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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 58

ANO DE 1962 12 DE DEZEMBRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VIII LEGISLATURA

SESSÃO N.º 58, EM 11 DE DEZEMBRO

Presidente: Exmo. Sr. Mário de Figueiredo

Secretários: Exmos. Srs.
Fernando Cid Oliveira Proença
Luís Folhadela de Oliveira

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi lido o expediente.
O Sr. Presidente deu conhecimento à Câmara de estarem na Mesa pedidos dos tribunais da Boa Hora- 1.ª vara cível, Vila Nova de Famalicão e Lisboa - 5.º juízo correccional, para os Srs. Deputados Martins da Cruz, Joaquim José Nunes de Oliveira e Quirino dos Santos Mealha deporem como testemunhas em processos ali pendentes.
Consultada a Assembleia, foram concedidas as autorizações solicitadas.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Cutileiro Ferreira, sobre problemas de interesse para o Alentejo; Lopes Roseira, acerca de assuntos de política ultramarina; Ribeiro da Silva, para se referir ao falecimento do Deputado Pires da Costa, ocorrido durante o interregno parlamentar, e Cancella de Abreu, que anunciou um aviso prévio.

Ordem do dia. - Continuação da discussão na generalidade da proposta de lei de autorização das receitas e despesas para o ano de 1963.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Manuel João Correia, este para concluir as considerações iniciadas na sessão anterior, Alberto Meireles e Santos Bessa.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 20 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alberto dos Reis Faria.
Alberto Ribeiro da Costa Guimarães.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Marques Lobato.
Alfredo Maria de Mesquita Guimarães Brito.
André Francisco Navarro.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
Antão Santos da Cunha.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Burity da Silva.
António Calheiros Lopes.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Gonçalves de Faria.
António Júlio de Carvalho Antunes de Lemos.
António Magro Borges de Araújo.
António Manuel Gonçalves Rapazote.
António Maria Santos da Cunha.
António Marques Fernandes.
António Martins da Cruz.
António Moreira Longo.
Armando Cândido de Medeiros.
Armando Francisco Coelho Sampaio.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Alves Moreira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.

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Artur Proença Duarte.
Augusto José Machado.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Alves.
Carlos Coelho.
Carlos Emílio Tenreiro Teles Grilo.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
D. Custódia Lopes.
Délio de Castro Cardoso Santarém.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Fernando António da Veiga Frade.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco António Martins.
Francisco António da Silva.
Francisco José Lopes Roseira.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Francisco Lopes Vasques.
Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Jacinto da Silva Medina.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Rocha Cardoso.
João Ubach Chaves.
Joaquim de Jesus Santos.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Sousa Birne.
Jorge Augusto Correia.
Jorge Manuel Vítor Moita.
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos.
José Alberto de Carvalho.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José Luís Vaz Nunes.
José Manuel da Costa.
José Manuel Pires.
José Maria Rebelo Valente de Carvalho.
José de Mira Nunes Mexia.
José Pinheiro da Silva.
José Pinto Carneiro.
José dos Santos Bessa.
José Soares da Fonseca.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Folhadela de Oliveira.
Manuel Augusto Engrácia Carrilho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Herculano Chorão de Carvalho.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel João Correia.
Manuel João Cutileiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Melo Adrião.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Beis.
Mário Amaro Salgueiro dos Santos Galo.
Mário de Figueiredo.
Olívio da Costa Carvalho.
Paulo Cancella de Abreu.
Quirino dos Santos Mealha.
Rogério Vargas Moniz.
Rui de Moura Ramos.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Ar antes.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Virgílio David Pereira e Cruz.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 104 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Da Câmara Municipal de Fafe a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Délio, Santarém sobre a situação dos municípios.
De Fernando Ferraz, pelo Abrigo de S. José, a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Martins da Cruz acerca de problemas do ensino na Beira Baixa.

O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os seguintes ofícios: do juiz de direito da 1.ª vara cível da comarca de Lisboa a pedir autorização para o Sr. Deputado Martins da Cruz depor naquele tribunal, como testemunha, no dia 14 de Janeiro do próximo ano; do juiz de direito da comarca de Vila Nova de Famalicão a pedir autorização para o Sr. Deputado Nunes de Oliveira depor naquele tribunal, como testemunha, no dia 17 do mesmo mês e ano, e do juiz de direito do 5.º juízo correccional da comarca de Lisboa a pedir autorização para o Sr. Deputado Quirino Mealha depor naquele tribunal, como testemunha, no dia 23 do mesmo mês e ano.
Os Srs. Deputados visados naqueles ofícios não vêem qualquer inconveniente para o exercício do seu mandato na prestação dos seus depoimentos.
Consulto, pois, a Assembleia sobre os referidos pedidos de autorização.

Consultada a Assembleia, foram concedidas as autorizações solicitadas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Cutileiro Ferreira.

O Sr. Cutileiro Ferreira: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: trazido a esta Câmara por um círculo alente j ano, o círculo de Évora, e não sendo um representante sectorial, no sentido da representação exclusivista de interesses ou opiniões de grupos estanques, entendo, e julgo-me na boa doutrina, que não devo, e também não quero, alhear-me de problemas que não tenham uma unânime concordância dos meus eleitores.
Está neste caso o problema da irrigação do Alentejo.
Convém lembrar que a irrigação do Alentejo não abrange, como alguns pensam, toda esta enorme província. A rega tem limites nos acidentes orográficos, nas terras maninhas, nas florestas e noutros acidentes impeditivos. Persistem, e em vastas zonas, os graves problemas das culturas de sequeiro, dos montados de azinho e sobro e até os dos olivais, que ocupam área de relativa grandeza. Haverá, para além da irrigação, que resolver

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estes casos difíceis, e mais difíceis por se tratar de atender a uma província grande de um país continentalmente pequeno.
Obra proposta há longa data, teve, desde a primeira hora, detractores e defensores acérrimos, apaixonados e vigorosos.
Nesta Câmara tudo se preparava para um estudo intenso do problema, através da discussão, viril, do projecto de lei da colonização interna. Necessidade urgente de acção, quero crê-lo, levou o Governo da Nação a dispensar essa discussão e a promulgar um decreto. Porque não receio, como todos nós não receamos, as responsabilidades derivadas de uma atitude, sinto pena que esta Câmara não tivesse podido pronunciar-se. Mas, o facto consumado não o dispensa, há considerações, sugestões e agradecimento que um- Deputado alentejano não pode deixar de fazer.
Direi, em primeiro lugar, que a irrigação do Alentejo não é, como por aí se ouve por vezes, uma iniciativa sistematicamente combatida pela lavoura da minha região. A obra, na generalidade, é aceite e, como prova insofismável, basta reparar nos regadios devidos à iniciativa particular. Antecipando-se à decisão governamental de regar o agro alentejano, já alguns, muitos mesmo, haviam investido os seus capitais em barragens e preparo de terras, para a utilização da fecundante água. Esses pioneiros do regadio têm uma obra que se não pode ignorar e têm uma prática que deve ser aproveitada. Os serviços competentes necessitam assegurar o concurso desses homens e ouvir a razão dos seus sucessos e dos seus insucessos. Uma obra da envergadura da que ora se inicia necessita do concurso de todos, mesmo, e até talvez mais, dos que descrêem, para que a sua descrença obrigue a mais profundos e cuidados estudos, para que possam ser esclarecidos e, possivelmente, convertidos. É da história que os melhores propagandistas são sempre os recém-convertidos.

O Sr. Rocha Cardoso: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz obséquio.

O Sr. Rocha Cardoso: - Posso afirmar a V. Ex.ª que as obras das barragens do Alvor e Silves, no Algarve, são obras que também tiveram descrentes, mas, na sua realização e agora na sua prática, o Algarve está mais do que agradecido, porque têm desenvolvido a economia, têm facilitado a vida da lavouva, e pode V. Ex.ª afirmar a esses alentejanos que não crêem que, passados dois ou três anos de rega, serão os primeiros a levantar as mãos ao Governo, de agradecimento.

O Orador: - Uma das razões da falta, para mim mais aparente que real, de interesse da lavoura pelos problemas da irrigação do Alentejo é uma certa irritabilidade proveniente de se encontrar em deficiente situação financeira, que não lhe permite desempenhar, como no fundo bem desejaria, a sua acção social na presente conjuntura. A este estado levaram consecutivos maus anos agrícolas, sobretudo da produção cerealífera; o mais baixo valor das cortiças; o desinteresse dos consumidores, hoje solicitados para a electricidade, o gás butano e os óleos minerais, pelas lenhas e carvões; o muito desproporcionado custo dos combustíveis líquidos em comparação com outras actividades; o elevado custo das máquinas agrícolas e das peças de substituição; uma substancial redução nos efectivos dos rebanhos de determinada espécie; o custo, quase proibitivo, dos adubos de fundo e correcção; o exagero de algumas avaliações cadastrais regionais; a falta de pagamento de subsídios, legalmente atribuídos, em que, se é passiva de discordância a sua concessão, nunca é admissível que se não paguem em tempo competente; a concessão de créditos discordantes com os ciclos das culturas; finalmente, erros da própria lavoura, tais como falta de espírito gregário; escassez de orientação mercantil; parcial desactualização de métodos de exploração agrária e pecuária e, ainda, fraca fiscalização geral da exploração através de uma eficiente contabilização.
A juntar aos factos apontados existe uma incerteza quanto às regulares relações entre a lavoura e os seus servidores: os rurais.
É de conhecimento geral que ocorreram, no passado período das colheitas, factos anormais que foram habilmente explorados por alguns, em prejuízo de muitos. É certo que o Governo manteve a ordem ... restabeleceu a paz, mas, importa que se diga, alguns dos seus serviços foram inoperantes.
O sistema corporativo de relações entre as partes em litígio, por questões emergentes, especialmente de horários de trabalho, não actuou como devia. É indispensável que os factos não se repitam. Os sistemas devem funcionar, os colóquios estabelecerem-se, os acordos firmarem-se e cumprirem-se. A dúvida gera a confusão, e esta não serve os interesses gerais da Nação.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É neste clima que o Governo faz publicar, corajosamente, diga-se, o decreto da colonização interna. Resta que os organismos encarregados de promoverem a sua efectivação estejam, e isso se deseja fervorosamente, à altura das circunstâncias. Cabe-lhes insana tarefa de acção, tanto no campo material como no espiritual. Importa, acima de tudo, educar.
Se é verdade que a elevação do nível de vida das populações, o seu maior poder de compra, é aliciante para as classes comerciais e industriais se mostrarem jubilosas com o decreto, pelas perspectivas de melhores proventos, essa melhoria, que esperamos venha, seja igualmente caminho aberto para uma melhoria dos níveis cultural e intelectual. Dispor de riqueza sem riqueza de espírito é pobreza ... é mesmo miséria. Aproveite-se a oportunidade para intensificação do desenvolvimento das escolas ... de todas, as escolas ... desde as primárias às superiores e, quando o Estado por si o não possa fazer, possibilite, por todas as formas, a sua criação e funcionamento. Para as novas perspectivas todos os técnicos são precisos e, a par dos técnicos, os humanistas.
Na parte puramente técnica permito-me lembrar que o regadio se pretende para variabilidade e multiplicação das colheitas, e estas só são possíveis quando a terra se possa utilizar quase ininterruptamente. Para isso importa, além de regar, drenar, e nisto não tenho ouvido falar. Igualmente é de primordial importância a obtenção de grandes massas de matérias fertilizantes de tipo orgânico. O aproveitamento de lixos e esgotos das cidades, vilas e aldeias impõe-se. Não se pode deixar o problema no âmbito das realizações sanitárias concelhias, interessa a criação de um serviço de recuperação de carácter regional ou mesmo nacional.
Lembrar uma carta de solos ... um ordenamento agrário ... não é pertinente.
Está na direcção superior dos problemas agrícolas alguém que, nesta Casa, brilhantemente expôs os seus profundos conhecimentos da matéria, alguém que foi aumentar, e substancialmente, o pecúlio intelectual do Go-

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verno na medida em que desfalcou o desta Câmara, alguém que tem a nossa confiança total, alguém que só a estreiteza de um secretariado - que deveria ser um Ministério provido de todos os órgãos hoje disseminados - pode inibir de cumprir ... e de cumprir como sabe.
Postas estas ligeiras considerações e sugestões, gostosamente vou fazer um agradecimento. Agradecimento sincero, franco, leal, ao Ministro que, dentro do plano de rega do Alentejo, resolveu um dos mais impertinentes problemas de Évora - o abastecimento de água à cidade.
Só quem tenha vivido as ansiedades da população, as preocupações angustiosas das vereações, perante tão grave problema poderá compreender com que prazer e reconhecimento - se diz ao Sr. Eng.º Arantes e Oliveira: muito obrigado, Sr. Ministro.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Lopes Roseira: - Sr. Presidente: embora as minhas palavras venham a ser descolorida repetição de outras já aqui proferidas por pessoas mais esclarecidas, sou inclinado, não só por dever de cortesia, mas também por espontâneo sentimento de simpatia e admiração, a dirigir a V. Ex.ª os meus cumprimentos muito cordiais e as mais respeitosas saudações. E - repito - não é só por mero dever de cortesia que me curvo em preito de homenagem à inconfundível estatura intelectual do professor insigne e do político arguto e experimentado: faço-o, também, com a satisfação de quem muito honrado se sente por servir sob a direcção de um dos espíritos mais robustos do escol da Nação e, logo nas primeiras sessões de trabalhos, se sentiu conquistado pelo irradiante brilho da sua inteligência, pelo trato afável, impregnado de fino bom humor; e pela maneira isenta e superior como orienta a actividade desta Assembleia. E, sob este aspecto, já pude apreciar aqui a invulgar força moral e as superiores qualidades do carácter de V. Ex.ª numa agitada intervenção que ficou, para mim, inesquecível: V. Ex.ª então revelou-se esplendorosamente magnífico de perspicaz ponderação, de generosa compreensão, de lealdade. E eu acabava, nessa ocasião, de receber, em breves minutos, uma das mais belas lições de conduta humana na vida política. É por tudo isto que eu, Sr. Presidente, incondicional e modesto admirador de V. Ex.ª, lhe renovo os meus respeitosos cumprimentos.
Srs. Deputados: para VV. Ex.ªs, por imperativo de consciência, vão também umas breves palavras. Com elas quero dirigir, primeiramente, a todos VV. Ex.ªs, os meus respeitosos cumprimentos, em cada um saudando os povos que, por direito de inteligência e de acção, aqui representam legitimamente. E, ao fazer esta saudação muito sincera, porque cordial, quero manifestar também o quanto me sinto honrado com a distinta companhia de tão altos valores da inteligência, ante os quais o meu ser se reduz a humilde figura cuja presença vos não dá honra nenhuma e só se engrandece e parece alguém com a honra que lhe emprestais.

Vozes: - Não apoiado!

O Orador: - E já que, por insondáveis desígnios de Deus, me foi dado tomar assento nesta Casa, constrangido por opiniões de todos quantos ouviram as minhas razões de recusa, aqui vos afirmo e garanto inabaláveis propósitos de leal colaboração, de máximo respeito - ainda que em campo discordante -, apenas com o natural condicionalismo de reciprocidade. E mais: considero o processo selectivo que nos trouxe até aqui, não aceito a mais leve dúvida ou suspeita quanto à genuinidade do amor patriótico de cada um de nós.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Para mim isto é ponto de honra. Já noutro lugar e noutra circunstância pude afirmar que aqueles que negam a outros a qualidade de bons portugueses apenas porque pensam diferentemente vivem convencidos de que só um caminho existe para depor oferendas no altar da Pátria. E, como dentro desta Casa somos a voz da Nação, posso afirmar solenemente - repetindo o que em Luanda já afirmara publicamente - que estou entre vós livre, independente de subordinações, isento de amizades comprometedoras, sem sujeição a grupos nem a influências suspeitas. Venho só, e ando e andarei só, com a minha consciência de português, visando um alvo: o bem comum do povo, o bem da grei.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Assim fàcilmente podeis concluir, senhores, que o meu único compromisso é com a Pátria. Porque tomado em plena consciência há muitos anos, é sólido, é sério, é dedicado e cheio de interesse: interesse por que se mantenha a sua perenidade com todas as virtualidade» que a não desviem da ascensão infinita pela senda do progresso.
Venho, pois, com o coração na boca e a consciência a servir-me de túnica protectora contra a maledicência ou as insinuações de quantos encobrem despeites e interesses pessoais, próprios ou alheios, com a capa de um patriotismo de duvidosa autenticidade. Não terei outro modo de falar que não seja o da rude franqueza que, embora, uma vez por outra, possa não conter a verdade total, é sempre nimbada pelo cunho da sinceridade, porque não sei adjectivar pessoas por adulação ou lisonja a encobrir fins inconfessáveis. E, por ter sido o meu carácter modelado no rijo granito da Beira, sou inteiriço e duro em demasia para a contumélia fácil e untuosa. É assim que me apresento; e assim me vereis sempre, Srs. Deputados, ao serviço da Pátria e da grei sob a protecção do anjo bom que Deus me deu por guia.
Àqueles que, até há poucos dias, foram nossos colegas e deixaram esta Casa para ascenderem ao exercício de funções de governo dirijo as minhas respeitosas saudações, com os votos sinceros que faço por que Deus os proteja e, nos momentos difíceis, lhes mostre o caminho seguro da justiça e do bem comum. Quero referir-me aos Exmos. Srs. Dr. Paulo Rodrigues, nomeado Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho, e Eng.º Avezedo Coutinho, nomeado Secretário de Estado da Agricultura.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sem dúvida que será sempre por nós sentida a falta desses, dois brilhantes espíritos que muito contribuíam para a valorização dos trabalhos desta Assembleia; mas, em compensação, ela deve sentir-se jubilosa por ter visto sair do seu seio dois dos seus membros mais esclarecidos para colaborarem nas tarefas do Governo. Congratulo-me com a escolha de SS. Exas. para o desempenho de tão altas funções, que, estou certo, vão honrar em termos de geral aplauso e reconhecimento público.
Também, no curto interregno em que estiveram suspensos os trabalhos da Assembleia, outra destacada figura subiu ao primeiro plano da governação ultramarina: o dis-

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tinto oficial da nossa marinha de guerra Exmo. Sr. Comandante Peixoto Correia, agora novo titular da pasta do Ultramar.
Como todos VV. Ex.ªs sabem, o Exmo. Sr. Comandante Peixoto Correia não é um curioso, não é um peregrino, nem é um debutante em política e administração ultramarina. Não chega carregado de teorias e abstracções que vai aplicar no corpo flagelado do nosso ultramar. S. Ex.ª é o tipo completo de «soldado prático». Conhece o ultramar; trabalhou no ultramar; ali terá curtido desanimes e desilusões, experimentou alegrias e sofreu as inclemências do clima e familiarizou-se com o enervante zumbido do mosquito e com as febres. Neste ambiente apurou S. Ex.ª o espírito e aprendeu a ouvir e a entender a linguagem do homem de África e os anseios das populações nativas. Não é, pois, um desconhecido. E melhor do que eu, melhor do que em letra de imprensa se possa dizer a respeito do novo Ministro do Ultramar, fala a voz do povo, falam aqueles que tiveram a rara felicidade de ser por S. Ex.ª governados.
Ainda em Cabo Verde se fala, com louvor e saudade, do comandante Peixoto Correia, assim como na Huíla, apesar de não ter permanecido largo tempo no governo deste distrito de Angola. O mesmo diremos com respeito à gente da Guiné, cujo Governo deixou muito recentemente. De ninguém se ouvirá uma voz - seja de Cabo Verde, de Angola ou da Guiné - a discordar das gerais referências elogiosas da acção governativa que S. Ex.ª desenvolveu naquelas províncias.
Uma tal unanimidade de opiniões, uma tal fama, que não foi obtida com o artifício da propaganda mercenária, resultou simplesmente de um trabalho inteligente., honesto e dedicado ao bem comum, com a probidade e lúcida consciência dos homens simples e, porque simples, superiores.
Estão de parabéns o Governo e as populações do ultramar pela feliz escolha de tão distinta personalidade, a quem presto as minhas respeitosas homenagens e ofereço a mais leal e desinteressada colaboração, com o desejo sincero de que o seu governo seja frutuosa continuação da sua brilhante carreira de governante ultramarino.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: da verdade de Angola a Nação apenas tinha conhecido a face emocional, explorada até limites doentios. Impunha-se revelar-lhe, sem escândalo, a outra face, para ter a verdade completa e poder deduzir os porquês e melhor saber avaliar as soluções que se têm aventado para a cura do mal que a todos aflige. Eu próprio tomei a iniciativa. Por isso, não regressei a Luanda após o primeiro período de trabalhos desta Assembleia. E, para que viesse a traduzir-se numa eficiente campanha de esclarecimento nacional, necessário foi que um bom punhado de portugueses da melhor formação cívica e política desse a sua adesão ao intento e contribuísse com o seu labor intelectual. Pode dizer-se, efectivamente, que a nossa actividade teve o seu início em Maio, quando houve entre todos a primeira explanação de factos e de ideias até estabelecermos um corpo de doutrina que foi julgada a que melhor pode servir a política ultramarina e a mais capaz de conduzir ao apaziguamento dos espíritos exacertados por uma luta fratricida e cruel.
De conformidade com os princípios estabelecidos e aceites, publicou o Instituto António Sardinha um manifesto que teve larga expansão e colheu geral aceitação, ficando a marcar a primeira e mais clara «posição portuguesa» no problema ultramarino, definida com raro brilho e superior isenção. Logo a seguir, o Sr. Doutor Fernando Pacheco de Amorim deu a conhecer à Nação, por forma clara e elucidativa, Três Caminhos da Política Ultramarina.
Esta obra tem, para mim, o grande mérito de fazer uma crítica imparcial às três soluções que mais debatidas têm sido e a coragem moral e cívica, sem tergiversações nem disfarces, de apontar à Nação a solução mais indicada, a que melhor serve o interesse nacional, a única que é uma solução portuguesa - a integração.

O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Tenha a bondade!

O Sr. Júlio Evangelista: - Essa é a opinião de V. Ex.ª

O Orador: - Sem dúvida.

O Sr. Júlio Evangelista: - Pronto! Mais nada!

O Sr. Vasques Tenreiro: - Também desejava fazer minhas as palavras de V. Ex.ª, Sr. Deputado Júlio Evangelista!

O Sr. Manuel João Correia: - E eu apoio as palavras de V. Ex.ª, Sr. Deputado Vasques Tenreiro.

