a proliferação de instituições ou serviços estranhos e, porventura até, contrários ao regime corporativo.
Não resta dúvida, de que são inconvenientes certos desdobramentos de serviços, mas não deverá esperar-se que sejam as instituições corporativas a demitir-se da sua missão, em favor de soluções apenas aceitáveis com carácter supletivo, ou de fórmulas tantas vezes condenadas pela experiência, inaplicáveis numa nação corporativamente organizada. Nem seria legítimo deixar, por sistema, e indefinidamente, os trabalhadores à mercê da contingência aleatória do subsídio ou da esmola - que se dá ou pode deixar de dar - num Estado que, como processo natural de dignificação do trabalho, lhes reconhece o direito de participarem na criação e no funcionamento das instituições da sua própria representação ou segurança.
Também sentimos e proclamamos as vantagens de mais perfeito entendimento com todos os sectores que queiram dispensar a sua colaboração aos organismos corporativos em qualquer das modalidades da sua acção multiforme. Para se atingir estes objectivos é, contudo, imprescindível fazer simultaneamente um grande esforço no sentido de os vários serviços deste Ministério das Corporações e das instituições a ele ligadas começarem por coordenar entre si, no melhor espírito, as suas actividades e, sobretudo, as de natureza social. Nenhum sector poderá, com efeito, aspirar a uma vasta coordenação com os outros sem primeiro resolver, por forma eficaz, os problemas, tantas vezes difíceis, das próprias relações internas e do recíproco entendimento entre os diversos órgãos que a constituem.
É, porém, claro que a coordenação não implica necessariamente a ideia da subordinação ou da rotura do equilíbrio entre os organismos interessados, com ofensa da competência específica de uns em favor de outros».
Respeito pela origem social dos valores da providência. - Foi dominante a preocupação de defender os dinheiros da previdência, de modo a assegurar a sua aplicação apenas nos objectivos que legitimaram as medidas tendentes à sua arrecadação. Tal propósito tem sido verdadeiro lema de quantos tiveram a honra de presidir aos destinos do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência. Assim, por exemplo, quem, em Setembro de 1955, desempenhava essas funções pôde declarar com profunda convicção: «A previdência social não é assistência pública. Não se lhe pode exigir a prestação de benefícios que os seus esquemas não prevêem. Ela não pode dar o que não tem, e o que tem não pode ser aplicado a fins diferentes daqueles que constituem a sua específica razão de ser. Os dinheiros da previdência são sagrados, porque são suor dos trabalhadores e porque representam pesado sacrifício para a economia do País. Na sua defesa não se hesitará nem se transigirá».
Ora, quando se proclama a necessidade de as instituições de previdência possuírem serviços próprios estão, independentemente de outras razões, a acautelar-se as conveniências financeiras da organização, pois ninguém melhor que os interessados poderá dirigir e administrar o que é seu. A ideia de ver na previdência uma organização sem serviços sociais próprios equivaleria a transformá-la em mero serviço de arrecadação de receitas e a esvaziá-la do conteúdo válido. Para isso não seria preciso criar instituições, sendo mais lógico que fosse o Estado a arcar com todas as responsabilidades relacionadas não só com a prestação de serviços sociais, mas também com a recolha e administração dos dinheiros arrecadados. Admitindo, por absurdo, este pressuposto, também conviria mais que se fizesse assim, pois seria altamente desaconselhável e perigoso que aos responsáveis pela vida financeira da organização e pela cobertura dos riscos sociais inerentes às suas finalidades fossem retirados os poderes indispensáveis ao cumprimento da sua missão, entre os quais sobressaem o de terem, em regra, serviços próprios, o de exercerem acção orientadora e fiscalizadora sobre os gastos e o de possuírem competência de carácter disciplinar sobre todo o pessoal técnico e administrativo.
Este aspecto do problema adquire interesse flagrante e decisivo quanto ao seguro-doença, pois aqui seria incongruente e desastroso que a instituição responsável pelos subsídios e pela assistência medicamentosa devidos aos beneficiários com baixa não dispusesse de poder fiscalizador e disciplinar directo e regular sobre aqueles que intervêm na definição do estado de doente, duração da doença e âmbito do tratamento adequado.
Estas considerações são de tal forma impressivas que as razões e os factos em que se apoiam conduziram à solução, preconizada da proposta de lei, da unificação, no mesmo organismo, de todos os serviços de prestações do seguro-doença. Como se sabe, o sistema vigente é, em regra, o de a assistência clínica estar entregue à Federação dos Serviços Médico-Sociais, enquanto o pagamento do subsídio pecuniário permanece a cargo directo das caixas.
A experiência tem evidenciado, entre os inconvenientes deste regime, as duplicações de trabalho, de registos e de ficheiros e, como é da natureza das coisas, uma certa insensibilidade da instituição encarregada pelos serviços médicos perante a forma como se concedem baixas de doença, tantas vezes dadas sem fundamento e, desta sorte, sem a preocupação pelos encargos indevidos que se fazem suportar à previdência. Daí que a economia da proposta consagre a criação de caixas regionais de seguro-doença, sem prejuízo da manutenção de caixas de empresa ou de tipo profissional, às quais incumbirá a prestação do acto médico ou de enfermagem e o pagamento do subsídio pecuniário. Haverá uma federação de caixas, não de serviços de caixas como a que existe. A essa federação competirá coordenar as diversas actividades do seguro de doença e efectivar no plano nacional a compensação de encargos do mesmo seguro.
Se assim vai ser adentro da organização da previdência, como poderia conceber-se que toda a projectada estrutura dos seus serviços de assistência e de acção

