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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 93

ANO DE 1963 19 DE ABRIL

ASSEMBLEIA NACIONAL

VIII LEGISLATURA

SESSÃO N.º 93, EM 16 DE ABRIL

Presidente: Ex.mo. Sr. Mário de Figueiredo

Secretários: Ex.mo Srs
Fernando Cid Oliveira Proença
Luís Folhadela de Oliveira

Nota. - Foi publicado um suplemento ao Diário das Sessões n.º 84, o qual insere as Contas Gerais do Estado de 1961 (metrópole).

SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 6 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o Diário das Sessões n.º 91.

O Sr. Deputado Amaral Neto apresentou um projecto de lei sobre distribuição de energia eléctrica.

O Sr. Deputado Moura Ramos congratulou-se com a publicação do Decreto-Lei n.º 44 923, relativo ao casamento das enfermeiras.

O Sr. Deputado Sousa Rosal ocupou-se de um concurso para terceiro-astrónomo do Observatório Astronómico de Lisboa.

Ordem do dia. - Continuou o debate na generalidade sobre a proposta de lei de revisão da Lei Orgânica do Ultramar Português.

Usaram da palavra os Srs. Deputados D. Custódia Lopes, Pinheiro da Silva, Vítor Barros, Martins da Crus, Brilhante de Paiva e Lopes Roseira.

O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 10 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai fazer-se a chamada. Eram 15 horas e ss minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agnelo Orneias do Rego.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alberto Pacheco Jorge.
Alberto dos Reis Faria.
Alberto Ribeiro da Costa Guimarães.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Maria de Mesquita Guimarães Brito.
André Francisco Navarro.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
António Augusto Gonçalves Rodrigues.
António Calheiros Lopes.
António Gonçalves de Faria.
António Júlio de Carvalho Antunes de Lemos.
António Magro Borges de Araújo.
António Manuel Gonçalves Rapazote.
António Maria Santos da Cunha.
António Marques Fernandes.
António Martins da Cruz.
António Moreira Longo.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
Armando Francisco Coelho Sampaio.
Armando José Perdigão.
Artur Aguedo de Oliveira.
Artur Alves Moreira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Artur Proença Duarte.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.

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Augusto José Machado.
Belchior Cardoso da Costa.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Alves.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
D. Custódia Lopes.
Délio de Castro Cardoso Santarém.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco António Martins.
Francisco António da Silva.
Francisco José Lopes Roseira.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Francisco Lopes Vasques.
Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Jacinto da Silva Medina.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Rocha Cardoso.
João Ubach Chaves.
Joaquim de Jesus Santos.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos.
José Alberto de Carvalho.
José Augusto Brilhante de Paiva.
José Luís Vaz Nunes.
José Manuel da Costa.
José Manuel Pires.
José Maria Rebelo Valente de Carvalho
José de Mira Nunes Mexia.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Pinheiro da Silva.
José dos Santos Bessa.
José Soares da Fonseca.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Folhadela de Oliveira.
Manuel Augusto Engrácia Carrilho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira
Manuel João Correia.
Manuel João Cutileiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Mário Amaro Salgueiro dos Santos Galo.
Mário de Figueiredo.
Olívio da Costa Carvalho.
Paulo Cancella de Abreu.
Quirino dos Santos Mealha.
Rui de Moura Ramos.
Sebastião Garcia Ramires.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Dias Barros.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 85 Srs. Deputados.

Eram 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está na Mesa o Diário das Sessões n.º 91, correspondente à sessão do dia 16. Se algum dos Srs. Deputados deseja apresentar qualquer reclamação, é agora o momento de fazê-lo. Se não a apresentar, considero este Diário aprovado.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Como nenhum dos Srs. Deputados deduz qualquer reclamação, está aprovado o Diário. Tem a palavra o Sr. Deputado Amaral Neto.

O Sr. Amaral Neto: - Sr. Presidente: pedi a palavra para apresentar um projecto de lei muito simples de articulado e modesto de intenções, pois a mais não me atreveria dentro da noção que tenho das minhas capacidades. Ouso solicitar a benevolência da Assembleia para que emita o voto favorável quando ele venha à sua apreciação.

O projecto é do seguinte teor:

BASE I

Os consumidores de energia eléctrica que hajam pago às entidades distribuidoras os custos de linhas ou instalações novas necessárias à satisfação das suas requisições de fornecimento poderão exigir, dentro do prazo de dez anos, a contar da data da entrada em serviço de tais linhas ou instalações, que os subsequentes usuários das mesmas os reembolsem desses custos, por rateios em proporção das extensões de linhas por cada qual aproveitadas.

BASE II

Competirá às entidades distribuidoras calcular, cobrar e liquidar aos interessados estes reembolsos.

V. Ex.ª, Sr. Presidente, já ,de mais conhece a minha predilecção pelas questões simples, que são as do meu melhor conhecimento, e a que persisto em ater-me, recordando sempre o prudente conselho do velho Apeles.

Sabe, pois, que procuro sempre limitar-me aos problemas que mais afectam a vida e os interesses correntes das gentes dos campos, onde sobretudo vivo, e é o conhecimento de um destes, nas proporções simples que toma nos meios rurais, que hoje me move.

Consta de quase todos, senão todos, os actuais cadernos de encargos de concessões de distribuição de energia eléctrica que, quando um consumidor que não está perto de alguma linha de distribuição ou pretende utilizar potência superior à capacidade das instalações existentes, solicita o fornecimento de energia, a entidade distribuidora é obrigada a satisfazer-lhe a requisição, mas o consumidor é obrigado a pagar as despesas das novas instalações e linhas necessárias para o servir.

Construídas, elas entram imediatamente na posse das empresas concessionárias, de modo que qualquer outro novo consumidor pode vir a beneficiar, esse sem despesas, das instalações acabadas de construir à custa do primeiro. E daí acontecer, na vida prática, haver pessoas que estão à espera que alguém mais necessitado ou mais ousado as mande construir para, sem encargos, se aproveitarem do que o primeiro pagou do seu bolso.

E acontece frequentemente que um primeiro pretendente, cônscio de outros quererem beneficiar depois do seu desembolso, vai protelando a sua despesa, ou porque não deseja sentir-se um contribuinte involuntário para as vantagens dos outros, ou até, às vezes, por um sentimento de natural não colaboração com quem se quer aproveitar dele.

Daí resultam demoras em úteis ampliações das redes ou, nas hipóteses mais simples, resulta, pelo menos, que as empresas concessionárias vão aumentando os seus activos com novas linhas, que só alguns pagam, mas de que muitos beneficiam.

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Não direi a V. Ex.ª que o proveito dos concessionários seja total, porque as redes têm despesas de conservação e, passados tempos, têm até de ser renovadas, de forma que a aquisição não é inteiramente gratuita, mas o que me tem ferido o sentimento de equidade é que haja alguns que sejam levados a suportar a despesa sem que sejam compensados pelos que a seguir gozam dela.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - E este o objectivo do meu projecto de lei. Estranha-se que uma coisa tão simples não tenha ocorrido ao legislador. No artigo 122.º do decreto-lei de 28 de Dezembro de 1960 já há uma disposição que prevê uma espécie de estorno ou atenuação dos pagamentos das primeiras instalações no caso de se destinarem a alta tensão. O objectivo do projecto de lei é estender esse direito a todos os casos, quer seja de distribuição em alta tensão, quer em baixa tensão.

Para os espíritos esclarecidos de VV. Ex.ªs bastará, aliás, debruçarem-se uns instantes sobre o articulado para verem bem a utilidade dele.

Tornar menos dura ou mais leve a vida quotidiana de cada um de nós não pode ser indiferente às atenções desta Assembleia. Julgo, portanto, não ser ousio da minha parte a apresentação deste projecto de lei e quero agradecer desde já a atenção com que VV. Ex.ª o acolherem.

Quero ainda agradecer à Comissão de Economia a boa vontade com que se debruçou sobre ele para os efeitos regimentais e ao seu ilustre presidente o interesse com que se apressou a fazê-la reunir para que o seu parecer pudesse ser proferido a tempo de o projecto ser apresentado antes de encerrada a presente sessão legislativa.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Moura Ramos: - Sr. Presidente: o Decreto-Lei n.º 44 923, que o ilustre titular da pasta da Saúde e Assistência fez recentemente publicar, é um diploma que, não obstante ser pouco extenso, honra sobremaneira quem o subscreveu, pelo conteúdo cristão, humano e altamente moralizador que encerra.

Com a sua publicação veio alterar-se o texto do § 4.º do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 31 913, de 12 de Março de 1942, pondo-se, corajosamente, termo à proibição do exercício de enfermagem às senhoras casadas e viúvas com filhos.

Muito embora fosse do mais fino quilate moral o pensamento do legislador de 1942, o que é certo é que a realidade dos factos e das circunstâncias veio comprovar que se não alcançaram os dois supremos objectivos que o citado diploma se propunha: o de defender a família, forçando as enfermeiras que fossem esposas ou mães a ficarem presas ao seu lar, onde nobre missão lhes estava confiada, não sacrificando o bom governo doméstico aos penosos horários que o serviço hospitalar exigia; e zelar com a maior eficiência da enfermagem hospitalar, exigindo das enfermeiras uma total doação ao serviço a bem dos nossos irmãos doentes e sofredores.

Apesar dos altruístas e humanitários objectivos enunciados, o que é verdade é que o citado diploma de 1942 levantou sérios, honestos e merecidos reparos e protestos, quer nesta Assembleia, através de uma inteligente e desassombrada intervenção do nosso ilustre colega Dr. Melo e Castro, quer através de depoimentos feitos por individualidades de relevo nos campos da cultura e do pensamento, desencadeando-se uma campanha em prol do casamento das enfermeiras.

A nossa imprensa, sempre atenta às causas justas, não deixou de se fazer ouvir, insurgindo-se aberta e frontalmente contra o Decreto-Lei n.º 31 913, que o editorialista do jornal O Século, de 17 de Junho de 1961, chegou a classificar de lei «injusta, vexatória e indefensável, para não dizer também iníqua».

Efectivamente, a lei antiga, não obstante, como já dissemos, os seus bem intencionados propósitos, apresentava-se como contrária à doutrina cristã, às exigências da moral, à nossa sensibilidade e a estes princípios da lei fundamental do País - a Constituição Política de 1933.

Dentro da melhor tradição, a sociedade familiar, como a sociedade conjugal, são um produto da natureza, e não uma construção dos homens.

Pio XI, na encíclica Casti Connubii, dizia:

Fique estabelecido antes de mais nada, como fundamento firme e inolvidável: que o matrimónio não foi instituído nem restaurado por obra dos homens mas por obra divina ...

O carácter natural da família e do matrimónio não pode, pois, ser negado. E porque não é invenção humana mas sim de instituição divina, a essência do casamento está inteiramente fora dos limites da liberdade do homem.

As leis fundamentais da família não podem ser usurpadas por autoridade alguma terrena. O Estado, por consequência, como o proclamam, desde há muito tempo, os Sumos Pontífices, não pode negar e abolir os direitos da família que a ele são anteriores.

E é ainda o mesmo Pio XI a dizer noutra passagem da encíclica referida:

O acto livre da vontade, pelo qual uma e outra parte entrega e aceita o direito próprio do matrimónio, é tão necessário para a constituição do verdadeiro matrimónio que nenhum poder humano o pode suprir.

Do que fica dito parece não haver margem para dúvidas de que a posição da Igreja era e é no sentido de reprovação da doutrina que exigia o celibato para a enfermagem hospitalar feminina.

Por outro lado, a vigência da lei antiga veio dar azo a inúmeros casos de mancebia, de filiações ilegítimas, de abortos criminosos e prostituição clandestina, chegando-se ao ponto (ao que me constou) de se realizarem . casamentos de enfermeiras que o não podiam celebrar e que para evitarem ser despedidas dos serviços não faziam averbar nos respectivos bilhetes de identidade o seu novo estado.

Mas além de atentatória do direito natural e fomentadora de imoralidade (não obstante, repetimos, à sua feitura ter presidido a melhor intenção), a lei proibitiva do casamento das enfermeiras era também, na opinião do nosso ilustre colega Melo e Castro, contrária ao espírito de certos princípios constitucionais, já por coarctar as liberdades essenciais consignadas na Constituição Política - livre escolha da profissão e livre escolha de estado -, já por contrariar o disposto no artigo 12.º, que «assegura a constituição e defesa da família como fonte de conservação e desenvolvimento do povo português ...», e o preceituado no artigo 13.º, que afirma «assentar a constituição da família no casamento e filiação legítima».

Dos preceitos constitucionais se infere claramente a preocupação do reconhecimento e defesa do valor institu-

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cional e social da família, a que já alguém chamou «célula mater da sociedade humana», não fazendo sentido que fossem criadas dificuldades à constituição da família por parte de um Estado que tem como trilogia «Deus, Pátria e Família», advogando a protecção desta e colocando-a logo a seguir ao respeito do nome de Deus e à defesa da Pátria.

Ora, só se poderia pôr cobro a esta paradoxal e absurda posição permitindo às enfermeiras a sua inteira realização como mulheres, esposas e mães, acabando de vez com uma instabilidade emocional e angústia do desejo frustrado que a lei antiga provocava e que influíam na sua actividade profissional no mesmo ou maior grau que as possíveis preocupações de ordem familiar.

Foi isto que se veio fazer com o recente Decreto-Lei n.º 44 923, emanado do Ministério da Saúde e Assistência, autorizando o casamento das enfermeiras, facto que constituiu como que uma lufada de ar fresco entrado na vida de uma prestimosa classe, que bem precisava deste acto de justiça.

Louvores e reconhecimento são, pois, devidos ao Governo da Nação e, de modo muito especial, ao ilustre titular da Saúde e Assistência, Prof. Doutor Soares Martinez, pela medida de grande alcance moral, social e político que teve a clarividência e a coragem de decretar e que ficará a assinalar a letras de ouro a sua tão curta como auspiciosa estada na gerência dos problemas assistenciais.

O Governo cumpriu, assim, o seu dever, dando satisfação a uma justíssima reivindicação da classe das enfermeiras. Queira Deus que elas, por sua vez, saibam espargir solicitude, delicadeza e desvelado carinho por todos os nossos irmãos que sofrem e sobre os quais têm obrigação de derramar cristãmente bálsamos de caridade e cuidados sem par de modo a minorar-lhes os padecimentos que os apoquentam.

Só assim bem exercerão a sua tão nobre actividade e corresponderão aos justos anseios de todos quantos terçaram armas nesta árdua luta, que visou contribuir para a higienização física, moral e social do nosso povo.

São estes os votos mais sinceros e veementes que formulamos.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sousa Rosal: - Sr. Presidente: é das atribuições desta Câmara apreciar os actos do Governo ou da Administração.

Ao abrigo deste preceito constitucional, venho, pela segunda vez, fazer um apontamento sobre factos que ofendem legítimos direitos conquistados pela inteligência e amor ao trabalho, dons que Deus dá e os homens devem ter no mais alto apreço. Factos ocorridos no andamento do processo do concurso documental para o cargo de terceiro-astrónomo de 1.ª classe do Observatório Astronómico de Lisboa, o qual teve início em Novembro de 1958 e foi recentemente trancado de maneira insólita. Novos acontecimentos vieram ilustrá-lo, dignos de serem apontados nesta Assembleia, onde a opinião pública tem assento e tem a palavra para louvar atitudes e actos que exaltem as virtudes de uma política que servimos com independência e isenção, e também para condenar procedimentos ou normas que contrariem a pureza dos princípios em que se firma e desejamos ver respeitados em todos os casos e circunstâncias.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Foi na sessão de 21 de Fevereiro de 1961 que aqui falei pela primeira vez sobre este concurso, que então supunha ter chegado ao seu termo.

Nessa altura fiz comentários que me pareceram justos e convenientes acerca da maneira como decorreu o concurso e sobre o seu desfecho, baseado no respectivo processo, que me foi prontamente facultado pelo Ministério da Educação Nacional.

Agora venho comentar o que ocorreu numa segunda fase, solicitado pelo mesmo amor à justiça e com a mais pura intenção política.

Antes de o fazer, seja-me permitida uma ligeira referência à fase anterior, o que tenho como indispensável para quem, não conhecendo os antecedentes, possa seguir o que vou dizer no clima em que o concurso se tem movimentado desde o princípio.

Trata-se de um concurso documental que dura há cerca de cinco anos.

Vieram a ele dois concorrentes:

Um, o preterido, apresentou dezenas de trabalhos sobre astronomia, geodesia, geofísica e meteorologia, ciências que estão na base da preparação de um astrónomo.

O outro, o preferido, apresentou dois trabalhos sobre astronomia não acompanhados de qualquer apreciação.

O júri resolveu com a base nestes documentos, e não havia outros para avaliar do mérito relativo dos concorrentes, e se havia outros fundamentos a considerar, deviam ter ficado exarados nas actas, para que não pudesse ser formulada qualquer hipótese de parcialidade por motivos estranhos à matéria do concurso, inclusivamente por questões de ordem pessoal, que as havia, entre alguns membros do júri e o concorrente preterido.