O Orador: - Sucedeu a esta etapa uma fase de consciente expectativa: desejávamos conhecer, em face do arrepiante impasse em que estavam as coisas do ultramar, qual a reacção do Governo e como julgaria a doutrina que se proclamou. Não foi vã a nossa expectativa.
S. Exa. o Ministro de Estado, em comunicação que se dignou fazer, em 3 de Setembro, aos órgãos da informação, veio declarar à Nação, com o brilho e a lógica convincente da sua inteligência, que o Governo também perfilha a mesma doutrina, por «ser a integração o caminho que, no presente e no futuro, melhor convém à realização total de cada uma das regiões integrantes da Pátria Portuguesa. No conceito português, integração será o modo natural e necessário de fortalecer a coesão e será a atitude nacional de hoje, porque, aproveitando o progresso do tempo, ela é a melhor - se não a única - garantia dos interesses próprios e comuns de cada pedaço do chão e de alma de Portugal».
Mais nada nos era necessário, nem mais podíamos esperar, para que nos decidíssemos a percorrer o Norte e o Centro do País em divulgação da política de integração do ultramar português. Fomos, com outros dedicados portugueses de boa fibra, espalhar o conhecimento das nossas ideias, das ideias do Governo acerca do problema ultramarino, despertando a consciência pública.

O Sr. Júlio Evangelista: - Das ideias do Governo?

O Orador: - V. Ex.ª não tem estado a acompanhar a minha exposição.

O Sr. Júlio Evangelista: - Não tenho perdido uma palavra.
Só pergunto se eram as ideias do Governo. E nem peço resposta.

O Orador: - Mas respondo a V. Ex.ª Eram as ideias do Governo e coincidiam com as nossas.

O Sr. Vasques Tenreiro: - Uma coisa é a integração que o Governo procura fazer e outra coisa é a integração

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que o Sr. Dr. Pacheco de Amorim propõe. Estou em desacordo com a integração proposta pelo Sr. Dr. Pacheco de Amorim.

O Sr. Presidente: - Peco a VV. Ex.ªs que com autorização do orador, só discutam aquilo que ele está a dizer

O Sr. Bento Levy: - Mas para poder discutir precisamos de saber qual é a noção de integração que tem o Sr. Dr. Pacheco de Amorim.

O Sr. Vasques Tenreiro: - Creio que a interpretação do Sr. Dr. Pacheco de Amorim está suficientemente divulgada...

O Orador: Peço a VV. Ex.ªs que tenham um pouco de calma e me ouçam até ao fim.
Enquanto empenhados na tarefa de divulgação, a nova doutrina é confirmada no mais alto órgão internacional - a O. N. U. - pela voz duplamente autorizada de S. Ex.ª o Ministro dos Negócios Estrangeiros, naquele organismo acreditado como legítimo representante e, portanto, porta-voz do nosso país. Só os mal intencionados é que não se disporão a reconhecer que a posição revelada por tão alto representante, na O. N. U. traduz iniludivelmente o pensamento e determinação do nosso Governo. Não havia dúvidas de que estávamos em muito boa companhia. E prosseguimos.
Foram 28 as cidades e vilas onde alguns de nós realizámos conferências. Suscitámos o interesse geral, chegando, em alguns casos, a haver debates que atingiram nível de apreciar; concitámos francas adesões aos princípios expostos, e em todos quantos nos escutaram, fizemos nascer uma aura de esperança confiante.
Pelo carinhoso acolhimento com que em toda a parte fomos distinguidos pelas individualidades que, em cada localidade, tomaram o encargo de tudo preparar para que as conferências se realizassem, ficámos muito desvanecidos e, por isso, daqui a todas endereço, nesta oportunidade, em nome dos comparticipantes, a expressão do nosso mais sincero reconhecimento. Também tivemos o prazer de sermos honrados com a presença confortante e animadora de alguns dos meus ilustres colegas nesta Assembleia, cuja deferência bastante nos sensibilizou. Para esses vão também, renovados, os meus cordiais agradecimentos.
Apesar de coincidentes - sem solicitações nem pressões de quem quer que fosse (e é bom que deixe isto bem vincado) - as nossas ideias com o pensamento do Governo, fomos alvejados com todos os meios de obstrução, em tentativa ostensiva de nos desacreditarem e desvirtuarem as nossas intenções. Não produziram nem produzirão qualquer mossa, pois bem sabemos que são da mesma estirpe daqueles que insultaram Napoleão quando souberam que se tinha evadido da ilha de Elba... e o aclamaram quando chegou a Paris.
Aqueles que puderam conhecer quanto a imprensa, tanto de cá como de Angola e Moçambique, e até, veladamente, a rádio e a televisão oficiais divulgaram em oposição à nossa doutrina deviam ter ficado surpreendidos com um facto que. ressaltou com a mais forte evidência: o ataque parece não ter sido contra os elementos activos da propaganda da doutrina da integração; era, sim, contra a posição favorável assumida nesta grave conjuntura pelos mais autorizados membros do Governo. Nós, os agentes da propaganda - perdoai-me, os plebeísmos de que vou servir-me, por mais expressivos -, fomos apenas o «pião das nicas», o mexilhão do picaresco dito popular.
E afinal o que foi que resultou de prático, aceitável e construtivo de tão descaroável contra-ofensiva? O Governo, pelo menos, obteve um alto benefício: conseguiu realizar, indirectamente, um teste que o deve ter deixado amplamente esclarecido a respeito da índole de algumas figuras do panorama político e social deste país.
Sobre a política de integração do ultramar vou transmitir a VV. Ex.ªs o que então disse. Deste modo ficarão melhor elucidados: «Em síntese, a integração consiste no desenvolvimento de uma acção em todos os quadrantes da vida humana dirigida no sentido da total interpenetração das raças que compõem a Nação Portuguesa, de modo que não mais possa haver qualquer prejuízo ou diferenciação baseado na cor da epiderme ou no lugar de origem. Politicamente, a integração é servida por uma libérrima descentralização, em que se reconhece a cada pessoa, segundo o seu mérito, o direito de intervir, do melhor modo possível, na administração e defesa dos interesses das localidades onde vivam e terem livre acesso a quaisquer posições económicas, sociais, técnicas, administrativas e políticas».

O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Júlio Evangelista: - É só para lembrar a V. Ex.ª que essa é a doutrina consagrada constitucionalmente.

O Sr. Vasques Tenreiro: - Desde o século XVI.

O Sr. Júlio Evangelista: - Exacto.

O Sr. Vasques Tenreiro: - Não é novidade nenhuma.

O Orador: - «A integração não concebe orgânicas administrativas especiais para cada território»; ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - «... não concebe a existência de quadros diferenciados de funcionalismo público para a metrópole e para cada província ultramarina»; ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - «... não concebe o reconhecimento de direitos e regalias que não sejam comuns a todos os servidores da Nação, e que estes não devam fazer o seu curriculum por todos os territórios, tanto europeus como ultramarinos»; ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - «... não concebe que não haja mais larga comparticipação de naturais do ultramar na vida pública metropolitana; não concebe um Ministério do Ultramar hipertrofiado, macrocéfalo, por entumecimento de atribuições que logicamente devem pertencer aos Ministérios da respectiva especialidade»; ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - «... não concebe a diferenciação de economias peculiares da metrópole e de cada província ultramarina, nem a diversidade monetária em cada uma daquelas partes»; ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

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O Orador: - «... não concebe outros órgãos de soberania além dos definidos no estatuto constitucional e, finalmente, não concebe a Nação unitária com diversos órgãos de governo nas províncias ultramarinas».

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - «É premente que todas as práticas de administração pública decorram de igual modo e pelas mesmas vias em que todas as províncias e distritos, sejam eles da metrópole ou do ultramar, para que, de uma vez para sempre, deixem de apelidar-se de colonialistas e possamos ser um estado unitário de facto».

O Sr. Herculano de Carvalho: - Muito bem!

O Orador: - «A integração põe termo satisfatório a todas as situações paradoxais, ao mesmo tempo que escancara o ultramar ao conhecimento efectivo de todos os órgãos do Governo e dos servidores da Nação, tornando real e permanente a sua presença na vida nacional. A integração admite e defende a unidade na diversidade; condena a segregação e a diferenciação; respeita as crenças religiosas; protege a liberdade de trabalho, e enaltece a dignidade da pessoa humana. Só assim verificaremos os mesmos graus de identidade entre as províncias metropolitanas e ultramarinas. E mais: só assim conseguiremos uma paz que honre a Nação e reintegre os nativos do ultramar na plena dignidade de membros considerados e activos da comunidade portuguesa, sem os quais esta é falha de autenticidade».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Isto disse eu. E os outros conferencistas as mesmas ideias repetiram, em termos mais felizes e brilhantes.

O Sr. Pinto de Mesquita: - V. Ex.ª dá-me licença?
Em grande parte, era a doutrina já de Mouzinho de Albuquerque e Paiva Couceiro, entre outros.

O Sr. Júlio Evangelista: - É a doutrina da Constituição Política de 1933.

O Orador: - Devo observar a V. Ex.ª que a Constituição é um grande documento, o documento sagrado do País, mas aqueles que a servem é que estão muito mal constituídos.

O Sr. António Santos da Cunha: - V. Ex.ª disse ...

O Orador: - Aqueles que a servem é que estão muito mal constituídos.
No entanto, não dou à expressão um carácter de generalidade. Quero dizer: alguns dos que a servem.

O Sr. Gonçalves Rapazote: - Portanto, esses não a servem.

O Sr. Soares da Fonseca: - O Sr. Deputado Francisco Roseira quer dizer alguns, porque ele também a serve.

O Sr. Pinto de Mesquita: - Alguns que a servem nessas condições são aqueles que a desservem.

O Sr. Burity da Silva: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Burity da Silva: - A tese explanada por V. Ex.ª até este momento, pelo menos para mim, não constitui novidade. E doutrina que insistentemente nós vemos preconizada e, quanto a mim, o problema do ultramar não está condicionado a doutrinas ou a teses; está condicionado à autenticidade a que V. Ex.ª aludiu. Quanto a mim, entendo que a batalha a travar Seca dar autenticidade à doutrina. E até agora ainda não ouvi a maneira como vamos dar essa autenticidade.

O Sr. Vasques Tenreiro: - Tem V. Ex.ª razão. Não me parece necessário que se formem grupos entre nós para andar a propagar essa doutrina. Portanto, não vale a pena estar-se a formar grupos para dizer o que é a integração. Isso está no espírito de todos.

O Orador: - Em comentário de Angola, transmitido pela Emissora Nacional, afirmou-se, com todo o ar sentencioso, que a solução política da integração já estava ultrapassada. Dado este tom, certa imprensa, lá e cá, tomou a tarefa de subi-lo, passando do grave ao agudo e do agudo à insinuação e ao insulto. Ao cerrado ataque se associaram espíritos brilhantes, alguns ocupando lugares de destacada responsabilidade, talvez por cega dedicação ou fraqueza. O concerto chegou a revelar notável afinação.
Procurou-se atemorizar ou pôr em sobressalto a consciência dos cidadãos, ao mesmo tempo que se fechavam à integração certos meios de divulgação. Envoltas com o ataque directo, disseram-se e publicaram-se coisas confrangedoras: afirmou-se que a- única solução para defender a integridade do ultramar era manter o statu quo, custasse o que custasse, porque havia dinheiro para isso; que só uma completa autonomia poderia satisfazer os colonos, como se no ultramar só existissem colonos; que era necessário ter muito cuidado com a onda de adesões à integração por indivíduos que fazem parte dos movimentos financiados pelo Leste; que o único caminho é o da «coexistência integrada», havendo também os que defendem a «coexistência lado a lado»; que é preciso salvar a guarda avançada da presença de Portugal em África, que os colonos representam, ignorando-se criminosamente que, pelo menos em Angola, tal presença, em várias conjunturas, foi salvaguardada decisivamente com a colaboração dedicada dos nativos; ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... que constituímos um grupo de pressão que só pretende apoiar-se no Governo, quando o que nós patenteávamos era franco apoio ao Governo. Enfim, e apesar de tantos ataques, a integração saiu incólume da primeira prova e adquiriu mais fulgor, porque ninguém contra ela opôs um argumento sério que obrigasse a inteligente reflexão.

O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª dá-me licença, pela última vez? Prometo que não voltarei depois a interromper mais V. Ex.ª

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª está a falar da integração como se esta não fosse a doutrina política do Estado Português, consagrada na Constituição Política, e como se quanto a esse aspecto houvesse dúvidas em qualquer dos Srs. Deputados.
É a doutrina que religiosamente respeitamos. Não é doutrina nova. Este o primeiro ponto, devido ao qual mais uma vez - que prometo ser a última - interrompi agora V. Ex.ª

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Segundo ponto: tenho presente, pelo muito respeito que me merecem e pela autoridade da inteligência que as ditou, as palavras que foram ditas nesta Assembleia pelo Sr. Presidente da Assembleia Nacional aquando da abertura desta sessão legislativa.
Tenho presente as palavras do Sr. Doutor Mário de Figueiredo quando afirmou que cada um de nós, quando falasse, deveria medir bem aquilo que dizia, porque as nossas palavras são sempre maldosamente julgadas e inpretadas lá fora. Por isso mesmo, daqui por diante, como tenho sempre presente as palavras de S. Exa., prometo, firmemente, que nunca mais interromperei V. Ex.ª

O Orador: - AS ideias não se opuseram ideias. Estas, por conveniência ou ignorância, foram postas de parte ou esquecidas. Apenas foram visadas pessoas em defesa de conveniências pessoais. E não faltaram saragoçanos e bandarras envolvidos em esoterismos de seita a levantarem misteriosos espantalhos com que pretenderam perturbar a parte sã da Nação, aquela que não tem senão um único desejo - o de ver a nau do Estado atravessar sem rombos a procela e entrar a navegar em mar bonançoso.
Se não tivesse opinião segura, há dezenas de anos firmada à custa de algum estudo e da permanente observação dos factos da vida de Angola, talvez me tivesse desorientado. Mas nada houve que me forçasse a uma mudança de rumo. Já em 1932, em discurso público que pronunciei nos Paços do Conselho de Luanda, por ocasião da visita do que foi um grande Ministro do Ultramar - Prof. Doutor Armindo Monteiro -, pude afirmar, com a convicção e o entusiasmo dos meus 25 anos: «Para quê a designação de colónias? É para mostrar que temos o domínio de muitos territórios ou apenas para figurarmos na Sociedade das Nações como grande potência colonial? Mas nós não temos domínios; temos, sim, em todos os cantos do Universo, fracções da Pátria, que, somadas, se completam. Pois, a principal causa da fraca e errada concepção que o povo da metrópole tem do Portugal ultramarino e do mau resultado da nossa colonização precisamente reside no facto de o ensino não ser feito com aquela orientação que era de esperar. Os mestres também não têm culpa: ensinam com a mesma consciência com que aprenderam. O ensino é que não esto orientado segundo os sagrados interesses da Pátria».
E quase a finalizar esse mesmo discurso, disse ainda: «... um povo que se lança a novos destinos, abandonando a tradição que o tornou livre, esquecendo os deveres que lhe impõe a memória dos maiores que maior tornaram essa tradição, é como um homem que perdeu a firmeza moral para honrar um nome grande legado pelo pai e não fez caso do que ele lhe ensinou e pediu transmitisse aos filhos».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É que a tradição é a bússola dos povos. E aqueles que a perderam ou despedaçaram jamais farão marcha gloriosa através das idades enquanto a não reouverem ou consertarem».
Por isto, sou pela integração,, sem necessidade de ir emporcalhar-me ao Leste para forragear argumentos a favor de uma solução portuguesa ou contra os que a têm combatido, os quais, aliás e em boa verdade, não foram ainda suficientemente corajosos para declararem a causa que defendem, muito embora lhes venha sobrando coragem para outras coisas ... E é caso agora para perguntar: porque caminhos, nestes 80 anos, andaram e andam os homens da minha idade e os mais idosos? Eu encontro-me no mesmo caminho, que continuo a ver claro, amplo e direito; por isso, sem necessidade de andar às curvas e deter-me nos cruzamentos.

O Sr. Lopes de Almeida: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Lopes de Almeida: - Então não é consciência, mas sim inconsciência.

O Orador: - Devo dizer a V. Ex.ª que nessa altura tinha 25 anos.

O Sr. Lopes de Almeida: - Com 25 anos já se sabe muita coisa.

O Orador: - Noutro passo desse mesmo discurso, ao fazer a crítica da nossa colonização, afirmei: «E não é dentro do actual estado social que poderemos conseguir tão alevantado fim - almejado por todos os que de alma e coração se sentem portugueses. Porque, quando aqui devíamos ter constituído uma sociedade intolerante, dentro das normas de rectidão e justiça que a todas deve presidir - mormente quando nos propusermos criá-la onde não existia -, criámos uma sociedade que ultrapassa os limites da tolerância, cujos resultados estão patentes: rios de dinheiro estèrilmente consumidos com uma finalidade sem programa e civilização apenas constituída por aquilo que é desassimilado por efeito da colonização, que, não sendo da pior, também não é a melhor que podíamos ter realizado».

O Sr. Fernando Frade: -~V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Fernando Frade: - Tenho estado a ouvir muito atentamente as palavras de V. Ex.ª e com a maior serenidade, porque gosto sempre de valorizar os meus estudos, mesmo que as opiniões possam ser diferentes das minhas. Simplesmente, está-me a causar uma certa confusão, porque recordo que em Março deste ano V. Ex.ª terá sido a única pessoa que apoiou as palavras do Sr. Deputado Vítor Barros.

O Orador: - V. Ex.ª não escutou na altura desse discurso, ou então não leu com atenção o Diário das Sessões.
Eu apoiei aquele discurso quando o Sr. Deputado Vítor Barros fulminou a acção do Ministro do Ultramar, e continuo contra essa mesma acção.

O Sr. Armando Cândido: - Fulminou, não! Pretendeu fulminar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Considero-me certo nos princípios e nas soluções. E nunca receei encontrar-me só, por nunca duvidar que tal acontecesse. E, felizmente, não aconteceu. Mas, se o contrário tivesse acontecido, não mudaria de rumo: seguiria o meu destino convencido, como o grande soldado de África que foi o general João de Almeida, de que, mais uma vez, um pode ter razão contra todos.

O Sr. Joaquim de Jesus Santos: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Com certeza.

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O Sr. Joaquim de Jesus Santos: - É para formular uma pergunta, cuja resposta ouvirei com o mesmo interesse com que tenho estado a ouvir as palavras de V. Ex.ª
Ao fim e ao cabo, as palavras de V. Ex.ª têm provocado no meu espírito uma certa confusão.
E, assim, gostaria que V. Ex.ª me dissesse se a doutrina da integração, que parece defender, é ideia nova ou se, pelo contrário, é uma ideia que decorre da nossa Constituição.
Na verdade, e se bem entendo, ela está formulada expressamente no artigo 134.º do estatuto fundamental, que a ideia central de toda a política portuguesa e da política ultramarina é a integração.
Ora, se realmente não é ideia nova e se ela decorre da Constituição, então parece que melhor seria apontar os desvios que se têm feito à Constituição, tanto mais que se acha estabelecido. que uma das nossas funções é vigiar o rigoroso cumprimento da mesma Constituição. Por isso, suponho que o debate deveria encaminhar-se neste sentido, uma vez que o problema da integração não é posto em dúvida por ninguém.

O Orador: - Eu desejaria responder a V. Ex.ª com uma pergunta, mas acho de meu dever lembrar que «Roma e Pavia não se fizeram num dia». E isto porque nem todas as questões podem ser concentradas numa simples exposição como a que estou fazendo.

O Sr. Joaquim de Jesus Santos: - Mas pode responder se é uma ideia nova ou se é uma ideia decorrente da Constituição.
E, neste último caso, se é uma crítica à execução da Constituição.

O Orador: - Não é uma crítica à Constituição, mas o abrir dos caminhos da execução como ela está sendo entendida.

O Sr. Joaquim de Jesus Santos: - Então, não é uma ideia nova!

O Orador: - Claro que não é uma ideia nova. Ela vem já desde os princípios dos séculos XVII e XVIII. V. Ex.ª sabe muito bem que mesmo antes da independência do Brasil ela vem sendo defendida.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Temos que fazer do nosso ultramar um livro aberto em que todos os portugueses possam e devam ler tanto as boas como as más páginas, pois só assim, desfazendo ilusões e falsas ideias, tornaremos consciência de como foi possível a 600 brancos, há 500 anos, fazer nascer um prolongamento da Pátria com a vitalidade que até nós chegou, já carecida, no entanto, por pecados velhos, de forte e decidida terapêutica adequada, e que nós julgamos ser a de uma integração integral.
Mas, se alguém estiver crente na viabilidade de outra solução de interesse nacional, nós, os defensores da integração, aceitaremos o diálogo, o debate comparativo, e, de bom grado, desistiremos perante a demonstrada superioridade. Só assim nos convenceremos. Só assim daremos a mão à palmatória com o melhor espírito de fair play e dispostos a colaborar na realização do bem comum, sem constrangimento nem ressentimentos pessoais, que nada pesam em confronto com o interesse nacional, que lealmente todos somos obrigados a defender.
Mas o que falta é definir com honestidade e clareza o que é, neste momento, o interêssse nacional e como pode ele ser preservado. É tarefa elementar um exame crítico a toda a nossa acção ultramarina -à política e à administração - e expurgá-la, inexoravelmente, de todos os laivos de colonialismo. Ladear a questão ou fugir a ela, por meio de uma acção de colmatagens, aqui e ali, é trair quantos vivem no ultramar, é trair a Nação. Mas, se todos se alhearem do efémero e transitório que representam os materialismos que desejam ver defendidos e, sub-repticiamente, se agitam ameaçadores, fàcilmente se descortinará que a verdadeira solução nacional é a que for exclusivamente dominada pela preservação e prosseguimento de fins morais e espirituais que, em qualquer circunstância, deverão ter sempre o primado sobre todos os outros.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E não esqueçamos que devemos às populações nativas do ultramar um acto de franca lealdade que as integre na comunidade nacional como valores autênticos - não como instrumentos- e aptos, por isso, à colaboração e comparticipação nas tarefas de desenvolvimento e progresso colectivo, com lugar assegurado na interioridade dos circuitos em que se definem e processam todas as actividades humanas.

O Sr. Pinto de Mesquita: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Pinto de Mesquita: - Nesse plano integrativo o exemplo de Goa assaz ilustra aquilo que se conseguiu historicamente fazer e deve continuar a fazer-se no ultramar.

O Orador: - Muito obrigado a V. Ex.ª
Esta orientação não é cómoda, não é demagógica, não concita ditirambos delirantes e não fará soar aos quatro ventos as trombetas da fama. Pelo contrário, causará dores em alguns; dores consequentes da adaptação a uma nova ordem de coisas e de hábitos; mas não prolongará a morte de homens nem activará a debilitação ou deliquescência dos valores morais da Nação. E, quando, à custa do sacrifício de posições materiais e de uma aparente restrição de liberdades e competências se salva a unidade nacional, não há perdas dignas de lamento senão aquelas que tenham resultado dos desatinos de uma sociedade desorientada e sem forças capazes de um firme controle dos actos de cada um, pois é na dor e no sacrifício que os homens se redimem e as pátrias se glorificam.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Pinheiro da Silva: - Sr. Presidente: foi com profundo pesar que soube do passamento do Sr. Deputado Dr. Pires da Costa, ocorrido a 4 de Abril último.
Haviam transcorrido apenas dez dias sobre o nosso derradeiro encontro nesta Casa e no jantar de confraternização dos seus membros. Mal sabia eu que a fotografia que naquele jantar tirámos seria para mim, passado que fosse um breve lapso de tempo, uma dolorosa lembrança de um muito querido amigo, que se finou tão novo e imprevistamente.
Ligava-nos, de facto, uma sólida amizade, cimentada por afinidades várias, ideológicas e sentimentais, muito embora nos conhecêssemos apenas desde a vinda de ambos para esta Câmara.

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Recordo com muita saudade o seu espírito equânime, a solidez da sua inteligência, a simplicidade do seu trato, a sua bela formação moral e nacionalista.
Sabia-o carregado de afazeres profissionais. Por isso, era sempre com admiração e respeito que o via entregar-se, sem queixumes, aos encargos da presidência do município da sua terra, comparecer assiduamente às sessões da Assembleia Nacional e participar no estudo dos seus problemas.
Posso, assim, garantir que a vida do Sr. Dr. Pires da Costa é um exemplo a seguir, e que ele muito me honrou com a sua amizade.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra para anunciar um aviso prévio o Sr. Deputado Cancella de Abreu.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Sr. Presidente: envio para a Mesa o seguinte

Aviso prévio

Ao abrigo do artigo 50.º do Regimento, apresento o seguinte aviso prévio, que resumidamente justifico, a fim de facilitar ao Sr. Ministro das Comunicações o uso do seu direito de resposta.
Os acidentes de viação já basearam largas intervenções minhas, duas delas nas sessões de 21 de Abril de 1049 e 13 de Março de 1957, ambas precedidas de avisos prévios, apresentados, respectivamente, em 16 de Dezembro de 1948 e 16 de Janeiro de 1957, ao segundo dos quais só dignou responder atenciosamente o Ministro das Comunicações, Sr. General Gomes de Araújo.
Os debates foram generalizados e muito os valorizaram os outros Deputados intervenientes. E ainda noutras oportunidades a Assembleia Nacional se tem manifestado a este respeito.
Nestas circunstâncias, pode afigurar-se demasiado que, agora, qual refervido chá de Tolentino, eu apresente novo aviso prévio sobre matéria já tão largamente debatida aqui, como o foi e continua a ser em largas campanhas realizadas pelo prestigioso Automóvel Clube de Portugal, pela revista O Volante e por toda a imprensa diária (da qual, para evitar injusta omissão, refiro apenas a mais recente, ou seja a valorosa e tenazmente empreendida no Diário de Lisboa). Não tem faltado também a operante colaboração das companhias de combustíveis.
E, se tem sido relevante o resultado de tantas e tão vivas campanhas, nas quais não se olha a esforços nem encargos, é, porém, certo que os factos evidenciam a toda a luz a necessidade premente de persistência nelas, secundadas por esta Assembleia, pois, aqui, é sempre oportuno e útil agitar os problemas de interesse nacional, como este incontestavelmente o é.
Com o que se tem feito conseguiu-se realmente uma diminuição na insegurança do trânsito em confronto com o aumento do nosso tráfego rodoviário; mas muito falta, mesmo para que não possa ser atribuído ao nosso país lugar cimeiro na escala ascendente do número de acidentes, com fundamento em estatísticas, aliás falazes, pois só podem aproximar-se da exactidão os confrontos que assentem sobre uma base objectiva e perfeita em cada país e, além disso, comum entro todos, o que não sucede.
Na verdade, não devemos nortear-nos por confrontos com expressões numéricas externas; e, embora o mal seja, como é, universal, olhemos especialmente para nós, cuidemos essencialmente de nós, embora sem ignorarmos que, mesmo internamente, como se compreende, as estatísticas só revelam os acidentes oficialmente assinalados, e estes não são todos os ocorridos. Não me será difícil demonstrá-lo.
Em todo e qualquer caso, repito, faz-se mister prosseguir numa luta cada vez mais enérgica e persistente contra o terrível flagelo, tanto mais sendo, como é, certo que nos últimos meses tem sido notório um acentuado recrudescimento do necrológio das estradas, que é lícito atribuir também ao aumento constante do parque automóvel.
Mas, seja como for, é necessário não esmorecer; e, no combate, é mister persuadir, prevenir e reprimir.
A ordem destes factores não é arbitrária, pois o primeiro é o mais eficaz, nomeadamente quando atenue o complexo universal de falta de civismo, e o último, só por si, tem-se revelado comprovadamente insuficiente. Quanto ao segundo factor, a sua localização antes do terceiro provém de ser preferível prevenir do que remediar.
O que se diz e escreve e divulga são meios de persuasão, e, com esta finalidade, é necessário insistir nas campanhas da imprensa e secundadas com uma colaboração muito mais assídua do Estado e da radiodifusão nacional.
Relevante papel podia também caber, no campo da persuasão, à Igreja, por intermédio dos sacerdotes, nas suas prédicas e em todas as demais oportunidades.
E não se imagine que a colaboração da Igreja é inajustável ao múnus sacerdotal, pois imaginá-lo equivalia a ignorar os 1.º e 5.º mandamentos, que proclamam o amor ao próximo e o direito à vida, e seria ultraje ao pensamento de Pio XII, quando, em 1957, revelou o propósito de cominar sanções canónicas explícitas contra os que, ao volante, desafiam a morte, e ainda a insistência do actual Pontífice João XXIII em recomendar aos automobilistas a máxima prudência na condução.
Li algures que o bispo de Lafaiete negou funeral católico aos que matem por criminosa negligência, e um eclesiástico de Montreal, na província de Alberta, ordenou que, por cada acidente mortal, fossem tocados, durante uma hora, os sinos das dezasseis igrejas da localidade e as bandeiras colocadas a meia haste.
Incontestável seria também o benefício de uma propaganda mais intensa através das Casas do Povo, dos sindicatos, das associações, dos quartéis, das fábricas, das oficinas, etc., e, desde a infância, especialmente nas escolas e nos lares.
Mas, além de persuadir, é mister prevenir. E a verdade manda dizer, sem rebuço, que. sob o aspecto preventivo, embora realmente seja exacto caber ao Estado português o primado de algumas providências especiais, tem sido lenta e incompleta a sua acção no sentido de melhorar-se eficazmente a segurança do trânsito na via pública, onde muitos, seja a 20 km, seja a 100 ou mais à hora, conduzem sem ciência nem consciência e, por outro lado, «ninguém sabe andar a pé! ...».
Cito, a título de exemplo:

a) A demora da obrigatoriedade do ensino, na instrução primária, das regras e precauções a observar no trânsito, pois, ao que presumo, só o estabeleceu o programa daquele ensino aprovado pelo Decreto-Lei n.º 42 992, de 28 de Maio de 1960, que importa cumprir a sério, rigorosa e sugestivamente, pela imagem e pela leitura e explicação do código, e torná-lo extensivo, pelo menos, ao 1.º ciclo de instrução secundária;
b) A enorme insuficiência dos quadros da Polícia de Viação e Trânsito e o seu precário equipamento,

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que (aqueles e este) estão quase estacionários, em contraste com o grande aumento do tráfego rodoviário;
c) A consequente exiguidade bem notória da fiscalização geral do trânsito, exiguidade que é o maior tranquilizante dos transgressores;
d) A escassez, repetidamente reconhecida oficialmente, das dotações destes serviços, apesar das vultosas receitas provenientes da actividade rodoviária, quando é certo que os encargos progressivos não podem ser supridos só pela competência e inegável solicitude da Direcção-Geral, dos comandos e dos agentes da Polícia de Viação e Trânsito, tanto mais que o próprio Sr. Ministro das Comunicações, quando há dias regressou da Conferência Europeia dos Ministros dos Transportes, declarou ter Portugal entrado agora para uma posição de bastante responsabilidade, que obrigará os serviços, muito mais do que ao Ministro, a um trabalho de bastante valor e utilidade nacional;
e) A eficácia meramente transitória de fiscalizações periódicas, quando são feitas em zonas restritas e previamente anunciadas, e a quase completa inexistência de fiscalização secreta;
f) A falta do seguro obrigatório da responsabilidade civil de todos os veículos motorizados, como é geralmente exigido noutros países, em ordem, além do mais, a impedir-se que a insolvência dos culpados torne praticamente impossível a cobrança dos danos sofridos e das indemnizações arbitradas;
g) E ainda a falta de adaptação ao trânsito acelerado de algumas estradas de mais intensa circulação, falta que, quando suprida, constituirá um dos coroamentos da acção a todos os títulos notável empreendida, cada vez em maior ritmo, pelo grande Ministro das Obras Públicas que é o engenheiro Arantes e Oliveira.

Suprido o exposto, cumprido tudo o que o código determina ou vier a determinar e estudadas e adoptadas sempre as demais providências drásticas necessárias, é de prever uma substancial redução no caro preço que, em vidas e haveres, os acidentes de viação estão originando. E que assim a via pública irá ficando, quanto possível, desempestada dos que, ao transitarem nela, não respeitam a vida alheia e desprezam a sua.
Finalmente, pelo que respeita à repressão, se é certo poder-se, sem grandes inconvenientes, ser tolerante para pequenas infracções sem consequências, desde que não constituam manobras arriscadas, por outro lado ela deve tornar-se mais implacável em todos os casos de acidentes graves, originados por condutores e peões, por motivo de comprovadas imperícia, imprudência ou inobservância das regras do trânsito, agravando-se algumas das penas actualmente estabelecidas e negando-se direito à sua remição a dinheiro. E, se houver fuga dos culpados com o propositado abandono das vítimas, deve-se ir até à apreensão definitiva da carta de condução, se forem reincidentes.
Para grandes males grandes remédios, aplicados inexoravelmente contra tudo e contra todos, absolutamente todos os responsáveis, sem distinguir classe ou condição. Só assim se pode corrigir a criminosa indisciplina geral do trânsito e reduzir em largas proporções a horrível tragédia, que não é exagero denominar terrorismo da estrada, dado que o Osservatore Romano lhe chamou chacina e ainda recentemente o Santo Padre a classificou de carnificina.
Disse há pouco o Diário de Notícias que em determinado ponto de uma estrada nacional austríaca as autoridades mandaram colocar tantas cruzes quantas as 124 mortes ali ocorridas em resultado de acidentes de viação e em cada uma dessas cruzes foi aposta a legenda: «Pensai nas vítimas da velocidade». É um cenário arrepiante, se bem que expressivo e certamente eficaz; mas, meu Deus, se fosse erguida uma cruz em todos os sítios onde ocorrem acidentes mortais, as estradas do Mundo viriam a assemelhar-se a imensos e lúgubres cemitérios! ...

Sala das Sessões, 11 de Dezembro de 1962. - O Deputado, Paulo Cancella de Abreu.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1963.
Tem a palavra, para concluir a sua intervenção, o Sr. Deputado Manuel João Correia.

O Sr. Manuel João Correia: - Sr. Presidente: referi-me ao Decreto n.º 26 509, que impediu, ao longo da sua existência, que muitas indústrias se tivessem estabelecido em Moçambique.
Vou referir-me agora a outros decretos que vieram mais tarde prejudicar também o desenvolvimento industrial do ultramar português, ou sejam os Decretos-Leis n.ºs 33 924 e 34 643. de 5 de Setembro de 1944 e 1 de Junho de 1945, respectivamente.
O primeiro destes decretos foi publicado com o fim de permitir o estabelecimento no ultramar de fábricas de fiação e tecidos de algodão, mas no seu artigo 2.º fixou condições que impediram que essa indústria pudesse desenvolver-se. Diz-se o seguinte, a propósito do disposto neste artigo, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 34 643:

O citado diploma limita igualmente a capacidade máxima de produção anual das fábricas autorizadas para cada colónia de onde lógico é concluir que, se uma única se permitiu atingir essa capacidade, mais nenhuma outra é possível instalar.

Foi ao abrigo daquele decreto que, por despacho da Direcção de Fomento Colonial de 29 de, Junho de 1946. se instalou em Vila Pery a primeira fábrica têxtil de Moçambique, pertencente à Sociedade Algodoeira de Portugal, também conhecida pela abreviatura de Soalpo. Esta empresa foi fundada por industriais têxteis da metrópole.

(Assumiu a presidência o Sr. Deputado Soares da Fonseca).

A capacidade de laboração atribuída a esta fábrica pelo despacho que autorizou a sua instalação foi de 1800 t anuais de algodão em rama. o que logo impediu, nos termos do artigo 2.º do Decreto n.º 33 924, que outras fábricas pudessem instalar-se no território de Moçambique.
Com efeito, aquele artigo estabelece que «a capacidade máxima de produção anual das fábricas autorizadas para cada colónia não poderá exceder a diferença em peso entre a média da importação total de tecidos de algodão na colónia respectiva nos últimos três anos anteriores a 1939 e igual média acrescida de 20 por cento dos mesmos produtos recebidos da metrópole».

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Em primeiro lugar, teremos de convir que a letra deste artigo não fica nada a dever à clareza, princípio que, de resto, deveria orientar toda a legislação.
No entanto, depois de certo raciocínio, chegar-se-á à conclusão de que as contas a fazer para se obter a cifra que represente a capacidade máxima de produção, magnânima e generosamente concedida a Moçambique pelo referido decreto, deveriam obedecer aos seguintes números:
Importação de tecidos de algodão nos três anos anteriores a 1939:

Quilogramas
1986 ................. 2 982 903
1937 ................. 3 459 197
1938 ................. 2 564 283
9 006 383
Quantidades importadas da metrópole incluídas no total acima indicado:

1936 ................. 1 566 581
1937 ................. 1 914 735
1938 ................. 2 260 638
5 740 958

Ora a média do total da importação efectuada corresponde a 3002 t e a média das importações da metrópole a 1913 t. Aumentando-se 20 por cento a estas 1913 t teremos 2296 t, que, subtraídas da média do total das importações, nos dá a capacidade de laboração fixada para a indústria têxtil de Moçambique, ou sejam, 706 t anuais de tecidos de algodão.
Tem de se concordar, afinal, que não foi magnânima, nem generosa, a capacidade de laboração autorizada à indústria de Moçambique, quando as suas importações já eram então de cerca de 3000 t anuais.
Mas para que não pudessem restar quaisquer dúvidas acerca- daquela disposição, o artigo 4.º do citado Decreto-Lei n.º 34 643 fixou taxativamente o seguinte:

Não podem ser dadas novas autorizações para a instalação de fábricas de fiação e tecidos de algodão nas colónias cuja capacidade fabril esteja esgotada, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 33 924.

Fecharam-se assim as portas, hermèticamente, à instalação em Moçambique do quaisquer oubras fábricas além da unidade fabril de Vila Pery.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 33 924, «que regula o estabelecimento da indústria de fiação e tecidos de algodão no ultramar», voltou a repetir-se, com insistência, que «as indústrias que se estabeleçam nas colónias devem laborar matéria-prima que exista na própria colónia»; que «se compreende a criação de indústrias que, sempre utilizando matérias-primas coloniais, tendem a dar satisfação mais económica ou mais perfeita às necessidades públicas na colónia»; e, finalmente, que importava «ter em consideração a existência da indústria metropolitana» e que «não seria compreensível que se fundassem ou desenvolvessem nas colónias empresas industriais que tivessem por objectivo fazer concorrência a outras já existentes na metrópole».

(Reassumiu a presidência o Sr. Deputado Mário de Figueiredo).

O Sr. Pinheiro da Silva: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Pinheiro da Silva: - Tenho acompanhado desde ontem com todo o interesse e com muita atenção a exposição de V. Ex.ª Quer-me parecer, por isso, que a argumentação e as citações de V. Ex.ª só seriam procedentes se actualmente a situação fosse absolutamente a mesma de 1936. Julgo que não é a mesma, porquanto já produtos de certas indústrias alimentares de Moçambique, como a de bolachas, são vendidos na metrópole, e não me consta que a metrópole tivesse deixado de ter produtos congéneres. Portanto, repito, a situação não é a mesma. Em Angola, por exemplo, acaba de ser inaugurada uma magnífica central hidroeléctrica, que não tem só o objectivo de fornecer energia para iluminação, mas também contribuirá para o desenvolvimento industrial da província. Isto sim, é o que fundamentalmente se pretende.

O Orador: - Estou a referir-me a decretos que estão em vigor.

O Sr. Pinheiro da Silva: - V. Ex.ª bem sabe que as leis não caem em desuso sòmente quando vem no Diário do Governo uma disposição a revogá-las.

O Orador: - Peço a V. Ex.ª que continue a ouvir-me com a mesma atenção com que me tem acompanhado até aqui.
Vê-se claramente que o receio era que a eventual indústria têxtil a estabelecer no ultramar viesse fazer concorrência à indústria similar já existente na metrópole. E daí o cuidado de se legislar no sentido de impedir o desenvolvimento dessa indústria nas províncias ultramarinas.
Não se pode, logicamente, admitir tal critério, sobretudo no caso da indústria de fiação e tecidos de algodão, de cuja matéria-prima a província de Moçambique é larga produtora e que pode converter numa das maiores fontes de trabalho e de riqueza da sua população, tanto na produção da fibra, como na sua transformação industrial.

O Sr. Costa Guimarães: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz obséquio.

O Sr. Gosta Guimarães: - Nesse aspecto posso emitir uma opinião que talvez ajude a esclarecer os nossos ilustres colegas que o estão a ouvir e nos quais me incluo com todo o prazer. Como V. Ex.ª sabe, esse problema, de uma instância flagrante, está a merecer o estudo de industriais que o conhecem na sua profundidade.
Posso assegurar aqui que esperamos dentro de breve futuro chegar a conclusões práticas que em primeira mão serão transmitidas aos ilustres Deputados do ultramar que tiveram ocasião de assistir a uma oportuna reunião na Corporação da Indústria. Importa meditar no melhor caminho a seguir, para se adoptar uma orientação que se identifique com a criação do espaço económico português.
Nesse aspecto de valorização de riquezas do ultramar quero focar este ponto: não restam dúvidas de que a indústria é uma das fontes principais da riqueza. Mas outras há, e nomeadamente a do próprio algodão em rama. A evolução da produção do algodão em rama em todo o Mundo tem-se verificado em ritmo crescente a ponto de, se nos reportarmos a 1958, a produção mundial ter atingido um volume aproximado de 8 500 000 t, quando em 1961 atingiu 10 000 000 t.
Paralelamente, em Angola e Moçambique - em Angola talvez por razões do conhecimento de todos e em Moçambique por razões que não posso esclarecer - essa produção estabilizou.

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Como V. Ex.ª sabe, em vez das 30 000 t de Moçambique hoje proporcionadas à indústria da metrópole poder-se-iam atingir as 60 000 t ou 70 000 t e, por conseguinte, ainda exportar. Se referirmos que cada quilograma de algodão tem um valor médio de cotação internacional da ordem dos 20$ ou 21$, 50 000 t representariam 1 milhão de contos. Era uma valorização extraordinária da exploração das fontes de riqueza nacionais.

O Orador: - Na devida altura tratarei da produtividade.
Diz-se, por um lado, que «as indústrias que se estabeleçam nas colónias devem laborar matéria-prima que exista na própria colónia» (preâmbulo do referido Decreto-Lei n.º 83 924), mas a verdade é que este mesmo decreto-lei veio impedir, no caso do algodão, a possibilidade de desenvolvimento em Moçambique de uma indústria que laboraria exclusivamente matéria-prima produzida na própria província.
É preciso acabar com a repetição de erros antigos. Sem comentários, transcrevo, com a devida vénia, o seguinte, extraído de um artigo intitulado «Industrialização do Brasil», publicado por Pimentel Costa na revista Brasil n.º 19. de Dezembro de 1961 e Janeiro de 1962:

É desconhecida a data em que surgiu a primeira fábrica brasileira. A história não guardou nem a data nem o local.

O Sr. Pinheiro da Silva: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Mas eu estou a ler!

O Sr. Pinheiro da Silva: - Pois muito bem, mas desde já devo dizer que não concordo com essa expressão do autor do artigo.

O Orador: - V. Ex.ª deixe-me acabar de ler. Está constantemente a interromper. Tenha um pouco de serenidade. É que V. Ex.ª assim não consegue esclarecer o seu espírito.

O Sr. Pinheiro da Silva: - Já referi o que me propus.

O Orador:
Sabe-se, porém, que alguns cristãos-novos, que se tinham instalado na Baía e em S. Paulo, compreenderam a possibilidade de montar fábricas de tecidos. Os preços dos que chegavam do reino eram exorbitantes. Apareceram, assim, fábricas de tecidos em muitas cidades brasileiras. Surgiram e prosperaram, pois os preços dos tecidos lusitanos eram simplesmente escorchantes. Matérias-primas nós as tínhamos nas devidas quantidades. E faltavam em Portugal.
Os industriais portugueses compreenderam que iam perder o mercado brasileiro, já então maior do que o lusitano. Entenderam-se com Pina Manique. E então, por seu intermédio, obtiveram o célebre alvará de 5 de Janeiro de 1785. Fechava as fábricas brasileiras. Dizia o seguinte: «O Brasil é o país mais fértil e abundante do Mundo, em frutos e produções da terra. Os seus habitantes têm, por meio de cultura, não só tudo quanto lhes é necessário para o sustento da vida, mas ainda muitos artigos importantíssimos para fazerem, como fazem, um extenso comércio e navegação. Ora, se a essas incontestáveis vantagens reunirem as da indústria e das artes para o vestuário, luxo e outras comodidades, ficarão os mesmos habitantes totalmente independentes da metrópole. É, por conseguinte, de absoluta necessidade acabar com todas as fábricas e manufacturas do Brasil». O alvará foi rigorosamente cumprido. Desarmaram as fábricas. Embarcaram-nas para Portugal, pela nau de guerra Nossa Senhora de Belém.

Falemos agora da produção desta rica fibra, que tem sido muitas vezes chamada o «ouro branco» de Moçambique.
A província exportou nos últimos cinco anos as seguintes quantidades de algodão em rama:

[ver tabela na imagem]

Em cinco anos apenas a província exportou 187 778 t, no valor de 2 938 593 contos, de algodão em rama, produzido por cerca de 560 000 famílias, ou seja por 2 milhões de pessoas aproximadamente.
Estes números mostram que quase um terço da população de Moçambique vive da cultura do algodão.
É preciso, portanto, que Moçambique não perca a tradição da cultura algodoeira e antes a impulsione e a desenvolva como um dos melhores meios de prosperidade da sua população.

O Sr. Gosta Guimarães: - V. Ex.ª dá-me licença? É só para uma pequena interrupção.

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Costa Guimarães: - Era só para dizer que esse será um meio notável de prosperidade, porque, se nós atentarmos no exemplo dos Estados Unidos da América, onde o algodão atinge hoje um volume da ordem dos 3 500 000 t, não podemos conceber que a indústria do algodão seja uma indústria pobre.

O Orador: - Eu não disse isso.

O Sr. Costa Guimarães: -Exactamente; estou apenas a dar uma achega. A América do Norte não é um país de baixo nível de vida e, no entanto, a produção do algodão atinge ali 3 500 000 t.

