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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 127
ANO DE 1964 7 DE FEVEREIRO
VIII LEGISLATURA
SESSÃO N.º 127 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 6 DE FEVEREIRO
Presidente: Exmo. Sr. Mário de Figueiredo
Secretários: Exmos. Srs. Fernando Cid Oliveira Proença
Luís Folhadela de Oliveira
SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.
Antes da ordem do dia. - fui lido o expediente. Usaram da palavra, os Srs. Deputados Alves Moreira, que enviou um requerimento à Mexa: Carlos Alves, sobre assuntos de interesse para a economia, de Angola; e Manuel João Correia, acerca do problema do tabaco em Moçambique.
Ordem do dia. - Usou da palavra, o Sr. Deputado Amaral Neto para efectivar o seu aviso prévio sobre a crise da agricultura portuguesa.
O Sr. Deputado António Santos da Cunha requereu a generalização do debate.
O Sr. Presidente encerrou a sessão eram 18 horas e 35 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai fazer-se a chamada.
Eram 15 horas e 55 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge.
Alberto dos Reis Faria.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Alexandre Marques Lobato.
Alfredo Maria de Mesquita Guimarães Brito.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
Antão Santos da Cunha.
António Augusto Gonçalves Rodrigues.
António Barbosa Abranches de Soveral
António Gonçalves de Faria.
António Júlio de Carvalho Antunes de Lemos
António Magro Borges de Araújo.
António Manuel Gonçalves Rapazote.
António Mana Santos da Cunha.
António Moreira Longo.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
Armando Francisco Coelho Sampaio.
Armando José Perdigão.
Artur Alves Moreira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto José Machado.
Belchior Cardoso da Costa.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Alves.
Carlos Coelho.
Carlos Emílio Tenreiro Teles Grilo.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Délio de Castro Cardoso Santarém.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando António da Veiga Frade.
Fernando Cid Oliveira Proença
Francisco António Martins.
Francisco António da Silva.
Francisco José Lopes Roseira.
Henrique Veiga de Macedo.
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James Pinto Bull.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Mendes da Costa Amaral.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Rocha Cardoso.
João Ubach Chaves.
Joaquim de Sousa Birne.
Jorge Augusto Correia.
Jorge Manuel Vítor Moita.
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos.
José Alberto de Carvalho.
José Augusto Brilhante de Paiva.
José Fernando Nunes Barata.
José Manuel da Costa.
José Manuel Pires.
José de Mira Nunes Mexia.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Pinheiro da Silva.
José Soares da Fonseca.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Folhadela de Oliveira.
Manuel Amorim de Sousa Meneses.
Manuel Augusto Engrácia Carrilho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Herculano Chorão de Carvalho.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel João Correia.
Manuel João Cutileiro Ferreira.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Irene Leite da Costa.
Mário Amaro Salgueiro dos Santo* Galo.
Mário de Figueiredo.
Olívio da Costa Carvalho.
Paulo Cancella de Abreu.
Quirino dos Santos Mealha.
Rogério Vargas Moniz.
Rui de Moura Ramos.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Dias Barros.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 81 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegrama
A apoiar a moção aprovada pela Assembleia no final do debate do aviso prévio sobre educação nacional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, antes da ordem do dia. o Sr. Deputado Alves Moreira.
O Sr. Alves Moreira: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa o seguinte
Requerimento
«No uso da faculdade conferida pelo n.º 1.º do artigo 95.º da Constituição e de acordo com as disposições regimentais, requeiro me sejam fornecidos com urgência os seguintes elementos informativos, pelos Ministérios das Corporações e Previdência Social e da Saúde e Assistência ou serviços deles dependentes:
1.º Normas de contratos estabelecidos entre a Federação de Caixas de Previdência - Serviços Médico-Sociais e hospitais centrais, regionais e sub-regionais, com a enumeração destes, relativos à prestação de serviços cirúrgicos pelas equipas das citadas instituições hospitalares a beneficiários das caixas de previdência;
2.º Só contratos da mesma índole foram efectuados com instituições particulares, nomeadamente com casas de saúde, e, na afirmativa, a citação das mesmas;
3.º Quais as remunerações das equipas cirúrgicas que porventura tenham vindo a prestar serviços a beneficiários das caixas de previdência por actos cirúrgicos, e se tais remunerações, quando existam, são feitas por intermédio das instituições que aceitaram os citados contratos ou directamente pelos Serviços Médico-Sociais; no caso de não existir remuneração directa ou indirecta pela prestação de tais serviços, qual o vencimento mensal normal dos médicos que compõem as equipas cirúrgicas recebido poios mesmos das instituições hospitalares.»
O Sr. Carlos Alves: - Sr. Presidente: do Acto Geral de Berlim, de 26 de Fevereiro de 1885, e do Acto Geral e Declaração de Bruxelas, de 2 de Julho de 1890, assinada em Saint-Germain-en-Laye, em 1919. pelos representantes dos Estados Unidos, da Bélgica, do Império Britânico, da França, da Itália, do Japão e de Portugal, e ratificada pelos Governos dos respectivos países, resultou a instituição de uma Convenção segundo a qual «o comércio de todas as nações gozará de uma liberdade completa em todos os territórios que constituem a bacia do Congo e dos seus afluentes, polo que, as mercadorias pertencentes aos súbditos das potências signatárias e dos Estados membros da Sociedade das Nações, que aderirem à presente Convenção, terão livre acesso, e nenhum tratamento diferencial poderá ser aplicado a estas mercadorias, à entrada ou à saída, continuando o trânsito isento de todos os direitos, taxas ou imposições que não sejam as cobradas pelos serviços prestados».
Os prejuízos verificados na vida económica do antigo distrito do Gongo, do Loge ao Zaire, pelo facto de se encontrar na área da bacia convencional do Zaire, foi objecto do uma intervenção minha nesta Assembleia, numa das sessões do ano passado. Demonstrei então como foram perniciosas, para o comércio e para as actividades dele derivadas, as consequências resultantes da política aduaneira aplicada, tendo em vista a letra da Convenção.
As medidas legislativas postas em prática pelo Governo, ao longo do tempo, com vista à supressão do contrabando de mercadorias estrangeiras, da bacia convencional do Zaire para o restante, território angolano, foram as responsáveis do definhamento actual das actividades comerciais e agrícolas, do retardamento do acesso das populações a níveis de vida de mais elevado teor e do estado do atraso em que se encontra aquele distrito.
Sei agora que outras medidas estão em curso e, pelas informações que superiormente me foram facultadas, vê-se que, na legislação aduaneira de aplicação em Angola, continuam a ressalvar-se as estipulações da referida Convenção.
Ora o regime da bacia convencional do Zaire, impondo um tratamento de excepção, no sistema geral das pautas
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aduaneiras de Angola, briga claramente com o espírito que rege as leis fundamentais da unidade económica portuguesa. Este o motivo por que volto a tratar do assunto, desta vez para fazer convergir as atenções para a própria raiz do mal. Tenho por mim que a extinção de tal monumento é a única solução viável do Interesse nacional em causa. Para uma melhor compreensão das razões que militam a favor dessa extinção, utilizarei, em primeiro lugar, os passos mais importantes da informação emanada da Inspecção Superior das Alfândegas do Ultramar, que vou seguir de perto.
O Decreto-Lei n.º 44 016, de 8 de Novembro de 1961, expedido pela Presidência do Conselho, para ser publicado em todas as províncias ultramarinas, promulgou disposições destinadas a promover a integração económica nacional.
Neste decreto-lei, nem no seu texto nem no seu preâmbulo se faz a mínima referência a bacia convencional do Zaire.
Julga esta Inspecção Superior que, «de acordo com o artigo 4.º da Constituição Política da República Portuguesa, o regime da bacia convencional do Zaire continuou em vigor, mesmo depois da publicação do Decreto-Lei n.º 44 016».
Reconhece que «a integração económica nacional preceituada no referido decreto não é incompatível com a Convenção, desde que as mercadorias de origem estrangeira importadas na bacia convencional do Zaire e as mercadorias dali exportadas para o estrangeiro passem também a ser livres de direitos, como as de origem nacional» - o que está fora de causa por não ser compatível com os interesses nacionais.
Em 7 de Março de 1962 foi publicado o Decreto n.º 44 224, expedido pelo Gabinete de S. Exa. o Ministro do Ultramar.
O projecto deste decreto, ao que parece, veio elaborado de Angola e foi remetido directamente ao venerando Conselho Ultramarino, para parecer, nos termos do n.º III da base X da Lei Orgânica do Ultramar. S. Exa. o Ministro de então, Prof. Doutor Adriano Moreira, no seu despacho que remeteu o projecto de diploma aquele venerando Conselho, levantou a questão prévia de se saber se ainda vigorava ou não o regime convencional da bacia do Zaire.
O venerando Conselho, antes de se pronunciar sobre o projecto, ouviu o Ministério dos Negócios Estrangeiros acerca daquela questão.
A resposta da Direcção-Geral dos Negócios Económicos e Consulares, do Ministério dos Estrangeiros, é, em substância, a ti e que Portugal continua a ser parte nos instrumentos internacionais que instituíram a bacia convencional do Zaire.
Concluiu o venerando Conselho que as disposições do projecto não eram inconciliáveis com a dita Convenção. Mas S. Exa. o Ministro, Prof. Doutor Adriano Moreira, despachou sobre este parecer:
Não estou convencido ainda de que deva considerar-se em vigor o regime do Zaire. Em vista da insistência do Governo de Angola e do apoio que tais medidas devam dar ao plano de reconstrução do Norte, publicar-se-á o diploma mencionando no preâmbulo esse motivo excepcional e transitório.
Aqui está o ponto crucial da questão, que convém fixar e não largar mais de mão. Continuando a decalcar os passos mais expressivos da informação, vemos em seguida:
Dada a circunstância já apontada de que o Decreto-Lei n.º 44 016 não contém qualquer referência á bacia convencional do Zaire, pode pôr-se a dúvida de qual teria sido a intenção do legislador, a respeito do regime aduaneiro a aplicar-se às mercadorias de origem nacional nos territórios da bacia convencional do Zaire.
Na falta de uma disposição expressa, supõe-se que aquele decreto-lei, relativo exclusivamente as mercadorias de origem nacional, não possa aplicar-se, sem mais esclarecimentos, por extensão, a um território onde as mercadorias nacionais não podem, por uma convenção em vigor, ser menos tributadas que as de origem estrangeira, estando os direitos destas fixados por lei especial.
E aqui está a origem das dificuldades. Onde não pode haver diferencial de bandeira não há outra forma de lutar contra o contrabando de mercadorias senão elevando os direitos indiscriminadamente, qualquer que seja a sua origem, prática largamente seguida no antigo distrito do Congo, dando como resultado a fuga do grande comércio de importação e exportação.
Quanto à incompatibilidade da Convenção com as leis de unificação do espaço económico português, passo a alinhar outra parte dos elementos colhidos da Direcção Provincial das Alfândegas de Angola:
Pràticamente - excepção feita ao registo posterior, referido no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 44 698, que é do exigir nos territórios da província abrangidos pela bacia convencional do Zaire, por determinação superior - a legislação relativa ao espaço económico português encontra um óbice na Convenção de Saint-Germain-en-Laye.
Nos territórios compreendidos pela bacia convencional do Zaire a soberania de Portugal é limitada, pois que a sua administração é feita pelo Estado em regime de sujeição as cláusulas da Convenção. Tal servidão deve terminar, em face da concessão de independência ao Congo ex-belga e às consequências do facto já constatadas.
A questão não podia ser posta com maior clareza. Apesar disso, a proposta de revisão do Decreto n.º 44 224, feita por aquela Direcção Provincial, visando o povoamento das terras do Norte, afectadas pelo terrorismo, mantém o regime de excepção, ampliando-o, o que na prática se traduz no quadro seguinte:
1) Zona beneficiada pelo decreto citado, ao longo da fronteira norte com o Congo ex-belga - de direitos mínimos.
2) Zona não beneficiada, das fronteiras da zona beneficiada ao rio Loge, dentro da bacia convencional do Zaire - de direitos elevados para os mercadorias de qualquer origem.
3) Zona livre, compreendendo o restante território, do Loge ao Cunene, onde se aplica a legislação relativa à unificação do espaço económico português.
A existência destas três zonas, além do mais que vou referir em seguida, exige tais dispêndios de energias e de dinheiros para a fiscalização do contrabando, que bem podem classificar-se de monstruosos: verba para a manutenção de estações aduaneiras nas fronteiras com o estrangeiro e com a bacia convencional do Zaire; verba para a sustentação de uma polícia fiscal, que deverá vigiar o contrabando da zona beneficiada para a não beneficiada; verba
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para alimentar outra ordem de polícia, de fiscalização às entradas e saídas desta zona para a zona livre; despesas volumosas sem cobertura, pode dizer-se, onde os rendimentos alfandegários, necessariamente modestos, não poderão arcar com os gastos de uma fiscalização que, para ser eficiente, terá de se estender por um território imenso, de 103 000 km2.
E a convicção que ressalta deste quadro é a de que a polícia, por numerosa que seja, não terá a capacidade precisa para evitar o contrabando, como se provou em 1945-1947, quando vigorou a Portaria Ministerial n.º 39. As mercadorias de contrabando, procedentes da zona beneficiada, invadiram então a província de tal modo que o Governo não encontrou outra forma de acabar com o mal senão abolindo a referida portaria.
Como já fiz notar anteriormente, o contrabando de mercadorias da bacia convencional do Zaire para o restante território de Angola, perseguido como um mal a exterminar, esteve sujeito a uma série de medidas legislativas, sempre aperfeiçoadas, ao longo do tempo, até chegar à sua completa eliminação. Acabou-se de facto com o contrabando, mas, paralelamente, acabou-se também com o grande comércio que, não podendo concorrer com a mercadoria importada fora da bacia, abandonou a praça, deixando-a entregue ao pequeno comércio.
O afastamento do grande comércio teve como consequência a estagnação da vida económica do antigo distrito do Congo, onde ficou a imperar a bacia, solitária e inútil, com as insígnias internacionais que a ornam, como coveiro insaciável, a espera das suas últimas vítimas, esse pequeno comércio que não consegue desenvencilhar-se do ponto morto em que se encontra, sem meios de expansão, nem estímulos encorajadores para o incremento das produções locais.
Gostaria de que o Governo mandasse alguém, em missão especial, ver e relatar, com fidelidade, o estado muito próximo de miséria em que se encontra aquele distrito: o primeiro nas descobertas de Diogo Cão e o último nos caminhos do progresso, por fazer parte de uma convenção estéril, cujo símbolo é a bacia. Dali nada mais há a esperar. Não se abre ali a janela de uma esperança. Não podendo promover-se ali o progresso dos populações, pela melhoria das produções regionais, nada se poderá adiantar no campo da promoção social; e isto constitui um perigo.
Outro perigo, e este de monta, por ofender o sentimento nacional, fundamenta-se no prolongamento desta privilegiada excepção no corpo da unidade, que se pretende, do espaço económico português. As leis de integração económica, mantendo a vigência da bacia, põem a questão de saber-se se a zona afectada é ou não portuguesa.
Em verdade, que validade terá presentemente essa Convenção, assinada por países de outros continentes, na qualidade de mandatários de um território africano, abarcando quase todo o Centro de África, quando esse território se apresenta modificado, geográfica e politicamente, por força dos Estados independentes nele formados?
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Como já vimos, o antigo Ministro do Ultramar, Prof. Dr. Adriano Moreira, disse no seu despacho sobre o Decreto n.º 44 224:
Não estou convencido ainda de que deva considerar-se em vigor o regime da bacia.
O chefe da Repartição do Gabinete de Estudos Técnico-Aduaneiros da Direcção Provincial das Alfândegas de Angola informou:
A legislação relativa ao espaço económico português encontra um óbice na Convenção de Saint-Germain-en-Laye.
E estaremos em boa companhia com a Federação das Rodésias e Niassalândia, que, em 1956, deu por findo o regime da área convencional e área não convencional, servindo-se das medidas do G. A. T. T. para adoptar uma pauta aplicável a toda a área da Federação.
De uma informação da Direcção dos Serviços Aduaneiros de Angola, assinada pelo director, Dr. Hugo de Sá Carneiro, lêem-se as considerações que se seguem:
Parece-me que, da parte do Governo Português, merece a maior simpatia a cruzada empreendida pela Federação para se libertar da servidão imposta por um tratado de outros tempos que defrauda a unidade da sua economia e que tem ressaibos de concessão como as que havia na Chino e que já acabaram.
E mais adiante:
Sobre o objectivo de finalizar com a existência do território aduaneiro da bacia convencional do Zaire, parece ao signatário que deve ser dado parecer favorável à fórmula expressa superiormente. E se bem ficou no entendimento do que se afirma naqueles dois ofícios, há que esperar a modificação dos regimes pautais vigentes em Angola, para que então pelos órgãos competentes se elaborem as sugestões a fazer aos países interessados no comércio com a província de Angola.
E, para terminar com as transcrições, cito ainda algumas palavras do despacho que recaiu sobre aquela informação, assinado pelo Sr. Dr. Francisco A. Maia Loureiro:
As razões que levam a Federação a procurar abrir brecha nos princípios da Convenção são também verdadeiras para Angola. Nestas condições, deve não só apoiar-se a iniciativa da Federação, como aproveitar-se toda a oportunidade que surja para abrirmos nós próprios também uma brecha, apoiados no precedente por ela criado.
Não havendo nada a acrescentar aos doutos pareceres acabados de citar, resta-me pedir a atenção do Governo para o caso especial do antigo distrito do Congo, carcomido nas raízes da sua economia e humilhado no sentimento pátrio das suas gentes.
Uma vez percebida a incompatibilidade da bacia convencional do Zaire com a organização da unidade económica portuguesa, que, como se viu, prejudica o progresso do território afectado e fere o sentimento pátrio dos seus habitantes, nada mais há a fazer senão remover esse óbice, que se opõe à realização dos anseios dos portugueses que lá habitam, a espera do momento em que hão-de trabalhar em paz, no mesmo pé de igualdade que os habitantes dos restantes distritos da portuguesíssima província de Angola.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
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O Sr. Manuel João Correia: - Sr. Presidente: como prometi na minha última intervenção, volto hoje a debater o problema do tabaco em Moçambique, problema tão importante para aquela nossa província do Indico, como também para o robustecimento da economia da própria Nação.
Vejamos, em primeiro lugar, como está a fazer-se em Moçambique o fomento da cultura do tabaco.
No II Plano de Fomento foi inscrita a verba de 50 000 contos para o fomento da cultura do tabaco na província, como base de povoamento, dizendo-se que «o valor da rubrica inscrita dá só por si uma ideia do volume da obra que se pensa levar a efeito».
Seria melhor ter-se escrito: que se pensava levar a efeito. As intenções são sempre boas, mas muitas vezes a execução não corresponde a essas intenções. Adiante se verá por que me exprimo deste modo.
Dizia-se ainda no relatório que precedeu a proposta de lei e projecto do II Plano de Fomento que «é possível e conveniente uma larga obra de povoamento com base nesta cultura» (a do tabaco) e que, «quer a zona de Malema e Ribaué, quer a zona do Chimoio, têm largas possibilidades neste campo de actividade agrícola, estimando-se em muitas dezenas de milhares de hectares próprios para esta cultura».
A Câmara Corporativa, por seu lado, ao emitir parecer sobre a referida proposta de lei, deu a sua concordância, apoiando o conceito, já mencionado no Plano, de que «a cultura do tabaco em Moçambique nas regiões de Ribaué, Malema e Chimoio provou já as grandes possibilidades da província para esta importante exploração agro-industrial», referindo-se ainda ao exemplo do que se passa nas Rodésias e na Niassalândia. E acrescentou que a rubrica tivesse a designação de «Povoamento baseado na cultura do tabaco e outras susceptíveis de fomentar a colonização», por acreditar «que outras culturas, além da do tabaco, possam ser consideradas para o fim em vista».
Não posso furtar-me a um comentário: evidentemente que existem muitas outras culturas e formas de ocupação agrária que podem servir o povoamento de Moçambique. Foi pena que uma verba que já não era muito grande para ser gasta num plano de cinco anos no fomento da cultura do tabaco - que pode trazer a Moçambique não as escassas cinco dezenas de milhares de contos inscritas no Plano, mas uma receita que poderá elevar-se a centenas de milhares de contos - tenha sido assim reduzida - permita-se-me a expressão - um pouco descuidadamente.
Para o povoamento baseado na cultura do chá - que também é rica planta industrial cuja cultura devemos defender - inscreveram-se no Plano, e muito bem, 76 000 contos, que a Câmara Corporativa aprovou no seu parecer. Mas o tabaco sofreu um corte, como se os 50 000 contos que lhe tinham sido destinados fossem de mais.
Assim, os 50 000 contos destinados no início ao fomento da cultura do tabaco sofreram posteriormente uma primeira redução de 15 000 contos. Com efeito, as dotações atribuídas para serem gastas no decurso dos cinco anos do Plano foram as seguintes: 3000 contos para 1960; 8000 para 1961; 6000 para 1962; 11 000 para 1963, e 12 000 para 1964. Isto é, um total de 35 000 contos.
Estas foram as verbas destinadas a custear as despesas com a brigada de povoamento com base na cultura do tabaco.
Vejamos, com referência aos anos de 1960, 1961 e 1962, como foram gastas as respectivas dotações.
Em 1960 apenas se gastaram 900 contos. Compreende-se que neste primeiro ano a brigada não tenha podido desenvolver trabalho de que tivesse resultado o gasto do montante da dotação, porque só começou praticamente a funcionar em Agosto, tendo os respectivos planos de trabalho sido aprovados apenas em Dezembro. Assim se perdeu o primeiro ano dos cinco do Plano. Perdeu-se no tempo e perdeu-se também no dinheiro que era destinado ao fomento da cultura do tabaco. Perdeu-se no dinheiro, porque o saldo que resultou da dotação fixada para 1960 - 2100 contos - teve quase todo uma aplicação muito diferente daquela que lhe pertencia. Tratava-se do fomento da cultura do tabaco e, portanto, todas as verbas deveriam ter sido aproveitadas no custeio dos trabalhos desse empreendimento.
Aquela verba, que deveria pertencer exclusivamente ao fomento da cultura do tabaco - e não era de mais -, teve o seguinte destino: 500 contos para reforço da verba de 1961 da própria brigada do tabaco; 1000 contos para a brigada de povoamento com base na cultura do arroz; 500 contos para a brigada do recuperação de terras e fixação de populações; 100 contos para a construção de tanques de piscicultura no Norte da província.
Dir-me-ão que todos os trabalhos enumerados suo de utilidade para a província. Certamente. Penso mesmo que não há duas opiniões diferentes. Mas este modo de trabalhar, retirando-se verbas destinadas a um determinado plano de trabalhos - neste caso um plano de fomento nacional - para se taparem buracos, é que não está certo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas continuemos na apreciação do modo como se utilizaram as verbas do Plano de Fomento destinadas a desenvolver a cultura do tabaco.
Os 3000 coutos inicialmente dotados para 1961 foram depois aumentados para 3500 contos, com a adição dos 500 contos que transitaram, como reforço, do ano anterior. Esta verba foi quase totalmente gasta, tendo restado apenas um saldo de 74 contos.
Em 1961 a brigada não pôde desenvolver maior trabalho, por falta de técnicos superiores. Sobretudo, tem tido falta de pessoal especializado na cultura do tabaco. De todo o pessoal com que iniciou a sua actividade - 15 a 20 funcionários -, apenas 3 desses funcionários eram conhecedores da técnica de produção do tabaco. O facto de, nos dois primeiros anos e pelos motivos que se apontaram, a brigada não ter podido esgotar as verbas dotadas não quer dizer que, acertadas as dificuldades com o recrutamento e especialização do pessoal necessário, não precisasse de verbas maiores para dispêndio nos anos seguintes. Em 1962, por exemplo, de uma dotação dê 6000 contos, apenas sobrou um saldo de 223 contos.
Para os trabalhos respeitantes ao ano de 1963 foi dotada a verba de 11 000 contos, que, entretanto, sofreu uma redução de 3000. Apesar de diminuída para 8000 contos, calcula-se que apenas dois terços desta verba possam ser gastos, porque a brigada continua a lutar com falta de pessoal técnico, isto é, falta de meios para poder executar um programa de trabalhos com vista ao fomento da produção, bem como ao alargamento a outras regiões da província dos estudos experimentais em curso, sem os quais não é possível iniciar a fase de fomento dessas regiões.
Se a brigada apenas conseguir despender cerca de dois terços da dotação atribuída para 1963, isto quer dizer que sobrará um saldo superior a 2000 contos. A dotação para 1964 é de 12 000 contos. Haverá, pois, 14 000 contos, que, pelas dificuldades apontadas - é triste concluir -, não poderão ter inteira aplicação na obra de desenvolvimento da cultura do tabaco incluída no II Plano de Fomento.
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Toda esta dança de verbas, inscritas e depois reduzidas, dotadas e depois não utilizadas, leva-nos a tirar a ilação de que o II Plano de Fomento não foi convenientemente estudado na parte respeitante ao povoamento de Moçambique com base na cultura do tabaco. Um plano rigoroso, estudado com profundidade em todos os seus aspectos, é para ser cumprido, é para ser devidamente executado, sem desperdícios e com o maior aproveitamento de dinheiro e de resultados.
Com efeito, planos do fomento destinados a absorver somas volumosas e nos quais são depositadas as maiores esperanças não devem ficar sujeitos a contingências desta natureza.
As verbas não utilizadas pela brigada poderiam, ao menos, ter boa aplicação no apoio e execução de um interessante plano para a fixação de agricultores de tabaco, em tempos sugerido, com acerto e oportunidade, pelo Grémio dos Produtores de Tabaco do Norte de Moçambique.
Vou referir-me, em poucas linhas, a esse plano, mas, antes disso, quero ainda registar, acerca das dificuldades com que a brigada de tabacos tem lutado, o que o seu chefe, engenheiro agrónomo Reinaldo Lima da Silva, escreveu a esse respeito num relatório intitulado Produção, Comercio e Indústria dos Tabacos em Moçambique. É oportuna a reprodução dessas palavras nesta intervenção, visto nela se defender o critério de que as verbas inscritas nos planos de fomento, que infelizmente nem sempre correspondem à dimensão da obra a realizar, deveriam ser integral e eficientemente utilizadas, para que delas se tirasse todo o rendimento e se alcançassem os objectivos tidos em vista.
Escreveu o engenheiro Lima da Silva a p. 183 do seu relatório, depois de historiar sucintamente as demoras que impediram que a brigada tivesse podido iniciar mais cedo os seus trabalhos:
Mesmo assim redigiu-se o «plano geral de trabalhos da brigada», foi-se admitindo algum pessoal e fizeram-se as aquisições que foi possível até 31 de Dezembro de 1960. Mas tudo têm sido dificuldades: é a falta de técnicos, é a morosidade na resolução das questões financeiras e administrativas, são, enfim, um mundo de questões que, a não serem resolvidas em breve e de modo a facilitar, pelo sistema da máxima responsabilidade com uma relativa liberdade, a vida da brigada, esta ficará impossibilitada de atingir os objectivos para que foi criada.
«Tudo têm sido dificuldades» - repito a queixa do autor do relatório -, e a brigada «ficará impossibilitada de atingir os objectivos para que foi criada»!
Não é sem uma grande tristeza que transcrevo as palavras que acima ficaram. Estes e outros casos semelhantes têm sido os maiores culpados do atraso em que ainda se encontra a vida económica da província. Boas intenções - o Mundo está cheio delas -, bons planos, bons projectos, mas realizações deficientes, realizações incompletas, realizações que não chegam afinal a ser realizações porque não realizam nada. Isto não pode continuar assim.
Fui informado posteriormente de que as dificuldades e morosidades que quase asfixiaram a brigada no início do seu trabalho diminuíram no decurso de 1963. Mas a verdade é que a brigada foi criada em 1960. Perderam-se assim quase três anos, ou seja metade do tempo estabelecido para o plano, em que os resultados não foram satisfatórios nem corresponderam ao que seria justo esperar.
É por estes e outros motivos, todos do mesmo jaez, que a província não avança naquela estrada de progresso que todos desejaríamos.
Vou agora referir-me ao plano a que aludi há pouco, plano este - no dizer dos seus autores - «para a fixação, como agricultores de tabaco, na área sob a jurisdição do Grémio dos Produtores de Tabaco do Norte de Moçambique, de militares prestando serviço no Comando Territorial do Norte», à medida que fossem sendo rendidos.
Merece especial referência este plano, pois teria permitido a fixação de muitos militares que desejariam permanecer na província terminado o seu tempo de serviço, mas que regressaram à metrópole, onde, incorporados nas fileiras do desemprego, criaram e estão criando problemas de colocação. Merece também especial referência porque se esses militares tivessem ficado na província, para nela se dedicarem à cultura do tabaco, seriam valiosos elementos de ocupação económica e povoamento. Custa aceitar a ideia de que um plano de tanta utilidade não tenha sido aceite, apoiado e executado e que se tenha deixado assim perder uma óptima oportunidade de concretizar uma forma de povoamento e de criação de riqueza.
Ninguém me encarregou de fazer a apologia do plano que o Grémio dos Produtores de Tabaco do Norte de Moçambique elaborou. Tive conhecimento dele por acaso, mas entendo que faltaria a um dever se o não defendesse, pois penso que se perdeu uma rara oportunidade para a fixação de algumas dezenas de militares, dos que vão terminando o seu tempo de serviço em Moçambique, quando tudo se deveria fazer para que continuassem na província, para que se dedicassem à grandiosa tarefa de arrancar ao solo de Moçambique os recursos económicos que esperam por quem os transforme em prosperidade e bem-estar para as suas populações.
Vou procurar explicar em poucas palavras no que consistia o plano do Grémio dos Produtores de Tabaco do Norte de Moçambique. Pretendia o Grémio instalar, numa 1.ª fase do seu plano, 40 militares desmobilizados, que iniciariam a sua aprendizagem junto dos agricultores já estabelecidos na região, escolhendo-se, para este efeito, os agricultores mais evoluídos. Esses candidatos a futuros agricultores teriam direito, durante o período de aprendizagem, que seria de cerca de 8 meses, a uma remuneração mensal de 2000$ para despesas de subsistência e auxílio às famílias que se encontram na metrópole. Ser-lhes-ia também fornecida uma pequena casa pré-fabricada de lusalite, mobilada com os peças indispensáveis.
No segundo ano, depois de concluído o estagio acima referido, o futuro agricultor, já possuidor, portanto, dos necessários conhecimentos relacionados com a cultura do tabaco, seria instalado em propriedade própria, num terreno, com a área de 100 ha, devidamente escolhido e situado o mais próximo possível da área da propriedade onde tivesse feito a aprendizagem, para que deste modo pudessem continuar a ser-lhe administrados conselhos e assistência.
O novo agricultor plantaria anualmente apenas 20 ha de tabaco, para que pudesse fazer a rotação recomendada pela técnica. Para este fim, precisaria, portanto, de dispor de 80 ha. Os 20 ha restantes seriam utilizados na cultura de outras plantas.
Está calculado, sem o perigo de exagero, que 20 ha de terreno podem produzir 15 t de tabaco, o qual, vendido a 20$ o quilograma (média que, em certos casos, pode ser alimentada), daria um rendimento de 300 contos.
Este seria já um capital apreciável, que o novo agricultor teria ao seu dispor no entrar no terceiro ano de actividade agrícola, para ocorrer a despesas com salários de trabalhadores, pagamento de um terço do custo de um
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tractor e de um jogo de alfaias agrícolas, adubos, insecticidas, combustíveis e até para a construção da sua primeira habitação definitiva, que seria construída de tijolo e inicialmente coberta de colmo, cobertura esta que poderia mais tarde ser substituída por zinco ou lusalite.
No quarto ano, além das despesas normais de exploração da propriedade, o agricultor iniciaria a amortização do investimento feito com a sua instalação, pagando a primeira prestação de 10 por cento desse investimento, ou sejam 33 contos.
Calculou o Grémio que a instalação de cada agricultor necessitaria de um investimento de 363 contos. Mas calculou também que, para fazer face ao sexto ano de actividade, o novo cultivador de tabaco poderia dispor já de um capital, em dinheiro, representado por 459 contos.
Com o começo, a partir do quarto ano, do pagamento das amortizações do capital investido no início da instalação do agricultor, passaria a verificar-se uma cobrança anual da ordem dos 1454 contos, capital este que poderia ser reinvestido na instalação de novos agricultores.
O plano é detalhado, com grande cópia de números comprovativos dos pontos de vista defendidos, com indicação clara do modo como o mesmo deveria ser executado, sobressaindo de todas as suas linhas a seriedade dos seus intuitos, numa preocupação de ver aumentada a produção de tabaco da província, para cujas ramas pode existir colocação assegurada.
A execução deste plano requereria o investimento total de 12 900 contos, mas, no primeiro ano, apenas seriam necessários 1640 contos.
Sem optimismos, feitas as contas com as reservas aconselháveis, talvez fosse possível, com aquele capital inicial e reinvestindo as amortizações, instalar em 15 anos 100 agricultores, isto é, 100 famílias, que poderiam produzir anualmente 1500 t de tabaco, no valor de 30 000 contos a 37 500 contos.
Isto partindo apenas de um pequeno capital à roda de 13 000 contos. Imagine-se o que seria se o investimento inicial fosse maior.
O Grémio diz que não dispõe de recursos financeiros para dar execução ao plano, acrescentando que o mesmo deveria ser cometido à Junta Provincial de Povoamento. Assim deveria ser, com efeito. E lá estaria a sua brigada de tabacos para dar apoio, para orientar, para acompanhar em todos os seus detalhes a execução do plano. Mas já vimos que esta brigada não dispõe de fundos que lhe permitam a execução de um plano como este, que seria afinal de tanto alcance para a ocupação económica da província no campo da produção do tabaco!
O plano do Grémio - objectivo e prático - não pôde ter execução por falta de verbas em que se apoiasse. Com efeito, não se compreende que um plano de fomento, que precisamente prevê o povoamento com base na cultura do tabaco, não possa executar e financiar um plano da natureza daquele a que me tenho vindo a referir, tanto mais que existe, criada em conformidade com verbas inscritas no mesmo plano de fomento, uma brigada destinada a fomentar o povoamento com base na cultura do tabaco.
Alguma coisa está errada. Estes são os erros, torno a repetir, que têm entravado o desenvolvimento de Moçambique. E por isso que os aponto aqui, chamando para eles a atenção do Governo, pois, com certeza, estamos todos de acordo que o Governo elabore e ponha em execução planos de fomento, que gaste dinheiro com planos de fomento - milhares, milhões de contos -, mas que esse dinheiro seja bem aproveitado, que esse dinheiro seja aplicado de maneira a multiplicar-se, que esse dinheiro se transforme em mais dinheiro, que esse dinheiro venha enriquecer a comunidade, venha resolver os nossos problemas económicos e sociais.
Imaginemos o que aconteceria se fossem investidas somas maiores do que os 13 000 contos requeridos pelo plano do Grémio: a província poderia conseguir em poucos anos uma grande produção de tabaco, com colocação garantida em primeiro lugar no mercado metropolitano, com óbvias vantagens para a zona do escudo, como diz o douto relator das contas públicas, e ainda para exportação para alguns países estrangeiros, grandes importadores de tabaco em folha e simultaneamente grandes fornecedores de Moçambique, com balanças de comércio nitidamente desfavoráveis a província, aos quais poderíamos procurar vender também uma porte da nossa produção.
Vejamos, em rápida síntese, este ultimo aspecto da questão.
Entre os países estrangeiros que têm importado tabaco em folha de Moçambique, figuram, a partir de 1952, os seguintes: a Alemanha Ocidental, em primeiro lugar, a Suíça, a Holanda, a Bélgica-Luxemburgo, a Austrália, Hong-Kong e outros em menores quantidades.
De todos, devo destacar a Alemanha Ocidental, que nos tem comprado maiores quantidades, tendo estas chegado a atingir 240 t, no valor de 3000 contos, em 1954, mas que caíram bruscamente a partir de 1958. A nossa exportação de tabaco para aquele país, em 1962, foi apenas de 3 t, no valor de 23 contos.
A Suíça tem-nos comprado pequenas quantidades, o mesmo sucedendo com a Holanda, com a Bélgica-Luxemburgo, com o Reino Unido e com os restantes países.
A Suíça comprou-nos 944 t em 1954, 24 t em 1955 e 11 t em 1956; a Holanda, 33 t em 1953, 10 t em 1954 e apenas 40 kg em 1955; a Bélgica-Luxemburgo, 3 kg em 1955 e 101 em 1958; a Austrália e Hong-Kong compraram, respectivamente, 41 t e 103 t em 1955, limitando-se as suas importações, até 1962, a estas quantidades.
Ora a verdade é que, com qualquer destes países, para não indicar outros, existe uma balança de comércio marcadamente desfavorável a Moçambique. Em posição muito desfavorável encontra-se também o Reino Unido, que não nos compra nenhum tabaco.
Os saldos das balanças de comércio com os países acima referidos, em 1962, foram os seguintes: Reino Unido, 208 903 contos; Alemanha Ocidental, 143 972 contos; Suíça, 25 943 contos; Bélgica-Luxemburgo, 57 140 contos, e Holanda, 139 546 contos.
Com a França, a balança de comércio apresentou-se equilibrada em 1962, mas no ano anterior o saldo, negativo tinha sido da ordem dos 31 000 contos. De resto, em 1961, as balanças de comércio com todos os países indicados apresentaram saldos negativos maiores, com excepção apenas da Holanda.
A todos estes países, como acabámos de ver, Moçambique compra muito mais do que lhes vende. São mercados para onde Moçambique poderá encaminhar uma dia - acreditemos que esse dia chegará - os excedentes da sua produção de tabacos, depois de abastecido o mercado da metrópole.
Todos os países a que acabei de me referir são grandes importadores de tabaco não manufacturado, pelo que não lhes seria difícil reservar contingentes para um bom comprador como é Moçambique, se negociações neste sentido forem devidamente encaminhadas.
A Alemanha Ocidental importou, em 1961: 97 500 t de tabaco; a Suíça, 15 000 t; a Holanda, 43 400 t; a Bélgica-Luxemburgo, 30 100 t: o Reino Unido, 156 700 t, e a França, 35 900 t.
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Outros países europeus, dos quais Moçambique mantém importações consideráveis, são também grandes importadores de tabaco em folha, cujos números estatísticos não menciono aqui para não alongar esta intervenção. A própria Espanha, com quem Portugal mantém relações de verdadeira fraternidade, é importadora de 34 000 t anuais.
A Austrália e Hong-Kong têm também balanças de comércio desfavoráveis a Moçambique; 21 408 contos contra a Austrália e 24 832 contos contra Hong-Kong, em 1962. São também importadores de tabaco e já uma vez o compraram a Moçambique.
Esta ideia não é inédita. É ainda do parecer sobre as Contas Gerais do Estado
(vol. do ultramar, p. 257, 1956) que transcrevo as seguintes palavras, as quais apoiam inteiramente a tese que acabei de defender:
Moçambique está assim em condições de concorrer nos mercados internacionais, dado o elevado déficit que mantém com certos países grandes consumidores de matérias-primas.
Penso que chegou o momento de se pôr definitivamente este problema do tabaco ultramarino no seu devido lugar. Moçambique pode, desde já, aumentar consideravelmente a sua produção de tabaco, porque, acertadas as diferenças que aqui indiquei na minha intervenção anterior sobre este mesmo assunto, com pequena alteração e interpretação da legislação em vigor, terá o mercado da metrópole como natural comprador da sua produção.
O Sr. Pinheiro da Silva: - Muito bem!
O Orador: - E quando esse mercado estiver suficientemente abastecido, pode ainda pensar na conquista de bons mercados estrangeiros, conquista que deveria ser feita ao mesmo tempo que o abastecimento do mercado metropolitano, com pequenas quantidades no inicio, que seriam aumentadas gradualmente.
Logo que a produção o justificasse, deveria ser criada na Junta do Comércio Externo de Moçambique uma divisão exclusivamente destinada ao estudo e prospecção dos mercados, de maneira a habilitar o Governo a fixar, nos tratados de comércio, contingentes de exportação para o tabaco de Moçambique.
Estou certo de que, se nos decidirmos por um verdadeiro fomento da cultura do tabaco, em que, a par da quantidade, se não descure a qualidade, poderemos ver, num futuro próximo, figurar no quadro dos principais produtos de exportação da província - onde só em 1961 figurou, pela primeira vez, o tabaco - este valioso produto agro-industrial, cujo valor poderá facilmente passar a ser representado por cifra não inferior aos valores de exportação do açúcar, da castanha de caju, do chá, da copra ou do sisal - todos oscilando entre a casa dos 200 000 e dos 300 000 contos anuais.
Sr. Presidente: ao terminar a segunda destas intervenções sobre o problema do tabaco em Moçambique - intervenções que foram feitas com o desejo de contribuir, com a modéstia da minha palavra, para a solução de tão importante problema -, seja-me permitido dizer ainda, que se torna impreterível uma autêntica, ampla, decisiva e definitiva política de fomento da cultura do tabaco no ultramar português, como obra que se impõe para o engrandecimento da própria Nação.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, para efectivar o seu aviso prévio sobre a crise agrícola nacional, o Sr. Deputado Amaral Neto.
O Sr. Amaral Neto: - Sr. Presidente: o Sr. Edgard Pisani, brilhantíssimo ministro da Agricultura de França, acreditado no seu país e fora dele pela inteligência e pela acção, proferiu recentemente em Cane, no fecho da 15.ª Assembleia Geral da Confederação Europeia de Agricultura, um discurso tão notável pela substância como pela forma, que tive o gosto e o proveito de ouvir; e, ao terminar, depois de se resumir dizendo que todo o problema dos agricultores está em evoluírem, em se organizarem, em se adaptarem às necessidades deste século, acrescentou ainda como necessária a informação deste mesmo 20.º século para que não esqueça a sua agricultura. E logo fechou invocando o homem das cidades para lhe dizer: as tuas cidades não te dão aquilo de que mais necessitas, e é a vida; então, por favor, não destruas o que te dá a vida e aprende a dedicar à terra esse mínimo de atenção, esse mínimo de dinheiro, esse mínimo de amor, sem os quais, algum dia, ela te poderá faltar!
r. Presidente, Srs. Deputados: aqui está o essencial do que eu venho procurar dizer, não a VV. Exas, que o sabem, mas, através de VV. Exas, ao Governo e ao País, aos mentores da opinião e as populações urbanas ensimesmadas, no intuito de lhes chamar a atenção para a verdadeira figura e causas da crise agrícola, cuja raiz está precisamente no crescimento industrial das cidades, que, por mecanismos nem de todos conhecidos, mas já suficientemente determinados, vai constrangendo e abafando a lavoura, e de lhes tentar mostrar a necessidade de não faltarem tão-pouco à nossa agricultura portuguesa com a estima, a compreensão e a ajuda que ela merece e de que necessita, para seu fortalecimento, que o será de toda a Nação!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E é neste facto triste, mas real, de os problemas da agricultura requererem hoje em dia aplicação dos espíritos que não seja só a da serena objectividade devida a iguais, mas também, se não principalmente, a do desvelo e mesmo compadecimento pedidos pelo homem de Estado francês, que eu posso desde já oferecer um critério da acuidade e da profundidade da crise em que se debatem os lavradores dos nossos tempos, os quais, em verdade, esquartejados por forças divergentes e de momentos sempre em crescença, estão esvaídos a pontoe de já não poderem por si sós retomar da terra as energias bastantes para caminharem a par dos seus irmãos das cidades na demanda da melhor vida em que todos têm os olhos fitos!
Que a cidade não destrua o campo, que o não esmague mais com o seu poder económico e a sua força política, que cesse de escravizá-lo, apoiada nos jogos financeiros de estranhos, à satisfação das suas necessidades e no saciar dos seus apetites, que, levando-lhe a nata dos seus filhos, não leve também o ânimo dos restantes: que tudo isto, e muito mais, se haja de pedir por favor, como se não fosse de esperar por justiça, eis a exacta figura da crise, eis por que a condição da agricultura nas sociedades mais ou menos industriais dos nossos dias já pôde ser definida como um factor de ruptura dos civismos nacionais.
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Na verdade, a crise, procedendo da quebra dos rendimentos agrícolas, é exacerbada psicologicamente pelo paralelo destes com a evolução dos sectores secundário e terciário da economia, e das condições de vida que uns e outros consentem aos respectivos agentes, seja ao nível dos empresários, seja ao dos operários, somando assim a um problema económico da primeira importância fermentos adicionais de descontentamento que levedam em questões de sério alcance político.
No nosso país, que dos seus atrasos não há-de tirar só danos, e onde a manifestação das paixões anda mais contida, muitos poderão não se ter apercebido ainda das possíveis consequências dos sentimentos de frustração desenvolvidos entre os camponeses; mas, para dar a medida de como esses podem levar, por desespero, a encarar a opção da violência, bastar-me-á citar os títulos ou subtítulos de três obras recentes, todas saídas dos prelos franceses nos meados do ano de 1963, da mais recente actualidade portanto: La Revolte Paysannc, do professor da Universidade de Lausana Jean Meynaud, sumário actualizado e estudo bem cerzido da problemática agrícola contemporânea; L'Heure des Paysans: Révolte ou Révolution Paysannc?, verdadeiro panfleto de inspiração, todavia conservadora; e La Révolution Silencicuse - Lc Combat des Paysans, de Michel Debatisse, um dos chefes do movimento reformista dos jovens agricultores do seu país.
Oxalá, oxalá possamos aprender com a experiência e a observação alheias a tempo e em medida bastantes para que jamais essa opção da violência apareça aos nossos agricultores como o recurso último, justificado pelo insucesso de todos os demais processos de reivindicação do tratamento justo!
Assentemos, para tanto, em que não é mais possível contar com a resignação dos homens dos campos; já não os isola no fundo das aldeias a falta de comunicação com o mundo urbano, e a fúria de viver melhor que deste se apossou também os toma a eles. Quem ousará, aliás, e com que direito ou razão, negar-lhes a igualdade nas aspirações e nos apetites?
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O que uns vão conseguindo, não nos iludamos, os outros o reclamarão, e acabarão por tomar para si, cora a força irresistível dos anseios humanos verdadeiramente sentidos! A alternativa só poderá ser a do aniquilamento, a do esmagamento por novos genocídios, discretos ou abertos, suaves ou brutais; mas então, então faltará as cidades a própria vida - como diz Pisani -, ou terão de hipotecá-la a estrangeiros!
Penso ser neste duplo quadro da busca da rentabilidade, das explorações contra a subida dos custos de produção e da da paridade de vida com as populações de outros sectores da economia; ou, melhor, no da busca da rentabilidade capaz de assegurar tal paridade de vida, que se encontra o verdadeiro problema da agricultura; e se este se não desenha ainda em inteira grandeza aos nossos olhos, não tenhamos dúvidas de que a ganhará depressa com o render das gerações e com a subida para a vida de camadas menos conformadas às privações tradicionais, pois os novos camponeses erguem-se a reclamar a plena medida dos seus direitos a vida moderna como condição indeclinável de continuarem a sustentar a das demais gentes.
Vozes: - Muito bem!
a Orador: - O professor Meynaud, a quem já me referi, abre o seu estudo com alguns parágrafos que não posso fartar-me à tentação de reproduzir para VV. Exas., pois, sendo um resumo perfeito das minhas palavras anteriores, dão-lhes o valioso apoio da autoridade científica e da largueza do campo de observação:
Existe hoje em dia na maior parte, se não na totalidade, dos países economicamente desenvolvidos um problema agrícola. Certamente, a natureza e intensidade dos perturbações ou conflitos que daí resultam variam segundo as experiências nacionais; mas raros sãos os governos aos quais, de tempos a tempos, as reivindicações dos cultivadores não acarretam sérios cuidados.
Ora, longe de representar um simples episódio, tal situação corresponde a tendências de fundo dais economias modernas, e seria vão esperar o termo destas dificuldades de evoluções espontâneas dos acontecimentos. Por razões que se precisarão, a agricultura parece destinada a constituir a preocupação permanente das sociedades ditas ricas, quer dizer, daquelas em que o consumidor solvente é amplamente abastecido. A aceleração do crescimento tem em geral por efeito não reduzir, mas agravar, a amplitude dos dissabores sofridos pelos homens da terra.
Se bem que a expressão esteja um tanto desvalorizada em consequência de abuso, é legítimo falar a este respeito de revolta camponesa. Depois de ter longamente suportado a má sorte com passividade, o agricultor, à medida que toma consciência da injustiça da sua posição, entra no campo dos queixosos: de modo silencioso o mais das vezes, a fuga para as cidades traduzindo o seu desânimo, mas também de maneira aberta e por vezes brutal, transformando-se então as manifestações agrícolas em provas de força.
Não sei se demos ou não graças por isto, mas nós ainda não estamos tão adiantados; vamos, porém, a bom caminho de lá chegar, que é precisamente o do desenvolvimento económico, e parece-me que quanto ao essencial do quadro já lhe reproduzimos bastante de perto as linhas.
«Calcanhar de Aquiles» das sociedades modernas, como já outrem lhe chamou, a agricultura aparece em dificuldades, tanto nestas como nas mais primitivas, o traço comum sendo sempre a insuficiência dos rendimentos para retribuir, a nível humanamente satisfatório, o trabalho nela aplicado.
A «miséria imerecida do mundo rural» não é, todavia, bem compreendida, pelas outras esferas da sociedade, de sempre afeitas a vê-lo viver extremamente desprovido de tudo que não fossem produtos directos da terra, estes mesmos quantas vezes duramente medidos pela natureza ou pela organização social; e, afeitas também a vê-lo cronicamente descontente das vicissitudes culturais, julgam as novas queixas ao mesmo nível das velhas inerências da actividade, sem atenderem a que decorrem agora de forças humanas, e não de leis naturais.
E também porque os contactos entre essas outras esferas e o mundo rural se estabelecem através dos elementos mais destacados ou evoluídos, as condições ou comportamentos destes fazendo com frequência generalizar erradamente, ao tomar excepções como amostras ou ao apreciar casos individuais fora das suas devidas relações com o meio próprio e com os casos congéneres de outros meios.
Certamente a luta pela vida é árdua em todos os domínios do esforço humano, e em todos são legião os que não atingem a justa recompensa das capacidades e diligência com que se aplicaram.
Mas parece não ser contestado que em nenhum sector como no da agricultura é hoje ao mesmo tempo tão geral
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e tão acentuado o sentimento dos próprios e o reconhecimento dos observadores quanto á insuficiência da retribuição do trabalho desenvolvido e das especulações empreendidas, como dos capitais investidos, pela dupla medida do valor absoluto e da comparação com os demais sectores.
E, como observa Meynaud, um dos traços mais alarmantes desta situação é que ela se nota tanto entre os que se deixaram ficar na rotina ou na estagnação como entro os que procuraram inovar!
Efectivamente, na apreciação da crise agrícola é ponto extremamente de considerar, para pôr prudência era sugestões como muitas para aí facilmente avançadas, este facto de aparecerem frequentes vezes como mais abalados os agricultores que mais procuraram modernizar-se.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O arguto Raymond Cartier, no notável inquérito feito à agricultura francesa pelo auge das reclamações que há poucos anos a agitaram, também pôde, por seu Indo, concluir que as cóleras dos agricultores as tinha por muito menos graves do que o desalento que os tomava ao verificarem terem sido inúteis os seus esforços de produtividade para saírem da mediocridade; e no nosso país não faltam exemplos de lavradores, corajosamente lançados no que esperavam ser a senda do progresso apoiados na melhor técnica acessível, profundamente desapontados, até à beira da ruína, quando não mesmo à desgraça da liquidação forçada, por os seus investimentos não haverem resultado bastante rendosos para cobrirem os encargos dos capitais para o efeito mutuados! Direi mesmo que, na minha observação directa, os lavradores que ainda vejo mais endinheirados são aqueles que menos modernizaram e melhor souberam manter-se agarrados às tradições de férrea poupança dos seus maiores!
Do caso particularmente conspícuo de certa lavoura explorada em sociedade, e que se tem expandido territorialmente, dizia-me um conhecedor: «... eles compram as propriedades, e depois deixam que elas tratem de si mesmas ...»; ora, por todos os indícios externos, o resultado, por condições particulares, não tem sido mau. Serão, todos estes, administradores prudentes, convenho; mas não me satisfaz nada a perspectiva de ter de me convencer de que a maior prudência está em não inovar!
Ferindo, pois, indistintamente rotineiros e progressivos, a crise da agricultura manifesta-se universalmente de três formas:
1) Empobrecimento;
2) Desclassificação social;
3) Despovoamento dos campos.
O empobrecimento da agricultura é vivamente afirmado na base da maioria das queixas e reconhecido sem divergências pelos observadores externos. Há, porém, que o distinguir sob duas formas: quanto a participação da agricultura, como classe, no produto nacional, o empobrecimento é universal; quanto às participações por unidade de mão-de-obra, comparativamente nos produtos nacionais e sectoriais, vemos evoluções diferentes em países diversos, conforme o jogo na agricultura dos factores concorrentes do aumento global da produção e do despovoamento, que faz subir a quota-parte produtiva, mas ainda a este título o empobrecimento se verifica em bom número de países, que não só no nosso.
Como é claro, se a capitação do produto na agricultura melhora, há em absoluto um enriquecimento, sujeito, todavia, à erosão dos termos de troca; mas se pia diminui, há empobrecimento, o qual será apenas relativo se o decréscimo só se verificar comparativamente com a evolução dos outros sectores. Em termos mais precisos: registar-se-á um empobrecimento, somente relativo, na agricultura, se as capitações do produto crescerem nela menos do que nos demais ramos da actividade económica, o que já será bastante para justificar o descontentamento dos homens do campo.
Como observei atrás, o mais acentuado crescimento industrial diminuiu por toda a parte a participação das lavouras nos produtos nacionais; isto é demasiado sabido para ser necessário demonstrá-lo, mas, por si mesmo, afectando o prestígio e o poder contratual da agricultura, é, se não uma manifestação, pelo menos um factor de crise.
Quanto ao empobrecimento relativo, ele é bem evidente em Portugal. O estudo do nosso ilustre colega Eng.º Araújo Correia inserto como apêndice do parecer sobre as contas públicas do ano de 1961 referente à metrópole, está ao alcance de todos VV. Exas.; por ele vereis que na década entre 1950 e 1960 o produto bruto por indivíduo activo aumentou apenas 1791$ para a agricultura e silvicultura, enquanto subiu 7561$ para o conjunto, pelas pessoas ocupadas o imediato em importância, das indústrias transformadoras e da construção. Como observa o nosso sapiente colega, a aceleração foi superior quatro vezes. Ao lodo dos demais produtores, os do campo viram subir muito menos o rendimento do seu trabalho; por isto se pode dizer que ficaram relativamente mais pobres. E, atenta a evolução dos salários, parece-me bem provável que, se fosse possível a discriminação por situações na profissão, se verificaria que o grau de empobrecimento relativo se acentuou para os empresários da produção.
No resto da Europa, a este respeito, as coisas não se passaram em toda a parte assim. O acentuado aumento de produção agrícola nos países do Norte e Noroeste europeus, não obstante forte abandono rural, fez com que, segundo a F. A. O. e para a década de 1950 a 1959, o produto bruto por unidade de mão-de-obra aumentasse mais na agricultura do que na indústria para a Bélgica, a Finlândia, a Alemanha Ocidental e a Noruega, enquanto para a Áustria, a Dinamarca, a França, a Itália, a Holanda e a Grã-Bretanha o benefício foi da indústria. São em todo o caso em maior número e representam maior massa económica os países em que o empobrecimento relativo da agricultura se verifica, em menor grau todavia, felizmente para eles, e graças aos esforços que puderam desenvolver, do que para nós.
Estes, porém, são os aspectos relativos da evolução dos rendimentos, a qual todavia partiu de diferenças de base que, diminuídas embora, por vezes, se mantém geralmente. Em termos absolutos, por toda a Europa o agricultor é mais pobre do que os demais produtores: o sindicalista francês Henri Cayre calculou para 1959 que a relação dos rendimentos unitários andaria entre metade e dois terços; em Portugal, pelos elementos que há pouco citei, essa relação seria de 45 por cento em 1960.
O agricultor é geralmente mais pobre, e empobrece ao lado dos demais. Eis a sua crise!
A causa directa desta crise é geralmente atribuída à deterioração dos termos de troca: termos de troca sendo, como sabeis, o nome dado à relação entre os preços recebidos e os preços pagos pelo agricultor.
Ouve-se frequentemente a observação de que a grande indústria tem subido baixar os seus preços; e, na verdade, graças às fabricações maciças, há produtos ou serviços cujos custos absolutos têm variado pouco em períodos até relativamente largos e cujos preços um função dos poderes de compra tom mesmo descido. Sem dúvida; mas o facto é quo os índices de preços sobem todos, mas
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muito menos os dos produtos agrícolas. O último número do Boletim da nossa Estatística menciona, por exemplo, relativamente a Outubro passado, entre outros, os seguintes índices de preços por grosso em Lisboa, tomando por base igual a 100 os do ano de 1948: produtos de alimentação, em conjunto, 110; produtos da metrópole, em conjunto 118; produtos fabricados na metrópole a partir de matérias-primas importadas, 117; produtos do estrangeiro, 113; cereais, 108 apenas; leite, 105.
Por outro lado, o francês Maré Latil calculou para o seu país que os produtos agrícolas teriam em 1955 dois terços do respectivo poder de compra em 1914 e metade do do período à roda de 1870; e nos Estados Unidos o parity ratio - índice dos termos de troca da agricultura, precisamente - já baixara para 82 no ano de 1957, contra 100 na média de 1910 a 1914, que serve de base ao cálculo dos preços de sustentação do mercado agrícola. Ainda em França está calculado que, partindo do ano de 1948, o índice dos preços dos produtos industriais necessários à agricultura estava 21 pontos acima dos dos produtos agrícolas na origem, em fins de Dezembro de 1962.
Por seu lado, a F. A. O. também opina terem os preços dos produtos não agrícolas subido mais do que os dos produtos agrícolas - mas é a própria evidencia! -, precisando que, no período de entre 1950 e 1952 até 1959, nos doze países da Europa do Noroeste, os preços do conjunto dos produtos (incluindo os agrícolas) progrediram 33 por cento, enquanto o índice só dos preços agrícolas não subiu senão um pouco mais do que 20 por cento; já na Itália, em igual período, a diferença foi muito maior: 16,9, contra 1,3 por cento.
Finalmente, à escala mundial, pôde calcular-se que, a preços correntes (termo de comparação sempre mais desfavorável, pela maior estabilidade dos preços agrícolas), tomando como base igual a 100 as médias do biénio 1952-1953, o índice dos preços mundiais de exportação de produtos agrícolas baixara para 84 no fim do ano de 1961, enquanto o dos produtos industriais subira para 107.
Não parece haver lugar para a mínima dúvida de que no tocante a preços o desfavor, à escala nacional portuguesa, como a escala internacional e mundial, é constante para a agricultura, e a sua influência nos rendimentos é a determinante mais poderosa do empobrecimento.
Este empobrecimento, sempre em termos relativos, sempre por comparação com os demais ramos económicos, continuo a precisar, tem medida ainda mais nítida, mais clara e mais insofismável na diferença - na permanência e na acentuação da diferença - dos níveis de vida. Quebrado porventura o seu ritmo, nos últimos anos, à altura dos assalariados, pela brusca explosão dos salários - mas decerto só neste grupo -, o movimento desde há decénios, desde há talvez um século, é de francamente maior aceleração das condições favoráveis de vida entre os agentes e empresários das indústrias e dos serviços do que entre os da agricultura. A velha habituação à dependência e conformidade destes não fazia notar a diferença; muita gente a tomaria (e tomará ainda) como uma inevitabilidade, se não lei natural ou social, mas o facto é real e só traduz o empobrecimento agrícola.
Nada acrescentarei por agora, pois seria pretensioso da minha parte insistir no que salta aos olhos, e de que aliás literatura bem recente e conhecida ri á a exacta distribuição escalar; mas repetirei uma e muitas vezes que a consciência da disparidade, gradualmente entrada no mundo rural, agrava a sua sensação de inferioridade e amplifica-lhe os motivos de protesto, enquanto os observadores imparciais têm de reconhecer-lhe o fundamento da razão de queixa.
Cada dia mais consciente das forças que se têm abatido sobre ela, e da sua impotência para lhes resistir sozinha, a agricultura sente-se também objecto de um movimento lento, mas inexorável, de desclassificação, de perda da estima da sociedade urbana. Sem duvida, esta andou-lhe sempre muito alheada; já o velho La Bruyère, de quem é bem conhecida a negra pintura dos camponeses do seu tempo -provavelmente negra de mais -, reconhecia há 250 anos que os citadinos se criavam muna indiferença grosseira pelas coisas rurais e campesinas. Mas isto foi há muito tempo, num tempo particularmente deslumbrado pelo brilho das cortes e pelas luzes da sociedade intelectualmente polida e em que as comunicações eram difíceis.
Depois, porém, ao menos os políticos e os economistas aproximaram-se do campo, os primeiros para lhe explorarem e ou segundos para estudarem a potência que detinha, e o sentimento desta reconfortou a alma rural. Com o decrescer do poder económico relativo da agricultura, a cidade, todavia, voltou a alhear-se, e gerou-se nos campos, no dizer expressivo e universalmente aplicável de outro ministro francês, um complexo de frustração, de injustiça e de abandono.
Os homens do campo, por essa Europa toda como em Portugal, vivem nitidamente fartos de ouvirem os citadinos não falar senão da melhoria do seu nível de vida e da ampliação dos seus, deles, lazeres e regalias.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sentem-se longe - no espaço e no pensamento - dos centros que os comandam; acham que a sociedade moderna faz poupo coso deles; verificam que o poder público e os meios influentes tendem sempre a dar prioridade à indústria sobre a agricultura.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Vejamos só como entre nós são diferentes tis atitudes perante a ineficácia económica de uma e da outra.
Aquela não é mais eficiente do que esta, em muitíssimos casos; não tem produzido menos caro, nem exigido menos protecção contra o exterior; mas tenho visto dirigir-lhe por isso críticas menos acerbas, e a válvula do comércio externo menos oferecida em ameaça, se não mais manobrada em defesa, até em detrimento da produção agrícola.
Por outro lado, anda muita gente a mostrar-se preocupada com a pouca eficácia social da agricultura, sem nada dizer, ainda quando viria muito a propósito, da da indústria, que tão-pouco é famosa.
E a dedicação a ideia do progresso industrial como factor do crescimento económico é tamanha que se têm postergado hipóteses viáveis de o ajudar, na relatividade das nossas circunstâncias, pela via do empreendimento na agricultura, sob a cegueira de industrializações que acabem por mostrar impressionantes dificuldades de atingirem era boas condições os seus alvos.
Seja-me lícito ilustrar esta consideração com o caso extremo - extremo em dimensão e quiçá em deficiência de rentabilidade - do estabelecimento da siderurgia. Ao cita-lo quero dizer que não me coloco contra a ideia em si; aliás, aprovei-a, como muitos de VV. Exas., ao dar aqui voto favorável nos planos de fomento que a propunham. E compreendendo perfeitamente, e aplaudo, o objectivo que a ditou, de autarcia, de segurança do aprovisionamento nacional em produtos de base; mas este mesmo, infelizmente!, não o vejo assegurado, nem sei se o poderá brevemente vir a ser em medida satisfatória.
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De momento, porém, o quadro é este: um investimento que consta ser de perto de 3 milhões de contos e funcionando a três quartos da capacidade, um valor anual de produto da ordem de 500 000 contos, com menos de 3000 pessoas empregadas. Desse produto, porém, uma terça parte tem de ser exportada, com 46 por cento de desvalorização; e o que cá fica poderia, segundo há pouco ouvimos aqui mesmo, ser importado do estrangeiro por cerca de metade do preço, de modo que até o objectivo conexo do desenvolvimento das indústrias metalomecânicas pelo acesso mais fácil à matéria-prima tem sido frustrado. Sobre tudo isto, ainda importámos, em 1962, 1 300 000 contos de outros produtos de ferro e aço.
O empreendimento foi largamente saudado como forte avanço no sentido do desenvolvimento da Nação; penas de estudiosos e de políticos, melhor ou pior aparadas, derramaram torrentes de embevecimento sobre ele, e na inauguração da fábrica fomos todos informados de quanto ela contava, pois um país sem siderurgia era uma horta ... Não sei se com isto se quis marcar uma preferência por aquele belo céu plúmbeo-alaranjado do Seixal sobre as verdes frescuras das nossas terras saloias; o que sei é que, se por este critério dantes éramos uma horta, agora seremos um luxuoso parque ... para recreio de raríssimos apenas!
Não posso deixar de pensar, com certa melancolia, que talvez com uma décima parte apenas do investimento feito, se tanto, em igual tempo, com igual afinco, se necessário com igual recurso a experiência estrangeira, poderíamos ter constituído uma fruticultura capaz de suportar satisfatoriamente muito mais gente e de nos ganhar muito mais divisas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quem se atrevera na altura, todavia, com esperanças de ser escutado, a propor esta diversão como objectivo de imediata rentabilidade?
A sujeição da agricultura ao escopo de todos os governos, que é o de assegurar aos habitantes dos grandes centros alimentação barata, relega a actividade camponesa a um fim que lhe é estranho - o de favorecer as condições de existência dos meios não agrícolas - e dá ao lavrador a impressão de ser reduzido à mera categoria de instrumento de uma economia que não trabalha para ele.
A cidade esmaga o campo, escreveu o economista agrário Jules Milhau. Direi, por mim que a cidade pratica sobre o campo o último colonialismo dos nossos dias.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Toma-lhe matérias-primas, a preços e condições que ela mesma regula, e vende-lhe, nos suas condições próprias, produtos acabados, com cuja preparação enriquece. E, tentando impor-lhe os seus próprios valores e critérios, soma à exploração económica uma verdadeira desmoralização, na medida sobretudo em que tenta o campo a esquecer ou a revoltar-se contra as leis biológicas que têm de regular-lhe a vida, por tanto depender da Natureza.
Os quadros políticos, administrativos e industriais das nações modernas raciocinam em termos mecânicos, em termos matemáticos, com esplêndida, e porventura algum dia fatal, indiferença pelas incertezas da biologia, e na duvidosa segurança da armadura que têm tentado forjar contra as contingências da Natureza vão pouco a pouco minando na alma rural o amor e à conformidade com os ditames e as variedades da sua mãe, da sua mestra, da fonte mesma da sua existência. Poderá o homem da cidade finalmente subsistir à margem, ou em oposição ao equilíbrio biológico? Não sei, mas sei que, por agora, mostrando-se orgulhosamente indiferente às suas servidões, acrescenta mais algumas pedras ao prato da balança em que o camponês pensa vê-lo elevar-se no mundo social!
Deslumbrado o campesino pelas riquezas, e comodidades, e seguranças da cidade; acabrunhado pelo sentimento da subalternização progressiva, é apenas inevitável que procure fugir para onde tudo lhe parece mais brilhante, e dá-se o abandono dos campos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O despovoamento é a terceira grande manifestação, ou efeito, da crise que assoberba a agricultura; e parece estabelecido, até onde pode chegar-se com alguma verosimilhança, que na pouquidão ou insegurança dos ganhos está a sua grande causa. Remeto VV. Exas para um moderno estudo estrangeiro, há pouco publicado em tradução pelo nosso Instituto de Investigação Industrial; ali se nos diz que, segundo inquéritos directos, as principais razões alegadas para o abandono dos campos se reduzem todas a manifestações diversas da insuficiência do rendimento, a própria dureza da vida contando por muito pouco. Outra voz nos vem de Itália no mesmo sentido; ali, de entre 27 000 jovens camponeses, 73 por cento declararam que abandonariam imediatamente a terra se tivessem a oportunidade, mas a maioria acrescentou que ficaria se pudesse ganhar melhor.
Sobre a matéria penso que os mais de nós nesta Casa, todos quantos temos alguma ligação com o campo, também teremos as nossas próprias observações, filhas dos pedidos de empenho para emprego urbano. Pela minha parte, não me levam a outra conclusão.
Para os puros economistas, a redução do emprego agrícola é a consequência do desenvolvimento, posto que este só se entende possível pela via da indústria, e a condição necessária de maiores expansões, que abastecerá de mão-de-obra.
Também crêem, provavelmente com razão - ponto está em os demais factores ajudarem -, que só através da redução da carga humana poderão os restantes ter no campo a melhor vida ambicionada.
E por tudo isto olham sem preocupações o êxodo e, por vezes, julgá-lo-ão insuficiente; nem tenderão a apoiar medidas que pensem poder, evitá-lo, nem se afligirão todos muito com a crise agrícola enquanto ela se lhes apresentar como factor de aprovisionamento barato dos efectivos fabris.
Há que prevenir este egoísmo nas atitudes perante as aflições da lavoura!
Pondo de banda a posição dos sentimentais, dos conservadores e dos bucólicos, creio que o êxodo rural é fenómeno já inevitável, e, portanto, a olhar com equanimidade se puder ser processado em termos de permitir vida decente aos que ficam e de assegurar igualmente vida decente aos que partem. Nenhuma destas condições se tem realizado perfeitamente entre nós, e aqui os males a remediar.
Dos que partem, muitos não são bem acolhidos pela cidade que vêm aviventar. Mal preparados eles, mal preparada ela, a absorção não é sempre pronta, e a acomodação não é mais; e aí fica esse rebotalho demasiado numeroso, reduzido aos misteres mais humildes, fácil presa da doença, sem emprego certo, relegado para as barracas infames, de quando em vez a pedir esmola pelas ruas, furtivamente se a cidade não lhe destruiu ainda toda a dignidade humana, sabe Deus quantas vezes sau-
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doso da aldeia, da parentela e dos amigos abandonados, e desesperado de nada ter ganho em troca.
Para os que ficaram surge o problema de adequarem as tarefas produtivas à mão-de-obra reduzida e, segundo ponto importantíssimo, encarecida pela procura. Novas técnicas, novo material adjuvante, são necessários; mas este é caríssimo, aquelas resultam ou não; o certo é um pesado acréscimo dos encargos da produção, que não poda ressarcir-se nos preços, e se o conseguir fazer nas quantidades poderá vê-las desvalorizarem-se nas suas mãos. Em suma, o êxodo rural tende a agravar a crise agrícola que o provoca, ampliando-a em efeitos de ressonância.
Empobrecimento, desclassificação social, despovoamento dos campos, eis a tríplice figura da crise. Na base de tudo, porém, o que vamos encontrar é o desenvolvimento urbano e o crescimento industrial, no duplo efeito da criação de pólos atractivos e padrões de vida que obrigaram a agricultura a adaptações difíceis e dispendiosas, e do estabelecimento de condições de mercado que a impediram precisamente de realizar todos os rendimentos assim tornados necessários.
O primeiro efeito chama-se progresso; saudá-lo-ei, sem nada lhe opor que não seja a devida congratulação.
O segundo efeito tem sido de domínio, possibilitado pela organização do comércio e da indústria, pelas tendências da política e pelas contingências da produção e venda agrícolas.
Começando por estas últimas, recordarei a impossibilidade em que a agricultura se encontra de comandar a sua produção com vista a melhor economia. Sem embargo de alguns pretenderem fazer crer que a técnica venceu as contrariedades do tempo, a verdade pura é que mesmo nos países mais adiantados e com mais favoráveis condições naturais são correntes flutuações de rendimentos de até 20 por cento o mais, para uma ou outra banda das médias, só pelo efeito do calibre dos anos; por outro lado, certas especulações só se realizam a prazo largo, no termo do qual podem ser de prejuízo condições diferentemente previstas - será o coso, por exemplo, das culturas arbóreas ou arbustivas -, não obstante, os investimentos feitos lá ficarão a pesar, obrigando a continuar a exploração para salvar ao menos os encargos fixos. A meteorologia e os ritmos naturais de formação não cessaram de influir no rendimento agrícola, superando a vontade dos homens por mais apurada que seja a técnica.
Mas, se a agricultura não venceu as contingências da produção, mais débil se tem encontrado perante as da venda dos géneros colhidos.
O agricultor vende em mercados dominados pelos compradores e compra em mercados
dominados pelos vendedores, sem que nunca a sua intervenção prevaleça quanto ao comportamento dos mesmos mercados, a que está sempre sujeito, onde se apresenta sempre em estado de inferioridade, porque nunca o agricultor isolado tem importância tal que a sua acção determine modificações apreciáveis da oferta e da procura global, enquanto o comercia com que se debate, menos dividido, está em regra apto a ditar-lhe os seus termos.
As três condições da concorrência pura: atomicidade, homogeneidade dos bens negociados (que permite escolher a vontade os vendedores e força estes a ganharem a preferência por transigências nos preços) e ausência de coalizão são em regra perfeitamente realizadas pelos produtores agrícolas ao comparecerem nos mercados para enfrentarem um comércio entendido ou em condições de se entender para endurecer as transacções. Daqui, aliás, a insistência e o cabimento dos conselhos dados aos agricultores para se organizarem, a fim de se constituírem em poder económico a altura dos exigências da sociedade moderna.
Outro factor notoriamente prejudicial à agricultura está na relativa inelasticidade do consumo de géneros agrícolas, essencialmente destinados à alimentação. Fenómeno hoje assaz falado, o nosso povo já o adivinhava no desafio, insolente lançado aos ricos: «Se têm muito, comam duas vezes!». Por maior capacidade de compra de que se disponha, não é possível aumentar indefinidamente o consumo dos alimentos, além do que outros apetites intervêm a solicitar as bolsas, uma vez satisfeitas as necessidades fundamentais de subsistência; do modo que os agricultores estão, como bem se sabe, sujeitos a quedas muito rápidas dos preços se vêm ao mercado mais abundantemente providos. O contrário também se poderia dar, é certo, mas hoje em dia só em circunstâncias verdadeiramente excepcionais, pois o atalho das carências por importações do exterior é a reacção pronta das administrações.
Joguetes da natureza e do comércio, os agricultores tiveram de se acolher à protecção dos políticos logo que os mercados se lhes tornaram permanentemente adversos pelo afluxo daquelas importações, começado vai agora já em perto de um século.
Desde então ficaram definitivamente sob o domínio dos centros do consumo, dos centros urbanos, o qual, se antes se exercia só pelos mecanismos do comércio, passou a ser consolidado pela precedência da adesão política as medidas protectoras da lavoura.
Com rendimento fraco, porque forçada a vender mal e comprar pior, incerto e instável, mais do que nenhuma outra actividade dependente de amparos do poder político, a agricultura encontra-se no extremo da resistência à tempestade de interesses que se abateu sobre ela e não poderá salvar-se se esta não amainar, ou se forças exteriores não vierem refrescar as suas próprias, até a última já empenhadas na sobrevivência!
Procurei dar um quadro sereno, objectivo, reduzido às linhas essenciais, mas tentando não esquecer nenhuma da perigosa conjuntura em que a lavoura se debate. De propósito, sobra-lhe decerto em desenho o que lhe falta em cor: duvidoso de poder fazer vibrar nos corações a angústia dos agricultores, preferi descrever-lhe as causas o deixar a vossa razão compreender-lhes a paixão.
Creio que ainda resta, no entanto, considerar uma questão que algumas vezes me tem sido posta, até dentro desta Casa, e é a de as agriculturas estranhas sofrerem ou não de dificuldades comparáveis, na relatividade dos circunstâncias, às da nossa.
O ponto tem grande interesse, afigura-se-me, para decidir se o nosso estado de crise é principalmente filho de causas específicas e erros próprios, ou se é antes efeito de condições inerentes ao movimento universal da economia, pois da resposta dependerá não só o tratamento como a vontade de o aplicar. Ora é um facto, direi, um facto lamentável, mas exacto, que muitos críticos se têm ultimamente manifestado na convicção de a nossa agricultura sofrer só ou principalmente de males e erros exclusivos seus, óptica falsa que tende a alienar a compreensão e simpatia do público, embora não ouse insinuar que intencionalmente. Bastar-me-á recordar uma abertura de capítulo num discurso que há precisamente dois anos teve certa retumbância:
É geralmente admitido que as causas mais profundas da crise actual da agricultura portuguesa se situam no âmbito de um esquema institucional ...
para me justificar na demora sobre este ponto e na convicção de que conclusões deste tipo são deformadas pela limitação de vistas.
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Não me parece puder ter deixado dúvidas atrás, pelos exemplos e citações oferecidos, de lavrar por essa Europa fora crise tão fortemente sentida como entre nós e até ocupando mais tumultuosamente as atenções; não posso pensar que tenham passado despercebidos alaridos recentes em países amigos; mas não me furto a abusar da vossa benevolência para citar, de entre o rol enorme de lamentações e de protestos veementes que se encontra facilmente nas publicações profissionais, ou reproduzido nos observadores da conjuntura, mais duas abonações a esta certeza.