Encarada a sua vida profissional, pública e privada, não se conhece nada em seu desabono. Além de ser um funcionário competente e dedicado, conforme louvores e referências constantes do processo do concurso, também é tido como cidadão exemplar.

Das actas não consta uma única palavra acerca do juízo formulado sobre o mérito ou demérito dos concorrentes, e podia e devia constar, dado o desequilíbrio entre as provas e a decisão, como aliás aconteceu em outros concursos realizados no âmbito do Observatório.

O júri decidiu por escrutínio secreto, com três bolas pretas contra duas brancas, preterir, em mérito relativo, aquele que, relativamente, tinha provado ter mais mérito, contestando e nivelando num gesto simples e enigmático, que fere com impunidade o valor da actividade profissional e científica do candidato preterido, atestado publicamente, por categorizados homens de ciência em revistas e outras publicações de divulgação científica, conforme consta no processo e dos quais cito agora apenas os nomes: Prof. Danjon, director do Observatório Astronómico de Paris, Doutor N.º Stoyko, director do Serviço Internacional da Hora, Don Martin Lorón, do Observatório de Madrid, Prof. Garnier, do Laboratório de Física de Montpellier, o construtor francês Eduardo Bélin, o Dr. Ëlio Fichera, do Observatório Astronómico di Capodimonte-Napoli, Sir Frank Dyson e Sir Spencer Jones, antigos astrónomos reais do Observatório de Greenwich, Dr. Gujot, director do Observatório de Neuchâtel, D. José Tinoco, director do Observatório de Madrid, Eng.º B. Decaux, director do Laboratório Nacional de Radioelectricidade de França, Eng.º G. Laclavère, da Associação Internacional de Geodesia, D. Ramón Aller, director do Observatório de Santiago (Espanha), Dr. Jorge Sahade, professor de Astronomia e Geodesia da Universidade de Córdova, Dr. J. M. Torroja, professor de Astronomia da Universidade de

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Madrid, Th. Weimer, astrónomo do Observatório de Paris, Gonsejo Superior de Investigaciones Científicas, de Espanha, La Cartographie Mondiale, das Nações Unidas de Nova Iorque, etc.

O processo seguiu os seus trâmites, passando pelos serviços competentes do Ministério da Educação Nacional, até chegar às mãos do Ministro, que homologou o procedimento do júri.

Pode dizer-se, sem grande risco de errar, que este andamento não se fez com completo desconhecimento dos factos, pois andavam no ar, e por distintos lugares, acentuados rumores de uma injustiça.

Preferiu-se, porém, ignorar os factos e satisfazer os escrúpulos de consciência relegando responsabilidades que não podem ser facilmente enjeitadas.

Assim, tudo pareceu consumado. Porém, um recurso do candidato preterido, não sobre a decisão do júri, que não tem apelo uma vez homologada, mas sobre a legalidade da sua constituição, abriu assim uma brecha na arquitectura do concurso que à pressa se pretendeu camuflar.

E debruçado sobre os meios utilizados na sua urdidura que vou apreciar a segunda fase do concurso.

Para me documentar solicitei do Ministério da Educação Nacional, em requerimento apresentado na sessão de 6 de Fevereiro último, a cópia de três actas e um esclarecimento que considerava fundamental para iluminar uma obscura decisão que o júri tinha tomado sem a justificar e era tida como iníqua.

Do que requeri apenas foi satisfeito o que pedi na alínea a) - acta da 3.ª reunião do júri, que veio acompanhada das actas da 1.ª e 2.ª reuniões, que não tinha solicitado por já as conhecer quando da consulta do processo.

Não foi satisfeito o pedido da alínea b) - cópia das actas dos concursos para astrónomos de 2.ª classe, dos candidatos presentes no concurso para astrónomos de 1.ª classe, onde se encontravam os meios de classificação -, nem os elementos referidos na alínea c), para saber a opinião dos serviços competentes do Ministério acerca da maneira de se encontrar a classificação considerada como primeira condição de preferência, uma vez que se havia dado o empate em mérito relativo dos candidatos e por este motivo colocados em igualdade de circunstâncias. O júri, segundo constava e era verdade, tinha igualado a classificação apesar do desigual conteúdo das actas. Os elementos pedidos destinavam-se a medir com bitola autorizada a decisão do júri neste particular.

Por coincidência, é naquilo que não foi fornecido que se encontram os motivos que levam a ter como injusta a nova decisão do júri.

Do conteúdo das actas do concurso para astrónomo de 2.ª classe, donde se tinha que extrair a classificação apontada pelo § único do artigo 102.º do Regulamento do Observatório, como sendo a primeira condição de preferência, tive conhecimento por outra via, o que me habilita a aludir ao que delas consta nas considerações que vou fazer a propósito do que aconteceu na segunda parte do concurso, que nasceu de um recurso no tribunal pleno.

Sabia-se que certas disposições legais não haviam sido cumpridas, e, assim, o interessado levou recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, com as alegações que lhe pareciam ferir mais profundamente os princípios da jurisprudência.

AS alegações desenvolveram-se: contra a constituição do júri; contra a forma de votação; contra o exercício do voto por parte do presidente do júri.

Cerca de dois anos durou o litígio no tribunal, terminando o pleno por dar provimento ao recurso do candidato classificado em 2.º lugar, por uma maioria de dez votos contra dois, em sessão de 18 de Outubro de 1962, data do respectivo acórdão, que, sumariamente, diz o seguinte:

A intervenção como membro de um júri em concurso para um cargo público daquele que não é o expressamente designado na lei violando esta conduz à anulação desse concurso e à consequente nomeação do concorrente que foi por virtude da classificação que tal júri lhe atribuiu.

Perante este douto parecer do tribunal (pleno), diz-se que só havia a obrigação legal e indiscutível de mandar anular o concurso e a nomeação do recorrido e começar de novo. Mas os factos subsequentes dimanados do departamento competente vieram provar o contrário, pois limitou-se a exonerar um dos membros dó* júri que havia sido nomeado ilegalmente (Portaria de 18 de Dezembro de 1962, no Diário do Governo n.º 300, de 26 desse mês).

Quase simultaneamente determinou-se que se reunisse o mesmo júri pela terceira vez, à excepção do vogal exonerado, para se classificarem novamente os candidatos. Engenhosa deliberação, que colocava os candidatos no mesmo ambiente de suspeita parcialidade.

Foi talvez a primeira vez que se reuniu um júri para apreciar o mérito relativo dos concorrentes a um lugar que não existia, pois a nomeação do recorrido não tinha sido anulada.

Como era de esperar, o método escolhido para resolver foi o mesmo ... o escrutínio secreto, e as posições dos membros do júri mantiveram-se. Os resultados foram diferentes, por ter sido posto fora do jogo um suposto atirador de bolas pretas.

Vou referir-me ao que se passou, tendo presente o texto das actas.

Consta da acta, chamada da 3.ª reunião do júri, que este, tendo considerado que já tinha conhecimento de todo o processo, o que os antecedentes punham em dúvida, decidiu proceder imediatamente à votação por escrutínio secreto, como anteriormente e naturalmente sob pressão das mesmas reservas mentais.

A votação para apreciar o mérito absoluto foi desfavorável ao candidato preterido, tendo o presidente feito uso do voto de qualidade a seu favor.

Na apreciação do mérito relativo deu-se um empate, traduzido por duas bolas pretas contra duas bolas brancas. Não tendo o presidente usado o voto de qualidade, foram os candidatos colocados na situação de igualdade de circunstâncias para serem julgados nos termos do § único do artigo 102.º do Regulamento do Observatório, que reza assim:

Em igualdade de circunstâncias serão preferidos os astrónomos de 2.ª classe do Observatório; e destes, quando todos se acharem em igualdade de circunstâncias, será preferido o que tiver obtido melhor classificação no concurso para este cargo; e em igualdade de classificação neste concurso o mais antigo no serviço do Observatório.

Sem uma palavra justificativa, foi consignado na acta que os dois candidatos tinham a mesma classificação no concurso para este cargo. O concurso para este cargo é, nos termos da letra do § único do artigo 102.º do Regulamento do Observatório, que li, o concurso para astrónomo de 2.ª classe (é o concurso de entrada para o quadro do Observatório). Assim se passou à preferência

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seguinte, que era a da antiguidade, e foi beneficiar o candidato preferido.

Vejamos o que se diz deles nas actas dos respectivos concursos para astrónomos de 2.º classe.

Nestas actas não se deram os duelos de mudos registados nas actas do concurso para astrónomo de 1.º classe de que estou a tratar, apesar das opiniões divergentes acusadas pelas votações. Fizeram-se considerações acerca das provas produzidas, que qualificaram os concorrentes com o suficiente para se chegar a uma classificação diferenciada. Na acta referente à admissão ao lugar de astrónomo de 2.ª classe do candidato preterido consta que o concorrente F. se distinguiu bastante dos outros concorrentes, deixando uma impressão de distinção na prova de instrumentos.

Na acta de admissão do candidato preferido o presidente diz que também é da opinião de que, se houvesse de classificar os concorrentes apenas pelas provas práticas, se deviam reprovar todos em mérito absoluto.

Fazem-se outras considerações nas actas, as quais de maneira alguma, por mais fértil que seja a imaginação, podem dar o mesmo valor às palavras com que foram distinguidos nas actas dos concursos que os admitiram e, consequentemente, não se justifica o nivelamento de classificação que o júri ditou para a 3.ª acta do concurso.

Ladeou-se um obstáculo intransponível por força da letra da norma regulamentar que se escolheu para decidir, ignorando-se a primeira condição de preferência, que militava a favor do candidato preterido, e evocou-se a condição seguinte, que favorecia o candidato que se desejava preferir, intenção que, no decorrer do concurso, se revelou ao omitir nas respectivas actas tudo o que distinguia o candidato preterido.

Na primeira parte do concurso não se pesaram e confrontaram os documentos que faziam a prova do mérito e nesta segunda parte não se pesou e confrontou o conteúdo das actas que faziam a prova de classificação nos concursos de astrónomos de 2.ª classe.

Contra esta atitude do júri não há defesa possível, por efeito da doutrina estabelecida pelo conselho da Procuradoria-Geral da República de 20 de Abril de 1939, que é do teor seguinte:

O conselho manteve em toda a severidade o princípio de que a apreciação da aptidão dos candidatos, uma vez determinada pelo júri, não pode ser discutida.

Ainda é digno de nota o facto de o concorrente preterido já ter sido classificado há 31 anos em mérito absoluto no Observatório de Lisboa, para o lugar a que concorreu agora e em cujo concurso o mesmo mérito tem sido posto em causa desde o início sem argumentos e apenas na secura das votações.

O júri era então constituído por sumidades na ciência astronómica, sendo quatro membros sócios da Academia das Ciências e mais um professor catedrático de Astronomia da Universidade de Lisboa.

A atitude agora tomada só encontraria explicação na desvalorização do mérito do candidato; porém, como essa conjectura é desmentida pelo valor dos trabalhos publicados desde então e pelos louvores recebidos pelo seu labor e dedicarão ao serviço, pode alguém tê-la como incontida má vontade, denunciada por quem negou, sem dizer «água vai», o mérito absoluto de um funcionário com 46 anos de bons serviços e que foi tão injustamente ferido e porventura se afastará desgostoso do sector onde prestigiava a ciência e a Nação.

O candidato preterido, usando de legítimo direito de defesa, ainda tentou deter a arbitrariedade de que foi alvo no terreno onde isso lhe era permitido e lícito: dirigiu um requerimento ao Sr. Ministro da Educação Nacional chamando a atenção para a inexplicada e inexplicável decisão do júri na apreciação da primeira condição de preferência, com a ideia de obter uma reconsideração que pudesse ser, à luz e em razão dos factos apontados, uma anulação do decidido infundadamente.

O requerimento obteve o seguinte despacho: «Aguarde-se; uma vez que o requerente anunciou a determinação de recorrer contenciosamente».

Com este despacho aleatório, em que se apontou terreno intransitável, se mantiveram na escuridão os fundamentos de uma decisão que clamava por esclarecimentos, dadas as circunstâncias que a rodeavam e o modo como foi tomada. E, na verdade, o requerente alegou que o fazia para efeito contencioso. Isto podia revelar apenas uma intenção, que o conteúdo dos documentos pedidos aconselharia ou não a concretizar, e nunca para pleitear uma decisão do júri que é considerada um dogma.

A este despacho seguiu-se o da homologação, sancionando a escolha do júri, como é de supor, pelo que depois sucedeu, e pede mais um comentário.

A anulação da nomeação e a nova nomeação fizeram-se simultaneamente por portarias da mesma data - 20 de Fevereiro do corrente ano.

Este hábil despacho, conjugado com a maneira como se iniciou a segunda fase do concurso, dá a nota do papel que teve a Administração no enfrentar e dominar, de modo que pode julgar-se intencional, as consequências do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, com saliente tomada de posição quando entregou as pedras do xadrez nas mãos dos mesmos jogadores, que pelo facto se poderiam julgar, antecipadamente, autorizados a dar xeque-mate usando os mesmos processos arbitrários revelados na primeira parte do concurso.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - O visto do Tribunal de Contas assinalou o termo do concurso.

Deste modo se deu por encerrado o processo deste concurso, que decorreu soprado por ventos dirigidos sempre no mesmo sentido, atropelando as regras do seu natural desenvolvimento e das justas decisões, que foram amortalhadas no silêncio do que era essencial e sepultadas sob a lousa da doutrina de um parecer que tem como não discutíveis as decisões dos júris com todos os sacramentos e muita água benta, levando as borlas categorizadas personagens. Contudo, ouve-se murmurar no acompanhamento, aqui e acolá, que Deus te absolva dos pecados que escondes nas dobras das alvas vestes com que foste encomendado, já que nós, homens justos, o não podemos fazer, em consciência, sem trair os sãos princípios que nos norteiam em todos os actos da nossa vida.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Uma doutrina que limita de certa maneira e em certo espaço o direito de representação ou petição, de reclamação ou queixa, que a Constituição reconhece a todo o cidadão, põe em causa o prestígio do direito e as normas de boa convivência quando não é usada de forma a deixar transparecer a isenção e a razão dos actos que protege.

De outro modo estamos em presença de um poder despótico que não se pode deixar exercer descontroladamente.

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O direito de homologar tem em si implícito o direito de mandar inquirir em caso de reclamação ou dúvida e de dizer «não» quando não tenham sido observadas as regras do jogo.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Quem tem o poder de julgar ou decidir deve ter sempre presente que acima de si está uma sociedade que não se dispensa de julgar e condenar em consciência os seus actos, que, quando injustos, geram sentimentos de desânimo ou de indignação determinantes de atitudes de indiferença ou de desagregação, que não são de fomentar no momento em que a Pátria exige que sejamos todos por um e um por todos.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Contrariar o acesso aos postos cimeiros da vida da Nação dos que se revelem como sendo os melhores enfraquece os comandos e dá uma sensação de insegurança aos comandados. Tenhamos bem presente o que o Poeta nos disse num verso da Epopeia:

Um fraco rei faz fraca a forte gente.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - A confirmar esta verdade temos factos recentes que a todos nos chocaram, quer nos acontecimentos, quer nas consequências.

Se acreditamos no adágio popular que diz que «o que faz arder é que cura», também não deixamos de acreditar no que diz «antes prevenir do que remediar», e prevenir é, para o caso, colocar nos lugares de comando das frentes de combate e na chefia das posições-chaves da retaguarda, tão essenciais como aqueles à sobrevivência e progresso da Nação, os que sejam tidos, comprovadamente, como os mais aptos.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - No que não acreditamos é que a magia do dedo dos senhores compadres e amigos ou a passagem pela água lustral do Poder e seus arredores tenham o condão de transformar papagaios em águias.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta de lei referente à revisão da Lei Orgânica do Ultramar Português.

Tem a palavra a Sr.ª Deputada D. Custódia Lopes.

A Sr.ª D. Custódia Lopes: - Sr. Presidente: como se verifica pela leitura do relatório que precede a proposta de lei em discussão, no qual se historiam, criteriosamente, as fases por que, a partir do liberalismo, tem passado a administração ultramarina, vem de há muito a preocupação do Governo de aplicar aos territórios do ultramar os processos de administração que melhor se lhes ajustem.

O condicionalismo das províncias do ultramar, que resulta não só da sua especial situação geográfica, mas também da enorme diversidade dos seus povos em estádios de culturas diferentes, fez que se estabelecessem para esses territórios leis especiais que, por meio de reformas, se ajustassem cada vez melhor às suas específicas condições e acompanhassem o ritmo crescente do seu desenvolvimento populacional, social e económico, conservando-se sempre o espírito de unidade que os caracteriza e os torna idênticos na diversidade.

Foi, segundo creio, Sr. Presidente, esta linha de rumo que mais uma vez foi seguida pelo Governo e que o levou à revisão da Lei Orgânica n.º 2066, de 27 de Junho lê 1953, num momento em que entendeu oportuno e necessário modificar profundamente alguns aspectos do regime em vigor e actualizar e ampliar outros.

Esta atitude do Governo, embora corresponda a um sentimento tradicional da sua política ultramarina e à aplicação de disposições constitucionais, representa, contudo, nesta difícil época da vida da Nação, em que do exterior se procura perturbar a paz nos territórios do ultramar, a serenidade e firmeza com que encara os seus prementes problemas e a confiança que deposita nos seus povos.

Ao elaborar a proposta de alteração à Lei Orgânica, não receou o Governo fazer as remodelações necessárias à vida administrativa das suas províncias do ultramar, confiado em que a unidade política que nos une é suficientemente forte para que de algum modo possa ser abalada ou afrouxada por tais actualizações e ajustamentos que, antes, pelo progresso que levarão a esses territórios e às suas gentes, serão o reforço dessa mesma unidade que é a força da nossa nação. Unidade que é, na verdade, inabalável, porque provém da própria tradição histórica que levou Portugal à união fraterna e cristã com povos de diversos continentes e raças e se baseia na lei fundamental do País.

Sr. Presidente: ao subir a esta tribuna para dar o meu franco apoio ao Governo da Nação por mais este passo progressivo na vida administrativa das suas províncias do ultramar permito-me salientar alguns aspectos da proposta de lei em discussão e fazer algumas considerações que a sua leitura e estudo me sugeriram.

A maneira como o Governo procedeu na elaboração de tão oportuna quão útil reforma, chamando a participar nela pessoas que, exercendo cargos e funções de responsabilidade no ultramar, têm a vivência dos seus problemas, dá-me a segurança de que as modificações e alterações apresentadas vão ao encontro das necessidades e aspirações das populações ultramarinas, no sentido de se dar às suas províncias o regime de governo e administração que melhor se coadunam com o seu actual estado de desenvolvimento e que hão-de certamente levá-las a um mais acelerado progresso económico, social, moral e cultural.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A Oradora: - Na verdade, a grandeza dos territórios, sobretudo das grandes províncias, a potencialidade das suas riquezas, que não são apenas as económicas, na vastidão imensa da fértil terra africana, mas principalmente as humanas, que esperam a semente do espírito para desabrocharem e frutificarem em valores produtivos e úteis para todo o nacional, levaram o Governo, na presente proposta de lei, a procurar aperfeiçoar as instituições administrativas locais e a distribuir mais amplamente as responsabilidades pelas populações do ultramar.

Donde: a maior descentralização administrativa não só em relação u metrópole mas também dentro das próprias

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províncias, dando aos governantes uma maior competência legislativa e executiva, de tal modo que, coadjuvados pelos secretários provinciais e, os dos distritos, pelas juntas distritais, possam, onde os problemas se processam, encontrar para eles uma solução mais rápida e eficaz; a maior autonomia na gestão financeira, que ajudará, sem dúvida, a resolver com urgência problemas da vida local, tão intensa hoje nas províncias de além-mar que não permite paragens ou delongas; e ainda, o que sobreleva tudo o mais, uma maior consciência dos problemas do ultramar e da Nação em geral, na medida em que todas as populações que constituem a comunidade multirracial portuguesa se interessem pela sua resolução e com eles se preocupem.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A Oradora: - E, assim, a mais adequada e equilibrada participação de elementos ultramarinos nos órgãos centrais da Administração e a sua interferência não só nos órgãos administrativos locais mas também nos de âmbito nacional vêm corresponder a uma necessidade e a um desejo que há muito se faziam sentir nas províncias do ultramar.

Também a progressiva aplicação da fórmula municipalista na divisão administrativa das províncias trará, sem dúvida, incalculáveis benefícios, que resultarão da maior coesão dos seus povos, da integração social dos menos evoluídos e da participação de todos na gestão da coisa pública.

Todavia, importa considerar que na base desta fórmula está a família, cuja promoção urge que se faça por meio da educação e da valorização económica. Só deste modo poderemos no ultramar aplicar em toda a sua extensão e em realidade uma fórmula que está na base histórica da própria vida nacional e que contribuirá para o revigoramento das famílias e união das colectividades em favor do bem comum.

E, por último, mas não em último lugar, apraz-me salientar a criação de um conselho consultivo junto do governo das grandes províncias, em que, além dos interesses administrativos e económicos, estarão também representados os de natureza moral, cultural e social, demonstrando o cuidado que ao Governo mereceram estes importantes sectores da vida das províncias do ultramar e a relevância que por lei não pode deixar de lhes ser dada.

Já o Decreto-Lei n.º 27 652, de 5 de Março de 1937, que estabeleceu as bases gerais do regime jurídico dos organismos corporativos e .de coordenação económica do ultramar, prevê, no seu artigo 6.º, para quando o número e qualidade dos organismos corporativos existentes o aconselhar, a criação de um colégio de organismos corporativos em cada colónia, de iniciativa ministerial, com funções políticas.

Parece que estaria já no espírito do legislador a criação de um órgão semelhante ao que a nova lei orgânica preceitua.

Embora os organismos corporativos no ultramar sejam ainda hoje reduzidos, será certamente de grande vantagem a criação de um órgão consultivo em que, a par dos representantes das actividades económicas, se encontrem pessoas sabedoras e experimentadas nos problemas administrativos, morais, culturais e sociais, os quais têm actualmente nas províncias do ultramar tal importância e acuidade que não podem deixar de ser cuidadosamente considerados num órgão de tal natureza política.

Se é certo que na base do progresso social se encontra a economia e aquele não pode processar-se sem esta, não é menos verdade que na base da economia portuguesa se encontra o progresso de todos os povos da metrópole e do ultramar, unidos por laços morais, espirituais e culturais. Por isso, não posso deixar de enaltecer este importante passo da nova lei, cujo espírito é decerto o da valorização de todas as populações do ultramar, não só pela economia, mas também pela cultura, pela moral e pela justiça social.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - Não basta, pois, que as terras imensas das províncias ultramarinas, sustentadas por planos económicos bem estruturados, se transformem em valores. Os homens, a sua valorização pela educação e pela cristianização, estão em lugar primordial na política portuguesa ultramarina. Assim tem sido sempre através dos tempos, e continuará a sê-lo.

No entanto, há que fazer um esforço no sentido de se intensificar a educação e, sobretudo, o ensino da língua portuguesa, não só como meio indispensável de transmissão de conhecimentos, portanto de promoção cultural e social, mas também como elo de ligação a unificar as populações linguisticamente diferenciadas das províncias do ultramar.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - É ainda excessivamente grande o número de nativos que desconhecem a língua portuguesa. Sendo esta o instrumento e a base de uma cultura ocidental acerrimamente defendida pelos portugueses em África, parece-me que se deve dar toda a atenção ao magno problema do ensino da língua pátria.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A Oradora: - É certo que em Moçambique, para só falar na província que represento nesta Câmara, alguma coisa se está fazendo nesse sentido, não só por um aumento considerável de escolas, mas também por meio de cursos expressamente destinados a adultos. Porém, num momento em que acabam de instituir-se no ultramar as escolas superiores, haverá que preparar conveniente e solidamente as camadas primárias e secundárias, que hão-de constituir a base indispensável para o bom cumprimento da missão a que a Universidade se destina.

Com efeito, só com uma mais profunda e extensa instrução, que abranja todas as camadas populacionais das províncias ultramarinas, teremos elementos validamente escolhidos que poderão assegurar o alto nível cultural em que as escolas superiores aí deverão funcionar.

Noutras intervenções me referi já à importância da extensão do ensino universitário ao ultramar, que hoje me apraz registar preceituado na nova lei orgânica.

As Universidades serão, sem dúvida, as formadoras das elites de pensamento e de acção que hão-de contribuir não só para o progresso material de todo o território nacional, mas também para a promoção cultural e social que há-de unir, cada vez mais, no Mundo, a comunidade portuguesa.

A essas elites se irão buscar os elementos mais qualificados que assumirão, no futuro, as responsabilidades da vida pública, não só no ultramar como na metrópole. Será, pois, pela cultura que havemos de reforçar a nossa unidade e garantir a continuação de uma pátria pluricontinental e multirracial.

Vozes: - Muito bem!

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A Oradora: - Portanto, parece-me indispensável que, conjuntamente com a actualização e aperfeiçoamento das instituições administrativas, se promova no ultramar um mais acelerado progresso cultural e social dos seus povos.

Sr. Presidente: termino com a minha aprovação na generalidade à presente proposta de lei e com os votos de que a sua aplicação traga os maiores benefícios para as províncias do ultramar e para a Nação.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A oradora foi muito cumprimentada.

O Sr. Pinheiro da Silva: - Sr. Presidente: ao contrário do que é meu hábito, lerei as poucas linhas que escrevi para a ordem do dia.

Sr. Presidente: não o tenho bem presente, mas suponho poder afirmar que, mercê do clima criado pela administração de Salazar, só de raro em raro medidas importantes para a vida nacional nos trazem alguma agitação e intranquilidade. No geral, o público dá-se conta do seu significado e alcance em completa serenidade de espírito. O que agora se passa é, pois, uma das excepções confirmativas da regra.

Realmente, a discussão das alterações à Lei Orgânica do Ultramar nesta Casa vem acompanhada de desusada inquietação. Julgo ser desnecessário apontar-lhe as razões, quer internas, quer externas.

Mas ocorre referir que a agitação que em torno à revisão da Lei Orgânica do Ultramar, em particular, à questão do ultramar, em geral, se gerou deu origem, além do mais, a alusões infelizes, à deturpação tendenciosa das ideias e intenções de certos homens, ao desvirtuamento do sentido de conceitos e doutrinas que entre nós sempre se entenderam correctamente.

Sobremaneira incompreendida, em certos círculos, foi - e é ainda - aquela voz. que de Coimbra - mater da lusitanidade - saiu a terreiro em defesa de ideais que sempre foram bem nossos ...

Porém, creio ser justo salientar que a quase totalidade da nossa imprensa tem sabido manter-se à altura da gravidade da hora que vivemos, das questões versadas e das suas responsabilidades de órgãos informativos e formativos. A Nação deve-lhe, por isso, vivo reconhecimento.

Sr. Presidente: ao calor do diálogo formularam-se referências à separação do Brasil. Todavia, o certo é que não se pode estabelecer comparação válida entre o quadro das condições que assistiram à vida económica, social, política e cultural do Brasil dos alvores da passada centúria e aquele das realidades das nossas maiores províncias de além-mar.

Com efeito, no Brasil da década de 1820 havia uma economia que, de longa data, dera provas de pujante vitalidade, superando crises de toda a ordem.

Um numeroso escol social e intelectual, densa população civilizada, vasta, profunda e antiga miscegenação racial, que engrossara a classe média sobre que repousava a estabilidade da comunidade e reduzira os atritos entre os aborígenes e os ádvenas. Aqueles, poucos e então sem aliciamentos exteriores, não representavam perigo algum para a presença e continuidade do europeu.

O elemento africano, quando não era natural do país e incorporado no estilo de vida das gentes civilizadas, constituía o cativo da recente imigração - por isso, desinteressado da sorte do território. Pensava-se e actuava-se, há muitos anos, quiçá, em termos brasileiros, independentemente da cor e posição ou qualidade das pessoas.

Numa palavra: havia a nação, formada ao longo de 300 anos pelo poder aglutinador e difusor da civilização e cultura portuguesas. Para ela se dirigiram, afinal, os esforços separatistas e interesseiros da política internacional do tempo, das sociedades secretas, dos políticos nacionais transviados. E tudo se processou sem séria oposição da metrópole - profundamente dividida no terreno do ideológico, assaz enfraquecida no campo da economia pelas invasões francesas, sobretudo, e em vésperas de longa e áspera guerra civil.

Isto por uma parte, por outra bom é notar que o movimento emancipador da América coube e encaminhou-se para os europeus, que não para os ameríndios, o que, como é óbvio, o distingue em absoluto da soit disant independência da África.

Destarte, se há uma lição a colher do Brasil, que nos sirva na conjuntura actual, orientando-nos o pensar e o sentir, é forçoso ir buscá-la mais longe no tempo, isto é, à era de Seiscentos - a do fastígio da nossa coesão interna.

Por essa época, de facto, o Brasil esteve na raiz do êxito da resolução da dificílima problemática da Restauração.

Na maravilhosa coesão interna, na perfeita visão do que convinha ao bem comum, na admirável cooperação entre todos os elementos populacionais da Nação, reside o segredo da nossa vitória de Seiscentos.

Nada disso, no entanto, se conseguiu de jacto. Representava, antes, o resultado da organização superior que presidira, à nossa acção civilizadora no decurso de séculos e cujos princípios fundamentais houve por bem manter inalteráveis. Era o efeito iniludível da política da integração, porventura herdada de Roma, robustecida pelo cristianismo, mas em todo o caso vivida pelos portugueses, porque consentânea com a sua índole e há muito praticada neste recanto da Europa.

Por isso, Sr. Presidente, bem avisado andou o Estado Novo ao formular e fundamentar o «sistema da solidariedade», cuja alma e objectivo são, em rigor, o conceito e o ideal da integração.

Deste modo, situou-se na linha tradicional da nossa acção ultramarina.

Aquele sistema, que estruturou os diplomas que, há 35 anos, têm sido a base jurídico-filosófica da administração do ultramar, opõe-se ao da autonomia, que nos é duplamente estranho - nas origens e nas intenções.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Efectivamente, a doutrina da autonomia foi - e é - defendida com argumentos de feição materialista. São as necessidades do fomento que a justificam. Só tem sentido para povos que nos são alheios, de história diversa da nossa, com interesses que não se coadunam com os nossos, e que foram ou são colonizadores de cunho fenício. Os autóctones não encontram nela qualquer protecção. É que ela foi elaborada e desenvolvida para os colonos europeus, no seu exclusivo interesse. Não possui, assim, alicerces nas nossas tradições, nem pode decorrer da concepção unitária da Nação Portuguesa.

Nisto se filia, a meu ver, o principal motivo por que o regime dos altos-comissários foi entre nós o estrondoso fracasso que todos conhecem.

Sr. Presidente: é certo que a administração que se lhe seguiu tem sido, ultimamente, alvo de críticas. Tais críticas, todavia, nem sempre vêm aureoladas da objectividade. De feito, não atendem nem aos antecedentes e origens dos diplomas legislativos que a têm animado,

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nem ao seu aspecto positivo. Orientam-se apenas para o que ela trouxe de negativo. Tem-se, com propósitos inconfessados, confundido o desenvolvimento material dos territórios e o enriquecimento económico, social, cultural e político de vastas camadas populacionais - fruto, aliás, do regime visado - com as instituições que os hão-de reger.

Tenho para mim que se deve duvidar de que se outro houvesse sido o regime administrativo do ultramar mais e melhores meios de ensino e de educação dos aborígenes se teriam posto em acção, ao tempo em que os decantados «ventos da história» eram diversos e os portugueses eram apontados como a vergonha dos europeus, por conviverem com aqueles e praticarem a mestiçagem ... Do mesmo modo, não se me afigura que outra administração tivesse podido no pós-guerra estabelecer um corte radical com o existente, enveredando pelos trilhos que agora se indicam e preconizam.

Conseguintemente, penso puder aplicar-se a este caso o pensamento de Salazar, objectivado nas palavras do teor seguinte:

... Como acontece em toda a parte, quando tais problemas (de governo) não encontram solução ou quando esta se processa em ritmo mais lento do que aquele que revelam as aspirações dos povos, logo se põem em dúvida, ou seja politicamente em crise, quer as instituições quer a competência da Administração.

Sr. Presidente: a política, como a natureza, é inimiga dos saltos. A política, como a natureza, é, sim, amiga cia adaptação. Além disso, é a arte de conciliar o desejável com o possível, consoante alguém opinou.

Pois é justamente uma coisa e outra que aqui temos na proposta de lei ora em apreciação.

Sr. Presidente: o Governo, ao gizar as alterações à Lei Orgânica do Ultramar Português, cônscio do dever que lhe incumbe de salvaguardar o património moral e material da Nação, a fim de o legar aos vindouros tal como o recebeu, respeitou religiosamente os princípios informadores e estruturadores da nossa acção transmarina, e que, tirante a forma como se expressam, são, rio fundo, os mesmos que de longe vêm - do remoto século de Quatrocentos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não podendo conceber-se a Pátria dividida, seguindo os seus filhos rumos diferentes e antagónicos; é que se reafirma a doutrina da solidariedade. Três são os pontos capitais desta doutrina: unidade da Nação; solidariedade entre todas as suas partes, isto é, territórios e populações; descentralização administrativa. A dispersão dos territórios portugueses opõe-se, naturalmente, a sua unidade política; a solidariedade implica a cooperação e o conhecimento mútuos; a descentralização opõe-se à autonomia.

A descentralização nada representa de novo. Mas vê o seu âmbito alargado no respeito escrupuloso do estatuído na Constituição e, no mesmo passo, das realidades das províncias ultramarinas, indo ao encontro das aspirações legítimas dos portugueses que ali se esforçam pela construção de um Portugal maior.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Vejo com desvanecimento que a proposta de lei em apreço preconiza uma representação adequada do ultramar em altos órgãos da política nacional. Nada melhor, decerto, para a formação e consolidação de uma maior consciência de ser português.

O mesmo sentimento conduz-me a sugerir que os serviços nacionais e os quadros comuns do funcionalismo público devem merecer cuidado aturado. Aqueles têm de ser ampliados e a estes facilitado o acesso. O ideal seria, até, que os quadros comuns abrangessem a própria metrópole, sempre que possível.

Que a livre circulação das pessoas por todos os territórios nacionais é poderoso meio e forma de integração - que todos anelam e para a qual, no domínio da economia, afanosamente se trabalha. Não importa tanto que um goês possa servir em Angola, um moçambicano em Cabo Verde ou na metrópole, como o poderem transitar de uns pontos para outros, sem perda dos direitos que assistem ao servidor do Estado.

Sr. Presidente: dentro de breve lapso de tempo vão os governantes do ultramar ter nas suas mãos outros e mais poderosos meios de trabalho útil. Espero que as esperanças e os anseios dos povos não sejam jamais logrados e que, no fim da jornada, a unidade nacional se encontre fortalecida.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Vítor Barros: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: generalizada a ideia de que não deve perfilhar-se o chamado sistema de integração administrativa, visto ser ele, no dizer do venerando Conselho Ultramarino, «contrário às realidades, se afastar do desejo das populações e comprometer irremediavelmente a eficiência da Administração», e assente, em contrapartida, que em matéria de política ultramarina a orientação que deve continuar a seguir-se é a da unidade da Nação e, à sua sombra, a da descentralização administrativa, será à luz destas duas concepções de base que analisarei, no seu mais amplo significado, a proposta de alteração à Lei Orgânica do Ultramar.

Muito embora não entenda bem como é possível conciliar tal princípio com a existência de preceitos constitucionais expressamente consignados ao ultramar e de uma lei orgânica para o ultramar, começarei por fazer notar que se essa unidade é ainda princípio aceite pela generalidade das suas populações é, todavia, minha firme convicção que ela não sobreviverá se lhes for .dado continuarem a verificar que essa tão aclamada unidade continua, de facto, a traduzir uma submissão dos interesses das províncias de além-mar aos da metrópole, como foi o caso de, durante a última guerra, toda a economia de Angola ter sido posta ao serviço de uma minoria de capitalistas metropolitanos através da fixação de preços, exageradamente baixa, dos seus produtos de exportação e da obrigatoriedade de os vender à metrópole, e como o é ainda o caso da comercialização do rícino, o do diferencial e obrigatoriedade dos fretes marítimos pela frota nacional, o de os automóveis das províncias apenas aqui poderem permanecer por tempo limitado e o dos entraves, cada vez maiores, postos à sua industrialização, e de que cito, como exemplos, os postos à construção de linhas de montagem de bicicletas, tractores e automóveis e à transformação, in loco, de certas matérias-primas aí produzidas, como seja o algodão.

Cito ainda um outro exemplo, cujo significado real, se não resulta dele próprio, resulta ao menos da circunstância de, em muitos outros sectores, e assaz frequentemente, se repetir.

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Refiro-me ao facto, passado comigo no 3.º cartório notarial de Coimbra, no dia 12 do corrente, de aí me ter sido negado o reconhecimento de uma minha assinatura aposta num substabelecimento feito numa procuração passada em Angola com o fundamento de que «o papel selado de Angola não tem. validade legal aqui».

Deste modo, é evidente que o actual conceito de unidade nacional tem de sofrer na prática, e pelo menos no aspecto económico, uma correcção imediata tendente a conceder-lhe autenticidade na reciprocidade, porquanto não pode haver, nem há, unidade enquanto a igualdade entre as diversas parcelas da Nação for meramente nominal ao menos em muitos e muitos aspectos da vida de todos os dias.

No que concerne à descentralização administrativa, e sabido que é à ineptidão, inércia ou deliberado emperramento do Ministério do Ultramar que são atribuídos muitos dos graves erros de que neste momento estamos a sofrer as inevitáveis consequências, parece indicado dar-se por assente, e desde já, que a descentralização que se reclama tem de ser uma autêntica descentralização, sem parágrafos a entravar a doutrina de eventuais salutares artigos e sem leis especiais a derrogarem o conteúdo de bases gerais previamente estabelecidas.

É que as populações do ultramar, que de há muito têm os olhos postos nos trabalhos desta Assembleia relacionados com a revisão da Lei Orgânica, sabem, de ciência certa, que só uma descentralização efectiva, real e no mais alto grau - e a que, aliás, as realidades do vendaval africano poderão até impor que venha a ser, em certa medida e muito em breve, uma descentralização política - ...

O Sr. Armando Cândido: - Descentralização política como?

O Orador: - Eu volto a repetir: - e a que, aliás, as realidades do vendaval africano poderão até impor que venha a ser, em certa medida e muito em breve, uma descentralização política - poderão encontrar ainda o estímulo capaz de as fazer persistir na tarefa de valorização do património nacional em que ainda se acham empenhadas ...

O Sr. Armando Cândido: - É que essas palavras «descentralização política» têm forçosamente um significado, e o que V. Ex.ª, se bem entendo, quer dizer, é que poderá soprar de fora um vendaval superior às nossas forças - às nossas, da unidade nacional - que viesse tal- vez a impor, e violentamente, uma «descentralização política», mas uma «descentralização» nunca promovida ou provocada por nós portugueses.

O Orador: - Não sei.

Vozes: - Não sabe nada.

O Orador: - ... não obstante serem constantemente atraiçoadas por aqueles a quem, competindo defender os interesses da grei, outra coisa não têm feito senão defender as suas cómodas posições.

Ora tais anseios, que se me afiguram inteiramente legítimos e plenamente integrados no condicionalismo de base enunciado, começarão por ser, e desde já, atraiçoados se a projectada reforma não vier, afinal, a traduzir uma descentralização mais ampla do que a ora preconizada, já na proposta do Governo, já no parecer da Câmara Corporativa, até porque nem neste nem naquela se advoga sequer uma mais ampla e autêntica descentralização ou, a ter de entender-se que assim é, não pode haver dúvida de que tais preceitos não traduzem ainda o mínimo dos mínimos do que nos é legítimo pedir e que ninguém tem o direito de recusar.

Portanto, e muito embora devesse ter-se sempre presente, na frase de Almeida Garrett, que «quando há um mal de base cada dia que se demora a estirpá-lo agrava a moléstia e consome as forças que são necessárias para resistir ao mal e à cura», o que me parece poder constatar é que se prefere ignorar a existência desse mal.

E a ser assim, e devendo entender-se também que a governação ainda se não mostra inclinada a fazer política ultramarina autêntica em benefício da grei, ...

Vozes: - Não apoiado, não apoiado!

O Orador: - ... preferindo antes continuar a sujeitá-la à sua política, que os pressupostos reais que importaria terem sido equacionados não são os que a romântica proposta do Governo deixa entrever e, ainda, que é forçoso que nunca se percam de vista os novos rumos da política internacional, a agitação social que varre a África e as pressões internas e externas reinantes no ultramar, para ser coerente com essas realidades e consciente da minha ^responsabilidade no desempenho deste mandato, não poderei deixar de fazer coro com as calorosas manifestações de protesto que do ultramar têm chegado até mim e abertamente declarar que rejeito a proposta de lei na sua generalidade e que de todo me absterei de participar na sua discussão na especialidade.

Tenho dito.

Vozes: - Muito mal, muito mal!

O Sr. Martins da Cruz: - Sr. Presidente: ao meu entendimento afigura-se que a presente proposta de lei é, sem dúvida, a de maior relevância e delicadeza de quantas nos temos ocupado na presente legislatura.

Portugal está a escrever uma página vibrante e agitada da sua história e também da própria história da humanidade.

Ora a proposta de lei que apreciamos insere-se nessa página e, quer queiramos, quer não, quer tenhamos consciência dessa participação, quer ela nos passe despercebida, o certo é que a ela vincularemos esta Câmara, esta Câmara que constituímos em representação nacional.

A responsabilidade que por aí nos toca, a natureza e o melindre das soluções que temos de escolher, as incidências que por elas vamos pôr na condução dos negócios públicos nacionais-ultramarmos, terão criado no meu espírito a tensão que me ia impedindo de subir a esta tribuna.

A ela somava-se ainda a confusão labiríntica em que me lançaram correntes e contracorrentes de opinião a perturbar a clareza que eu supunha possuir a propósito do que julgo uma ideia-força, uma constante límpida e sonora da nossa multissecular colonização.

Sinto-me, com efeito, algo confundido nas minhas ideias simples, de simples homem da rua, quando escutei profundas considerações sobre métodos novos, que não sei se terei logrado apreender completamente, e discorriam sobre a integração, subdividida em integração estática e integração dinâmica, contraposta à descentralização, integrada por sua vez nas ideias complementares de descentralização provincial e descentralização local e justaposta ainda à desconcentração, também esta ciosa de duplo

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entendimento, subdividida em desconcentração legislativa e desconcentração executiva!

A ligar e entrelaçar todos esses altos conceitos apareceram diversas ideias menores que nem sempre terão tido a pretendida função clarificadora.

Mas, por último, a repor no seu merecido ordenamento as teses que me iam surgindo, encontrei as novíssimas fórmulas de metropolinização do ultramar e de ultramarinização da metrópole!

No desejo de a tudo estar atento para proveito meu, tudo meditei e segui, mas hesito em reconhecer se estarei ultramarinizado ou continuarei metropolinizado, se me terei integrado ou terei ficado descentralizado ou ainda se a esta posição terei preferido a de desconcentrado!

Com tudo isto, um lucro ganhei: acabei, isso sim, por subir a está tribuna descontraído ...

E exacto. Não obstante a susceptibilidade das possíveis incidências das soluções da proposta de lei; não obstante a tensão que por essa razão vivia; não obstante a perturbação que senti frente a teses díspares, subo a este lugar sem que me aflijam dificuldades para formular e para dizer quanto penso, apreciando a proposta de lei na generalidade; repito - na generalidade.

Sem originalidade e talvez sem acerto, pareceu-me que uma proposta de alteração, melhor, de simples actualização, da Lei Orgânica do Ultramar teria, na sua generalidade, de expressar, primeiro, a fidelidade às constantes da nossa secular acção civilizadora e, depois, de encontrar as soluções processuais que ajustassem àquelas constantes as exigências do estádio actual da evolução das províncias ultramarinas.

Não fujo a dizer que me atento mais a verificar aquela fidelidade às constantes da nossa história ultramarina, que dá à história nacional o seu mais autêntico matiz, do que em ajuizar da bondade das fórmulas de prossegui-las no nosso tempo.

Estas são de sua natureza transitórias e várias, circunstanciais no tempo e na fortuna, e dependendo, nos resultados que visam, mais dos homens que as executam que dos princípios que os informam.

Às suas lacunas e deficiências, mesmo quando objectivas, pode opor-se um são critério pessoal que as elimine.

Não assim as certezas históricas da acção ultramarina. São intangíveis. Não podem ser afectadas. Têm de ser atendidas e defendidas em toda a sua plenitude.

Por isso, creio eu que é de propósito - um propósito que vem da vontade das gerações e do mando dos séculos - que o imperturbável e indómito timoneiro da nau portuguesa a conduz contra «os ventos da história», eufemismo erudito inventado para baptizar os ventos da transigência, que, ao cabo, seriam ventos de traição.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - De traição à Pátria, se por eles esta expulsasse e de si repelisse partes do seu próprio ser; de traição à memória sagrada de nossos maiores, se por eles lançássemos ao abandono terras e lugares santificados pelo seu trabalho, pelo seu sangue, pela sua vida, pela sua fé; de traição ao próprio sinal com que a providência marcou c caminho de Portugal no secular convívio dos povos, se por eles nos desviássemos da singular missão que de tão longos tempos vimos realizando para edificação do Mundo e que mais necessária e viva se havia de tornar nestes dias de aflição para a humanidade.

O Orador: - E de propósito, sim, este combate tenaz contra a incompreensão de uns e o ódio de outros, que dos cinco continentes nos assaltam.

É de propósito e bem resoluta esta posição de não cedermos, ainda que à custa dos maiores sacrifícios, na persistente defesa dos portugueses das mais afastadas latitudes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Se esse é o nosso propósito, nele hemos de meditar a proposta de lei que discutimos, já que de outro modo não lhe alcançaríamos todo o seu real e profundo significado, que não é senão o de constituir fiel expressão jurídica e legislativa da determinação daquele mesmo propósito.

E que não está nela -nem poderia estar! - outra intenção que não esta: aí definir um instrumento válido, eficaz, para, na conjuntura apocalíptica de balbúrdia e indignidade desencadeada sobre a terra, assegurar e garantir a unidade da Pátria Portuguesa, assegurar e garantir a união de todos os portugueses de todos os climas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nem sequer seria lícito supor que de outra forma se entendesse a decisão do Governo quando pede à Nação, integrada nas comunidades associativas e profissionais, nos legítimos órgãos dos interesses locais e provinciais, nas instituições políticas de suprema representação, que estude, aprecie, discuta e vote os princípios gerais que idóneos se lhe afiguram, neste momento histórico, para a defesa daquela unidade, para o reforço daquela união.

Aqui, nestes tão manifestos desígnios, se radicam os postulados da filosofia política ultramarina de que promana todo o articulado da proposta de lei. E às soluções que os seus preceitos contêm não seria lícito buscar-lhes sentido ou fim desirmanado daqueles princípios.

E isto porque chegamos a esta segunda metade do século XX, frente às terras que descobrimos e encontrámos nas 5 partidas do Mundo, com a mesma consciência com que há 500 anos partimos em sua demanda: abarcá-las num Portugal maior, sem dúvida, mas sempre o mesmo Portugal, na Europa ou na Oceânia, com o mesmo património de fé, de cultura, de civilização, que o mesmo é dizer com o mesmo património do mais elevado e perfeito humanismo que difundimos por todos os recantos do Orbe.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Pois a consciência com que há 500 anos, afrontando perigos desconhecidos, chegámos a terras inóspitas, a mantemos hoje: torná-las iguais ao Portugal da Europa, que não possuí-las e explorá-las como se estranhas fossem; trazer ao mesmo património moral da Nação una, quantos aí vivessem, brancos, pretos ou amarelos, que a todos se destinava a luz do Evangelho, que nos guiava e a cujo calor a grei pretendia viver.

Demos então «novos mundos ao Mundo», mas sobretudo demos-lhe o exemplo de uma cristã irmandade e demonstramos-lhe o caminho seguro e fecundo para as relações de amizade, entendimento e respeito entre os povos das mais diversas origens.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Este destino histórico e transcendente nos terá desviado da rota que outros escolheram: a procura das riquezas, ao serviço dos grandes empórios.

Fiéis, por vezes sem plena noção dessa grande e imanente certeza, fiéis a um sentido vocacional e providencial da história, que, para as nações que a fazem, é norma de vida, gastámos os séculos e as vidas a ensinar, a cristianizar, a civilizar, no que o termo possui essencialmente de alta exigência de humanização ao nível da eminente dignidade da pessoa, como criatura de Deus portadora de um espírito que sobreviverá à fortuna dos tempos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Colonizamos assim pela missão, de preferência a explorarmos pela empresa mercantil.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sonhadores e poetas, voltados à graça e à aventura, recebíamos do contacto com outras gentes o desejo profundo, atávico, de pô-las a comungar connosco nos mesmos anseios e nas mesmas vitórias do espírito: viessem viver connosco a nossa própria vida; viessem sentir e entender como nós sentíamos e entendíamos, viessem tornar-se filhos de Portugal, com os mesmos direitos, os mesmos deveres, as mesmas glórias, a mesma história.

Por esta ímpar tarefa de cultura e de civilidade, de paz e de ordem, andámos séculos. Em busca das riquezas escondidas por esses continentes, outros nos ultrapassaram. Em proveito dos homens e raças que trouxemos à civilização e à cultura, poucos nos acompanharam. O feito, de nobre e alevantado, nem todos o entenderam. Por ele chegámos mesmo a merecer a irrisão de uns tantos ...

E, na verdade, praticávamos aí o maior exemplo da confraternização humana que os milénios haviam conhecido.

Fazíamos o convívio dos continentes, alargávamos a dimensão da solidariedade pelo enobrecimento espiritual do homem, fazíamos, enfim, cristandade, que era afinal trazer todos os homens ao plano da redenção, onde os méritos e os deméritos, o valor de cada um tinha a sua medida absoluta na própria filiação divina.

Estas asserções, que não contêm qualquer novidade, terão sido ditas e reditas vezes sem conto, comentadas e recomentadas em páginas e páginas da história da nossa colonização. Mas nem por isso perderam um ápice sequer da sua vigorosa actualidade, mesmo em face dos pecados de alguns contra elas cometidos.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - Penso que elas continuam válidas como pressuposto de todas as fórmulas com que pretendamos realizar no nosso tempo aquele sentido vocacional e providencial da nossa história, patente, hoje como há séculos, nos propósitos da nossa vida, nos ideais que intransigentemente servimos e defendemos em todas as parcelas da Pátria.

Varrem o Mundo ondas de ódio que galgam continentes.

Ás nações dividiram-se para se aniquilarem.

Os povos perseguem-se e os homens matam-se pela cor e pela raça.

Quem, neste clima de desespero, aí está a praticar a fraternidade, a defender a convivência, a proclamar a

igualdade na dignidade natural entre os homens de todas as cores e de todas as raças?

Quem, neste clima de maldição e de luta, aí está a clamar que os homens valem pela dignidade da sua vida, pelo vigor do seu espírito, pela fidelidade aos ditames da razão e da lei natural, pelo acatamento dado aos desígnios de Deus?

Quem, neste clima de materialismo e de força, aí está a pugnar pela vitória dos grandes, dos maiores princípios, dos grandes, dos maiores valores morais, únicos de que a humanidade pode esperar a paz, a concórdia e o progresso?

Ao longo dos séculos, a melhor defesa que sempre fizemos das populações que acháramos sem história nem grandeza foi a sua total integração no mundo espiritual que a nós próprios nos define. Sempre o quisemos e o fizemos. E o que hoje teimamos em prosseguir. É o que hoje teimamos em realizar, sem discriminações e sem outra compensação que não seja a de cumprirmos o mandato que a história há séculos nos outorgou. Desejamos apenas que nos deixem trabalhar em paz para mais rapidamente alcançarmos a promoção social de todas as populações que nasceram sob a protecção da nossa bandeira, para mais rapidamente lhes levarmos as grandes realizações da saúde e do ensino que estamos a procurar atingir na própria metrópole; para mais rapidamente lograrmos o triunfo completo da justiça social por que ansiamos aqui, no Portugal da Europa. Nele, como Portugal da África e da Ásia, vivemos o mesmo anseio de mais, de melhor, o mesmo anseio que não distingue latitudes, nem cores, nem raças.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nessa vivência comum do mesmo ideal de vida nós pomos uma das maiores certezas da unidade nacional que, por isso mesmo, como a definia o Sr. Presidente do Conselho, «não é uma ficção política ou jurídica, mas uma realidade social e histórica que levanta obstáculos sérios aos que pensam dedicar-se agora à tarefa de emancipar a África Portuguesa. Vêm tarde - já está!».

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O Orador: - Se logo que a encontramos, a equiparamos a nós próprios, se jamais a distinguimos para lhe negarmos as regalias que nós próprios lhe reconhecemos; se trabalhamos, vivemos, sofremos lado a lado, irmãos da mesma família, ...

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O Orador: - ... à sombra da mesma casa, sob a protecção da mesma lei e na esperança da mesma certeza, é que não nos separam odiosas expectativas de independência e autonomia, que seriam libertadoras de males, de ódios, de opressões de que a consciência nos não acusa e que a nossa multissecular história ultramarina não regista.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O Orador: - E é precisamente porque assim é e continua a ser que a proposta de lei em discussão jamais poderia ter em vista uma independência próxima ou longínqua, pois seria sempre um abandono e uma renúncia.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

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O Orador: - Se tal nela residisse, estaria a proposta não nos caminhos da Pátria, mas na linha da traição.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O Orador: - Mesmo afastada que fosse, a simples previsão desse abandono constituiria ataque frontal à integridade da Nação.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O Orador: - Pelo contrário, com a presente proposta de lei procuramos também preservar-nos do maléfico vendaval solto contra a Pátria Portuguesa na sua unidade.

Em toda ela em todas as suas parcelas de aquém e de além-mar, nós ajustamos continuamente as fórmulas jurídicas e legais à prossecução dos interesses da grei.

Nas províncias ultramarinas, porque em mais rápida evolução, impõe-se a frequência daquele ajustamento. Não receamos fazê-lo, mesmo quando pode ser mal interpretado, mesmo quando os mal intencionados possam ser levados a descobrir nesse trabalho tentativa de iludir as exigências do rumo sem norte, por onde avança a barca dos «ventos da história» ...

Corremos conscientemente esse risco de confusão, porque não sacrificamos ao seu receio a obrigação de, a todo o momento, dotarmos o Portugal ultramarino dos meios necessários ao seu progresso político, económico e social.

Mas fica-nos a certeza de que o nosso procedimento não dimana de pressões externas de factores acidentais, antes provém apenas das forças da nossa própria consciência.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - E esta - e só esta - que nos leva a procurar a fórmula jurídica, a expressão legal que corresponda inteiramente ao presente estado de evolução de Portuga, de além-mar.

E se ela nos aconselha maior desconcentração da competência executiva do Governo em relação às províncias ultramarinas, através de uma necessária e conveniente delegação dos seus poderes de execução, fazemo-lo sem hesitar, porque esse é um processo de administração com inteiro cabimento na ordem jurídica nacional. Grave seria que, reconhecendo a vantagem do processo na presente conjuntura de evolução daquelas províncias, lhe recusássemos.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O Orador: - Se a par daquela desconcentração surge a utilidade de uma maior descentralização local das províncias ultramarinas, uma maior participação das suas populações nas suas instituições políticas e sociais, a sua autonomia financeira, o alargamento da sua representação nos órgãos superiores do Estado ou se se impõem outras providências legislativas que mantenham o enquadramento jurídico do ultramar português sempre em em ordem a que nele se prossiga a gradual e lenta assimilação, por forma a que um dia venha em que, mesmo no plano das fórmulas, a unidade seja total - mal iria o Governo se hesitasse em satisfazer tais exigências.

Felizmente, temos de reconhecer que tal não sucede.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O Orador: - Com periodicidade, que poderia julgar-se até diminuta, atenta a natureza destes diplomas, o Governo vem debruçando-se sobre as leis fundamentais da parte ultramarina da Nação.

E cada vez que nelas toca fá-lo com generosa amplitude, adequando os limites da sua intervenção à salvaguarda dos interesses nacionais e ao correspondente estádio de evolução administrativa das províncias.

Vozes: -Muito bem. muito bem!

O Orador: - Certo que a uns parecerá excessiva a largueza de funções atribuídas. Outros julgarão as soluções propostas muito aquém do que desejariam no seu natural desejo de vencerem o tempo ...

A justa medida resultará, como sempre, do equilíbrio entre os receios dos mais prudentes e o irrequietismo dos mais ousados.

De quanto pude entender da proposta de lei ficou-me a certeza de que o Governo teve essa preocupação - não sacrificar legítimas exigências do bem comum a um conservadorismo que se compraz em contemplar o passado e não comprometer o desenvolvimento e o progresso do nosso ultramar em fórmulas de solução de continuidade que, seduzidas apenas pelas miragens do futuro, desprezam toda a maravilhosa lição do passado.

Integrar cada vez mais vivamente os portugueses de todas as cores e latitudes na unidade sagrada da Pátria; servi-los com soluções legislativas que lhes garantam, pelas fórmulas escolhidas, a genuína defesa dos seus interesses no vasto campo da administração pública, assegurando-lhes por essa forma um efectivo e real progresso económico e social, dotando-os dos meios políticos e jurídicos exigidos pela sua valorização pessoal em ordem a realizarem-se inteiramente como homens - membros de uma comunidade livre -, parece-me constituírem os objectivos das diferentes alterações que o Governo propõe à Lei Orgânica do Ultramar.

Tanto me basta para que lhe dê, na generalidade, o meu voto.

Contudo, não pára aqui o meu voto.

As leis, com seus princípios e suas normas, são apenas instrumentos de acção. Se é certo que definem os objectivos a atingir e os meios a utilizar, permanecerão, porém, estéreis e improfícuas, qual letra morta inútil, se o engenho humano de quem as executa e aplica lhes não der vida, trazendo-as à realidade quotidiana das pessoas e das instituições, transportando-as dos planos lógicos onde nasceram para o mundo dos factos e dos actos por que se exprime a existência individual e colectiva.

De modo que, olhadas pelo seu lado pragmático, que é o dos efeitos e o dos objectivos, as leis valem, sobretudo, por quem as interpreta e as realiza.

Quero dizer: o nosso escopo de legisladores, nesta proposta de lei como noutros diplomas similares, será plenamente atingido se definirmos, em termos capazes, os meios jurídicos adequados à manutenção da unidade nacional, na diferenciação étnica e sociológica da grei lusíada.

Nesta, ignoramos o que sejam desigualdades na dignidade natural da pessoa humana. Desde sempre assentamos no dogma social dos seus sagrados e invioláveis direitos.

Desde sempre preconizamos o acesso de todos os portugueses, sem discriminação de raça, de cor, de origem, aos benefícios da civilização.

Desde que ansiamos por uma autêntica fraternidade cristã a envolver todos, a garantir a todos as mesmas normas de justiça, o mesmo valor e responsabilidade das acções, os mesmos direitos a um viver digno e elevado, a mesma protecção contra a miséria.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

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O Orador: - Essa é a grande constante da nossa história de povo colonizador. E esse é o objectivo último das leis que aviamos desde há séculos a. promulgar para servirem de baliza e de comando à nossa acção.

Não foge esta a essa regra, é evidente.

E nisso alcançamos o nosso propósito de autores da lei, da lei que excelentemente o define.

Mas as boas leis são como as boas intenções e umas e outras ficarão no limbo da inutilidade, se não lograrem encontrar quem as entenda e as pratique.

Vozes:-Muito bem, muito bem!

O Orador: - E assim de bem reduzido mérito será o nosso trabalho a proclamar a descentralização administrativa, a autonomia financeira, o alargamento da competência decisória e executiva dos órgãos locais, a valorização da vida pública das províncias ultramarinas e tantas outras soluções parcelares como meios de integrá-las e cimentá-las cada vez mais no todo que é a Nação - se os responsáveis que vierem a receber a honra e o encargo de efectivar na prática aquela descentralização e autonomia, aquele alargamento e valorização, negarem com sua conduta tão salutares propósitos.

De nada servirá, com efeito, inscrever nas leis a promoção social das populações locais, se quem a deve realizar lhes não garantir, na prática de todos os dias, o direito ao trabalho e ao correspondente salário familiar suficiente e adequado a um nível de vida digno, o direito a participar nas actividades da comunidade, o direito ao pleno desenvolvimento intelectual, o direito à sua realização como homens e como cidadãos de uma Pátria enobrecida.

De bem pouco valerá a nossa proclamação de preceitos legais a definir o convívio e a paz social, a defender os direitos inalienáveis à vida, à liberdade, à prosperidade, a declarar a igualdade perante a lei, sem distinção de natureza alguma, se os responsáveis pela sua execução na rotina da vida individual, familiar e social se desprenderem, no exercício do seu múnus, da terrível responsabilidade em que estão investidos, se contemporizarem com os abusos dos poderosos em desfavor dos fracos e dos desprotegidos, se condescenderem com a injustiça dos privilégios, se sacrificarem ao interesse de alguns a justiça de todos.

Por isso o meu voto não pára nas bases gerais da proposta de lei. Alcança também os homens que hão-de torná-las vida vivida nas províncias ultramarinas. E ele é que os homens estejam aí à altura da nobreza dos princípios. Que os defendam na sua pureza, com a intransigência e o vigor que as responsabilidades da história e a honra da Pátria exigem: umas e outra são de todos os portugueses, os que trabalhamos na metrópole, os que labutam além-mar, porque todos somos apenas portugueses, irmanados no mesmo ideal de servir e engrandecer Portugal.

Tenho dito.

Yozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Brilhante de Paiva: - Ao ser-me dada a palavra para a observação da generalidade das alterações à lei orgânica do que se designa como «ultramar português», apresento a V. Ex.ª, Sr. Presidente da Assembleia Nacional, os meus respeitosos cumprimentos; na pessoa de V. Ex.ª deposito a expressão da minha convicção, fundamentada, de que todos os Srs. Deputados desejam sinceramente trazer à decisão o seu contributo de esforço, de saber, de compreensão, o seu espírito de coesão nacional e a sua tolerância aberta c própria das almas fortes.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - Ao mesmo tempo manifesto aqui o apreço, o verdadeiro prazer, que me causou a manifestação, tantas vezes vinculada em expressões que traduziam um mundo de saber, ou um entusiástico amor à nacionalidade, de atitudes espirituais que não posso deixar de apoiar vivamente.

Tem-se dito - um pouco por toda a parte - que atravessa a lusitanidade uma hora grave, que requer de todos o maior cuidado e a maior firmeza nas atitudes. Por mim - e por todos - afirmo que Portugal será, aqui e pelo mundo fora, o que os portugueses quiserem que seja: o resultado, menos do seu número ou dos seus recursos, do que da sua decisão colectiva, manifestada sem tergiversações, até nos actos com que temos sido capazes de manter a nossa história igual a si mesma.

Não tem interesse relevante o ambiente político ex-tranacional nos problemas que pretendemos hoje resolver por nós mesmos, e chegarão a soluções que seriam e serão válidas e oportunas sem ele. A decisão de formular não sofre ditames de emergência perturbadora do sentido da justiça, mas exige, sim, que se afastem de uma vez para sempre receios ou hesitações, comparações de valores territoriais ou económicos ou sociais, e nos sentemos todos a mesma mesa decididos a contribuir para a unificação real do conjunto português, mesmo cedendo num ou noutro ponto das nossas convicções prévias.

A vastidão dos territórios, o futuro do amor e coesão das gentes que os cobrem, a sua dignificação e a obra feita por imperativo comum e presente em toda a parte, julgamo-los, todos os Deputados e V. Ex.ª, Sr. Presidente, como o julgaram o Governo e a Câmara Corporativa, impassivos de minudências ou argúcias de politiqueiros de outras eras ou de outros ambientes.

Permita-me V. Ex.ª, Sr. Presidente, que exare a satisfação que semelhante clima espiritual desperta nas populações longe da Europa, clima que só se tornou possível na continuidade e firmeza da actuação governativa de um Portugal renovado e engrandecido.

Peço vénia para acentuar algumas das características das novas medidas legislativas que a Assembleia tem a encarar:

l.ª No dilema serviços nacionais-serviços provinciais não deve constituir-se qualquer óbice à acção governativa provincial. O funcionamento dos serviços nacionais, compreensível e necessário enquanto entendido como contributo à administração local ou provincial em ramos especializados, como poderão ser os da defesa, da justiça, do ensino, da saúde e outros, comporta a possibilidade de reflexos na constituição dos quadros de servidores.

A este respeito bastar-me-á anotar o absurdo de se estabelecerem quadros nacionais ou mesmo quadros comuns a partir logo dos escalões inferiores; gastar-se-ia em transportes bem mais do que poderia aplicar-se à promoção de cada escalão.

Ainda a propósito deste dilema, convirá encarar a possibilidade de uma instrumentação legal que possa acompanhar, com a elasticidade conveniente, o ritmo do crescimento económico e ainda, e sobretudo, o da convergência dos povos no tipo de civilização português, sem que a cada passo hajam de promulgar-se medidas de pormenor para atender ao inesperado.

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De toda a evidência me pareceu também que se não deve coarctar o alcance da autoridade do governador-geral, por definição de funções representante e símbolo dos poderes nacionais; a existência de um secretário-geral permanente, com funções de governo-geral eventuais, comporta o risco de obnubilar a autoridade e o prestígio do verdadeiro e imediato representante do Governo Centrai; a tendência seria perigosa - entrevê-se um governador-geral atrás da cortina na justificação, aliás aliciante, pela conveniência de se manter certa continuidade na acção governativa; e até a possibilidade de uma consequência de certo modo grave no concerto dos negócios nacionais: o desvio da orientação comum.

Prevê a proposta uma melhor audiência dos interesses e opiniões regionais na adopção de medidas de aplicação regional; e não creio que ninguém deva basear-se em receios não comprovados de irradiação de tal ou tal província na linha geral portuguesa, sempre tolerante e compreensiva, para se opor a ela.

Quanto à representação na Assembleia Nacional e Câmara Corporativa, a melhoria das condições actuais não virá senão corresponder ao que foi sempre supremo desejo dos povos: manterem-se sempre e cada vez mais solidários, activamente solidários, no pensamento nacional e nos interesses particulares das várias parcelas do conjunto.

Para mais, acima de tudo, e acima dos interesses ocasionais de um ou outro círculo europeu, não vejo que a Assembleia Nacional, como expressão de uma pátria, deva legitimamente ausentar-se da obra que nunca se acaba: fazer Portugal aqui e fazer Portugal lá, onde se diz que também é Portugal.

Ora, perante a magnitude da tarefa, receio que pouco se consiga, se a cada uma das grandes províncias do ultramar se der na Assembleia uma representação igual, ou quase, à de qualquer distrito europeu continental.

Perante estas premissas, não poderá negar-se - quanto a mim - que todos desejam maior coesão e maior amparo mútuo.

Por outro lado, mais completas serão a Câmara Corporativa e a Assembleia Nacional como expressões da nacionalidade, se nas suas decisões tiver mais peso o pensamento ultramarino.

Ninguém, ninguém do comum dos povos iria - sua aponte - renegar o que lhe nasceu nas veias, no berço, na escola, no convívio social, na labuta diária; por lá, como por aqui, parece ter bastado que um ou outro cedesse ao império de doutrinas heterogéneas de dissociação da lusitanidade, para que logo as massas populares se reunissem e dessem as mãos em face do perigo, vindo trazer às urnas a certeza de que lá, como cá, é Portugal.

Eis, Sr. Presidente, porque dou o meu voto à proposta do Governo de alterações à Lei Orgânica do Ultramar, na sua generalidade.

Tenho dito.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Lopes Roseira: - Sr. Presidente: subo a esta tribuna vergado ao peso de graves responsabilidades e de muito sérias apreensões quanto ao futuro, por ter exacta consciência do significado que assume, nesta conjuntura, a discussão e votação do projecto de alteração parcial da Lei Orgânica do Ultramar Português.

Compreendo a necessidade o conveniência de ser revista a legislação ultramarina; de reformarmos a nossa mentalidade e os conceitos que nela se enquistaram a respeito

das gentes e coisas do ultramar; de reformar procedimentos, sistemas de orientação.

Compreendo, ainda, a necessidade e conveniência de uma clara e convincente afirmação e prática de princípios conducentes à definitiva rectificação da opinião internacional, varrendo, corajosamente, do campo das discussões o argumento de que continuamos a ser uma nação colonialista - embora possamos e devamos continuar a afirmar orgulhosamente que somos uma nação colonizadora e que permaneceremos, já agora, os únicos abencerragens da colonização, do mesmo modo como fomos os primeiros. Creio não haver discrepâncias quanto a estas afirmações basilares. São pontos de partida que não podem ser desprezados, se queremos, efectivamente, empreender uma insofismável mutação, em profundidade, da nossa política ultramarina.

Dessa política que cristalizou em muitos espíritos e fez a sua escola, sem se darem conta de que ela já não serve os interesses de todos os portugueses - não serve à política geral da Nação -, incapacitada, como se tem mostrado, de produzir efeitos benéficos à multiplicação das vontades, à conservação da harmonia e ao fortalecimento da unidade que tanto desejamos entre os homens de todos os climas e latitudes onde a bandeira das quinas drapeja em radiosa afirmação de soberania, a garantir uma certeza de paz e progresso que fazem nascer, em cada coração, a consoladora e estimulante alegria de viver.

E, agora, justifico a afirmação inicial: de sentir-me dominado pelo peso de graves responsabilidades e de sérias apreensões quanto ao futuro. E que receio não estarmos em condições de corresponder àquilo que o momento de nós exige e a Nação espera. Quero dizer que duvido de que estejamos suficientemente amadurecidos para levarmos ao ultramar, numa lei fiel à nossa tradição de povo colonizador, o convencimento, a certeza num reencontro fraternalmente desinteressado e numa paz, ao menos, de armas em descanso, mas atentas.

Suponho não estarem ainda bem vistos os dados do problema e, daí, estarmos desviados dos seus aspectos originais. E não tenho dúvida de que é tão grande a responsabilidade que pesa sobre nós todos, que estou seguro de que ficaremos amarrados ao pelourinho da história, qualquer que seja a posição que tomemos no debate que decorre agora nesta Assembleia. Devo-me à Nação e, de modo particular, àquela parte da Nação que eu aqui represento.

Tenho de ser fiel à maioria, já que não posso ter a veleidade de pretender ser fiel a todos; e se o fosse, alguma coisa teria atraiçoado e não passaria de um indeciso, um calculista ou um demagogo - atitudes que repugnam à minha consciência, porque sempre reconheci no calculismo, na indecisão e na demagogia os mais abomináveis pecados em que o homem pode incorrer e os maiores adversários do progresso social.

Nem disfarces, nem camuflagem da verdade. Só assim posso ser entendido. Só assim a Nação me compreenderá.

A verdade, ao ouvir-se, causa-nos, muitas vezes, a mesma sensação que sentimos quando o enfermeiro nos espreme um furúnculo, um tumor ou nos tira do dedo um espinho: primeiro, um choque doloroso, e depois um alívio que nos dá prazer pelo bem-estar que nos restitui. Serei, pois, verdadeiro, consciente de que serei mais útil ao meu país.

Nada do que afirmar tem o propósito de visar pessoas, ofender quem quer que seja; pois a intenção que me anima é apenas a de esclarecer esta Assembleia, sem deter-me em considerações de ordem pessoal nem política, que não tenho nem vejo, muito convencido, que estou,

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de que os homens são quase sempre vítimas de situações que não criaram e de que não puderam subtrair-se por fraqueza de algum dos predicados morais.

Sr. Presidente: desde a instituição do regime dos altos comissários paira, em Angola, o mesmo espírito nos aspectos político-administrativo, social e económico: autonomia e descentralização, com seus fluxos e refluxos, interessando mais directamente os colonos; segregação franca ao princípio, depois mitigada por uma assimilação marginal, incidindo sobre as populações nativas.

E não esqueçamos que foi naquele período eminentemente democrático, dos altos comissários, que se deram as primeiras manifestações sérias de racismo, que nenhuma das nossas justas e humanas leis autorizava nem sancionava.

Mas, com tal prática à margem das leis, acabava de introduzir-se a hipocrisia nas relações e no comportamento, de um modo geral, entre pretos e brancos.

Sucederam-se as fórmulas e soluções políticas; mas nenhuma delas teve o mérito de levar as pessoas a modificarem a sua mentalidade.

E fica de pé a afirmação, ainda que uns tantos possam dizer, com verdade, que nunca tiveram razões de queixa. Seguíamos em plena época colonial e, mau grado para a Nação, não se colonizava - não se povoava. Cada colono, sob a protecção de organização administrativa arquitectada especialmente para eles, ia tirando, apoiado no nativo, o maior e melhor proveito.

A Lei Orgânica que em 1956 substituiu a Carta Orgânica de 1933 nada foi melhorar. Pelo contrário, contribuiu ainda mais para fazer acreditar em mais forte autonomia de sentido puramente colonial. Houve apenas a preocupação de assegurar a continuidade dos mesmos procedimentos a coberto de nova linguagem. Preterições injustas, desemprego e má distribuição de justiça nos diferendos entre pretos e brancos passaram a ser pratica corrente.

Ao findar da segunda guerra mundial deu-se um surto de imigração branca para Angola.

E o panorama que sob o aspecto social se lhes ofereceu foi este: nos maiores centros populacionais a gente de cor só ocupava os baixos misteres, pois outros lhes não ofereciam as actividades particulares, excepção feita a um ou outro guarda-livros ou empregado de escritório, que, mesmo assim, em cada terra, sobram os dedos das mãos para contá-los.

O nativo passou a ser tido como indivíduo a que não se devia consideração nem respeito.

Não vale a pena estudar, frequentar o liceu, se outros menos preparados nos tomam o lugar e, no comércio e na indústria, não temos entrada. Vamos morrer abandonados e cheios de fome na nossa terra. Isto cogitava-se nos lares de muitas famílias nativas.

O Estado lá ia dando ganha-pão a quantos podia. Mas nem os quadros do pessoal nem o orçamento eram elásticos. Estavam saturados. E aqueles que se empregavam no artesanato e em ofícios ligados a certas actividades sofriam discriminação reflectida no inferior salário.

Só aqueles que viviam com os olhos postos nos ganhos efectivos e a efectivar e os que na vida pública se regalavam com o produto dos seus vencimentos é que não se aperceberam de que alguma coisa de mau estava a fermentar.

Em conversas com pessoas categorizadas, ainda pude algumas vezes chamar a atenção para o que se estava passando. De nada valeu. Até que em Fevereiro de 1961 fomos bruscamente sacudidos do falso deslumbramento em que vivíamos. Forças estranhas fomentaram e animaram a sublevação? Ninguém o nega, e todos lamentam agora o acontecido. Mas também ninguém faz ferver a água de uma panela sem fogo. Nós juntámos a lenha. O fogo foi posto pelos de fora.

O Sr. Pinto de Mesquita: V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Tenha a bondade.

O Sr. Pinto de Mesquita: - Era só para fazer uma observação. V. Ex.ª conhece o que se passa na metrópole e, por isso, pergunto se V. Ex.ª entende que algumas das nossas remotas populações rurais estão em condições muito diversas.

O Orador: - Consta, que o mesmo sucede com elas, mas o facto não é tão grave nem tão flagrante, dado que a população da metrópole constitui um todo racialmente homogéneo.

E porque tais coisas aconteceram? Porque ninguém teve a solicitude «em aplicai- todos os meios conducentes para que ... se extinga totalmente a odiosa e abominável distinção que a ignorância ou iniquidade, de quem preferia as conveniências particulares aos interesses públicos, introduzia entre índios e brancos, fazendo entre eles quase moralmente impossível aquela união e sociedade civil tantas vezes recomendada pelas reais leis de Sua Majestade».

Era assim que se pensava e agia num tempo em que não se falava em autonomia, nem em descentralização, e não havia legislação especial emanada das províncias, sem embargo de os governadores tomarem providências locais.

Na base do progresso das sociedades ultramarinas esteve sempre a preocupação de não perturbar «aquela união e sociedade civil tantas vezes recomendada pelas reais leis de Sua Majestade», como são prova eloquentíssima as determinações contidas no capítulo 18.º do regimento dado ao governador e capitão-general do reino de Angola, João Jacques de Magalhães, e cuja observância este suscitou ao senado da Gamara de Luanda em carta de 9 de Março de 1739.

Eis o que nos diz o referido capítulo 18.º, que transcrevo com a ortografia original:

E porque sou emformado de que he de muito grande damno à ir em homeins brancos ao certão e pumbos, como mullatos e pretos de calçoins ou bastoins e para fazerem estas entradas, sevalem de vários preteistos de meu Servisse, sendo contra minhas hordeins, e de trahição aos sovas meus vassallos, pellas imjustiças que fasem nas terras poronde passão, viollentando a estes para lhes comprarem as fazendas que levão e lhes darem carregadores, e sustento para as pessoas que vão fazer, botando aperder o negico e empatando os pombeiros, comrrompendo o vro preço das fazendas e entreduzindosse Juises dos mocanos, que vem a ser Julgadores de devidas que os Sovas tenham com os outros, julgandoas pela pite que mais emterece lhes dá, Sucedendo cousas de muita importância, de que resulta o cativeyro de muitas Liberdades, Sem comsideração alguma do temor de Deos, e credito dos meus vassallos, pello que vos encomendo mito e mando que por nemhum acomtecimento comcintais, nem mandeis homeins, brancos de nenhuma qualidade a Comquista, com cargo, ordem, nem comissão alguma, nem aos Pumbos, e o mesmo fareis não comcentindo que vão lá mullatos nem negros com calssoins ou bastoins, e quando fassais o contrario o que de vos não espero será esta huma das culpas principais de vossa resi-

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dencia e sereis obrigado em cada anno de vosso Governo a me dares conta de como observais este Capitullo inviollavelmente...

Estou convencido de que podia ficar por aqui que já todos me teriam compreendido e verificado que muito arredados temos andado dos bons caminhos.

Sr. Presidente: a campanha internacional movida contra o colonialismo, os, já referidos acontecimentos de Angola e a falta de definição do uma nova orientação na política ultramarina que conquistasse geral adesão, tanto cá dentro (tomo lá fora, criaram uma atmosfera de. incertezas, ansiedades e angústias, não só entre as populações do ultramar, como também entre as da metrópole.

Para umas e outras, o dia de amanhã era uma incógnita, como incógnita era o destino de tantos milhões de criaturas. Mas as forças organizadas da Nação polarizaram-se em esforços, energias e recursos, acorrendo aos lugares de perigo declarado, e. aí, reprimiram a sublevação, impediram o seu alastramento e conseguiram restituir aos espíritos sobressaltados um ambiente de relativa, mas aparente, acalmia, dentro do qual a vida se processa em jeito de fazer acreditar que a paz está voltando.

Começaram a surgir então, aqui e ali, cá e lá e também além-fronteiras, ideias, opiniões e sugestões sobre o destino político do nosso ultramar. Enquanto as forças militares não restabeleceram a ordem ou, melhor, até à data em que eclodiram os acontecimentos de Angola, não havia nesta província, nem na metrópole, ninguém a agitar abertamente o problema ultramarino, muito embora, nos meios internacionais, se fosse preconizando e insinuando o direito das populações africanas à autodeterminação.

A partir dessa altura começaram a surgir, muito discretamente, as várias correntes de opinião já conhecidas: os entreguistas, os federalistas, os autonomistas, os separatistas, os imobilistas e os integracionistas.

Creio que os quatro primeiros grupos já devem estar copiosamente esclarecidos, pela própria evolução da política, de que as suas ideias não passavam de fogos-fátuos, que o tempo já se encarregou de extinguir com fortes esguichos de bom senso. Mas ficaram os partidários do statu que e os integracionistas.

Em defesa e apoio daqueles, toda- a imprensa deste país tem falado, pondo os da integração pelas ruas da amargura - e muito já se tem falado nesta Assembleia.

E o certo é que a integração, na sua humildade resplandecente de fidelidade e verdade, sem a arrogância que o capital insufla, sem contorcionismos, sem constrangimentos, sem desvios de lógica, apresentou-se com melhores títulos para assegurar a unidade e em condições de fazer renascer uma sociedade multirracial, insofismavelmente hierarquizada, e sem o mais leve prurido de segregação ou preconceito. Assim se entraria na linha tradicional do nosso comportamento ultramarino.

Transposto o Rubicon da política ultramarina com a propaganda da integração, eis que surge a primeira manifestação oficial séria, traduzida pela convocação aprazada do venerando Conselho Ultramarino. Mas logo as associações económicas de Luanda se apressaram a pôr de sobreaviso o Ministro do Ultramar, em telegrama de 26 de Setembro de 1962, que eu também subscreveria se pontificasse na economia daquela terra, redigido nos seguintes termos: .

Sem quebra devido respeito e consideração lhes consignam não querem deixar de referir que participação aqueles trabalhes antigos governantes ultramarinos e metropolitanos pode conduzir à sustentação de conceitos e opiniões por de mais ultrapassadas ...

Quatro dias mais tarde, em 30 de Setembro, a Associação Comercial, Industrial e Agrícola do Lobito-Catumbela dirigiu-se também ao Ministro do Ultramar, secundando as suas congéneres de Luanda, nos seguintes termos:

... apoiam pontos de vista nele expressos designadamente quanto prévia remessa texto, exercício voto e inconveniência participação trabalhos antigos governantes por razões expostas ...

O aparato de que se revestiu essa magna reunião e a subsequente campanha laudatória, lançada através da imprensa, da rádio e da televisão, do douto parecer com que foram coroados os trabalhos, apenas tiveram o objectivo de fazer nascei- uma expectativa ambiciosa no espírito dos colonos, que impressionasse o Governo e o levasse a perfilhar as soluções políticas que lhe fossem apresentadas. Foi a tal guinada para a esquerda para evitar o golpe das direitas.

Sem querer menosprezar a envergadura mental e a alta categoria social dos ilustres componentes do venerando Conselho Ultramarino, não constituiu surpresa para mim aquilo que foi dado à luz da publicidade. Não podia dar mais. Não podia ser o inspirador de uma nova política ultramarina. Até nisto podemos ver quanto andamos desviados do nosso verdadeiro caminho!

O Conselho Ultramarino, espécie de segundo Conselho do Estado para os Negócios do Ultramar, criado por el-rei D. Afonso VÊ, é restabelecido para responder aos assuntos postos pelo Ministro do Ultramar, que é a entidade que propõe ao Governo a nomeação dos seus componentes e preside às suas reuniões.

Assim seria fatal, como foi, que o Governo não podia contar que, da actuação de tão ilustres individualidades, lhe fosse desvendado um horizonte unificador e renovadamente construtivo.

Tudo se conjugou para disfarçar erros de orientação e manter o espírito da lei vigente, como para fazer acreditar à Nação que está certa a linha que vem sendo seguida, apenas se lhe introduzindo, a título de actualização e acerto, algumas alterações que possam satisfazer, em parte, as aspirações dos colonos.

A fidelidade aos princípios e doutrinas é que distingue os homens de bem e lhes dá o direito a serem honrados e respeitados. Honra, pois, a quantos homens ilustres intervieram na feitura do projecto que chegou até nós, porque foram fiéis aos seus princípios. Tal circunstância, porém, não impede que a verdade sobrepuje tudo quanto é digno do nosso respeito, por ser, por excelência, a mais digna de todos os respeitos humanos.

Mas o que surpreende e desorienta é que, vindo o Governo, desde 1946 - como se afirma no relatório que antecede o projecto -, a pensar rever as leis especiais para o ultramar, não se tivesse apercebido da grande evolução das populações nativas do ultramar e não se encorajasse a dar o passo decisivo que a própria Constituição preconiza no seu artigo 134.º, pois, volvidos que foram dez anos, isto é, em 1956, deu-nos uma Lei Orgânica talhada nos moldes da anterior.

Sr. Presidente: por intuição, sinto a conveniência de uma decisão que acabe por dissipar um resto de nuvens que ainda toldam o ambiente internacional a nosso respeito e leve às populações do ultramar a confiança e certeza em melhores dias, sendo-nos, até, muito fácil tirar partido do estado de indisciplina e desordem que reinam

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em alguns dos novos estados soberanos de África. Mas, valha-nos Deus, sejamos realistas !

Haverá alguém que pense que os princípios inscritos nas alterações que motivam estas palavras serão bastante convincentes para provocar uma viragem da opinião mundial a nosso favor? E eu não sou pessoa que me perturbe com as opiniões alheias a meu respeito. Nisso, sou exagerada e exclusivamente introspectivo.

Ë possível que a opinião pública do País se manifeste favoravelmente às alterações propostas, tanto mais que tem vindo, através da imprensa, a ser preparada para isso; mas não acreditemos que a opinião internacional se dê por satisfeita e convencida (ainda que saibamos que só amplamente se satisfaria se fôssemos para a autodeterminação), uma vez que o seu esclarecimento é feito à base de conceitos universalistas inspirados por ambições de hegemonia económica e política do continente africano, e não de opiniões públicas ditadas por interesses materiais enclavinhados cegamente no ultramar.

A perturbar a situação, cremos saber que as propostas alterações não tiveram grande aceitação em alguns sectores do ultramar, nomeadamente em Angola; entre os naturais o desapontamento é geral e entre os colonos reina insatisfação, por ser muito pouco o que se lhes oferece em face daquilo com que contavam.

Há, todavia, um sector muito restrito que aceita todas as migalhas, certo- de que «grão a grão a galinha enche o papo».

Embora as alterações propostas visem a solução de problema de ordem interna, afectando o ultramar, não podemos desprezar a conquista da boa vontade das outras nações, principalmente daquelas que de boa fé nos têm contrariado.

O Sr. Proença Duarte: - Quais são essas nações?

O Orador: - De momento não sei ao certo, mas lembro-me da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos.

O Sr. Proença Duarte: - São as do idealismo mercantilista em que V. Ex.ª falou? São as que pretendem realizar o neocolonialismo?

O Orador: - Essas é que são contrárias.

O Sr. Proença Duarte: - Mas essas que V. Ex.ª acaba de citar é que parece que também o são, e a essas não há também que dar satisfações.

O Orador: - Ora, mantendo-se as alterações impregnadas do espírito que totalmente tem informado as cartas e leis orgânicas promulgadas para o ultramar, não vejo possibilidade de uma viragem salutarmente progressiva da actual política ultramarina.

A opinião internacional aconselha-nos ao reconhecimento do direito das populações nativas do ultramar à autodeterminação; e os colonos pretendem mais ampla autonomia e maior descentralização.

As populações nativas, já desiludidas de poderem alcançar os benefícios de uma política de justiça e de promoção social, vivem em estado de desorientação propício a ser explorado prejudicialmente à unidade nacional.

Nesta conjuntura, enveredou-se por uma solução ambígua e tímida; pois, participando de princípios conducentes tanto à manutenção da unidade nacional (integração) como da independência, a curto ou longo prazo - sabido que o que se dá dificilmente se tira -, mesmo assim não satisfaz a nenhum dos sectores.

E penso que os caminhos que se nos deparam, sendo apenas dois, se apresentam suficientemente claros para nos facilitarem uma escolha segura e definitiva, insusceptível de mutações, a bem da Nação.

Ou partimos da absoluta certeza de que os territórios extra-europeus - o ultramar - são de direito e de facto Portugal, pelo sentimento, pela inteligência e pela acção, e que, portanto, devem ser preservados e impulsionados em perfeita simbiose com a metrópole até à consumação dos séculos, ou baseamo-nos na ideia de que a nossa tarefa é apenas a de preparar o nascimento de novas nações, em que fiquemos a preponderar pelo espírito, pela língua e por comuns sentimentos afectivos e interesses económicos.

Há quem assim pense, iludido com o caso do Brasil, que foi singular e ainda não tem par na história dos povos colonizados.

O caso do Brasil aconteceu assim porque brancos e negros não eram autóctones. Ambos eram estranhos na terra dos índios, que se encontram ainda no estado que nós conhecemos e que não tem paralelo nem semelhança com o dos nativos da África Portuguesa.

Não pode haver, portanto, hesitação na escolha do caminho: - manutenção da unidade nacional, por serem as terras e gentes do ultramar carne, sangue e alma de Portugal, que sem elas ficaria tão mutilado e tão desfigurado que já não seria Portugal.

Caminho diverso não legitimaria nem justificaria o esforço e holocausto da juventude do nosso país na defesa de chão que não seja seu ou se-destina a deixar de ser seu.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nem a Nação aceitaria o pesado esforço de guerra que lhe tem sido exigido e a que estóica e patriòticamente tem correspondido se não tivesse a certeza de que era o interesse nacional que estava em causa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Este raciocínio, que se nos afigura inatacável, não conduz a outra atitude que não seja a de nos mostrarmos contrários às autonomias, que hão-de reduzir, a poder de tempo, os laços que unem o Portugal africano ao Portugal europeu a um fio tão frágil que se partirá, por si só, ao mais leve atrito entre os dois.

Por lembrança e exemplo, citaremos o caso da criação dos Estudos Gerais nas províncias de Moçambique e Angola, ainda na lembrança de todos.

Sr. Presidente: espíritos altamente esclarecidos e qualificados sustentam que a projectada alteração respeita os princípios consignados na Constituição. Eu, mais curto de entendimento e de letras mais apagadas, vejo e entendo o contrário.

Não conseguindo dar à integração que o artigo 134.º da Constituição aconselha aquela interpretação que tornasse conformes as disposições das sucessivas Leis Orgânicas promulgadas para o ultramar, não tenho motivos para modificar a minha opinião.

E nela mais me firmo por verificar que, desde a promulgação da Constituição Política de 1933, são decorridos 30 anos, e os passos que têm sido dados na condução da administração ultramarina foram todos no sentido da autonomia, e nenhum no da integração que está prevista.

Em relação ao projecto, compreendo a posição do Governo; mas conto que não constitua motivo de escândalo se disser que, por mais voltas que possam ser dadas às alterações contidas no projecto, elas hão-de traduzir sempre

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o mesmo espírito autonomista. E, às populações nativas do ultramar, são prejudiciais à. necessidade e desejo de se realizarem.

O projecto em discussão tomou aspecto de excepcional transcendência, considerado o momento que atravessamos; tão excepcional que, como já disse, dará lugar na história os Srs. Deputados nesta legislatura. Por mim, só ingressarei com voz discordante, por espírito de coerência e de fidelidade à unidade política da Nação e de lealdade aos nativos e colonos autênticos de Angola - aqueles colonos com raízes firmadas na terra, e não com tentáculos sugadores.

Desprezador de meias soluções ou de soluções de emergência - que fecham os olhos aos factos evidentes - e desprendido dos interesses materiais, só parto de realidades morais e espirituais com vista a consolidar para o futuro a unidade nacional na diversidade das etnias e terras que constituem a Nação.

Sr. Presidente: até meados do século XIX ainda se fez colonização, no bom sentido do termo; mas não havia colonialismo. Daquela data em diante a colonização foi relegada para plano secundário, cedendo a posição cimeira ao colonialismo. Como se caracteriza o colonialismo? Tem toda a pertinência esta pergunta, ainda que pareça que não; pois, ao que tenho visto e ouvido, muita gente há que anda envolvida em assuntos ultramarinos que passa por ela como gato por brasas, mostrando ou fingindo não saber o que seja.

Todavia, é muito importante defini-la de modo bastante sucinto, para que fora deste hemiciclo se saiba que todos nós sabemos distinguir política colonialista da política de estado-nação. Talvez dê bom resultado.

Ora, como se caracteriza o colonialismo? Pela evidente diferenciação de leis e regimes especiais da metrópole e dos territórios que não lhe são contíguos, tornando acentuadamente diferentes as vidas e diversos os comportamentos das pessoas, em relação à metrópole, com vantagens dos colonos e funcionários sobre as populações autóctones.

Para regular as relações destes aglomerados ultramarinos (não sociedades) são elaboradas leis especiais: um estatuto para os colonos, outro para os funcionários e outro ainda para os autóctones.

As leis multiplicam-se à maneira que o aglomerado aumenta e progride. Ele tenderá ou não para uma unidade social, segundo a direcção e grau de incidência das leis. O órgão central de regulação e comando fixa-se na metrópole. E nesse órgão ou departamento que tudo se concentra e é dele que tudo parte.

A única ligação com o mundo metropolitano é esse departamento.

Concretizando: se se estabelece um regime de mão-de-obra que é inexistente na metrópole, faz-se colonialismo; se se concedem isenções, privilégios, terras, etc., com base em sistemas diferentes dos da metrópole ou que nela não existem, faz-se colonialismo; se se concedem ou reconhecem aos funcionários direitos e regalias que os da metrópole não têm, faz-se colonialismo; se os quadros de funcionalismo do departamento central e da colónia são diferentes e incomunicáveis, faz-se colonialismo; se a colónia tem um órgão legislativo e a metrópole tem outro, faz-se colonialismo; se se instituem regimes de governo e de administração diferentes dos da metrópole, faz-se colonialismo; se são diferentes os regimes tributários, faz-se colonialismo; se a massa obreira autóctone é excluída das organizações operárias dos colonos, faz-se colonialismo; se se cria um corpo de funcionários administrativos com o objectivo de manter o funcionamento eficiente do sistema, faz-se colonialismo; se ao órgão legislativo da metrópole for vedada a iniciativa das leis para a colónia, faz-se colonialismo; se a outros órgãos oficiais e de governo, estranhos ao departamento central, for vedado interferir na vida política e administrativa da colónia, faz-se colonialismo; se, sistematicamente, se faz por desconhecer a existência, na colónia, de valores culturais, técnicos e profissionais para colaborarem na política e administração da colónia, faz-se colonialismo; se as terras que constituem o espaço territorial da colónia, embora na maior extensão despovoadas e incultas, tinham donos e o Estado chamou a si a propriedade dessas terras e as concede a outros, faz-se colonialismo.

Como conservar a colónia sem colonialismo? Basta ir buscar as soluções à integração, que é o seu único diluente conhecido e que não fere a unidade nacional.

Descentralização e autonomia, conjugadas, não conseguirão dar origem a uma sociedade devidamente hierarquizada nos seus valores morais, espirituais, culturais e profissionais, porque o sistema se presta a conservação e desenvolvimento de uma sociedade fictícia que patenteia inversões de toda a ordem, na sua contínua mobilidade como as areias do deserto.

Este tipo de sociedades é exclusivo do colonialismo. Não nos molesta que, em meia dúzia de anos, faça fortuna quem quer que vá para o ultramar tentar a sua sorte.

A conquista de melhores posições e de bem-estar é legítimo imperativo da vida; as leis, e muito especialmente os seus agentes, é que deverão opor-se a que tais conquistas sejam possíveis por meios aparentemente lícitos.

O que nos choca e perturba é que tal facto, que pode ser multiplicado por um número altamente expressivo, dê motivo à subversão de valores e inversão de posições numa sociedade em que muitos dos aptos, vivem à margem dessa sociedade colonial. Aqui, na metrópole, nada disso acontece. E se acontece lá é pura consequência do colonialismo.

Descentralização, sim. Muita e da boa, no melhor sentido. Mas uma descentralização que possa ser fiscalizada pelos próprios governados, sem receio de represálias nas suas pessoas e até nos seus bens. Uma descentralização sem a faculdade de feitura das leis especiais e sem possibilidade de prática de actos discriminatórios e sujeita a vigilância e controle directo.

Uma descentralização desintegrada da vida geral da Nação e integrada, aparentemente, num arremedo de estado ultramarino português, comandado por um departamento central estanque, corresponde a uma desintegração potencial, porque vejo e sinto que o material tenta alcançar vitória sobre o moral e espiritual, com incalculáveis prejuízos para a Nação e perigosa divisão da família portuguesa. Quem sofre as consequências - boas ou más - da administração ultramarina não são os componentes da equipa aparentemente especializada, que teorizam no departamento central, são, exclusivamente, aqueles que vivem nos territórios ultramarinos.

Então que sejam eles a exercitar as actividades locais, sob o olhar fraterno e amigo do Governo Central, para que não tenham de atribuir à acção de outros os males de que venham a sofrer. Isto é impossível quando a lei é de tendência colonialista.

Por isso é que se nos deparam, com frequência, receios e perigos por isto e por aquilo ao pretender-se abordar o problema de alargamento à colónia de mais liberdades políticas e administrativas.

O sistema não admite enxertos que não sejam do mesmo tipo. Isto é o mesmo que se observa com certos líquidos que não são miscíveis entre si.

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Portanto, os perigos estão no próprio sistema, e não nos homens, que, quando muito, se vêem transformados em agentes desse perigo, por força das inibições que provoca. Julgo ter-me feito compreender. Assim venho falando, às vezes um tanto aberto e menos atento à discrição, para não obscurecer a expressão.

Sr. Presidente: o nosso problema de África é mais de natureza social, de relações humanas, do que problema político. E derivado da agitação provocada por determinados sectores das populações autóctones para emergirem da situação marginal para que foram arremessados por um sistema de administração ultramarina constituído contra a nossa mais pura tradição e pela própria sociedade a que ele deu origem e que, por ironia das coisas, assenta numa organização económica que tenta manter-se e subsistir apoiada nessas mesmas populações.

A responsabilidade de ter sido transformado em problema político cabe, absolutamente, a todos quantos pretendem disfarçar o verdadeiro sentido das inquietações humanas na África Portuguesa para não perderem posições ou não deixarem de ganhar menos.

Isto, por um lado, acrescido, por outro lado, da mistificação de factos intencionalmente feita para encobrir erros e desvios. E, quando se parte de dados errados, fatalmente que a solução achada há-de ser inadequada, infrutífera e, provavelmente, de resultados contrários aos ambicionados.

Fala-se muito em que, se soubermos manter-nos coesos, sairemos airosamente desta provação. Também eu creio firmemente nisso. Mas seja-me permitida a pergunta: será certo que, votando nós o projecto de alterações à Lei Orgânica do Ultramar, vamos contribuir para o fortalecimento dessa coesão que todos desejamos? Mas eu só vejo nele inscritas disposições que só servirão para cavar a desunião.

Não podemos tirar conclusão diferente se atentarmos no processo de constituição dos conselhos legislativos. Querem melhor fonte de desunião? Podem responder-me que os estatutos político-administrativos definirão o sistema de recrutamento em termos de prevenirem agitações muito próprias dos períodos eleitorais. Receio que, com carga que está reservada aos estatutos privativos de cada província, eles não se aguentem no jogo de tantos interesses.

Há princípios que deviam ficar expressos, definidos na própria Lei Orgânica, para que os estatutos privativos os traduzam ou interpretem fielmente na pormenorização, visto que as formas vagas se prestam a várias interpretações, de que pode ser escolhida a menos conveniente aos interesses do País e da província, muito embora nos dê aparência de coisa diferente.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Mas o que se torna essencialmente necessário às populações do ultramar é um regimento ou regulamento que defina o comportamento dos indivíduos entre si, os seus direitos e deveres dentro da organização social e as competências dos agentes do Poder em todos os graus.

Impõe-se restabelecer, notem bem, restabelecer, porque já tivemos essas regras, com se pode depreender da leitura que fiz daquele texto de 1739, aquilo a que se pode chamar a funcionalidade recíproca entre a evolução da mentalidade do homem negro e o comportamento do homem branco na busca de condições de vida e relações sociais.

Qualquer oscilação que conduza a um acentuado desequilíbrio resulta em consequências catastróficas, como já ficou exuberantemente provado. E é por completo desconhecimento desta regra fundamental do convívio social em África que, no passado, foi a fonte viva donde brotava a força e progresso daquelas incipientes sociedades e que inspirava os governantes nas providências de interesse local, que continua de pé esta pergunta, ainda hoje sem resposta: qual a razão por que, quanto mais aumenta o número de imigrantes em Angola, mais se agravam as relações entre nativos e metropolitanos e as condições de vida daqueles? E de muito alta importância uma conscienciosa meditação sobre este facto.

Não podemos desprezar, ou ter como acidente sem importância, a profunda brecha que se abriu entre a consciência do homem negro e os factos concretos que informam as condições da sua existência.

Não podemos fugir à interpretação viva da realidade social de Angola, sem juízos preconcebidos para atingir conclusões falsas, muito agradáveis embora aos espíritos que gravitam nas órbitas de vários materialismos. todos, mas todos, à margem dos interesses morais e espirituais da Nação.

As classes nativas do ultramar, que estão na base de todas as riquezas ali amealhadas, anseiam por quem autorizadamente fale pela Nação e lhes anuncie o termo da situação desigual em que têm vivido e restabeleça, com a solene garantia da lei, o primado da justiça social. Essa justiça social só a integração a pode dar, garantir e defender. E assim é que sem artifícios se fortalece a unidade nacional.

Isto é fundamental, em vista de não ser uniforme a composição étnica da sociedade no ultramar.

Tal regulamento ou regimento de que falei deve ser exclusivamente tirado dos princípios contidos na Constituição, que deve abranger também todo o ultramar, que é igualmente Nação Portuguesa, e não como tem sucedido e continua sucedendo - que seja a Lei Orgânica uma espécie de constituição para o ultramar e o estatuto político-administrativo uma subconstituição. E assim que se promove e preserva a unidade?

Inclino-me a pensar que estamos começando pelo fim. Se, com apoio numa organização administrativa para servir uma determinada política, chegamos a uma situação indesejável, que todos deploramos, parece que a primeira providência seria procurar outro caminho ou arrepiar caminho.

E arrepiar caminho consistiria em modificar a organização administrativa e a orientação política. Mas vejo que o projecto não nos dá nenhuma certeza, nem esperança a tal respeito, excepção feita à previsão vaga de alguns serviços poderem vir a ser de âmbito nacional. Ë, como disse, uma possibilidade posta em termos vagos que permitem a não concretização, o esquecimento, tal como foi durante 30 anos esquecido o artigo 134.º da Constituição.

Por outro lado, avivam-se as possibilidades de conflito entre o governador-geral e o conselho legislativo; sujeita-se o governador-geral a ver anulada ou rectificada pelo Ministro do Ultramar uma simples transferência de verba ou abertura de crédito dentro do orçamento privativo da província, que ele e o conselho legislativo elaboram - o que é claro expediente à mão do Ministro para indicar o caminho da exoneração ao governador-geral; continua-se, agora com maiores riscos, a manter este na dualidade do exercício dos Poderes Legislativo e Executivo, não se livrando de ficar envolvido no clima das paixões que o próprio meio há-de criar e que lhe tirará, grandes possibi-

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lidades de agir com serenidade e de tomar as decisões mais adequadas e justas; reparte-se a função executiva pelo governador e pelos secretários provinciais, embora por delegações dadas por aquele a estes, o que, na prática, vem a resultar em desprestígio para o Governo e para os serviços e prejuízos para os interessados nas decisões, em consequência de uma falsa noção de prestígio da autoridade que muitos funcionários têm.

Não concebo a impossibilidade de se dar ao governador-geral ao verdadeira função que deveria caber-lhe na província: de representante e guarda vigilante da soberania e, como tal, guarda da ordem e da justiça e fiscal, conselheiro, orientador, regulador e impulsionador de todos os órgãos e serviços em que se condensa a actividade pública.

Colocado o governador-geral nesta posição, ele estaria fora e acima de todas as paixões, dominaria com a indispensável serenidade todas as situações, que resolveria com maior segurança e certeza de ser justo. Seria para isso necessário adoptar o princípio da universalidade das leis; extinguir os conselhos legislativos locais, alargando a representação numérica do ultramar na Assembleia Nacional, e conferir a esta a faculdade de iniciativa de legislar também para o ultramar, assim tomando absoluta propriedade, como expressão prática de unidade, a denominação «Assembleia Nacional», que actualmente não corresponde à realidade.

Já sei que vão responder-me que tudo quanto sugiro não tem cabimento no âmbito da Constituição. Altere-se, então, esta primeiro. Por isso foi que eu disse parecer-me que estamos começando pelo fim.

No referente às autarquias locais mostra-se o projecto hesitante, pois não vai francamente para a organização municipalista, ao que se afigura, por falta de indivíduos hábeis o em número bastante em muitíssimas localidades e por estas não disporem dos rendimentos bastantes para sustentarem as despesas da administração. Aqui, na metrópole, também há municípios que não têm rendimentos suficientes.

O Sr Délio Santarém: - E muitos.

O Orador: -Mas, se o raciocínio foi esse, nada mais errado. Em obediência à nossa tradição, não creio inexequível e municipalismo no ultramar.

Prevejo até que seria o melhor meio de se criarem condições sérias para o real desenvolvimento de todos os territórios e localidades onde já existe um razoável número de colonos. Hoje, naqueles onde só vivem meia dúzia de colonos está tudo por fazer, e naquelas onde só vivem nativos nem é bom falar. Estão entregues aos chefes de posto e aos missionários.

Os melhoramentos primários - água, escola, posto de enfermagem - só se pedem quando começa a existir população branca em número apreciável. Antes disso não se fala na existência da povoação, a não ser para aquilo que nós sabemos, e tudo está entregue à sorte que lhes derem os chefes de posto e a solicitude dos missionários, que tanto podem ser nacionais como estrangeiros.

Uma organização municipal com os concelhos divididos em urbanos e rurais, por sua vez, agrupados em classes; cada concelho dividido em freguesias com a sua junta, e esta, por intermédio do seu presidente, com assento em sessões especiais que os respectivos concelhos realizariam mensalmente, expressamente para se inteirarem da vida e necessidades locais e orientarem e aconselharem os seus membros na melhor maneira de conduzirem a administração dos interesses da povoação, não me parece solução impraticável e de desaconselhar.

Estou a adivinhar que querem opor-me os inúmeros casos em que só há nativos atrasados nas povoações, analfabetos e desconhecedores da língua portuguesa.

Responderei que nisso não há inconveniente de espécie nenhuma: primeiro - temos de aceitar as línguas indígenas como línguas que fazem parte do conjunto cultural da Nação, tal como ainda existe um caso na metrópole, e ter a língua portuguesa como veículo de aculturação; segundo - qualquer administração há-de sempre mostrar-se ao nível dos administrados, sendo contrário aos interesses destes a presença de elementos mais evoluídos, apenas com o intuito de melhorar essa administração; terceiro - o homem, por mais ignorante e atrasado que seja, conhece melhor as necessidades do meio em que vive, e que hão-de estar sempre em relação com o seu nível mental e intelectual, e a maneira de satisfaze-las, do que a personalidade mais ilustre que ali vá fazer um exame para o mesmo fim; quarto - sob o ponto de vista político, aliás evidente a todas as luzes, o sistema alcançaria efeitos de tão grande transcendência que o seu valor, ainda que o possamos estimar, não podemos determiná-lo exactamente em amplitude e profundidade; quinto - não seria caso virgem em Portugal haver membros de autarquias locais que não soubessem ler nem escrever, e nem por isso os interesses colectivos foram mal administrados.

Estas, quanto a mim. as bases fundamentais e únicas em que deviam assentar os alicerces para a construção real e definitiva da unidade nacional no ultramar. E, depois disso, outras providências complementares teriam de surgir como natural corolário da organização autárquica.

Em que é que este sistema pode entorpecer o progresso do ultramar?

É claro que, no que toca ao desenvolvimento económico, não se pode manter um condicionalismo tão apertado que impeça ou retarde o desenvolvimento industrial, como hoje acontece. Mas isso não se alcança com a autonomia, nem é preciso perturbar as organizações económicas privativas da metrópole.

Basta que se efective a desconcentração de poderes e atribuições do Ministério do Ultramar em favor das províncias ultramarinas e, aqui, reparti-las, segundo a ordem de importância, pelos distritos e concelhos, deixando para os serviços nacionais, que comandam a economia do espaço português, as atribuições quanto aos assuntos e empreendimentos que afectem o todo nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não pode manter-se a situação actual de ter de vir a Lisboa um pedido de instalação de uma moagem, que anda por aí perdido, ou de instalação de uma secção de montagem de camiões e tractores, só para referir-me aos casos de meu conhecimento mais recente.

Tão-pouco se pode manter a prática de um industrial que em Silva Porto ou Cabinda queira montar uma oficina de reparações ou de um comerciante que pretenda abrir uma mercearia em Caculo-Cabaça ou Nana-Candundo ter de esperar que o respectivo pedido vá a Luanda para despacho do governador-geral, sobre informação do director dos Serviços de Economia.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Ao que isto se tem prestado só os milhares de interessados o podem dizer.

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E na especialidade das leis só fala quem não sabe ao que isso pode prestar-se na prática. Tenho alguns bons exemplos, que não refiro, quanto a Angola, porque tenho muito respeito pelos seus autores e devo pensar que foram vítimas inconscientes da sua boa - fé.

Com isto não queremos condenar a especialidade das leis: pode haver leis especialmente aplicáveis a qualquer província ultramarina, mas sempre para atender a situações peculiares e sempre emanadas do único órgão competente para legislar, que é a Assembleia Nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Não encontro também explicação para que os governadores-gerais não sejam obrigados a prestar contas de seu governo à Nação. E devia ser aqui, na Assembleia Nacional, perante, os Deputados e o Governo, com especial relevo para os Deputados da respectiva província, que deveriam prestá-las. Seria altamente salutar, esta regrazinha tão simples. Muita coisa não teria acontecido

Se em tudo quanto venho sugerindo alguém vislumbra riscos possíveis, corra-se, de entre todos, o menor, que será o melhor, pois não acreditamos que nesta emergência é possível salvar dedos e anéis.

Os que persistem em tal ideia, esses, só provam a sua ignorância do problema e com ela provocarão a perda não só dos anéis mas também a dos dedos, irremediavelmente. Mas se não é por ignorância do problema, então é porque estão apenas preocupados na defesa de atitudes pessoais ou de posições materiais de que a Nação não compartilha.

E nós pensamos que é dever do Estado salvar os dedos, os dedos de muitos milhões de portugueses que não têm anéis e precisam de viver, e os de outros muitos milhares que por lá se sacrificam velando, pela constância e integridade da soberania nacional, e deixar que se percam alguns anéis - porque os dedos daqueles são capazes de fazer, mais do que outros anéis que sempre fizeram para tão mal figurarem em dedos alheios, um diadema de refulgente glória com que esta «ditosa Pátria» pode cobrir-se e deslumbrar o Mundo, principalmente aquele Mundo que hoje tenta diminuir-nos.

Eis porque, Sr. Presidente e Srs. Deputados, fiel à minha formação e posição já assumida, não posso apoiar o projecto nem as alterações sugeridas pela muito digna Câmara Corporativa, se bem que concorde com algumas das suas sugestões que abrem as portas à política de integração.

No entanto, em consciência, entendi que não devia quedar-me numa atitude meramente negativa, pois não é esta a minha posição.

Não estar de acordo com certa medida ou determinada intenção do Governo não significa estar em oposição ao Governo. Por isso, tenho a oferecer sugestões e vou tentar apresentar uma solução construtiva.

Como já tive oportunidade de afirmar algures, nos momentos heróicos apenas soluções heróicas devem ser tomadas. Bem sabemos que é mais fácil e cómodo preparar um remendo e aplicá-lo em obra já feita e usada do que fazer uma obra totalmente nova, mais adequada ao momento que passa e visando decisivamente os sectores mais em evidência na alteração da ordem.

Resta ponderar se a facilidade e comodidade trazem consigo as garantias de segurança colectiva de boa estruração sócio-económica, de promoção e justiça social e de, tanto quanto o consinta a capacidade humana de prever e prevenir, a perpetuação, no tempo, da soberania nacional.

Nós pensamos que é fraco o projectado remendo para assegurar tão fortes condicionalismos básicos, levando-nos este nosso juízo a vaticinar que, mais dia menos dia, se romperá pelas costuras, sob a forte pressão dos factos e circunstâncias a que ele próprio há-de dar origem.

Assim, pensamos não ser possível dar novo rumo à política ultramarina sem que comecemos pela base pela Constituição Política da Nação. É neste estatuto que julgamos deverem ficar inscritos todos os preceitos fundamentais que hão-de regular a vida política, social, económica e administrativa do ultramar, como partes constitutivas do todo, que é a Nação, e não como acessório territorial, como domínio colonial, conforme inculcam e defendem uns quantos, cuja mentalidade considera o ultramar apenas pelos interesses materiais, que são os únicos que vêem e pesam nas suas opiniões.

As disposições por tal modo inscritas na Constituição seriam então regulamentadas por decreto com aplicação a todo o ultramar português. Não mais haveria cartas nem leis orgânicas, que, por melhor elaboradas que sejam, são sempre documentos confirmadores da existência de uma situação colonial.

E por mais habilmente que se apresente urdido e ordenado o seu articulado, é sempre um documento incompleto, porque não trata as populações nativas em plano igual aos dos colonos, com os quais se esgota na definição das suas relações com a metrópole.

Não nos parece difícil chegar a este desiderato. O que se torna difícil é sacudir do espírito ideias e hábitos velhos e pensar, de maneira nova, coisas novas, com apoio nas experiências passadas e recentes.

Esta solução implicaria sensível atraso na resolução do problema ultramarino; mas não nos parece que esse atraso seja prejudicial, pois, ao contrário, seria altamente vantajoso: permitiria substituir um projecto destinado a ter a vida efémera, por um diploma com mais fortes vincos de definitivo; não sujeitaria o Governo à contingência de, em curto prazo, ter de rever novamente a situação ultramarina (já ouvimos falar em sete meses), com a agravante de não vislumbrar, sequer, até quando terá de manter a Nação em armas.

E as armas já cumpriram esplendorosamente o seu dever. Resta criar as condições que determinem as populações nativas conscientes a aderirem espontaneamente à única política viável que nos faça acreditar no rápido advento de uma paz firme no ultramar e na certeza de integridade da unidade nacional.

Entretanto, a comissão eventual que está procedendo ao estudo do projecto do Governo continuaria os seus trabalhos, enquanto uma comissão parlamentar especial, secretariada por um funcionário ultramarino, iria realizar uma prospecção político-social às nossas duas maiores províncias de África, apresentando o seu relatório à comissão eventual, tudo no prazo de três meses.

A prospecção político-social visaria essencialmente: conhecer, de um modo geral, o estado de espírito das populações; inteirar-se das diferentes correntes de opinião; ouvir os sectores da população nativa mais evoluída e também os da menos evoluída, conhecendo os seus queixumes e desejos; efectuar um balanço geral da situação sócio- económica dos agregados populacionais; procurar conhecer como as diferentes correntes de opinião são veiculadas e os meios por que exercem a sua influência; formular, com base nos dados escolhidos, uma opinião, tanto quanto possível exacta, da situação política e do seu sentido predominante.

Cremos que será mais útil manter por mais oito ou dez meses a Nação em expectativa do que dar-lhe já um documento que de antemão sabemos não vai agradar a gregos nem a troianos.

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Poderá parecer perigosa a orientação exposta. Mas, analisada bem a situação, não ficamos a ignorar que há muito o perigo nos rodeia. Não se agrava nem se atenua; e pode ter um mérito, de esclarecer definitivamente o Governo sobre as vantagens e inconvenientes desta ou daquela solução e sobre o valor do apoio que para cada uma poderá colher, sem esquecer que o problema está levantado dentro e além fronteiras por acção dos naturais das províncias ultramarinas e não por quaisquer reivindicações dos colonos.

Este o nosso pensamento, sucintamente exposto com toda a sinceridade e com a convicção de estarmos trilhando serenamente, sem espírito sectário, o caminho curto d» segurança e do interesse nacional.

Tenho dito.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. O debate continuará amanhã com a mesma ordem do dia.

Está encerrada a sessão.

Eram 19 horas e 10 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alexandre Marques Lobato.
Antão Santos da Cunha.
António Burity da Silva.
Armando Cândido de Medeiros
Carlos Coelho.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Fernando António da Veiga Frade.
James Pinto Buli.
Joaquim de Sousa Birne.
Jorge Augusto Correia.
Jorge Manuel Vítor Moita.
José Dias de Araújo Correia.
José Guilherme de Melo e Castro.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Júlio Dias das Neves.
Manuel Amorim de Sousa Meneses.
Manuel Herculano Chorão de Carvalho.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Beis.
Rogério Vargas Moniz.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.

Sr s. Deputados que faltaram à sessão:

António Barbosa Abranches de Soveral.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Tomás Prisónio Furtado.
Carlos Emílio Tenreiro Teles Grilo.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
João Mendes da Costa Amaral.
José Fernando Nunes Barata.
José Pinto Carneiro.
Manuel de Melo Adrião.
D. Maria Irene Leite dá Costa.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Urgel Abílio Horta.
Voicunta Srinivassa Sinai Dempó.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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