O Orador: - Disse o engenheiro Mário de Carvalho, director do Instituto do Algodão de Moçambique, no discurso que proferiu no acto de posse daquele cargo:

... o algodão é e será no previsível futuro, uma das culturas mais indicadas para Moçambique. E é-o porque encontra nesta província boas condições ecológicas de desenvolvimento desde o Rovuma até, praticamente, à fronteira do Natal: desde a costa até cerca de 700 m de altitude.

É caso, portanto, para pensar-se no aumento da produção algodoeira de Moçambique, tanto mais que não lhe faltarão mercados de consumo, tanto na forma de matéria-prima, isto é, de algodão em rama, como depois de industrializado, quer como fio, quer como tecido.
Além do elevado número de agricultores nativos que em Moçambique já se dedicam à cultura desta fibra industrial

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de tanto valor económico, penso que seria possível interessar na cultura da mesma muitos agricultores europeus, o que permitiria a fixação de numerosas famílias de novos colonos, que, a par da cultura algodoeira por processos mecânicos, se poderiam dedicar também a muitas outras formas de actividade agrária, como valiosa contribuição para o desenvolvimento económico da província. A cultura do algodoeiro pelo colono europeu poderia, portanto, ser estimulada como actividade agrícola capaz de proporcionar-lhe rendimento apreciável, desde que lhe fossem facultados ensinamentos técnicos e as máquinas necessárias para as diversas operações da cultura.
A própria colheita do algodão, que, sendo feita à mão, implica sérios problemas de mão-de-obra, poderia ser executada mecanicamente, embora o sistema mecânico tenha o inconveniente de baixar o tipo da fibra. Esse inconveniente pode, porém, ser muito reduzido se se apetrecharem as fábricas de descaroçamento com limpadores próprios para esse fim. Nesse caso, o prejuízo porventura causado pela depreciação da fibra seria largamente compensado pela economia proporcionada pela colheita mecânica.
Claro está que, neste caso. não se deveriam utilizar máquinas do tipo das grandes colhedoras; seriam necessárias máquinas de pequena capacidade. Há, porém, notícia de que nos Estados Unidos da América já existem ou estão em fase (k> estudo e experimentação máquinas colhedoras para pequenas plantações de cerca de 10 ha a 50 ha.
A par do aumento de produção que certamente se registaria se o colono europeu também se dedicasse à cultura algodoeira, insisto no que disse numa intervenção que fiz na última sessão legislativa desta Assembleia: a necessidade de a produção dos agricultores nativos ser consideràvelmente aumentada pelo uso de insecticidas e pela utilização de solos que reunam as necessárias condições para a cultura do algodoeiro. O Instituto do Algodão de Moçambique, segundo estou informado, trabalha activamente no propósito de alcançar este objectivo.
Por este processo, não seria difícil, em três anos, elevar-se para o dobro a actual produção de cerca de 40 000 t (em 1961 a exportação foi de 40 7771, no valor de 690293 contos). A província poderia, portanto, passar a receber mais 700 000 contos aproximadamente pela venda do seu algodão.
Em Moçambique, o algodão em caroço é pago ao plantador por um dos mais baixos preços do continente africano. Pensar-se-á, portanto, que talvez seja oportuno aumentar o preço por que é pago ao produtor, a fim de proporcionar-lhe, pelo menos, um pequeno benefício. Parece, porém, que, presentemente, esse aumento não poderia ir além de $80 ou $40 por quilograma.
Isto corresponderia, numa produção total de cerca de 110 000 t de algodão em caroço, a cerca de 33 000 ou 44 000 contos por ano, consoante o aumento que se fizesse fosse de $30 ou de $40 por quilograma. Este aumento produziria, portanto, no melhor caso, um benefício no rendimento anual, per capita, de 22$ apenas, o que realmente pouca impressão viria a causar.
Por outro lado, não se desconhece que o nativo não evoluído é, de uma maneira geral, avesso ao investimento e que não possui ainda a noção exacta de que os resultados das suas plantações melhorariam se, por exemplo, fizesse alguns investimentos em insecticidas para o tratamento dos seus algodoeiros. Também não pensa noutras formas de investimento de que poderia obter resultados apreciáveis, nem na organização de cooperativas que lhe poderiam proporcionar parques de máquinas e assistência técnica.
Assim, um organismo estatal (no caso da província seria talvez indicado o Instituto do Algodão de Moçambique) poderia suprir benèficamente todas essas faltas de iniciativa e orientar o plantador no sentido de aumentar e melhorar cada vez mais a sua produção, não só de algodão, como também de outros produtos agrícolas necessários para a sua alimentação e até para venda. A venda dos produtos poderia ser feita através de cooperativas, que se fundariam com a tutela completa do Estado, mas que, a pouco e pouco, admitiriam na sua administração elementos recrutados nas fileiras dos seus associados.
Seria, portanto, preferível que o aumento de $30 ou $40 por quilograma no caso de ser instituído, não fosse pago directamente ao plantador, mas antes constituísse uma taxa que revertesse indirectamente a favor do mesmo plantador, na realização dos trabalhos de fomento a que acabei de referir-me. Seria uma forma justa de proporcionar ao plantador melhoramentos de extraordinário alcance, que se reflectiriam no aumento e melhoramento da sua produção.
Já depois de estas linhas terem sido escritas foi publicada a Portaria n.º 16 226, de 11 de Agosto de 1962, do Governo-Geral de Moçambique, fixando «em 3 por cento do preço do algodão em rama C. I. F. metrópole, ... a taxa a cobrar dos concessionários a favor do Fundo de Fomento Algodoeiro», para permitir ao mesmo Fundo «os fins para que foi instituído, nomeadamente contribuir para o aumento de produção algodoeira através da melhoria de produtividade, promover a conservação e melhoramento da fertilidade dos solos e colaborar na elevação do nível social das populações».
Esta taxa substitui, em parte, o aumento de preço que acima preconizei de $30 ou $40 por quilograma, destinado ao mesmo fim. Os 3 por cento fixados na portaria correspondem a cerca de $20 por quilograma.
Pode também encarar-se o problema sob uma outra modalidade: em vez do aumento do preço do algodão em caroço poder-se-ia optar pelo aumento do preço do algodão em rama para o nível dos preços internacionais. Isto quer dizer que a indústria têxtil da metrópole, que há longos anos tem beneficiado de preços verdadeiramente favoráveis no algodão que tem comprado a Moçambique, teria de passar a pagar por esse mesmo algodão entre 1000$ a 2000$ mais por tonelada. Mas fixemo-nos, por agora, apenas nos 1000$ por tonelada. Este aumento de preço proporcionaria à província um rendimento anual superior a 40 000 contos, dinheiro que não entra em Moçambique, dinheiro que se perde para Moçambique, que não vem ajudar a impulsionar o desenvolvimento da sua economia.
Este lucro extraordinário poderia reverter indirectamente em benefício do produtor, se fosse aplicado no melhoramento técnico das culturas para obtenção de uma maior produtividade, nomeadamente na construção de armazéns, financiamentos aos produtores ou às cooperativas que os mesmos organizassem, em derrubas, insecticidas, parques de máquinas, etc., e também no fomento da cultura de outras plantas que o plantador de algodão cultivaria simultaneamente ou nos meses em que não se dedicasse à cultura do algodoeiro.
É fácil calcular o alto benefício que resultaria do investimento anual de tão elevado valor no fomento da produção do algodão e também de outros produtos agrícolas, feito com honestidade e firmeza por um organismo inteiramente dedicado a obra de tanta importância.
Penso que esta é uma tese de objectivos sérios a defender para o bem da economia de Moçambique e também para

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o bem daqueles 2 milhões de moçambicanos que se dedicam à cultura do algodoeiro.
Moçambique não pode aspirar a ser um território rico e próspero se a sua população não possuir condições de vida económica que a libertem da pobreza. Se o plantador de algodão puder, com o mesmo trabalho e a mesma área de cultura, ver aumentada para o dobro a sua produção, grande será a transformação que se dará na sua vida económica e o reflexo que isso terá na própria vida da província.
Resultados obtidos noutros países apoiam a hipótese de poder esperar-se um aumento de produção em Moçambique. Anoto em defesa desta ideia, como um exemplo entre outros que poderia apresentar, um aspecto da evolução na produção algodoeira dos Estados Unidos da América. A produção de fibra de algodão obtida naquele país em 1866 foi apenas de 136 kg por hectare, segundo Agricultural Statistics, 1957, United States Department of Agriculture, mas em 1960, último ano de que possuo elementos estatísticos, essa produção tinha atingido a cifra interessante de 520 kg, conforme menciona o Anuário de Produção da F. A. O., 1960. A produção de Moçambique, no mesmo ano de 1960, foi apenas de no kg, também conforme menciona o Anuário de Produção da F. A. O., 1960. Por aqui se vêem as grandes perspectivas de desenvolvimento que a província tem ao seu dispor na cultura desta valiosa planta.

O Sr. Costa Guimarães: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Costa Guimarães: - A Espanha aqui há oito anos partiu do zero e hoje tem uma produção de 200 000 t.
Ainda posso citar o caso de Israel, que partiu do zero em 1961, se a memória me não falha, e atingiu 55 000 t

O Sr. Burity da Silva: -Pode dizer-me o motivo do não aumento de produção do algodão em Moçambique?

O Orador: - Creio que já disse.

O Sr. Burity da Silva: - Eu acrescento. Suponho que o caso é o mesmo que se verificava em Angola: essencialmente o exclusivismo dado a certas empresas e que deu origem à diminuição do interesse do produtor indígena.
Esse ponto é essencial e é preciso tê-lo em mente, porque foi essa a causa primacial, enorme, de reflexos tremendos, que determinou a fraca produção do algodão.

O Orador: - Muito obrigado!
O princípio a defender é, portanto, o do aumento da produção, tanto mais que a província poderá facilmente vender mais 40 000 t de algodão em rama que venha a produzir anualmente.
A metrópole importa do estrangeiro cerca de 20 000 t por ano (em 1961 a importação foi de 20 287 t), e outros países, nomeadamente os nossos vizinhos República da África do Sul e Federação das Rodésias e Niassalândia, comprariam com certeza a parte restante.
Há quem defenda - e eu também defendo - que o melhor preço que porventura se obtenha com a venda do algodão deva reverter inteiramente em benefício do produtor.

O Sr. Gosta Guimarães: - Muito bem!

O Orador: - Poderá, portanto, parecer estranha a minha sugestão do que qualquer aumento que se consiga agora nesse sentido reverta a favor de fundos para melhoramento das condições de produção.
Assim, cumpre-me elucidar que julgo dever ser esta a doutrina a seguir na arrancada a que agora se meteu ombros, fase inicial em que se torna necessário criar infra-estruturas que permitam o amplo desenvolvimento da economia algodoeira. Depois, à medida que for possível aliviar o dispêndio com a implantação dessas infra-estruturas, todo o produto do rendimento deverá ser pago directamente ao plantador.
Falei na produção do algodão. Seja-me permitido agora referir-me à sua industrialização.
No quadro das importações de Moçambique são precisamente os tecidos de algodão que figuram em primeiro lugar, com 5540 t no valor de 361 026 contos, em 1960.
A média das importações à volta de 1938 andava na casa das 3000 t, o que quer dizer que em 25 anos houve um aumento nas importações deste artigo que quase duplicou. Em 1938 a importação não foi além de 2564 t, como já se viu noutra parte desta intervenção.
As importações de tecidos de algodão nos anos de 1956 a 1960 foram as seguintes:

[ver tabela na imagem]

Não utilizei, neste quadro, os números estatísticos respeitantes a 1961 por não haver comparabilidade entre os deste ano e os dos restantes; a estatística de 1961 foi elaborada segundo a nomenclatura aduaneira de Bruxelas.
Como se vê, o valor das importações caminha apressadamente para a cifra dos 400 000 contos anuais, número que, estou certo, será atingido dentro de breves anos.
O consumo dos tecidos de algodão, como de todos os artigos, depende do nível económico e social dos respectivos consumidores.
O consumo de Moçambique, per capita, é da ordem dos 0,9 kg, enquanto que em Angola é de 1,4 kg, em S. Tomé de 2,7 kg e na Guiné Portuguesa de 1,6 kg.
Das nossas províncias ultramarinas, Moçambique encontra-se, portanto, numa posição de baixo consumo, que precisa de ser aumentado. É mesmo, excluindo Timor, a província de mais baixa capitação, o que chega a ser uma ironia, por Moçambique ser, de longe, o território português de maior produção algodoeira.
Mas há outros territórios, também produtores de algodão, cujo consumo é ainda inferior ao de Moçambique, como sejam os da África Oriental Britânica, que andam à roda dos 0,8 kg per capita.
Para mencionar um dos novos países africanos recentemente tornados independentes cujo consumo não é também muito representativo direi, a título de curiosidade, que Ghana consome 1,8 kg, o que não é muito superior ao consumo de Angola, mas que fica bastante distanciado do consumo da nossa província de S. Tomé.

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A metrópole, por exemplo, tem um consumo anual de fibras de 4,9 kg, nas quais se encontram incluídos 2,9 kg de tecidos de algodão. Não é ura país que tenha atingido pleno desenvolvimento, pois, se este fosse o caso, a capitação no consumo de tecidos das diversas fibras teria de ser muito superior.
É interessante mencionar, apenas para estabelecer paralelo e ver até onde poderemos chegar um dia, os casos dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Suíça, cujas capitações em tecidos das diversas fibras são, respectivamente, de 13.5 kg, 31,7 kg e 11,5 kg, cabendo aos tecidos de algodão os consumos de 10,3 kg, 5,8 kg e 6,6 kg.
A capitação da República da África do Sul de tecidos de algodão é de 2,3 kg e a da Federação das Rodésias e Niassalândia é de 1,3 kg.
Estes números referem-se a estatísticas respeitantes a 1958 e foram extraídos do trabalho intitulado «Considerações sobre o fomento da cultura algodoeira em Moçambique», da autoria do engenheiro Leonel Câmara, trabalho que me serviu de guia em certos passos desta intervenção.
É fácil calcular, pelos números apontados, que são enormes as possibilidades de Moçambique na indústria de tecidos de algodão para o consumo da sua própria população, à medida que a mesma for subindo na conquista de uma vida económica de nível mais elevado.
Não se compreende, portanto, que a indústria de fiação e tecidos de algodão em Moçambique não seja, já hoje, uma grande e positiva realidade, a sua primeira indústria mesmo, que daria trabalho a muitos milhares de operários.
Mas enquanto se mantiverem em vigor o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 33924 e o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 34 643 não será permitida a instalação em Moçambique de fábricas de fiação e tecidos de algodão além da fábrica, de Vila Pery, cuja capacidade de laboração se encontra esgotada e que também não pode aumentar a sua produção pelos mesmos motivos.
Além do grande e prometedor mercado interno, ao abrigo do qual Moçambique pode desenvolver e fazer prosperar uma indústria têxtil de grandes proporções, ficam ainda ao seu dispor importantes mercados de exportação, que poderão ser fàcilmente conquistados, com altos benefícios para o desenvolvimento da sua economia. Sobretudo a exportação de fio de algodão para países próximos de Moçambique poderá atingir proporções de grande importância.
A República da África do Sul. a Federação das Rodésias e Niassalândia e Madagáscar há alguns anos que vêm sendo regulares compradores de fio de algodão produzido pela fábrica de Vila Pery. E maiores seriam certamente as compras efectuadas por aqueles países se a fábrica moçambicana pudesse aumentar a sua produção. Pode dizer-se abertamente que o fio de algodão que aquela fábrica porventura produzisse em maior quantidade para ser exportado em nada afectaria a indústria têxtil da metrópole.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - No trabalho de V. Ex.ª, que eu tenho estado a ouvir atentamente, há um aspecto que me suscita dúvidas.
Há pouco, nós falámos de uma integração integral, onde está incluída, portanto, uma integração económica donde não se afasta a ideia de um espaço económico português. Se realmente se parte do conceito de integração económica, parece-me que devíamos dotar as populações, tanto da metrópole como das províncias ultramarinas, com os meios necessários para que tenham um nível de vida semelhante. Elementar se torna, pois, polo menos para um leigo nesses assuntos, como eu, que nos sítios onde a terra é vasta e propícia e a gente pouca se deva desenvolver a agricultura e, pelo contrário; nas áreas de forte demografia e em que o solo é escasso ou pobre se deva desenvolver a indústria. Só assim se poderá falar de integração e, além dela, de uma distribuição equitativa dos meios de vivência.
Isso que V. Ex.ª preconiza, de uma industrialização em Moçambique, poderá estar bem relativamente a Moçambique, mas não está inteiramente certo relativamente a uma integração económica nacional.

O Orador: - Nós defendemos certos aspectos da descentralização, como seja a descentralização administrativa. Em Moçambique nós somos tão bons portugueses como aqueles que existem noutras parcelas da Nação.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Não me referi ao aspecto político da questão. Referi-me ao condicionamento industrial, que não pode deixar de existir numa integração económica.

O Orador: - Se V. Ex.ª tivesse ouvido a minha intervenção de ontem verificaria que só defendo o condicionamento industrial dentro de cada província.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Mas isso é a negação das possibilidades de um espaço económico português.

O Sr. Presidente: - Lembro a V. Ex.ª, Sr. Deputado João Correia, que o tempo de ontem o de hoje já ultrapassa o tempo regimental. Por isso, para que possa concluir as suas considerações, sugiro que não permita mais intervenções.

O Orador: - Peço desculpa, mas não posso permitir mais interrupções.
Até em casos desta importância, que um simples diploma fàcilmente remediaria desde que houvesse o desejo de se encararem estes problemas sem favoritismos. se continua a asfixiar o desenvolvimento da província, sem se atentar que actos desta natureza, de descuido pela solução de problemas do ultramar, são punhaladas traiçoeiras dadas no próprio corpo da Nação.
Admita-se, embora isso não seja de admitir, que se mantenha em vigor, contra todas as regras da boa defesa do património nacional, legislação, como aquela a que me tenho vindo a referir, que estrangula e impossibilita o desenvolvimento de grandes parcelas da Nação, como seja, por exemplo, a província de Moçambique, porque se pretende, por esse processo, proteger uma indústria têxtil metropolitana que tem vivido, em parte, à sombra dessa protecção, muito embora Moçambique seja uma produtora em grande escala da matéria-prima dessa indústria. Mas o que não se compreende, não se aceita, nem se admite, é que a Moçambique não seja permitida a laboração de fábricas de fiação de artigo que não faria qualquer concorrência à indústria metropolitana e que poderia ser largamente exportado para o estrangeiro, com excelentes reflexos na sua economia.
Esta injustiça escava no corpo de Moçambique uma das suas feridas mais profundas, impedindo que esse grande corpo cresça e se desenvolva como seria lícito esperar-se.

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As exportações de Moçambique nos últimos cinco anos de tio de algodão, simples e torcido, foram as seguintes:

[ver tabela na imagem]

É de assinalar, pelo grande interesse que isso representa, o aumento brusco registado em 1960 e 1961, anos em que o valor das exportações se elevaram a mais de 20 000 contos, como prova impressionante das possibilidades de exportação deste artigo, que a província poderia fabricar e exportar em quantidades muito superiores.
Basta conhecer-se a expansão industrial que se regista presentemente em países vizinhos de Moçambique, isto é, na Federação das Rodésias e Niassalândia e na República da África do Sul, para não duvidarmos das boas perspectivas de exportação que se poderiam oferecer a uma indústria de fiação de algodão em Moçambique.
Esta intervenção já se encontrava completamente pronta para ser proferida quando tive conhecimento de um recente despacho do Subsecretário de Estado do Fomento Ultramarino, de interpretação à lei, que autoriza finalmente que se instalem em Moçambique fábricas de fiação de algodão. Trata-se, porém, apenas de um despacho; a lei não foi revogada. E um despacho pode ser anulado em qualquer momento. No entanto, vê-se, por esta decisão e outras tomadas ultimamente, que uma nova aragem perpassa pelos corredores do Ministério do Ultramar. Faço votos para que essa aragem se transforme num forte vendaval que fustigue e destrua para sempre as teias que têm embaraçado o desabrochar de ideias e iniciativas tendentes ao franco desenvolvimento dos nossos territórios africanos. Cumprimento e felicito o Sr. Subsecretário de Estado do Fomento Ultramarino pela oportuna e inteligente decisão que tomou.
Venho defendendo nesta intervenção que à província de Moçambique seja concedida autorização para que nela se instalem fabricas de fiação e tecidos de algodão. Não se julgue, porém, que egoísticamente desejo que esta indústria pertença exclusivamente a industriais já estabelecidos em Moçambique. Pelo contrário. Acho mesmo que o melhor caminho a adoptar-se seria o da transferência da metrópole para Moçambique de algumas unidades-fabris, que deveriam ir completas com toda a sua organização e acompanhadas do seu pessoal administrativo, dos seus técnicos e dos seus operários.
Não seria fácil para Moçambique criar de um momento para outro um quadro de pessoal técnico e especializado apto a laborar as fábricas de fiação e tecelagem, se porventura fosse autorizada, num futuro próximo, a iniciar tal indústria. Por isso, a ida para Moçambique dos operários metropolitanos seria um bem de valor incalculável sob todos os aspectos, nomeadamente o da valiosa ocupação demográfica que iriam fazer.
A indústria têxtil da metrópole ocupa cerca de 60 000 operários. Uma grande parte deste número poderia fixar-se em Moçambique, onde encontraria um bom futuro para si e para os seus filhos.
Referindo-se à possibilidade de uma parte da indústria têxtil metropolitana transferir-se para Moçambique, escreve o engenheiro Leonel Câmara o seguinte, no seu já citado trabalho:

A mão-de-obra qualificada poder-se-ia obter com facilidade através da imigração de um número correspondente de operários metropolitanos. Estes teriam aqui maior possibilidade de trabalho por ser então possível, para um custo de industrialização igual ao da metrópole, vender tecidos na província a um preço mais baixo. Isto conduziria a um aumento na capacidade de escoamento interno, o que daria margem a um consumo superior ao que actualmente se verifica em Moçambique. Por outro lado, o estabelecimento em maior escala da indústria de fiação contribuiria apreciavelmente para o crescimento do território, o que originaria um maior consumo de tecidos...

Esta deve ser a orientação a seguir, pois, desta maneira, nunca a indústria da metrópole poderá acusar Moçambique de que as suas ambições industriais tenham vindo colidir com os seus interesses económicos. O estabelecimento em Moçambique das empresas têxteis da metrópole oferecer-lhes-ia novas e amplas possibilidades de expansão e desenvolvimento e a conquista até de novos mercados, como já atrás fiz referência.
Esta a política sã que a indústria têxtil da metrópole não deveria perder, vindo construtivamente ao encontro das justas aspirações industriais de Moçambique e do seu povo, que deseja honradamente ganhar o pão de cada dia.
Mas, em primeiro lugar, é preciso que o Governo Central revogue os Decretos-Leis n.ºs 33924 e 34643, substituindo-os, como pedi para o Decreto n.º 26 509, por legislação provincial que regule a instalação da indústria têxtil em Moçambique.
Não tenhamos pena de revogar aqueles decretos, eivados do espírito colonialista que dominava na época em que foram publicados, mas que hoje já não servem, por estarem irremediavelmente ultrapassados por acontecimentos e por uma nova orientação dada aos destinos das nossas províncias ultramarinas.
Sr. Presidente: esta intervenção deveria terminar aqui. Mas vejo-me forçado a dizer mais algumas palavras para que não fique a fustigar-se a consciência o remorso do silêncio perante um aspecto do problema algodoeiro que recentemente surgiu no palco onde se representa o drama económico e social do «ouro branco» de Moçambique. Quero referir-me à desistência, por parte de alguns concessionários, dos círculos algodoeiros que lhes pertenciam.
Teria sido oportuna e legítima essa desistência?
Esta é a pergunta que honestamente devemos fazer em face dos agudos problemas que afligem a Nação.
Não tenho dúvida em responder que, na verdade, este não foi o momento mais oportuno. E faço esta afirmação com a certeza de que concordarão comigo todos os homens de boa vontade que acreditam em Moçambique e no triunfo dos seus empreendimentos.
Dizem-me que os concessionários dos círculos algodoeiros se queixam de prejuízos. Não temos o direito de duvidar, nem tão-pouco a obrigação de acreditar. Mas o que temos é o direito de supor que não é batendo em retirada, neste momento confuso da história do continente africano, que se presta o melhor serviço a Moçambique e à Nação.
As regalias usufruídas e os lucros ganhos em longos anos de actividade frutuosa justificariam certamente um sacrifício durante o curto tempo que porventura durasse um acerto de posições. Mas nunca o abandono da missão,

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não importa se bem ou mal desempenhada, mas em qualquer caso uma missão de que tinham sido incumbidos pelo Governo.
Nesta hora grave em que se joga a sorte de dois milhões de moçambicanos vinculados à cultura do algodoeiro surgem no meu espírito, preocupado com os problemas que atormentam a minha grande província, outras perguntas para as quais procuro uma resposta.
Que herança nos deixou o regime algodoeiro prestes a terminar? Qual foi o seu contributo para a valorização económica de Moçambique? Que restou desse regime em benefícios para os plantadores que o serviram?
A terra degradada por uma exploração intensiva e sem regra; a terra violentada e empobrecida; a floresta devastada; o agricultor negro tão pobre como quando começou a plantar algodão há 25 anos, com a mesma palhota primitiva, a mesma enxada cafreal, o mesmo machado frágil; a enxada que mal chegou para arranhar a terra tantas vezes madrasta e o machado com que arruinou a floresta num esforço gigantesco para satisfazer a fome de riqueza dos que não correram quaisquer riscos.
Ah! O drama do algodão! Os muitos dramas, os milhares de dramas, cujos clamores a selva afogou para sempre no seu seio impenetrável; os gritos dos que foram punidos por crimes que não cometeram; as lágrimas dos que choraram as violências de que foram vítimas; as desilusões dos que acreditaram numa justiça preceituada por leis que foram rasgadas pela ganância e pela ignomínia.
Ah! O drama económico e social do algodão! Os muitos dramas que posso aqui contar e que terão de ficar para sempre esmagados e desconhecidos nas reticências destas minhas palavras ... Palavras que clamam por justiça, por uma justiça cristã para esses dois milhões de moçambicanos de cujos corpos escorreu, na dura luta sob a rosa escaldante do sol tropical, o suor da amargura e do sofrimento.
Repugna-me aceitar que se tenham consentido e sancionado nefandas injustiças; que se tenha permitido que se espezinhasse indignamente o sagrado respeito que deve haver pela pessoa humana. Mas alegra-me saber que finalmente vai ser feita justiça.
Resta-me terminar com um voto de esperança: que se faça da cultura algodoeira de Moçambique uma actividade digna e sã, de progresso económico e social, de bem-estar e prosperidade.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Alberto de Meireles: - Sr. Presidente: a problemática da política fiscal não está certamente dentro das minhas naturais inclinações, estudos e preocupações correntes.
O empenho em corresponder à sugestão do ilustre presidente da Comissão de Finanças, a que pertenço, leva-me, no entanto, a tomar parte, também nesta secção legislativa, no debate da Lei de Meios, e a orientar a minha intervenção em sentido diferente daquele que estaria no pendor do meu espírito, preferências e preparação remota.
Ao dize-lo, já insinuo que conto com a especial benevolência de V. Ex.ª e da Assembleia.
E autoriza-me a esperá-la a desvanecedora atenção com que V. Ex.ª tem acompanhado as minhas falas e intervenções nesta Casa e as palavras de generoso apreço e incentivo com que me tem honrado, e que constituem outros tantos motivos de gratidão.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: mais uma vez a Assembleia Nacional é chamada a pronunciar-se, nos termos constitucionais, sobre a proposta de lei de autorização das receitas e despesas, precedida e amparada em exaustivo relatório com o alto nível informativo e doutrinário a que o Sr. Ministro das Finanças, Doutor Pinto Barbosa, habituou já a Assembleia e o País.
A panorâmica da evolução da conjuntura económica internacional e nacional constitui, a exemplo das anteriores, estudo sério e utilíssimo para o conhecimento do quadro geral em que se moverá a política financeira portuguesa no próximo ano económico.
Por seu lado, a Conta Geral do Estado relativa a 1961, através da sua substancial prefação, torna-se elemento adjuvante de alta valia para o estudo da proposta de lei em discussão.
A Câmara Corporativa, com esforço digno do maior aplauso, veio contribuir com desenvolvido e douto parecer, de que foi relator o Dr. Jacinto Nunes, para completar ainda os elementos de consulta e esclarecimento da Assembleia.
Com tal acervo de documentação, e tão autorizada, o embaraço resulta afinal, quanto a nós, de ser demasiado escasso o tempo para a sua apreciação minuciosa, impondo que se restrinja a um ou outro aspecto fulcral a enunciação das posições próprias.
Ser-me-ia grato poder deter-me na apreciação dos elementos relativos à evolução geral da conjuntura económica nacional - embora limitada, como fiz no ano transacto, a aspectos de particular relevo no sector agrícola.
Mas vejo-me forçado a reter apenas alguns elementos relativos à anunciada expansão em 1962 do produto originado na agricultura, que permite a expectativa de acréscimo superior ao de 3,4 por cento verificado em 1961 no sector primário.
O aumento de produção agrícola, neste momento já verificado, beneficiou, de um modo geral, de condições climáticas mais favoráveis do que nos anos anteriores, nomeadamente no que se refere ao trigo e ao vinho.
Quanto ao trigo, a produção de 1962 terá sido de 5 525 000 q, o que representa acréscimo de 86,7 por cento em relação a 1961 (mapa n.º 7 dos anexos).
Quanto ao vinho, a estimativa de 9 588 000 hl apontada ao momento da elaboração do relatório foi sem dúvida largamente ultrapassada, como é do conhecimento geral, cifrando-se em 12 447 000 hl, segundo a estimativa de 31 de Outubro do Instituto Nacional de Estatística (já findas, portanto, as vindimas), o que corresponde a um aumento de 68 por cento sobre a produção de 1961 e de 27 por cento em relação à média do decénio anterior.
Como achega a estes números oficiais, terá interesse anunciar que na região demarcada dos vinhos verdes a produção foi este ano a maior de todos os tempos e, embora apenas completamente apurada em 39 dos 45 concelhos que integram a região, pode computar-se em mais de 675 000 pipas (ou sejam 3 375 000 hl), correspondendo a quase o quádruplo (380 por cento) da produção do ano de 1961 (aliás, a mais baixa dos últimos 30 anos, conforme salientei já nesta tribuna, faz agora precisamente um ano) e superior em 16,87 por cento (segundo o apuramento provisório efectuado) à colheita muito elevada de 1960.
Mas, confrontada com a média do decénio anterior (390 000 pipas), a produção de 1962 representa um substancial acréscimo de 73 por cento.
Temos, assim, como produções elevadas no sector agrário, o trigo e o vinho, este com volumoso aumento; com produções superiores à média do decénio - embora inferiores às de 1961 -, o milho, o feijão e o arroz; com produ-

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ções inferiores, quer ao ano anterior, quer à média decenal - a batata. Relativamente à produção de azeite, prevê o Instituto Nacional de Estatística, em 31 de Outubro, uma diminuição de 49 por cento em relação ao ano passado, mas que corresponderá a uma produção equivalente a 71 por cento da média do decénio anterior, o que não é alarmante, por se tratar de contra-safra.
No que concerne à pecuária, o aumento de 16 por cento verificado no abate nos primeiros dois quadrimestres de 1962, em relação ao período homólogo de 1961, pode constituir índice animador, se traduziu na realidade aumento de produção, e não apenas desfalque adicional no armentio.
No conjunto da produção agrícola de 1962 prevê-se uma variação por acréscimo de 4,3 por cento em relação ao ano anterior, traduzido num valor adicional aproximado de 3 400 000 contos ao nível de preços de 1954 (mapa n.º 7 dos anexos).
É de presumir, no entanto, que, em face do excesso verificado sobre a estimativa na produção de vinho, o acréscimo real seja ainda superior ao previsto no relatório ministerial.
De qualquer forma, e como neste se sublinha, e de acordo com os elementos disponíveis, «apenas o produto formado no sector da agricultura, silvicultura, pecuária e pesca, que representa cerca de 25 por cento do produto interno bruto, parece susceptível de registar em 1962 expansão superior à observada no ano precedente» e que foi computada em variações positivas de 3,4 por cento, enquanto no sector da indústria esse acréscimo foi de 8,9 por cento e de 7,3 por cento nos serviços.
Quer dizer: enquanto a apreciação dos diferentes componentes do produto nacional bruto metropolitano durante os primeiros meses de 1962 faz prever um crescimento da economia nacional neste ano, em ritmo menos acelerado do que o observado no ano de 1961, por contracção do ritmo de crescimento anual do produto formado nos sectores secundário e terciário, no sector primário assinala-se pelo contrário expansão e ritmo de crescimento ligeiramente superior. Ainda bem.
Mas, como se nota com realismo no parecer da Câmara Corporativa (§ 14.º), «este acréscimo não será ainda compensador das deficiências registadas em períodos anteriores», em consequência de «vicissitudes climatéricas, a persistência de certas deficiências estruturais que de há muito se lhe assinalam», pelo que «o aperfeiçoamento das suas estruturas se impõe com urgência, não só porque tal acção não é susceptível de resultados significativos a curto prazo, como também pela necessidade de nos prepararmos para o condicionalismo que irá criar a possível participação do País no movimento de integração económica europeia».
De justiça é lembrar «o grande passo dado nos últimos meses, com a promulgação de diplomas fundamentais e adopção de providências com vista à correcção de deficiências estruturais do sector agrário (Leis n.ºs 2114 e 2116); à realização de grandes empreendimentos de hidráulica agrícola (Decreto-Lei n.º 44 720); e ao incremento das potencialidades frutícolas e do fomento pecuário, através de planos orientadores; e ainda do Decreto-Lei n.º 44534, que torna possível o alargamento do crédito agrícola com vista ao fomento agro-pecuário.
Esse conjunto de medidas legislativas, que a Secretaria de Estado da Agricultura estudou, e articulou, e das quais duas foram objecto de demorada apreciação por parte desta Assembleia, marca sem dúvida um período de excepcional actividade no sector agrário, animada de desempoeirado espírito renovador, que certamente será continuado pelo nosso esclarecido e distinto colega Sr. Engenheiro Agrónomo Luís Le Cocq de Azevedo Coutinho, agora investido no comando governamental da agricultura portuguesa, onde irá confirmar, sem dúvida, o alto conceito em que justamente é tido nesta Assembleia, pelo seu saber, ponderação e primoroso trato.
Não posso, sob pena de ter de omitir totalmente a referência que desejo fazer a um aspecto da política fiscal, comentar mais detalhadamente o magistral relance do Sr. Ministro das Finanças sobre a evolução da economia portuguesa, nem sequer aflorar alguns dos problemas que afligem e ensombram de preocupações aqueles que, como eu, estão ligados à lavoura de Entre Douro e Minho.
A crescente carência de mão-de-obra para trabalho dos campos, mercê de causas conhecidas, entre as quais o desaforo da emigração por caminho ao sol, ou - o que é pior - pelas ínvias veredas de engajamento sem escrúpulos, e a tentação da cidade e da ocupação nas indústrias, vai tomando aspectos alarmantes. Desta sangria autêntica de gente moça e válida, fica um reliquat crescente de inválidos e inaptos, que das gerações novas só por excepção se fixa mancebo capaz para continuar o amanho da terra.
Bem sei que o fenómeno traduz causas iniludíveis e gritantes de desamparo, de escassez, de incerteza, numa palavra, de injustiça, e há-de conduzir a um reajustamento desejável sem dúvida, mas que pressupõe penosa, mas inevitável revisão de valores e conceitos que até há bem pouco pareciam intocáveis, de tal forma radicados no imobilismo dos tempos.
E sobre isto nenhuma voz é mais autêntica do que a que de Roma vem soando como bronze, em dobre repetido e insistente: «Importa que o desenvolvimento económico da nação decorra gradualmente e com harmonia entre todos os sectores da produção. Convém, por isso, que se realizem no sector agrícola transformações relativas à técnica da produção, escolha das culturas, estrutura das empresas, tais como as que admite ou requer a vida económica no seu conjunto; e de maneira a atingir, quanto possível, um nível decente em relação aos sectores industrial e dos serviços. Assim a agricultura poderá consumir maior soma de produtos industriais e utilizar serviços mais qualificados; e resultará, por sua vez, aos dois outros sectores e ao conjunto da comunidade, produtos que correspondam melhor, em quantidade e qualidade, às exigências do consumidor. Contribuirá, assim, para a estabilidade da moeda: contribuição positiva ao desenvolvimento ordenado do sistema económico global». E ainda: «A fim de obter um desenvolvimento económico harmonioso entre todos os sectores da produção, é necessário no domínio rural uma política atenta relativa ao regime fiscal, crédito, seguros sociais, garantia de preços, progresso das indústrias de transformação e modernização das empresas».
Assim ensina o Papa João XXIII. E forçoso é que aligeiremos o passo, prosseguindo na execução esclarecida e firme de um programa social agrário de que foram já definidas algumas linhas mestras, que esta Assembleia soube compreender e sancionar, aprovando-as com arejado espírito.
E venho ao meu tema de hoje, perdoem-se VV. Ex.ªs se já tardiamente, depois destas reflexões a que não soube furtar-me, por tão presentes.
O capítulo dedicado à «Política fiscal» constitui no relatório que precede a Lei de Meios para 1963 certamente o de maior relevo, através de quase 50 páginas de texto.
E é de agradecer e louvar a larga exposição nele feita, esclarecida e esclarecedora, não só acerca dos textos publicados já em 1962, como sobretudo acerca das providências que se anunciam e projectam em matéria fiscal.

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A instituição dos impostos sobre o valor das transacções e sobre indústria agrícola assinala real viragem, ou inovação, no moderno sistema fiscal português.
Razão de sobra para sobre esses dois problemas a Assembleia se deter, com a atenção merecida, uma vez que é chamada a emitir sobre eles um juízo político de alta importância, pela sua futura repercussão.
Na impossibilidade de os abordar a ambos, proponho ocupar-me do «Imposto sobre o valor das transacções», não por preferência pessoal, mas porque sobre ele incidiu o meu estudo, na Comissão de Finanças desta Assembleia.
O imposto sobre transacções, que reapareceu nas últimas décadas nalguns países, como recurso de emergência para acudir a necessidades do Tesouro e colmatar insuficiências do imposto de rendimento, transformou-se a breve termo em elemento normal e permanente dos sistemas tributários, com significativo peso nas receitas fiscais totais.
Sob denominações variadas e sistemas diversos de incidência, o imposto sobre as transacções é um tributo indirecto, na classificação tradicional, ou um imposto sobre a despesa, na sistemática moderna, destinado a atingir o rendimento consumido, incorporando-se no preço do produto, e suportado, portanto, em última análise, pelo comprador final.
Entre os países em que o imposto sobre transacções assumiu já particular relevo, podem citar-se: a Itália, em que o I. G. E. com taxas relativamente baixas, actualmente de 3 por cento e 1 por cento no regime de forfait, atinge todas as fases do ciclo económico, salvo algumas excepções, e produziu, em 1955, 27 por cento das receitas fiscais do Estado e 19,3 por cento das receitas fiscais totais (vide Prof. Francesco Forte); a Inglaterra, em que o purchase tax, instituído também em 1940 com intuitos claramente intervencionistas, para moderação de consumos, acabou por ser considerado uma fonte normal de receita, representando 9 por cento dos réditos fiscais; a Suíça, em que o imposto sobre transacções produz cerca de 25 por cento do rendimento tributário; o Canadá, com cerca de 16 por cento, e a Finlândia, com 25 por cento (segundo elementos de recente trabalho «Imposto único sobre transacções e determinação do valor tributável», do Dr. Paulo Pita e Cunha, que além deste produziu outro excelente estudo: «Imposto cumulativo e integração das empresas», ambos publicados em Ciência e Técnica Fiscal - Boletim da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. Esses trabalhos, de muito mérito, constituem valioso contributo para o conhecimento da problemática do imposto sobre transacções, certamente os mais documentados e actuais na literatura portuguesa da especialidade. Gostosamente presto essa homenagem a um novo, que continua brilhantemente as tradições dos nomes que usa, tão ilustres no professorado e no foro).
Em Portugal, o imposto sobre transacções tem uma breve história moderna - e uma mais longa história antiga.
Quanto à moderna - apenas já no nosso século, foi criado em 1922 um imposto de tipo cumulativo de «técnica mais do que rudimentar e de funcionamento extremamente imperfeito» (Dr. Pita e Cunha), que foi suprimido na reforma de 1929.
Mas tão cheia de interesse, pelo contrário, é a ascendência remota desse imposto na fiscalidade portuguesa, que sou tentado a dar uma breve súmula dos elementos que enlevadamente fui colhendo no estudo que me propus.
Já em forais dos séculos XII e XIII se acha um tributo sobre todas as transacções realizadas nos mercados locais - açougue - que tinha por objecto qualquer género de consumo. Do local onde se pagava lhe vinha o nome: açougagem.
Mas - e repare-se na evolução posterior do termo - quando se cobrava de carne vendida no mercado chamava-se-lhe alça vala. Ambos esses tributos subsistiam ainda em Lisboa no último quartel do século XIV.
O encargo que no século XIV aparece em Portugal com o nome de sisa é diverso, mas tem afinidade com o tributo antigo imposto nos forais à compra e venda. (Nesta matéria, ver o largo e como sempre documentado estudo de Henrique Gama Barros na sua Monumental História da Administração Pública em Portugal, 2.ª edição, vol. IX, pp. 400 e seguintes).
Sisa se definiu em Castela a imposição sobre géneros alimentícios - através da redução da medida.
O que mais corresponde à sisa portuguesa é a alcavala espanhola - tributo ou direito real cobrado por tudo o que se vende.
Mas também se dirá que outro significado se encontra para a expressão «alcavala» em Espanha e nas Américas Espanholas: direito que se paga na alfândega à razão de 5 por cento do preço da mercadoria (Dictionaire Universel de Commerce, de Jacques Savary dês Bruslons, edição de 1748, Paris).
Por seu lado, Rafael Bluteau - também já no século XVIII - atribui à sisa - citando Fernão Lopes - o significado de direito que se paga pela passagem em caminho não franco, além de tributo que se paga de coisas que se compram.
Do que não há dúvida é de que pelo menos na primeira metade do século XIV, e talvez ainda no precedente, havia exemplo de sisa como imposto municipal, a que o clero se procurava eximir, e com êxito, pelo menos em alguns lugares. Nas Cortes de Leiria de 1372 pleiteou o rei D. Fernando a concessão de sisas gerais, que parece já estava cobrando. E em 1474 foi-lhe autorizada a sisa da cidade de Lisboa e seu termo, sendo o respectivo regimento o mais antigo de que Gama Barros teve notícia.
Em 1384 o mestre de Avis, já então escolhido para «defensor e regedor dos reinos», pediu e obteve sisas gerais de alguns concelhos, e os de Montemor-o-Novo e Évora lhas concederam «enquanto o dito Mestre durar».
Mas só nas Cortes de Coimbra de 1387 se acordou no lançamento de sisas gerais «em todas as cousas» para «soccorremeto da guerra».
Data pois de 1387 o primeiro imposto sobre transacções em Portugal, com carácter geral e permanente, porque, como observa também Gama Barros, «apesar de se lhes dar ao princípio duração temporária e natureza de concessão popular, nunca mais, desde as Cortes, pelo menos, de 1398, deixou de se cobrar por lhe faltar essa outorga, não obstante as reclamações dos contribuintes».
E seguiu-se na realidade um longo período de reclamações e clamores, mais ainda contra os siseiros do que contra as sisas em si; e, por outro lado, começaram a surgir os pedidos de isenção e excepção à regra salutar das Cortes de 1387 de que ninguém era isento de sisa. De quanto elas rendiam sabe-se que no início do século XV os rendimentos de todo o reino eram de 81 contos e 600 000 libras e as sisas concorriam com 60 contos e 950 000 libras, isto é, quase de três quartos do total.

O Sr. Pinto de Mesquita: - A sabida rentabilidade dos impostos indirectos.

O Orador: - Nessa altura, três quartos do total. Hoje estamos ainda longe disso.

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No fim do século XV os preceitos legais que regiam a sisa eram os artigos de 1476, adicionados por D. João II e D. Manuel I.
Foram esses artigos mandados coligir pelo rei D. Sebastião, em livro de que há várias edições - uma das quais, a de 1779 (na oficina de José de Aquino de Bolhões), possuo e tenho aqui presente.
E começa assim:

De toda a cousa que for comprada, vendida, trocada ou escambada, fora pão cozido, ouro e prata, paguem de ciza dous soldos por libra, o comprador um, e o vendedor outro. Assim mesmo, dous soldos por libra de quantas vezes as ditas cousas foram vendidas trocadas ou escambadas. E isto se entenda em todas as cousas: salvo em o sai de que hão-de pagar de imposição cinco libras por alqueire, e mais não.

Aqui está afinal um imposto sobre transacção, múltiplo ou de repetição, com taxa uniforme, mas agravada ou reduzida para alguns artigos (sal e carnes), cobrado no retalho, com obrigação de inscrição no livro do escrivão ou rendeiro das sisas - no prazo de três dias.
Valerá a pena retê-lo, para quando emergirmos deste refrescante mergulho na história, à tona da actualidade.
Mas, antes de o fazer, terá interesse dizer do que foi o continuado protesto dos povos através das suas instâncias para que fossem abolidas as sisas.
As cortes respeitaram D. João I enquanto vivo, e embora acusem não poucos agravos na cobrança das sisas, nunca lhe pediram formalmente a sua abolição. E para além da sua vida, no curto reinado de D. Duarte, não há investidas contra a sua manutenção. Diz Gama Barros: «a glória de D. João I brilhava ainda bastante viva para não deixar manifestar-se o desfavor com que depois, sobre aquele ponto, foram invectivados os actos do seu Governo». Mas nas Cortes de Lisboa de 1439 logo rompem os clamores: «que as sisas não são direitos de coroa nem foram lançadas pelos reis antigos; punham-nas os povos entre si, quando lhe sobrevinha algum caso para o qual precisavam de dinheiro, e tanto que cessava a causa, cessava logo o tributo».
O santa ingenuidade dos procuradores às cortes!
Como se alguma vez pudesse cessar a causa de cobrança de tributo imposto e aceite, que é sempre afinal a crescente necessidade do Tesouro que o percebe, tonel das Danaides nunca cheio.
Mas atendidas foram as instâncias feitas nas mesmas Cortes de 1439, quanto à aspereza dos varejos, «que mais os sentia o povo do que o próprio tributo».
Renovaram-se os clamores nas juntas de Lisboa e Évora de 1459 e 1460, pedindo ao rei «que por bem das almas do seu avô e do pai, e da sua própria, que tire de todo as sisas, ou ao menos dê ao povo algum alivio».
Mas o rei D. Afonso vai-lhe dizendo, com firmeza, «que se espanta de que as cortes toquem em tal matéria, pois bem sabem que o Reino e a sua fazenda, assim por criação e casamento dos vossos filhos e por outras necessidades que sobrevieram ao Reino, são em tão grande abatimento, que se aí sisas não houvesse ele as teria de pôr de novo».
E o mesmo, apenas acrescentado, responde D. João II à Assembleia de Évora de 1481-1482: «Sendo notório que a ele rei é impossível manter o seu estado e o bem e a honra do Reino sem o recebimento das sisas ou outro equivalente, parece-lhe que os povos não são agravados com a conservação de um encargo»; e D. Manuel I, às Cortes de Lisboa de 1498: «que esse rendimento e muitos outros revertem do fisco para o ponto de onde vieram, pois com eles supriram sempre os anteriores soberanos, e assim ele, não só as despesas gerais do Reino, mas o proveito de muitas pessoas, dando moradias, casamentos, tenças e outros auxílios de vida e encaminhamentos a filhos e filhas de fidalgos, cavaleiros e escudeiros, e a todas as outras classes». E conclui rapidamente: «Só por tanto benfeitoria que da renda das sisas com os mais direitos redunda aos nossos naturais, devia certo pesar muito ao povo se as não tivessem».
Ora aqui está - em bom e sintético vernáculo quinhentista - o fundamento da fiscalidade, como suporte indispensável do bem e da honra da Nação, das benfeitorias que permite, do proveito de todas as classes.
Vimos que não faltam ao imposto sobre transacções foros de antiguidade venerável na legislação portuguesa, e no Repertório das Leis Extravagantes, ordenado pelo desembargador Manuel Fernandes Tomás (tomo 2.º, na Real Imprensa da Universidade - Coimbra, 1819), encontro referência a alvará de 24 de Outubro de 1796, em que sobre a sisa se diz «he a contribuição mais antiga, mais legítima, mais suave, e a mais louvável que pagam os vassalos por seu importante objecto; e foi estabelecida constitucional e legalmente».
Não certamente por estas razões de excelência, mas por outras mais actualizadas e práticas, crê o Governo ser chegado o momento de instituir o imposto sobre o valor das transacções, e assim o consigna no artigo 11.º da Lei de Meios para 1963 (voltamos agora, como prometi, à tona da actualidade, emergindo das profundas da história), que reza assim:

O Governo no ano de 1963 deverá promover a substituição do actual imposto sobre consumos supérfluos ou de luxo por um imposto sobre o valor das transacções, com isenção das relativas a produtos alimentícios, matérias-primas, ferramentas, máquinas industriais e outras que devam considerar-se de consumo primário.

Trata-se, pois, da instituição de um regime geral de imposto sobre transacções, em substituição do imposto, ou melhor, dos impostos anteriormente lançados sobre variados produtos e serviços, mas que não constituíam um imposto geral, mas apenas uma medida de emergência, restrita, e não erigida em sistema.
Já nos relatórios das propostas das Leis de Meios para 1961 e 1962 a intenção do Governo neste- domínio fora anunciada, embora se reconhecesse a impossibilidade imediata de estruturar o imposto geral sobre transacções por estarem ainda em curso estudos pertinentes e se considerar indispensável a sua articulação com o regime geral dos impostos directos e particularmente com o regime da contribuição industrial.
Concluída agora, ou em vias de imediata conclusão, a reforma dos impostos directos e certamente levados a termo os estudos necessários, verificam-se as condições suspensivas enunciadas pelo Governo, e chegou o momento da instituição do novo regime de impostos sobre as transacções. Como antecedentes próximos, que terão servido certamente de banco de ensaio para os serviços fiscais, os impostos sobre certas mercadorias ou serviços, estabelecidos nos Decretos-Leis n.ºs 43 763 e 43 764, de 30 de Junho de 1961, reformados posteriormente pelos Decretos-Leis n.ºs 44 235, de 14 de Março de 1962 (novo regime de cobrança do imposto sobre consumos supérfluos ou de luxo), e 44 510, de 16 de Agosto de 1962, que cria um imposto generalizado sobre bebidas engarrafadas e gelados, já constituem, e confessamente, um primeiro passo, embora parcelar e de emergência, para

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preparar o consumidor, isto é, afinal o País, para a viragem a operar no sistema fiscal.
Como escreveu o Sr. Ministro das Finanças (Relatório, p. 82):

A aplicação destas medidas foi imposta essencialmente pelas necessidades de defesa da Nação. No entanto, elas representam a primeira fase da reorganização geral da tributação de consumo actualmente em curso, que passa a desempenhar papel estabilizador num sistema tributário orientado no sentido do rendimento real.

Anuncia-se no relatório da Lei de Meios que a incidência do imposto sobre o valor das transacções será azada no estádio do comércio por grosso, recaindo, assim, como imposto único, sobre o preço de venda dos produtos, na passagem do grossista (ou do produtor, na hipótese de não existir grossista independente) para o retalhista.
Haverá uma taxa geral, cujo quantitativo se não concretiza, aplicável genericamente a todos os produtos não expressamente isentos, e ainda taxas agravadas e reduzidas em relação a determinados bens de consumo.
O montante do imposto será incorporado no preço de venda dos produtos, cessando assim a actual imposição de indicação separada do imposto de consumo.
Coincidirá com a instituição do imposto sobre as transacções a reorganização da tributação do consumo, extinguindo-se o imposto existente sobre consumos supérfluos ou de luxo e integrando-se no novo regime geral a tributação fixada quanto a certos produtos em regime especial.
São estas afinal as linhas mestras anunciadas, quanto ao regime do imposto sobre o valor das transacções.
Valerá a pena fazer sobre elas um breve comentário.
Quanto à própria instituição do imposto geral sobre transacções vêm sendo indicadas duas razões de fundo:
A) O imposto geral sobre o consumo representa o natural complemento dos impostos directos, «conferindo o indispensável grau de equilíbrio e harmonia ao sistema fiscal português». Já em 1957 o Prof. Doutor José Teixeira Ribeiro, na comunicação feita ao II Congresso dos Economistas Portugueses, «Industrialização e Política Fiscal», dizia com a sua reconhecida autoridade:

Os nossos impostos de consumo são, na sua quase totalidade, impostos de fabrico e de venda e direitos de importação, com largo predomínio destes últimos. Assente, porém, sobre as pautas, e não obstante o volume de bens directos e instrumentais importados, a tributação do consumo sofre naturalmente de muitas lacunas, deficiências e disparidades que, segundo parece, só poderão ser corrigidas ou atenuadas mediante um imposto sobre o valor das transacções. Esse representará a generalização, num todo harmónico, do sistema restrito de impostos de fabrico e venda, que já temos.

E conclui:

Parece indubitável que sem um imposto sobre as transacções, a integrar os direitos alfandegários, a nossa tributação do consumo nem poderá ter coerência, nem constituir um utensílio eficaz da política de desenvolvimento.

B) Por outro lado, implicações resultantes da nossa participação na Associação Europeia de Comércio Livre, a eventual adesão à Comunidade Económica Europeia e a necessidade de proteger a indústria portuguesa, no plano da concorrência internacional, aconselham o alargamento dos impostos indirectos.
E há que reconhecer a necessidade de colmatar, pelo alargamento do imposto interno sobre o consumo, a prevista redução dos direitos de importação, decorrente das limitações impostas pela participação do nosso país em qualquer das associações do comércio europeu.
Outras razões ainda se aduzem a favor da instituição do imposto sobre transacções: a moderação de consumos, atenuando o efeito de imitação. E o de evitar maior pressão de impostos sobre o rendimento, que se traduz em desencorajamento da poupança. Como nota o mesmo Prof. Teixeira Ribeiro, «o incentivo para o aforro não é reduzido, antes favorecido pelos impostos sobre o consumo».
A clássica acusação de repressividade feita aos impostos indirectos, uma vez que num orçamento familiar apertado as aquisições essenciais absorvem tudo, e, portanto, proporcionalmente os impostos de consumo têm incidência maior do que nos orçamentos sobrantes, aparece afastada ou atenuada «pela isenção dos produtos de primeira necessidade e de taxas agravadas para consumos supérfluos».
E assim o refere também o Prof. Francesco Forte, da Universidade de Turim, citando, em abono da tese, as conclusões de investigadores americanos (Miller, Mc Graw, Musgrave, Due, etc.) no sentido de que com as isenções necessárias para os produtos alimentícios essenciais o imposto sobre transacções poderia perder o seu carácter regressivo quanto ao rendimento, adquirindo a característica de imposto proporcional ou só dèbilmente regressivo, com mais acentuada regressividade nos extremos. E vem a propósito referir que às isenções anunciadas no artigo 11.º da Lei de Meios se me afigura inteiramente justificado o acrescentamento das relativas a remédios, artigos e livros escolares, calçado e vestuário de baixo custo, e produtos artesanais dentro de certo limite de preço, e assim me permito sugeri-lo ao Sr. Ministro das Finanças, penso que com o apoio da Assembleia.
Quanto à técnica do sistema de imposto, já se referiu que a intenção governamental anunciada é da adopção de um imposto único ou singular, incidindo na fase do comércio grossista, sistema seguido, embora com variantes, na Inglaterra, Suíça, Nova Zelândia e Austrália.
Pôs-se assim deliberadamente de parte a modalidade do imposto múltiplo, cumulativo ou de repetição (multiple stage tax, taxe en cascade), que atinge com taxa uniforme as transmissões do produto ao longo de todo o ciclo de produção e distribuição, e vem sendo aplicado na Alemanha, Áustria, Suíça e países da Benelux.
Esta modalidade de imposto sobre transacções, que «no aspecto conceitual é a solução elementar, está particularmente contra-indicada nos países em que a necessidade de rápido desenvolvimento económico torna indispensável um alto nível de investimento» (Dr. Paulo Pita e Cunha, obra citada). Quanto ao ponto de incidência do imposto, no circuito económico, reconhecendo-se, embora, que teòricamente a fixação da fase do comércio de retalho é a melhor, por afastar as disparidades resultantes da diversa estrutura e amplitude de circuitos comerciais dos produtos, a impossibilidade prática resultante da pequena dimensão do comércio retalhista entre nós, com todas as consequências decorrentes (impossibilidade de fácil controle, ausência de facturação, etc.), conduz à escolha do estádio do comércio grossista para a percepção do imposto.
A solução, considerada aliás a mais evoluída, da tributação sobre os valores acrescentados, que vigora em França e na Grécia, não oferece viabilidade actual no nosso condicionalismo.
Para satisfação de curiosidade própria, e porventura alheia, investiguei o rendimento produzido pelos impostos sobre o consumo de artigos e serviços supérfluos ou

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de luxo e ainda sobre refrigerantes e perfumarias e apurei os seguintes números (receitas cobradas), segundo elementos das Contas Públicas de 1961, p. 45, e conta provisória de Janeiro a Setembro de 1962:

[ver tabela na imagem]

Há a salientar o extraordinário aumento das três rubricas de impostos sobre o consumo em relação a 1961 - com relevância para o imposto sobre consumos e serviços supérfluos ou de luxo -, que sextuplicaram. No conjunto dos impostos indirectos, as receitas cobradas de Janeiro, a Agosto de 1962 totalizaram 2928000 contos - mais 4,8 por cento do que em 1961 -, quando é certo que no ano anterior haviam aumentado 15 por cento. A contracção no ritmo de crescimento resultou da diminuição de 174 900 contos na cobrança dos direitos de importação. Mas essa variação negativa veio a ser amplamente compensada pela expansão dos rendimentos das taxas de salvação nacional, do imposto sobre o consumo de refrigerantes e, bem assim, de consumos supérfluos ou de luxo e ainda do imposto do selo.
No exame da pressão fiscal global - que foi em 1961 de 18 por cento sobre o produto nacional bruto - os impostos indirectos totais atingiram 6 204 000 contos, representando 48 por cento da carga fiscal, que foi de 12 932 000 contos (quadro XVI do Relatório).
Terminada esta longa, e para VV. Ex.ªs penosa, incursão na fiscalidade, retenho duas consoladoras afirmações do Sr. Ministro das Finanças, que são afinal a síntese política do panorama financeiro do País:

... apesar das modificações da conjuntura financeira monetária e cambial em 1962, foi possível operar-se a expansão da economia metropolitana a ritmo acelerado, conseguindo-se simultaneamente manter as finanças equilibradas, estabilidade do valor do escudo, equilíbrio fundamental do banco central e elasticidade do sistema bancário, sem prejuízo da sua estabilidade.

E mais adiante:

No ano de 1963 parece legítimo esperar sensível incremento da actividade financeira. Com efeito, o acréscimo da receita ordinária, que neste momento se antolha, devido à natural expansão da matéria colectável e à entrada em vigor da reforma dos impostos directos, conjugado com o elevado montante dos empréstimos contraídos, tornará possível ocorrer à cobertura das despesas impostas pela defesa da população e da integridade nacional e ainda a uma maior participação do Estado no financiamento do desenvolvimento económico.

Ainda há dias, entre muitas outras necedades e aleivosias, um dos vociferantes onusianos afirmava a incapacidade das finanças portuguesas para fazer face à situação criada em Angola e noutras terras de Portugal, por esses mesmos dementados energúmenos com assento no batuque de Manhattan, concluindo que só graças às dádivas de outros países Portugal havia podido resistir. Santo Deus! Mas até certo ponto é compreensível a objurgatória. Na realidade, que ideia fará da nossa orientação financeira, da solidez da nossa moeda, dos pilares em que assentou, qualquer desses improvisados homens de Estado, que de finanças públicas sòmente têm a ideia primária - aliás de experiência feita - de que a O. N. U., ou por ela alguns dos grandes e ricos impérios actuais, as suprirá à medida dos seus apetites? Nesta infantil concepção da administração pública - e diferente não é de prever - todos os conceitos para nós válidos são compreensivelmente insuspeitados sequer.
O caos da administração congolesa, não obstante o suporte caríssimo da O. N. U., bastará como exemplo.
Pese embora aos que incansàvelmente repetem contra Portugal, no tablado histérico em que se transformou a O. N. U., a cegarrega de slogans, ameaças e impropérios, as finanças portuguesas vão resistindo solidamente às duras exigências simultâneas de um estado de alerta permanente que nos impuseram de fora e do desenvolvimento económico, aqui e no ultramar, que é fruto do nosso querer.
E será que possamos ignorar o que em todos os sectores se vai projectando, executando e concluindo, num ritmo sem par na nossa terra?
São novas unidades industriais no ramo automóvel, nos tabacos, na cerveja, na celulose, na metalomecânica, no equipamento eléctrico, no material ferroviário, na siderurgia, nos produtos químicos; é a rede de estradas que vai melhorando com largueza, a ponte da Arrábida em conclusão, a de Lisboa em início, o porto de Leixões ampliado, o aeroporto de Faro a iniciar-se, os do Porto e Lisboa ampliados, a electrificação da ferrovia Lisboa-Porto em franco andamento, os grandes estaleiros do Tejo em início de execução, a frota da T. A. P. renovada, o equipamento hoteleiro em acelerado progresso, a dignidade das casas de justiça que se erguem sucessivamente, as casas económicas, que, mormente no Porto, continuam consoladoramente a tomar a vez das infectas «ilhas», as barragens que continuam a erguer-se lá por Bemposta e Pisões e a de Cambambe, já em início de exploração, a rede de adegas cooperativas a alastrar por todo este país vinícola, a electrificação rural que se vai fazendo, embora não tão depressa, é certo, como o nosso anseio; e tudo isto que cito a esmo, à mercê da lembrança, da imagem retida, ou sonhos antigos, está a erguer-se precisamente quando mais duras são as dificuldades.
E o plano de irrigação do Alentejo, ainda há poucos dias sublinhado como realização ímpar, que marcará uma época!
Mas, simultâneamente, não faltou ainda a Angola, nem faltará, o escudo de rija têmpera dos soldados de Portugal para repelir estes novos cruzados do mal, as hordas do terror, e defender delas as populações pacíficas, que querem continuar a viver e trabalhar sob a bandeira da Nação a que se sentem orgulhosos de pertencer.
Tudo isso custa muito, em dinheiro, em valores, mas mais ainda em sacrifício da nossa mocidade.

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Mas ouçamos, para nossa edificação, exemplo e orgulho, o que escreveu há dias um jovem soldado de Angola, em carta que um jornal do Algarve arquivou (Correio do Sul, 22 de Novembro de 1962):

A experiência de vida que aqui se adquire vale bem o alto preço por que a pagamos: Angola é neste momento uma grande escola, por onde deviam passar todos os portugueses; escola de vida dura e útil e também escola de patriotismo, de amor a Portugal, de amor a tudo o que é nosso, esteja onde estiver. Já morreram aqui alguns dos nossos, outros morrerão ainda; mas tenho a certeza de que a experiência e a endurancc adquiridas pela minha geração nesta escola são a melhor garantia não só da sobrevivência da nossa pátria, mas também de um futuro mais próspero para todos os portugueses. Só os cobardes e os traidores não pensarão assim: mas a hora dos cobardes e dos traidores também há-de chegar, porque os que aqui morrerem e os que daqui regressarem à metrópole hão-de todos, os vivos e os mortos, pedir-lhes um dia conta da sua cobardia e da sua traição. E tenham a certeza de que seremos implacáveis, porque aprendemos aqui muitas coisas, até fazer justiça séria e definitiva.

O Sr. Pinto de Mesquita: - V. Ex.ª podia declinar o nome do soldado?

O Orador: - Para sua honra, proclamo o nome do autor destas linhas, das mais belas e viris que terei lido: Antero de Lima Nobre, furriel do Exército, natural do Algarve, e soldado de Portugal em Angola.
Regatear sacrifícios quando assim sentem e pensam jovens, que lá longe generosamente trabalham, lutam, sofrem e morrem para que Portugal continue?
A prioridade dada no artigo 15.º da proposta de lei aos encargos com a defesa nacional corresponde a imperativo do momento histórico que vivemos. Não a discutirei. Certo estou de que. a Assembleia a consagrará.
Termino.
O voto de concordância que na generalidade dou à proposta da Lei de Meios para 1963 é um acto de merecida confiança na seriedade, prudência e senso da administração financeira do País.
Queria sòmente manifestar o meu apoio de princípio à judiciosa sugestão da Câmara Corporativa quanto à inclusão no capítulo V de um novo artigo, embora apenas programático, referente à «elaboração de um programa nacional de educação e formação, no qual se deverá atender às necessidades da Nação nos aspectos científico, técnico e profissional».
Como se nota no douto parecer da Câmara Corporativa, «desde o prolongamento da escolaridade primária à necessidade de aperfeiçoamento pós-universitário, passando pela revisão dos esquemas clássicos de educação e ensino, facilidade de acesso ao ensino médio e superior dos estudantes mais bem dotados, e mais flexível colaboração com as entidades particulares, é toda uma gama de questões que importa urgentemente encarar».
Não será possível fazer tudo de uma vez imediatamente, sem dúvida, mas urge «começar por uma visão geral dos assuntos, por forma a podermos caminhar mais depressa e com maior segurança e economia» na preparação científica, técnica e profissional, que tanto é dizer na valorização de imenso capital humano ainda inaproveitado em proporção indesejável.
A sugestão da Câmara Corporativa, que visa exactamente essa planificação, sem dúvida oportuna, e de que estamos carecidos, merece, assim, a minha esperançada concordância.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Santos Bessa: - Sr. Presidente: mais uma vez subo a esta tribuna para expender breves considerações sobre uma nova proposta de lei de autorização das receitas e despesas que o Sr. Ministro das Finanças enviou à Assembleia Nacional.
Hei-de procurar ser o mais conciso possível e cingir-me exclusivamente aos artigos 22.º, 23.º e 24.º, que se ocupam, respectivamente, das «Providências sobre o funnalismo», da «Saúde e assistência» e da «Política do bem-
-estar rural», assuntos que habitualmente prendem mais intensamente o meu espírito e que reputo do mais alto interesse político.
Antes, porém, de entrar na sua análise seja-me permitido dirigir ao ilustre Ministro das Finanças, que com superior inteligência e extraordinária devoção tem vindo a orientar a nossa política financeira, as minhas mais sinceras felicitações pelos resultados obtidos com a aplicação de uma política reveladora do mais acrisolado interesse nacional, pela transparente clareza do seu relatório e pela excelente orientação nele definida.
Aqueles resultados, que estão bem patentes a todos os portugueses e a todos os estrangeiros, foram a natural consequência daquela política financeira vazada em sábios e seguros moldes pelo Presidente Salazar e prosseguida ininterruptamente há mais de 30 anos e, também, o resultado de uma eficiente administração pública, graças às quais se obteve o saneamento financeiro, o extraordinário surto de desenvolvimento do País em todos os sectores da sua actividade, se conquistou e se mantém o seu firme crédito exterior e se aguentou, sem quebra do seu ritmo normal, o desenvolvimento da Nação durante todo este doloroso período de guerra injusta que nos movem com o objectivo de entregar às hordas comunistas retalhos sagrados da nossa pátria. Graças a elas, à orientação definida e à vontade firme dos portugueses, a nossa tradicional política de convivência racial e de assimilação, executada paciente e tenazmente através dos séculos, há-de prosseguir e a nossa unidade política e territorial há-de manter-se.
Sr. Presidente: acerca das providências sobre o funcionalismo, devo confessar o prazer reconfortante com que li as páginas do relatório do Sr. Ministro das Finanças no que respeita às realizações já efectuadas no capítulo das habitações para os funcionários e no das disposições já tomadas e das prometidas acerca da assistência na doença a funcionários civis, seus cônjuges e familiares.
É amplo o programa da habitação previsto para Lisboa, Porto, Coimbra, Castelo Branco, Vila Real, Beja, Ponta Delgada e outros núcleos populacionais, parte dele já em execução. O seu desenvolvimento trará, sem dúvida, inegáveis benefícios àqueles funcionários que vierem a ser contemplados.
No capítulo da assistência à doença, o programa prossegue com excelente ritmo - resolvido o problema da assistência aos funcionários civis atingidos de tuberculose, estendeu-se a protecção aos cônjuges e filhos dos servidores do Estado. Agora, encara-se a assistência a todas as formas de doença, no campo da assistência médica e cirúrgica e, também, no da materno-infantil. E não só a assistência

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médica, mas também os serviços de enfermagem em regime ambulatório e domiciliário. E, o que é mais, e que destaco de uma maneira particular, com todo o louvor que ele merece, este princípio da liberdade da escolha dos médicos por parte dos utentes dos serviços de assistência!
Os Srs. Deputados sabem bem como já aqui defendi este princípio sagrado do direito do doente à escolha do médico. Por isso mesmo, podem avaliar a sinceridade com que louvo esta atitude do Governo, que, com certeza, me permite concluir que o sistema se estenderá aos Serviços Médico-Sociais - Federação de Caixas de Previdência e a outros sectores ainda lamentavelmente circunscritos a um corpo médico limitado e ao qual terá de cingir-se o doente abrangido por esses Serviços. Este princípio aqui afirmado há-de, com certeza, se tiver a amplitude que é lícito prever, merecer decidida aprovação da classe médica.
A propósito dos servidores do Estado, peço licença para aproveitar o ensejo e recordar a injusta e incompreensível situação em que se encontram cerca de 10 000 funcionários da assistência. Recordo aqui considerações já feitas na sessão de 12 de Dezembro de 1957 e na de 13 de Dezembro de 1960. Na primeira expus a sua situação estabelecendo o contraste entre os funcionários do Estado que descontavam para a Caixa Geral de Aposentações e que tinham direito a uma normal pensão de reforma e a daqueles que descontavam para a Caixa de Previdência do Pessoal da Assistência, cujo máximo de pensão de reforma possível era de 80 por cento de 1500$!
Em 13 de Abril de 1959, o Governo resolveu dar remédio a esta injusta situação e, para isso, publicou o Decreto-Lei n.º 42 210. Por essa via, os funcionários deixaram de descontar para esta Caixa, a que pertenciam, e passaram a descontar com destino à Caixa Geral de Aposentações, onde deveriam ser integrados, como reza o artigo 16.º desse decreto-lei, até 1 de Janeiro de 1960.
Na sessão de 13 de Dezembro de 1960 disse eu:

Mas, segundo informações que tenho por fidedignas, o respectivo numerário não entrou na Caixa Geral de Aposentações e encontra-se em depósito nas respectivas instituições. E isto porque se torna necessário regulamentar o Decreto-Lei n.º 42 210!

Sr. Presidente: estas palavras contêm hoje a mesma verdade, passados que são mais de três anos e meio sobre a publicação do decreto! E, por mais estranho que o caso pareça, afirmo que, apesar da incerteza com que continuam a. viver aqueles 10 000 funcionários, apesar dos prejuízos já causados a muitos deles, apesar de o assunto ter sido ventilado aqui nesta Assembleia, nunca nos foi dada pelo sector encarregado de tal regulamentação a mais ligeira, explicação!

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - O desânimo invadiu já muitos funcionários, inventam-se a tal respeito as mais variadas e inverosímeis histórias e alguns desses servidores do Estado, incrédulos e receosos, começaram já a requerer autorização para levantar os dinheiros que haviam descontado, com receio de que tudo desapareça!

O Sr. Amaral Neto: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Amaral Neto: - Também tive conhecimento dessas queixas e feriram-me pelo que parecia haver de justiça ofendida na atitude dos queixosos. Por isso requeri aqui há meses que me fosse dada informação de quanto o Estado estava cobrando a título de desconto para a aposentação desses funcionários. Anda muito perto dos 10 000 contos, e parece-me muito chocante que se arrecadem esses milhares de contos e não se conceda a aposentação.

O Sr. Melo e Castro: - Mas o Estado não recebeu esse dinheiro ainda. E são os próprios funcionários, incrédulos na aposentação, a requerer a restituição desse dinheiro, o que pode comprometer a efectiva integração desses funcionários na Caixa Geral de Aposentações.

O Orador: - Quanto mais se retardar essa integração tanto mais delicado se torna o problema.

O Sr. Melo e Castro: - Exactamente. É da mais elementar justiça a resolução desse problema.

O Orador: - Não seria de facto possível, Sr. Presidente, desvendar este mistério, pôr termo a este silêncio ou, então, acelerar os estudos necessários para promover a execução do Decreto-Lei n.º 42 210? Já que não pôde fazer-se dentro do prazo legal - até 1 de Janeiro de 1960 -, porque não se faz a integração, pelo menos, antes de 1 de Janeiro de 1963?
Tais dificuldades terá o problema que os actuários e os técnicos do Ministério das Finanças soçobrem perante elas?!
A respeito da política do bem-estar rural, de novo a proposta de lei de autorização de receitas e despesas traduz o propósito do Governo de a prosseguir, isto é, de criar melhores condições de vida às chamadas populações rurais, que o mesmo será o de proporcionar-lhes melhores estradas e caminhos, o de resolver-lhes o problema do abastecimento de água potável, o de fornecer-lhes energia eléctrica, o de promover o saneamento, a construção de habitações higiénicas, a instalação de matadouros, etc.
No relatório deste ano afirma-se reconfortantemente que «continua a revestir-se de grande importância tudo o que respeita à vida colectiva nos pequenos e médios agregados populacionais ...».
Vem de longe esta orientação política, que merece o nosso inteiro aplauso, embora verifiquemos, tantas vezes, com desgosto, que nem sempre ela tem sido executada com o ritmo necessário para vencer rapidamente o atraso em que infelizmente se encontram muitíssimos aglomerados populacionais. Tem-se a impressão de que com algum sacrifício do monumental e do sumptuário ter-se-ia podido avançar muito mais na realização dessa tão importante e tão humana política do bem-estar rural.
Represento nesta Câmara um distrito que, desde há três anos, se vem consagrando a uma obra de promoção social, da verdadeira política do bem-estar rural, através da execução de dois modestos planos - o de ajuda rural e o de pequenos melhoramentos. Sinto meu dever dar conhecimento à Câmara e ao País do que tem resultado da sua aplicação no campo do benefício material das povoações, no do rendimento do capital investido e no da doutrinação política, desta colaboração íntima do Estado, dos municípios e dos povos.
Concebeu-a e pô-la em marcha o ilustre governador civil do distrito de Coimbra, aglutinando à sua volta e interessando nela as câmaras municipais, as juntas de freguesia e o próprio povo dos grandes aglomerados e dos próprios lugarejos. Os Deputados, os presidentes das comissões concelhias da União Nacional e os chefes dos vários serviços públicos participaram sempre das múltiplas reuniões de esclarecimento, de doutrinação e de preparação dos planos

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a executar. Não se trata de simples função de presença ou de mero acompanhamento, mas da participação activa de todos os elementos neste trabalho de promoção social, de organização e desenvolvimento comunitários.
Como se tem feito essa doutrinação e como se tem despertado o interesse dos povos nesse trabalho de comunidade? Essa é a base fundamental e nela reside o segredo do êxito.
Não é segredo para ninguém que os povos não sentem nem mesmo agradecem devidamente as múltiplas obras realizadas pelas câmaras municipais e comparticipadas pelo Estado ou executadas só por este e a que eles assistem passivamente. Umas vezes ficam indiferentes e outras esquecem-nas ràpidamente, mesmo que o acto inaugural tenha sido profusamente reclamado, festivamente realizado e regularmente assistido.
A comunicação entre as gentes - entre os membros da comunidade entre si e entre eles e os funcionários da freguesia, da câmara ou dos serviços do Estado que com eles lidam - e a participação activa dos povos na selecção das obras mais urgentes a realizar com vista à melhoria da sua situação social, cultural e económica e na respectiva execução são indispensáveis ao verdadeiro desenvolvimento comunitário.
Para as conseguir fizeram-se, na fase preparatória, algumas dezenas de reuniões, primeiro presididas pelo governador e, depois, pelos presidentes das câmaras, umas de âmbito distrital, outras de carácter concelhio, com objectivos diferentes.
Através delas conseguiu-se interessar toda a gente, criar um espírito de comunidade distrital, despertar, nas comunidades rurais, um interesse mais vivo pelos seus problemas, dar-lhes consciência da sua capacidade para realizar a elevação contínua e progressiva do seu nível de vida e criar nelas um espírito de optimismo e de confiança nas suas próprias possibilidades. Valoriza-se assim o povo - depósito dos maiores recursos de uma região ou de um país -, que deixa de ser elemento passivo e contemplativo das obras do seu povoado, mas passa a ser colaborador activo do progressivo desenvolvimento da comunidade a que pertence.
Não vou entrar na minúcia da técnica seguida para a obtenção dos resultados já conseguidos porque tudo isso está pormenorizadamente descrito em publicações já editadas pelo Governo Civil de Coimbra.
Falei da técnica, e, efectivamente, todo este trabalho de preparação do ambiente, de aglutinação das gentes, do despertar do interesse das populações, tem técnica e tem princípios que é necessário respeitar.
Mas quero dizer-lhes algo do que se tem conseguido. O trabalho de preparação começou em Outubro de 1959; o de execução iniciou-se em Julho de 1960.
Cada freguesia preparou o seu plano de pequenos melhoramentos urgentes, com a designação da obra e a indicação da ajuda da freguesia em dinheiro, em materiais e em mão-de-obra.
As câmaras respectivas elaboraram os mapas com os planos das diversas freguesias, juntando-lhes o que era possível prever da comparticipação do município para a realização de cada obra. Os planos municipais de pequenos melhoramentos foram reunidos no Governo Civil.
Aqui, em colaboração com os serviços distritais do Ministério das Obras Públicas, e tendo em atenção as mais urgentes necessidades dos povos, fez-se o escalonamento da execução das obras com vista à sua prioridade. O interesse despertado foi tal que foi necessário distribuir essas obras por um plano quadrienal distrital.
O Sr. Ministro das Obras Públicas dignou-se aprovar o plano e de o subsidiar com um terço do seu valor.
Em Setembro de 1960 iniciaram-se nas freguesias 10 obras; em Outubro 25; em Novembro 35, e em Dezembro 53, e continuou sempre em entusiasmo crescente durante o ano de 1961, o que levou o Sr. Ministro a reforçar, no início do 2.º ano, a contribuição concedida.
Nos dois primeiros anos executaram-se 588 destas pequenas obras, com um valor orçamental (muito inferior ao real!) de cerca de 5000 contos.
A comparticipação do Governo Civil não chegou a 24 por cento - pouco mais de 1200 contos -, provenientes do Ministério das Obras Públicas (17 por cento), do Ministério do Interior (3,6 por cento) e do próprio Governo Civil (3,2 por cento).
Os 76 por cento restantes, isto é, cerca de 3800 contos, vieram quase inteirinhos da contribuição voluntária e entusiástica das populações - as autarquias quase não tiveram necessidade de contribuição supletiva! Os trabalhos tiveram cuidada assistência técnica, para evitar que a sua execução viesse comprometer, a breve trecho, o dinheiro e o trabalho ali investidos. Arranjaram-se ruas, consertaram-se fontes, formaram-se grupos de interajuda, de verdadeiros autoconstrutores, e, assim, se repararam casas pobres, se fizeram chaminés e se abriram janelas nalgumas delas. Os habitantes dessas pequenas aldeias perdidas nas serras caiaram as casas e puseram vasos com flores nas janelas, num propósito entusiástico de compreensão e de colaboração activa no asseio e higiene do ambiente.
Estas obras, feitas com pouco dinheiro do Estado e das autarquias, têm inegável valor; mas maior valor tem ainda o despertar do interesse dos povos para a colaboração activa na resolução destes problemas da comunidade, este trabalho de valorização humana no desenvolvimento comunitário.
A experiência está feita. O trabalho está em marcha. Os resultados económicos, sociais e políticos estão à vista.
Porque não há-de, em cada distrito, tentar-se experiência igual ou idêntica?
Quem há que possa negar a sua colaboração, por comodismo ou por outras razões, a experiências desta natureza?
Estamos convencidos de que, assim, não só se colaboraria amplamente com o Governo na sua política de bem-estar rural, mas também se valorizaria substancialmente esse intento e se faria obra política do mais alto valor no sentido de despertar nos povos o interesse real pela sua comunidade, de lhes dar consciência das suas possibilidades, de os levar a misturar os seus esforços aos do Governo e das autarquias, isto é, de conseguir uma activa colaboração com a administração pública.
Só valorizando o elemento humano, jungindo-o ao esforço do Governo e das autarquias, se consegue verdadeiro progresso nacional.
De resto, são do ilustre Ministro do Interior estas palavras relativas ao trabalho a que me reporto: «pode considerar-se já uma experiência definitiva e um exemplo a seguir». Pois que cada um que tenha de o seguir se disponha a inteirar-se dos princípios e dos métodos e se arme da coragem e da devoção necessárias ao seu êxito, a bem da Nação.
Nem o Ministro do Interior, nem o das Obras Públicas, nem o das Finanças, nem o das Corporações, lhe negarão a sua valiosíssima ajuda.
Sr. Presidente: o artigo 23.º da proposta trata da saúde e assistência e visa dois sectores muito importantes da vida nacional: a promoção da saúde mental e o combate à tuberculose.

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Louvo o Governo pela decisão, mas não posso deixar de lamentar que se não haja também incluído neste artigo e continue postergado o da protecção à maternidade e à infância.
Por várias vezes me ocupei deste assunto e apresentei nesta tribuna as razões justificativas da necessidade da execução de uma política rasgada de combate às causas das nossas tão altas taxas de mortalidade infantil e de partos sem assistência e que nos comprometem gravemente, quer as consideremos no seu significado interno, quer as analisemos em confronto com as dos demais países europeus. São comprometedoras, afectam o brio nacional e podem ser atenuadas com um esforço compatível com os nossos recursos. O problema arrasta-se, sem nítida tendência para melhorar com o sistema assistência! em vigor. Os esforços do Governo e os progressos conseguidos não estão à altura da gravidade do problema.
A este respeito, julgo válidas as razões que aqui expendi noutras ocasiões e as soluções que me parece necessário e que julgo possível adoptar. Por isso mesmo, não virei hoje recordar os dolorosos aspectos do problema e me limitarei a lamentar que ainda não tenha sido possível encarar decididamente tão importante sector da saúde pública e do futuro da Nação e a esperar pacientemente que chegue a sua vez, o momento em que ele seja encarado de frente e em toda a sua amplitude, como um grande problema nacional que na realidade é.
Sr. Presidente: A saúde mental é outro grande problema de saúde pública - um problema que tem vindo, de ano para ano, a avolumar-se em todo o Mundo e a tornar-se um dos mais delicados e mais prementes na ordem prioritária das soluções.
Avisadamente, o Governo o faz enfileirar à cabeça dos que se torna necessário atender com urgência e solucionar capazmente. Honra seja feita ao ilustre Ministro Martins de Carvalho, que, na sua clara visão de moderno e dinâmico estadista, a quem o novo Ministério da Saúde e Assistência tanto ficou devendo, o destacou dos demais e sobre ele elaborou e enviou à Câmara Corporativa o projecto de lei com que pretendeu atenuar as suas nefastas incidências.
Reservaremos para a sua discussão nesta Assembleia, que julgo se verificará dentro em breve, as considerações que me merecem a extensão e a acuidade do problema, o nível e a amplitude do projecto de lei e o proficiente e exaustivo parecer da Câmara Corporativa. Por agora, seja-me permitido salientar o que o seu ilustre relator, o Prof. Bissaia Barreto, ali afirma:

Na verdade, nenhum dos flagelos que perturbam o equilíbrio do Mundo necessita ser tratado mais em profundidade e mais em extensão... depreende-se da largueza com que o assunto é tratado (no projecto de lei) que se pretende criar um armamento que actue, para já, com firmeza e segurança, em todo o território metropolitano e insular.

Por isso mesmo, dirijo as minhas felicitações ao Governo pela decisão tomada e ao ilustre Ministro das Finanças por inscrever no Orçamento Geral do Estado, como se lê no artigo 23.º da proposta da Lei de Meios, as verbas indispensáveis para a promoção da saúde mental, que é como quem diz, para a execução integral da lei em que há-de transformar-se o projecto que há-de ser discutido nesta Câmara.
Pelo que respeita à tuberculose, o prosseguimento do desenvolvimento do programa de combate a esta doença continua à cabeça das preocupações sanitárias do Governo.
Desde há anos a esta parte que o Governo, sem desânimo, tem mantido as verbas indispensáveis à execução do programa de luta elaborado pelos técnicos do Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos e superiormente aprovado. O País deve, neste como em muitos outros sectores, os mais assinalados serviços ao ilustre titular da pasta das Finanças. Aqui lhe presto as minhas mais sinceras homenagens pela protecção que inteligente e corajosamente tem dispensado à solução deste tão importante problema, sem dúvida ainda hoje, como nos tempos de Ricardo Jorge, o problema sanitário número um do nosso país.
Mas, se é certo que é ainda o mais grave, também é verdade que estamos a caminho de o dominar e de, a breve trecho, reduzir notavelmente a sua importância. Estou convencido de que isso é possível graças à persistência da política seguida, ao cuidado que foi posto na concepção e na execução do programa da luta e à continuidade da patriótica atitude do Sr. Ministro das Finanças.
E porque faço esta afirmação? Vou tentar justificar-me.
Sr. Presidente: a luta antituberculosa no Mundo tem sido nitidamente influenciada pela União Internacional da Tuberculose desde a sua fundação, há 41 anos, quando não havia nenhum dos modernos meios de luta - nem a radiofoto, nem os medicamentos antibacuares, nem mesmo o B. C. G.
Através das suas quinze reuniões, da difusão dos respectivos trabalhos e de outras publicações periódicas, têm-se marcado sucessivamente as linhas de rumo a seguir na orientação dos programas de luta. A sua elaboração e o seu contínuo aperfeiçoamento e actualização e o estímulo dado às campanhas têm-se verificado não só nos 61 países que a constituem, mas pode mesmo dizer-se que em todos os outros. Pelo que nos toca, temos procurado, desde há bastantes anos, que a campanha da luta antituberculosa em curso se subordine à linha geral das preferências estabelecidas nas reuniões daquela União Internacional, a que pertencemos.
Há 13 anos, em 3 de Setembro de 1960, em Copenhaga, na sessão inaugural da XI Conferência da União, presidida pelo Prof. Jansen, o seu secretário-geral, o Prof. Etienne Bernard, afirmou que o objectivo da União Internacional da Tuberculose era o da erradicação da tuberculose no Mundo. E disse que a tuberculose deixava de ser flagelo social num país desde que as mortes causadas por ela, em cada ano, fossem inferiores a 2 por cento da mortalidade geral. Retomava, assim, já com outras possibilidades e mais fortes probabilidades a ideia expendida por Nolen, em Haia, 18 anos antes, então considerada de visionária, já que, por essa data (1932), mesmo nos países em melhores condições, a mortalidade por tuberculose ainda era superior a 60 por 100 000 habitantes.
Desde então, e sobretudo nos últimos 15 anos, as taxas sofreram notável redução, que nalguns países chegou a ser de 90 por cento, passando, assim, para 10, para 5 e mesmo para baixo de 5 por 100 000 habitantes. Nessa corrida para a conquista das mais baixas taxas destacam-se dois pequenos países -a Dinamarca e a Holanda -, seguidos de perto pelo Canadá, pelos Estados Unidos da América e pela Suécia. Neles a tuberculose deixou, efectivamente, de ser flagelo social.
No começo do Verão de 1961, em Toronto, Canadá, reuniu-se a XV Conferência da União, e nela o mesmo secretário-geral disse que para os países onde a tuberculose se encontrava em franco declínio a União era cha-

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mada a desempenhar um novo papel - o de conceber e auxiliar um programa de erradicação da doença tuberculosa.
E juntou que as possibilidades que temos hoje, conquistadas progressivamente ao longo dos últimos 50 anos, garantem-nos não só a cura clínica de outrora, mas também as modernas curas bacteriológica, anatómica e fisiológica.
Isto quer dizer que já nos não contentamos com o desaparecimento dos sinais clínicos da actividade lesionai (da febre, das hemoptises, da expectoração, etc.), nem com o desaparecimento dos bacilos de Koch da expectoração e o encerramento das lesões cavitárias dos pulmões; mas que pretendemos também assegurar aos pulmões atingidos de tuberculose a restauração da sua capacidade funcional normal.
Os meios que temos para conseguir a cura e os de que dispomos para fazer a prevenção dão-nos a garantia de encarar a sério este problema da erradicação da tuberculose, afirmou o Prof. Etienne Bernard.
Os países, já citados, que conquistaram as mais baixas taxas da mortalidade da tuberculose obtiveram também uma notável redução da morbilidade. Já se não preocupam com a tuberculose como flagelo social e têm o legítimo anseio de conseguir a erradicação da doença. As conquistas conseguidas nos últimos dez anos vieram demonstrar não só a possibilidade da eliminação da tuberculose como flagelo social, mas justificar esse outro objectivo mais alto - o da erradicação da doença.
Esta designação não deve ser tomada no seu sentido literal, que corresponde à suspensão total da doença, isto é, a cura de todos os casos de doença existentes e ao não aparecimento de novos casos. Isso só será possível em raros países, daqui a muitos anos.
Canetti, a quem foi cometido o encargo do trabalho de fundo sobre esta matéria nessa conferência de Toronto, diz que se deve falar, não da erradicação, mas de uma política de erradicação da tuberculose, isto é, do conjunto de medidas de ordem médica que possam conduzir a uma queda rápida e contínua do número dos novos casos de tuberculose.
Podemos nós corresponder ao apelo do ilustre secretário-geral da União Internacional da Tuberculose? Pode Portugal encarar, pôr em marcha e manter uma política de erradiação da tuberculose que leve a uma contínua e rápida redução do número de novos casos de tuberculose?
Afigura-se-me que sim; que o podemos e que o devemos fazer, e quanto antes.
Segundo Canetti, para o estabelecimento de uma política de erradicação da tuberculose há três regras fundamentais:

1) Seleccionar, entre as- medidas de ordem médica, as que dão maior rendimento na prevenção, dar-lhes preferência e estabelecer uma ordem de prioridade para as demais;
2) Fugir de concepções ideais e preferir medidas concretas facilmente realizáveis, tendo em atenção o nível económico do País, o equipamento sanitário de que já dispõe e a estrutura psicossociológica da população;
3) Ter prudência e assegurar progressividade cautelosa na aplicação das medidas - nada de pressas nem de medidas excessivas ou desproporcionadas em relação ao perigo representado pela doença e que possam criar reacção desagradável na população.

Com vista aos dados económicos de base, Canetti diz que um país «desenvolvido» se distingue de um outro «subdesenvolvido» em matéria de luta antituberculosa por três condições:

1) Todo o indivíduo atingido de tuberculose deve poder ser hospitalizado de maneira prolongada;
2) Todo o indivíduo atingido de tuberculose deve poder receber, tal como os que podem pagar, as drogas antituberculosas que o seu estado exige;
3) A legislação social deve ser tal que o indivíduo não tenha necessidade, por sua causa ou por causa da sua família, de interromper prematuramente as medidas terapêuticas julgadas necessárias à cura do seu estado.

Segundo o autor do trabalho, entre os países que constituem o grupo dos «desenvolvidos» a primeira condição é actualmente verificada em quase todos eles de maneira bastante satisfatória; mas a segunda só o é plenamente em raros - em muitos deles só são distribuídas as três drogas da primeira linha: isoniazida, estreptomicina e P. A. S.; quanto à terceira, é melhor observada que a segunda por causa da legislação sobre segurança social, mas nem sempre tão eficaz como deveria ser, por causa da educação actualmente dada aos doentes.
Nos «subdesenvolvidos» nenhuma das três condições é respeitada mesmo de maneira aproximada.
No estudo de uma política de erradicação torna-se indispensável considerar os dois grupos, já que no segundo, a par das dificuldades económicas que obstam à execução integral daqueles três pontos, se verificam elevadas taxas de mortalidade e de morbilidade tuberculosas e, portanto, maiores exigências da luta.
Qual é a posição de Portugal a tal respeito?
Quanto ao primeiro ponto, sabe a Câmara e sabe o País que há mais de um ano - em Setembro de 1961 - desapareceu a bicha para o internamento dos casos de tuberculose. Nunca mais se restabeleceu, o que quer dizer que o movimento das nossas nove mil e tal camas para internar tuberculosos atendeu todas as propostas e cobriu as nossas necessidades. Durante o ano de 1961 foram ali admitidos directamente 11 395 doentes. Mas não é só isso: em meados de 1962 fechámos o Sanatório da Gelfa, transferindo para o de Valadares, por motivos familiares e psicológicos, alguns dos ali internados que eram naturais da zona norte e entregámos ao Instituto de Assistência Psiquiátrica aquela unidade sanatorial. Desde 1959 que os Sanatórios do Outão e de Carcavelos recebem portadores de lesões ósseas não tuberculosas para preencher as nossas vagas e para tirar proveito de uma cura à beira-mar.
Estes atingem cerca de uma centena.
Parece-me, portanto, poder afirmar que respondemos à primeira das três condições aqui referidas.
Pelo que respeita à segunda, devo dizer que desde há bastante tempo distribuímos larga e gratuitamente a todos os doentes, pobres ou ricos, internados ou dos serviços externos, os três tuberculostáticos de primeira linha - a isoniazida, a estreptomicina e o ácido paraminossalicílico - logo que os médicos os solicitem e nas doses e pelo tempo por eles indicado. Fornecemos ainda outras drogas não específicas que os médicos julgam conveniente administrar ao doente. Há ainda um medicamento que distribuímos gratuitamente aos internados, mediante requisição médica - o pantotenato de estreptomicina. Quanto aos da segunda linha, a distribuição é limitada: 1) Aos internados e condicionada a um relatório médico justificativo da sua aplicação, com mira a um

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êxito bastante provável; 2) Em certas condições, mesmo aos que tiverem alta dos centros cirúrgicos e dos sanatórios e que vão continuar o tratamento em enfermarias-abrigo e até em casa.
Suponho, em face destes dados, que também nos podemos incluir entre os chamados «países desenvolvidos».
Pelo que respeita à terceira condição, sabe V. Ex.ª, Sr. Presidente; e sabem VV. Ex.ªs, Srs. Deputados, como, já mais de uma vez e muito antes daquela reunião de Toronto, aqui defendi a necessidade de uma cobertura económica do agregado familiar do doente tuberculoso para que ele não tenha de interromper prematuramente o seu tratamento. Não repito agora aqui aquilo que todos já sabem; mas julgo poder dizer que não será difícil coordenar o que temos para poder garantir diagnóstico precoce, assegurar tratamento oportuno e duradouro e fazer cobertura económica das famílias dos doentes tuberculosos, quer os abrangidos pela previdência, quer os demais.
Aliás, como se demonstrou numa sessão de Março deste ano, quando se discutiu a reforma da previdência, já esteve a ponto de concluir-se um acordo que resolvia uma boa parte deste problema.
Julgo, portanto, que, à luz das ideias expendidas e aceites na reunião do ano passado no Canadá, ninguém nos pode negar o direito de sermos incluídos no primeiro grupo de países - no dos «desenvolvidos».
Porque não nos havemos do lançar decidamente numa política de erradicação da tuberculose a breve prazo?
O que nos dizem os números?
Pelo que respeita à taxa da mortalidade pela tuberculose, ela que se manteve entre os 61,5 e os 63,2 entre 1953 e 1956, desceu continuamente no último quinquénio, atingindo, em 1961, os 39,4 por 100 000 habitantes. Isto significa que viemos das 8279 mortes anuais em 1952 para 3622 em 1961; quer dizer, em 10 anos conseguimos roubar à morte por tuberculose 4657 indivíduos, isto é, registámos uma redução de mais de 50 por cento.
E, em relação à mortalidade geral, a parte correspondente à mortalidade por tuberculose não ultrapassou 3,6 por cento - pouco mais dos 2 por cento que Etienne Bernard considerou limite para que a tuberculose deixasse de ser flagelo social. Se isto é assim pelo que se refere à mortalidade, podendo dar-nos a ilusão de uma real regressão da endemia tuberculosa, já não é o mesmo pelo que toca à morbilidade.
A declaração obrigatória da doença trouxe ao nosso conhecimento no 1.º ano do seu funcionamento 31 000 casos de tuberculose, 68 por cento dos quais eram de tuberculose aberta; quer dizer, mais de 19 000 casos são contagiantes e são responsáveis pela disseminação da tuberculose. Este foi o apuramento do 1.º ano de declaração obrigatória e, naturalmente, teremos de admitir que o número peca por defeito e que a nossa endemia deve ser representada por um número ainda superior de elementos contagiantes.
Destes 31 000 os nossos serviços dispensariais inscreveram, pela primeira vez, 15 759 casos de tuberculose em actividade.
Quer isto dizer que, se, por um lado, é inegável que a tuberculose se encontra em franco declínio, por outro, é igualmente inegável que não podemos reduzir os subsídios ou afrouxar o ritmo de combate e até que, pelo contrário devemos intensificar os meios de luta nos anos mais próximos, contra aquilo que se afirma no douto parecer da Câmara Corporativa.

O Sr. Melo e Castro: - V. Ex.ª disporá aí de elementos para esclarecer se desses numerosos casos novos que vão sendo conhecidos eles são de gravidade semelhante à que tinham há cinco anos atrás, ou se tem decrescido a gravidade das lesões que aparecem nos casos novos?

O Orador: - Nos casos novos não tem sido notada a gravidade de outrora.
Porém, essa gravidade pode apresentar-se pela resistência a determinados medicamentos ou como consequência de tratamentos mal conduzidos por métodos não especializados, ou ainda de tratamentos interrompidos contra a vontade dos médicos.

O Sr. Melo e Castro: - Parece, segundo os técnicos, que não é apenas a baixa, já muito sensível, graças a Deus, da taxa de mortalidade, mas também a menor gravidade das lesões novas que aparecem, que tem valor, o que nos permite concluir que a tuberculose está a ter entre nós um forte declínio.

O Orador: - Porque nós hoje temos um estágio de internamento muito inferior ao que tínhamos outrora. Por duas razões: primeiro, por causa de um tratamento que se inicia mais precocemente.

O Sr. Melo e Castro: - E porque há camas. Aqui há cinco anos não havia.

O Orador: - E, em segundo lugar, porque as nossas possibilidades de tratamento são hoje diferentes. Estes casos novos devem ser em parte consequência; não quer dizer que eles sejam todos novos, são casos que são declarados agora, mas alguns deles são naturalmente reactivações de processos cujo tratamento não foi levado a bom termo, cujas resistências se criaram ou por qualquer outra razão.
Dizia eu, Sr. Presidente, que nós devíamos intensificar essa luta nos anos mais próximos, contra aquilo que se afirma no parecer da Câmara Corporativa.
Atenuar o esforço, reduzir as verbas, pode comprometer todo o trabalho feito e pode ser um acto de má administração.
Como se concebe, modernamente, a política da erradicação tuberculosa?
Para a conseguir há que pôr em marcha, conforme a tese de Canetti apresentada na reunião deste ano, no Canadá, alguns elementos de luta, cuja ordem prioritária foi assim estabelecida:
1.º, despistagem; 2.º, quimioterapia; 3.º, vacinação pelo B. C. G., e, 4.º, quimioprofilaxia. Os três primeiros elementos de luta temo-los entre nós em plena actuação.
Vejamos o que temos feito com cada um deles:
1.º Despistagem:
Para a despistagem dos casos de tuberculose trabalham conjuntamente as brigadas de rastreio tuberculínico, as unidades de radiorrastreio e os serviços dispensariais.
Em 1960 foram sujeitas a provas tuberculínicas 214460 pessoas e em 1961 o seu número subiu para 287 497. Nos últimos 10 anos fizeram-se cerca de 3 milhões de provas.
Esse trabalho permite-nos seleccionar os alérgicos, que serão sujeitos a rastreio radiológico, e os anérgicos, isto é, os vacináveis pelo B. C. G.
O País dispõe, para essa despistagem, de 83 dispensários, 96 consultas-dispensários, 14 brigadas de provas e vacinação, 19 unidades móveis de radiorrastreio (incluindo as da Madeira e dos Açores) e 3 centros de profilaxia e diagnóstico.

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No rastreio radiológico atingimos a casa dos 100 000 por ano em 1954 e subimos em 1955 e 1956 rapidamente, para ultrapassarmos 1 milhão em cada ano a partir de 1957.
Temos já hoje perto de 7 milhões de radiofotos.
É o rastreio radiológico que permite a selecção dos indivíduos que devem ser sujeitos a tratamento dispensarial ou internamento e, portanto, à quimioterapia.
2.º Quimioterapia:
Este elemento é da mais alta importância, porque se dirige directamente contra o agente causal da tuberculose. Não é sòmente uma medida terapêutica - é também, em larga escala, pela negativação da baciloscopia, um poderoso agente profiláctico.
Já atrás dissemos como estamos a fazer a distribuição gratuita dos medicamentos de primeira linha e como condicionamos a distribuição dos bacteriostáticos de segunda linha.
As investigações e as experiências de campo realizadas nos últimos quinze anos permitiram conhecer as1 melhores e mais seguras técnicas da quimioterapia, as associações mais convenientes, a duração da sua adiministração, etc., no sentido de apuramento da sua inocuidade e da sua eficácia. Segui-las-emos, como as temos seguido até aqui.
Nos países evoluídos e econòmicamente bem dotados faz-se a aplicação de dois desses bacteriostáticos de primeira linha durante todo o tratamento, com internamento dos doentes.
Nos outros faz-se o tratamento ambulatório em duas fases:

a) Durante três a quatro meses, isoniazida com associação de outros bacteriostáticos;
b) Na fase ulterior, só isoniazida, de forma contínua e prolongada.

Claro está que há adaptações, dependentes do tipo de doença, da constituição do enfermo, do tratamento hospitalar ou domiciliário, da sua situação de doente, antigo ou recente, da resistência criada, etc.
3.º Vacinação pelo B. C. G.:
Pelo que respeita à vacinação, temos aumentado de ano para ano o número de anérgicos que vacinamos. No fim de 1961 havíamos já ultrapassado 1 milhão de vacinados.
Pelos estudos devidamente controlados que têm sido realizados nestes últimos anos, conjuntamente com a experiência adquirida de longa data, reafirmou-se em Toronto que está rigorosamente demonstrado o valor protector da vacina B. C. G. no homem.
Vale a pena dizer que entre nós também ela se tem mostrado eficaz. Baríssimos são os casos de tuberculose nos vacinados. A meningite tuberculosa e a granulia quase desapareceram. No Sanatório Infantil do Caramulo, dos 711 internados, de idades entre 3 meses e 15 anos, nem um só tinha sido vacinado pelo B. C. G.!
Para países de endemia tuberculosa idêntica à nossa não se pode dispensar a sua aplicação e deve procurar-se que a sua difusão seja máxima e que a sua aplicação técnica seja o mais perfeita possível.
Claro está que ela tem de ser precedida da selecção dos anérgicos, porque só estes são vacináveis. A sua acção protectora, em países deste tipo, não se exerce, a partir dos 14 anos, senão em diminuta percentagem. Na zona centro do País, e não é das de maior incidência a partir dessa idade, só poderemos contar com 26 por cento na zona rural e 8 por cento na zona urbana e suburbana. E abaixo destas idades que temos maior percentagem de população a proteger pela vacina e tanto maior quanto mais baixa for a sua idade. Por isso mesmo temos orientado o nosso esforço de vacinação nas idades escolar e pré-escolar e, nos últimos anos, nos da primeira infância e, sobretudo, nos recém-nascidos e lactentes. Aqui, antes da exposição à infecção tuberculosa, é que encontramos altas percentagens de indivíduos a proteger pela vacina e aqui é que devemos, por isso, concentrar o nosso esforço da premunição pelo B. C. G.
É o que temos estado a fazer, utilizando para tal as nossas brigadas, os centros de profilaxia e diagnóstico, os dispensários, as consultas-dispensários e mesmo médicos que não pertencem ao Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, mas que ali foram fazer o seu curso de adestramento técnico. O Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos mobilizou tudo o que pôde para o intensificar. O número de vacinações feitas nos últimos anos tem variado entre 148 000 e 183 000, sem necessidade de recurso à obrigatoriedade. A grande maioria do corpo médico nacional compreende e anima esta prática e o público aceita-a com perfeita compreensão.
Como se vê, a protecção vacinai não atinge senão os que ainda não foram infectados. A medida que a idade sobe maior é a percentagem daqueles que já não podem ser vacinados.
Esses alérgicos, doentes ou já curados, constituem reservatório de bacilos de Koch - mas porque já são bacilíferos; outros porque podem vir a sê-lo.
Por isso mesmo a vacinação tem de ser conjugada, como nós o fazemos, com o radiorrastreio, as observações complementares e a quimioterapia.
Eu disse que entre nós a vacinação antituberculosa devia concentrar-se nas mais tenras idades e isso pode chocar aqueles que sabem que na Suécia e em outros países passou a vacinar-se em idades mais avançadas. O caso tem explicação: nesses países mais favorecidos, onde a endemia tuberculosa não é tão intensa, onde o maior número de crianças faz a sua primo-infecção mais tarde, está indicado aplicar o B. C. G. mais tarde -na idade escolar ou na puberdade -, para que a premunição que ela confere se apresente com a máxima intensidade e frequência nessas idades onde as probabilidades de infecção são maiores e a receptividade para a tuberculose é mais frequente. Baríssimos são os países que a possam dispensar e raros são os que actualmente a podem limitar só a alguns grupos particularmente expostos.
Entre nós, onde aos 5 anos nos aparecem já mais de 30 por cento de infectados pela tuberculose nalgumas cidades, a atitude tem de ser outra: vacinar precoce e intensamente, para podermos proteger da infecção o maior número possível.
4.º Quimioprofilaxia:
Aqui está um capítulo da técnica sobre a qual se escreve muito mas sem ideias devidamente assentes. Há quem defenda, mais por ideias técnicas do que por fundamentos de ordem prática, uma quimioprofilaxia secundária generalizada, isto é, aplicada a todos os indivíduos infectados (alérgicos), embora sem manifestação de doença.
Não tem justificação técnica nem moral, nem há possibilidades económicas para que qualquer país a empregue. Além disso, uma vez que cessasse a ingestão da isoniazida, deixava de exercer-se a acção profiláctica.
Outros defendem a quimioprofilaxia de contactos durante três a quatro meses daqueles que tenham coabitado recentemente com um bacilífero, para evitar o contágio quase certo. A experiência está em curso nalgumas regiões de países subdesenvolvidos onde a endemia é intensa. Aí, a descoberta de um bacilífero impõe quimioterapia ao doente e quimioprofilaxia com isoniazida aos que com ele estabeleceram contacto na altura do diagnóstico ou nas semanas que o precederam. Os anérgicos são vacinados

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com B. C. Gr. isoniazida resistente. As experiências estão em curso; a ideia é defensável.
Em certos países dos chamados desenvolvidos defende-se a quimioprofilaxia dos portadores de certas imagens radiológicas pulmonares, dos que fizeram viragem positiva recente da tuberculina, das crianças, adolescentes ou jovens adultos com hiperergia e dos que foram sujeitos a contacto prolongado com tuberculosos pulmonares.
Destes, só parece aceitável a submissão à quimioprofilaxia dos que fizeram viragem recente da sua reacção tuberculínica, mesmo que não tenham sinais clínicos ou radiológicos da doença.
Nós nada temos feito em Portugal a este respeito no que se refere à campanha antituberculosa. Alguns clínicos, porém, têm feito quimioprofilaxia em casos isolados ou em pequenos grupos.
Estamos de acordo com Canetti quando diz que é preciso usar esta arma com moderação, a despeito de a isoniazida ser barata e bem tolerada e de a ideia ser aliciante. A tuberculose nem pela sua extensão nem pela sua gravidade, em grande parte dos países, justifica que se submetam durante meses e meses à ingestão da isoniazida pessoas cujo estado de saúde não corre perigo. Aliás, isso não é necessário para se conseguir a erradicação da tuberculose.
Expostas estas ideias gerais, que me parecem indispensáveis e de que peço desculpa, vamos a ver o que será necessário fazer entre nós, nos anos próximos, para a instauração de uma política de erradicação da tuberculose.
Deveríamos poder executá-la com o pessoal que possuímos, desde que os médicos das brigadas móveis pudessem continuar a manter-se ao serviço com a exiguidade dos actuais vencimentos e com a desigualdade em que se encontram em relação aos de outras brigadas do mesmo Ministério, cujas exigências se não podem comparar com as dos que aqui trabalham, tanto mais que, ainda por cima, vai pedir-se-lhes um trabalho ainda mais intenso nos anos próximos. Uma revisão das remunerações deste e do demais pessoal julgo-a indispensável à continuidade e ao aperfeiçoamento dos serviços.
O Sr. Melo e Castro: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - No que respeita a material, há que fazer uma profunda modificação.
Os carros em que se tansportam as brigadas carecem de ser substituídos. O seu estado reclama reparações frequentes nas oficinas, o que implica não só despesas muito elevadas, mas interrupções de serviço que comprometem o êxito do trabalho e criam sérias dificuldades e mesmo desconfiança nas populações convocadas. O mesmo acontece com os carros que transportam aparelhos das unidades de radiorrastreio e com os próprios aparelhos. Estes já há muito ultrapassaram o período de trabalho normal, mesmo para aparelhos, fixos. Comprometem o serviço não só pelas interrupções frequentes, mas também pelo grau de nitidez das radiofotos.
Por sua vez, os serviços de electromedicina, por insuficiência numérica do pessoal, pela não existência de peças de substituições e por outras razões, demoram extraordinariamente as reparações frequentes dos aparelhos.
Nos últimos dois anos as reparações de avarias de todo este material têm sido muito frequentes, têm-se vindo a verificar em ritmo crescente as interrupções de serviço de brigadas e unidades, e tudo isto é cada vez mais aflitivo e ameaça comprometer seriamente o êxito da campanha.
Torna-se, por isso, necessário não apenas manter, mas reforçar, as dotações do Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos com verbas necessárias para renovação de material e aperfeiçoamento dos serviços. Estão abrangidas por esta designação a aquisição de carros ligeiros, de camiões de transporte dos aparelhos de radiofoto, de novos aparelhos de radiofoto, de um dispensário móvel completo e também a melhoria do equipamento da garagem e dos serviços de electromedicina.
Dos carros ligeiros poder-se-iam adquirir três em cada um dos três próximos anos, e com o mesmo ritmo se adquiririam os aparelhos de radiofoto de 200 000 amperes, com câmara Odclca, acoplados aos respectivos carros de transporte.
Os aparelhos actuais, à medida que fossem afastados das unidades móveis e uma vez reparados, seriam colocados nos dispensários das capitais de distrito, onde, uma vez fixados, poderiam produzir trabalho útil durante anos, aliviados dos solavancos das estradas e dos caminhos da zona rural e sujeitos a trabalho menos intenso.
O dispensário móvel viria cobrir as regiões onde não temos serviços dispensariais. Só temos um e carecemos de outro.
Para que a campanha tenha êxito torna-se necessário intensificar ainda mais a vacinação antituberculosa e alargar também a quimioterapia.
Pelo que respeita à vacinação, temos de a intensificar sobretudo na população com idade inferior a 5 anos, que deve andar por 900 000 crianças, e procurar manter o mesmo ritmo na de 5 a 9 anos, que orça por 800 000.
No primeiro grupo teremos de contar, pelo menos, com 80 por cento em condições de serem vacinadas.
Não nos podemos contentar com as 40 000 vacinações anuais dos recém-nascidos e dos lactentes e teremos de as quadruplicar - passar para 160 000 por ano - nos 4 anos que se seguem.
Ao fim desse tempo teríamos premunidas a maior parte das nossas crianças antes da idade escolar. Nos anos subsequentes os serviços só se ocupariam de revisões periódicas, de revacinações e de vacinações das que fossem nascendo. Os casos de tuberculose na infância e na adolescência reduzir-se-iam de uma maneira muito significativa, graças a essa premunição de uma grande massa de crianças.
Pelo que respeita ao radiorrastreio, ao serviço dispensarial e aos internamentos, os serviços actuais, dispondo de bons meios, poderiam fazer face às exigências. A quimioterapia alargar-se-ia e intensificar-se-ia, e, desse modo, se reduziriam os reservatórios de vírus e, portanto, quebrantar-se-ia endemia e reduzir-se-ia o número de novos casos de tuberculose.
Julgo que o problema não exige fundos incompatíveis com as nossas disponibilidades; mas não é este o lugar para apresentar orçamentos nem para indicar o montante dos reforços necessários.
Estamos convencidos de que com o que aqui fica indicado e com pouco mais e com uma segura coordenação com outros serviços dependentes do Ministério da Saúde, com a dos serviços da saúde escolar do Ministério da Educação Nacional e a dos médico-sociais do Ministério das Corporações é possível encarar, com fortes probabilidades de êxito, uma política séria de erradicações da tuberculose. Ela seria a coroação da obra a que se têm consagrado o Governo e, em particular, os Ministérios das Finanças e da Saúde.
E porque não havemos de o fazer?
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

Página 1502

1502 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 58

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão.
Amanhã haverá sessão com a mesma ordem do dia.
Está encerrada a sessão.

Eram 20 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Armando José Perdigão.
José Guilherme de Melo e Castro.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Agnelo Orneias do Rego.
Alberto Pacheco Jorge.
António Augusto Gonçalves Rodrigues.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Tomás Prisónio Furtado.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Belchior Cardoso da Costa.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
James Pinto Bull.
João Mendes da Costa Amaral.
José Augusto Brilhante de Paiva.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
Júlio Dias das Neves.
Manuel Amorim de Sousa Meneses.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Urgel Abílio Horta.
Vítor Manuel Dias Barros.
Voicunta Srinivassa Sinai Dempó.

O REDACTOR - Luiz de Avillez.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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