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médico-social fosse destruída pela transferência das suas específicas e naturais atribuições a outros organismos, oficiais ou privados? Devo esclarecer que admito a celebração de acordos para a prestação de serviços nos casos em que se não verifiquem os inconvenientes apontados. É o que se passa, por exemplo, com os internamentos, sobretudo com os ligados a intervenções cirúrgicas, e a certas modalidades de protecção às parturientes, etc.
Frise-se, todavia, que, no vasto campo deixado à cooperação, importa orientar esta de maneira que se materialize nos dois sentidos, isto é, que as duas organizações em presença, saúde e assistência, por um lado, e previdência social, por outro, utilizem, mutuamente e conforme as circunstâncias o aconselharem, os serviços que uma ou outra possuam. Isto sem prejuízo de se definir uma directiva geral que, para efeitos de prioridade, tome em conta a natureza e as finalidades dos organismos.
Anote-se, por último, que as receitas da previdência, por provirem de contribuições sobre os ordenados e salários, não podem, sob pena de gravíssimo desvio, ser afectadas senão à protecção social dos trabalhadores, que, por si e pela empresa em que prestam serviço, a alimentam para a cobertura dos riscos sociais previstos na lei e nos regulamentos.
Admitir o contrário corresponderia a atribuir a tais contribuições a natureza de imposto e então teríamos que necessidades de carácter geral, cuja satisfação é da responsabilidade do Estado, seriam pagas não pela colectividade e pelos mais abonados de fortuna, mas pelos trabalhadores, através dos seus descontos para as caixas. Que o Estado não auxilie financeiramente a previdência dos trabalhadores do comércio e da indústria, embora seguindo orientação diferente da consagrada na quase totalidade dos restantes países, pode aceitar-se, mas que venha a apropriar-se directa ou indirectamente dos dinheiros das caixas seria não só incompreensível, mas contra os mais elementares princípios da ética política.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Será ainda pequena a contribuição que a previdência tem dado para a melhoria do nível sanitário do povo português, para mais perfeita distribuição dos rendimentos, para o fomento económico do País e para auxiliar o Estado, através de empréstimos anuais, que atingem já cifras bem expressivas?
Acaso poderá abrir-se neste campo precedente idêntico ao que se instaurou e mantém com o Fundo de Desemprego?
Diversificação na organização dos seguros e simplificação administrativa. - Dadas as diferenças que se notam entre os seguros diferidos, por um lado, e, por outro, os seguros imediatos e o abono de família, e considerando a diversidade de exigências técnicas e administrativas inerentes a cada um desses ramos de segurança social, julgou-se aconselhável integrar a protecção na invalidez e na velhice numa caixa única, susceptível de garantir, automàticamente, a compensação financeira e criar instituições de base regional para a cobertura dos encargos da doença, maternidade e tuberculose e do abono de família.
No relatório da proposta expõem-se desenvolvidamente as razões desse critério orientador, pelo que apenas desejo agora chamar a atenção para a importância que assume a criação de caixas regionais de previdência e abono de família.
Esta descentralização tornava-se premente do ponto de vista interno da previdência, mas obedeceu também ao propósito de contribuir para a valorização dos meios da província, através da fixação de novas famílias - as do pessoal técnico e administrativo das caixas - e através da movimentação da vida económica e social dos diferentes distritos. A criação das caixas regionais, já ordenada através de portarias datadas, de 28 de Março de 1961, tem o maior alcance, se bem que ainda não convenientemente avaliado pelas populações locais. Na maior parte dos distritos aquelas instituições vão passar a ser de longe as mais importantes, quer no âmbito e projecção das suas finalidades sociais, quer ainda nas operações de carácter financeiro e económico que envolvem o seu funcionamento e a sua expansão.
Pense-se ainda nas vantagens que para as entidades patronais e para os trabalhadores advêm da proximidade da caixa de previdência e abono de família e nas perspectivas que se rasgam à humanização das relações entre os dirigentes e servidores desta e os seus contribuintes e beneficiários.
Por outro lado, e se entretanto, como é de prever, a cobertura dos riscos do desemprego involuntário e dos acidentes e doenças profissionais acabar por se fazer através do seguro social, assistir-se-á a grande descongestionamento nos serviços e a acentuada simplificação nas formalidades. As entidades patronais terão, além de outras vantagens, a de lidar apenas com uma organização e limitar-se-ão a elaborar uma única folha de férias e a promover, periodicamente e de uma só vez, os depósitos das contribuições.
É de admitir ainda que o novo sistema proporcione uma fiscalização mais eficiente, o que tem muito interesse, pois sabe-se que os abusos e as fraudes costumam ser graves e frequentes no sector da previdência.
Convém não esquecer que a nossa organização corporativa primária é de base regional. Impunha-se, pois, fazer-lhes corresponder, embora num plano interpro-fissional, uma estrutura de previdência com a mesma área. Na verdade, e como se escreveu no relatório da proposta de lei, «a organização regional das caixas de previdência permitirá a representação dos segurados e contribuintes, através dos respectivos organismos corporativos, mais fácil e eficazmente do que nas actuais caixas de âmbito nacional, embora essas se classifiquem de caixas profissionais».
Regime financeiro de repartição nos seguros imediatos e no abono de família e atenuação quanto ao sistema de capitalização nos seguros diferidos. No preâmbulo da proposta de lei fez-se larga referência ao sistema do financiamento da nossa previdência e aos princípios que, comummente, são defendidos para presidir à vida financeira das instituições de segurança social. Pensa-se que esse relatório é também, nessa parte, suficientemente claro, para que sejam necessárias mais largas explanações. Convirá apenas, a título complementar, fazer alguns ligeiros apontamentos sobre assunto tão delicado.
Uma vez formadas, ao longo destes anos, expressivas reservas, parece ser a altura de, quanto aos seguros diferidos, adoptar um registo misto que concilie, dentro do possível, as vantagens dos dois sistemas que, tradicionalmente, se contrapõem: o da capitalização e o da repartição. Perfilhou-se, assim, uma orientação que conduz à substituição das gerências anuais por mais largos períodos, durante os quais se mantém constante a contribuição para a previdência. Admite-se, pois, uma acumulação de capitais, quer para compensação de encargos entre períodos consecutivos, quer mesmo

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com carácter permanente para moderação das contribuições futuras. O regime proposto tem maior maleabilidade em virtude de o plano previamente estabelecido para a equilibrada acumulação de reservas poder ser alterado sempre que os interesses do seguro ou as conveniências nacionais o imponham.
Este rumo foi escolhido para se poder modificar a distribuição em vigor da taxa global, de maneira a consignar ao seguro-doença maior parcela de receitas. Presume-se que possam ser distribuídos em cada ano mais 200 000 contos, aproximadamente. Em 1957, as despesas com o subsídio de doença, acção médico-social e assistência atingiam apenas 3,7 por cento dos salários. Em estudos elaborados pelo Ministério competente, previu-se que a reforma em discussão permitiria a melhoria dos esquemas de tal modo que os encargos do seguro de doença e dos seguros-maternidade e tuberculose subiriam a 6,5 por cento.
Não se nega que a previdência deva contribuir para o fomento económico do País e que faculte ao Estado créditos anuais. Nisso, de resto, tem ela interesse.
Mas é preciso não perder a noção do equilíbrio. Quanto ao fomento económico, não se poderá pedir à previdência que a ele consigne os capitais que lhe fazem falta para a consecução dos seus objectivos específicos de carácter eminentemente social, nem, muito menos, que invista valores nas empresas com menores ou duvidosas possibilidades de rendimento.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Seria chocante, por exemplo, que as empresas, depois de terem posto grande interesse na participação financeira da previdência quando os capitais particulares não acorriam às emissões, viessem mais tarde, passado o período inicial da exploração e assegurada a sua estabilidade, levantar embaraços às caixas, tentando arredá-las ou negando-lhe preferência em novas aplicações.
Relativamente à tomada de títulos do Estado, ou por ele garantidos, a previdência aplicou cerca de 60 por cento dos seus valores, ou seja, alguns milhões de contos. Causam-me apreensões as tendências que se notam para levar a previdência a investir predominantemente os seus dinheiros em títulos do Estado, isto é, em bens de rendimento fixo e, portanto, sujeitos às inelutáveis e perigosas depreciações monetárias. E pena é que, na sua máxima parte, o produto destes empréstimos não seja averbado de maneira expressa à política da saúde e da assistência e, porventura, à atribuição anual de vultosos subsídios às Casas do Povo, para estas, em cooperação com as caixas de previdência, poderem garantir com eficácia o funcionamento dos seguros sociais, designadamente o da doença e o da invalidez, aos trabalhadores rurais de todo o País.
Formulam-se estas observações para evidenciar como, visto o problema também deste angulo, se chega facilmente à conclusão da vantagem de moderar, de maneira sensível, aliás como já está a fazer-se, a rigidez do sistema financeiro de capitalização consagrado entre nós. Anote-se, porém, que teria sido grave erro enveredar pelo caminho que ora se aponta, nos períodos iniciais da formação e do funcionamento das caixas. Se outro houvesse sido o critério perfilhado, a previdência teria certamente, hoje, esquemas de benefícios mais reduzidos ou ver-se-ia obrigada a cobrar contribuições bem mais onerosas. Repare-se ainda em que, como se diz no relatório da proposta, o sistema de repartição supõe uma generalização que, frequentemente, os seguros sociais não podem alcançar logo de início, tantas são as dificuldades de carácter técnico, financeiro, económico e até político inerentes à montagem de uma organização vastíssima que englobe centenas de milhares ou milhões de segurados, contrarie hábitos ou opiniões, fira interesses variados e passe, de um dia para outro, a exigir contribuições a uma grande massa de trabalhadores e empresários sem preparação nem predisposição para aderirem a novos conceitos de política social.
As considerações atrás produzidas são suficientes para evidenciar a posição que tomarei relativamente à proposta do Estatuto da Saúde e Assistência e às conclusões do parecer que a Câmara Corporativa sobre ela emitiu. Reconheço que este parecer veio melhorar sensivelmente a proposta governamental. Contém ele, nos pontos fundamentais, doutrina aceitável e exequível, embora alguns dos alvitres da Câmara mereçam detida reflexão pelas dúvidas que suscitam.
O facto de se ter apreciado na mesma altura a proposta sobre a reforma da previdência facilitou aos Dignos Procuradores uma visão global dos problemas e tornou possível uma discussão eficiente, que decorreu em nível elevado. Daqui resultou, em larga medida, uma harmonização de pontos de vista que se reflectiu na elaboração de novas bases e na eliminação ou na rectificação de várias das que foram apresentadas pelo Governo.
Noutras intervenções que, nos termos regimentais, tenha ainda oportunidade de fazer, referir-me-ei a diversas questões carecidas de mais completo esclarecimento.
Por ora, na continuação de outras anteriormente formuladas, circunscrever-me-ei a algumas breves observações sobre a importante e notável proposta de lei relativa ao Estatuto da Saúde e Assistência.
No seu parecer, a Câmara Corporativa congratula-se com o facto de ter a sua tarefa facilitada em virtude de, como se salienta no relatório da proposta do novo estatuto, este «não decorrer de princípios opostos ao estatuto anterior».
Antes fora assim, mas não é. A proposta pretende consagrar, em vários aspectos, orientações diferentes das que estão em vigor. No seu preâmbulo, chama-se-lhe documento de transição» e chega a invocar-se suma lei de aceleração da história». A proposta visa a colocar em primeiro plano os problemas da saúde, atribuindo ao Ministério poderes de coordenação interministerial; tende para a concentração ou absorção de actividades, sem cuidar de saber se dessa forma vai provocar a desarticulação de outras estruturas existentes; e limita em muito o campo da iniciativa privada e da autonomia das instituições.
Frise-se ainda que a proposta procura estabelecer uma distinção entre as actividades de saúde e assistência, mas não lhes faz corresponder praticamente qualquer diversidade de regimes. Este e outros aspectos foram doutamente analisados num trabalho intitulado «Notas à Proposta, de Lei do Estatuto da Saúde e Assistência» que, pela sua actualidade e interesse, foi mandado publicar no Boletim do Instituto Nacional de Trabalho e Previdência. Aconselhando a sua leitura, que será por certo elucidativa, poderei reduzir em muito os meus comentários sobre as características apontadas à proposta em análise.
Nesta intenção, dir-se-á, antes de mais, que a proclamação, mesmo tendencial ou implícita, do direito à saúde e assistência, poderá ter algum significado político ou ideológico, mas, se não se encontrarem formas

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jurídicas, institucionais e financeiras de lhe conferir efectivação prática generalizada, mais vale não o inscrever nos textos legais. À questão referiu-se há anos o Sr. Presidente do Conselho com estas palavras:

Em substituição do direito à assistência que a Constituição de 1911, ingénua e inutilmente, estabeleceu, fomos, creio eu, os primeiros a proclamar um novo direito, inédito e revolucionário: o direito ao trabalho.

Por isso, o actual estatuto, embora elaborado quando começavam a tomar corpo as novas correntes da segurança social, não se integrou na ideia de garantir a toda a população o direito à cobertura dos riscos sociais, nem sequer confundiu os planos da previdência com os da assistência.
A nova proposta pode, formalmente, ser interpretada da mesma maneira, porque não cria quaisquer direitos às prestações de carácter social, se bem que procure organizar serviços e facilitar o avesso dos interessados à acção dos órgãos da saúde e assistência. Mas é visível que, por detrás de vários dos seus preceitos, há uma ideia de planificação total a realizar de modo progressivo pelo Estado, que passaria a intervir cada vez mais acentuadamente, até ser o expoente máximo, ou mesmo o expoente único, da segurança social.
Este espírito é mais patente em tudo o que diz respeito à saúde, embora não deva haver razão para apreensões de maior. Será bom lembrar estas palavras do Sr. Ministro da Saúde, proferidas no encerramento do IV Congresso das Misericórdias:

O Ministério da Saúde e Assistência, seja qual for o desenvolvimento que em Portugal se lhe der, será sempre na prática uma forma de realizar (quanto possível supletivamente) alguns dos objectivos da segurança social, no sentido amplo hoje vulgar da expressão.

São prudentes estas palavras. Mas deve reconhecer-se que anda por aí muito espalhada uma concepção de saúde tão lata nas suas bases e nas suas implicações que nela bem podem caber todas as actividades económicas, educativas e sociais destinadas ao bem-estar das pessoas. O mal não está tanto na vastidão do conceito, mas sim em que dele se parte para grandiosas planificações totalitárias no domínio das técnicas, das estruturas e da própria administração, como se todas as multiformes e complexas realidades do problema fossem susceptíveis de enquadramentos rígidos, e como se não houvesse outros sentidos de solução mais naturais e mais viáveis. Por isso, a Câmara Corporativa haveria de registar no seu parecer estas palavras: «O âmbito que se atribui à saúde e assistência é tão amplo que abrange sectores que lhes são completamente estranhos, pois, no fundo, antes se integram numa concepção de política social, no sentido mais lato».
Afigura-se-me judiciosa e realista a orientação da Câmara, pois são conhecidos os erros e desvios que se têm cometido por tão facilmente se aceitarem certas tendências em voga noutros países no campo da economia, da educação e da acção social, sem qualquer esforço prévio de selecção ou de adaptação às condições peculiares do nosso país e à vida, hábitos e necessidades das populações portuguesas.
Refira-se ainda que as ideias expressas sobre coordenação complicam, de algum modo, a trama da proposta, na qual se encontram, por vezes, certos ressaibos de cunho estatizante, como se, entre nós, fosse conveniente pôr de pé um sistema de segurança idêntico ao dos países socialistas.
A ideia de sobrecarregar mais e mais o Estado com novas e acrescidas responsabilidades está a aliciar muitos espíritos inclinados a pensar que ele pode, em tudo ou quase tudo, substituir-se, com vantagens e sem risco para a liberdade, às instituições e às pessoas. Razão tem um grupo de especialistas alemães quando, em notável trabalho elaborado a pedido do actual chanceler da República Federal Alemã, confessa as suas apreensões por ver como, em diversos meios do Mundo Ocidental, existe a ideia de que a segurança social é da integral responsabilidade do Estado, tendendo-se assim para o transformar em Estado assistencial (Versorgungsstaat).
E acrescenta: «Perante estas tendências, é preciso sustentar que a inclusão de todas as pessoas, incluindo aquelas que podem valer-se a si mesmas, num regime de segurança social estabelecido pelo Estado (assistência médica, pensões de invalidez e velhice, ajuda familiar, etc.), é inconciliável com o princípio da subsidiariedade». Além disso, tal sistema põe em perigo o próprio Estado, já que convida os indivíduos a formularem sucessivas e crescentes exigências capazes de embotar a noção das responsabilidades pessoais e familiares e de causar sérias perturbações sociais.
Choca sobremaneira que se ignorem a doutrina, a orgânica, as realizações e as próprias virtualidades corporativas do regime saído da Constituição de 1933.
Por isso mesmo, tem sido lento e difícil o avanço da revolução corporativa, cujas finalidades sociais só podem atingir-se mediante a instauração de apropriados quadros institucionais.
Da minha parte, considero fundamental, por exemplo, que a chamada cobertura sanitária do País seja consequência lógica imediata da integração corporativa geral e da extensão dos seguros sociais obrigatórios a todas as actividades, mesmo as do mundo rural. Só desta forma se evitarão, sem violências inúteis, sobreposições e se caminhará com segurança e coerência.
Esta é a ideia fulcral da posição que no problema tenho tomado e continuarei a tomar, já que não estou disposto a renegar a minha crença profunda na ordem corporativa, cuja obra, mau grado as suas vicissitudes e limitações, é testemunho vivo da excelência dos princípios que a inspiram, mesmo no respeitante aos problemas dos trabalhadores rurais.
Estou a pensar nas instituições de previdência e nas Casas do Povo. Com efeito, e como já se referiu, a proposta não reproduz o preceito do actual estatuto, segundo o qual a coordenação das actividades da previdência e da assistência deve fazer-se de modo a «favorecer o desenvolvimento da previdência social» - da previdência social, claro está, dos trabalhadores do comércio e indústria e também dos trabalhadores do campo. A orientação actual legitima-se perfeitamente, pois a previdência é um sistema que conduz à gradual constituição de direitos no respeitante à cobertura dos riscos e encargos sociais. A assistência tem, na maioria dos casos, carácter meramente supletivo, pelo que do facto importa tirar todas as ilações, até a de que não deve competir ao Ministério respectivo a função coordenadora do vasto complexo dessas actividades e das do seguro social.
Certo é que na proposta se confere particular relevância às actividades da saúde, as quais, porém, se regulam, na economia do documento, por disposições idênticas às aplicáveis às actividades da assistência. Por outro lado, às instituições de previdência também cabe a obrigação e assiste o direito de exercerem acti-

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vidades de acção médico-social, no domínio dos seguros relacionados com a doença, a invalidez e a maternidade.
Suponhamos, porém, que se optava pela integração dos serviços médicos da previdência nas organizações da saúde ë assistência. Se assim acontecesse, duvido de que se lograsse melhorar a acção médico-social e que os trabalhadores passassem a ser convenientemente tratados. Verificar-se-ia, sim, que estes acabariam, mais cedo ou mais tarde, por suportar, ainda por cima, em maior ou menor grau, encargos financeiros da específica responsabilidade do Estado. Estou, além disso, profundamente convencido de que isso seria desastroso para a classe médica, ameaçada então de funcionalização quase integral e dependente apenas dos órgãos estaduais, que, até pelas vicissitudes anuais de falta de verba e libertas da emulação despertada pela existência de outras entidades com funções de índole social, acabariam por sacrificar os direitos dos seus servidores especializados e também os do pessoal administrativo.
Por falar em trabalho médico, seja-me permitido deixar registadas aqui algumas opiniões do Dr. Mendonça e Moura, dirigente da Ordem dos Médicos e representante deste organismo corporativo da comissão interministerial nomeada, em 1958, pelo Sr. Presidente do Conselho. Mas antes, diga-se que os representantes da previdência nessa comissão fizeram um esforço notável e pronto, de que derivou a definição de alguns princípios orientadores da maior importância para a defesa dos direitos dos médicos e das prerrogativas naturais da medicina.
São do Dr. Mendonça e Moura estas afirmações autorizadas e impressionantes, que reproduzo, com a devida vénia, e sem quebra, de respeito para com os médicos que ultimamente se têm votado ao estudo dos problemas da sua nobre actividade profissional, tanto mais que concordo com muitas das conclusões a que chegaram:
«Assim, à parte a indeterminação mais ou menos completa do campo de aplicação, lacuna grave que tem permitido falar de socialização de medicina ou de esta-tização dos cuidados médicos, de massificação da assistência e de funcionalização total dos médicos, os três relatórios perdem-se em estruturação da saúde e da assistência nacional que especificamente lhes não cabia, e parece estadeada para justificar a existência de carreiras médicas: donde o erro de estas se volveram de meio, que realmente podem ser, de preparação e valorização dos médicos, em fim último dos esquemas propostos».
«Com a salvaguarda já apontada em relação a Coimbra, que aliás não soube mante-la integralmente ao passar do plano dos conceitos ao da sua concretização, os estudos não tomam em consideração o espírito nem a letra do princípios da W. M. A.
E assim propendem para uma cobertura geral das populações, sem que expressem sequer o ponto de vista em que se colocam, quanto à responsabilidade efectiva pelos encargos financeiros respectivos: seguro? imposto?».
«Integrando em rede única, devidamente hierarquizada, a totalidade dos clínicos adstritos à cobertura sanitária, os estudos inclinam-se forçosamente para a estatização dos cuidados para a funcionalização dos médicos. O que está em desacordo com a opinião até hoje defendida pela nossa Ordem e com a posição das diversas classes médicas estrangeiras e do W. M. A.».
«Integrando em rede única, de âmbito nacional, a totalidade da estrutura prevista para a cobertura sanitária do País, os estudos conduzem forçosamente à estatização dos cuidados médicos. E isto quer a rede prevista abranja apenas os indigentes e os beneficiários de uma medicina organizada mais ou menos extensa, quer a totalidade da população, pois a integração das medicinas curativa e preventiva, que se prevê total num dos três estudos, só adquire relevância efectiva se abarcar o maior número.
O que está em desacordo com o pensar generalizado das classes médicas do mundo livre».
«Tornando o hospital em fulcro de toda a assistência (paradigma: estudo de Lisboa), vai-se para o embotamento das relações humanas de confiança, para o apagamento das personalidades dos enfermos e do médico, para a coisificação do doente, na expressiva definição de Lopez Ibor, como consequência da massificação dos cuidados médicos. Vai-se para a substituição de relações humanas por ligações impessoais, para mais uma subalternização das pessoas às instituições, em suma, para mais uma dispensável estrutura de massas».
«Não se ignora o papel do hospital, a extensão progressiva da sua valia. Não se ignora também que ainda hoje 85 por cento das doenças se podem tratar fora dos hospitais, apenas com o concurso do clínico geral com, ou sem, o especialista.
Em suma, não se ignora que «o hospital é o auxiliar do médico tal como é um laboratório ou um medicamento especial ... Em outros termos: o hospital é um local onde se pratica a medicina, mas não um local que pratica a medicina», pelo que não é de aceitar, sem graves riscos morais, sociais e económicos, que se pretenda que o hospital seja mais do que isso».
«Propendendo para a cobertura sanitária extensiva das populações (excepção parcial feita ao relatório de Coimbra), os estudos levantam o problema do direito à saúde. E importa integrar este conjunto de direitos sociais - ao trabalho, à alimentação, ao pleno emprego - para que, como católicos, possamos definir a nossa posição».
«São estes riscos da funcionalização dos médicos e da fulcralização da assistência nas unidades hospitalares, com o mesmo e idêntico efeito de despersonalização de relações que acima de tudo hão-de manter-se no plano do humano, que devem pôr-nos em guarda contra as consequências, possivelmente não meditadas, de projectos e esquemas ambiciosos de planificação assistêncial, defensáveis até certo ponto sob o ângulo de visão meramente técnico, mas ignorante das verdades essenciais que estão para além da própria ciência e que a técnica deve servir».
Feitas estas transcrições - e creio que valeu a pena fazê-las -, retomo o fio das minhas considerações, dizendo que o facto de os serviços médicos da previdência terem natureza idêntica, claro está, à dos prestados noutras organizações, não leva necessariamente à concentração. É curioso observar que, no próprio relatório da proposta de lei subscrita pelo Sr. Ministro da Saúde e Assistência, se afirma:

... a concentração é desejável até certa altura, mas tem um ponto óptimo que se não deve ultrapassar ...

O reconhecimento desta verdade não é incompatível com a ideia de que «na política da saúde e assistência caiba o primeiro lugar ao respectivo Ministério». Mas,

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na política dos seguros sociais obrigatórios, e na do trabalho e da organização corporativa, o primeiro lugar há-de pertencer ao Ministério das Corporações e Previdência Social. Como conceber que se cindam, no seguro de doença, as suas actividades peculiares, de modo a entregá-las a órgãos diferentes? Se se entende que o seguro de doença deve ser englobado todo ele na organização geral de saúde, como articulá-lo, depois, com os outros seguros, nos diversos aspectos comuns que os enlaçam tão intimamente por força da sua natureza, da origem das suas receitas, da administração e cobertura das suas despesas, e ainda da necessidade de organizarem serviços comuns?
Veja-se como, na proposta de lei da previdência, os vários ramos dos seguros se mostram ligados por fortes vínculos institucionais, administrativos e financeiros, num plano geral e harmónico de conjunto, os quais, a serem despojados de serviços sociais próprios, sairiam comprometidos na sua eficiência, na sua configuração natural e na sua própria personalidade. Só quem não saiba o que é, por dentro, um sistema de seguros sociais como o nosso, ou quem esteja possuído de deformação tecnocrática, ou ainda quem veja nas caixas meras repartições financiadoras e nas contribuições sobre os salários impostos para o Estado, admitirá que a previdência possa desmembrar-se ou amputar-se em holocausto a concepções não adaptáveis às que tem inspirado a política nacional.
Tem-se partido, para erigir tais teorias, de um conceito de saúde empolado por elementos que o transcendem ou lhe são estranhos. Parta-se, porém, do conceito de trabalho, e ver-se-á como tudo se transforma. E sobretudo a este conceito que temos de ir buscar o húmus doutrinário para estabelecer os principais travejamentos orgânicos e para insuflar nestes a vida própria de instituições autónomas que auxiliem o Estado e o limitem nas tendências, hoje em dia tão fortes, para o gigantismo nos serviços públicos, nos quadros, em geométricas, grandiosas e frias planificações, e em intervenções atentatórias da iniciativa privada e da personalidade humana.
Veja-se, por outro lado, como a política da previdência e a do trabalho estão, entre nós, estreitamente ligados à da organização corporativa.
As Casas do Povo, por exemplo, ilustram claramente tal facto. Já, em tempos, tive ensejo de me referir a este aspecto da questão. Reproduzo as palavras então proferidas, chamando a atenção para as da conclusão, por serem as mais ligadas ao assunto:

Há, sobretudo nas regiões ao norte do Tejo, vastas áreas ainda desprovidas de Casas do Povo. Estamos, por isso, decididos a levar a organização corporativa a essas regiões, onde, em regra, o trabalhador rural nem sequer tem assegurado o direito à assistência médica. E não se deixará, sempre que necessário, de adoptar a solução prevista na lei, segundo a qual a acção das federações pode ser alargada a zonas sem Casas do Povo.

Parece ser este, com efeito, o caminho a seguir, e grave seria pensar na criação de quaisquer serviços sociais do Estudo em concorrência com as Casas do Povo ou para suprir a sua falta.
Posso asseverar que as Casas do Povo e as suas federações estão aptas a resolver todos os problemas que lhes dizem respeito. Tudo está em que lhes não sejam negadas as disponibilidades financeiras a que têm incontestável direito e em que se evitem escusadas sobreposições.
Este critério, além de ser o menos dispendioso para a Administração, é o mais harmónico com a doutrina corporativa e com as leis vigentes e o mais favorável à autodirecção dos organismos. De outra maneira, não faremos obra de verdadeira promoção humana. Se não levarmos a participar na vida da instituição todos os que lhe estão ligados, não conseguiremos impedir um destes dois perigos: ou a transformação do organismo em simples serviço estatal ou a sua entrega ao nefasto jogo das influências pessoais.
Além disto, seria impraticável ter em cada freguesia tantas instituições quantas as específicas finalidades assistenciais, culturais, recreativas e de representação profissional a prosseguir. A fim de obstar a tão perniciosa pulverização de organismos locais, entendeu-se que a Casa do Povo, além de sindicato dos trabalhadores agrícolas, embora de índole muito peculiar, deve ser instituição de previdência e assistência, associação de cultura e recreio e centro social de comunidade. Nem seria possível, se caíssemos na fragmentação de órgãos ou serviços regionais, encontrar pessoas capazes em número suficiente para preencher os múltiplos cargos de direcção.
Quer dizer: o problema dos pequenos agregados populacionais foi prudentemente tratado pelo legislador, que o encarou, com profundo realismo, em globo, e no melhor espírito corporativo.
Importa, pois, manter sobre as Casas do Povo a actual concepção orgânica, caracterizada pela pluralidade de objectivos na singularidade da instituição.
Frisa-se, por outro lado, que seria contraproducente conferir a mais do que um sector da administração pública a acção, que ao Estado incumbe, de acompanhar de perto a vida das Casas do Povo para que elas se não desviem das suas finalidades. Também este aspecto é, às vezes, esquecido por pessoas que preconizam soluções aparentemente sugestivas, mas que, no fundo, tendem a subordinar o principal ao acessório, o político e social ao técnico, quando não as conveniências gerais a interesses ou a momentâneas predilecções de um grupo ou de uma classe. E, além do mais, tais ideias, que geralmente são proclamadas em nome de um princípio coordenador, conduziriam, na prática, à total desconexão de esforços e a estéreis conflitos de competência. E já que se está a falar de Casas do Povo, apraz-me reproduzir estas magníficas palavras do Sr. Presidente do Conselho:
Considero as Casas do Povo uma das mais belas, se não a mais bela criação do Estado Corporativo. O Governo consagra-lhes o maior carinho ... As Casas do Povo poderiam e deveriam ser o foco de toda a vida rural.

Por tudo isto, seria doloroso abrir perspectivas legais ou de facto à sua destruição ou à impossibilidade prática da expansão da sua rede.
Bem bastam as dificuldades de toda a ordem com que têm lutado. Que o digam os seus dirigentes e quantos, em planos de superior responsabilidade, têm procurado defendê-las, prestigiá-las e estender a sua acção a todo o território, como processo de garantir, mediante o funcionamento do sistema de seguros obrigatórios, a conveniente protecção aos rurais.
Não há dúvida de que está em causa o regime corporativo, que poderá ser ferido de morte se se mudar de rumo nestes domínios essenciais da acção social e da protecção aos trabalhadores e suas famílias.

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É sabido que estes problemas têm sido agitados em grande parte para se encontrar uma via que leve à obtenção de receitas. Mas também aqui a solução corporativa pode facilitar em muito a materialização dos programas sociais. A questão tem o maior interesse, tanto mais que, no contrário do que se verifica na proposta de lei da previdência, na da saúde e assistência nada se diz ou dispõe sobre formas viáveis de conseguir fundos para ocorrer ao pesadíssimo agravamento de encargos em que redundariam as medidas encaradas ou antevistas. É bom não esquecer esta verdade, enunciada pelo ilustre titular da pasta da Saúde e Assistência ao pronunciar-se sobre um plano-piloto de assistência materno-infantil, realizado num distrito das ilhas adjacentes: «O plano ... vai agora ser examinado não só por técnicos do Ministério da Saúde, como por um perito da Organização Mundial da Saúde, que virá a Portugal para esse efeito. É que ele obriga a despesas extremamente elevadas (direi mesmo despesas incomportáveis). Portanto, a afirmação de que, «em termos idênticos», a acção se vai estender a outros distritos, parece-me prematura e arriscada».
O Boletim da Ordem, dos Médicos publicou, em tempos, um estudo do médico inglês Dr. Banszky, traduzido de uma revista italiana, e de que me permito transcrever alguns passos elucidativos:
«Como o custo da doença está inteiramente coberto na Grã-Bretanha pela comunidade, a pessoa segurada nada tem a despender directamente. Mas é precisamente aqui que está o mal; o cálculo das despesas atinge um nível excessivamente elevado».
«Criou-se uma enorme burocracia com o fim de «administrar» os hospitais. Actualmente uma multidão de funcionários pagos enche os hospitais britânicos».
«Num só ano de serviço de saúde registaram-se 187 milhões de receitas. Requisitaram-se cerca de 8 milhões de óculos, 28 000 aparelhos acústicos, 21 000 pares de sapatos ortopédicos, 8000 pernas artificiais, 7000 olhos de vidro e 5000 cabeleiras. Exceptuando as verdadeiras necessidades, que constituíam a minoria, a grande parte da população recorreu ao seguro social porque não era obrigada a pagar nada e podia receber qualquer coisa em troca».
Enfim, como se sabe e se vê, os problemas da segurança social são, nos seus fundamentos e nos seus reflexos, dos mais complicados e difíceis que se apresentam à meditação dos responsáveis.
São problemas sociais, porque a sua resolução é exigida pela própria justiça devida à pessoa humana, na eminente dignidade do seu destino e nas necessidades materiais e morais de que é portadora.
São problemas económicos, porque sem se produzir riqueza não poderá esta ser distribuída em salários ou em prestações sociais, directas ou indirectas.
São problemas de educação, porque as diversas formas de segurança social reclamam de todos a melhor compreensão sobre o seu espírito e os seus limites e o cumprimento de deveres indeclináveis perante a organização ou as organizações encarregadas de a realizar.
São problemas técnicos, pelas implicações de carácter jurídico, médico e financeiro inerentes ao estabelecimento, à vida e à expansão de qualquer sistema de segurança social.
Nem se esqueça que estas questões assumem também marcado carácter político, pois, como salienta um ilustre pensador português, a organização da segurança social insere-se na problemática do Estado e dos limites da actuação deste perante a autonomia das pessoas individuais e das sociedades menores que estruturam a Nação.
Por tudo isto, os problemas que se nos apresentam carecem de ser olhados na vastidão dos conceitos e dos interesses a que se prendem e das repercussões que suscitam.
Neles têm de tomar posição os juristas e os médicos, os economistas e os actuários e ainda os sociólogos e os políticos. E não podem deixar de ser considerados os pontos de vista dos próprios dirigentes dos organismos representativos das classes trabalhadoras e das empresas ligadas aos seguros sociais. Não têm estes agitado publicamente as suas ideias e as suas inquietações, porque confiam no Governo e esperam que a Assembleia Nacional consagre as melhores soluções, uma vez estudadas as propostas do Governo, bem como os pareceres da Câmara Corporativa, que constituem valiosíssimo repositório de saber, experiência e senso das realidades políticas e sociais.
Eis porque me sinto no dever de prestar homenagem àquela Câmara, aos Dignos Procuradores que intervieram na apreciação das propostas e aos ilustres relatores de tão doutos, profundos e exaustivos trabalhos.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: atravessamos um período difícil de mais para que seja lícito esquecer as realidades sociais e os princípios da justiça, bem como as repercussões de ordem política, para bem ou para mal, derivadas da maneira como trabalhamos e do sentido dado à nossa actuação.
Todos concordarão que se torna imperioso caminhar em frente no sentido das reformas decorrentes dos anseios legítimos das populações e da doutrina que escolhemos para base da nossa acção política.
Se ignorar ou menosprezar tais anseios seria erro grave, agir na ignorância dessa doutrina ou contra ela constituiria imperdoável e perigosa falta de probidade.
Ora, a nossa política, para ser autêntica e de verdade, não poderá separar-se da Nação nem desligar-se do sistema em que assenta. O Regime para sobreviver tem de realizar-se, mantendo-se fiel às linhas mestras do seu pensamento interno e nos superiores interesses da grei. Estamos aqui precisamente para colaborar nesta tarefa fundamental. Não representamos agrupamentos políticos ou sectores económicos, mas sim a própria Nação.
Por isso mesmo haveremos de estar atentos a tudo o que possa ter repercussão política ou social. Mas seria ingenuidade supor que a razão está, por força, ao lado dos que mais alto erguem a voz ou dos que mais facilmente conseguem, fazer valer o poder das suas influências.
Não confundamos o círculo das nossas relações, necessariamente limitado, com o País. Este, se ao eleger-nos confiou em nós, em contrapartida muito espera de nós também.

O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!

O Orador: -Se somos pela revolução, na ordem, na paz e na justiça, temos de trabalhar, com energia, na resolução dos grandes e pequenos problemas, para que ela se realize progressiva e firmemente. Esse é o nosso dever. Se o não cumprirmos, então a revolução efectivar-se-á não de cima para baixo, em nome do amor fraternal entre os homens, mas de baixo para cima e no pior sentido, isto é, impelida pelo ódio e

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pelo espírito de subversão instalados em corações pervertidos ... e também em consciências atribuladas por sofrimentos não suavizados pelo bálsamo da caridade ou ofendidas por injustiças sem reparação.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: permita-me ainda que agradeça, sensibilizado, as referências generosíssimas e amigas que, no decurso do debate, foram feitas a quem em nome do Governo teve a honra de subscrever, vai para cinco anos, a proposta de lei relativa à reforma da previdência. Não ficaria tranquilo se não endereçasse as saudações que me apresentaram ao Sr. Presidente do Conselho, que acompanhou a elaboração da proposta com vivo interesse e o altíssimo critério que é timbre da sua providencial acção governativa, e não recordasse os funcionários do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência que, com a sua inteligência e entusiasmo, nela trabalharam tão esclarecida e esforçadamente.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E só uma palavra mais para exaltar os homens públicos que, antes de quem subscreveu aquela proposta, afinal, a tornaram possível, com o seu trabalho, a sua formação política e a sua fé. Para dar testemunho público dos meus sentimentos quero reproduzir o que, embora noutra qualidade, me foi dado dizer em 29 de Maio de 1957: «A previdência social constitui lima das mais proveitosas iniciativas dos Governos dos últimos vinte anos e deve ser colocada entre as mais notáveis realizações da Revolução Nacional».

Cabe, por isso, aqui uma palavra de justiça a todos aqueles que, desde o início, se esforçaram por instaurar e vitalizar o sistema da nossa previdência.

Essa homenagem é devida a todos os presidentes do Instituto Nacional do Trabalho: ao Dr. Pedro Teotónio Pereira, que, com rara visão e firmeza, lançou as bases da previdência; ao Dr. Joaquim Trigo de Negreiros, criador do regime do abono de família e a quem o seguro social tanto ficou a dever; ao Dr. António Júlio de Castro Fernandes, inesquecível e vigoroso impulsionador do sistema, ao qual abriu novos e mais dilatados rumos; ao Doutor António Jorge da Mota Veiga, que, com superior critério, consolidou, aperfeiçoou e alargou a obra dos seus antecessores, e ao Dr. José Soares da Fonseca, que ao estudo das questões da previdência imprimiu a marca da sua forte inteligência, facilitando, assim, a minha tarefa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - «Também não poderia esquecer -foi ainda dito nessa altura - a nobre e saudosa figura do Dr. Manuel Rebelo de Andrade, que, depois de ter dirigido, com a maior dignidade e aprumo, o Subsecretariado de Estado das Corporações, pôde, na qualidade de vice-presidente do Conselho Superior da Previdência, dedicar-se, de novo e intensamente, ao estudo dos problemas do seguro social. Fê-lo com tão devotado interesse e com tão esclarecido espírito que u elaboração da presente proposta em muito foi auxiliada pelos primeiros e importantes estudos daquele Conselho».

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Não há mais nenhum orador inscrito para o debate na generalidade das propostas de lei sobre a previdência e sobre o estatuto da saúde e assistência. Também não há na Mesa qualquer questão prévia que vise a que sejam retiradas da discussão, por inoportunas ou inconvenientes, aquelas propostas de lei.

Considero, portanto, encerrado o debate na generalidade e aprovadas também na generalidade estas propostas de lei.

Amanhã se iniciará o debate na especialidade sobre a proposta de lei relativa à previdência.

Vai passar-se à segunda parte da ordem do dia: debate sobre a Conta Geral do Estado e as contas das províncias ultramarinas.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vaz Nunes.

O Sr. Vaz Nunes: - Sr. Presidente: por não ser conhecedor profundo das matérias de saúde e assistência e de previdência social, não pude dispensar a necessária preparação e o empenho em seguir o debate na generalidade dos projectos de lei que a elas respeitam; assim me capacitei, na medida do possível, para votar em consciência.

O facto de constar da ordem do dia, simultaneamente com esse debate, a discussão da Conta Geral do Estado referente ao ano económico de 1960 impediu-me de elaborar com os cuidados que tenho por hábito esta minha intervenção. Decidi, apegar disso, exprimir algumas reflexões consequentes da análise do parecer da Comissão das Contas Públicas desta Assembleia. Serão talvez mais longas do que o necessário, mas confesso que não tive tempo para lhes dar melhor arrumo e aquela feição sintética que desejaria. Apelo, pois, para a nunca desmentida generosidade de V. Ex.ª

Sr. Presidente: se me referi à orientação nas nossas actividades foi tão-sòmente com o intuito de justificar a pobreza das palavras que direi, pois bem compreendo a necessidade de se progredir bastante no andamento dos trabalhos durante esta fase final de actividades legislativas. E tanto assim é que, apesar da mui competente e laboriosa direcção de V. Ex.ª, a quem rendo a minha homenagem, ainda ficará aguardando apreciação o tão importante projecto de lei relativo ao regime jurídico da colonização interna, quando defensáveis razões poderiam recomendar que tal se fizesse no mesmo ano parlamentar em que se aprovaram as leis relativas ao emparcelamento e ao arrendamento da propriedade rústica.

Sr. Presidente: permita V. Ex.ª que comece por exprimir uma breve palavra de louvor à Comissão das Contas Públicas e, em especial, ao distinto Deputado e relator do parecer da Comissão, Sr. Engenheiro Araújo Correia. Aliando a sua invulgar competência a um equilibrado e são patriotismo, S. Ex.ª não desiste de comentar, com elevadíssimo critério, os actos da governação e de imprimir nos pareceres que subscreve ideias orientadoras de indiscutível valor. Desde há longos anos vem S. Ex.ª prestando assinalados serviços à Assembleia Nacional, ao Estado e à própria Nação. O mais elementar espírito de justiça exige, ao menos, que se lhe manifeste o vivo reconhecimento pelo brilhante trabalho agora apresentado.

Sr. Presidente: passo a focar alguns aspectos do parecer que despertaram em mim especial atenção:

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Como se sabe, estes gastos atingiram em 1960 a soma anormal de cerca de 3 000 000 de contos, representando 29 por cento das despesas extraordinárias e 26 por cento das despesas totais. Concretamente, o agravamento desta última percentagem, de 1959 para 1960, representou uma subida de meio ponto (25,7 para 26,2 por cento).

Os pagamentos efectuados pelas verbas ordinárias dos Ministérios do Exército, da Marinha e Secretaria de Estado da Aeronáutica foram, respectivamente, os seguintes: 833 000 contos, 603 000 contos e 358 000 contos. Se tomarmos por base 100 o ano de 1938, verifica-se que o índice de progressão destas despesas é: para o Exército 248 e para a Marinha 354. Dispenso-me de citar o índice respeitante à Secretaria de Estado da Aeronáutica, que é muitíssimo superior, porque me parece sem significado; com efeito, em 1938 a aeronáutica militar não tinha desenvolvimento notório entre as forças armadas e estava muito simplesmente integrada no Exército e Marinha, constituindo uma das suas especializações.

De resto, ainda hoje a dotação própria da Secretaria de Estado da Aeronáutica é muito inferior, como se viu, à dos dois outros departamentos, e mesmo inferior, o que cito por simples curiosidade, à dotação aplicada na segurança pública.

Deve-se acrescentar que estes valores têm interesse muito relativo, porque não incluem o peso das verbas extraordinárias pagas por conta dos encargos gerais da Nação.

Como a discriminação usada na Conta Geral do Estado para as despesas extraordinárias não leva em linha de conta a destrinça pelos três ramos das forças armadas, não posso, por isso, aprofundar mais - como desejaria - a análise que vinha fazendo e também não posso deduzir quaisquer apontamentos de política militar que digam respeito ao desenvolvimento relativo do Exército, Marinha e Força Aérea.

Contudo, verifica-se - como nota o parecer - que estas despesas militares extraordinárias estão a em grande parte relacionadas com as necessidades ultramarinas», necessidades estas que consumiram 526 000 contos, num total aproximado de 1 000000 de contos.

É notório o esforço da Nação para fins militares. Basta considerar que cerca de metade dos excessos das receitas ordinárias sobre idênticas despesas, como também se diz no parecer, foi aplicado em pagamentos relacionados com a defesa nacional.

Será pertinente, segundo penso, equacionar o nosso esforço no seio dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte.

Se tomarmos por verídicas informações não reservadas e recolhidas de publicações da própria Organização, verifica-se o seguinte: as verbas militares portuguesas, apreciadas em valor absoluto, são apenas superiores às do Luxemburgo; e a percentagem destas despesas em relação ao produto nacional bruto anda à volta de 5 por cento no caso português, sendo a mesma relação para o conjunto dos países da N. A. T. O. quase dupla.

Contudo, realço que Portugal é um- dos dois únicos países da N. A. T. O. em que o incremento das despesas militares tem sido superior ao do produto nacional bruto.

Esta afirmação é que me parece dar melhor a medida do esforço português, e a base dela parece aconselhável que se dialogue com os nossos aliados da N. A. T. O. no sentido de se conseguir um aumento do seu apoio, que, ao contrário do que pareceria lógico, tem vindo a decrescer nos últimos anos.

O Sr. Sonsa Meneses: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Sonsa Meneses: - Tem sido essa exactamente a política de defesa nacional: dialogar com os restantes países na base de que as despesas efectuadas pelo nosso país com a N. A. T. O. estão a atingir limites incomportáveis relativamente ao produto nacional.

Tem sido esse realmente, passe a expressão, o jogo da política nacional e, por isso, em todas as conferências se tem chamado a atenção para o facto, com vista a evitar o agravamento das despesas com a N. A. T. O. Procura-se com esta atitude poder compensar outras despesas militares agravadas, por outras razões e noutro sentido.

O Orador: - Agradeço a V. Ex.ª a intervenção, que muito valorizou o meu trabalho.

De resto, não desconhecia que era essa a política que tem sido seguida por parte das entidades da defesa nacional. Mas parece-me que, apesar de tudo, era conveniente expressar nesta tribuna a ideia, porque ela tem repercussões noutros aspectos políticos que não são sòmente os inerentes ao departamento da defesa nacional.

Creio que se deve coutar com um muito sensível agravamento das despesas com a defesa nacional no ano de 1961, a que corresponde um substancial reforço de verbas no capítulo das «Forças militares no ultramar».

Daí quero inferir que a Nação terá vantagem em se preparar para aceitar uma política de austeridade total. Julgo até que em certos sectores, que não são os mais modestos, ainda parece existir uma perigosa inconsciência ou criminoso desprezo perante o tremendo esforço financeiro necessário para a execução de uma economia de paz associada às elevadas exigências da defesa nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - O Governo há-de saber usar dos meios necessários para que, se novos sacrifícios forem impostos sob a forma de maior incidência de cargas fiscais, estas se distribuam em concordância criteriosa e justa com as realidades sociais do País, corrigindo até, se possível, as taxas em vigor, e no sentido de uma melhor distribuição.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Convencido como estou de que o imposto sobre os variados rendimentos, a taxas progressivas, tem de ser o grande corrector dos proventos, não me repugna afirmar que as pessoas singulares ou colectivas que recolham mais vantagens das suas actividades ou dos seus valores, devem suportar equivalentemente a incidência mais forte dos possíveis agravamentos.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: a advertência, que no parecer se faz, u necessidade de coordenação é um oportuníssimo apelo de reforma ao modo individualista que vulgarmente persistimos em cultivar e que, por

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vezes, atinge mesmo o nível de reprovável egoísmo, de falso espírito de corpo ou de cegueira provocada pela luz encandeante da deformação profissional.
Coordenação e cooperação devem ser palavras de ordem entre nós, porque conduzem a soluções simultaneamente mais lógicas, económicas e eficientes.
Para aconselhar ou avaliar uma decisão não basta muitas vezes que se evoque um simples precedente ou um hábito, que se tome por base o apoio numa analogia ou se faça uso de uma extrapolação. É preciso fragmentar os problemas e analisar, com profundidade, não só cada uma das partes componentes, como também os factores estranhos que os condicionam. Depois, há que completar essa exaustiva análise percorrendo cautelosamente, o caminho inverso da síntese, caminho que levará por apropriada coordenação (repito, por apropriada coordenação) a um juízo global e equilibrado.
Não me parece que exista mais simples contraveneno para a quase fatal compartimentação técnica do que o desenvolvimento do espírito de cooperação e dos princípios de coordenação.
A incidência sobre a estrutura do Estado da lei da divisão do trabalho provocada pela especialização dá origem a um poder estatal fragmentado e repartido por numerosíssimos serviços, quantas vezes fazendo uso de independência de espírito, se não mesmo de autonomia de facto.
Na complexidade dos inúmeros interesses que se opõem nem sempre é fácil definir o interesse geral.
Quem dirige deve saber evitar a permeabilidade aos interesses particulares e também um certo despotismo das instituições técnicas, quando pretendam impor abstracções desatentos à orientação que imprimem à própria evolução ou divorciadas das aspirações dos administrados.
Quero com isto dizer que o equilíbrio da chefia tem de ser procurado no campo aberto e diverso da vida.
Também a concepção funcional da administração pública se desenvolve em detrimento de uma hierarquia administrativa que parece dissipar-se. O fenómeno não é nosso, é geral.
Considero muito necessário que nos diferentes escalões territoriais se possa efectivamente coordenar e harmonizar a actividade dos serviços articulados verticalmente e dependentes directos das administrações centrais.
For isso, insisto que a unidade de estrutura territorial tem de se manter e valorizar, sob pena de desumanização dos actos administrativos e da submissão das concepções utilitárias e sociais às concepções puramente técnicas.
Sr. Presidente: respiguei, aqui e além, determinadas afirmações do parecer.
Nele se diz que «é indispensável concentrar todos os esforços num sentido utilitário» e que «a produtividade no trabalho e na organização é elemento decisivo nas probabilidades de sobrevivência»; nele se defende a «simplificação de formalidades burocráticas», aludindo-se a «uma tendência que torna confusas e demoradas resoluções simples»; e também nele se aconselha a revisão «de um programa de realizações que não se adaptam aos recursos à vista» é o estudo cuidadoso «da rentabilidade dos investimentos».
Creio bem que o Governo não deixará de continuar a aplicar estes princípios gerais à própria máquina administrativo estatal.
Para além dos esforços e medidas da governação no sentido acabado de referir, e que não podem deixar de se louvar, ainda se notam certas deficiências, que precisam de remédio.
Nota-se, por vezes, que a preocupação demasiado exclusiva do trabalho corrente leva a um estado de espírito que concorre grandemente para a falta ou insuficiência de metodologia do trabalho.
Nota-se, por vezes, uma espécie de vício de certos sectores da Administração, que consagram demasiado os seus esforços e o seu tempo a administrarem-se a eles próprios, em vez de serem instrumentos devotados ao serviço público e ao interesse da colectividade.
Nota-se, por vezes, a imprecisa definição dos objectivos a atingir e, o que é mais grave, uma despreocupação altamente prejudicial quanto à concreta avaliação dos correspondentes e necessários meios para se atingirem.
Nota-se, por vezes, que a rotina escraviza e ofusca as mentalidades quanto à elevada conveniência de uma construção administrativa que se inspire na noção do rendimento, na eliminação de organismos dispensáveis, na supressão de escalões desnecessários, na correcção da tendência para uma especialização excessiva, coordenando ou reagrupando serviços cuja missão é semelhante, na preocupação em evitar sobreposições de competências, enfim na busca e eliminação sistemática de formalidades inúteis.
A Administração deve fazer face a missões de previsão, de síntese e de cooperação, tanto mais imperativas quanto mais fragmentária é a acção técnica; e, muito embora não se tenha mantido indiferente às noções de método e de organização, de rendimento e de produtividade, há que continuar a dar ao funcionalismo público, de forma mais incisiva, directivas e conhecimentos concordantes com tais noções, recolhendo e premiando até as sugestões dos executantes que redundem em melhoria dos serviços.
Dizem-me que há alguns anos foi constituída uma comissão de aperfeiçoamento dos serviços públicos, no sentido de os simplificar.
Faço votos para que dos seus trabalhos resultem interessantes recomendações ou sugestões para a acção governativa, pois me parece que urge resolver, tão completamente quanto possível, as deficiências que genericamente acabei de apontar.
Sr. Presidente: ao folhear o Orçamento Geral do Estado para o ano económico de 1960 verifiquei que, logo no mapa 2, figuravam as receitas e despesas de fundos e serviços autónomos do Estado. Nele ressaltam - no concernente a receitas - as receitas próprias, que atingem um valor considerável, e cerca de seis vezes superior ao das dotações orçamentais dos mesmos fundos e serviços.
Ora, na Conta Geral do Estado figuram as dotações orçamentais e os respectivos pagamentos efectuados, mas pode causar estranheza nada se esclarecer sobre as despesas feitas em contrapartida das receitas próprias efectivamente cobradas.
E porque algumas palavras sobre o assunto podem contribuir para dissipar tal estranheza, vou citar o caso particular das receitas próprias inscritas no orçamento respeitantes à Força Aérea, e que atingem um valor global da ordem dos 100 000 contos.
Começo, desde já, por afirmar que este valor não tem um significado rigoroso, pois que, normalmente, excede em muito as receitas cobradas. Para o facto encontro as seguintes explicações:
Por um lado, os serviços administrativos militares adoptam uma previsão por excesso, visto que, segundo a lei, não podem fazer mais do que dois orçamentos su-

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plementares em cada ano económico, e este procedimento é naturalmente moroso e causa embaraços ao bom andamento da vida administrativa: procuram assim evitá-lo tanto quanto possível.
For outro lado, as actividades militares apresentam certas peculiaridades que quase recomendam este critério, porque elas vão influir necessariamente nos fundos privativos: é o caso, por exemplo, da execução de manobras, exercícios, alterações de dispositivo, movimentos de pessoal e mesmo operações exigidas pela evolução da situação militar, tantas vezes imprevisíveis a longo prazo.
Como quer que seja, à previsão por excesso nas receitas próprias corresponde, logicamente, uma previsão por excesso nas despesas. Tal facto não origina qualquer inconveniente, visto que as despesas só se realizam na medida em que têm cobertura nas receitas arrecadadas.
Pode perguntar-se: como é possível que uma base aérea tenha orçamentado, em receita própria, um valor da ordem dos 10 000 contos? E ainda: como se processa a despesa de igual monta, que é contrapartida da receita cobrada?.
O Decreto-Lei n.º 41 164, de 25 de Junho de 1957, ao instituir os fundos privativos das unidades da Forca Aérea, dá-nos a resposta.
Nele se afirma que as receitas cobradas provêm de serviços prestados, contra pagamento, pelas próprias unidades ao seu pessoal e respectivos agregados familiares; e acrescenta-se que, com idêntico fim, nas unidades podem funcionar explorações de carácter agrícola, industrial e comercial.
O simples enunciado dos fundos privativos dá uma ideia desses serviços prestados: alimentação, vestuário, lavadaria, alojamento, enfermaria, fotografia, transportes, oficinas, cantina, abastecimento, etc.
Os fundos privativos estimulam a vida das unidades, na medida em que permitem a realização de despesas que não se poderiam realizar por conta de verbas orçamentais insuficientemente dotadas. Com efeito, a lei permite a transferência de saldos apurados em determinados fundos privativos para o fundo chamado de «Diversas receitas e despesas», pelo qual se faz o suprimento das dotações orçamentais insuficientes.
A administração dos fundos privativos obedece integral e escrupulosamente às regras da contabilidade pública e é igualmente fiscalizada, através das respectivas contas de gerência, pelo Tribunal de Contas.

O Sr. Sousa Meneses: - É o chamado «saco azul».

O Orador: - Não é. Está absolutamente legalizado por decreto-lei.

O Sr. Sousa Meneses: - Mas não desapareceu o «saco azul».

O Orador: - Não sei.
Generalizando, creio poder afirmar que não se duvida que as regras que disciplinam as despesas públicas deixem de se observar, mas parece recomendável que se inscreva, na Conta Geral, uma possível discriminação das despesas efectuadas por fundos e serviços autónomos do Estado, sem se esquecer, evidentemente, a referência às receitas próprias efectivamente cobradas.
Não se desconhecem as dificuldades acessórias para a elaboração da Conta quando se aplique o alvitre acabado de expor. Mas pergunto: o extraordinário volume que vêm atingindo os valores orçamentados como receitas próprias de fundos e serviços autónomos do Estado não parecem recomendar qualquer medida esclarecedora, na Conta Geral do Estado, da sua aplicação?
Sr. Presidente: para terminar, vou incidir num outro assunto que me causou certa surpresa quando analisei as Contas. Refiro-me às verbas despendidas correspondentes a encargos com as instalações da Força Aérea (rendas de prédios rústicos e urbanos).
Em principio, chocaram-me pelo seu elevado valor.
Como profissional do ar que sou, conheço já as instalações da Força Aérea; considero-as, na maioria dos casos, modestas, e muitas nem sequer me parecem razoavelmente adaptadas, sob o ponto de vista funcional, às diferentes actividades que nelas se desenvolvem.
Fiz para mim a seguinte pergunta:
- Corresponderiam estas volumosas verbas a um esforço intencional no sentido de serem resolvidas as deficiências ainda existentes?
Tive de procurar uma explicação, que passo a expor:
Os órgãos de comando e chefia da Força Aérea que, muito naturalmente, estão instalados em Lisboa espalham-se por vários edifícios e partes de edifícios da cidade e nenhum pertence ao Estado.
Assim, só em rendas de prédios urbanos, onde se instalam o Gabinete do Secretário de Estado da Aeronáutica, o Estado-Maior da Força Aérea, as direcções aos diferentes serviços da Força Aérea, o comando da 1.º região aérea e o centro de recrutamento n.º l, gastaram-se cerca de 900 contos. Sou informado que em 1961 esta despesa ultrapassou os 1000 contos.
Por isso, cerca de metade das verbas globais desta natureza se verteu para tal fim.
Nos últimos cinco anos (de 1957 a 1961), só em rendas do prédios urbanos, na cidade de Lisboa, a Força Aérea pagou para cima de 4000 contos.
No que respeita à conservação e aproveitamento de imóveis, também cerca de metade das verbas globais teve aplicação em 1961 nos órgãos de comando e chefia que estou a referir. Se acrescentarmos que esses órgãos são dotados com verbas próprias para o mesmo efeito, chegamos a estes valores:
Só em 1961 despenderam-se mais de 600 contos na conservação e aproveitamento dos referidos imóveis; em 1960; 427 contos, e de 1957 a 1961, mais de 2000 contos.
Resumindo:
Nos últimos cinco anos gastaram-se, unicamente com os órgãos de comando e chefia da Força Aérea instalados na capital, e apenas em rendas de casa e despesas de conservação e adaptação, para cima de 6000 contos.
Dado o carácter progressivo de tais despesas, sou informado de que, no ano passado, elas atingiram 1650 contos.
Apesar disso, com alguma tristeza, tenho do acrescentar que os órgãos de comando e chefia estão de tal forma dispersos que daí resulta prejudicada a eficiência e oportunidade das acções de direcção.
A este grave inconveniente outros se juntam: é que as necessárias ligações - dada a interdependência que condiciona as suas actividades - envolvem ainda mais despesas complementares de transportes, uma mais pesada burocracia e tempo perdido, sem contar com as dificuldades na execução de medidas de segurança.
Que posso concluir?
Direi muito simplesmente que se impõe como inadiável a construção de um bloco de edifícios para a instalação dos órgãos de comando e chefia da Força Aérea.

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É uma decisão que redundará em economia, porque compensa bem as avultadas despesas anuais que vai eliminar.
Sei que o assunto tem sido preocupação grande de S. Exa. o Secretário de Estado da Aeronáutica, e creio que S. Exa. o Ministro das Finanças lhe está a dispensar uma atenção favorável.
Admito, pois, que se efective a inscrição de uma verba para tal fim no próximo Orçamento Geral do Estado, e chamo a atenção da Assembleia para as simples e claras razões aduzidas em sua justificação.
S. Exa. o Secretário de Estado da Aeronáutica, senhor de uma inteligência altamente esclarecida a que alia um invulgar vigor na acção, saberá - sem dúvida - encontrar uma solução que sirva o futuro, porque a Força Aérea terá, necessariamente, que continuar a desenvolver-se.
O seu dispositivo actual não chega a cobrir ainda as províncias ultramarinas.
E afinal basta que se considerem as características geográficas e estratégicas dos territórios portugueses para que daí resulte a seguinte afirmação axiomática:
A progressividade do incremento da aeronáutica militar, que se tem vindo a processar, impõe-se por simples exigência do aconselhável doseamento de forças militares em serviço dos altos interesses da defesa nacional.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: -Vou encerrar a sessão. Continuará amanhã, à hora regimental, o debate sobre a Conta Geral do Estado, as contas das províncias ultramarinas e as contas da Junta do Crédito Público. E na especialidade discutir-se-á a proposta de lei sobre a previdência. Está encerrada a sessão.

Eram 19 horas o 40 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Jacinto da Silva Medina.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Rogério Vargas Moniz.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Agnelo Ornelas do Rego.
Alfredo Maria de Mesquita Guimarães Brito.
Antão Santos da Cunha.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Tomás Prisónio Furtado.
Armando Francisco Coelho Sampaio.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Carlos Coelho.
Fernando António da Veiga Frade.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim de Jesus Santos.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Urgel Abílio Horta.
Voicunta Srinivassa Sinai Dempó.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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