Em Fevereiro de 1960 a assembleia permanente dos presidentes das câmaras de agricultura francesas exprimia-se nestes termos:
A crise agrícola não pára de se agravar. Chegou a pontos que os agricultores franceses se perguntam se o Estado deseja a perenidade da agricultura francesa.
Em 15 de Novembro de 1963 reuniu em assembleia extraordinária, em Estrasburgo, o Comité das Organizações Profissionais Agrícolas da Comunidade Económica Europeia, e votou um manifesto que abre com estos palavras:
O mal-estar agrícola é geral. Mas tende a agravar-se em número crescente de regiões, de ramos da produção e de casos particulares. Com efeito, os trabalhadores, os empresários agrícolas e os membros das suas famílias cada dia têm mais consciência de que os seus salários ou rendimentos, as suas condições de trabalho, o seu nível de existência, são de modo geral inferiores aos das demais categorias profissionais comparáveis e da população no seio da qual vivem. Apesar do progresso das condições de vida na agricultura, em graus variáveis segundo as regiões, o seu atraso que se acusa é cada vez mais vivamente sentido, sobretudo pelas gerações jovens ... Há primeiro que travar com urgência o despovoamento dos campos e a pauperização da agricultura e depois, no movimento de expansão geral, fazer vencer aos agricultores os escalões que os separam da paridade com os sectores da indústria e dos serviços.
Basta! Não quero que VV. Ex.ªs se digam vencidos antes de convencidos.
Volvamos finalmente os olhos para a nossa agricultura, certos, espero, de não estar só na sua crise, e, portanto, de não estar nela só por defeitos seus.
Tornou-se costume censurar-lhe a lentidão do crescimento do seu produto, paralelos tirados com os demais sectores, mas afigura-se-me que o reparo não costuma ser temperado com a suficiente lembrança de que o crescimento é -naturalmente mais rápido em organismos jovens, como são muitas das indústrias e serviços que pesam nas suas medidas. Penso que se algum dia os econometristas calcularem o crescimento das empresas já instaladas, digamos há 30 anos apenas, não encontrarão nem na indústria nem nos serviços taxas muito mais brilhantes do que as da agricultura, se quiserem fazer seus cálculos a preços constantes para ter em conta a maior fixidez dos cios produtos do campo ...
Efectivamente, sobre um território já muito aproveitado no que tinha de bom, e à custa, pois, da forçagem de terras impróprias, cujo amanho representa afinal redobro da vontade, pela certeza da ingratidão a vencer, tanto como pela utilização decidida de oportunidades novas, a agricultura portuguesa ganhou jus ao reconhecimento, pelo menos, de um esforço produtivo respeitável, se não satisfatório.
Em dez anos, ou seja entre a média dos quinquénios de 1948-1952 a 1958-1962, a produção de trigo aumentou de 20 por cento e a do milho 25 por cento; o arroz, que antes respondera à protecção de 1933, multiplicando-se quase cinco vezes, ninei a aumentou 42 por cento; o conjunto todo da agricultura e pecuária, 21 por cento. Num período mais amplo, no quase quarto de século que veio do ano de 1938 à média do quinquénio de 1958 a 1962, o produto bruto global da agricultura e da pecuária, a preços constantes, aumentou 44 por cento, distinguindo-se no conjunto os cereais, com 58 por cento de aumento, os legumes e tubérculos - a batata principalmente -, com 67 por cento, e as frutas, com 185 por cento.
O consumo de rações compostas industriais para gado, certamente um índice de modernização, passou de 26 000 t em 1953 para 103 000 t em 1962; o número de ceifeiras-debulhadoras, máquinas altamente dispendiosas, de 62 para 463; o de tractores, de 8323 para 11 806; no mesmo período, sensivelmente duplicou o consumo de adubos azotados, embora o dos demais revele nas estatísticas pouco acréscimo; a compra de trigo seleccionado para semente aumentou de 12 329 t para 21 865 t.
São todos, ou quase todos, forçoso é confessá-lo, números e índices modestos, pobres mesmo, se os alinharmos com os de certos outros países, mas o facto é que a comparação dos níveis de rendimento económico não deve ser tomada como sinónimo de comparação do valor profissional dos agricultores, pois, além do factor humano, há a contar com os factores naturais, de modo que não há comparações absolutas válidas. Assim, teremos de aceitar o facto, em si mesmo impressionante, de a produção unitária do trigo aparecer nas estatísticas quase invariável ao longo dos anos - o que, aliás, não deve ser bem verdade -, quando lá fora mesmo os países que já pareciam ter atingido rendimentos inultrapassáveis os vão excedendo de colheita para colheita!
Porque onde as culturas são mais compatíveis com as condições naturais, aí já não fazemos má figura, como é o caso do arroz, onde atingimos na colheita de 1961 um rendimento médio de 46,7 q por hectare, o terceiro entre dez países da Europa e o sexto em todo o Mundo, sendo de dizer que fora da Europa o adiantado Japão nos excedeu por pouquíssimo e Marrocos e a Austrália (que deteve o máximo dos rendimentos) cultivaram menores áreas do que nós, ainda sucedendo que a nossa média nacional é prejudicada pelos modestos rendimentos dos arrozais do Norte e do Centro.
Citarei também o exemplo da cultura do tomate, em rápido desenvolvimento desde que encontrou saída para os seus produtos na indústria de concentrados. De 1000 ha plantados em 1957, a cultura atingiu 5000 ha em 1962; de 26 000 t vendidas a indústria, a quantidade passou para 145 000 t cinco anos depois.
Também é conhecido o desenvolvimento que tiveram, quando sentiram mercados convidativos ou simplesmente possíveis, as culturas do cânhamo e do linho, a do melão no Ribatejo e ultimamente a produção de leite; agora mesmo a de hortaliça para industrializar começa a ganhar momento; e de todos estes exemplos e do conhecimento pessoal do meio agrícola, eu me permito tirar e propor a conclusão de que, sendo adequados as condições culturais, atraentes os mercados, acessível a informação técnica e possíveis os investimentos necessários, os nossos agricultores reagem tão prontos como os de qualquer outra parte às solicitações, e nada demonstra que, satisfeitos aqueles quatro requisitos, não possam tornar-se tão
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eficientes, como afinal provam quando, saídos do País em busca de melhor vida, as possibilidades dela se lhe oferecem em meios agrários adequados.
Veja-se ainda o exemplo de Sever do Vouga, onde em território que tinha tudo de desfavorável três anos de assistência técnica, generosamente oferecidos por iniciativa privada, permitiram já colher resultados demonstrativos de receptividade e vontade de progresso. Veja-se, mais atrás, a reacção à campanha do trigo e o arroteamento do Alentejo sob a influência da legislação animadora de Elvino de Brito!
Capaz, portanto, de reagir sadiamente e com vivacidade a incentivos normais, não parece razoável dizer-se a nossa agricultura doente de mal orgânico antes de demonstrar que nas condições em que labuta e com os recursos ao seu alcance ela poderia atingir melhores resultados.
Em princípio, pois, há que considerá-la apta a tomar novos caminhos, se bem guiada, e enquanto não lhos abrem há que dedicar-lhe todo o cuidado e estima devidos a uma actividade válida, mas debilitada pela adversidade das condições em que se exerce, pela crise que a avassala e é produto de forças fora do seu comando.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Cuidado e estima devidos, sobretudo, ao sector que ainda hoje ocupa 40 por cento da população trabalhadora do Pais!
Este sector ao lado dos demais empobrece, já o demonstrei atrás, examinando simultaneamente a variação dos rendimentos por pessoa ocupada entre os anos de 1950 e 1960: neste intervalo o aumento de produto dos agricultores foi, em média, de 1791$ por pessoa activa, enquanto foi de 7275$ para o conjunto de todas as demais actividades civis: permito-me repetir os números para voltarem à vossa atenção, mas aditar-lhes-ei agora outro aspecto da mesma disparidade: o rendimento médio, em 1960, foi de 10 427$ por pessoa na agricultura e 23 025$ no conjunto dos demais ramos de trabalho nacional. Mas trata-se, acentuo, de valores brutos, ilíquidos dos despesas de. produção, geralmente mais elevadas - hoje quase até aos 100 por cento! - na agricultura.
Atacado pelo horror no campo, oferece na mesma década uma perda de 9 por cento na população produtiva, menos 127 107 pessoas só no continente (nas ilhas adjacentes a baixa foi de 9,5 em percentagem, 10 500 pessoas ao todo), enquanto a população trabalhadora total aumentava de 4 por cento. Mas na composição da gente perdida pela agricultura parece-me haver lugar para acentuar um ponto, que números muito recentemente dados a lume permitem pôr em destaque.
Em absoluto e em percentagens, por situações na profissão, a evolução acusada pelos dois censos populacionais é, quanto à agricultura, a seguinte:
[VER TABELA NA IMAGEM]
O número de patrões diminuiu, pois, de 45 por cento; o dos empregados e assalariados de 10 por cento; o dos trabalhadores familiares aumentou 4,4 por cento.
Para os defensores da exploração familiar o quadro será, em primeiro exame, agradável; mas, fora desta consideração, o que parece ser é um indicador do estado de crise, pois foi no número de empresários de categoria patronal que se deu proporcionalmente a mais forte quebra, uma verdadeira forte quebra. Ou abandonaram as explorações ou tiveram que dispensar o auxílio de pessoal assalariado; parece-me difícil, no conspecto que posso formar da evolução geral, aceitar que esteja aqui somente a expressão de uma mudança sadia. Que no distrito da Guarda os patrões tenham descido em número de 7395 para 2597, no de Viana do Castelo de 5789 para 1444, no de Braga de 15 049 para 6154, afigura-se-me com efeito ser mais um sinal de crise do que de reordenamento louvável.
Outro sinal da crise agrícola está no endividamento, mas só do hipotecário temos notícia estatística. As dívidas contraídas sob garantia hipotecária de prédios rústicos têm aumentado constantemente, passando da média anual de 166000 contos no triénio de 1951-1953 a 612 000 contos no triénio de 1960-1962. Em doze anos a lavoura endividou-se de novo (isto é, deduzindo as dívidas liquidadas por hipotecas cancelados), no total de quase 3 milhões de contos, mas endividou-se a ritmo galopante!
Nos últimos tempos, o factor que mais agravou as dificuldades da lavoura foi incontestavelmente a subida dos salários, que cadenciou com razão o aumento das queixas. Um pequeno cálculo poderá dar a medida da sua incidência nos rendimentos, uma noção de grandeza que ajudará a compreender melhor a situação.
Pode-se tomar, com certa segurança, como média de ocupação dos trabalhadores agrícolas assalariados e empregados, 200 dias anuais para os homens e 100 para as mulheres; são números constantes de estudo publicado. Considerando que o maior emprego é nas épocas de salários mais altos, pode-se, a vista dos índices ponderados de salários oferecidos pela nossa estatística, estimar o aumento deles, no período de 1958 a 1962, em 45 por cento para os homens e 40 por cento para os mulheres; ainda aqui creio que andando com prudência.
Sendo de quase 760 000 o número de assalariados, empregados e tarefeiros activos na agricultura em 1960, dos quais 4/5 homens, e sendo de 21$ para os homens e 12$ para as mulheres os salários médios em 1958, uma simples operação aritmética mostra que o valor total do aumento dos salários naqueles quatro anos representa algo mais do que 1 200 000 contos, 9 por cento do produto bruto agrícola!
Qualquer que seja a atitude a ter perante a elevação dos salários - e a do patronato agrícola, cedendo-lhe quase sempre sem grandes resistências, é de compreensão e simpatia pelos seus colaboradores -, parece incontestável que um agravamento desta ordem no custo da produção, em quatro anos apenas e perante preços de venda rígidos, não é de modo algum compatível com o equilíbrio da actividade.
E menos o teremos de considerar se atendermos a que no mesmo intervalo de tempo o valor das colheitas dos principais géneros agrícolas (trigo, milho, centeio, arroz, aveia, cevada, fava, feijão, grão-de-bico, batata e azeite) - notai bem: os valores das colheitas, não das parcelas disponíveis para venda - diminuiu ao todo em 660000 contos, diferença entre as produções de 1958 e as de 1962, aos preços de 1962. O vinho, neste último and de colheita record, ainda foi o que valeu para inverter o sinal da diferença quanto as produções principais, mas ainda assim não permitiu realizar total que cobrisse só o encargo dos salários acrescidos.
O problema dos salários, pela pesadíssima incidência nos custos de produção de uma agricultura dispersa, mal mecanizada e pouco susceptível de se mecanizar, está
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a tornar-se o mais grave, o mais difícil, o mais assoberbante de quantos constrangem a lavoura. O dos salários e o do rendimento útil do trabalho; os empresários têm tentado iludir-se, transigindo nos horários e conformando-se com abrandamentos para não cederem tanto nos preços, e chegou-se a este respeito a situações verdadeiramente escandalosas, com que, todavia, é necessária a conformidade para não afugentar mais do campo os que ainda por lá ficam. Já não é o horário industrial; são dias de cinco e de seis horas que se ganham por inteiro em períodos, todavia, de azáfama!
Sem embargo, os agricultores reconhecem que a melhoria dos salários se tornava justificada; somente se perguntam, e perguntam à roda de si, como aguentá-la.
Em resultado deste movimento deslocaram-se seguramente as participações dos trabalhadores por conta de outrem no produto agrícola, mas apesar disto devem continuar muito baixas.
O Dr. Santos Loureiro calculou que no continente a participação média no produto bruto agrícola teria sido aproximadamente a seguinte, no ano de 1958: assalariados, 3800$; empregados, 5700$, e isolados (explorações familiares), 7000$.
Confesso que estes números me parecem demasiado baixos, até pelo critério da possibilidade absoluta de subsistência com rendimentos tão pequenos, mas foram calculados, diz-nos o seu autor, tendo em conta os muitos dias de desemprego entra os assalariados, e de qualquer modo são os que há disponíveis.
Tomando-os como bons, concluiremos que pelas recentes actualizações salariais a massa dos trabalhadores por conta de outrem estará auferindo actualmente entre 5000$ e 7000$ anuais, aproximando-se dos empresários isolados das explorações familiares; em suma, que 1 200 000 pessoas (contados também os últimos), chefes de família na grande maioria, não estuo retirando da actividade agrícola em que se ocupam mais do que 20$ por dia, em média, para seu sustento e das famílias.
Ora esta gente representa 40 por cento da população do País; com os que nos outros ramos da economia trabalham para lhes satisfazer as necessidades, temos que mais de metade do País depende de rendimentos desta ordem.
Mais de metade da massa consumidora, dependente da agricultura, representa uma clientela potencial que a indústria portuguesa e os serviços em crescimento não podem ignorar nem dispensar.
Estagnada ou em perda de rendimentos, a agricultura constitui sem dúvida, na actualidade, o travão do crescimento económico de que já falou ao País o Sr. Ministro da Economia, com apurada observação das realidades. Está ali uma massa de clientela de que a indústria carece para continuar a desenvolver-se; e não pode haver dúvidas, pelo que se conhece da elasticidade dos consumos, mesmo nos parcos exemplos nacionais, de que um aumento de rendimentos irá aplicar-se em grande medida à aquisição de produtos industriais.
Não faltam autores a afirmarem que o desenvolvimento económico se encontra estreitamente dependente da actividade agrícola, não só por exigências de harmonia, cuja ruptura produz sempre tensões internas, mas pela sua contribuição de produto próprio, pela contribuição de consumidora de produtos dos outros sectores, pela contribuição de eventuais lucros ou poupanças aplicáveis ao financiamento das especulações industriais.
Tenho para mim que uma das causas do desenvolvimento das indústrias nos alvores do século XIX foi a existência nas regiões onde mais se processou de capitais disponíveis de agriculturas ricas; e é do consenso geral que a industrialização moderna de certos países foi desenvolvida à custa da agricultura, constrangida por organização ad hoc a fornecer os meios financeiros necessários aos planos de desenvolvimento.
E o seu contributo forçado persiste, teimam muitos, em todas os sociedades modernas - na nossa também, portanto - pelo condicionalismo que a força, a alimentar barato as populações industriais.
Ora, chegou o tempo de a indústria pagar à agricultura o que lhe deve, ganhando com isto também.
Perante metade da população do País reduzida a rendimentos muito baixos, da ordem de 50 por cento dos da outra metade, a indústria e os serviços têm de considerar-se tamanha clientela lhes interessa ou não e, se a resposta for pela afirmativa, têm de considerar outra vez como a conquistarão: se incorporando-a no seu seio, se apoiando a sua valorização como actividade autónoma. Decerto a primeira modalidade não lhes está ao alcance: não têm empregos a oferecer que, em curto prazo, absorvam suficientemente a população agrícola. Assim, ou terão de associar-se ao movimento para lhe valorizar os rendimentos, ou terão de resignar-se a vê-la morrer de inanição ou fugir do território, em qualquer das hipóteses indústria e serviços perdendo em clientela potencial enquanto a Nação perderá em substância.
Os mercados ou se sustentam por fluxos de bens nos dois sentidos, ou de uma das bandas há perdas de capitais. É a situação em que vive desde há anos a nossa agricultura, a qual, segundo todos os índices, já perdeu capitais até ao comprometimento da sobrevivência; não poderá continuar a oferecer-se como mercado válido, e menos ainda expansível, se não puder revalorizar os seus rendimentos.
Nos campos há uma grande massa capaz, e desejosa, avidamente desejosa, de consumir em maior escala produtos industriais. O par de sapatos ou a camisa nova, a bicicleta, mais uma máquina de lavoura - nos sonhos de muitos lavradores, conscientes da necessidade de se apetrecharem melhor, o tractor já se antepõe no automóvel, e aqui está, creiam-no ou não, um exemplo a falar-vos -, são ardentes cobiças aos diversos níveis da sociedade agrícola, que só aguarda melhoria de- rendimentos para os ir entregar em boa parte à sociedade urbana produtora dos bens apetecidos.
Não vou a pontos de pretender que os acréscimos do rendimento advenientes ao sector agrário se aplicarão totalmente em produtos industriais, entendam-me VV. Exas; todavia, a mesma parte destinada a produtos do sector contribuirá para a animação geral da economia, aumentando o escoamento desses artigos e quiçá os rendimentos dos circuitos da distribuição.
Penso, pois, que o abrandamento ou resolução da crise, agrícola pode contribuir para o crescimento económico geral, pelo alargamento do mercado que oferecerá aos produtos industriais e terciários. Dado tratar-se de um sector mais homogéneo e com máxima apetência ao consumo, com a maior proporção de necessidades primitivas, estou em dizer que uma soma de rendimento novo aqui aplicada ajudará mais poderosamente ao crescimento do que soma igual distribuída pelos sectores secundário e terciário. Contribuirá melhor, porventura, para, pedindo emprestada a um economista a linguagem sintética, «vencer, ou pelo menos atenuar, o efeito limitativo produzido pelos estrangulamentos de dimensão«.
Abrandar ou resolver a crise implica, pois que o mal e de insuficiência de rendimentos, diminuir custos, aumentar valores da produção, ou uma e outra coisa. Con-
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clusão esta da mais fácil evidência, integrá-la em soluções eficientes é afinal todo o problema com que governantes e governados se debatem e para o qual, mais do que soluções definitivas, porventura inatingíveis, há que procurar formas suportáveis de acomodação. Somente a urgência de encontro destas põe-se agora com agudeza nunca antes igualada. Factores de deterioração, alguns de há muito apontados, outros irrompidos bruscamente - mas, aqui, não será de mais o plural, não será a subida dos salários o grande acelerador da presente crise? -, conjugaram-se no efeito que vimos denunciando e obrigam a operar a quente no tratamento de males que todos temos dobradamente de lamentar não se ter conseguido, querido ou sabido dominar mais a tempo.
Podia neste momento ter aqui cabida uma análise retrospectiva da nossa política - ou faltas de política - agrícola dos últimos decénios, buscando nela raízes da situação presente para lhes mostrar a introdução e cortar o alastramento. Não a farei porém, por crer que disso só resultaria seguramente um efeito, e este negativo: o maior aborrecimento de VV. Exas, forçados a ouvirem divagações que acabariam por nada adiantar de proveitoso ao debate no sentido que viso dar-lhe, e não é o de chorar sobre o passado, mas sim olhar bem e emendar o presente, provendo a melhor futuro.
Sem desmentir este propósito, posso, no entanto, avançar o juízo de que na política agrária portuguesa dominaram a preocupação dos abastecimentos essenciais - nomeadamente do pão - e, a partir de certo momento, que foi o da restauração das finanças, a da criação de pólos de desenvolvimento, como as zonas de regadio e os núcleos de colonização.
Dedicou-se também incontestável atenção ao sustento de preços - não discutirei se aos níveis mais desejáveis -, o que não terá sido sair muito da política de subsistência; quanto à acção directa ao nível das explorações, nunca se lhe deu grande impulso até ao II Plano de Fomento, onde nos aparece consubstanciada em campanhas de profilaxia pecuária, aliás muito benéficas e oportunas, e na promoção de instalações de armazenamento e tecnológicas, a cujo crédito há a lançar realizações de alto préstimo.
Não conto o povoamento florestal, apesar do seu grande vulto, pois só valorizou propriedades públicas; mas não esquecerei a inesquecível Lei dos Melhoramentos Agrícolas, em potencialidades directas a mais bela iniciativa a favor da lavoura, tão feliz na concepção como tem sido na execução.
O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!
O Orador: - De qualquer modo, a preocupação do abastecimento parece ter dominado a política agrícola, desde que em 1899, vai já para três quartos de século, Elvino de Brito, vencendo não pequenas reacções, conseguiu fazer instaurar um regime protector da cultura frumentária; e terá culminado na campanha do trigo, 30 anos depois, que possibilitou a declaração famosa:
Não teríamos ouro para pagamento imediato da nova esquadra se pelas campinas não houvessem lourejado, abundantes, as searas.
O objectivo de produzir trigo parece ser, infelizmente, no nosso país, um desafio à Natureza, que faz alternar a cultura entre alagamentos asfixiadores das raízes e secas atrofiadoras do grão, quando não é entre contrariedades opostas. A um ano bom, em que por felicidade se conjugam favoravelmente as variedades do tempo, logo sucedem, por vezes em série, profundos desapontamentos.
Ainda há dias me contavam de uma grande lavoura ribatejana que em terrenos de qualidade obteve no último ano de feição, e com largueza, produções de boa classe internacional; pois os anos seguintes logo desgostaram e destruíram as ilusões criadas sobre a técnica que já se tinha por segura, procurando-se agora por lá, afincadamente, de que cultura lançar mão, que não seja a do trigo!
E aqui tendes, meus senhores, toda a inquietação reduzida a duas questões: poderemos dispensar-nos de procurar produzir para o abastecimento interno o máximo de pão próprio? Que faremos, para já, à carga humana das terras lavradias para substituir as migalhas ou ilusões de rendimento oferecidas pela cultura cerealífera?
Suponho que em matéria de produção de trigo as nossas estatísticas nos enganam um pouco. Tem havido demasiado interesse - que é o da consecução dos financiamentos possíveis - em figurar grandes sementeiras, em quantidade ou área, e porventura se pode aceitar que isso haja falseado os números oficiais.
Porventura, pois, os rendimentos reais excedem os registados oficialmente; mas como as terras cultivadas variam do bom ao inadmissível, a média geral tem de resultar fraca. Com estas reservas todas podemos, no entanto, esperar que a estatística nos revele tendências, e nesta ordem de ideias os resultados patenteados são de perfeita desgraça.
Encontramos 935 kg de trigo por hectare na média do quinquénio 1933-1937 e apenas 845 kg vinte anos depois, na média de 1953-1957; no primeiro período 514 000 ha, em média, de superfície semeada, no segundo 788 000 ha - caiu-se nas terras péssimas, e daqui o resultado. E desolador, se considerarmos que em França departamentos considerados menos próprios para a cultura trigueira, já bem no Sul, como o do Tarn e o de Gers, passaram de 10 q por hectare em 1938 a 18 q em 1957; talvez não o seja tanto, se pensarmos no que podem ser aqueles 270 000 ha metidos a mais na nossa seara.
Não sei, não tenho elementos de pormenor, não sei se alguém os têm. Mas o que sei - ah, isto sei! - é que ainda hoje, 35 anos depois de encetada a campanha do trigo, com os seus anúncios de fomento a produtividade, ainda hoje não se sabe como manter a fertilidade nas nossas terras do Sul; e, só para dar um exemplo das incertezas, que as siderações, as estrumações em verde, há 10 anos apontadas oficialmente como o caminho dela, aparecem condenadas em experiências recentes, todavia inconclusas. E sei que o empenho dos departamentos responsáveis em esclarecer pontos desta ordem é tal que a Estação de Cerealicultura de Beja, construída há 5 anos pela Federação Nacional dos Produtores de Trigo, a fim de ser entregue e utilizada pelos serviços estaduais de agricultura, aguardou até há meses - meses ou semanas? - que se deslindassem esquisitices para poder entrar em serviço ...
Nunca tentámos, nunca quisemos tentar-porque poder podíamos; e lembrado foi esclarecer por experimentação sistemática, metódica, continuada, como hoje se faz, em suma, e como noutros países se encontra o caminho dos progressos em cuja contemplação nos envergonhamos, sem saber sequer até que ponto com razão, nunca tentámos, nunca quisemos tentar saber, com a possível certeza dos homens, e já seria a de uma geração, onde, como e quando produzir trigo.
Tal o trigo, tal o milho, o nosso segundo grande cereal. Parece que produzimos 1160 kg por hectare semeado em 1962; a França - quem a diria, tempos atrás, país de milho - colheu 2150 kg em 1962, 3800 kg em 1963, na
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média nacional. E, contudo, consta que há terras portuguesas capazes de criarem 8000 kg e 9000 kg de milho por hectare. É verdade, porém, que já temos tido milho a mais. Ou teremos gente de mais a fazer milho; mas, lá vem a pergunta, há por ora outra ocupação para ela? Entre a improdutividade e a superprodução e o desemprego, qual o mal menor?
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Fecho o parêntese.
Perante os resultados tristíssimos, por de mais conhecidos e que eu agora só trouxe à evidência para dar seguimento às minhas considerações, é apenas lógico que tomasse corpo e acabasse por atrair a solução que agora aparece oferecida como novo caminho da nossa economia agrária: abandonar a «agricultura de abastecimento» e ir «para uma agricultura de mercado».
Como alguns de VV. Exas, eu não sou economista; mas tenho, creio que já o confessei noutra ocasião, tenho lá em casa um dicionàriozito de economia para me valer no entendimento destes conceitos que agora nos surgem a todo o momento, em fórmulas que têm o mérito de procurarem dizer muita coisa em poucas palavras. E assim me inteirei de que isto «de mercado» quer agora dizer o sistema da adaptação em princípio livre da oferta e da procura, cada qual buscando o seu melhor interesse.
Presumo, pois, que a sugestão é a de deixarmos de nos esforçar por produzir bom e mau, barato e caro, na casa própria, reduzirmo-nos ao nosso bom e barato e ir para o mercado vender deste; para o demais comprar em troca do bom e barato alheio.
E isto põe-nos, antes de mais nada, perante o problema de saber o que é o borato alheio.
E caímos na questão dos preços internacionais, que de vez em quando são lembrados ao lavrador português, como exemplo ou como ameaça.
Ora, os preços internacionais são falsos, falsíssimos, como padrões de produtividade, únicos termos em que será sério falarem-nos deles, a nós outros agricultores. «Personne ne produit au prix mondial», declarava ainda não há um ano, em revista de larga divulgação, o conhecedor René Dumont. O bem informado Mevnaud, à data em que escrevia, anotava os níveis «inteiramente artificiais» da cotação mundial: para o trigo, 70 por cento do preço praticado no interior dos grandes países agrícolas; para o açúcar 40 por cento (sabe-se que depois deu pulos de corça), etc.
A F. A. O. calculava em 1962 que o subsídio do Governo, dos Estados Unidos da América à exportação do seu trigo, para cobrir a diferença entre os preços internos, acrescidos dos encargos de comercialização, e os preços oferecidos no mercado internacional pelos outros grandes países exportadores, orçaria em 21,31 dólares por tonelada, ou escudos $614 por quilograma.
O subsídio à exportação parece ser frequente, mas outra prática é a dos câmbios artificiais. Há três ou quatro anos, na Argentina, o exportador recebia um dólar americano por cada dezoito pesos de valor exportado e ia a seguir vender esse dólar em mercado livre pelo dobro do número de pesos; podia assim exportar por metade do preço interno.
Outra exemplo que posso dar é o do azeite italiano: pago ao produtor por preços da ordem de 30$, oferecia-se à concorrência internacional, antes da última escassez, por cerca de 18$ o quilograma, posto a bordo de navio. E, como isto, muitíssimo mais. Conforme já tem sido observado por diversos, os preços na exportação não têm sido fixados só por considerações económicas; parecem tê-lo sido, muitas vezes, pelos ministérios das finanças respectivos, segundo as necessidades dos países em divisas. Lá dentro é frequentemente outra coisa!
Como súmula da situação, vale a pena ouvir Edgard Pisani, preparando, aliás, ambiente para a sua tese de reorganização do merendo internacional em termos de revalorizar os produtos agrícolas:
... em verdade, que se passa actualmente? Alguns países, tendo excedentes agrícolas, despejam-nos sobre o mercado mundial, em benefício dos países deficitários. Mas quais são os países com excedentes e os que têm faltas? Dos países com excedentes há duas categorias: há os Estados Unidos, há a França, há a Holanda, quer dizer, países que tom uma indústria, e a indústria paga para a exportação agrícola, a economia geral paga para a exportação agrícola ... Mas há também países ... que não têm indústria ou economia nacional bastante próspera e impõem aos seus produtores níveis de preços internos iguais aos níveis dos preços mundiais ... Assim, pelo nosso sistema absurdo dos mercados nacionais, ou um país industrial subvenciona o mercado mundial, ou um país não industrial mantém a sua agricultura em estado de pobreza.... E quais são os países que beneficiam destas ajudas? Países industriais, concorrentes dos primeiros, ou países que não conseguem resolver os seus problemas agrícolas e são até politicamente adversários dos fornecedores. Assim construímos um mundo admirável, onde, pelo canal dos mercados mundiais, o pobre subvenciona o rico e o liberal ajuda o socialista ... Não há outra via, não há, do que a de os países com excedentes e os países deficitários se reunirem para tentar ver qual o preço razoável, o preço satisfatório, o preço de remuneração do produtor ...
Preços hoje em dia artificiais, administrados, estão sempre prontos a aproveitar das circunstâncias para se melhorarem e restabelecerem. Os excedentes que pesam nos mercados mundiais de produtos agrícolas são, na realidade, de modesto volume relativamente às produções, à roda de 5 a 10 por cento da totalidade universal; é pelo conhecido efeito do King que estas quantidades, relativamente pequenas, deprimem consideravelmente as cotações.
Mas, justamente porque são pequenos os excedentes, facilmente se reduzem ou anulam, e então os preços são susceptíveis de subir, e o mesmo efeito do King poderá determinar nas subidas as mesmas consequências desproporcionais que nas descidas. O caso do açúcar, e da sua brutal subida de preço nos últimos tempos, é das páginas dos jornais; menos conhecido do grande público será, porém, o do trigo, sob a influência das recentes aquisições dos países comunistas.
Ouçamos a F. A. O.:
Em Setembro de 1963 a situação do mercado foi completamente modificada pelas importantes compras da U. R. S. S. e de outros países ... Por meados de Outubro os preços canadianos tinham subido ao nível mais alto destes últimos anos ... sobre as tarifas de fretes, a repercussão fez-se sentir mais rapidamente e mais sensivelmente que sobre os preços ...
E o resultado de tudo foi que entre Setembro de 1962 e Novembro de 1963 os preços C. I. F. nos portos europeus subiram de 58,5 para 65 dólares para o trigo mole, de 54,5 para 62 dólares para a cevada, de 50 para 61 dólares para o milho.
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Outro exemplo é o do azeite. A seguir à colheita escassa de 1962 o preço de exportação subiu até 1200 dólares por tonelada, partindo de cotações inferiores a 600 dólares.
Temos, pois, que os preços internacionais, os actuais preços de mercado, literalmente não são honestos e não prometem estabilidade.
Mesmo hoje em dia são ilusórios. Portugal tem-no aprendido, ou devia ter, à custa de muito milhar de contos despendido quando vai à praça fora e depois acontece que não pode, sem prejuízo, vender cá dentro ao preço interno. Não obstante, o nosso Ministério da Economia parece gostar de importar; sempre pareceu. Nem admira: é tão fácil, tão cómodo: um concurso, uns telefonemas, e daí a dias, sem mais trabalhos, estão as amostras e as mais ou menos tentadoras ofertas muito em ordem a espera de despacho.
Mas de vez em quando há uns percalços. Assim, por exemplo, pelos fins de 1960 decidiu-se que os ovos nacionais estavam a encarecer muito (é o costume da quadra) , e então mandaram-se vir da Holanda 130 000 dúzias, para lição dos nossos comerciantes. Estes ovos pareciam baratos, mas eram-no por serem pequenos
- nessa altura, na Holanda, o preço por grosso ao produtor, para ovos de qualidade e tamanho médios, era à razão de 10$ á dúzia -, e ao chegarem cá a Lisboa resultaram a 14$ para o público, excluídos os direitos de importação, que costumam sempre fazer de bombo nestas festas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E como ninguém lhes pegasse, das 130 000 dúzias o comércio só absorveu 50 000 e as restantes tiveram de ser dadas, grátis, a estabelecimentos de assistência e cantinas escolares.
Fim simpático, mas experiência infeliz!
O Sr. Gonçalves Rapazote: - Aproveitaram as cantinas escolares.
O Orador: - Outra experiência infeliz foi a do arroz, no ano passado. O arroz é um cereal em aumento de procura por todo o Mundo graças a causas diversas, uma das mais curiosas, e significativas, sendo que certos povos em vias de desenvolvimento apuram os seus hábitos alimentares; por isto tem encarecido. No nosso país, o arroz é dos raros exemplos de género barateado no pós-guerra: aqui há anos entendeu-se que os lavradores estavam a ganhar de mais com ele e baixaram-lhe a tabela.
De passagem notarei como é expressiva de sujeições esta sensibilidade aos lucros supostos aos agricultores, que nunca podem ocultar nada; os banqueiros, os negociantes de automóveis e de peças sobressalentes para as máquinas agrícolas, os refinadores de azeite e petróleo e os distribuidores de gases combustíveis, e quantos mais, podem ganhar (segundo por aí se crê) rios de dinheiro, ninguém se mostra no mínimo impressionado; mas vá lá adivinhar-se que houve aragem fagueira nalguma produção agrícolas, tempos saudosos, em que ainda as podia haver! - e tudo fala, e tudo murmura, e tudo insinua Pactolo, e tudo se mostra cobiçoso, e o Estado lá vem pronto na peugada pôr cobro ao desaforo!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Pois foi o que se passou com o arroz aqui há dez anos, e por estas e outras razões o artigo escasseou entre nós no Verão passado. Mandaram-se, em consequência, vir 18 000 t dele, mas ... aconteceu que 11 500 t vieram de muito longe, do Vietname do Sul, e chegaram cá com o arroz cheio de bicharada, que custou, só ela, 600 contos a matar.
O Sr. Gonçalves Rapazote: - Desta vez não aproveitou ninguém.
O Orador: - E ou pelo bicho ou pela natureza própria, o tal arroz era feio e ninguém o queria; chegada a nova colheita do arroz nacional, foi preciso durante mais de um mês impedir-lhe o descasque, para ver se se forçava o público a gastar do outro, e nem assim; em fins de Setembro, quando já devia haver arroz novo do nosso, ainda 4700 t do vietnamês aguardavam que lhes pegassem. Da outra partida importada não houve grande história, salvo que lá para as bandas da minha terra, pelo menos, esteve à venda a 9$ cada quilograma, quando o normal equivalente seria a 7$.
O Sr. Proença Duarte: - V. Ex.ª tem, certamente, apontado que, antes de se desvalorizar o preço do arroz, Portugal chegou a exportá-lo.
O Orador: - Sim senhor, mas nem V. Ex.ª nem eu saberemos dizer precisamente se foi só por efeito do preço, se por efeito também de condições favoráveis de produção e consumo. Não vou ao ponto de dizer que tal facto se deu só pelo convite do preço à produção, mas não duvido de que este influiu em quebras posteriores.
Convictas da injustiça da situação actual, mais um efeito das forças que dominam a agricultura, muitas vontades se agitam em prol da valorização dos preços internacionais. Nos últimos dez anos o volume das exportações comerciais de géneros agrícolas em negócio normal (não tendo em conta dádivas e quejandas) aumentou cerca de 85 por cento, o que - sempre a F. A. O. - «reflecte um enorme esforço e colocação de fundos consideráveis da parte dos países exportadores»; no entanto, o aumento de volume das trocas apenas fez progredir as receitas em cerca de 3 por cento.
Sendo muitos dos exportadores países em vias de desenvolvimento, já se começa a observar que as nações adiantadas lhes tiram mais pela via da deterioração dos preços do que lhes dão em auxílios de várias espécies; e numerosas vozes se erguem propugnando como melhor ajuda a revisão dos termos de negócio. A França, ela mesma país com excedentes agrícolas, e que asperamente os tem defendido, é a grande campeã desta ideia, expressa no plano Baumgartner-Pisani, do nome dos seus ministros que o têm defendido nas grandes reuniões. Besta ver em que dará, mas suponho valer a pena não esquecer a ideia sua motora.
Independentemente desta ajuda ainda no domínio das belas aspirações, os países agrícolas em desenvolvimento vão aumentando e melhorando os seus consumos, substituindo géneros tradicionais por novos alimentos mais agradáveis ou prestigiados, e sem embargo de as produções continuarem a subir e de haver, designadamente quanto ao trigo e cereais secundários, enormes reservas (em fins de 1962, 47 milhões de toneladas de trigo e perto de 70 milhões de toneladas de cereais secundários), já se ouvem vozes de inquietação temendo mais um repetir da velha história das vacas e de aos anos de preocupações pelos excedentes agrícolas que se têm vivido poderem seguir-se outros em que as preocupações se invertam quanto à causa. Mais uma possibilidade do que uma probabilidade, talvez, por ora, será todavia conveniente que nós em Portugal, ao virarmo-nos para o mer-
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cado, não a esqueçamos, pelos efeitos que pode ter no mesmo mercado.
Porque o que mais poderemos ir lá procurar é, segundo a figura actual das importações, o pão que até agora tanto procuramos ter nosso. Excluídas as mercadorias inaclimatáveis e o tabaco, também incompatível com o clima ... legal, as nossas importações de produtos da agricultura e da pecuária andaram na média de 1960 a 1962, inclusive, por l 167 000 contos, dos quais quatrocentos e setenta e tal mil de produtos pecuários (animais, carnes, lã, peles, couros e tripas); ora, dos 693 000 coutos, aproximadamente, da média anual de produtos agrícolas importados, duas terças partes, quase, são representadas por trigo e por milho.
A importação do trigo sempre tem pesado na nossa balança comercial e a incapacidade da lavoura para a evitar, salvo em raríssimos anos, não lhe tem sido pouco assacada; a política do Governo, repetirei, foi durante longo tempo a de tudo fazer - menos, talvez, estudos agronómicos bastante profundos - para a diminuir.
Desde o fim da última guerra importamos trigo todos os anos, entre o mínimo de 2105 t e o máximo de 312 0001, de 3710 e de 875 000 contos. Nos dez anos de 1953 a 1962 a média ficou em 101 874 t e 225 631 contos, sangria de divisas nada despicienda, mas correspondente a preço já baixo; no ano de 1947 o trigo estrangeiro ficou-nos, porém, à razão de 4S10 cada quilograma, sabendo-se que houve partidas pagas na vizinhança dos 5$.
Ora, se não parece provável que estes máximos voltem em breve - prefiro não considerar, nem para reforço da argumentação, o risco de perturbações internacionais que façam renascer as dificuldades de algum dia, as dificuldades que nos atenuou n campanha do trigo -, certo reencarecimento do trigo parece muito na ordem das probabilidades, de modo que creio não ser de desprezar a perspectiva de sensível agravamento da balança cambial, se procedermos de modo a, no engodo da barateza aparente do pão estrangeiro, desanimarmos a produção do nosso.
Eis porquê, Sr. Presidente e Srs. Deputados, me permito propor esta resposta à pergunta de pouco atrás: poderemos dispensar-nos de procurar produzir para o abastecimento interno o máximo de pão próprio? Direi que não!
Com o que não quero dizer devermos continuar a produzi-lo, como até agora, em toda a parte e contra todas as indicações, prosseguindo cegamente nesse desafio a Natureza que é hoje a seara em terras cansadas de que não se soube ou pôde restaurar a fertilidade e, pior, onde já não há sequer terra.
A Corporação da Lavoura, ela mesma, já aprovou, ao concluir as suas recentes jornadas cerealíferas e leiteiras, o princípio de disposições tendentes a contrariarem a exagerada insistência da sementeira sem intervenção de rotações reparadoras. No seu voto poderá o Governo encontrar sempre o apoio para providências neste sentido, as quais não deverá hesitar em promulgar com toda a força ... tão depressa tenha para dar aos agricultores melhor orientação técnica e administrativa.
Com efeito, não será entre os agricultores de lavras extensas que se encontrarão os mais afincados nas tentativas de arrancarem as terra o que ela já não pode dar-lhes, salvo o entretenimento do corpo e do espírito e a perpétua esperança na colheita finalmente compensadora. Será nas centenas de milhares de hectares de encostas erodidas de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alto Alentejo, do Algarve, em pequenas courelas e estreitas belgas, teimosamente lavradas até ao descarnamento do solo, ao desnudar do leito estéril, que se encontrarão milhares de agricultores matando o corpo e o tempo na miséria das duas e três sementes,...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... e a esta triste carga humana importa dar caminho e destino quando chegue o momento de a tentar arrancar ao seu engano e ruína. Entretanto, hão-de persistir encarniçadamente agarrados ao terrunho em que se esgotam coda dia e em cuja contemplação se retemperam cada nova manhã, e será essencial não lhes agravar os motivos de pobreza enquanto não se tiver a segurança .de lhos poder atenuar duradouramente.
Eis o sentido da minha segunda pergunta: que fazer à carga humana das terras lavradias, tanto mais desgraçada quanto mais instantemente estas requerem melhor destino? Pois direi que, enquanto não for possível tirá-la de lá, ou ela por si não tomar outros caminhos, os do abandono da terra, puro e simples, o que se fizer em prol da agricultura será também em prol dessa; o que se fizer que não atenue os problemas da agricultura poderá com mais peso ainda agravar-lhe os seus!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Eu desejaria que estas minhas considerações não fossem tomadas por ninguém como de oposição ao novo plano governamental de "viragem" para a economia de mercado e de reconversão a usos mais adequados das terras pior aproveitadas; nem sequer daquela oposição surda que, negando-se a si mesma, não obstante persiste a minar as atitudes e a envenenar as palavras. Ao referir-me ao trigo, aliás, muito de propósito pus em destaque o vulto das importações de carnes e de peles, que no âmbito da reconversão poderão vir a ser fortemente reduzidas, se não anuladas, pois bem me lembrei da possibilidade de estar aí maneira de compensar o sobrepreço das acrescidas importações de cereais; simplesmente, não deve ser desejo de ninguém que nos tapemos de uma banda só para destapar de outra ...
A posição que defendo relativamente u abertura do mercado é a de que não devemos nem anunciá-la nem praticá-la em termos de comprometer, no mínimo que seja, a breve trecho ou prazo largo, a segurança do abastecimento e a preciosa segurança da moeda; como não será lícito jogar com a ilusão falsa dos preços internacionais serem medidas reais de produtividade a oferecer como paradigma, ou ameaça, à nossa agricultura.
Não somos, nem parece que jamais possamos sê-lo, competitivos no custo dos cereais, das bases da nossa alimentação; tanto não é bastante para esquecermos o real sentido do cartaz que, já lá vai tanto ano!, nos advertia de ser o pão das nossas searas a fronteira que melhor nos defende. E com quem haveríamos de ser competitivos? O infatigável viajante da agricultura René Dumont couta- ter visto, algures na Ásia Central, um trem do lavoura de seis tractores, cada qual puxando sua charrua de seis ferros; pegavam no trabalho, lavravam a direito diante de si 15 km até à hora do almoço; paravam então, almoçavam os condutores, e depois regressavam acabando o seu dia com outros 15 km no rego de retorno. E previa que alguma vez tais máquinas trabalhariam teleguiadas de um gabinete central.
Supondo, o que ainda falta comprovar, que tanta mecânica deu resultado, pergunto:
É com agriculturas destas que deveríamos competir? E quem mais? Não, parece-me que há-de haver sempre,
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diferenças; e compensações, e limiares de preço, e taxas de fronteira, a marcar conceitos de justa equiparação das diversidades naturais.
O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Muito bem!
O Orador: - Nem, senão num estágio tão adiantado de despovoamento do campo que contar com ele em planos próximos será injustificado, será de contar que pela via da especialização possamos conter a nossa agricultura - conter e contentar - em quadros de produção tão apurada pela técnica humana e pelo aproveitamento da Natureza que sejam geralmente competitivos no mercado.
Por largo tempo ainda, creio-o bem, o nosso esforço terá de ser o de orientação conformada, conformada ao melhor aproveitamento das condições existentes, orientada às possíveis transformações delas para melhor, mas sempre de olhos postos na consideração de que a Natureza não se governa senão ao seu jeito e na lembrança de que a presença numa sociedade, humana ou económica, impõe, antes de mais nada o melhor uso das vir dualidades próprias, que não é o de igualar a todo o custo as virtualidades alheias.
Dentro desta convicção, resta-me por minha parte reconhecer, e afirmar também, e igualmente proclamar, que temos muito a fazer para realizar este melhor uso das virtualidades próprias; é assim que entendo os planos de reconversão, e assim estou pronto a dar-lhes o meu voto e aplauso, como organizadores de rumos futuros.
Mas, há uma crise aguda da agricultura, e estes planos de viragem e de reconversão, por mais voltas que lhes demos ao apreciá-los, tais como outros planos pouco antes preconizados, nada nos oferecem de soluções imediatas.
O Sr. Rocha Cardoso: - Muito bem!
O Orador: - Nem, quanto aos actuais, de soluções bastante amplas, no sentido de que para agora se fala só em trabalhar o Alentejo, a seguir, talvez, Trás-os-Montes - ou serão as regiões do milho? -, não havendo grande segurança de projectos para o resto do País, quando o certo é serem gerais as queixas, prementes as aflições e instantes os pedidos de providências rápidas, do Minho ao Algarve, se não também da ilha das Flores a da Madeira.
Nunca agrada aos interessados, e pode intrigar os observadores, se numa situação de crise a requerer soluções imediatas se oferecem como resposta apenas medidas de efeito a prazo.
O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Aos interessados não agrada; nenhum de nós, sofrendo de dores fortes, se contentará com o médico que lhe receite apenas nova higiene, desprezando os analgésicos; mas aos observadores fica sempre a dúvida da sinceridade, integral dos projectos e põem-se a perguntar se não haverá neles seu quê de manobra de diversão das atenções. Das atenções não dos que se queixam, mas dos que sabem das queixas e podem ser tentados a supô-las deferidas quando são simplesmente desviadas da discussão.
Já alguém observou que uma agricultura que não está uniformemente e em todos os seus aspectos chegada ao ponto de não dar pretextos para lhe ser imputada a culpa das dificuldades de que sofre - e qual o sector económico que o está? - oferece terreno, bastante propício a manobras de diversão, em que se vai atrás de objectivos de alcance mais ou menos profundo e de âmbito mais ou menos limitado, mas que demoram tempo a atingir, para evitar atacar alvos mais modestos, mais prontos e de maior interesse para a generalidade dos produtores. E comentava - a observação é de interesse, por não ser portuguesa - que para mais a tendência das grandes reformas é serem regularmente adiadas, por serem com frequência concebidas ao sabor de ideias gerais afastadas dos realidades.
Dentro de dois anos tivemos, já duas séries de planos, ou dois esquemas de programa, será melhor dizer, cada qual com a sua nota tónica própria; perdemos tempo a discutir pormenores de um e vamos decerto perdê-lo de novo a elaborar os do segundo.
Devo dizer, porém, e em plena sinceridade, que este último me parece ditado por melhor conhecimento das realidades da economia agrícola e gizado em termos de melhor aplicabilidade ao meio.
A estes dois títulos ajusta-se bem o acertado critério anunciado pelo Sr. Ministro da Economia na sua conferência de imprensa de 28 de Junho último: «Uma política económica só será eficaz se assentar directamente nas realidades actuais»; mas necessário será que tome em conta, no seu devido peso, todas as realidades actuais.
Ora, sendo uma destas a de a nossa agricultura carecer de experimentar novos rumos, os planos do Ministério da Economia e da Secretaria de Estado da Agricultura ajustam-se-lhe; mas, sendo outra a de uma perigosa debilidade económica, filha do desajustamento dos custos e dos preços, não vemos ainda nada organizado para a tomar na necessária conta, com ao menos paliativos, imediatos como se faz mister, intercalados ou não na reconversão que se delineia, apesar de o Sr. Ministro não ignorar o problema, pois abertamente se lhe tem referido em público. Entendeu não o poder resolver: isto não lhe diminui a urgência, e portanto há que rever os limites da impossibilidade sentida, medi-los de novo nos seus verdadeiros termos, que são os da sobrevivência de muitas explorações, por ora insubstituíveis como meios de sustento de quem lá se emprega, e os da possibilidade de progressos de todas as demais.
É a aguda consciência desta necessidade que afinal me traz aqui, pois não me move, nem por sombras, insisto em protestá-lo, a menor adversão à personalidade tão simpática e aos propósitos tão plausíveis do Sr. Ministro. E, já agora que estou nestes domínios do subjectivo, quero acentuar que S. Exa. reconheceu uma terceira realidade da conjuntura, ao dizer ao País, através da televisão, que «precisamos de ter aquilo que se pode chamar um certo carinho pela nossa lavoura»; e acentuo isto para lhe afirmar que pela verdade avançada lhe estou tanto mais grato quanto tomei para mim próprio, no início deste discurso, dele e de um seu colega ilustre de país amigo, a mesmíssima tese.
Naquela conferência de imprensa que foi o seu primeiro grande contacto com a Nação, o Sr. Ministro apreciou as questões agrícolas com clareza, com coragem, com a inteligente abertura de um espírito evidentemente muito esclarecido da problemática da economia agrária nas suas conclusões mais recentes.
Ali ditou três objectivos de bastante evidência para poderem merecer adesão franca, mas tão gerais que deixam o campo aberto a fartas conjecturas sobre o modo prático de os atingir: a agricultura deverá ser destinada ao mercado; ter rendabilidade; e caminhar para a paridade com os outros sectores.
E logo esclareceu o sentido destas palavras, precisando que os problemas da comercialização agrícola se tornam
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primaciais; os dos custos e preços, muito importantes; e os de ordem social, de solução quase inadiável. Mais tarde, aliás, a propósito do desenvolvimento do Algarve e do Alentejo, voltou a indicar, dirigindo-se a estas regiões, mas representando a mesma ideia fundamental, «uma agricultura reconvertida, ligada à indústria e a novos circuitos comerciais», como oferecendo o caminho do progresso económico e social.
Entretanto, recordando que a industrialização se vem processando a ritmo elevado, mas que algumas das nossas indústrias se debatem com a insuficiência do marcado, pusera aquela ideia a que já me referi, de termos legitimamente de nos interrogar se a estagnação relativa do sector agrícola não constitui hoje travão ao nosso crescimento.
A frescura de conceitos e a largueza de atenção com que era assim abordada a questão agrícola suscitou desde logo entre a lavoura confiante expectativa e reconhecida simpatia; e se estes sentimentos foram em pouco tempo abalados, como referi ao anunciar o que estou hoje a dizer, nem por isto se deixou de aguardar que, transcendendo o âmbito e o momento em que tal abalo se verificou - âmbito, todavia, vastíssimo, pois é o de toda a cerealicultura e o da produção leiteira -, o desenvolvimento da doutrina exposta reconsolidasse o crédito de tão boa fé aberto.
Este desenvolvimento temos de o procurar, até agora, no despacho da Secretaria de Estado da Agricultura vindo ao lume dos jornais em princípios de Novembro último; e é tomando-o como indicador válido dos critérios em que se vai proceder a nova política que avançarei os meus comentários.
Não se foge ali, sem dúvida, à admissão da gravidade da situação financeira da lavoura; porém, logo de entrada esta é aconselhada a não «pretender persistir em sistemas de exploração cuja continuidade apenas tem sido possível mercê de vultosas e hoje insustentáveis despesas por parte do Estado», e pouco depois diz-se-lhe que terá de se afastar das culturas em luta constante e inglória com o meio físico, substituindo-as por outras que melhor se comportem em produtividade.
Ora, há aqui uns pontos que são de considerar graves, se não quisermos cair na irreverência, e porventura injustiça, de supor que estamos perante meros jogos de palavras a ocultar a fuga às realidades.
Na verdade, o que se afirma assim? Primeiro, que certos sistemas de exploração seguidos só têm podido ter continuidade mercê de vultosas despesas por parte do Estado; em segundo lugar, que estas despesas são hoje insustentáveis; terceiramente, que há que substituir culturas por outras de melhor produtividade.
Logo, que os tais sistemas de exploração se tornam hoje impossíveis, tornando indeclinável a substituição das culturas.
Mas o Sr. Ministro reconhecera antes - na entrevista à televisão - não haver, nem o Ministério ter possibilidade de encetar imediatamente, uma política de outras culturas; e o Sr. Secretário de Estados confessa, quanto à mesma substituição, que nesse simples enunciado se conjugam «vários e complexos problemas de adaptação», e, depois de enumerar alguns - cada qual seu mundo de questões! -, oferece a carta de capacidade de uso dos solos «como base em que deve assentar o mecanismo que relaciona estes problemas». Porém, logo. diz que esta ainda vem a caminho e que foi preciso desistir de a fazer na escala prevista, por razões de urgência, recorrendo a uma edição em pequena escala, que afinal representa solução de recurso e provavelmente não oferecerá grande segurança.
E a seguir o despacho revela-nos toda uma série de impreparações, de demoras, de expectativas, para, poder instrumentar a política da reconversão. E o «enquanto se procura», o «aguarda-se com interesse», a «falta de elementos de base», a «dificuldade em reunir elementos que permitam concretizar um política» (isto referindo-se especialmente ao milho), a «conveniência de definir orientação mais rendável» (quanto ao fomento pecuário); impreparações e atrasos pelos quais não se podem responsabilizar os que, entrados de novo na Administração, se deparam com eles, mas que permitem pedir-lhes responsabilidades por assim mesmo se lançarem numa política que sem elas não terá viabilidade, salva a da experimentação in vivo sobre os próprios sujeitos.
É muito fácil em enunciados simples conjugar problemas vários e complexos, mas resolvê-los é outra coisa, e para a resolução dos nossos, no sentido que se quer dar-lhe, a prova está feita, na confissão dos próprios dirigentes, de que faltam ainda muitos dados indispensáveis.
Então, como vamos fazer, se é impossível continuar anteriores sistemas de cultura e é também impossível determinar com segurança e prontidão bastantes como os substituir? Na alternativa entre duas impossibilidades há que eliminar uma, e a situação não consente que isto se faça arremessando a lavoura ao mar incertíssimo das experiências ao acaso.
Política de reconversão não é o mesmo que política de reviravolta; os agricultores condicionados pela política do abastecimento - cujo abandono não está, aliás, ainda bastante justificado - têm o direito de exigir na mudança inopinada enquadramento mais substancial do que directrizes em estado de devir.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Têm o direito de esperar que se mantenha a possibilidade das culturas e explorações para as quais as substitutas são ainda meras hipóteses em elaboração.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E isto me traz a questão crucial dos preços dos produtos agrícolas para dizer que, mau grado o reconhecer-lhe toda a delicadeza, toda a impopularidade, toda a aparente inoportunidade, não posso deixar de a pôr em discussão e de a propor como única via de atenuação imediata das presentes dificuldades económicas da lavoura.
Pois se estas são filhas do encarecimento dos custos da produção, como vencê-las senão pela valorização dos resultados dessa produção?
É muito fácil objectar que a resposta é dupla e que a produção tanto se pode valorizar, relativamente aos custos, pela quantidade como pelos preços de venda.
É a evasiva da produtividade; e permito-me no caso chamar-lhe evasiva, não por ignorar todo o enorme alcance e significados das inquietações de eficácia na economia contemporânea, mas por entender que não é razoável oferecê-la como única via de saída da crise da lavoura, pois não pode suprir na medida e com a urgência necessárias a deterioração das condições económicas da produção, salvo porventura nalguns casos particulares.
A agricultura está efectivamente condenada a melhorar a sua produtividade por uma força bem mais imperativa e instante do que todos os conselhos e construções da razão: pelo decrescer e encarecimento da mão-de-obra disponível. Mas a agricultura não põe em jogo somente, nem sequer principalmente, mecanismos cuja grandeza
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ou ritmo operatório se possa fazer depender apenas da vontade (e capacidades financeiras) dos empresários; a biologia tem uma grande palavra a dizer, e não se deixa comandar por botões.
A conquista da produtividade é, pois, na agricultura trabalho lento e aleatório - não estou a dizê-lo para ensinar nada de novo, mas apenas para recordar realidades; e os nossos governantes dão-nos disto bem a medida nas expectativas em que se demoram e nas incertezas que confessam.
A par deste facto, convém trazer outro, qual é o de raras vezes as demais actividades económicas terem por suas partes demonstrado a possibilidade de vencerem só graças às melhorias de produtividade, a que estão permanentemente dedicadas, os encarecimentos dos factores de produção. A imprensa diária traz-nos a todo o momento esta verdade ante os olhos, quando dá conta de, por esse mundo fora, a movimentos altistas de salários as indústrias mais adiantadas reagirem logo, impondo, ou tentando impor, elevações aos seus preços.
Não se faz, pois, certamente, justiça aos agricultores portugueses exigindo-lhes que somente pela alavanca da maior produtividade removam o obstáculo do agravamento dos custos.
Estando nós, aliás, perigosamente a beira da superabundância, quanto a muitos artigos, não se pode sem reservas procurar aumentar em quantidade as produções.
Consideremos ainda que a melhoria da produtividade exige, em medida variável, mas quase sempre substancial, o uso de meios dispendiosos - máquinas, adubos em acrescidas doses, tratamentos químicos; ora, a grande maioria dos nossos agricultores falto a capacidade de adquirir esses: meios. Sob os constrangimentos da Natureza e dos preços administrados, a lavoura tem vivido com margens mínimas, de dia para dia mais cerceadas, e faltam-lhe os capitais para se modernizar.
Através do crédito já os absorveu até no limite da capacidade, até aos extremos da disponibilidade, somente para subsistir, para enfrentar a onda dos custos crescentes; é-lhe necessário retemperar-se e reabastecer-se de dinheiros (ao mesmo tempo que de confiança para os investir) e, dêem-se à questão as voltas que se lhe derem, ajustamentos de preços, mesmo modestos, canalizarão para a agricultura muito mais dinheiro fresco do que podem assegurar-lhes as fontes de crédito disponível, e sem o ónus da reposição.
Nesta questão dos preços os agricultores estão sempre em má postura, sempre em risco, quando reclamam simplesmente justiça, quando todos os circuitos da distribuição já se locupletaram largamente, de serem acusados de fautores do encarecimento da vida.
O Sr. Rocha Cardoso: - Muito bem!
O Orador: - Veja-se só a situação em Portugal. Desde 1948 nem um só dos cereais principais ou secundários subiu de preço no produtor; vários desceram até; o leite teve valorizações modestas e está certamente mais barato do que as águas minerais e as bebidas mais correntes consumidas em maiores quantidades sem protestos, cujo custo real de produção não lhe é comparável; todavia, o custo dos produtos de alimentação aumentou neste espaço de tempo, para o consumidor, de, pelo menos, 22 pontos, sendo duvidoso que este índice oficial meça todo o agravamento sentido nas economias domésticas.
No momento presente está-se a tornar sensível uma forte tendência de agravamento dos preços no consumo, sem que os preços agrícolas dominantes na economia geral das explorações hajam sofrido a mínima alteração; e eu só pergunto se é aceitável, se pode defender-se, se é justo, que o produtor continue amarrado a preços estabilizados, enquanto os lucros colhidos sobre eles vão ainda aumentando e acabarão por repercutir-se na produção em novos encarecimentos dos factores.
O Sr. Rocha Cardoso: - Muito bem!
O Orador: - Promulgou-se um regime cerealífero que fez desmoronar lícitas esperanças, porque não convinha provocar o encarecimento do pão para o público; porque o preço do pão é preço «estratégico»; mas ao mesmo tempo tornou-se o pão apreciavelmente mais caro, pelo jogo de propositadas ou consentidas confusões em matéria de pesagens na venda e pelo efeito da supressão da qualidade intermédia, que obrigou muitas casas de família e até estabelecimentos oficiais a resignarem-se ao gasto do mais dispendioso pão de 1.ª
Vozes: - É assim mesmo.
O Orador: - Alega-se não ser de tocar nos preços sem rever os salários, ignorando voluntariamente quanto estes na agricultura subiram já à frente dos preços. Conhecidos como são os consumos nacionais dos géneros alimentícios, é fácil calcular a quota-parte por pessoa das melhorias de preços pedidos nas jornadas cerealíferas: são exactamente $22 por dia, bem menos do que um décimo do agravamento dos salários (supondo quatro pessoas a cargo de cada trabalhador) sobrevindo desde a última fixação de tabelas.
Os preços dos produtos são os fundamentos da rentabilidade das explorações; e preços compensadores são a mesma e mínima condição da sua modernização, da conquista de maiores rentabilidades, porque são a forma natural e certa de financiamento das inovações necessárias.
A melhoria de preços dos produtos dominantes na produção agrícola portuguesa impõe-se, pois, como devido reajustamento e indispensável fonte de progressos da agricultura. Nada impede, aliás, que seja selectivamente conduzida ao nível das explorações, funcionando como instrumento eficiente da política de reconversão, observado que seja o requisito iniludível de os ditames da selecção serem solidamente fundados em possibilidades contrastadas.
Deve ser possível, por adequada campanha de esclarecimento do público, mostrando-lhe como o fomento da agricultura e a actualização dos seus preços está intimamente ligada ao fomento da actividade industrial e dos serviços, e por fiscalização dos circuitos distribuidores que já neste momento se revela indispensável, ...
A Sr.ª D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis: - Muito bem!
O Orador: - ... independentemente da introdução de ajustamentos na origem, deve ser possível, creio eu, com habilidade e confiando na compreensão das massas, que têm o sentido da justiça, deve ser possível introduzir os necessários reajustamentos nos preços à produção agrícola sem recurso a subsídios do Estado. Afinal o pão, o pão «estratégico», foi aumentado 10 ou 15 por cento, disto está já toda a gente bem consciente, e a falta de clareza do processo e a atribuição das margens criadas a outros fins que não a remuneração dos intervenientes no ciclo produtivo têm suscitado mais reparos, parece, do que a própria materialidade do encarecimento.
Inclino-me antes à revisão pura e simples dos preços, com apertado exame dos circuitos para os fazer absorver
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os aumentos até onde praticável - e deve sê-lo nalguns casos e nalguns pontos: será um problema de mais equitativa redistribuição dos sacrifícios- do que à concessão de subsídios, os quais, se tivessem agora de recair sobre o erário público, como foi dito, introduziriam encargos na hora presente porventura ainda mais difíceis de enfrentar. Uma frase recentemente atribuída ao chefe do Governo Alemão resume, a propósito, a sã doutrina em termos pitorescos: «o Estado não é uma vaca que o Céu alimente para ser ordenhada à vontade na Terra»!
Em si mesma, aliás, a política dos subsídios repugna e desagrada como todo o artifício, e intimida quantos crêem que os artifícios, em economia, tendem sempre a acabar por resultar caros. Muitos agricultores têm o subsídio por uma desconsideração, olhando-o como esmola e tutela e como obstáculo à proclamação dos preços justos. Há, todavia, um prisma diferente, através do qual o subsídio tem sido encarado como medida de equidade, transferindo uma parte do rendimento nacional para o sector agrícola como meio de o sustentar nas condições de disparidade em que a agricultura tem sido forçada a viver.
Nesta ordem de ideias, o sistema dos subsídios torna-se particularmente defensável se for suportado pela receita de diferenciais cobrados na circulação dos produtos da agricultura ou na importação de géneros exóticos concorrentes da produção interna. Assim se fez entre nós a protecção à cultura do arroz há 80 anos, que lhe permitiu tomar grande incremento e tornar o País auto-suficiente a certo tempo, e se ajudaram os produtores de trigo nos anos particularmente desfavoráveis de 1961 e 1962.
Está calculado que o jogo dos diferenciais no circuito do pão dará, em ano médio e no regime actual, cerca de 80 000 contos de benefício para os fundos do Ministério da Economia, como mínimo; e sabe-se que ao preço corrente de trigo importado coda quilograma dele representa cerca de 1$ de diferença sobre o trigo nacional, que reverte igualmente para o Ministério da Economia em lucro bruto. Aqui estilo várias centenas de milhares de contos, uns anos por outros, para mais já aliviados do encargo de cobrirem os bónus sobre adubos, que poderão ser aplicados em benefício dos nossos preços agrícolas.
O que não vejo, o que a razão me não mostra, a invenção não faculta e o trato de estudos alheios não ensina, é outra maneira de dar a nossa depauperada, arruinada, exangue, agricultura a reanimação geral e sem delongas, que a sua gravíssima crise exige, sem uma imediata melhoria dos preços dos géneros nas presentes condições incapazes de cobrirem os encargos da produção.
Contra inúmeros avisos, deixou-se demasiado longamente agravar o estudo das coisas rurais, não cuidando a tempo de encaminhar os lavradores para especulações mais proveitosas, se as havia, ou de ir temperando consoante as conjunturas os termos das trocas; o mal avançou muito e chegou assim a hora de se imporem irrecusavelmente as medicações heróicas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A opção está em as escolher compatíveis com a resistência da doente, ou tais que acabem de a esgotar no sobressalto!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: empobrecida, desconsiderada, repudiada pelos próprios filhos, que a abandonam por madrasta, a agricultura reage em todo o velho mundo à difícil e dolorosa confrontação com padrões de riqueza e bem-estar criados nó jogo de forças superiores às suas, medidas estas como são pelo senhorio da Natureza e pelo domínio da sociedade urbana.
Grande desprezada de uma civilização cega pelo artificial, pelo luzidio e pelo mecânico, quando deveria ser honrada como provedora da primeira e maior das necessidades dos homens, da alimentação que lhes conserva o ser e a vida, a agricultura sofre em primeiro e principalíssimo lugar da debilidade com que se apresenta nos mercados e donde resultou a progressiva desvalorização dos produtos, desde que a fartura de ofertas se tornou constante, graças aos abastecimentos de além-mar, e à medida que os compradores aprenderam a unir-se e ditar mais firmes e duras as suas próprias condições.
Essa debilidade foi aumentada pela perda do poder político, depois que este passou das mãos da aristocracia fica de bens rurais para as dos senhores do comércio e da indústria, e, seguidamente, para as dos sindicatos, senhores das massas operárias, todos indiferentes a vida dos campos e somente desejosos, quanto aos produtos agrícolas, de os obterem cada vez mais baratos.
Destarte se geraram os movimentos de preços para os artigos industriais estabelecidos em termos de custos de produção mais os lucros proporcionados pelo oligopólio e para os géneros agrícolas em função da mínima resistência dos lavradores.
E destarte se geraram as crises modernas das agriculturas europeias na deterioração constante dos termos da troca dos seus produtos com os da cada vez mais poderosa e requestada indústria, deterioração de quando em quando travada, por intervenções protectoras dos governos para logo recomeçar.
Ao mesmo tempo, os camponeses perdiam os seus antigos costumes de quase inteira suficiência e para si próprios e para os suas lavouras incrementavam enormemente o uso de produtos da indústria, aumentando com a desproporção das quantidades, cada dia forçada por novas necessidades ou tentações, a desproporção dos valores de que dispunham para as suas compras.
Foi assim que se chegou na agricultura portuguesa, como nas demais da Europa, feridas inicialmente pela concorrência dos produtos do mundo novo e jamais libertas depois dos adversários que sobre elas então se abateram, foi assim que se chegou a crise actual, em que todos os lavradores desesperam de tirar a recompensa do seu trabalho.
Não tenhamos dúvidas nem ilusões: a generalidade da crise sobre a diversidade das circunstâncias nacionais denuncia-lhe a raiz comum, que é a quebra do poder de compra da produção agrícola!
Atrasos técnicos, adversidades climatéricas, imperfeições de estrutura, influem, sem dúvida, no valor da produção que cada território colhe por unidade de superfície ou por pessoa activa; mas não são as causas de dentro do seu território coda agricultor se remediar pior do que há dois anos, pior há dois anos do que há cinco, pior há cinco do que há dez; pior sobretudo, muito pior, do que o seu vizinho não Agricultor!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - E em parte alguma se encontrou remédio no êxodo rural, por não acarretar aumentos dos rendimentos individuais das explorações, dado que a mecanização supre os braços, mas pouco ou nada barateia os serviços nas limitadas áreas europeias; nem se encontra na expansão das produções, porque depressa chegam a saturação dos mercados; nem na substituição de culturas porque os consumos básicos se adaptam lentamente.
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Creio que é a luz destas verdades gerais que cumpre considerar o caso português.
Nesta longa hora tomada à vossa benevolência, muito de propósito me demorei menos sobre os seus pormenores do que sobre as generalidades em que creio inserir-se.
Não falta fazer a pintura das preocupações que nos tomam, das angústias em que se debatem os agricultores, da ruína que já aniquilou muitas lavouras e pende sobre outras, do acastelar das dívidas, do atrasar das amortizações, do acelerado diminuir dos rendimentos, com todos os negrumes, com todos os traços, com todo o vigor muitas e muitas vezes feita já a V. Ex.ª
Mas cabe tentar ainda um resumo final para procurar esclarecer definitivamente o sentido da minha presença. A lavoura, sobretudo a dos cereais, a menos ajustada ao território, a mais necessária aos habitantes, está assoberbada de dificuldades profundas e em agravamento. «Ajudai-nos! Protegei-nos! Salvai-nos!» é o título genérico de uma série de artigos em publicação agora mesmo num dos mais antigos e conhecidos dos nossos periódicos agrícolas e ó o grito, o clamor unânime, dos lavradores.
Velhas queixas, repetidos avisos, recomendações solidamente fundadas, têm sido desprezadas por governantes e governados, mantendo-se numa inércia - mas inércia não quer dizer torpor, quer dizer falta de força para alterar o movimento - que conduziu a crise presente.
Agora é redobrado o esforço a fazer, mas a intensidade mesma do mal fará aceitar todos os remédios capazes de concitarem boas esperanças.
Chegou a hora de agir, a hora inadiável de decisões que não sejam só ordens de cima, mas sim directrizes de acção eficiente. Porém... há dois anos disseram-nos que o mal era das estruturas, agora (todavia com mais visos de verdade) que das culturas, e a lavoura pergunta-se como discernir e escolher um caminho entre o jogo das palavras e o das veleidades.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Veleidades, sim, porque outro nome não têm os mais honestos propósitos, os mais bem concatenados planos, os mais enérgicos assomos, quando é incerto o ponto de partida e insuficiente a força de acção.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ora a verdade desoladora é que ainda se conhecem muito mal as possibilidades e potencialidades do solo português. As cartas de solos e de ordenamento, há 78 anos pela primeira vez preconizadas por Emídio Navarro, há 17 contempladas num projecto de lei encalhado nesta Assembleia, há 12 em desalentada elaboração por quem merecera mais incitamento, estão agora a ser precipitadamente acabadas em escala tão pequena que não permitirá senão generalizações. E nada pode ser mais inconveniente na cultura da terra do que a generalização.
A educação e enquadramento dos lavradores pela via da investigação oficial e da assistência técnica, a mais poderosa arma do moderno progresso agrícola - olhai só o exemplo de Israel, batendo em terras ingratíssimas, e em curto tempo, as marcas mundiais de produção! - decretada na fé e realizada na mais hesitante dúvida, está longe, longíssimo, de oferecer o apoio necessário para uma reconversão realista e eficiente.
Os próprios meios financeiros não estão assegurados com a abundância indispensável para dar à reconversão ritmo e alcance correctores da crise, e força para talharem e repararem rápidos prováveis falhas e desilusões. A indispensável retirada da seara dos muitíssimos milhares de hectares por ela arruinados só poderá fazer-se tomando de arrendamento as terras dos lavradores pobres para as florestar e pelo tempo disso, conforme permite lei já antiga de dez anos, mas nunca, que eu saiba, utilizada desta feição; e os recursos agora anunciados em jogo não parecem aplicáveis ao efeito.
Para não encarar a falta de rentabilidade das culturas de cereais, afirma-se que devem ser abandonadas onde essa não seja satisfatória aos preços actuais - isto é, em quase toda a parte -, princípio certo, contanto que haja culturas de substituição utilizáveis em amplitude bastante, o que ainda ninguém demonstrou, e capitais para investir nelas e esperar enquanto ganham conhecimento e mercado, o que está demonstrado não haver!
O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Longamente esquecida a agricultura como factor de crescimento da economia nacional, é tarde e a péssima hora que se acorda a reparar quanto ela lhe é ainda necessária, e quão pouco preparada está para tal papel.
E em nome do direito à simples sobrevivência de mais de 4 milhões de portugueses, e do direito a vida melhor de outros tantos, que eu proclamo a crise agrícola nacional, não como mal crónico, mas como afecção agravadíssima, requerendo as mais atentas, enérgicas, prontas e eficazes providências.
O Sr. Franco Falcão: - Muito bem!
O Orador: - É necessário que a Nação se convença de não ser este só um mal de sector, a par do qual os demais possam passar indiferentes ou apenas curiosos, mas doença agudíssima a minar todo o corpo económico e social.
É necessário antes de mais nada travar-lhe o avanço, fortalecendo os lavradores pela revalorização das produções não rendáveis, e seguidamente combatê-la ajudando-os com informação segura e meios eficazes a orientarem-se por melhores caminhos. Mas aquela acção, que é de urgência, não deve nem pode ser suprida pela ultima, que é de efeito a prazo.
Para se combinar as duas há que mobilizar boas vontades e recursos materiais até ao limite do impossível, justificando-se a eventual partilha com domínios até agora melhor dotados e que como tais possam consentir declarações, que ainda serão avanços relativamente à agricultura.
E há que proclamar aos povos das cidades que a agricultura não é um serviço público, mas uma actividade tão válida e mais indispensável que as suas,...
O Sr. António Santos da Cunha: - Muito bem!
O Orador: - ... servida por homens que como eles aspiram a beneficiar das conquistas da civilização, e que portanto têm de ser igualmente retribuídos pelo seu trabalho:...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ... igualmente, se não melhor, por a tarefa ser mais dura e as compensações mais raras.
Dos agricultores dizia um velho moralista em trechos dos mais célebres da literatura francesa: «... poupam aos outros homens o trabalho de semear, de lavrar e de
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colher para viverem, e merecem assim que lhes não falte do pão que semearam.»
Foi para que não falte mais aos nossos do pão que semearam que lancei esta interpelação.
Tenho dito, Sr. Presidente.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. António Santos da Cunha: - Sr. Presidente: com a devida vénia e o respeito que, a todos os títulos, é devido V. Ex.ª, tendo em atenção o interesse que a todo o País merece a matéria do aviso prévio que acaba de ser efectivado, e, ainda, o facto de o Sr. Ministro da Economia o ter já considerado oportuníssimo, requeiro a V. Ex.ª a generalização do debate.
O Sr. Presidente: - O requerimento de V. Ex.ª está deferido. Só observo que, nos termos regimentais, os requerimentos não podem ser fundamentados.
Nos termos do Regimento, seguia-se agora dar conhecimento das explicações do Governo colhidas por via oficial.
A hora vai muito adiantada e não é, talvez, altura de dar a VV. Exas essas explicações, pelo que serão dadas na próxima sessão.
Vou encerrar a sessão.
O debate, cuja generalização já foi requerida, continua na próxima quinta-feira dia 18 de Fevereiro.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 35 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alberto Ribeiro da Costa Guimarães.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
André Francisco Navarro.
António Burity da Silva.
António Calheiros Lopes.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
D. Custódia Lopes.
Francisco Lopes Vasques.
Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
José Dias de Araújo Correia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís Vaz Nunes.
José dos Santos Bessa.
Júlio Dias das Neves.
Manuel Nunes Fernandes.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Beis.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Agnelo Orneias do Rego.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Marques Fernandes.
António Martins da Cruz.
António Tomás Prisónio Furtado.
Artur Águedo de Oliveira.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Jacinto da Silva Medina.
Joaquim de Jesus Santos.
José Maria Rebelo Valente de Carvalho.
José Pinto Carneiro.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Melo Adrião.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Sebastião Garcia Ramires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Urgel Abílio Horta.
Voicunta Srinivassa Sinai Dempó.
O REDACTOR - Luiz de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA