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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 80
ANO DE 1963 7 DE FEVEREIRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VIII LEGISLATURA
SESSÃO N.º 80, EM 6 DE FEVEREIRO
Presidente: Ex.mo Sr. Mário de Figueiredo
Secretários: Ex.mos Srs.
Fernando Cid Oliveira Proença
Luís Folhadela de Oliveira
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.
Antes da ordem do dia. - Leu-se o expediente.
O Sr. Deputado Alberto Carlos de Figueiredo foi autorizado a depor como testemunha no tribunal da comarca de Castelo Branco.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Sousa Rosal, para um requerimento; D. Custódia Lopes, que recordou a vida e a obra do falecido cardeal D. Teodósio de Gouveia; Pinto Buli, acerca de problemas de interesse para a província da Guiné; Nunes Barata, que igualmente fez considerações sobre idêntico tema, e Armando Cândido, que referiu factos e comentou aspectos da política internacional, nomeadamente no seio da O. N. U.
Ordem do dia. - O Sr. Deputado Cancella de Abreu efectivou o seu aviso prévio sobre acidentes de viação.
Requerida a generalização do debate, usou da palavra o Sr. Deputado Folhadela de Oliveira.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 45 minutos.
O Sr. Presidente: -Vai fazer-se a chamada.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Agnelo Ornelas do Rego.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alberto Pacheco Jorge.
Alberto dos Reis Faria.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Calheiros Lopes.
António Gonçalves de Faria.
António Magro Borges de Araújo.
António Manuel Gonçalves Rapazote.
António Moreira Longo.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Alves Moreira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Augusto José Machado.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Alves.
Carlos Coelho.
Carlos Emílio Tenreiro Teles Grilo.
D. Custódia Lopes.
Délio de Castro Cardoso Santarém.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco António Martins.
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Francisco António da Silva.
Francisco Lopes Vasques.
Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro.
Henrique Veiga de Macedo.
James Pinto Bull.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Ubach Chaves.
Joaquim de Jesus Santos.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Jorge Augusto Correia.
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos.
José Alberto de Carvalho.
José Augusto Brilhante de Paiva.
José Fernando Nunes Barata.
José Manuel da Costa.
José Manuel Pires.
José Maria Rebelo Valente de Carvalho.
José de Mira Nunes Mexia.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Pinheiro da Silva.
José Pinto Carneiro.
José Soares da Fonseca.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Folhadela de Oliveira.
Manuel Amorim de Sousa Meneses.
Manuel João Correia.
Manuel João Cutileiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis
Mário Amaro Salgueiro dos Santos Galo.
Mário de Figueiredo.
Olívio da Costa Carvalho.
Paulo Cancella de Abreu.
Quirino dos Santos Mealha.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Dias Barros.
O Sr. Presidente: -Estão presentes 74 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 50 minutos.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Vários a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Alfredo Brito sobre a distribuição regional das actividades industriais.
De J. A. Pacheco a aplaudir o discurso do Sr. Deputado Jorge Correia acerca das tarifas da energia eléctrica.
O Sr. Presidente: - Está na Mesa um pedido do juízo de direito da comarca de Castelo Branco a solicitar que o Sr. Deputado Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão seja autorizado a depor como testemunha naquele tribunal no próximo dia 14 de Março. Ouvido o Sr. Deputado, disse que não via inconveniente, para o exercício do seu mandato, em que fosse autorizado a depor.
Nestas condições, vou submeter o pedido de autorização à Assembleia.
Consultada a Câmara, foi concedida a autorização solicitada.
O Sr. Presidente:- Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Sousa Rosal.
O Sr. Sousa Rosal: - Sr. Presidente: pedi a palavra para enviar para a Mesa o seguinte
Requerimento
Solicito que, pelo Ministério da Educação Nacional, me sejam fornecidos os seguintes elementos que - constam do processo de concurso para o provimento do lugar de
terceiro-astrónomo de 1.ª classe do Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada), aberto por anúncio publicado no Diário do Governo n.º 275, 2.ª série, de 24 de Novembro de 1958:
a) Cópia da acta da 3.ª reunião do júri do concurso realizado em 17 de Janeiro do corrente ano de 1963;
b) Cópias das actas dos concursos para astrónomos de 2.ª classe referentes aos opositores ao concurso para astrónomo de 1.ª classe aberto em Novembro de 1958;
c) Que me sejam fornecidos os elementos que entram em consideração para a integral aplicação do § único do artigo 102.º do regulamento do referido Observatório, aprovado pelo Decreto de 20 de Junho de 1903, na parte onde se diz: «será preferido o que tiver obtido melhor classificação no concurso para este cargo (2.ª classe).
A Sr.ª D. Custódia Lopes: -Sr. Presidente: faz hoje um ano que desapareceu da vida de Moçambique um grande prelado e bom português, o cardeal-arcebispo de Lourenço Marques, D. Teodósio Clemente de Gouveia.
A sua notável figura de homem da Igreja foi já exaltada oportunamente nesta Câmara por outros Srs. Deputados.
Todavia, permito-me recordá-la de novo neste dia e num momento em que acaba de realizar-se no nosso país a Semana de Formação Missionária, tendo como tema «Unidade e Missionação».
Não se poderá falar da obra missionária em Moçambique sem se evocar a figura do sacerdote que a impulsionou e renovou.
D. Teodósio Clemente de Gouveia, que a Madeira, em primeiro lugar, conheceu como mestre sabedor e experimentado, sacerdote eloquente no púlpito, doutrinador e conferencista nas salas dos organismos da Acção Católica, manifestou sempre, nas várias modalidades da sua actividade sacerdotal, um extraordinário zelo apostólico e um acentuado amor patriótico.
Quando em Roma, não se limitou a sua acção aos trabalhos do Colégio Português, de que foi vice-reitor e reitor, pois um apostolado mais próximo das almas lhe oferecia a Igreja Nacional de Santo António, que o novo reitor transformou num verdadeiro centro de piedade, ao mesmo tempo que patenteava a todos a beleza e a ri-
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queza artística da sua arquitectura, por tanto tempo escondida aos olhos até mesmo dos peregrinos portugueses, que encontravam sempre em Mons. Teodósio um óptimo conselheiro e guia.
Os vários departamentos da Cúria Romana cedo se aperceberam do seu merecimento e valor para a ele recorrerem como consultor e precioso auxiliar, sobretudo em assuntos que mais interessavam a Portugal. É assim que o vamos encontrar ao lado do conde de Dália Torre, director do Osservatore Romano e presidente da Exposição Internacional da Imprensa Católica, sob as ordens do então cardeal Pacelli, actuando para que resultasse um êxito a participação de Portugal com o seu bem-estudado pavilhão.
O seu fervoroso zelo apostólico e acrisolado amor à Pátria vão pôr-se mais em evidência quando a Santa Sé resolve mandá-lo para África como prelado de Moçambique.
O Papa Pio XI diz-lhe, ao marcar-lhe a missão que o espera:
Ide, meu filho, e trabalhai com coragem. Se fizerdes de Moçambique uma terra católica, ela será também portuguesa. Se não, será um território protestante ou maometano, mas o que não será talvez é português.
E o cardeal Fumasoni Biondi, prefeito da Sagrada Congregação da Propaganda, aponta-lhe Moçambique como uma «mancha negra», a maior no campo da missionação católica.
Sem se perturbar com os pesados trabalhos que o esperam, sereno e obediente, o bom prelado parte logo para Lisboa, dias depois da sua sagração, para procurar os primeiros contactos com o Governo.
E na Festa do Bom Pastor, naquele distante mês de Abril de 1937, o bispo titular de Leuce e prelado de Moçambique desembarcava em Lourenço Marques e fazia a sua entrada solene na Pró-Catedral para dirigir aos seus fiéis e a todo o Moçambique a sua saudação pastoral.
Apercebeu-se logo que seria necessário um esforço ingente para vencer a dura tarefa que lhe estava destinada e confiou na Providência.
Um ano não era decorrido e já visitara toda a terra moçambicana. Era desolador o que lhe fora dado observar quanto às missões. Algumas desfeitas e muitas por fazer. As palavras do cardeal da Propaganda haviam de impor-se-lhe muitas vezes à consciência. A cidade de Lourenço Marques contava então com três padres e um deles prestes a regressar à metrópole definitivamente.
Ao sul do Limpopo, numa extensa área, apenas S. Jerónimo de Magude tinha um missionário, com seis missões entregues a auxiliares leigos. E dali para o norte não era mais risonha a situação, porque ainda muito pior. Bastará dizer-se que o território que hoje constitui a Diocese de Quelimane, com uma superfície de 100 503 km2 e para cima de 1 milhão de habitantes, contava então com um só missionário.
O prelado inquieta-se com situação tão angustiante para a Igreja e para a Nação.
Como fora possível cair quase no zero da vida missionária, apesar dos esforços e dos gritos de alarme dos que o precederam, desde D. António Barroso a D. Rafael de Assunção, em correspondência e relatórios que ficaram a atestar o seu patriotismo e zelo de apostolado?
Em fins de Novembro de 1938, depois de aturada e volumosa correspondência com a Santa Sé, D. Teodósio põe-se a caminho da Europa para expor a situação na Secretaria de Estado e logo a seguir ao Governo Português, e regressa imediatamente a Moçambique, tanto mais que a viagem presidencial se aproxima. Não o faz, porém, sem deixar um completo relatório que há-de servir de base à elaboração do futuro acordo missionário.
Foram triunfais e inesquecíveis os dias passados em Moçambique pelo Presidente Carmona e ficou memorável, pelo desassombro, a alocução proferida pelo prelado, depois da missa, no local onde formara o «quadrado de Marracuene», a tal ponto que o Ministro o felicitou vivamente.
Antes de regressar, em luzida sessão solene na Câmara Municipal de Lourenço Marques, o Presidente da República condecora o bispo de Leuce e prelado de Moçambique com a grã-cruz da Ordem de Cristo.
Aproveitando a data das comemorações do duplo centenário da fundação e restauração de Portugal, o Governo Português assina com a Santa Sé, além da Concordata, um Acordo missionário.
Foi este instrumento jurídico de direito internacional - onde V. Ex.ª, Sr. Presidente e mestre consagrado de Direito Internacional da Universidade de Coimbra, subscreveu também o seu nome - o grande marco miliário a assinalar uma era de renovação missionária de glória para a Igreja e honra para Portugal.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - Seria longo e exaustivo percorrer o que se realizou desde essa data sob o aspecto missionário na província de Moçambique, desde a criação de novas dioceses à expansão de missões, escolas, colégios, etc.
O Anuário Católico de Moçambique, mandado preparar pelo cardeal Gouveia, documenta quanto se fez nesse sentido, não obstante as consideráveis dificuldades em pessoal e meios de acção.
Em 1946, o Papa Pio XII, que para a sagração da Catedral de Lourenço Marques enviara o cardeal Cerejeira como seu legado, resolve proceder à maior criação de cardeais, na história, agora a dispersar por todo o Mundo. E na lista dos purpurados figura também o nome do arcebispo de Lourenço Marques, o que causou surpresa até no próprio meio eclesiástico, pois era o primeiro cardeal dado pela Santa Sé ao continente africano. A tal ponto foi a admiração que, em Roma, o cardeal de Havana se apressa a procurar o novo elemento do Sacro Colégio para lhe dizer que muito grande devia ser a obra realizada para que o papa tenha voltado os seus olhos lá para o fundo de África e entendesse fazer cardeal o arcebispo de Lourenço Marques. Na verdade, a escolha de um cardeal de terra portuguesa africana honrava, sobremaneira, Portugal e demonstrava a atenção e o apreço que ao Santo Padre merecia a obra missionária dos portugueses em África.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - Esta obra, porém, não se limita apenas ao território português, mas estende-se para além-fronteiras, junto dos núcleos de portugueses que estanciam e trabalham em terra estrangeira.
Assim, aos dirigentes sul-africanos não era desconhecida a acção religiosa e conciliadora criada para os muitos milhares de moçambicanos em prestação de mão-de-obra nas minas, com a Missão de Santo António do Rand, expressamente edificada para os autóctones, e ainda a de Nossa Senhora de Fátima, a completar aquela.
Não devo terminar este breve apontamento sobre a personalidade e obra do cardeal Gouveia sem me referir à atitude assumida por este eminente purpurado quando da
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recente conjuntura em que sangue português regou terra portuguesa de África.
Escreve, então, um interessante opúsculo, O Meu Depoimento, em que expõe a situação das missões católicas em Moçambique e as aponta como antídoto para uma obra de incompreensão e devastação.
Na data das suas bodas de prata episcopais publica uma pastoral sobre o «Amor da Pátria», que causou eco mesmo no estrangeiro, aonde foi levada nas suas várias traduções. E fica-se sem saber qual mais se agiganta, se o missionário, se o português.
Nas suas visitas de estudo a países estrangeiros, particularmente a Itália, procura, sempre que lhe é possível, esclarecer os espíritos sobre a atitude portuguesa em África e chamar, a atenção dos responsáveis, opondo-se deste modo à campanha de mentiras e de infâmias que transborda na imprensa estrangeira, até nos jornais e publicações que se dizem de inspiração católica. Por toda a parte o cardeal Gouveia proclama e defende um passado largamente dedicado à acção humana e cristã e o esforço presente da Nação Portuguesa, que bem o compreendeu, quando o Sr. Presidente da República, a 8 de Setembro de 1961, lhe impôs, numa cerimónia única, as insígnias da grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
Creio, Sr. Presidente, ser de justiça que em Moçambique se perpetue a lembrança deste grande português e missionário ...
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - ... que se deu todo à valorização do homem moçambicano, pela formação moral, religiosa e cultural, numa obra digna do maior apreço e que merece ser cada vez mais amparada para que Portugal continue cristão e eterno nesta sua longínqua província do ultramar.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: nunca, como nos tempos de hoje, foi tão premente avivar nos espíritos a necessidade de se prosseguir corajosamente e em maior ritmo na obra de cristianização a que Portugal se tem devotado desde a época da sua expansão ultramarina.
Aos heróicos missionários da era de Quinhentos, que apenas possuíam a palavra divina com que convertiam os pagãos, sucederam-se muitos outros que, embrenhando-se pelos matos, levaram, com a fé, a saúde e a educação a povos que tanto delas careciam.
Vozes: - Muito bem!
A Oradora: - Assim, no ultramar português, ao lado das igrejas e missões espalhadas pelas mais distantes e solitárias regiões do interior, erguem-se hoje escolas, hospitais, maternidades e dispensários, onde missionárias e missionários exercem com fervor e abnegação o seu trabalho de apostolado e valorização humana.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
A Oradora: - É uma obra social e nacional que deve ser devidamente considerada e para a qual chamo a atenção do Governo no sentido de se lhe darem maiores meios de acção, pois que os missionários portugueses, com os ensinamentos de vária ordem indispensáveis à promoção das populações nativas, levam consigo a religião católica e a língua pátria, elos indestrutíveis a unir os diferentes povos que constituem rio Mundo a Nação Portuguesa.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
A oradora foi muito cumprimentada.
O Sr. Pinto Bull: - Sr. Presidente: as minhas primeiras palavras são para V. Ex.ª, palavras de respeitosa saudação e palavras de sinceras felicitações pela forma brilhante como V. Ex.ª conduziu os nossos trabalhos no primeiro ano desta legislatura, durante o qual confirmou as suas excepcionais qualidades de mestre, de diplomata e de político consagrado, o que facilitou a tarefa dos Deputados ultramarinos, que - nunca é demasiado repeti-lo - aqui se encontram animados do melhor desejo de uma colaboração construtiva com os seus colegas da metrópole na árdua missão e tremenda responsabilidade que a todos cabe nesta Câmara.
Para o leader desta Assembleia quero dirigir também palavras de admiração e reconhecimento: admiração pelas suas qualidades de inteligência e ponderação e reconhecimento pela forma cativante como tem procurado contactar com os Deputados do ultramar.
Para VV. Ex.ªs Srs. Deputados e prezados colegas, desejo reafirmar a minha grande estima e consideração e patentear a todos a minha enorme satisfação pela compreensão e franca colaboração que dispensaram aos colegas do ultramar durante o primeiro ano do nosso trabalho e aproveito a oportunidade para vos assegurar que sinceramente nos empenharemos para que continue existindo essa leal colaboração e que todas as achegas que para aqui trouxermos terão sempre e exclusivamente como finalidade o engrandecimento desta grande e muitas vezes incompreendida nação que todos nós amamos e veneramos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: aproveitando a interrupção dos trabalhos desta Assembleia no ano findo, achei que cumpriria com um dos sagrados deveres do meu cargo se visitasse o círculo eleitoral que tenho a honra de representar nesta Câmara.
Deparei com as inevitáveis dificuldades burocráticas e lamento ter de declarar que não encontrei nas disposições regimentais desta Assembleia qualquer preceito que facilitasse a minha deslocação à Guiné, pela simples razão de não ter a minha residência naquela província.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Tive, pois, de pôr de parte a ideia dessa viagem, embora tivesse a certeza de que dos contactos subsequentes grandes benefícios poderiam advir, não só para mim, pela apreensão directa dos problemas locais, como para os eleitores, pela possibilidade que teriam de pessoalmente me transmitirem os seus anseios e aspirações, e até para a própria província, pela contribuição que o Deputado poderia dar no seu regresso para fazer sair dó ponto morto alguns assuntos pendentes nas instâncias superiores.
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem!
O Orador: - Felizmente uma coincidência oportuna fez com que, aproveitando uma viagem determinada pelo
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Sr. Ministro do Ultramar, pudesse cumprir a missão ordenada e simultaneamente contactar com as autoridades locais, forças vivas e a população da Guiné, resolvendo assim a embaraçosa situação em que me encontrava como Deputado.
Sei que V. Ex.ª está empenhado em solucionar esta lacuna da lei, que, a não ser resolvida, poderá continuar prejudicando a actividade de alguns Deputados ultramarinos que têm a sua residência oficial fora do círculo que representam.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - O assunto está entregue em boas mãos e por isso estou confiante na boa e rápida solução do caso.
Sr. Presidente: facilitada pelo Sr. Ministro do Ultramar a minha viagem e graças à gentileza do então governador da província, pude percorrer a Guiné de lés a lés, tomando contacto com grande parte da população de todas as etnias, auscultando os seus anseios e procurando conhecer os problemas locais mais prementes.
Percorri as regiões de Bafatá, Gabu e Farim, reino dos fulas e mandingas, as duas tribos mais alegres e evoluídas da Guiné e que, enquadradas outrora entre os nossos soldados, contribuíram para a pacificação da província e hoje, com o mesmo entusiasmo e patriotismo, auxiliam os bravos homens das nossas forças armadas a destruir os focos de actuação de elementos terroristas das terras do Sr. Seco Turé.
Atravessei a região dos aguerridos oincas e visitei Bissorã e Mansoa, terra dos balantas, rebeldes nos tempos idos, mas que hoje, completamente integrados na nossa soberania, atestam bem a nossa colossal acção civilizadora.
Visitei a região dos manjacos e estive em Cacheu, padrão de glória da nossa obra de pacificação, terra do grande Honório Barreto, dilecto filho da Guiné e seu ilustre governador, exemplo máximo de patriotismo e a quem se deve, em grande parte, a manutenção da nossa soberania em várias regiões da província.
Estive na região dos felupes e em S. Domingos assisti à cerimónia do içar da bandeira nacional, a confirmar a nossa presença secular mesmo nas zonas fronteiriças.
Sobrevoei o arquipélago dos Bijagós e tive a oportunidade de rever a riqueza potencial dos seus palmares, que, só por si, chegariam para proporcionar nível de vida elevada aos naturais daquelas ilhas, se um sopro de vida fizesse retomar a sua laboração normal ao complexo industrial instalado numa das ilhas.
Visitei Catió, o celeiro da Guiné, rica e progressiva região para onde emigraram alguns balantas de Mansoa para ali porem à prova a sua capacidade produtiva na cultura do arroz, embora mantendo os tradicionais e rudimentares instrumentos de trabalho.
Atravessei as regiões de Fulacunda e Cubisseco, terras férteis e eleitas pelos aborígenes mais evoluídos para as suas explorações agrícolas e onde os bandos de terroristas estão procurando subverter pela intimidação as populações nativas, mas que, felizmente, estão sendo rechaçados pelas nossas forças armadas.
Fiz paragem em Bolama, antiga e histórica cidade, hoje meia adormecida em face dos golpes sofridos com a mudança da capital, e que necessita de ser sacudida para sair do sono letárgico em que está mergulhada e retomar a importância a que tem jus.
Estacionei, finalmente, em Bissau para fazer um rápido balanço de tudo o que tinha visto e apreendido e para tomar contacto com as entidades superiores da Administração e transmitir ao primeiro magistrado da província os anseios e aspirações da população.
Em todos os pontos por onde passei tive a oportunidade de apreciar o sentimento patriótico e o acrisolado amor que toda a população da província tributa à Nação e é-me grato trazer a esta Assembleia a certeza do portuguesismo das gentes da Guiné, mesmo nesta hora de incertezas em que vivemos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E, por me referir à hora difícil e de incertezas que neste momento atravessa a Guiné e em que o comunismo internacional, através dos seus sectários com base na República da Guiné, procura subverter as populações do Sul da província por intensiva propaganda e outros processos extremistas em que não é excluída a própria intimidação, quero aproveitar o ensejo para prestar o meu profundo respeito pela memória dos civis e militares que já perderam a vida nesta luta inglória contra as hordas criminosas que ensanguentaram e continuam a ensanguentar algumas das nossas províncias ultramarinas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Desejo prestar também as minhas homenagens aos bravos soldados e agentes da ordem, aos incansáveis e muitas vezes incompreendidos funcionários administrativos e a toda a população civil, que corajosamente tem dado combate decisivo aos focos do terrorismo e obstruído a sua infiltração nas zonas fronteiriças.
Que o portuguesismo e a tenacidade dessa plêiade de gente lusa, sem distinção de raças ou cores, sirvam não só de rumo a certos cépticos que não acreditam que Portugal deve e pode ficar em África, mas possam igualmente despertar a atenção de todos os bons portugueses para o facto de que essa permanência só é possível, sem as implicações que um permanente estado de guerra origina, se se combater eficazmente o clima de desconfiança que, infelizmente, se está esboçando na Guiné e já assume proporções. assustadoras noutras províncias ultramarinas, sobretudo entre o elemento dominante e as camadas mais evoluídas da população nativa, quer seja branca, mestiça ou negra.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Há que recuperar a confiança fraterna que sempre existiu em todos os nossos territórios de além-mar e não se queira ver nos portugueses ultramarinos, só pelo facto de serem da Guiné, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Angola ou Moçambique, autênticos elementos subversivos ou amantes da. autodeterminação.
Procure-se pelo contrário ver neles verdadeiros portugueses, tão bons como os seus irmãos da metrópole, dentro da correspondente camada social, possuidores dos mesmos defeitos, mas igualmente portadores das mesmas virtudes.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não se classifiquem, a priori, de subversivas ou antiportuguesas certas atitudes mais apaixonadas que alguns deles possam tomar, muitas vezes devido a situações de desfavor a que porventura são votados, por circunstâncias alheias à sua vontade e que os levam a manifestar certos sentimentos que alguns classificarão de nacionalismos exacerbados, mas que eu talvez preferisse
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denominar como simples ambições político-económicas ou o desejo de uma melhor e mais equitativa distribuição da riqueza e da justiça social.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Procure-se encarar corajosamente o problema sob este ângulo e procuremos todos colaborar com o Governo para a obtenção dos meios materiais e técnicos que permitam pôr em prática, para uma execução conscienciosa, essa série de medidas legislativas de grande alcance no campo político, económico e social que se vem promulgando.
Não se desperdice o precioso tempo de que dispomos para trabalhar, cerremos fileiras na defesa do património nacional e, com verdadeira noção das realidades, aceleremos o passo na execução da indispensável obra de intensificação da promoção social das populações nativas, tareia que se enquadra dentro dos sãos princípios que a nossa doutrina encerra e as medidas promulgadas confirmam.
Daremos assim combate às insidiosas afirmações em voga nas tertúlias internacionais de que «Portugal continua sendo um país colonial» e que «as medidas legislativas que o Governo Português promulga em relação ao seu ultramar, principalmente nos períodos das reuniões ou conferências internacionais, não passam de simples matéria de propaganda».
Sr. Presidente, Srs. Deputados: a Guiné Portuguesa, com uma superfície de 36 125 km2 e uma população de cerca de 530 000 habitantes, foi descoberta por Nuno Tristão no ano de 1446, isto é, há mais de cinco séculos, e tem-se mantido portuguesa desde essa data. Esteve durante muito tempo ligada ao Governo de Cabo Verde, e só em 1835 passou a distrito autónomo, embora ainda ligada àquela província.
Com a nomeação em 1837 de Honório Pereira Barreto, natural de Cacheu, para governador do distrito da Guiné, começa a verdadeira ocupação e pacificação do território, que passa em 1879 a constituir província autónoma, destacada de Cabo Verde.
Como as demais províncias ultramarinas portuguesas e, de uma maneira geral, todos os territórios africanos, a Guiné tem os seus problemas económicos e sociais latentes, mas que vão sendo resolvidos consoante as nossas possibilidades financeiras e dentro do condicionalismo que as dificuldades de momento permitem.
Não tem sido possível imprimir na solução de todos esses problemas aquela celeridade que todos nós gostaríamos que se verificasse; porém, a província não tem estado estática, como procuram fazer crer os nossos detractores, e nas últimas décadas conheceu um surto de progresso sem par, o que demonstra o interesse que o Governo da Nação vem dispensando ao desenvolvimento de todas as suas províncias ultramarinas, e, no caso especial da Guiné, isso acaba de ser evidenciado, mais uma vez, com a deslocação à província do inspector superior de economia do Ministério do Ultramar e nosso prezado colega, Deputado Nunes Barata, com o fim de elaborar um completo estudo das perspectivas económicas da província para um programa de desenvolvimento racional nos sectores agrícola, comercial e industrial.
Aproveito a oportunidade para felicitar este nosso colega pelo brilhante êxito da sua viagem e estudos, cujos resultados, estou em crer, servirão para esclarecer as entidades superiores da Administração quanto à oportunidade e vantagem da elaboração de um plano de aproveitamento das riquezas ainda pouco conhecidas daquela nossa província.
Consta que novos técnicos seguirão para a província, a fim de continuarem os estudos iniciados. Se assim acontecer, todos nós, que desejamos o progresso e o desenvolvimento da Guiné, estaremos de parabéns, e eu, como seu Deputado, sentir-me-ei feliz por poder antecipar, neste momento, os meus agradecimentos ao Governo da Nação pelo interesse que a província está merecendo.
Perante a actual conjuntura internacional, vem verificando-se uma aceleração no desenvolvimento da África negra nos diversos sectores de actividade, e há toda a vantagem em que o nosso país, que sempre caminhou na vanguarda das potências com responsabilidades no continente negro, não se deixe ultrapassar por nações jovens acabadas de se emancipar.
Para tanto, apesar do muito que se vem fazendo nos últimos tempos em prol do desenvolvimento da Guiné, há que não perder o compasso, visto que temos ainda longa caminhada a percorrer, ultrapassar ou, pelo menos, acompanhar o ritmo de desenvolvimento que se vem processando nos territórios vizinhos no campo agrícola, da instrução, do desenvolvimento comunitário, do crédito e da promoção das massas nativas para uma maior interferência na vida administrativa, municipal e técnica do território.
Nesta conformidade, não obstante o elevado interesse que o Governo Central e da província vem dispensando ao assunto, torna-se necessário encarar mais objectivamente algumas aspirações da população relacionadas com o ensino em geral e as bolsas de estudo em particular, a assistência sanitária fixa e móvel, a assistência social nos seus múltiplos aspectos, a assistência agrícola e o fomento da riqueza agro-pecuária, o bem-estar das populações, principalmente no que se refere à habitação higiénica e económica e ao abastecimento de água potável; melhoria económica da população nativa e dos colonos; conveniente promoção das massas nativas de molde a permitir uma maior interferência dos naturais da província na vida administrativa e municipal do território; formação de cooperativas de produção; criação de uma caixa de crédito agro-pecuário; normalização e regulamentação do comércio do produto-base de exportação - o amendoim; perspectivas de novas indústrias; extensão dos benefícios do Banco de Fomento Nacional às empresas agro-pecuárias e industriais da província; estimular e amparar quaisquer iniciativas paru o aproveitamento, produção e exportação de produtos locais, como a borracha e as boas frutas do Sul da província; intensificação da cultura da cana sacarina e facilidades para a organização de uma companhia açucareira com larga comparticipação do Estado, de industriais angolanos moçambicanos do ramo e de industriais de produtos líquidos da província; auxílio financeiro às empresas de pesca da província e, se possível, a atracção de capitais e técnicos metropolitanos para o desenvolvimento desta indústria: apetrechamento dos quadros técnicos da província com o pessoal indispensável para poderem cumprir a importante missão que lhes cabe; estudo dos fretes marítimos para a província de molde a beneficiar alguns produtos, cuja colocação se torna difícil na metrópole devido à grande concorrência de produtos similares estrangeiros; finalmente, a resolução do angustiante problema das transferências, que vem dificultando o desenvolvimento comercial e industrial da província.
São estas as aspirações que o eleitorado da Guiné trouxe ao conhecimento do seu representante e que eu procurarei abordar em intervenções espaçadas, para não me tornar fastidioso. Hoje procurei focar rapidamente a questão do ensino, que constitui, para mim, um dos problemas mais relevantes do continente africano e que entre nós con-
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tribui ainda para o desnivelamento existente entre os vários grupos étnicos em presença e dificulta sobretudo nas camadas médias e superiores aquela interpenetração das raças que gostaríamos se processasse e perdurasse dentro do nosso sistema de política multirracial.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - O número de elites autóctones é relativamente baixo e a percentagem de aborígenes ocupando cargos directivos ou de escalão médio e superior nas organizações privadas ou com nível económico capaz de suportarem as imperiosas relações sociais, dentro da mesma camada, com os seus irmãos da metrópole residentes no ultramar, é quase nula.
Assim dificilmente se conseguirá estabelecer o equilíbrio necessário entre as camadas em contacto para que as relações humanas se processem íntima e confiadamente, se não se intensificar a promoção das massas nativas no campo intelectual, social e económico.
Para atingir esse desiderato haverá necessidade de se enfrentar imediata e corajosamente o problema n.º 1 de toda a África: o da instrução do nativo.
O ensino na nossa província da Guiné abrange hoje os seguintes graus: de adaptação, primário, profissional, técnico e secundário, repartidos por 115 estabelecimentos do ensino de adaptação, a cargo das missões católicas, 42 escolas primárias, das quais 21 pertencentes ao ensino oficial, servidas por 45 professores, 6 escolas de formação profissional e agrícola, 1 estabelecimento de ensino técnico, abrangendo o ramo industrial e comercial, com cerca de 200 alunos, e o Liceu Honório Barreto, com uma frequência aproximada de 300 alunos.
O interesse do Governo da província pelo desenvolvimento da instrução tem contribuído para um intenso esforço de escolarização, e assim funcionam em quase todas as escolas oficiais cursos nocturnos para adultos, frequentados por numerosos nativos de todas as etnias.
Este desejo natural que de uma maneira geral todos os aborígenes mostram em se tornar mais cultos e, consequentemente, mais valorizados, de forma a poderem integrar-se completamente na nossa civilização, tornam este problema de grande relevância e levam-nos a equacioná-lo com o imperativo que cabe à Administração de a todos proporcionar a satisfação dessa aspiração.
Assim, há que atentar se essa satisfação se torna viável dentro do sistema até agora seguido no nosso ultramar, onde o ensino primário e de adaptação da maioria das massas nativas estava e continua estando entregue às missões católicas.
Todos nós conhecemos a acção das missões no nosso ultramar, e eu seria extremamente injusto se deixasse de realçar neste momento o importante papel e a grande obra que elas realizaram nas terras da Guiné, tanto no campo da evangelização como no do próprio ensino. Não se lhes pode negar esse grande mérito.
Contudo, uma análise mais atenta mostra que, talvez por escassez de missionários nacionais, os resultados obtidos são, na verdade, mais quantitativos do que qualitativos, e isso já não satisfaz completamente às exigências do momento crucial que atravessamos e em que temos necessidade imperiosa de criar uma verdadeira mentalidade portuguesa em todo o nosso ultramar, e isso só se consegue com uma completa nacionalização dos autóctones por um bom ensino da língua portuguesa, só possível pela ampla difusão de escolas oficiais com professores devidamente habilitados.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Para que se possa fazer do nativo um elemento consciencioso e pronto a compreender os ensinamentos, benefícios e exemplos que lhe são facultados no campo político, económico e social, necessário se torna proporcionar-lhe os conhecimentos indispensáveis que só numa boa escola poderá obter.
Enquadrado neste axioma e com uma visão clara das realidades, facilitado pelas suas excepcionais qualidades de trabalho e de inteligência e um profundo conhecimento do meio, o governador cessante da província, hoje ilustre titular da pasta do Ultramar, soube imprimir durante o seu governo uma acertada e oportuna política de ensino, com o fim de neutralizar a relutância que as populações islamizadas têm em manter os filhos nas escolas missionárias por causa das implicações religiosas.
Para tanto, iniciou a construção de uma rede de mais de duas dezenas de escolas definitivas nas zonas em que predominam aquelas populações.
Visitei muitas dessas escolas, já prontas e em pleno funcionamento, e, se me é grato felicitar S. Ex.ª pela feliz concepção e realização, outro tanto não poderei dizer quanto ao preenchimento do respectivo corpo docente, que continua entregue, em grande parte, a professores improvisados e sem aquele mínimo de conhecimentos indispensáveis para o exercício do cargo.
Para obviar aos inconvenientes da manutenção de tal situação há que iniciar uma verdadeira campanha de formação de professores primários, lançando mão de rapazes e raparigas naturais ou residentes na província habilitados com o 2.º ciclo dos liceus e, por meio de bolsas de estudo, mesmo reembolsáveis, facilitar-lhes a formatura nas escolas do magistério primário da metrópole, ou de Angola e Moçambique, já que, por enquanto, a Guiné não tem capacidade para aspirar à criação de uma escola para formação de professores, medida que talvez um dia só possa concretizar com a criação de uma escola para as duas províncias irmãs: Cabo Verde e Guiné.
Urge tomar em devida conta as implicações deste importante problema do ensino na Guiné e não esquecer nunca que a província tem uma fronteira terrestre de cerca de 700 km, dominados por povos muçulmanos ou muçulmanizados, com identidade étnica dos habitantes das zonas limítrofes, identidade que chega algumas vezos ao ponto de os mesmos familiares se encontrarem divididos apenas por essa linha imaginária que delimita algumas fronteiras em África.
A partir da segunda guerra mundial incrementou-se grandemente nos territórios vizinhos da nossa Guiné a criação de escolas rudimentares, primárias, secundárias, técnicas e até universitárias, cujo funcionamento regular vem constituindo um pólo de atracção para a nossa juventude guineense. A africanização dos quadros, disposição legal que vinha facilitando aos nativos daqueles territórios vizinhos a ascensão aos lugares superiores nos quadros técnicos e de administração, era também outra atracção para parte da nossa gente, que, sem querer, começou a deixar influenciar-se por essas medidas.
Para contrariar todos estes males há que enveredar pelo único caminho que me parece aconselhável: a intensificação da promoção intelectual da juventude guineense, e, infelizmente, só viável por concessão de bolsas de estudo, dado o baixo nível económico da maioria das famílias autóctones.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Neste sentido pareceu-me oportuna a elaboração de um apontamento que entreguei em 27 de Julho do ano findo ao então titular da pasta do ultramar, Prof.
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Doutor Adriano Moreira, estadista de mérito que a Providência nos legou para orientar a nossa política ultramarina durante uma grande parte da hora crucial que estamos atravessando, e do qual, sem me querer tornar fastidioso, transcreverei algumas passagens:
«... Sei que existem outros problemas também importantes e urgentes e que igualmente preocupam o Governo. Contudo, pressinto que há toda a conveniência em que se tente travar a precipitada evolução que os acontecimentos estão a tomar na Guiné e há que lançar mão de certas medidas de efeitos psicológicos rápidos e que talvez sirvam para modificar a atmosfera um pouco anuviada que só vem verificando naquela província.
Entre essas medidas talvez tivesse oportunidade a concessão para já de umas 20 bolsas de estudo (10 para rapazes e 10 para raparigas) para formação de professores primários, 4 para regentes agrícolas, 2 para engenheiros agrónomos, 2 para veterinários, 3 para médicos, 3 para o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, 2 para o Instituto de Estudos Sociais, 2 para professores liceais e 2 para Ciências Económicas e Financeiras.
Seriam 40 bolsas que nesta altura serviriam para provocar uma tremenda reacção no espírito da juventude guineense e no dos respectivos pais, e estou certo de que isso modificaria grandemente a guerra surda que, sem se aperceber, está a tomar grande incremento nas terras da Guiné.
Seriam cerca de 60 000$ de despesa mensal para o Estado, mas seria um capital bem aplicado e cujos juros, neste momento, excederiam todas as expectativas».
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - «Seriam cerca de 720 000$ anuais a pesar nos orçamentos gerais do Estado e que, bem repartidos e diluídos pelo orçamento da metrópole, orçamento geral da província e orçamentos privativos das autarquias locais, constituiria uma gota de água a cargo de cada um desses sectores e uma minúscula parcela comparada com os astronómicos encargos de guerra que quase diariamente suporta o Tesouro».
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - «Seria a coincidência da formação de um escol de professores primários na altura em que o Governo da província teria completada a magnífica rede de 24 novas escolas primárias que a acertada política do actual governador vem levando a efeito para contrabalançar a resistência das populações islamizadas em afastarem os seus filhos das escolas missionárias por causa das implicações religiosas.
Seria, enfim, mais um passo firme para demonstrar aos nossos inimigos que resolvemos na verdade concretizar as objectivas medidas que o Governo da Nação vem promulgando nesta hora difícil da vida nacional.
Sei que não se pode nem se deve pedir tudo ao Governo, e para tanto acho que, simultaneamente com as medidas que acima tomo a liberdade de preconizar, poder-se-ia dar início à fundação de uma Liga dos Amigos da Guiné, que, sem enveredar por actividades políticas, teria como lema a congregação dos homens de boa vontade - brancos, mestiços e negros - para uma acção rápida, firme e séria no sentido de colaborarem na elevação do nível cultural e social da juventude da Guiné e no bem-estar da população da província».
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não foi possível, por razões de ordem financeira, satisfazer no corrente ano lectivo a concessão das bolsas pedidas; porém, S. Ex.ª o Ministro cessante não se esqueceu completamente da juventude da Guiné e antes de abandonar a pasta que tão sabiamente dirigiu durante cerca de dois anos distribuiu quatro bolsas para o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina para outros tantos filhos da Guiné que iniciaram com entusiasmo os seus estudos naquele estabelecimento de ensino superior.
É mais um favor que a Guiné fica devendo ao Governo da Nação.
A actual posição da Guiné Portuguesa com respeito ao número de seus naturais-formados com um curso superior e médio é a seguinte:
Formados em Engenharia ................................................1
Formados em Medicina ..................................................4
Formados em Direito ...................................................4
Formados em Agronomia .................................................2
Formados em Ciências Sociais e Política Ultramarina ...................2
Formados pelos institutos industriais .................................5
Formados pelas escolas de regentes agrícolas...........................3
Formados pelas escolas do magistério primário..........................3
Total.................................................................24
Uma análise atenta dos números apresentados mostra que em relação à população da província, que se cifra em cerca de 530 000 habitantes, existe um indivíduo natural da Guiné habilitado com um curso superior para cada 40 769 habitantes e um diplomado com um curso médio para cada 48 090 habitantes, percentagem relativamente baixa e que convém a todo o custo melhorar, como, aliás, está sendo preocupação das entidades responsáveis pela nossa política ultramarina.
Assim, de 1940 a 1960 o número de indivíduos formados com cursos superiores e médios duplicou de 10 para 20 e no começo deste ano de 1963 esse número atingiu 24 unidades.
Com a criação do ensino secundário na província, em 1950, começou a verificar-se um maior interesse dos filhos da Guiné na obtenção de uma formatura; porém, o baixo nível económico da maior parte das famílias nativas dificultou durante, certo tempo a concretização dessa justa aspiração da juventude guineense, até que uma oportuna política do Governo começou a melhorar a situação com a concessão de bolsas de estudo, que, em meia dúzia de anos, tornou possível atingir o bonito número de 36 bolseiros frequentando os seguintes cursos superiores e médios na metrópole:
Engenharia ..........................................5
Medicina ............................................2
Direito .............................................1
Agronomia ...........................................4
Económicas e Financeiras ............................1
Farmácia ............................................1
Letras (Germânicas) .................................2
Ciências Sociais e Política Ultramarina .............4
Educação Física .....................................1
Escola de regentes agrícolas ........................4
Institutos industriais ..............................2
Instituto comercial .................................4
Montadores electricistas (Casa Pia de Lisboa)........2
Outros cursos .......................................3
Total ..............................................36
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Estes bolseiros são subsidiados pelos seguintes organismos e entidades:
Ministério do Ultramar ..............................4
Governo da província da Guiné ......................11
Câmara Municipal de Bissau ..........................6
Fundo de Fomento e Assistência da Guiné Correios e telégrafos da Guiné.......................4
Fundação Gulbenkian .................................2
Associação Comercial da Guiné........................3
Bolseiros frequentando a Casa Pia ...................2
Total...............................................36
No ano lectivo findo concluíram o 7.º ano no Liceu Honório Barreto, de Bissau, 21 alunos, dos quais apenas 7 foram beneficiados com bolsas de estudo para prosseguirem os seus estudos na metrópole. Devem ter ficado, pois, na província mais de uma dúzia de finalistas do liceu que não puderam, por razões de ordem económica, continuar os seus estudos.
Relacionado com o problema da promoção intelectual e social das massas nativas do nosso ultramar, foi apresentado, em Dezembro último, à assembleia geral das Nações Unidas um projecto de resolução firmado pelo grupo afro-asiático para a concessão de bolsas de estudo aos aborígenes das nossas províncias ultramarinas, com o fim de se formarem elites para os quadros técnicos e de administração dos mesmos territórios.
A adopção da referida resolução, por 92 votos a favor, 2 contra (Portugal e África do Sul) e nenhuma abstenção, e o conhecimento que tive de que só no ano findo os vários grupos, que se apelidam de nacionalistas e que têm sede no Senegal e na República da Guiné, haviam obtido 21 bolsas de estudo para os naturais da Guiné, e que, na maioria, já se encontram matriculados em diversas escolas superiores e técnicas dos Estados Unidos, França, Suíça, Alemanha, República Árabe Unida e vários países da cortina de ferro, levaram-me a concluir que havia toda a conveniência de se intensificar, do nosso lado, a concessão de bolsas à juventude da Guiné, e nesse sentido fiz novas diligências junto dos Srs. Ministro e Subsecretário da Administração Ultramarina, a ver se seria possível contra-atacar, com factos reais, a ofensiva de incompreensão do esforço português na formação de elites entre os naturais das suas províncias de África.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O bom acolhimento dispensado por SS. Exas. ao assunto deixou-me certo de que este magno problema havia de beneficiar do costumado interesse e atento estudo daqueles membros do Governo, e, por isso, a juventude da Guiné pode desde já ter esperança de uma justa solução das suas aspirações.
Se conseguirmos resolver este problema e outros de igual relevância que oportunamente espero trazer a esta Assembleia, poderemos, Srs. Deputados, ter a certeza de que nos manteremos nas nossas actuais posições nas terras portuguesas do ultramar, que os nossos antepassados souberam criar e que nós saberemos defender e tornar cada vez mais engrandecidas.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Nunes Barata: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: poderia invocar a simples qualidade de Deputado da Nação para justificar as palavras que vou proferir sobre o desenvolvimento da Guiné Portuguesa. A Pátria é só uma e a cada um de nós, sem preconceitos ou particularismos regionais, cumpre zelar pelo progresso harmónico desse todo, estar presente onde os inimigos a ameaçam.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas existem razões especiais que me ligam à Guiné Portuguesa.
Aprendera a amar esta terra mesmo antes de a conhecer. Ainda na Assembleia Nacional, o labor inteligente e oportuno dos sucessivos representantes da Guiné, comandante Teixeira da Mota e Dr. Pinto Bull, fomentara tamanho interesse.
Ainda agora o Sr. Deputado Pinto Bull deu mais uma vez testemunho de carinho pela Guiné Portuguesa, e quero agradecer aqui as palavras que proferiu a meu respeito.
Mas foram razões da vida profissional que me levaram a permanecer algum tempo na Guiné Portuguesa. Este contacto com a terra e as gentes cimentou a minha devoção.
Aí conheci um grande governador, que foi o comandante Peixoto Correia. Percorri todo o território. Falei com as mais variadas populações. E vi como a acção governativa do comandante Peixoto Correia prestigiou o nome de Portugal.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - É-me grato, nesta tribuna, prestar-lhe as maiores homenagens ao afirmar que o comandante Peixoto Correia foi bem digno da tradição dos grandes governadores da Guiné.
Sr. Presidente: a Guiné Portuguesa, constituída por uma parte continental e outra insular, tem uma superfície um pouco superior a 31 000 km3, dos quais se encontram permanentemente imersos cerca de 28 000 km2.
O país é plano, sendo ainda assim possível, neste condicionalismo, distinguir seis zonas: planícies do litoral, planalto de Bafatá, colinas do Boé, planalto do Gabu, zona de transição de Oio e zona de transição do Forreá.
Apesar da sua pequena dimensão, a Guiné apresenta uma notável variedade de solos, o que se verifica desde os ricos solos das rias até à região desolada do Boé.
As rias desempenham, de resto, um importante papel na vida da província.
Como acentua Teixeira da Mota, o mar penetra nas rias depois de atravessar um extenso planalto submarino, a menos de 20 m do nível das águas, e do qual -emerge o arquipélago dos Bijagós e afloram ou chegam perto da superfície numerosas coroas e bancos. Este obstáculo à propagação das marés está na base da sua notável amplitude, que se traduz nos mais altos valores da África Ocidental.
A penetração das marés e a existência das rias condicionam todo o sistema de comunicações da província.
Mas, além desta facilidade nos transportes, a penetração do mar repercute-se nas condições climáticas, com enriquecimento da vegetação.
Às marés se deve ainda a deposição dos férteis solos vasosos que permitiram o desenvolvimento da cultura do arroz.
Sr. Presidente: a população da Guiné Portuguesa era em 1960 de 544 498 habitantes, a que correspondia uma
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densidade, média de mais de 16 habitantes por quilómetro quadrado, valor portanto muito superior ao dos outros territórios portugueses da África continental.
A variação regional de densidades, nas últimas décadas, para lá do acréscimo verificado, revela o afluxo ao maior centro urbano da Guiné (Bissau) e a expansão para novas terras do litoral em virtude da cultura do arroz (Catió, Fulacunda e S. Domingos). Quanto ao Gabu, a região socialmente melhor estruturada, o acréscimo resulta não só do desenvolvimento natural como talvez de movimentos do exterior.
A Guiné é um vasto mundo, na variedade das suas raças e no valor da sua experiência.
Os números que se seguem duo nota da evolução dos grupos étnicos, segundo os censos de 1928 e 1950.
[Ver quadro na imagem]
Merece uma referência aquela população que, oriunda doutros territórios portugueses, ou até estrangeiros, dá à Guiné o contributo do seu esforço.
O seguinte quadro indica a população não natural da Guiné, mas aí residente em 1960:
[Ver quadro na imagem]
Não levarão a mal que me detenha nalguns aspectos da economia do território.
Referirei questões relacionadas com a agricultura, a exploração florestal, a produção animal e as indústrias da Guiné.
Uma das notas mais importantes da agricultura da Guiné consiste em se fundar essencialmente na exploração directa realizada pelos nativos.
Que este sector condiciona toda a vida económica da província é, na verdade, indiscutível. Tal realidade projecta-se mesmo no comércio externo.
O seguinte quadro indica os principais produtos de exportação da Guiné em 1961.
[Ver quadro na imagem]
Por ele se verifica o papel importante dos produtos agrícolas, nomeadamente o amendoim e o coconote.
De facto, já nos anos de 1958 a 1960 se exportaram os seguintes valores o quantidades:
[Ver quadro na imagem]
Além da mancarra e da palmeira do azeite, o terceiro grande recurso agrícola da Guiné é o arroz.
O arroz ocupa uma posição importantíssima nas economias indígenas, quer pelas quantidades produzidas, quer pelo seu papel na alimentação das populações, quer ainda pelas novas extensões que tem conhecido a sua cultura.
Além destes três grandes produtos convirá mencionar como riquezas reais ou potenciais a cana-de-açúcar, o gergelim, a purgueira, o rícino, o caju, a copra, a sumaúma, as plantas têxteis, as plantas alimentares e as árvores de fruto.
A riqueza florestal da Guiné é um elemento de importância não despicienda para a valorização da sua economia.
Reconhece-se a utilidade das manchas florestais que só situam nas circunscrições de S. Domingos, Mansoa, Farim e Bafatá e ainda no Sul da província.
As essências florestais com maior valor económico são o bissilon, mancone, pau-conta, pau-sangue, pau-bicho, pau-miséria, pau-incenso, pau-veludo, mambode e
farroba de lala.
A exportação de madeira tem relativo interesse no conjunto das exportações da província. Assim, nos anos de 1958, 1959, 1960 e 1961 exportaram-se, respectivamente, 9833t, 10 709t, 14 509t e 18 374t, a que corresponderam 6205, 5217, 6790 e 8637 contos.
Será aqui oportuna uma referência à borracha.
A borracha foi já, nos fins do século passado e começos do actual, o principal produto de exportação da Guiné.
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Nos anos de 1960 e 1961 apenas se exportaram 208 t e 123 t, a que corresponderam, respectivamente, os valores de 1871 e 1105 contos.
A borracha talvez pudesse constituir uma notável fonte de receita para a Guiné. Não muito longe, na Libéria, a conhecida empresa Firestone explora uma plantação de 80 000 ha, a que corresponde uma produção superior a 20 000 t de borracha.
A riqueza pecuária da Guiné é digna das maiores atenções. Os efectivos pecuários, segundo o último arrolamento, eram os seguintes:
Bovinos. ............................230 286
Equinos ..................................64
Asininos...............................3 858
Arietinos ............................53 859
Caprinos ............................143 712
Suínos ...............................98 206 529 985
Galináceos ..........................492 865
Palmípedes ............................7 566
Perus ...................................210
Pintadas ..............................2 571
Coelhos .................................137 503 349
1 033 334
As possibilidades pecuárias não são assim de desprezar. Mais do que elemento para abastecimento da província, a intensificação e melhoria da pecuária poderá ter em conta o mercado metropolitano.
Do mesmo modo, a caça merece cuidados tanto no que respeita à conveniente regulamentação da actividade venatória como na protecção de certas espécies.
Quanto à pesca, parece revestir-se de interesse a execução de um plano de desenvolvimento desta actividade, pois as riquezas dos bancos dos mares próximos, ou até as possibilidades das águas interiores, recomendam tal desígnio. De resto, a actividade dos nativos neste sector é primitiva e insuficiente.
A pesca desembarcada nos anos de 1959, 1960 e 1961 consta dos seguintes números:
[Ver quadro na imagem]
Como resultante da produção animal, valerá ainda a pena referir, por um lado, as peles e couros e, por outro, a cera e o mel.
A produção de peles e couros deverá ser estimada quanto à quantidade e, consequentemente, valor global.
A cera exportada atingiu nos anos de 1958, 1959 e 1960, respectivamente, os montantes de 1470, 1498 e 3765 contos.
As possibilidades do subsolo da Guiné foram nos últimos tempos objecto de algumas atenções.
Refiro-me particularmente à bauxite e ao petróleo.
O Decreto n.º 40 987, de 29 de Janeiro de 1957, autorizou o Ministro do Ultramar a celebrar com a N. V. Billiton Maatschappij um contrato para a concessão do direito de pesquisar e explorar minérios de alumínio em determinadas áreas das províncias ultramarinas de Angola e da Guiné.
Nesse diploma se consignaram, com relativo pormenor, as obrigações e garantias que deveriam presidir ao referido contrato.
Em 7 de Março de 1957 foi o contrato celebrado conforme consta da 2.a série do Diário do Governo de 16 de Maio de 1957.
A Companhia Lusitana do Alumínio da Guiné e de Angola, S. A. R. L., foi constituída nos termos e para execução do determinado no decreto referido e acordado no contrato complementar.
Realizadas pesquisas, foi possível concluir o seguinte, relativamente à Guiné:
Perspectivas favoráveis. Existem depósitos de bauxite na área contígua à fronteira oriental da ex-Guiné Francesa, na região do Boé e outras, em quantidades que permitem a sua exploração. Embora o teor do minério seja inferior, processos modernos permitem melhorá-lo.
Por contrato realizado, em 8 de Abril de 1958, com a província da Guiné, a Esso Exploration da Guiné, Inc., obteve o direito de pesquisar e explorar à sua custa todos e quaisquer jazigos de carbonetos de hidrogénio e afins e ainda enxofre, hélio, anidrido carbónico e substâncias salinas, numa área definida, a qual se computava em 44 630 km2, numa superfície de terra e mar.
A Esso passava a pagar uma renda anual de 322 $65 por cada quilómetro quadrado, o que totalizava 14 400 contos.
Dentro de três meses após a assinatura do contrato da concessão a Esso entregava à província o equivalente a 28 800 contos, verba que representava a renda correspondente ao primeiro ano e um pagamento adiantado de 25 por cento das rendas dos anos seguintes do período das pesquisas.
A contribuição da Esso para as finanças da província teve bastante interesse, sendo estas comparticipações aplicadas na execução de tarefas de fomento.
De acordo com a alínea a) do artigo 20.º do contrato de concessão, a Esso pediu a rescisão do contrato, o que foi concedido por despacho do Ministro do Ultramar de 14 de Junho de 1961.
E passo às indústrias transformadoras.
Eis uma nota da existência e das principais produções das indústrias transformadoras. Por ela se vê a modéstia deste sector e a sua dependência dos produtos da terra:
[Ver quadro na imagem]
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[Ver quadro na imagem]
(a) As rubricas incluidas no quadro têm movimento na província.
(b) Não disponho de elementos.
(c) Compreende:
Toneladas
Farelo de arroz...................................1 659
Bagaço de oleaginosas...............................574
Fabricação de sorvete.................................1
Já em 1954 Joaquim Areal, num trabalho publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, fazia uma súmula das possibilidades industriais da Guiné.
Conviria, na verdade, realizar um inventário circunstanciado de tais possibilidades.
Assim:
a) Indústria de oleaginosas: amendoim, gergelim, girassol, produtos da palmeira do azeite, purgueira e rícino;
b) Indústrias de alimentação: açúcar, arroz, caju, frutas, mandioca, milho e refrigerantes;
c) Cerâmica;
d) Gráficas;
e) Madeiras e derivados;
f) Metalomecânicas;
g) Têxteis: algodão e juta e similares;
h) Diversas: álcool, borracha, curtumes, estaleiros navais, gelo, papel, saboaria e tabaco.
No que respeita à produção de energia eléctrica, também a situação da província é bem modesta, abrindo-se, porém, melhores perspectivas se se considerar favorável o aproveitamento do rio Corubal, no Saltinho.
Para ter uma visão de conjunto do comércio externo na Guiné, socorro-me doa números publicados no Anuário Estatístico do Ultramar de 1960:
[Ver quadro na imagem]
Esta análise de conjunto sairá mais expressiva se tentarmos ordenar os índices de evolução, tomando como base 100, para o ano de 1938:
[Ver quadro na imagem]
Como já atrás salientei, a exportação da Guiné apoia-se fundamentalmente no amendoim e no coconote.
Daí a fraqueza e vulnerabilidade da sua economia e a necessidade de diversificar as produções.
No que respeita à repartição geográfica do comércio externo, o seguinte quadro, que extraí do parecer sobre as Contas Gerais do Estado de 1960, revela a posição preponderante da metrópole:
[Ver quadro na imagem]
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A Comissão reguladora de Transferências, que controla as divisas na província da Guiné, funciona desde 1932 nos serviços de Fazenda e contabilidade.
A balança comercial da Guiné, como já salientei, não reage positivamente, e daí o seu reflexo desfavorável na balança de pagamentos.
Até ao ano de 1961, a Comissão reguladora de Transferências, com base nos elementos fornecidos pela alfândega, fazia o rateio dentro do volume mensal dos cambiais arrecadados, depois de deduzido o valor das mesadas e outros motivos atendíveis.
Resultava de tal sistema que o comércio exportador da metrópole recebia durante os meses de exportação dos produtos da província os cambiais controlados. Esta solução conduzia a um natural retraimento do comércio da metrópole.
A partir de Janeiro de 1962, a Comissão Reguladora de Transferências adoptou um novo sistema, que consiste em atribuir uma verba mensal de 10 000 contos para a satisfação dos compromissos externos.
A regularidade de liquidações permitiu ao comércio da metrópole receber cadenciadamente, sem longas interrupções, como até então, o valor dos seus créditos.
Vejamos agora o déficit da balança de pagamentos através do seguinte resumo:
Importações efectuadas:
Contos
Em 1955 ...........................................187 278
Em 1956 ...........................................198 287
Em 1957 ...........................................231 580
Em 1958 ...........................................244 018
Em 1959 ...........................................243 275
Em 1960 ...........................................321 765
Em 1961 ...........................................297 169
1 723 375
Cambiais concedidos:
Em 1955 ...........................................101 184
Em 1956 ...........................................108 889
Em 1957 ...........................................105 991
Em 1958 ...........................................114 285
Em 1959 ...........................................167 696
Em 1960 ............................................96 722
Em 1961 ...........................................165 173
859 944
Déficit .......................................................863 430
No campo teórico estaríamos assim em face de um déficit de 50,1 por cento. Na prática há a deduzir a esse déficit 600 milhões de francos senegaleses (antigo franco c. f. a.) anuais que circulam na província, em trânsito para a metrópole, onde o câmbio oscila entre $10 e $11, ou sejam, mesmo pelo câmbio mais baixo,
60 000 000$ anuais.
Além dos 600 milhões de francos senegaleses entram no circuito cambial de invisíveis mais cerca de 80 000 libras da West África, que, ao câmbio de 80$, nos dão 6 400 000$.
A posição real, se a Comissão Reguladora de Transferências tivesse um controle efectivo dos invisíveis, seria assim:
Contos
Déficit apurado .....................................863 430
Francos senegaleses em sete anos ........... 420 000
Libras da West África em sete anos ...........44 800
464 800
Deficit real............................398 630
A Guiné não consome tudo o que importa. Faz a reexportação para os países limítrofes do Senegal e República da Guiné de enorme quantidade de tabaco em folha e manipulado, whisky e tecidos. Daí o volume de invisíveis que alimentam as casas de câmbio de Lisboa, aproveitados para pagamentos das transacções em Tânger.
Convirá Ainda salientar que uma parte do movimento de invisíveis advém da emigração temporária para o Senegal para os trabalhos agrícolas. Os portugueses da Guiné quando voltam trazem o que aí ganharam, e que se estima em cerca de 100 milhões de francos anuais.
Será oportuno atender a alguns números, que dão uma ideia da evolução das receitas da província.
Eis um quadro resumo, relativamente às receitas ordinárias e aos anos de 1959 a 1961 (em contos):
[Ver quadro na imagem]
Nos impostos directos, o grupo de rendimento mais importante foi o do imposto domiciliário (21 157 contos de imposto e 2115 contos de adicional em 1961), seguido pela contribuição predial rústica (8410 contos em 1961) e pela contribuição industrial (1279 contos por lançamento e 3398 cobrada nas alfândegas).
Nos impostos indirectos os direitos de exportação e de importação atingem montantes elevados.
Assim, em 1961, cobraram-se de:
Direitos de importação:
Contos
Importação ................................18 117
Adicional ..................................3 661
Direitos de exportação:
Exportação .................................8 409
Adicionais....................................822
Esta situação revela que o mercado único português, com a abolição de tarifas, porá sérios problemas às finanças da Guiné.
Importa, além do mais, acelerar o desenvolvimento económico, de forma a intensificar a capacidade tributária noutros sectores.
Merece ainda uma referência a discriminação da receita extraordinária.
O seguinte quadro é elucidativo quanto aos últimos anos (em contos):
[Ver quadro na imagem]
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2018 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 80
Os rendimentos da concessão à Esso, atrás referidos, pesaram com certa importância nas receitas da Guiné.
Agora que essa fonte de receita terminou, maiores dificuldades sentirá a província para fazer face aos encargos de fomento.
Não seria, de resto, despropositado fazer um cálculo dos investimentos realizados nos últimos anos na Guiné Portuguesa.
O quadro que se segue, revelando inevitáveis deficiências, é uma tentativa nesse sentido:
[Ver quadro na imagem]
(a) Classe V das importações (Relatório Final da Execução do I Plano de Fomento e Anuário Estatístico do Ultramar).
(b) Fontes - 1953 a 1955 : Relatório Final da Execução do I Plano de Fomento; 1936 a 1958: Anuário Estatístico da Guiné; 1960; Anuário Estatístico do ultramar.
(c) Incluindo as dos Planos do Fomento. Fonte: Anuário Estatístico do Ultramar.
Embora falível, este expediente joga com os elementos relativos à importação de equipamentos, aos prédios construídos e às despesas públicas extraordinárias, sendo os montantes incluídos nesse mapa em milhares de contos.
Sr. Presidente: feita esta breve resenha, talvez fossem oportunas algumas sugestões para o desenvolvimento da Guiné. Sou de parecer que, como antecedentes de um programa, conviria estimar os seguintes aspectos ou pressupostos:
a) A lição do I e II Planos de Fomento:
Interessava realizar um estudo detalhado sobre a forma como se tem desenvolvido a execução dos Planos de Fomento. Atender-se-ia às projecções destes esforços na vida da província, o que permitiria ainda tirar ilações necessárias ao acerto de condutas futuras.
b) Necessidades em pessoal:
Dever-se-iam avaliar as disponibilidades em mão-de-obra.
Justificam-se as medidas que. assegurem o emprego e valorizem tecnicamente os recursos humanos.
A existência de elites é, por outro lado, como há pouco citou o Sr. Deputado Pinto Bull, indispensável à política de desenvolvimento.
c) Política financeira:
Constituiria condição prévia o estudo detalhado sobre a situação financeira, devendo considerar-se a viabilidade de um ordenamento tributário que apoiasse o esforço de desenvolvimento.
O financiamento do desenvolvimento põe várias questões, desde II política monetária, à existência de um fundo nacional de investimento ou ainda à consideração da ajuda do exterior. Estes aspectos deveriam merecer as melhores atenções ainda no caso da Guiné Portuguesa.
d) Serviços de estatística:
É essencial a existência de um serviço de estatística que apoie, com seus elementos, a elaboração de um programa de desenvolvimento económico-social.
Conviria realizar uma recolha e reelaboração dos elementos estatísticos possíveis, uma organização permanente de serviços estatísticos e, até, a ordenação de um programa aprazado de trabalhos estatísticos.
e) Serviços de assistência técnica:
A execução de qualquer plano de desenvolvimento requer a existência não só de serviços específicos do planeamento, como ainda de serviços de assistência técnica aos vários sectores de actividade.
A existência de uma repartição de planeamento é necessária, não só como elemento coordenador da execução do plano, como de serviço indispensável à elaboração de planos futuros (cf. Decreto-Lei n.º 44 652).
Por outro lado, a assistência técnica deve beneficiar os mais variados sectores de actividade económica, desde a agricultura à silvicultura, às pescas, às indústrias extractivas e transformadoras, à electricidade, à construção civil e aos trabalhos públicos.
Para se ter uma ideia do interesse desta assistência refiro toda uma série de questões - e a enumeração não tem preocupações de ser exaustiva - relacionadas com a agricultura, a pecuária e as florestas, sectores fundamentais para o progresso da Guiné:
1) Planificação agrícola;
2) Estudo dos solos e fertilizações;
3) Estatísticas agrícolas;
4) Investigação agrícola;
5) Vulgarização agrícola;
6) Problemas de alimentação;
7) Irrigação e drenagem de terrenos;
8) Protecção vegetal;
9) Cultura do arroz;
10) Produção do amendoim;
11) Produção do coconote;
12) Produção da cana do açúcar;
13) Comercialização dos produtos agrícolas;
14) Defesa da pecuária;
15) Melhoria das pastagens e das forragens;
16) Sanidade pecuária e luta contra as epizootias;
17) Inventário das florestas;
18) Criação de reservas florestais;
19) Fiscalização e orientação técnica da exploração florestal;
20) Criação e exploração de viveiros:
21) Prática de repovoamento florestal;
22) Problemas das culturas itinerantes.
Sr. Presidente: dentro do condicionalismo da Guiné Portuguesa, o esforço de desenvolvimento deverá concentrar-se naqueles sectores onde se obtenham maiores rendimentos com um mínimo de dispêndio.
Será oportuno perguntar de que sectores se trata ou, por outras palavras, qual o melhor aproveitamento a fazer das potencialidades da Guiné.
O inventário a que procedi na primeira parte desta intervenção permite seriar algumas das maiores possibilidades:
Assim:
1) Amendoim. - Deverá atender-se à renovação total das sementes, à melhoria das técnicas culturais, à defesa fitossanitária, ao aperfeiçoamento das condições de armazenamento e comercialização, ao descasque e aproveitamento industrial na maior medida possível na província.
2) Arroz. - Convirá vulgarizar a cultura das variedades mais adaptáveis a cada tipo de solo, utilizar processos culturais aconselháveis, melhorar os processos de secagem e valorizar os sistemas de descasque.
3) Outros cercais. - Ainda aqui a intensificação na produção dependerá da renovação das sementes e da valorização das técnicas de cultivo.
4) Palmeira do azeite. - Creio que mesmo antes da melhoria das plantações, através da palmeira de Samatra,
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se imporia o aproveitamento imediato da grande riqueza que nos oferecem os palmares espontâneos da Elacis guinensis.
Quem sobrevoa, por exemplo, as ilhas dos Bijagós, ou mesmo atravessa as circunscrições do litoral norte, não pode deixar de se impressionar com esta dádiva tão pródiga da natureza.
Importa organizar um aproveitamento sistemático, considerando, igualmente, o conveniente descasque do coconote e a boa preparação do óleo de palma na província.
5) Castanha de caju. - A instalação de uma unidade industrial - ainda que, inicialmente, do tipo de exploração-piloto - facilitaria o aproveitamento desta riqueza potencial. Realizado o aproveitamento industrial, poderia caminhar-se no sentido da intensificação da plantação do cajueiro.
6) Outras frutas. - A banana, o ananás, os citrinos e outras variedades têm na Guiné condições de sucesso. Uma política de comercialização e aproveitamento industrial das frutas poderia ser o complemento de plantações convenientemente organizadas.
A Guiné figuraria como abastecedora de mercados externos.
7) Borracha. - Deveria melhorar-se o aproveitamento da borracha das landolfias, atendendo aos processos de coagulação do látex, lavagem e laminação do produto. Conviria, por outro lado, insistir no estudo das possibilidades da introdução da Hevea brasiliensis.
8) Madeiras. - A longo prazo, justifica-se a execução do projectado Plano de fomento florestal. Impõe-se, contudo, atender imediatamente ao potencial produtivo do arvoredo, fazendo ainda o aproveitamento integral das espécies derrubadas. As modestas serrações do mato são, para tanto, inconvenientes, e o espírito aventureiro de uns tantos está prejudicando gravemente o património florestal.
9) Pescarias. - Mais do que uma intensificação na actividade das pescas para corresponder às exigências do comércio interno, recomenda-se a instalação na Guiné de empresas que façam um aproveitamento das riquezas dos pesqueiros do Atlântico, em ordem a exportação.
Creio não ser difícil interessar grupos capitalistas estrangeiros em empreendimentos deste teor.
10) Pecuária. - Importa persistir no combate às epizootias, realizar cruzamentos para a melhoria das espécies, tudo isto tendo em vista um aproveitamento efectivo da grande riqueza pecuária da província. Este aproveitamento deverá ainda fazer-se considerando os mercados externos.
O aproveitamento dos couros insere-se igualmente nesta política de valorização.
O êxito neste sector da pecuária impõe vasta tarefa de educação dos nativos.
11) Mel e cera. - Recomenda-se uma melhoria nos processos de colheita e preparação. Deverá atender-se, por outro lado, à introdução de colmeias móveis.
12) Indústrias extractivas. - A realidade imediata é o alumínio. O desenvolvimento da Guiné e nomeadamente a criação de pólos no Sul, na zona de extracção no Boé na região percorrida pela linha de transportes e no futuro porto de Buda, dependem daquilo que se fizer para acelerar a extracção e aproveitamento da bauxite.
Quanto ao petróleo apenas se pode dizer que não foi ainda encontrado. Será contudo temeridade afirmar desde já que não existe. Convirá assim interessar grupos estrangeiros em novos trabalhos de pesquisas.
13) Indústrias transformadoras. - Uma boa perspectiva será a da industrialização da cana-do-açúcar. Indústria de tamanha importância, pelo montante dos investimentos, pelas exigências da matéria-prima e pelas dificuldades de mercado, requer contudo estudos aturados. Justifica-se que esses estudos se realizem imediatamente. Quanto aos outros produtos agrícolas que a província produz ou pode produzir com vantagem recomenda-se que sejam dentro do possível aí transformados.
Há ainda um conjunto de bens - como atrás deixei entrever - que poderão ser produzidos na província, ainda que só para consumo interno e dos territórios vizinhos.
A industrialização talvez recomendasse o recurso a sociedades de economia mista, onde o Estado, pela posição financeira, pela técnica e pela administração, assegurasse a viabilidade e o êxito dos empreendimentos.
14) Electricidade. - A energia consumida pela Guiné é de origem térmica. Bissau constitui o centro consumidor de maior importância, podendo afirmar-se que já hoje se encontra insuficientemente abastecido. Verificada a viabilidade do aproveitamento do Corubal, poderia o mesmo ser encarado, não só para fazer face às necessidades actuais, como por razão do desenvolvimento previsto para o Sul da Guiné, em consequência da extracção da bauxite.
Sr. Presidente: ao lado destes aspectos onde a reprodutividade se afigura mais imediata existem certas infra-estruturas que convirá não descurar. Enquadram-se aqui o importantíssimo sector das despesas sociais e a rede rodoviária.
No capítulo das despesas sociais justifica-se uma conveniente dotação dos serviços em quadros de pessoal e meios técnicos e o prosseguimento nos pequenos melhoramentos para o bem-estar dos agrupamentos nativos, na política de saúde e assistência e, sobretudo, na instrução pública.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quanto à rede rodoviária, penso que haveria todo o interesse em valorizar o percurso Bissau-Mansoa-Mansabá-Bafatá-Gabu. Esta estrada parece-me a grande linha de penetração para o interior. Por ela circula já hoje o maior trânsito da Guiné.
Um segundo percurso que haveria a cuidar é o de Bissau a S. Domingos e Praia de Varela. Recomendariam esta atenção não só razões económicas, mas ainda motivos de segurança e, sobretudo, turísticos.
A Guiné, como de resto acentuei no início, é uma terra favorecida pelo mar. Aproveitar o dote natural dos rios e dos canais será ainda um acto de economia e de inteligência.
Sr. Presidente: as minhas últimas palavras constituem um apelo às gentes e aos capitais da metrópole.
A Guiné é uma terra portuguesa à espera do seu esforço e da sua generosidade.
Na medida em que souberem corresponder prodigamente a este apelo tornarão mais indestrutíveis os laços que ligam as suas fiéis populações à comunidade lusíada.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Armando Cândido: - Sr. Presidente: quantas vezes esta Câmara se tem ocupado da O. N. U. e apontado os seus erros e contra-sensos?
Quantas?
Ainda há poucos dias o ilustre Deputado Pinto Carneiro, com a sua nobre e rara eloquência ...
Vozes: - Muito bem!
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2020 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 80
O Orador: -.... desdobrou, a propósito, raciocínios e comentários plenos de razão e oportunidade, a que não deveriam ter ficado estranhos os que julgam ser azada a altura para apresentarem formas ou modalidades de patriotismo em detrimento do patriotismo definição, do patriotismo ideia, sentimento, verdade - do patriotismo acima de todas as reservas e de todas as interrogações.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: -No entanto, a respeito da O. N.º U. há e haverá sempre, infelizmente, muito que dizer. As tibiezas e as incongruências da instituição - que mostra força no Suez e fraqueza na Hungria; que trava luta feroz no Katanga e nem sequer trata de saber o que se passa nas fronteiras sino-indianas; que se alheia da questão de Cuba para a entregar à renitência de Fidel e ao arbítrio de dois grandes; que voga na enchente afro-asiática, acaudilhada pela Rússia, sabida na arte de progredir sem perda de sangue próprio constituem matéria mais do que suficiente para longos e persistentes reparos. Mas prefiro oferecer neste momento algumas considerações sobre os dois últimos debates que se realizaram na 4.a Comissão e no plenário da Assembleia da O. N. U. e que redundaram no costumado prazer da maioria contra Portugal. Para tanto, deixo que o ódio dos inimigos se canse no espaço da nossa serenidade e vou direito ao fecho dos resultados:
Na 4.a Comissão, 82 votos contra, 13 abstenções e 7 votos a nosso favor.
No plenário da Assembleia, uma resolução desfavorável a Portugal, com 18 abstenções, 21 ausências e 14 votos pelo nosso lado.
Talvez seja útil relembrar, como nota que convém não perder de vista, que a resolução da Assembleia dizia unicamente respeito a Angola e era de conteúdo mais agitado e violento.
E então importa, e importa seriamente, pensar no significado das duas votações.
Têm andado para aí alguns profetas de política interna e internacional a inculcar, entre dramáticos e fragorosos, que as velas das outras naus, que singram nos amplos mares do Mundo, todas se enfunaram com os ventos da história; que seria bom termos mão na pertinácia; que talvez fosse aconselhável lançarmos, sem demora, pregão denunciador do intento de retirarmos em data marcada ou esboçada nos horizontes do porvir. E basta que um inconformista nato, ou um qualquer desses apressados motoristas das circunstâncias, que julgam instalar-se no futuro, galgando estrepitosamente o presente, anime a opinião com jogos de palavras para que comece a desenhar-se a corrente mais ou menos convencida e mais ou menos perniciosa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Quando a história um dia for o espelho fiel do nosso tempo e tiverem desaparecido as paixões que rugem no Mundo, o Mundo há-de ver e julgar, em toda a sua limpidez, a razão portuguesa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não a razão de alguns, que se dizem portadores de uma razão de patriotismo, mas a razão daqueles que não conseguem separar uma razão da razão total.
Ao falar de alguns não falo dos trânsfugas que querem sumir a Pátria nos meandros tenebrosos da abjecção internacional. Falo dos que, julgando servir o conceito de Pátria, o prejudicam com ideias novas e pretensamente adaptáveis ao sabor dos tempos, ao qual se submetem, quando lhes cumpria lutar pela sua radical transformação.
Ao falar de alguns não falo dos desertores da Pátria, perdidos para sempre e que só merecem o látego da nossa repulsa. Falo dos que, proclamando a Pátria, a diminuem, dando cutiladas no sim e no não.
Está dito - e parece que importa não cessar de o dizer - que a ofensiva na Ásia e na África contra as potências ocidentais não é uma ofensiva de ideias, mas de preconceitos, uma ofensiva de ódios, uma ofensiva de cor, um acto instigado e alimentado pelo interesse comunista na revolução ideológica e na aquisição estratégica de grandes áreas, teimosamente apetecidas e brutalmente disputadas.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Quais as garantias oferecidas ao homem branco do Ocidente e que foram posteriormente respeitadas nos países afro-asiáticos que na crista da nova vaga têm ascendido à independência?
Em que se traduziram os acordos previamente celebrados e dispostos na base da sua emancipação?
Apontem-me onde foram escrupulosamente respeitados os frutos do trabalho do homem branco e até do homem de cor fundido na aliança do génio e do destino!
Onde está a paz verdadeira para além da paz nomeada de insegura?
Porque não mostram o paraíso para onde diziam caminhar os povos autodeterminados?
Porventura desenvolveram a sua economia ou a mantiveram ao nível e ao ritmo anteriores?
Que é feito dos princípios de convivência humana alinhados no programa do mundo que se está fabricando?
Onde param as promessas, os juramentos, os direitos?
A paz, a paz autêntica, real, justa, progressiva - onde está ela?
Onde?
Na Argélia, que compra máquinas russas com o dinheiro francês; que recebe milhões de francos e faz desaparecer milhares de franceses; que persegue e liquida os que confiaram na França; que tem profanado e destruído os símbolos da presença europeia; que pega nas ajudas do Ocidente e as volta contra Portugal; que desfralda a sua criminosa intenção de auxiliar os terroristas apostados em exterminar-nos no ultramar; que instala dentro das suas fronteiras, com a assistência de embaixadores do bloco comunista, alguns assassinos alcunhados de dirigentes de um não menos alcunhado movimento de libertação de Angola?
No Congo, onde continuam as lutas tribais e onde vive, abafada e inquieta, a alma do Katanga?
No Burundi, onde os fuzilamentos em massa parece fazerem parte da folha que se despega do calendário em cada dia que vem ao Mundo?
No Togo, onde se decapita a autoridade; no Senegal, onde se procura segurar, a muito custo, o princípio da obediência à lei constitucional; na Costa do Marfim, onde se tomam francas medidas contra os assaltantes, ávidos de poder; no Ghana, onde o Sr. Nekrumah tem andado à mercê de atentados; na ex-Guiné Francesa, disposta a estender a asa subversiva; nos países que permitem e auxiliam, à margem de todo o direito internacional, os campos e as alfurjas onde afiam os punhais os sicários que nos buscam o coração?
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7 DE FEVEREIRO DE 1963 2021
Negociar a prazo mais ou menos longo a cedência?
A França cedeu, com mira na comunidade, e a comunidade tem sido espuma desfeita pelos ventos da história.
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O Orador: - A Bélgica deu cunho de magna solenidade a independência do Congo Até lá foi o rei, com a sua alta e significativa presença, para que se não duvidasse da intenção e do valor dos compromissos assumidos. E depois a Bélgica foi caluniada e expulsa.
A Holanda chegou a pegar em armas e a batalhar, mas depois esmoreceu e entrou em negociações, deu as suas velas aos ventos da história, e esses ventos trouxeram-lhe para casa os restos amortalhados do seu esforço no ultramar.
O Sr. Pinheiro da Silva: - Muito bem!
O Orador: - Todos os que cederam foram ou estão em vésperas de ser escorraçados.
A própria Inglaterra está perdendo vulto, influência, força.
O maior escândalo internacional do nosso tempo é o da ilusão.
Como e porquê?
Será compreensível ou admissível que existam ainda iludidos?
Então não se está vendo a olho nu, por toda a parte, que onde o Ocidente cede logo o Ocidente é maltratado e posto fora?
Ajudas económicas, assistência, dinheiro!
Suprema irrisão!
Os afro-asiáticos pegam no dinheiro e atulham o paiol com pólvora russa.
Os pró-comunistas aceitam as ajudas e pegam nelas e recorrem ao armamento russo.
Até Cuba - que está declaradamente ao lado da Rússia - aproveita a ocasião, trocando prisioneiros por dólares.
O Ocidente está a ser enganado e explorado.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não, não pedi a palavra para fustigar, propriamente, a O. N. U., que promove a unificação do Congo de Léopoldville e não promove, por exemplo, e colocando os factos no plano da mais estrita objectividade, a unificação da China da Formosa, uma vez que foi esta a China, como foi aquele o Congo, que ela aceitou e reconheceu.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não, não era nem é meu intento tratar hoje especialmente da O. N. U., que deu por acertada e boa a Federação das Rodésias e da Niassalândia, e agora admite e acha bem o seu total esfrangalhamento.
Não, não estou aproveitando o tempo que me foi concedido para desenvolver o caso da O. N. U., que não movimentou um único capacete azul com o fim de impedir o roubo de Goa, e não escorraçou ainda do Congo ex-belga a turba de malfeitores que nos tem assaltado e se prepara para renovar as suas incursões ao abrigo da impunidade internacional.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não, não me estou ocupando em cheio da Organização das Contradições Unidas.
O que pretendia e pretendo é dirigir-me aos profetas das erradas profecias, para os convencer a desistirem nobremente da sua marcha injustificada e perturbadora.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Portugal não está só.
Vale a pena ser teimoso, quando a teimosia se funda na verdade e na inteligência.
Onde a razão não cede acaba por triunfar a justiça.
Votaram connosco os países mais responsáveis pela política do Ocidente, e os que votaram contra só tiveram uma maioria afirmativa e efectiva de dois votos. Tal e qual o que o Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros ainda não há muito patenteou:
Verifica-se que os que votaram contra nós apenas tinham uma maioria de 2 votos dentro do número total de membros da O. N. U., que é de 110; e somando os votos favoráveis a Portugal e as abstenções conclui-se, além disso, que 32 delegações tiveram dúvidas sobre a propriedade e a procedência da resolução que foi submetida à Assembleia.
Não é tudo, mas é muito, pelo menos o bastante para ajudar os partidários da transigência, que leva ao suicídio, a arrepiarem o passo e descobrirem o peito contrito.
É que não podem existir dois patriotismos: o que pactua com o perigo e reduz a Pátria, julgando salvá-la, e o que afirma a Pátria, defendendo a sua integridade dos perigos que a ameaçam, pois há só um patriotismo, aquele que não discute nem admite que se discuta, e muito menos se ofenda, o todo nacional, sejam quais forem os tempos e sejam quais forem as pressões.
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O Orador: - O Governo e os que o acompanham não têm o monopólio deste patriotismo, não o arremataram nem o instituíram. Ele vem das raízes da nossa história, da nossa feição de povo que lutou e sofreu para se afirmar como é. Patriotismo lógico, autêntico, irrecusável, tão sensível e visível e tão natural que. só não o alcança o segue quem não quer ou quem anda mergulhado na ingenuidade mais espantosa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Também já nos acusaram de querermos a guerra entre as nações como meio de valorizarmos e segurarmos a nossa posição no Mundo. Mas como poderíamos nós desejar a guerra generalizada se entendemos ser o nosso exemplo o melhor e o mais útil argumento em abono da paz universal? Graves faltas de lógica e de justiça cometem por vezes os homens ao serviço das suas estranhas ideias e dos seus obstinados entusiasmos. Sempre praticámos a virtude patriótica da paz e, se não relegamos a virtude patriótica da guerra, aquela outra virtude está primeiro e em sua defesa pomos toda a esperança e vontade.
Esta é a nossa atitude, tão legítima como irrevogável. O resto - o resto será crise de patriotismo, embora restrita ou esporádica.
Crise de patriotismo - crise de ser como se deve ser.
O remédio é então o de aguentar, como já nos foi dito por quem sabe o que essa palavra contém, em somatório de sacrifícios.
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2022 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 80
Aguentar - aguentar até que os responsáveis pela condução da política do Ocidente vejam todos os logros em que estão caindo e todos os abismos que lhes estão reservando.
Aguentar - aguentar o passado até ele ser futuro.
Aguentar, aguentar, sim - aguentar a Pátria.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Tem a palavra para efectivar o seu aviso prévio sobre acidentes de viação o Sr. Deputado Cancella de Abreu.
O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Sr. Presidente: o problema que me propus apreciar nesta minha nova intervenção, ou seja o dos acidentes de viação, relaciona-se com a natureza e a utilização dos transportes terrestres, e nomeadamente com o emprego e o ritmo das velocidades e sua evolução, sempre compreensivelmente progressiva e denotando a toda a luz que a preocupação dominante desde, tempos imemoriais foi a do seu aperfeiçoamento e da sua aceleração, tendo-se, através desta, objectivo de encurtar, no tempo, os espaços geográficos.
Os próprios romanos construíram as suas estradas estratégicas tendo já em vista a possibilidade da rapidez no acesso.
Não deixaria, portanto, de ser curioso um apontamento sobre aquela evolução desde os tempos primitivos até à vertigem da actual era do jacto. Mas, como não posso nem desejo ser demasiadamente extenso, limitar-me-ei a uma breve referência a alguns dos aspectos que mais denunciam aquela evolução.
Possuo em minha casa umas pequenas gravuras inglesas, que representam diversas modalidades dos antigos meios de transporte em Portugal. Numa delas - que já vi reproduzida - um almocreve dorme estirado sobre o dorso de um resignado jumento, que lentamente transporta, em largos alforges, o correio entre Lisboa e o Porto.
A sua frente, mais além, segue montado um guia, que, interrogando um camponês, se orienta sobre as veredas ou picadas que por mais perto os conduzam ao seu destino.
Noutra gravura, é figurada uma liteira onde duas muares atreladas aos varais conduzem de longada uma sócia, enlevada pelas melodias da guitarra que o sota, montado ao invés, vai tangendo e, assim, a distrai da monotonia da extensa caminhada empreendida; música esta que bem podia ter sido a precursora da radiodifusão ambulante que hoje tanto nos acicata ao volante com as vibrantes irradiações apropriadas da Cavalgada das Valquírias ...
Todavia, então viajava-se especialmente a pé, a meia dúzia de quilómetros à hora; e, por isso, num interessante esboço histórico dos caminhos de ferro portugueses, o engenheiro Frederico Abragão anotou que o primeiro agente do transportes de que o homem se deve ter servido teria sido ... ele próprio.
Mas empregavam-se também as bestas de carga, em estafetas de quatro léguas, «a passo de almocreve», ou, como também se dizia, «a unhas de cavalo»; e acrescentava-se que o pobre caminhava e o rico cavalgava.
Houve depois a cadeirinha, conduzida a pulso, c, após a liteira, surgem, através do tempo, o coche, a berlinda e a sege, na qual de Lisboa ao Porto era difícil gastar menos de cinco a seis dias. Eu mesmo ainda me recordo de um velho e pesado carroção, arrastado por pachorrentos bois, onde meu Avô me conduziu ao teatro da minha terra, para ver o grande actor Vale n´O Diabo atrás da
Porta! ...
Veio em seguida a diligência, e, então, existiu, entre nós, a afamada mala-posta.
A primeira era para o Norte.
Os seus seis a oito passageiros e o correio eram transportados, Tejo acima, até ao Carregado, e depois, desde aqui, primeiramente a Coimbra e mais tarde ao Porto, o que tudo perfazia um percurso total de cerca de 300 km feito em 46 horas, com paragens e mudas em 23 estações, de algumas das quais existem vestígios por aí além. E tão perfeito se tornou para a época esse serviço que criou fama de ser o melhor em toda a parte.
Mas era arriscada e incómoda a jornada, e, por isso, antes de partir, havia o hábito de fazer testamento e encomendar a alma a Deus, precauções que, aliás, hoje em dia, ainda eram mais de recomendar, embora bem diversos sejam os motivos ...
António Nobre lá se lhe refere nos conhecidos versos do Só:
E o carro ia aos solavancos.
Os passageiros, todos brancos
Ressonavam nos seus gabões;
E ou ia alerta olhando a estrada,
Que em certo sítio na Travoada,
Costumavam sair ladrões.
E Joaquim Leitão descreveu-a em boa prosa nos Deuses do Lar:
As mala-postas tinham postilhão na sua percha, condutor alerta, sacos de correio com alforges, baús de folha e arcazes ponteados de taxas amarelas e cestarolas de merendeiros, tudo acomodado no tejadilho, debaixo do encerado. Dentro, os oito passageiros de 1.ª classe aconchegavam os seus capotes de camelão e atavam por baixo do queixo as fitas dos bonés de orelhas.
Porém, inconformado com a poesia e a literatura, o progresso tomou marcha acelerada e conduziu-nos rapidamente à, era da ferrovia, que entre nós encontrou vigoroso impulso no grande estadista que foi Fontes Pereira de Melo.
O resto todos o sabem.
Em 28 de Outubro de 1856, El-Rei D. Pedro V inaugurou o troço da linha do Norte, de Lisboa ao Carregado, gastando 40 minutos num percurso de 87 km; e isto realizado com alguns percalços, o que não surpreende, pois, tendo o primeiro caminho de ferro conhecido sido inaugurado em 1825, só em 1840 se atingiu a velocidade média de 40 km/h.. em 1900 a de 75 km, em 1910 a de 90 km e apenas em 1935 se atingiu a média de 130 km bem contados.
E assim, à medida que se iam aumentando as linhas férreas, e não obstante a construção intensiva de estradas transitáveis, foram desaparecendo os antiquados transportes rodoviários, e a própria mala-posta, que só em 1859 havia de atingir o Porto, prevaleceu apenas durante pouco mais de cinco anos e unicamente desde o Carregado até aquela cidade, depois de ter existido quatro anos no percurso do Carregado a Coimbra.
Lá, como em toda a parte, o comboio vencia, pela ligeireza e pelo conforto, todos os antiquados e lentos meios de transporte.
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Depois, o tempo foi decorrendo e com o tempo foi aumentando o progresso e com o progresso a velocidade; esta facilitada pelo aperfeiçoamento da técnica e imposta pelo ritmo da vida. E enquanto, desde o emprego do motor de explosão, a partir dos fins do século passado, não surgiu o delírio da aceleração, a evolução foi-se processando sem sobressaltos, sem originar incidentes ou acidentes que em geral não fossem o efeito normal desse progresso.
O automóvel veio depois do caminho de ferro, mas se não o venceu em regularidade, comodidade e segurança, ultrapassou-o em maleabilidade, facilidade de deslocamento e de acesso.
Não se imagine, porém, que na era do transporte hipomóvel ainda não havia protestos e reclamações contra os excessos de velocidade, pois há 100 anos foram apresentadas à Câmara Municipal de Lisboa queixas sobre o problema do trânsito, que se estava agravando dia a dia, porque «as seges andavam pelas ruas à desfilada, os boleeiros zombavam constantemente das disposições em vigor e deixavam os trens estacionados nas praças»!
Vê-se que vêm de longe os dois males, actualíssimos, isto é, o abuso da velocidade e o desprezo pelas regras do trânsito.
Chegada a era do automóvel, tornou-se muito mais acelerado o andamento na rodovia, mas não sem que ainda tivesse, nos primeiros tempos, foros de temerário, por exemplo, um percurso entre a Beira e Lisboa a velocidade que chegou a atingir o máximo de 40 km à hora, realizado pelo conhecido desportista Dr. Tavares de Melo.
Sr. Presidente: nesta pequena história pregressa dos meios de transporte rodo e ferroviários, e especialmente da evolução das velocidades, chegamos, também velozmente, à era do jacto: do jacto na aviação e do jacto na viação, dentro das proporções.
Mas prossigamos: o número de veículos motorizados inscritos em 31 de Dezembro de 1961 era no continente e ilhas de 280 838 ligeiros e pesados; de 34 340 motociclos. E eram 462 000 os velocípedes sem motor, aproximando-se estes hoje dos 500 000, o que eu classificaria de verdadeira praga se não reconhecesse a enorme utilidade prática da sua utilização, especialmente pelas classes menos favorecidas.
E vem ainda a propósito dizer que em Setembro de 1961 havia em todo o Mundo 97 251 500 automóveis.
O constante aumento que está a dar-se no nosso parque automóvel, aliás geral em todos os países, se, como é óbvio, provém do aumento da população e do desenvolvimento do tráfego comercial e industrial, não deixa de ser sintoma de melhoria na economia nacional e nas condições de vida em todas as classes, sem exclusão daquelas que se convencionou chamar económicamente débeis.
O número total de acidentes conhecidos na Polícia de Viação e Trânsito em 1961 foi de 20 756, no continente, e o número de mortes verificadas e ocorridas só no momento do desastre foi de 738, e, como os acidentes mortais foram 699, conclui-se que em 39 deles mais de uma pessoa, e se não famílias inteiras, perderam a vida. Isto é: segundo os registos daquela Polícia, quer os acidentes em geral, quer as mortes, aumentaram em relação a 1960, o que não surpreende, dados, por um lado, o desenvolvimento constante do trânsito e, por outro lado, a permanência das outras razões determinantes, razões que, especialmente, por culpa dos imprudentes e dos incorrigíveis, prevaleceram em 1961.
Mas são exactos ou completos aqueles números?
Suponho que em poucos casos como neste é tão difícil, se não impossível, estabelecer dados estatísticos e fazer confrontos que não sejam inconsistentes, se não enganosos.
É certo que aqueles números correspondem com exactidão aos acidentes registados na Polícia de Viação e Trânsito, como certo é também que, à face do artigo 66.º do Código da Estrada, todas as autoridades a quem compete tomar conhecimento dos acidentes ou julgá-los são obrigadas a comunicá-los à Direcção-Geral de Transportes Terrestres. Simplesmente, mesmo admitindo que isto se cumpre inteiramente, a verdade é que muitos acidentes ocorrem em sítios isolados, onde não são presenciados por agentes da autoridade, e ou não há testemunhas ou estas, para se livrarem de incómodos, se esquivam a denunciá-los.
Por outro lado, é muito frequente, nos casos menos graves, nem os culpados nem as vítimas denunciarem o ocorrido, porque chegam a entendimento sobre a liquidação dos prejuízos, feita directamente ou através do seguro.
A coisa arruma-se, embora não sem, em geral, as partes se atribuírem reciprocamente as culpas do feito e se increparem naquela conhecida linguagem sonora, agressiva e insultuosa, de que nem sequer se privam os de mais requintada educação. Todos o sabem, porque o ouvem. E, deste modo, a pendência termina com honra para ambas as partes ...
Isto quanto aos acidentes não mortais.
Mas, dá-se esta incerteza nos apuramentos ou nas estatísticas referentes mesmo aos casos de acidentes mortais?
Á primeira vista, afigura-se que a resposta devia ser negativa, porque, nestes casos, não é fácil ocultar o acidente às autoridades, dados os seus vestígios e a natural divulgação que têm. E assim, realmente, essa resposta estaria certa se a estatística completa pudesse respeitar apenas às mortes ocorridas na própria ocasião do acidente ou, vamos lá, mesmo na da condução das vítimas para o hospital (incluindo as que as ambulâncias por vezes fazem pelo caminho) ou durante a hospitalização; o que, aliás, segundo informação segura que colhi, não sucede entre nós, pois, repito, a estatística oficial daquela Polícia só abrange as mortes ocorridas no próprio local do sinistro. Nem, de resto, ela podia ter dados completos em todos os outros casos, visto que muitas vezes decorrem e liquidam-se por outras vias oficiais, ou meramente particulares.
Nesta conformidade, são de admitir como mais próximas da realidade outras estatísticas, como, por exemplo, as recentemente publicadas pela imprensa ou pelo Centro Português de Segurança Rodoviária.
Mais:
Para o apuramento do número exacto de mortes causadas por acidentes de trânsito e, portanto, para se elaborarem as correspondentes estatísticas em relação a cada país, e especialmente em confronto com os outros, fazia-se mister registar também os casos em que, independentemente do tempo decorrido após o acidente, a morte sobreviesse e fosse atribuída a ele, e que o critério e a base fossem iguais e comuns em todos os países.
Ninguém ignora que, até mesmo quando as lesões não sejam graves, podem sobrevir complicações ou prolongadas enfermidades provocadas por acidente, que conduzem à morte dias, meses ou mesmo muito mais tempo após a data em que ele ocorreu.
Não são raros os casos de morte provocados por complicações posteriores e lesões orgânicas, nomeadamente no cérebro, originárias de acidente; mas nisto a palavra é dos médicos ilustres que me ouvem.
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Justificado foi. pois, o autorizado comentário do excelente Boletim do Automóvel Clube de Portugal, feito nos n.ºs 9 e 10 de 1961, a propósito do inquérito referente a 1959 realizado pela Real Sociedade Inglesa de Prevenção de Acidentes, de que resultou a colocação de Portugal no penúltimo lugar da escala ascendente do número de acidentes de viação naquele ano em quinze países europeus.
Diz o articulista que não devemos deixar-nos ofuscar com a notícia referente à frequência de acidentes mortais na estrada, porquanto bem sabemos a que manuseamentos se prestam as estatísticas o como elas são elaboradas, principalmente quando são internacionais e enfermam, por esse motivo, do defeito fundamental de serem diversos, em cada país. as bases e os critérios de apuramento.
E, embora acentue que o Grupo de Trabalho da Prevenção dos Acidentes da Circulação por Estrada classificou arbitrariamente do morte por acidente toda a pessoa morta, logo a seguir, no local ou dentro de 3 dias, ou dentro dos 30 dias seguintes (como sucede, respectivamente, na Itália, na França, na Bélgica e na Inglaterra, digo ou), o mencionado boletim acentua que chegou a haver 6 definições de morte por acidente. E, noutro passo, transcreve da introdução da Estatística dos Acidentes de Viação na da Circulação da Estrada na Europa o seguinte:
Convém sublinhar que os números dados não são verdadeiramente comparáveis de um país para o outro. E acrescenta que, variando de um país para o outro os métodos seguidos para assinalar os acidentes, o campo coberto pelas estatísticas pode ser mais completo em certos casos do que noutros.
Ainda a propósito, posso acrescentar que para estabelecer dados estatísticos sobre os acidentes de viação um cada um dos países ou no confronto entre eles não pode servir de indicação o número de veículos registados.
É que a circulação não pode ser apenas função do número de viaturas existentes, visto ser muito variável a frequência da sua utilização em cada país. E também o combustível não pode, por si, ser índice indicador da intensidade do trânsito, pois o seu consumo depende da natureza o da potência dos veículos, do número deles utilizados nos serviços urbanos (onde o consumo è muito maior), do acidentado dos percursos, do estado das estradas u até da própria velocidade empreendida, etc.
E, assim, tudo justifica que André Liesse tivesse dito, na Statistique, Sés Dificultou, Ses Procedes, Sés Résultats, que a estatística não é uma ciência universal, e é um método extremamente delicado, que se deve aprender a manejar.
Nesta conformidade, não podemos ter como certos, ou mesmo aproximados da certeza, os números atribuídos por Portugal a ele próprio e os das estatísticas internacionais, como, por exemplo, quanto a estas, os que dizem haver em todo o Mundo, anualmente, à volta de 100 000 acidentes mortais, que lhe artibuiu o Mensário da Organização Mundial do Saúde, ou que em 1960 houve em toda a Europa 1 700 000 feridos e 51 145 mortos por acidente de viação, dos quais 36 000 ocorridos em quatro grandes potências (Inglaterra, Alemanha, França e Itália), cabendo 35 por dia só à Alemanha Ocidental, e ainda dizendo que em 1961 houve 38 000 nos Estados Unidos, sendo mais de 200 ou de 300 nos fins de semana, e agora mais de 400 em 3 ou 4 dias da última quadra do Natal, etc.
E, portanto, insegura é também a informação há pouco divulgada por Genebra, e provinda da Comissão Económica Europeia da O. N. U., de que Portugal é o país da Europa onde morrem em acidentes de viação maior número de peões e que há uma morte por 200 veículos.
E tão falazes ou inseguras são as estatísticas baseadas no critério da relatividade, que, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde chegou à conclusão, certamente absurda, de que, a conduzir, os solteiros, os divorciados e os viúvos se arriscam menos do que os casados; o que, a ser assim, assinalaria a propensão dos casados para o suicídio, e não deporia a favor da delícia conjugal!...
Em resumo e conclusão: números são números, e aqui, pelas razões expostas, não se podem tirar deles ilações que não sejam as de que estamos em presença de um mal gravíssimo o universal, mais grave nuns países do que noutros e, aqui e além, melhor ou pior combatido, e sem que, infelizmente, nós possamos orgulhar-nos do termos sido até hoje dos mais cautelosos e diligentes em corrigi-lo quanto possível e sem desfalecimento, tendo-se sempre presente que não devo consolar-nos, resignar-nos ou neutralizar-nos a desgraça alheia.
Não andemos, pois, a iludir-nos uns aos outros, seja para mais ou seja para menos do que a realidade. A triste verdade impõe-se e é perante ela que a todos cumpre julgar e ao Governo cumpre actuar.
Sr. Presidente: a meu ver, são três os aspectos sob os quais deve ser contemplado o gravíssimo problema dos acidentes de viação, ou sujam: causas, efeitos e soluções; e nas soluções se compreendem as três modalidades do bom combate que enunciei no aviso prévio e se exprimem em persuasão, prevenção e repressão.
Isto, porém, não significa que me proponha ocupar-me desenvolvidamente de todas e de cada uma delas e trazer à colação novidades em assuntos já antes tão largamente debatidos por colegas nossos e na imprensa e outros meios de divulgação. Seria estulta pretensão e, além disso, não tenho a volúpia do sucesso, mas apenas o desejo de, na minha simples linguagem habitual, prefaciar um debate de incontroverso interesse nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - É horrível o que se passa; e, se é certo o País reconhecer este mal como inevitável preço do progresso, todavia não se resigna, nem pode suportá-lo quando redunda um excesso u numa permanente e inconcebível tragédia bem expressa no desprezo pela vida humana, sem que os infractores se emendem e sem se empregarem oficialmente meios mais rigorosos e eficazes para reduzir substancialmente o confrangedor flagelo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não se sente a desgraça senão quando ela bato à porta; mas aqueles que não sofram com a desventura alheia devem, ao menos, lembrar-se de que a vida não tem preço ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ... e os valores humanos e materiais que se perdem são, no conjunto, valores inestimáveis da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sim, meus senhores, não é demasiado insistir, insistir teimosamente, lutar persistentemente, com
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denodo e sem tergiversar, como, conforme já disse e aplaudi no anúncio do aviso prévio, tom feito os organismos e as revistas da especialidade e toda a imprensa, a radiodifusão e ainda as empresas de combustíveis.
A campanha tem o apoio da opinião pública e à Assembleia Nacional deve interessar secundá-la, visto que é a expressão suprema do sentimento nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - As causas dos acidentes de viação são, a bem dizer, sempre as mesmas, aqui como em toda a parte, e todos as conhecem.
Umas mais frequentes do que outras; umas directas, que são as principais e provêm da acção individual dos condutores e dos peões; outras indirectas, derivadas da intensidade do trânsito, das condições atmosféricas, das avarias ou incidentes mecânicos, da configuração e estado de conservação de um certo número de estradas, etc.
Mas, já que falo do estado e da configuração de algumas estradas, cuja melhoria sem dúvida se impõe, em verdade lhes digo também que muitas delas são de faixas estreitas, mas têm as costas largas! ...
E assim, pois tem-se demonstrado que proporcionalmente, acontece ser mais frequente o número de acidentes ocorridos nas estradas em bom estado de conservação, nas mais planas, nas mais largas e nas grandes rectas. Assim fala o número de casos registados anualmente só pela Polícia de Viação.
Isto deve parecer inacreditável aos «ases do volante», mas não o é para os que conhecem o motivo, por de mais evidente, ou seja o predomínio nesses casos do factor confiança; e da confiança resultam a indiferença, a descontracção, a desatenção e o abuso de desmedida velocidade, quando não quase abandono do volante para gozar o panorama, animar a conversa, acender um cigarro, etc. E até é momento propício para consultar o retrovisor e retocar a maquilhagem, como sucedeu com uma dama, que, certo dia, fora da mão, se deparou a um lorde inglês, que, depois, na sua Câmara, pediu a palavra para protestar contra tamanho desaforo.
Li algures que a hipnose das estradas constitui um grande perigo para os motoristas e é considerada uma das maiores causas dos acidentes de viação; e as companhias de seguros têm como certo que, onde a condução é mais fácil, cria-se nos condutores um estado de abandono e desinteresse que origina reflexos tardios; adquirem uma falsa sensação de segurança e, daí, faltas de reacção se surgir bruscamente qualquer emergência difícil.
Ainda quanto às causas directas, ou sejam as provenientes da acção do homem, é conveniente notar que, no nosso país, em 1961, como geralmente nos anos anteriores e certamente em 1962, as mais frequentes, oficialmente registadas, foram o excesso de velocidade, a inobservância das prioridades, as ultrapassagens indevidas, a distracção e a falta de sangue-frio.
É claro que se uma delas, ou seja a velocidade excessiva, com simultânea transgressão da doutrina do artigo 7.º do Código da Estrada, é a causa directa de grande número de acidentes, ela também agrava indirectamente as consequências das causas materiais que por si os provocam, como rebentação de câmaras-de-ar ou de pneumáticos, derrapagens, avaria dos travões e outras.
São ainda as surpresas que se deparam, como as crianças ou os adultos que inopinadamente se atravessam no caminho, os obstáculos invencíveis, como veículos parados com desprezo pelas regras do artigo 14.º e do n.º 4 do artigo 20.º do Código, os veículos que surgem transitando fora de mão, com infracção do n.º 2 do artigo 5.º, ou não empregam o sinal acústico como determina o n.º 2 do artigo 6.º, o encandeamento, com desprezo do n.º 2 do artigo 30.º, etc. E se, nesses casos, o perigo por culpa dos outros subsiste, por vezes sem remédio para os que conduzem depressa, mas com domínio do volante e dentro do Código, certo é, porém, que ele é mais inevitável e invencível para os que conduzem sem precaução, mesmo que seja em velocidade moderada.
Muitas vezes, ao volante, o automobilista, apressada sem haver pressa, na ânsia de bater recorda e em competições, vaidoso, fanfarrão, desobediente, com vergonha de utilizar o aviso sonoro quando deve, além de perder por completo a consciência de si próprio e o amor à sua vida, à da família e à do próximo, transforma-se, transtorna-se, passa a ser uma espécie de «outro eu». Varre-se-lhe do espírito a noção das responsabilidades que a sua própria categoria e as funções que exerce lhe impunham e do perigo que a sua perícia não vence, como não vence a imperícia dos outros que se lhe deparam na anarquia e na desordem do caminho, onde, além de tudo o que se vê, se sente e se prevê, dominam os fatídicos imponderáveis que desafiam irresistivelmente a morte.
E que dizer do delírio de certos jovens nas suas bólides rasteiras, ruidosas, de escape livre, em vertigem louca, talvez emparceirados com furtiva flausina que se lhes depara nos acasos da vida? E desses adolescentes, cujo aproveitamento escolar os pais premeiam, não com um brinquedo, mas com um automóvel a valer para irem à escola?
Não será isto facilitar e apressar o autodeterminação juvenil de que falou André Maurois num interessante artigo publicado recentemente no Diário de Noticias?
O Sr. Amaral Neto: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: - Gostosamente.
O Sr. Amaral Neto: - V. Ex.ª tem carradas de razão, mas o pior é que às vezes o automóvel não é o prémio do aproveitamento escolar, mas do desaproveitamento ou pelo menos, sobrepõe-se ao desaproveitamento escolar ...
O Orador: - Deve ser assim.
Enfim: embora, na expressão de André Defert, presidente do Touring Club de França, muitos pensem e procedam chacun pour sói, eles tão inconscientemente o fazem que não pensam em si e perdem o próprio instinto de conservação; e não podemos denominá-los apenas suicidas, pois são também criminosos ou terroristas da estrada.
O próprio Pontífice Pio XII disse que os sacerdotes têm o dever de incutir na consciência do homem que vai ao volante a responsabilidade moral perante Deus o a sociedade. E, em 1958, afirmou que a frequência dos acidentes mortais embotou a sensibilidade moral; e acrescentou:
Que dizer então da insensatez dos automobilistas loucos que se deixam levar pela vertigem da velocidade e da competição, indiferentes à sua própria segurança e à dos outros? Como não hão-de estremecer o cristão, o homem honesto, ao simples pensamento de poder vir a ser equiparado aos piores criminosos ...
E a inconsciência desses indesejáveis atinge o paroxismo do inverosímil quando pretendem justificar os abusos da velocidade ou de condução sem controle nem domí-
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nio com o facto de haver também desastres quando a velocidade é moderada.
Sim. E até é certo que acidentes de viação houve-os também, por exemplo, quando os fogosos corcéis da mala-posta tomavam o freio nos dentes e voltavam a diligência ... Há-os mesmo quando se anda a pé. E, assim, é claro, há-os igualmente quando o automóvel caminha a velocidade moderada.
Simplesmente, nestes casos, os acidentes são muito menos numerosos e são provocados geralmente pelos outros (condutores o peões) e, além de menos frequentes, são muito menos graves nas suas consequências, visto que, como é inegável, a sua gravidade está na razão directa da velocidade. Isto é uma verdade incontroversa que se impõe ao mais elementar raciocínio.
Não deixa de vir a propósito contar que em Itália são utilizados uns
porta-chaves com a imagem de S. Cristóvão cercada de uma inscrição onde se diz que o santo só se responsabiliza até aos 50 km à hora ... É pouco, mas, prudentemente, o nosso milagroso patrono entrega a diferença à responsabilidade de cada um ...
Sr. Presidente: entro as outras numerosas causas pessoais mais frequentes dos acidentes que merecem referência especial figura a das ultrapassagens.
As ultrapassagens indevidas são uma das manobras que o artigo 62.º do Código da Estrada classifica de arriscadas ou perigosas. E é compreensível que assim suceda, porque o condutor do veículo que vai fazer a ultrapassagem não vê, antes de a fazer ou iniciar, aquele que vai enfrentar, nem o condutor deste vê aquele.
Todavia, parece-me que seria fácil reduzir apreciavelmente este enorme risco, salientado ainda há pouco tempo no Boletim do Automóvel Clube de Portugal. Mas, para isto, não basta que a ultrapassagem seja feita em sítio apropriado, pois, conforme obriga o n.º 3 do artigo 10.º do Código, os condutores não devem iniciar nunca essa manobra sem avisarem do seu propósito os condutores dos carros a ultrapassar, mediante o sinal sonoro, que, aliás, muitos não empregam. Vou mais longe, pois parece-me que, por outro lado, os condutores dos carros a ultrapassar deviam, não apenas ter a faculdade, mas sim a obrigação legal, de responder àquele aviso mediante o movimento convencional do braço, indicativo de que se pode ou não pode ultrapassar; e isto sob pena de multa.
Merece também especial condenação o péssimo comportamento dos peões. São eles as maiores vítimas, mas também são, em grande número, os culpados, tanto nos centros urbanos como nas estradas; e culpados não só de muitos dos acidentes que os atingem, mas também do grande número dos que vitimam os outros; e sucede assim porque infringem constantemente o artigo 40.º do Código e as posturas sobre o trânsito.
Disso na justificação do aviso prévio que ninguém sabe andar a pé; e é uma verdade, porque as excepções são tão raras que confirmam a regra.
Distracção, indiferença, pressa e também propositada desobediência são as principais origens que é necessário combater e corrigir, agravando as multas, aplicando-as rigorosamente e ministrando os rudimentos de educação cívica de que tantos carecem. E, a propósito, é de estranhar que nos centros urbanos seja quase completa a passividade na orientação e fiscalização do trânsito dos peões e a falta de repressão das infracções, a não ser nos pontos onde actuam os sinaleiros e os seus auxiliares. Veja-se, por exemplo, o caso dos menores e dos «borlistas» dependurados nos carros eléctricos.
Li algures que um engenheiro americano, ao observar o trânsito em Lisboa, disse que os portugueses pareciam com muita propensão para o trasteio, pois revelam o gosto do risco, das dificuldades e das situações inverosímeis.
Há mais.
Os peões transitam nas auto-estradas, apesar de o proibir o artigo 40.º do Código, e, geralmente, nas outras não cumprem a determinação que os obriga a transitar no sentido inverso ao dos veículos.
Muitas outras causas existem que merecem referência, como sucede com os ciclistas - agora, e oxalá que para sempre, a contas com a polícia - e com os alcoólicos, cujas frequentes responsabilidades nos acidentes de viação são notórias, como aqui e doutamente demonstrou ainda há dias o nosso ilustre colega Dr. Alves Moreira, e contra os quais não exista outro remédio eficaz que não seja a apreensão da carta de condução; e ainda: a pouca gravidade de algumas penas e indevida faculdade de remição da prisão a dinheiro; a falta de pareceres ou depoimentos de engenheiros ou técnicos especializados nos corpos de delito ou nos julgamentos, que esclareçam os tribunais, especialmente os da província; e ainda o grande perigo das passagens para peões marcadas perto das esquinas ou dos cruzamentos das ruas, a instrução e o exame para condução, etc.
Mas termino este capítulo ainda com um breve apontamento sobre a falta de limitação legal da velocidade, assunto largamente discutido entre nós e no estrangeiro.
Dele me ocupei desenvolvidamente na efectivação do primeiro aviso prévio na sessão de 21 de Abril de 1949, onde na 9.a das 25 conclusões manifestei a conveniência do se fixar o limite máximo da velocidade em 80 km à hora no andamento normal das estradas do País e em 100 km nas auto-estradas.
Tive, porém, contraditores autorizados, conhecedores do problema sob todos os seus aspectos, e, como confessei na sessão de 13 de Março de 1957, ao realizar o segundo aviso prévio, impressionaram-me as suas razões e, principalmente, a de que não se justifica a fixação de qualquer limite arbitrário e único, porque há carros ligeiros, pequenos, leves, frágeis e muito pouco estáveis onde é mais perigosa a velocidade de 50 km à hora do que o é a de 100 km ou mais empregada nos grandes carros modernos, estáveis, de mecânica sólida, bem calçados e conduzidos com perícia e domínio. Realmente, é assim: não pode haver uma regra uniforme para os «espadas» e para os microautomóveis, a que os camionistas chamam, desprezivelmente, «isqueiros».
Quando apresentei aquela sugestão, que eu soubesse, apenas em alguns estados da União Norte-Americana, na Inglaterra e poucos mais países existia limitação geral da velocidade para todos os veículos motorizados em todos os casos ou só para os centros populacionais e seus subúrbios.
Do que se passa na presente conjuntura não tenho conhecimento actualizado. Sei apenas que o assunto tem sido, por vezes, abordado em reuniões internacionais e que, pelo menos, o Governo Francês tem feito estudos e ensaios a este respeito sem chegar a resultados seguros e recentemente decretou-se - mas não sei se de facto vigora - um limite de velocidade para os sábados e domingos.
Entre nós, o Código da Estrada estabeleceu, no n.º 3 do artigo 7.º, a velocidade máxima para os automóveis de mercadorias e mistos, graduada conforme o seu peso bruto, e para os de passageiros conforme o número de lugares, mas, quanto a estes últimos, a limitação geral só abrange os de mais de dez passageiros, pois nos de menor lotação só existe para dentro das localidades e é de 60 km
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à hora. Para os veículos com motor auxiliar, a que se refere o n.º 3 do artigo 88.º, estabelece o n.º 4 do artigo 7.º a velocidade máxima geral de 80 km à hora.
Os restantes veículos ligeiros não estão sujeitos a limite legal de velocidade; apenas se lhe referem os preceitos vagos e abstractos do n.º 1 e as limitações cautelares do n.º 2 do artigo 7.º, mas uns e outros sem fixarem esse limite.
Está bem? Está mal?
Que o assunto é transcendente não há a menor dúvida, mas tenho para mim que os argumentos dos que advogam a limitação legal não são propriamente inspirados pelo comportamento dos que conduzem com segurança e perícia e cumprem rigorosamente a doutrina daquele artigo 7.º, mas sim pelo dos outros.
A Sr.ª D. Maria Margarida Craveiro Lopes: - Esse problema da limitação da velocidade também levanta outros, entre eles o das ultrapassagens, visto que, se os veículos de carga e outros são obrigados a uma velocidade diminuta, isso ainda leva ao aumento do número de ultrapassagens dos carros ligeiros, o que se torna particularmente grave nas estradas estreitas.
O Orador: - Mais adiante refiro-me a esse assunto.
Aqui, como é costume dizer-se, pagam os justos pelos pecadores; mas é mister que aqueles, com a sua prudência, sirvam de exemplo e estímulo para estes.
É, porém, inútil, por inoperante, aprofundar, agora, o estudo sobre este transcendente problema da limitação geral da velocidade. Enquanto as coisas continuarem assim, isto é, enquanto cada um ande como lhe apetece, sem encontrar quem o detenha e incomode, tanto faz haver como não haver limitação legal. Até a indiferença perante as placas indicadoras das velocidades máximas é notória, como o seria mesmo que elas indicassem o número de acidentes mortais ocorridos em determinados sítios, como sucede, por exemplo, ali em Espanha, na Galiza.
Sr. Presidente: feitas assim muito breves referências a algumas das causas dos acidentes, seguir-se-ia uma alusão aos seus efeitos; mas aqui ainda é menos necessário ocupar largo tempo. Eles estão à vista.
Quanto às pessoas, são as mortes, os ferimentos, as mutilações, a invalidez, enfim, todo o cortejo de desgraças e sofrimentos, que, pela sua confrangedora frequência, parecem ter entorpecido a sensibilidade pública, como se se tratasse de casos de rotina. E os prejuízos materiais traduzem-se em encargos de hospitalização, tratamentos, privação de vencimentos ou salários, paragem ou anormalização na sua vida pública e privada, etc. E, além da destruição ou avarias dos transportes e custo avultado da sua substituição ou reparação, há também os danos causados na propriedade particular e pública e até na privação perpétua ou temporária da actividade útil e produtiva de homens válidos. Quebra em potência de valores positivos da Nação. Capital, valor humano que se perde, pois fica a bem dizer irreparável, como nos casos de Duarte Pacheco, do P.e Américo e de tantos outros.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Relativamente às soluções, cada cabeça, cada sentença. E curioso é que alguns preopinantes as sugerem mais na ideia de se removerem os obstáculos que possam contrariar a marcha vertiginosa dos loucos ou incorrigíveis do que no de diminuírem os riscos num trânsito normal, e disciplinado e seguro.
Soluções por sinal bem fantasiosas, nalguns casos.
Houve, por exemplo, quem alvitrasse o corte de todas as árvores que bordam as estradas! Nem mais, nem menos!
Realmente seria o que se chama «cortar o mal pela raiz» e, portanto, uma cura radical! ...
Mas, afinal, imaginária, pois ao instigador deste crime de lesa-natureza, apesar da boa fé das suas intenções, não ocorreu a circunstância de, além de amigas, acolhedoras e cenário de beleza paisagística e fontes de receita, as árvores serem um inegável elemento de defesa contra mal maior, como o são também as paredes, os muros, os marcos e outros resguardos; e, de resto, sucede geralmente que, se os veículos se dirigem contra as árvores, é porque já vão desviados de uma linha de rumo normal e muitas vezes já em direcção a precipícios onde se projectariam com muito mais funestas consequências do que as dos choques contra um obstáculo intermediário e que, até certo ponto, poderá ser providencial.
Também eu, sem ter a pretensão de dizer a última palavra - então como agora -, já indiquei nos fundamentos do aviso prévio algumas das providências ou soluções que julgo urgentes e indispensáveis, além da revisão do Código da Estrada. E, dando como reproduzidas as razões que então invoquei, posso concretizar as principais em duas simples expressões, ou sejam educação cívica e fiscalização maior ou menor conforme o grau daquela.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quando se diz que a normalidade do trânsito rodoviário se concretiza num caso de educação, isto, como é óbvio, não significa que basta aprender as suas normas reguladoras, pois trata-se igualmente, e acima de tudo, de um problema de educação cívica.
O Sr. Augusto Simões:- Muito bem!
O Orador:- Educação cívica dos condutores e dos peões, isto é, de todos os utentes das ruas e das estradas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Educação cívica ministrada desde a escola primária conjuntamente com o ensino das regras do trânsito, segundo o plano concebido no tardio Decreto-Lei n.º 42 994, de 28 de Maio de 1960, onde, expressamente e bem, se recomenda que o ensino seja objectivo, prático e atraente e se diz. em certo passo, que deve procurar-se que as crianças ganhem progressiva consciência dos seus deveres cívicos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Está certo, certíssimo. Ponto é que o Estado o faça cumprir tão exactamente como ali se contém.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Ainda a propósito da educação cívica da mocidade e do ensino das regras do trânsito, diz o Manuel d´Enseignement de la Circulation, du Touring Clube da Suíça:
É necessário começar pela mocidade, pois os utentes das estradas devem habituar-se desde a infância ao respeito pelas regras do trânsito. Só a escola está em condições de formar uma geração de seres convencidos das suas responsabilidades quando usam as estradas.
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E, noutro passo, acrescenta, que evitar-se-iam muitos sofrimentos e a perda de grande número de vidas se se criasse na nova geração o sentimento de responsabilidade de que todo o utente devia estar animado.
Também a família tem importante papel a desempenhar; e pode ser eficientíssima a colaboração da Igreja II de todos os organismos católicos, onde se recomende insistentemente a obediência à disciplina do trânsito e se faça ter sempre presentes nos espíritos os 1.º e 5.º Mandamentos da Lei de Deus, que obrigam a amar o próximo e a não matar.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sustentei no aviso prévio que não deve imaginar-se que a colaboração da igreja não é própria do múnus sacerdotal, pois, em 1957, o Papa Pio XII revelou o seu propósito de cominar sanções canónicas explícitas contra os que desafiam ao volante o 5.º Mandamento; e, repetidamente, o actual Pontífice tem recomendado prudência aos automobilistas.
E, a propósito, apontei também o exemplo de um bispo de La Fayette ao negar funeral católico aos que, a conduzir, matem por criminosa negligência, e um eclesiástico de Montreal, maior de Calgary (província de Alberta), ordenou que, por cada acidente mortal, tocassem durante uma hora os sinos das dezasseis igrejas da localidade o se pusessem as bandeiras a meia-haste.
Além da escola, do lar e da igreja, todos os demais meios que sejam manifestos contributos para aquela educação devem ser empregados, sempre e em toda a parte, como na radiodifusão, no cinema, nas associações, em conferências, nas Casas do Povo, nos sindicatos, nos quartéis, nas fábricas e oficinas e na distribuição em todas as vilas e aldeias de pequenos folhetos com as regras fundamentais do Código e das posturas; tudo isto sem dispensar, é claro, a continuação da preciosa colaboração assídua das revistas desportivas e de toda a imprensa. como está sucedendo, com notável solicitude e interesse, como já referi.
E a fiscalização?
Os agentes da Polícia de Viação e Trânsito, a par dos seus superiores hierárquicos na Direcção e nos comandos, são credores de elogio pela dedicação, pela solicitude e pela forma diligente e correcta como procedem. Fazem o que podem. Suponho que não há discordância de opiniões a este respeito.
Simplesmente, o número de agentes é insuficientíssimo, pois, para. poderem exercer fiscalização e acção constantes o rigorosas nos 17 016 km de estradas nacionais, careciam de ser dotados do dom da ubiquidade. Basta dizer que um 31 de Dezembro de 1959 os guardas eram 485, empregados em todos os serviços externos e internos, e em 31 de Marco de 1962 eram 518, ou sejam apenas mais 33.
E o seu equipamento é também escasso sob todos os aspectos: 189 automóveis e motociclos em 1960 e 152 em 31 do Dezembro de 1961, sendo também este o número existente em 31 de Março de 1962! Isto sem falar na escassez da aparelhagem moderna necessária para o controle do trânsito e para uma acção rápida e eficiente.
Do exposto resulta o que se vê ... e o que não se vê. O que só vê é a trágica indisciplina total nas estradas; ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ... o que não se vê são brigadas da polícia!...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ... Andam-se léguas e léguas, fazem-se percursos enormes sem encontrar sequer uma!
O Sr. Amaral Neto: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: - Faz obséquio.
O Sr. Amaral Neto: - V. Ex.ª referiu há pouco, em relação a determinado distrito, o número de brigadas em actuação. V. Ex.ª não estendeu a sua indagação a outros distritos? E não inquiriu se havia alguma proporção, positiva ou negativa, entre o número de desastres registados e o número de brigadas em serviço? Seria interessante!
O Orador: - Isso dependia também do trânsito, e ser-me-ia difícil de apurar.
O Sr. Costa Guimarães: - Quero apenas referir que, ao vir do Norte para o Sul, percorrendo parte da estrada n.º 1, apenas vi uma única brigada móvel. Isto, em 320 km, é elucidativo, creio eu.
O Orador: - É frequentíssimo. Isso em todos os dias, isso a todas as horas. E o resultado é que, sem receio de as encontrar, antes quase na certeza de que não as encontram, e, portanto, seguros da impunidade, normalmente os numerosos utentes das estradas criam ou correm perigos em cada instante.
Basta dizer que, ultimamente, as estradas têm sido percorridas em serviço de rotina apenas por 60 agentes em motociclos e 54 em 27 automóveis, ou seja um total de 114 agentes para 17 060 km! Um átomo de brigada por quilómetro!
Notemos ainda que os postos fixos são muito poucos.
Assim, como podem cumprir-se e fazer cumprir as determinações legais?
Um exemplo só: se nos competisse a denúncia - aliás justificada-, quantos e quantos podíamos fazê-la, contra os condutores dos camiões, que constantemente ultrapassam os carros ligeiros quando estes empregam velocidade superior à máxima que àqueles é permitida pelo Código e, obrigatoriamente, trazem estampada na sua parte posterior, ou sejam 40 km ou 50 km à hora! Ao exposto acresce que o grande aumento dos serviços internos, provocado especialmente pelo expediente e pelo número de autos e processos, é de tal ordem que ao pouco pessoal ali empregado é impossível dar-lhes o seguimento rápido necessário, inconveniente derivado também da falta de maior desmembramento desses serviços.
São caros os serviços da Polícia de Viação? Sem dúvida. Mas, meu Deus, a vida humana, repito, não tem preço e o respeito por ela impõe todos os esforços e todos os sacrifícios a quem tem de suportá-los.
De resto, as receitas mais importantes provenientes da actividade atingem, sob as várias rubricas, centenas de milhares de contos anualmente.
Em 1961, por exemplo, essas receitas foram de cerca de 968 000 contos.
É certo que uma parte dos vultosos saldos tem destino legal, traduzido em elevados subsídios, e suporta outros encargos, que, embora justificados, não deixam porventura de ser passíveis de revisão.
Pensando e dizendo o que penso sobre a insignificância do quadro do pessoal e a exiguidade das dotações, estou em boa companhia, pois louvo-me no próprio modo de ver do anterior e do actual Ministro das Comunicações.
Assim, já em 1957 o Sr. General Gomes de Araújo, na sua resposta sobre o meu segundo aviso prévio, disse que o pessoal não tem realmente aumentado na proporção do aumento da circulação, é exíguo para as necessidades, e
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revela que, numa previsão orçamental, se tinha pedido o aumento efectivo, aliás modesto, de 50 homens e um reforço de verba para carburante e ajudas de custo. E o actual Ministro, Sr. Eng.º Carlos Ribeiro, em entrevista concedida ao Diário Ilustrado, confessou a insuficiência dos quadros e de meios financeiros e acrescentou, a propósito, que, embora muito se tenha feito, muito há ainda a fazer.
O Sr. Ministro das Comunicações não está adormecido sobre o horrível panorama que se lhe depara, pois já promulgou algumas medidas e outras se anunciam, entre as quais o seguro obrigatório da responsabilidade civil para todos os veículos motorizados, que está a ser estudado por uma comissão especial. Já o sugeri numa das 25 conclusões do meu aviso prévio de 1949, e também no de 1957, e tem sido aconselhado na imprensa e por outras vias.
Mas nada feito até agora!
O resultado é que todos ou alguns dos treze ou mais países da Europa em que aquela obrigatoriedade existe exigem o depósito, nas fronteiras, de uma quantia elevada que substitua o seguro dos carros que as transpõem.
Isto já seria bastante para se dever entrar no caminho que, segundo parece, vai agora seguir-se; mas acresce que, como já tive ocasião de acentuar, sem este seguro grande parte dos danos causados e das indemnizações arbitradas poios tribunais ficam incobráveis devido ao estado de insolvência dos responsáveis.
Tenho de terminar, porque julgo ter esgotado o tempo regimental; e, de certeza, abusei da benevolência de V. Ex.ª e dos meus- Colegas, que tão generosamente me ouviram.
Devo a Deus a graça de em 42 anos de condução não me ter acontecido qualquer acidente de viação que mereça contar-se, mas trago sempre o credo na boca, e às vezes lembro-me de que, em cada esquina, em cada curva e em cada encruzilhada, vou encontrar o tal «Diabo» que vi «atrás da porta» quando, menino o moço, num velho carroção arrastado por possantes bois, meu Avô me levou a ver o grande actor Vale representar no teatrinho da minha terra.
Sr. Presidente: a credencial que me conferem a certeza da razão e o respeito que devemos ter pela vida humana levam-me a terminar com um caloroso apelo ao Governo, e especialmente aos Srs. Ministros das Comunicações, das Finanças e da Educação Nacional, para que, urgentemente e de vez, se promulguem todas as medidas necessárias e especialmente se organizem, desmembrem e completem devidamente os serviços, se aumentem substancialmente os quadros e seus equipamentos, se. estabeleçam as dotações indispensáveis, e, enfim, se faça tudo o necessário para se pôr termo à clamorosa situação actual do problema do trânsito rodoviário.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sem isto, todas as medidas avulsas serão praticamente inúteis, pois a maioria dos portugueses, seja qual for a sua categoria, refractários como são ao cumprimento das leis, continuará a votar o seu absoluto desprezo às que existam sem focai em e sem atingirem na sua estrutura e em toda a profundidade todos os aspectos basilares do problema no seu conjunto. De outro modo, isto é, se os que tiverem de executá-las e fazê-las cumprir não estiverem - como não estão - habilitados com os meios indispensáveis para esses fins, os responsáveis não são eles: o responsável é o Estado.
Tenho dito.
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Augusto Simões: - Requeiro a generalização do debate, dada a manifesta importância dos assuntos versados pelo Sr. Deputado Paulo Cancella de Abreu.
O Sr. Presidente: - Está deferido o requerimento de V. Ex.ª e considero, pois, generalizado o debate. Tem a palavra o Sr. Deputado Folhadela de Oliveira.
O Sr. Folhadela de Oliveira: - Sr. Presidente: para além de uma tradição, que muito gostosamente cumpro, quero dirigir a V. Ex.ª as minhas sinceras homenagens e o testemunho do meu apreço e consideração.
Fui educado em ambiente de entusiástica e militante fé nacionalista. Por isso, desde muito jovem me habituei a ouvir citar o nome de V. Ex.ª com vivo respeito e grande estima. E esse respeito, essa consideração, com o correr dos tempos, foram adquirindo volume e consistência maiores na medida em que por mim eram conhecidas as excepcionais qualidades que exornam a personalidade de V. Ex.ª
Se a fulgurante inteligência do Prof. Doutor Mário de Figueiredo deixou um rasto luminoso na gloriosa Universidade de Coimbra, o génio político o acendrado patriotismo demonstrados no exercício de tantos e tão elevados cargos da vida pública da Nação impõem-no ao respeito e admiração de todos os portugueses.
É V. Ex.ª, Sr. Presidente, credor das maiores homenageais o orgulho-me de ter oportunidade do as prestar. Peco que as aceite - e muito modestas elas são -, bem como o testemunho da minha profunda admiração e, permita-me V. Ex.ª, uma humilde mas muito sincera amizade.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: o mundo de que fazemos parte, não sei só por felicidade ou infelicidade nossa, vive dominado pela ânsia de velocidade. Pareço estarmos todos empunhados na grande corrida onde apenas são premiados os que chegarem à meta em primeiro lugar.
Trabalha-se febrilmente nos laboratórios, equipam-se as oficinas, aperfeiçoa-se a técnica, consciencializam-se as mentalidades, adestra-se o binómio homem-máquina, tenta-se o que parecia impossível para preparar e garantir as condições julgadas indispensáveis ao êxito.
O ritmo veloz que a vida impõe ao homem de hoje exige que individual e colectivamente, o esforço se conjugue para a perfeição e eficiência.
Tudo requer uma regulamentação apertada, a não permitir desvios ou improvisações, antes a exigir absoluta , disciplina, sob pena de se comprometer o resultado final. Em todos os sectores da actividade a preocupação dominante de rapidez torna, os homens cada vez mais interdependentes e aumenta, nessa proporção, o risco da sua própria existência.
No ambiente excitante dos nossos dias surgem, nascidos do ambiente, problemas que de momento a momento são maiores, multiplicando assim a dificuldade da sua resolução satisfatória.
Vivemos, dizia, no signo da velocidade a impor o ritmo da nossa actividade. Essa é uma constante da época. Não podemos ter pretensões de pautar a nossa existência em compasso mais lento. Se o fizermos, os mais rápidos ultrapassam-nos e colocam-se na vanguarda. Temos de aceitar as regras do jogo como elas são se queremos jogar, o que implica também que nos preparemos para as consequências, do mesmo modo que ambicionamos o sucesso.
Autêntico flagelo que paira sobre a humanidade, até, e principalmente, em tempo de paz, flagelo que chega a ceifar milhares de vidas num só dia, o acidente de viação está no autêntico plano da actualidade mundial.
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Numerosos são os congressos e reuniões internacionais em que o problema do trânsito se estuda em todas as suas causas e consequências, daí jorrando mais luz para a sua regulamentação e uniformização.
Autorizadíssimas vozes têm abordado os problemas derivados da circulação rodoviária. A Igreja cada vez mais se debruça quanto ao aspecto moral que o acidente de viação envolve, cabendo a SS. SS. os Papas Pio XII e João XXIII a demonstração de posições bem inequívocas.
Por todos os lados incentivam-se campanhas de segurança, sugerem-se medidas que os construtores de veículos aproveitam, divulgam-se as normas de trânsito, realizam-se obras de defesa, activa-se a propaganda e exemplificação nas escolas, enfim, entidades públicas e particulares procuram, em movimentos controlados, fazer diminuir a chamada carnificina das estradas e minorar as suas consequências.
Entre nós ...
Falar de acidentes de transito em Portugal é, antes de mais, o reconhecimento de uma realidade dolorosa e que nos envergonha, dado o seu elevadíssimo número, quer em relação ao parque nacional, quer já tendo em conta a extensão das nossas estradas.
Neste assunto ocupamos na Europa, infelizmente, lugar cimeiro. Mas a proporção vexa-nos sobremaneira, visto que a rede de estradas e o número de veículos é inferior, por margem muito larga, ao de muitas outras nações, que, em tal capítulo, ocupam lugares bem modestos.
Reportando-me a elementos colhidos no Anuário Estatístico da Direcção-Geral de Transportes Terrestres respeitante ao ano de 1961, circulavam na metrópole 205 149 mitos ligeiros, 25 903 autos pesados, 26 895 motociclos e 9765 tractores, o que perfaz um total de 267 176 veículos, que se distribuíam numa rede de estradas nacionais e municipais com a extensão de 27 909 km.
Ora naquele ano verificaram-se 20 756 acidentes de viação, compreendendo 14 736 de que resultaram ferimentos e 699 mortais, subindo a 738 o número dos que faleceram.
Os números crescem de ano para ano e forçoso é chamar a atenção sobre esta assustadora corrida para a morte. Em 1961 houve mais 2631 acidentes do que em 1958 e, consequentemente, tombaram nas estradas mais 164 pessoas.
E já que estou a usar números, procurarei torná-los menos áridos, tentando dar elevo, que a estatística permite, a certos aspectos talvez mais expressivos.
Assim, perpassando ao longo dos extensos algarismos fornecidos pela publicação a que me referi, posso concluir que, atingido o volume de 267 176 veículos pelo parque motorizado nacional precisamente no ano em que ocorreram 20 756 desastres, um em cada treze veículos contribuiu para acidentes de trânsito! Isto também quer dizer que poderia assinalar-se um desastre em cada 1344 m das nossas estradas. Ou, à semelhança do que se faz noutros países, o que seria macabro -mas talvez, por isso mesmo, mais susceptível de meditação -, uma cruz erguida de 37 km em 37 km, rememorando vidas perdidas, quantas vezes por criminosa negligência dos utentes da estrada. Relembro que estes números se referem apenas ao ano de 1961.
Razões várias concorrem para o elevadíssimo número dos acidentes entre nós verificados. Mas não se divorcia da realidade quem imputar à falta de educação cívica dos utentes da estrada a causa primeira dos desastres. Ignorância, desleixo, imprudência, falta de observância de deveres e de obrigações são pecados que afectam, em larga escala, condutores e peões.
Uns e outros necessitam da estrada, que foi construída para benefício de todos e para que todos se sirvam dela. Por isso, é indispensável que cada um se compenetre do seu dever, não esquecendo que das suas mãos depende a sua vida e a vida de muitos outros.
O veículo é hoje, mais do que nunca, instrumento de trabalho. Saber utilizá-lo convenientemente, conscientemente, para além de dever cívico, constitui imperativo moral, que não pode ser afastado ou diminuído sob pena de falta grave.
Para além da ausência de educação cívica que se verifica neste aspecto da vida nacional, há factores de outra natureza que contribuem activamente para a dificuldade do nosso trânsito.
Destaco, como principais, a incompleta aprendizagem dos condutores, a deficiente fiscalização, o traçado antiquado e mau estado do pavimento de certas estradas.
Entendo ser erro persistir nos exames de condução tal como se vêm realizando. Estes exames constam, quase só, da execução de algumas manobras, mais ou menos difíceis, e de curta prova de condução em cidade. Ora a prática demonstra que dominar um veículo em espaços pequenos também é necessário, mas é, só por si, muito pouco. Guiar um veículo em cidade é deveras diferente e mais simples do que conduzi-lo na estrada. Basta atentar que a marcha obrigatoriamente moderada pelo excesso de movimento, a maior disciplina de peões, uma quase inexistência de ciclistas fazem a condução em cidade mais condicionada a algumas regras elementares.
Penso que falta, nos exames de condução, uma larga prova em estradas de características várias ...
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... e se possível até a abranger a condução diurna durante as horas de movimento, bem como um teste nocturno, em que o examinador efectivamente possa observar as qualidades do condutor.
O Sr. Alberto Meireles: - E à velocidade que, normalmente, se anda nas estradas.
O Orador: - Inteiramente de acordo.
A obrigatoriedade de carta para ciclistas poderia vir melhorar, em certo grau, o baixo índice do nível de condução.
Tal não sucedeu. E não sucedeu porque concelhos conheço onde tais cartas se conseguem sem que os examinados precisem de sair de suas residências. Noutros casos, limitam-se a dar pequenos passeios, pedalando em volta dos jardins que circundam as câmaras municipais, sob os olhares complacentes de, quantas vezes, incompetentes examinadores.
Qual o resultado? Está bem à vista.
Após larga campanha da imprensa, paralela à de algumas entidades ligadas ao problema rodoviário - donde quero destacar o Automóvel Clube de Portugal, sempre oportuno nas suas sugestões impregnadas de esclarecida visão nacional -, o departamento competente iniciou rigorosa fiscalização sobre os ciclistas. Em dois meses do ano findo, Outubro e Novembro, foram levantados 19 791 autos de transgressão.
Urge que se continue incansavelmente neste rumo, tão tarde iniciado, para se educarem os ciclistas, que, através de seu normal descuido, constituem perigo iminente para a segurança na circulação.
Mas este rigor de fiscalização convém ser alargado a todos quantos utilizam as estradas.
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A anarquia que tão frequentemente se verifica nas nossas estradas é favorecida pela quase inexistência de fiscalização. Não é raro percorrer-se 400 km, por itinerários principais, sem se nos deparar qualquer brigada da P. V. T. Com tristeza se verifica o exíguo número de agentes daquela prestimosa corporação, número que não tem crescido, longe disso até, na proporção do aumento da circulação rodoviária.
O Sr. Alberto de Meireles: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: - Faz favor.
O Sr. Alberto de Meireles: - Já há bocadinho o Sr. Deputado Alberto Costa se referiu a este assunto, e eu acrescentarei que nas estradas da Europa a frequência de fiscalização não é, em regra, superior à nossa. Tenho bem presente que ainda este ano, quando viajei através da Europa, em Espanha encontrei uma única brigada e essa de reparação automóvel, iniciativa aliás excelente da Guardia Civil.
Em França, de Irun a Paris, encontrei o habitual enxame de polícia militar da N. A. T. O., mas essa polícia não tem função específica de fiscalização do trânsito automóvel civil. Ora, do facto de se vir de Guimarães aqui ou vice-versa, sem encontrar uma brigada, não me parece poder inferir-se que em Portugal a fiscalização é inferior à que se encontra através da Europa.
O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - É um mal geral.
O Sr. Alberto de Meireles: - Mas talvez menos sensível lá fora, por haver mais disciplina.
O Orador: - Não possuo elementos para poder comparar a fiscalização em Portugal com a de outros países da Europa. Apenas direi que, em viagens na Europa, a tenho encontrado com frequência.
O Sr. Alberto de Meireles: - Certo é que, em épocas de férias, aglomerações de trânsito e greves e outras eventualidades, já hoje felizmente mais raras em França, se encontra maior número de brigadas de trânsito, e isso é compreensível.
O Orador: - Agradeço a V. Ex.ª a sua intervenção.
O País espera que, efectivamente, se cumpra o que o Sr. Ministro das Comunicações anunciou no ano findo, acerca da remodelação da Polícia de Viação e Trânsito, quando disso querer torná-la «mais de estrada e menos de gabinete».
Outro factor que alimenta o impetuoso caudal dos acidentes de viação é o traçado, a defesa e sinalização e o pavimento das nossas estradas. Nem sempre se tem procedido, com a urgência necessária, às obras de construção de variantes e à regularização do traçado das vias públicas. Nem sempre a sinalização aparece, e em numerosos casos há evidente engano na sua colocação. No aspecto da defesa e demarcação da estrada, muito há a fazer pela segurança do trânsito.
Porém, mais perigoso talvez do que a dificuldade de traçado é o estado actual do pavimento do muitas estradas.
Não pode dizer-se em justiça que não tenhamos estradas de bom nível, que desmereçam em confronto com as que atravessamos no estrangeiro.
O Sr. Alberto de Meireles: - Muito bem!
O Orador: - Afora a Alemanha e a França, e em parte a Itália, os nossos itinerários principais podem considerar-se em pé de igualdade com os dos restantes países da Europa. Possuímos até uma rede de ligações secundárias reputada razoável.
Todavia, choca a sua má distribuição. Há zonas consideradas privilegiadas (pelo interesse económico, densidade de população, localização turística) e que estão francamente bem servidas. Outras há que, menos centrais, mais desfavorecidas, não possuem aquele mínimo que pode ser exigido. Há grandes manchas vazias que deixam transparecer atrasos que é necessário solucionar. E se é justo que o Estado favoreça as regiões onde o espírito de iniciativa das suas gentes criou poderio económico e, portanto, riqueza para a Nação, justo é também que o Estado não esqueça as que, por pobreza dos habitantes ou por falta de recursos do ambiente, não conseguiram safar-se da mediocridade em que vivem.
Temos, por essa província fora, tantas estradas cuja pavimentação é de interesse vital para o desenvolvimento dos concelhos que atravessam! Tantas estradas que obrigatoriamente se esquecem por serem pouco menos que intransitáveis e obrigando, por via disso, à utilização de longos percursos, prejudiciais no tempo, no gasto e no prazer! Tantas estradas que só com coragem ou por extrema necessidade se percorrem ...
Permita-se-me um desabafo que suponho não ser deslocado neste meu apagado trabalho: meus olhos sobem até às esquecidas regiões do Minho e vem-me à ideia que alguns dos seus concelhos, pobres, abandonados, entregues a eles mesmos (autênticos enteados compelidos a viver lado a lado com os filhos queridos), são hoje servidos por estradas nacionais em tão precário estado que são convite expresso à sua não utilização.
Dói-me que regiões do distrito de Braga, como, por exemplo, Celorico, Cabeceiras de Basto, Vieira do Minho, terras tão corajosas e resignadas no seu sofrimento, sejam obrigadas a viver servidas por acessos que pouca diferença fazem, salvo na largura, dos carreiros desbravados pelos rebanhos nas serranias.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Nem lhes serve de elemento de valorização o interesse nacional que tais regiões tenham efectivamente ou possam vir a ter servidas por melhores vias de comunicação. Pobres delas! Arrastam-se com humilde dificuldade e parece quererem obrigá-las, para sempre, ao conformismo da sua desoladora situação.
Apontados alguns aspectos que julgo de grande importância como causadores de acidentes de viação, procurarei, dentro da modéstia dos meus limitados recursos, falar de aspectos das suas consequências.
Verificado e participado o acidente, inicia a máquina judicial a sua investigação. A instrução do processo faz-se com base na participação enviada a juízo. Salvo o caso em que seja denúncia da P. V. T., a sua elaboração é deficiente e pode dizer-se que se perdem, desde logo, numerosos indícios de incalculável interesse. Não raro sucede também que, por excesso de serviço ou quaisquer outras razões, a inquirição é conduzida por encarregados da instrução de processos.
Lêem-se depoimentos de imprecisão confrangedora, onde se nota a ausência de resposta a questões fundamentais, contrabalançada, tantas vezes, por excesso de pormenores inúteis. E se a isto acresce a hipótese, vulgar também, de depoimentos por deprecadas, então o caos é total, visto que a inquirição nunca é dirigida objectiva-
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2032 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 80
mente. Ao agente cio Ministério Público ou à acusação deparam-se vultosas dificuldades para a caracterização dos factos e seu perfeito enquadramento.
O julgamento criminal de um acidente de viação é, entre nós, motivo de gravíssimas preocupações, pela dificuldade que reveste a boa decisão da causa.
O direito da estrada constitui hoje um ramo de direito próprio, quer através dos elementos caracteristicamente técnicos de que deve lançar mão, quer já pelo seu cunho de particularidade no campo de aplicação.
Há manifesta necessidade da sua entrega a tribunais especializados, auxiliados pela técnica e assentes na preparação cuidada dos julgadores e investigadores.
De modo algum a criação de tribunais especializados para casos da competência do Código da Estrada viria a constituir perda de atribuições dos tribunais comuns ou escândalo pelo facto de se afirmar ser necessária preparação mais específica aos julgadores.
Hoje cada vez com mais frequência se legisla a criação de tribunais especiais. Isto quer dizer que também os próprios tribunais comuns se especializam, na medida um que a matéria da sua competência tem sido reduzida pela saída do ramos de direito que dantes lhes estavam atribuídos.
Mas continuarmos, como até aqui, a ver julgar mal, atribuindo, por sistema, culpa ao mais pesado ou mais veloz, só por o serem, ou ver, por comodidade e compaixão, fixar culpas concorrentes ou graduando-as sem critério, é contribuir para o desprestígio da justiça, sancionar monstruosidades e fomentar número maior de acidentes pela esperança radicada nos transgressores de lhes ser dada razão.
No aviso prévio do ilustre Deputado Sr. Dr. Cancella de Abreu, a quem felicito pela sua oportunidade e pela tenaz perseverança com que luta, há uma matéria, a constante da alínea F), sobre a qual me quero deter para apreciação, embora sumária.
Sabido como é que o Código da Estrada adopta o princípio da responsabilidade civil objectiva, maior interesse e actualidade incidem no tão discutido problema da obrigatoriedade de transferência da responsabilidade civil para companhias seguradoras.
Há imensa literatura onde esta questão é apreciada com brilho e objectividade. Destaco, entre nós, um trabalho do distinto advogado Dr. Luís Veiga, publicado no Arquivo Financeiro e Segurador n.º 13, e que constitui um valioso elemento de estudo, quer pela análise da legislação estrangeira, quer pelas conclusões apresentadas.
O assunto é velho nesta Câmara. Foi longamente debatido em 1936, quando surgiu em projecto de lei do então Deputado Sr. Dr. Saudade e Silva e em contraprojecto do Sr. Prof. Doutor Mário de Figueiredo. Um e outro defendiam que a responsabilidade devia ser obrigatoriamente transferida. No entanto divergiam, pois o contraprojecto preconizava a transferência parcial (4/5), enquanto o projecto falava em transferência total.
Foram vivamente atacados o projecto e o contraprojecto.
Apareceram argumentos sérios atendendo ao condicionalismo da época. Sérios mas não decisivos, mesmo naquele tempo.
Bem pelo contrário, os defensores da tese do projecto e contraprojecto aduziram razões válidas e positivas, que, afinal, o tempo se encarregou de tornar ainda mais firmes. Nessa ocasião, na Europa, apenas vigorava seguro obrigatório na Inglaterra, tendo por essa altura sido legislado também na Checoslováquia e na Jugoslávia.
Temeu-se o que seria uma inovação em Portugal, e os impressionados espíritos da época deixaram naufragar uma modificação legislativa que poria cobro à situação imoral que se vem arrastando e que consiste na impossibilidade de cobrança do quantitativo fixado na sentença condenatória, sempre que o réu não possua bens e o veículo seja de ínfimo valor.
Hoje pode afirmar-se que toda a Europa aceitou e solucionou o problema através de medidas legislativas idênticas às que foram propostas em 1936 na Assembleia Nacional.
Ora da oposição levantada à tese da transferência obrigatória da responsabilidade civil creio que um só argumento conserva relativo valor: possibilidade de aumento do número de acidentes, visto que os condutores «descansam mais» por terem seguro, isto é, maior negligência dos condutores. Claro que o argumento não é decisivo, pois a conexão da responsabilidade criminal (e esta nunca pode ser transferida) com a responsabilidade civil é sempre o maior freio à negligência e inconsideração do condutor. Tanto é assim que bastará verificar-se este caso: um condutor sem recursos económicos conduzindo um veículo desprovido de seguro e que lhe não pertence.
Pode perguntar-se: em que é o condutor menos negligente se o veículo estiver seguro? O que ele teme é a responsabilidade criminal que lhe for imputada. Não tem bens que garantam a indemnização nem é proprietário do automóvel. Hipóteses como esta são demasiado concorrentes a partir do tempo em que os veículos passaram a ser instrumentos de trabalho. Conserva-se o valor, embora relativo, do argumento apenas nos casos em que o veículo sem seguro é conduzido pelo seu dono. E a única hipótese em que se encontra maior razão de alerta do condutor.
Todas as outras críticas formuladas à questão pode dizer-se que perderam o valor, mesmo secundário, que alguma vez tiveram.
Dificuldade para o turismo em Portugal, risco de insolvência das companhias seguradoras, excessivo recurso aos tribunais, saída de divisas para os países de origem dos seguradores, encarecimento nos transportes, possibilidade de monopólio na fixação dos prémios, foram tantos outros argumentos usados por ilustres oradores que intervieram no debate.
Subsistem hoje estas razões? Creio bem que não.
O turista em nada é afectado, pois os proprietários dos veículos procedem de países onde o seguro é obrigatório e, por isso, vêm prevenidos. Mesmo no caso de no país de origem não haver legislação nesse sentido, é extremamente improvável que alguém se aventure fora das suas fronteiras a conduzir uma viatura sem seguro. Mas, mesmo que isto acontecesse, há sempre o recurso cómodo de um contrato de seguro temporário, outorgado a cobrir o período provável da demora de viagem, elaborado no posto fronteiriço de entrada.
O risco de insolvência de companhias seguradoras é questão muito remota, mas, mesmo assim, essas empresas merecem mais crédito do que os próprios segurados.
Verifica-se, com frequência, o recurso aos tribunais, o que não quer dizer que não haja também compreensão e muitas vezes evidente boa vontade na fixação particular das indemnizações. Como profissional de advocacia posso afirmar que tenho resolvido tantos problemas de indemnizações no escritório como nos tribunais.
Não subsiste como argumento dizer-se que, sendo estrangeiras muitas companhias seguradoras, a obrigatoriedade de seguro faria carrilar para lá divisas necessárias ao País. Mas afirmava-se também que o seguro obrigatório acarretava número crescente de acidentes. Assim, a saída de dinheiro dos prémios era compensada pela entrada de indemnizações a pagar. Argumentos, aliás, contraditórios.
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Acerca do encarecimento dos transportes pode dizer-se que os preços são iguais entre os camiões segurados e pequena a quantidade dos que não transferiram a responsabilidade civil.
Também não se afigura de valor efectivo o argumento de previsão de monopólio na fixação das taxas e dos prémios, em virtude de entendimento entre as empresas seguradoras. O Governo teria sempre facilidade em solucionar qualquer tentativa deste género.
E não é hoje. válido dizer-se, como se disse em 1936, que o seguro obrigatório para um tractor, além de pesado encargo para a decadente lavoura do País, era ideia peregrina, visto tais máquinas utilizarem apenas escassos metros das estradas que atravessavam ...
As desvantagens que o seguro obrigatório poderia trazer não são de molde a invalidar os benefícios inigualáveis da sua adopção.
Mas a instituição legal de seguro terá fatalmente de ser estendida a todos os veículos motorizados. Seria obviamente prejudicial e contrário ao espírito e à razão de ser do princípio a adoptar a excepção aberta a qualquer categoria de viaturas que utilizam as estradas. Todos os veículos podem ser perigosos e com todos ocorrem acidentes.
Vai sendo altura de se encararem os problemas de frente e procurar resolvê-los com vontade. Mais do que nunca é tempo de não se perder tempo.
Suponho ser preferível dar execução imediata às soluções mesmo com a certeza antecipada de que necessitam de reajustamento prático do que continuar dezenas de anos aguardando a descoberta do elixir que as tornará perfeitas.
Temos assistido a numerosos casos destes. As ideias são debatidas na mesma época em que o são nos países da vanguarda. Com uma diferença, porém. Enquanto eles as executam, nós, dando largas à notória falta de eficiência que parece possuirmos, gastamos anos e anos dormindo sobre os assuntos, não fazendo nem deixando fazer.
Vem-me à ideia o que se passa com as centrais de camionagem. O Decreto n.º 37 242, que prevê a sua criação, foi publicado em 31 de Maio de 1948. Até à data nenhuma foi construída ou sequer autorizada, porque, parece, há vontade de que sejam executadas à imagem e semelhança das de Lisboa e Porto - que nem sequer estão projectadas. Entretanto, embaraça-se o trânsito nas ruas das povoações, em cargas e descargas de mercadorias, e os passageiros aguardam, expostos ao tempo, a hora do transporte.
Habituámo-nos a assistir à execução de planos empreendidos por certos Ministérios em ritmo francamente veloz. E se há departamentos que, trabalham com eficiência, temos o direito de exigir que os outros cumpram também. Não nos podemos compadecer de demoras inexplicáveis senão por rotina ou mentalidade conformista.
Bom seria que a obrigatoriedade da transferência da responsabilidade para empresas seguradoras ocupasse, pela última vez, tempo à Assembleia Nacional.
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O Orador: - Agradava muito não sermos, também neste assunto, dos últimos da Europa.
Façamos justiça à visão das realidades dos ilustres Deputados que, há tantos anos, quiseram ver aprovada legalmente uma solução de transcendente interesse moral e social. Tão importante que hoje, como se sabe, é matéria acolhida na lei de quase todas as nações europeias.
Nas considerações gerais que antecedem o Decreto n.º 39 672, de 20 de Maio de 1954, faz-se referência à obrigatoriedade do seguro, sendo lícito concluir que não foi legislado «por razões de ordem económica insuperáveis, pois a imposição de tal obrigatoriedade exigiria o estudo e a reorganização de toda a indústria de seguros».
Em Maio do ano corrente o Código da Estrada festeja o seu 9.º aniversário, e o problema, que é urgente e grave e parece até merecer a concordância do legislador, continua na mesma posição sonolenta em que tombou, já lá vão mais de 27 anos ...
Tenho dito.
Vozes:- Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. Amanhã haverá sessão, à hora regimental, com a mesma ordem do dia da de hoje.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 45 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Alberto Ribeiro da Costa Guimarães.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Alexandre Marques Lobato.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
António Augusto Gonçalves Rodrigues.
António Burity da Silva.
António Maria Santos da Cunha.
António Marques Fernandes.
Armando José Perdigão.
Belchior Cardoso da Costa.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Francisco José Lopes Roseira.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João Mendes da Costa Amaral.
João Rocha Cardoso.
Joaquim de Sousa Birne.
Jorge Manuel Vítor Moita.
José Dias de Araújo Correia.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Júlio Dias das Neves.
Manuel Augusto Engrácia Carrilho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Tarujo de Almeida.
Rogério Vargas Moniz.
Rui de Moura Ramos.
Tito Castelo Branco Arantes.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Alfredo Maria de Mesquita Guimarães Brito.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Júlio de Carvalho Antunes de Lemos.
António Martins da Cruz.
António Tomás Prisónio Furtado.
Armando Francisco Coelho Sampaio.
Artur Proença Duarte.
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Augusto César Cerqueira Gomes.
Fernando António da Veiga Frade.
Jacinto da Silva Medina.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís Vaz Nunes.
José dos Santos Bessa.
Manuel Herculano Chorão de Carvalho.
Manuel de Melo Adrião.
Manuel Nunes Fernandes.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Urgel Abílio Horta.
Voicunta Srinivassa Sinai Dempó.
O REDACTOR - Luiz de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA