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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 180

ANO DE 1965 27 DE JANEIRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VIII LEGISLATURA

SESSÃO N.º 180, EM 26 DE JANEIRO

Presidente: Exmo. Sr. Mário de Figueiredo

Secretários: Exmos. Srs.
Fernando Cid Oliveira Proença
Luís Folhadela de Oliveira

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia. - foram aprovados os n.ºs 175 a 179 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
Foi recebido na Mesa, para cumprimento do disposto do § 3.º do artigo 109º da Constituição Política, o Diário do Governo n.º 290, que insere o Decreto-Lei n.º 46 074.
O Sr. Deputado Gonçalves Rapazote falou sobre a legislação relativa ao condicionamento dos transportes particulares de mercadorias.
O Sr Deputado Alberto de Araújo prestou homenagem à memória de Sir Winston Churchill.
O Sr. Presidente associou-se, em seu nome e no da Câmara as manifestações de pesar que em todo o Mundo se verificam propósito da morte de Sir Winston Churchill, interrompendo sessão por alguns minutos em sinal de luto.

Ordem do dia. - Prosseguiu a discussão na generalidade da proposta de lei sobre a propriedade da farmácia.
Usaram da palavra os Srs Deputados D. Custodia Lopes, Folhadela de Oliveira, Costa Guimarães, Burity da Silva e Teles Grilo.
O Sr Presidente encerrou a sessão às 20 horas.

O Sr Presidente: - Vai fazer-se a chamada

Eram 16 horas e 10 minutos.

Fee-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agnelo Ornelas do Rego
Agostinho Gonçalves Gomes
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles
Alberto Pacheco Jorge.
Alberto Ribeiro da Costa Guimarães
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Alexandre Marques Lobato
André Francisco Navarro
António Augusto Gonçalves Rodrigues.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Magro Borges de Araújo
António Manuel Gonçalves Rapazote
António Marques Fernandes
António Martins da Cruz
Armando Cândido de Medeiros
Artur Águedo de Oliveira
Artur Alves Moreira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel
Artur Proença Duarte
Augusto José Machado
Bento Benoliel Levy
Carlos Alves
Carlos Emílio Tenreiro Teles Grilo
D. Custódia Lopes
Délio de Castro Cardoso Santarém
Domingos Rosado Vitória Pires.
Fernando Cid Oliveira Proença
Francisco António Martins
Francisco António da Silva
Francisco José Lopes Roseira
Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro
Henrique Veiga de Macedo

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Jacinto da Silva Medina
James Pinto Bull
Jerónimo Henriques Jorge
João Mendes da Costa Amaral
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
João Rocha Cardoso.
João Ubach Chaves
Joaquim de Jesus Santos
Joaquim José Nunes de Oliveira
Jorge Manuel Vítor Moita.
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos
José Alberto de Carvalho
José Augusto Brilhante de Paiva
José Fernando Nunes Barata
José Luís Vaz Nunes
José Manuel da Costa
José Manuel Pires
José Mana Rebelo Valente de Carvalho
José Monteiro da Rocha Peixoto
José Pinto Carneiro
José dos Santos Bessa
José Soares da Fonseca
Júlio Alberto da Costa Evangelista
Júlio Dias das Neves
Luís de Arriaga de Sá Linhares
Luís Folhadela de Oliveira
Manuel Amorim de Sousa Meneses
Manuel Colares Pereira
Manuel Herculano Chorão de Carvalho
Manuel João Cutileiro Ferreira
Manuel Lopes de Almeida
D. Maria Irene Leite da Costa
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis
Mário Amaro Salgueiro dos Santos Galo
Mário de Figueiredo.
Olívio da Costa Carvalho
Paulo Cancella de Abreu
Quirino dos Santos Mealha
Rui de Moura Ramos
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes
Virgílio David Pereira e Cruz

O Sr Presidente: - Estão presentes 76 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr Presidente: - Estão na Mesa os Diários das Sessões n.ºs 175, 176, 177, 178 e 179, respectivamente de 15, 19, 20, 21 e 22 de Janeiro. Se nenhum dos Srs Deputados desejar fazer qualquer reclamação, considerá-los-ei aprovados.

Pausa.

O Sr Presidente: - Como nenhum Sr Deputado deseja fazer qualquer reclamação, estão aprovados

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Vários apoiando as intervenções dos Srs Deputados Nunes de Oliveira, Marques Fernandes, Moura Ramos e Délio Santarém.
Dos presidentes dos Sindicatos Nacionais dos Ajudantes de Farmácia de Lisboa e do Porto, pedindo que a Assembleia defenda os legítimos direitos dos ajudantes de farmácia.
Dos farmacêuticos do concelho de Avis reunidos em Lisboa, saudando a Assembleia e pedindo que a posse da farmácia seja regulamentada por forma a não estar a respectiva direcção técnica subordinada a práticos ou leigos.
Vários protestando contra as intervenções dos Srs. Deputados Délio Santarém, Nunes de Oliveira, Marques Fernandes e Moura Ramos.
Vários de apoio à proposta do Governo.
Vários aplaudindo as considerações do Sr. Deputado Nunes Barata sobre o porto da Figueira da Foz.
Do presidente da Câmara Municipal de Tábua apoiando as palavras proferidas na Assembleia pelo Sr. Deputado Augusto Simões sobre a taxa do vinho.

O Sr Presidente: - Para efeitos do disposto no § 3 º do artigo 109 º da Constituição Política, está na Mesa o Diário do Governo n.º 290, de 12 de Dezembro findo, que insere o Decreto-Lei n º 46 074, que fixa em 6$ por quilograma os direitos devidos pela importação de 600 t de manteiga a efectuar pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários.
Tem a palavra o Si Deputado Gonçalves Rapazote.

O Sr Gonçalves Rapazote: - Sr. Presidente: A legislação relativa ao condicionamento dos transportes particulares de mercadorias, que entrou em acção neste gelado mês de Janeiro, traz o confessado propósito de os desencorajar, para, ao mesmo tempo, proteger o sistema de transportes públicos.
Licenciamentos e gravames fiscais para uns, proteccionismo para outros, tudo em homenagem ao chamado interesse coordenador.
Ora, há coordenação e coordenação.
A coordenação prevista na Lei n º 2008, votada nesta Assembleia Nacional em 1945, fazia-se à custa do tratamento adequado dos transportes públicos, em ordem a melhorar a sua eficiência, consignando-se, expressamente, que os transportes particulares «apenas seriam sujeitos às regras gerais de trânsito e aos encargos tributários normais».
Esta outra, a do legislador de 1963, prevista e declarada no Decreto-Lei n º 45 381, de 28 de Outubro, e regulamentada em 1964, dirige-se directamente aos transportes particulares com o propósito confessado de os desencorajar - repetimos - sujeitando-os a um regime de licenciamento e a nova classe de impostos.
A isto não posso eu chamar coordenação mas sujeição, perturbação condenação - a sujeição da licença, a perturbação da guia, a condenação fiscal.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Mudaram os ventos, e, passados vinte anos, assistimos a um novo entendimento dos princípios vindo a lei de hoje em flagrante e declarada oposição ao critério definido e exarado na base VIII da Lei de 1945.
Temos agora a vista o cilindro compressor do Estado rolando sobre nós, servindo-nos modelos oficiais de felicidade, quebrando-nos o amimo e os ossos e deixando-no sem forças para exercitar as nossas virtudes próprias e os nossos caprichos.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Acabaremos licenciados, catalogados, guiados, transferidos da condição de homens livres para a categoria de «súbditos sociais» (risos), garantidos contra todos os riscos, pois só a sabedoria planificadora e a coordenação especializada conheçam as verdadeiras necessidades da grei.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Temo, há muito, o crescimento do dedo planificador apontando o caminho do fim de toda a iniciativa privada e de uma economia livre.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Podem os econometristas rasgar as suas vestes, em fúria, mas eu ficarei à espera do desastre desta desastrada orientação.
De resto, tenho muitas dúvidas sobre a pureza constitucional de tal coordenação, mais ou menos importada, de inspiração estrangeira, lavrada ao arrepio dos princípios votados nesta Casa e extravagante da letra dos artigos 31.º e 32.º da Constituição Política de 1933, que ainda nos rege.
O direito e a obrigação de regular superiormente a vida económica que os invocados preceitos constitucionais conferem ao Estado, estão subordinados a objectivos específicos que não coincidem, pròpriamente, com os de pôr o maior zelo em desencorajar os transportes particulares de mercadorias.
Debruçado sobre ia realidade dos factos, o relatório do Decreto-Lei n º 45 381 mostra que os veículos particulares atingiam, em 1961, um número de 42 843, enquanto a camionagem de aluguer dispunha de um parque de 4786 viaturas, pouco mais de 10 por cento do parque nacional.
Conclui então, pelo desequilíbrio dos parques desequilíbrio que teria resultado da protecção dispensada aos transportes particulares pelos legisladores de 1945.
Srs. Deputados: A única protecção que a Lei n.º 2008 dispensou à iniciativa privada foi a de deixá-la em paz.
É, efectivamente, de agradecer.
Nestas condições, o desequilíbrio encontrado - eu não sei se há desequilíbrio porque não conheço o funcionamento da balança dos transportes - só poderia resultar das fraquezas do sector público ou da própria coordenação.
As actividades particulares desceram naturalmente, segundo as circunstâncias, ante a carência ou debilidade dos transportes de aluguer, aumentando os seus investimentos e equipando o serviço de transporte de que necessitavam.
Mais decididas, sem a preguiça congénita do braço oficial, menos formais, mais maleáveis, mais próximas da vida, preencheram uma função económica, correndo embora o risco das alfinetadas dos autos de transgressão e furando todos os condicionamentos utópicos e mais ou menos ilegais.
É hoje uma realidade incontroversa que o parque de transporte público não satisfaz as necessidades da Nação, sendo a camionagem particular, com 90 por cento afectivo total, que põe sobre rodas as mercadorias e as faz circular, realizando um serviço do mais evidente interesse geral.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - A minha primeira reacção contra o esquema do decreto de 1963 está na consideração de que coberto de um pretendido interesse coordenador, mal
definido e mal justificado, se colocou sob pesada tutela quem, afinal, veio realizando o inestimável serviço de assegurar, em tão larga medida, a circulação das mercadorias.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Olho, naturalmente e interessadamente, a paisagem da minha terra de Bragança e Miranda e fico informado, e bem informado, de que o transporte público, cheio de carências de toda a ordem, insuficiente e incómodo, não satisfaz as necessidades mínimas da região.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O pobre camponês, forçado a sair da aldeia carregando consigo os produtos sobrantes do auto-abastecimento, a batata ou o saco de centeio, ou arrastando o próprio suporte vital, é mais ou menos tributário dos transportes particulares.
Ali existem cerca de 50 veículos pesados de aluguer para 265 particulares
Os 250 000 habitantes, distribuídos por 5600 km 2 e 300 freguesias, têm um carro de aluguer por cada 6 freguesias.
O transporte particular é hoje a vida, o movimento, a circulação de todo o Nordeste.
Afrontar esta realidade, este condicionamento, criando nos transportes particulares maiores dificuldades - encarecendo-os primeiro e eliminando-os depois-, equivale a engasgar todo o sistema, sacrificando ainda mais aquelas populações abandonadas e mal servidas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Só os coordenadores me poderão explicar, com a sua precisão habitual, os meios de que dispõem para defender a economia nacional de um licenciamento mais que discutível.
Os resultados que antevemos deste errado procedimento são, para já, um turbilhão de papéis no ar - brancos, amarelos, verdes, encarnados -, a carestia e a dificuldade do serviço.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Provocada a anemia do sector, mas de um sector de que teremos de nos socorrer por muito tempo, em vez de coordenar - coordenar é refazer, segurar e aguentar o feixe dos vimes - enfraquecemos o conjunto.
A nova lei já lhe receitou o requerimento, a licença, os impostos - o de circulação e o de compensação-, a guia de transporte, a negregada guia, enfim, tudo o que há de mais tóxico para arruinar o apetite de quem gosta de trabalhar e progredir.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Limitados os raios de acção, reduzido o aproveitamento das máquinas, condicionadas as mercadorias transportadas, o veículo particular ficará mais caro, menos útil, sem que se tenha substituído o sistema por outro mais eficaz e mais barato.
Decididamente, tomo partido, sem hesitações, pelos legisladores de 1945 e fico-me com eles.
Não me convenceu a política de transportes que vem agora definida, antes me desagradaram, profundamente, os métodos usados, onde transparece a mais refinada tecnocracia e se vêem multiplicadas as dificuldades, os danos,

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as perdas de tempo e de dinheiro, aumentadas as canseiras da já cansada Nação.
Quero apressar-me a declarar que nem a Polícia de Viação e Trânsito nem os serviços da Direcção-Geral dos Transportes Terrestres me parecem culpados desta lei, nem do regulamento que agravou a lei, nem das circulares, dos esclarecimentos e das instruções que, por sua vez, agradaram o regulamento.
Eles Polícia e serviços, também serão vítimas indefesas dos papéis e serão subvertidos por esta nova vaga colorida e ondulante, deixando de cumprir outras mais salutares obrigações.
Da casa de cada um, do seu eirado ou da pequena indústria familiar à estação de caminho de ferro ou à central de camionagem mais próxima há longos e difíceis caminhos a percorrer.
Era, muitas vezes, o vizinho e amigo do lado quem resolvia, com risco de transgressão ou em declarada transgressão, vistos os condicionamentos logo postos ao preceito salutar dos legisladores de 1945, uma grande parte dos transportes terrestres.
Todos nós temos experiência desses caminhos, acusados no relatório do decreto de grave responsabilidade neste condicionamento taxados de actividades clandestinas, camufladas, mas no fundo impostas pela necessidade de andar, pela regra do movimento contra a ancilose e paralisia asfixiante dos coordenadores postados em admirar a sua obra, contemplando carreiras e alvarás, fechados à compreensão das mais urgentes necessidades públicas e voltados para a licença, para a guia, para o imposto, quando têm de bulir.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A vida real faz saltar todos estes condicionamentos artificiais, escapa-se facilmente por todas as abertas e rompe por onde menos se espera, na clandestinidade, enquanto não puder apresentar em plena floração todas as suas virtudes, exercitadas e provadas na adversidade do clima.
As guias que ora se inventam, exigindo a multiplicação da Polícia e da fiscalização e preparando o cortejo das multas não poderão dominar o fenómeno do transporte nem se podem justificar por razões estatísticas.
Estatística cara, defeituosa, inacreditável, descarregada pelos Serviços sobre os ombros do contribuinte, é coisa que não entendo.
Quem precisar de andar e não tiver ao seu alcance outro meio terá de encontrar os processos adequados de utilizar o veículo de que dispõe, qualquer que ele seja.
Mas os proprietários desses veículos particulares, dotados de bom senso e agora metidos neste enredo das licenças de um condicionamento sem precedentes, vão descrer da utilidade dos instrumentos de que dispõem e que a lei desvalorizou.
Descrer é encolher os ombros e abandonar.
Sendo esta a atitude mais conforme ao espírito da lei teremos de perguntar se o melhor caminho, a melhor forma do equilíbrio do parque, será este do desequilíbrio dos nervos e da economia de cada um.
Pôr a Noção, que se pretende lançada num plano de desenvolvimento industrial, comercial e agrícola, a andar a passo travado, quando dispõe de meios para caminhar mais depressa, parece-nos, a nós, que não temos responsabilidades de direcção económica, mas não fechamos os ouvidos ao clamor geral, muito mal avisado.
Dizem os entendidos que a análise dos sistemas de governo se pode fazer através do tratamento dado no sector público e ao sector privado.
A expansão do sector público só parece legítima, ao nosso entendimento do Estado, quando serve, inequìvocamente, o bem comum ou ocupa os terrenos que o sector privado abandonou ou ainda não dominou.
O Estado deverá estimular ou vivificar o sector privado antes de o substituir, deverá suprir mais do que concorrer.
Empenhe-se em assegurar o bom funcionamento dos serviços públicos e deixe caminhar a iniciativa privada.
É incrível que, a pretexto de uma pretensa coordenação, se tente obter a protecção dos transportes públicos à custa de sujeições inaceitáveis do transporte particular.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Parecia mais razoável que se estimulasse um bom serviço público e se oferecesse ao sector privado uma sensível melhoria do transporte que ele próprio não pode organizar.
Por mim, desde que disponho do metropolitano, deixo o carro em casa ou no buraco mais próximo.
O público e o privado são por igual, indispensáveis à saúde da Nação, devendo concluir-se pela sua essencial complementaridade.
A confessada impotência do transporte público de lutar contra o transporte particular só demonstra a sua insuficiência ou incapacidade orgânica, não lhe conferindo direito a um proteccionismo indesejável.
Mais valeria subsidiar os transportes públicos do que a economia nacional e o público efectivamente carecem e liberalizar, mas liberalizar sem sofismas, como está na letra da Lei n º 2008, os transportes particulares, do que desencorajar a iniciativa privada, ultrajar os princípios e postergar as leis votadas em perfeita conformidade com o interesse geral.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não podemos ainda ficar por aqui.
A copulado com este indesejável licenciamento vem um sistema tributário complicado, dependente de formalidades cada vez mais rigorosas, onerando, desnecessàriamente, o contribuinte, pois, além do imposto, pesa, de um modo muito particular, o odioso processo de liquidação e cobrança.
Produto de um tecnicismo impenitente, esta obra parece não ter recolhido a lição que manda tributar com justiça e receber com facilidade.
Em matéria de automóveis há o exemplo da taxa de salvação nacional que onera gravemente a gasolina, desde 1928, e que o contribuinte paga conforme o uso que faz do veículo - quem muito anda muito paga -, sem requerimento sem declaração sem guias, sem queixumes, sem fiscais, sem cofres, quase sem dar por isso, quando mete gasolina no depósito.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Porque não fazem contas os sábios das contas e nos deixam livres de licenças e dos impostos velhos e novos, da circulação, da compensação, da camionagem se o objectivo principal desta lei é tributar?
Quando deixará o contribuinte de renovar, mensalmente o diálogo com o fisco, com o Desemprego, com o município, com as juntas com os grémios, de tal modo que vai sendo preciso contratar especialistas para assegurar uma razoável satisfação desta atormentada agenda.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Não será tempo de considerar, finda a profunda reforma fiscal, a redução drástica desta parafiscalidade, que não pode legitimar-se num defender-se?
Creio que posso exprimir uma sensação de alívio geral se as minhas palavras dolorosas tocarem o Governo e o conduzirem a pôr cobro de uma vez, ditatorialmente, com a força do seu prestígio, a tantas atribulações.
Não tem que se admirar das minha queixas, pois não quero incorrer na condenação do velho abade de Estevães clérigo esclarecido, que, segundo a tradição ..., representou o meu círculo e se lamentava daqueles que «avexavam» os povos de tributos.
A vexação vem agora do desaforo da multiplicando e do formulário da cobrança
O regime de licenciamento que o infeliz legislador 1963-1964 estabeleceu não tem a mais leve justificação.
Vem confessado que esse regime «só não equivale à concessão automática de licença» em casos expressamente declarados.
Sendo assim, porque sacrificar ao sadismo do papel selado e não detectar esses casos declarados, libertando todos os restantes transportadores particulares de formalismos inúteis?
Só o gosto de despachar 40 000 requerimentos, de utilizar 80 000 estampilhas fiscais de proferir mais de 160 000 despachos, de emitir milhares de licenças, poderia conduzir a este condicionamento caro e trabalhoso.
Estamos desconfiados de que, desgraçadamente, para maior exercitação da nossa paciência, o génio da complicação se instalou, desta vez, diabòlicamente, no seu da própria Comissão de Simplificação.
O automóvel é hoje um bem de consumo corrente, sendo difícil compreender este licenciamento de viaturas de transporte particular sem adulteração dos fins do Estado pela invasão de terrenos vedados à sofreguidão publicitária e à devassa dos serviços.
Nesses domínios deve governar soberanamente a liberdade do cidadão, pois aí se concentram, em toda a potencialidade, os apregoados direitos da pessoa humana.
O automóvel particular é o prolongamento da casa de cada um e algumas vezes transporta a própria casa.
As coisas que ali vão nem sempre são mercadorias, bens próprios, pessoais, privados, cuja intimidade não é legítimo tornar objecto de inquérito, declaração ou inspecção permanente.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- O artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 45 331 sujeitou a licenciamento a circulação de veículos automóveis de carga ou mistos «afectos ao transporte de mercadorias» - afectos ao transporte de mercadorias -, mas o regulamento aprovado pelo Decreto n º 46 066, exercitando da lei, considera afectos ao transporte particular mercadorias para o efeito daquele licenciamento, todos os veículos automóveis de carga ou mistos «matriculados para serviço particular».
Agora é a matrícula, e só a matrícula, sem consideração de qualquer outra realidade, que impõe o licenciamento.
O direito foi abandonado pelos coordenadores e aquela actividade muito pessoal que transmite à minha mesa o sabor particular da minha horta vê-se transcita, sem ervas, em simples actividade económica.
A minha provisão habitual de ninhos de rouxinóis, cuja nutilidade constitui o encanto da minha vida, o segredo que não quero divulgar também foi transformada em, objecto de declaração formal de licenciamento, os termos do artigo 2.º do regulamento.
Mas quando eu abandone a minha provisão de ninhos e queria transportar na caninha pai titular os búzios de S. Pedro de Muel, já não sei se devo informar o Sr. Director-Geral de Transportes Terrestres de que exerço nova actividade económica e requerer, imediatamente, no interesse próprio, com selo adequado, passagem de nova licença, nos termos do mesmo artigo 2.º do incrível regulamento.
E desistindo, cessando a minha actividade - já quase perdi o gosto de ouvir os rouxinóis e o marulhar dos búzios - , então, no prazo de quinze dias, hei-de participar porque, tendo caducado a licença, é importantíssimo que os Serviços recebam imediatamente a dita participação e, simultâneamente, recolham o respectivo título para não prejudicar a preciosíssima colecção das licenças caducas.

Risos.

E assim por diante até ao «limite do raio», em conformidade com o § 2.º do artigo 4.º
40 000 requerimentos, 40 000 licenças, 40 000 raios de acção (risos), vai desencadear este tormentoso regulamento que aperfeiçoou o diploma e que, por sua vez, foi aperfeiçoado pelas instruções da Comissão de Simplificação.

Risos.

Creio que não estamos aqui para fazer regulamentos, nem leis regulamentares, nem programas de coordenação.

Risos

Estamos aqui para olhar de mais alto e para defender a Nação destes exageros,

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - destes erros, denunciando-os e pedindo que sejam corrigidos.
Não tem justificação o decretado licenciamento, devendo ser revisto o sistema de impostos era criado.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Esta pretensa coordenação consome-se afinal numa mais do que complicada, inverosímil, fiscalidade.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - A licença a cobrir o imposto e o imposto decalcado sobre a licença.
Creio que não seria de mais pedir que fôssemos aliviados de tantos trabalhos inúteis, estudando-se a revisão das soluções tributárias encontradas e suspendendo-se, entretanto, a execução da lei.
Seriam três impostos a menos - circulação, compensação e camionagem.
A nós nos parece aconselhável que as receitas se criem para serem fàcilmente arrecadadas, deixando o contribuinte em paz consigo, levando-lhe o dinheiro, mas salvando-lhe a alma (risos), não lhe pedindo declarações, nem guias, nem licenças, nem requerimentos, nem papéis, deixando que pague o imposto sem dependência de despacho que distinga quando, como e quanto deve pagar, quando e como deverá andar.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

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O Orador: - Bastaria recordar aquela regra de extremado bom senso ditada na velha e clássica lição do «Espírito das Leis»;

Os tributos devem ser fáceis de receber e tão claramente estabelecidos que não possam ser aumentados nem diminuídos por aqueles que os cobram

Há muito modo de receber tributo, e se fossem de todo indispensáveis licenças de 80 km, 50 km e 100 km, pois que se vendessem as ditas licenças como as dos isqueiros ou os bilhetes de lotaria, sem condicionamentos prévios ou necessidade de despacho superior.
Para a estatística desejada devem ser utilizados os meios adequados e próprios, mas sem a perturbação das guias de transporte por cada serviço efectuado, contendo a indicação do percurso, da carga, do número de toneladas/quilómetro - quantos serão os transportadores particulares que conhecem esta relação? - e a natureza da mesma carga.
A natureza da mesma carga!
É isto que a mim me importa muito, porque, se me consentissem, Sr. Presidente e Srs. Deputados, queria continuar a transportar aquelas minhas antigas mercadorias - os ninhos e os búzios - sem licença do Sr. Director-Geral.
Parece que não devo encerrar a minha intervenção sem adiantar umas ligeiras e muito leves considerações de ordem política.
Só é possível o nascimento destes licenciamentos porque os gabinetes dos coordenadores especializados são isentos, puros, de sensibilidade política

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A tecnocracia emancipada habituou-se a desenhar e preparar os seus esquemas à margem de qualquer consideração daquela ordem, e creio que faz gosto nesta emancipação.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Está esquecido o suporte doutrinário do Regime e vamos escorregando no plano inclinado da tecnocracia para fórmulas duvidosas, onde mal se distinguem as cores e a marca do sistema.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Politicamente vivemos da confiança que merece e a que tem direito quem dirija superiormente os negócios do Estado e do bom senso do povo.
São duas realidades incontestáveis igualmente válidas, mas, fora dessas realidades, o desleixo dos reflexos políticos da actividade administrativa tornou cada vez mais desconfortável a vida do Regime.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Esta olímpica indiferença transmite-se do Terreiro do Paço à periferia, e as autoridades, para se reconhecerem, vão assegurando o expediente corrente.
Assim, esvaziada a vida pública de sensibilidade política, surgem diplomas impopulares, sem anestesia, causando desnecessários traumatismos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Até as mais acertadas providências, se não lhes for dada a devida amplificação política, se espaçassem na indiferença colectiva.
Por outro lado, a Nação deveria exigir o fortalecimento da consciência dos seus direitos em frente de um Estado absorvente e cada dia mais forte.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Talvez não fosse mau despertar o interesse pela coisa pública, em ordem a preparar as elites dos futuros governantes.
Presença política em todos os escaldes é a fórmula que outros aprenderam e nós descuidamos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Presença eficiente, no plano interno, em todos os estalões, só vejo a do Movimento Nacional Feminino.

Risos

Se esta Assembleia, cuja função é especìficamente política, se esquecesse das suas obrigações essenciais ou sofresse a invasão da tecnocracia, então o sistema não funcionaria.
É provável que depois da proposta de lei do Sr. Ministro da Saúde que está em discussão o Sr. Ministro do Interior nos possa mandar, embora com parecer igualmente reticente da Câmara Corporativa, o diploma de base no qual fique consubstanciado o princípio de que «a política é para os políticos»
Esses hão-de, então, sagrar-se em espírito de sacrifício, pois creio bem que a política, na sua «dignidade, utilidade e fecundidade», não pode ser asilo de incapazes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não tenho dúvida de que os há-de haver, e quando não sejam amigos serão adversários.
A presença política no funcionamento dos serviços seria encontrada, de um dia para o outro, quando o representante do partindo, do único partido que conhecemos, se pudesse colocar em posição de mandar, pois logo a tecnocracia emancipada e pura secundaria os seus bem determinados objectivos.
Os nossos distintos colegas das forças armadas são capazes de aceitar a conclusão de que é muito fácil ocupar as posições abandonadas.
É evidente que toda esta minha peroração foi estruturada - e decerto deficientemente - no plano dos sistemas que surgiram depois que o homem foi libertado da servidão medieval pelo racionalismo triunfante.
Foi essa revolução, ainda em desenvolvimento, que equacionou assim os problemas
A minha informação política conserva-se, no entanto, fiel ao antigo esquema, ao mais antigo, e nele se vai inspirando e confirmando, teimosamente, cada dia que passa.
As coisas, então, passar-se-iam de outro modo muito mais simples.
Vinham os licenciamentos e as guias e os tributos.
Metia o foral no bolso, para o que desse e viesse, procurava o Príncipe e dizia, respeitosamente, «Meu senhor isto não e do contrato».
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

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O Sr Alberto de Araújo: - Sr Presidente: O mundo inteiro recebeu anteontem com profunda emoção a notícia da morte do antigo primeiro-ministro da Inglaterra Sir Winston Churchill. Raras figuras da história terão possuído os seus méritos e poucas também enfrentado as dificuldades e perigos que foi chamado a debelar e vencer.
Não foi só um soldado destemido, um espírito um escritor vigoroso, um orador para quem a palavra não tinha segredos no seu poder de convencimento e de persuasão. Foi também um político excepcional, um carácter indomável, que soube mobilizar todas as suas forças e energias para pô-las ao serviço da sua vontade e dos mais altos e transcendentes interesses do seu país.
Tinha então a Europa plena consciência da sua hegemonia e das suas responsabilidades. Existiam, é certo, ilusões e miragens e praticavam-se também violações graves do direito das gentes. Mas havia uma compustura e uma dignidade nas relações dos povos bem diferente da tumultuosa anarquia de hoje. A própria guerra era feita com outra nobreza, conheciam-se os aliados e os inimigos, não se apregoando todos os dias, como acontece agora, princípios pacifistas e de não-intervenção para, sob este manto diáfano de hipocrisia, se facilitarem campos de treino e armarem mercenários e terroristas cobardemente violarem os interesses e os direitos sagrados dos povos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Churchill foi, no fim da primeira metade deste século, um dos mais autorizados intérpretes de um determinado conceito da vida internacional que fazia depender a sua estabilidade de uma ordem jurídica prèviamente definida e aceite.
Infelizmente, tudo mudou e tudo se inverteu. Mas à medida que decorriam os anos, a figura do grande político inglês foi-se recortando no tempo e na história, ganhando maior vulto e grandeza, como símbolo de uma época que a força e a coragem, o ânimo e o heroísmo, postos, tantas vezes, ao serviço dos mais belos e generosos ideais humanos.
Estou a vê-lo, chegando à Madeira na noite de Janeiro de 1950. Tinha o Funchal celebrado, na véspera, a tradicional passagem do ano, mas acenderam-se, novo, as luzes da cidade para receber o grande estadista britânico, que em toda a parte desfrutava de uma compreensível e legítima popularidade. Ali permaneceu alguns dias, repousando o pensamento e o espírito, reproduz na tela alguns dos mais característicos recantos e paisagens da nossa ilha maravilhosa. Imprevistas razões ordem política fizeram abreviar o seu regresso à Inglaterra, mas não esquecerei nunca as palavras que lhe ouvi de apreço e de elogio à acção dos Portugueses no Mundo e de profunda e calorosa admiração pela personalidade e pela obra desse outro grande estadista contemporâneo que é o Prof. Doutor Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros de Portugal.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Havia, realmente, entre os dois homens do governo grandes afinidades e pontos de contacto mesmo espírito de determinação, a mesma fidelidade aos princípios, o mesmo respeito pela palavra dada, o propósito firme de, sempre que necessário, resistir à agressão para restabelecer o primado do direito e da justiça.
O homem que agora desapareceu para sempre possuía uma mentalidade profundamente europeia na tribuna, no jornalismo, na doutrina e na acção, revelou-se o espírito superior que exprimia, com excepcional brilho, todos os fulgores da cultura ocidental. Para que essa cultura sobrevivesse, como uma das mais altas conquistas do génio humano, e pudesse contribuir para que os povos de todos os continentes e de todas as raças ascendessem a mais altos níveis de dignidade e de consciência consagrou a sua vida inteira. E adquiriu, no combate, uma armadura de resistência e de vontade que até a morte lutou com ele alguns dias até, finalmente, o abater.
Prestemos à sua memória a nossa mais respeitosa homenagem. E formulemos o voto de que o seu exemplo, as suas virtudes e as verdades que proclamou constituam motivos de esperança a iluminar o caminho das nações que lutam por um mundo verdadeiramente livre, afim de poderem realizar, na paz e no trabalho, as tarefas construtivas que lhes impõe a história e que são, afinal, a sua vocação e o seu próprio destino.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: A Câmara e eu desejamos associar-nos às manifestações do Mundo e exprimir o próprio sentimento ao povo da Grã-Bretanha pela morte de Sir Winston Churchill.
Era um homem que integrava todas as grandes qualidades do seu povo e da humanidade, era um inglês que traduzia, como ninguém, os valores universais do humano através das formas particulares por que no seu povo se revelam.
Ainda em vida entrou na eternidade da história, ultrapassando os limites do tempo, depois da morte, ao entrar na eternidade, fora do tempo, peçamos a Deus que o receba em seu seio.
Felizes os povos que têm estes homens e sabem descobri-los. Eles são os grandes construtores das gerações. Chorá-los é afirmar a ansiedade de possuir as suas virtudes. E afirmar a confiança em si próprios e a fé nos destinos da pátria. É ser forte.
Com estas palavras, que cremos abrandarem a sua dor, exprimimos ao povo britânico a nossa profunda condolência pela peida que sofreu.
Em sinal de luto, interrompo a sessão por alguns minutos.

Eram 17 horas e 5 minutos.

O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.

Eram 17 horas e 15 minutos.

Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta de lei sobre a propriedade da farmacia.
Tem a palavra a Sra. Deputada D. Custódia Lopes

A. Sra. D. Custódia Lopes: - Sr Presidente Foi certamente visando um duplo objectivo, o da defesa da saúde pública e o do prestígio de uma classe que, pelos seus estudos e pela missão a que se devotou, alcançou justos direitos e criou rigorosos deveres, que o Governo entendeu elaborar a proposta de lei sobre a propriedade da farmácia, agora em discussão nesta Câmara

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Sobre este importante problema, para o qual, finalmente, parece ter sido encontrada uma solução, se pi enunciaram eminentes justas e homens de ciência
A própria imprensa fez correr nos de tinta sobre a matéria.
Nesta Assembleia se ouviram já também vozes autorizadas de ilustres Deputados que prestaram os seus depoimentos fundamentados na sua experiência profissional e ainda nos bem documentados textos que sobre o assunto se escreveram pondo em evidência a oportunidade e relevância da piesente proposta de lei
Depois de tão esclarecidos elementos e de tão brilhantes intervenções eu não ousaria subir a esta tribuna se não fora o desejo de, numas breves considerações acerca do problema em discussão, me referir também à situação da farmácia na província de Moçambique e ainda à necessidade da valorização do farmacêutico através do ensino.
Sr. Presidente: Num momento em que o Governo procura dar um passo em frente no domínio da saúde pública, promulgando leis que visam assegurá-la eficientemente, concebendo instituições que têm por fim aperfeiçoar os técnicos que hão-de servi-la, como a futura Escola de Saúde Pública, é de louvar que não tenha sido esquecido o campo farmacêutico, tão intimamente ligado à saúde do povo, e de tal modo que a farmácia não poderá jamais ser considerado, como um simples estabelecimento comercial, nem tão-pouco o farmacêutico tido como um vendedor de remédios prèviamente elaborados em laboratórios industriais.
A farmácia tem de ser encarada na sua função de servidora da saúde pública muito para além do seu aspecto puramente comercial e lucrativo.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - A farmácia existe para servir a saúde pública e a doença, e o sofrimento não podem ser objecto de negócio.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A Oradora: - Se a farmácia é uma simples loja de comércio, nos estabelecimentos comerciais procura-se estimular a compra de tudo quanto estiver para vender e o comerciante nunca negará ao seu cliente a sua mercadoria, au passo que o farmacêutico, possuidor de uma deontologia, que preza negará, quantas vezes contia o seu interesse material, muitos medicamentos que lhe são solicitados, como, por exemplo, tranquilizantes, hipnóticos, abortivos, estupefacientes e outros, desde que o seu cliente não lhe apresente a respectiva receita médica.
Por isso, tenho para mim que a farmácia, revestida do seu aspecto comercial, em que não falta mesmo o balcão não é um estabelecimento comercial, mas uma instituição de utilidade pública, destinada a servir o bem comum, embora não possa apresentar-se de outra forma senão a de uma aparente loja em que se compra e se vende, feição que mais se acentua à medida que os medicamentos vão sendo cada vez mais industrializados.
Na verdade, que longe estamos da velha botica em que o farmacêutico era, sobretudo nos meios rurais, a figura bondosa pronta a socorrer o seu semelhante nas suas dores físicas com as suas mezinhas que ele pacientemente manipulava na sua pequena oficina, em fórmulas que, não raras vezes, eram verdadeiros segredos que se transmitiam de geração em geração. Hoje, com o progresso da indústria farmacêutica, a farmácia quase perdeu o seu carácter oficinal transformando-se o farmacêutico, aos olhos do público, num empregado comercial que vende medicamentos já fabricados.
Se a farmácia perdeu muito do seu carácter oficial, o farmacêutico, porém, não pode transformai-se nunca num comerciante, cujo contacto com o público se reduz a uma mera transacção comercial. O farmacêutico cumpridor da sua missão tem de ser, para além de técnico competente cioso da sua ética profissional, o zelador da saúde pública, em quem o homem sofredor, que é o seu cliente, deposita a sua confiança material e moral. Para além do seu curso universitário, o farmacêutico terá de possuir o espírito de abnegação e altruísmo, que o leva a sacrificar-se pela saúde do seu semelhante.
Quantas vezes, em noites de serviço na sua farmácia, vigilante, ele não terá um momento de descanso, aviando receitas que lhe surgem a todo o instante.
Não podemos, pois, desvirtuar o alto espírito humanitário da profissão de farmácia pelo facto de, nos dias de hoje, mercê do progresso da indústria farmacêutica, o farmacêutico vender constantemente as inúmeras especialidades que os laboratórios criam e os médicos prescrevem.
O farmacêutico terá de estar cada vez mais habilitado e actualizado para poder acompanhar a mutação e evolução da indústria medicamentosa. Muitas vezes tem necessidade de se certificar do estado de conservação do medicamento, o que em alguns países, como a Bélgica, é obrigatório, e com grande surpresa nossa vimos consignado também no Diploma Legislativo de Angola de 1961 que regula o exercício farmacêutico, o qual em alguns aspectos, como no que respeita à exigência da permanência do farmacêutico na farmácia durante as horas de laboração e à obrigatoriedade de verificar as especialidades farmacêuticas, é expresso e, sem dúvida, superior à lei vigente na metrópole.
Diz o citado diploma.

A obrigatoriedade de o farmacêutico permanecer na farmácia durante o período da sua laboração de maneira a poder fiscalizar a manipulação dos medicamentos e verificar o estado das especialidades farmacêuticas, abrindo sempre que necessário os seus invólucros no acto da entrega aos clientes, para se certificar pela observação dos seus caracteres organolépticos se há ou não qualquer alteração.

Vozes: -Muito bem!

A Oradora:- Sr. Presidente: Há que valorizar e dignificar a profissão farmacêutica, dando ao farmacêutico possibilidades de adquirir mais amplos conhecimentos, de se actualizar e de exercer com maior independência a sua profissão, exigindo-se-lhe, por sua vez, uma maior responsabilidade

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: -Ao farmacêutico se deverá exigir não só a competência técnica, mas também o rigoroso cumprimento de uma ética a que se vinculou pela escolha que fez desta profissão. Não está, portanto, a cumprir a sua missão e farmacêutico que, longe dos doentes, dá uma direcção técnica a uma farmácia que visita, de tempos a tempos, porque nem a baixa remuneração compensa que o faço com assiduidade, nem o seu proprietário, alheio ao exercício da farmácia, o exige

Vozes: - Muito bem!

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A Oradora: - Tem-se observado que, apesar da fiscalização por parte das autoridades administrativas tentes, se continuam a verificar irregularidadas e no exercício farmacêutico, o que só uma permanente inspecção poderia evitar, o que é pràticamente impossível.
O princípio que preside à presente proposta de contribuir, sem dúvida, para que o farmacêutico, proprietário e único responsável da sua farmácia, se lhe dedique com maior assiduidade e zelo, pois que da sua atitude penderá a confiança do público nos seus méritos intelectuais, o seu próprio prestígio profissional e, acima de a segurança da saúde pública.

O Sr. Marques Fernandes: - Muito bem!

A Oradora:- Sr. Presidente: A lei que em Moçambique regula o exercício de farmácia, e que data de 1941 ao contrário da de Angola, está ultrapassada e inadequada em muitos dos seus aspectos. Torna-se urgente que a legislação metropolitana se estenda a essa província, com as necessárias adaptações, e que se procure bem regulamentar em todas as províncias ultramarinas o exercício da profissão farmacêutica no sentido de unificação no todo nacional, o que traria benefícios a farmácia no ultramar.
Não se compreende nem se justifica que em cada província vigore lei diferente, o que provoca uma certa fusão e pode levar, em certos casos, a situações complicadas.
Hoje em Moçambique há já um número suficiente farmacêuticos que possam garantir uma, pelo regular cobertura farmacêutica.
Se no interior da província certas localidades não escassez de habitantes, que se criem, à semelhança do se fez na metrópole e do que já existe também em Angola, postos de medicamentos dirigidos por um ajudante de farmácia, devidamente habilitado e na dependência da farmácia mais próxima.
Convém dizer que os ajudantes de farmácia em Moçambique possuem, além do 1.º ciclo dos liceus, três de um curso especial tirado numa escola técnica serviços de saúde, por ora instalada no Hospital Miguel Bombarda, e neste aspecto Se diverge da metrópole, onde os ajudantes de farmácia possuem apenas a 4.ª classe, com quatro anos de prática registada. Julgo que haveria toda a vantagem numa uniformização, que os ajudantes pudessem indiferentemente exercer a sua profissão quer na metrópole, quer no ultramar, não abundam. Sendo o ajudante de farmácia o directo auxiliar do farmacêutico, importa que se dê àquele uma preparação a altura da responsabilidade que lhe cabe.

O Sr Burity da Silva: - Muito bem!

A Oradora: - Seria também de desejar que a Portaria n.º 19 378, de 1 de Setembro de 1962, que autoriza e regula na metrópole a abertura de novas farmácias, fosse estudada e adaptada à província de Moçambique evita-se o excesso de farmácias nas cidades e forçando-se a abertura de outras em localidades onde tanto se faz sentir a sua falta. Isto faria diminuir o número considerável de estabelecimentos comerciais que vendem medicamentos, embora autorizados por lei e segundo uma determinada ..sta, mas que escapam à inspecção farmacêutica local, há pelo exíguo número de inspectores, já pelas enormes distâncias e dificuldades de comunicação tão características das extensas regiões do interior africano.
Enquanto se não pudessem estabelecer farmácias ou mesmo postos de medicamentos em certas regiões do interior, que a venda de medicamentos nos estabelecimentos, comerciais estivesse a cargo de um ajudante de farmácia, e não de uma pessoa completamente alheia à profissão, o empregado da loja, que, atarefado e desconhecedor, poderá incorrer em erros que farão perigar a saúde pública. Há que salvaguardar a saúde do povo onde quer que ele se encontre, na metrópole ou no ultramar, na cidade ou no campo, para o que se torna necessário que nas localidades afastadas dos grandes centros, nas regiões rurais, se encontrem pessoas devidamente preparadas no exercício da farmácia que possam esclarecer pacientemente as populações menos evoluídas quanto a natureza do medicamento e à maneira de usá-lo, ao mesmo tempo que poderão contribuir com os seus conselhos para a sua promoção social no campo da saúde.
A criação de postos de medicamentos com ajudantes de farmacia daria lugar à colocação dos ajudantes de farmácia que se vão formando na província, os quais, possuindo, como acima disse, o 1.º ciclo do liceu e um curso especializado nesse sentido, promoveriam a venda dos medicamentos com certa segurança.
Sr Presidente: Não queria terminar estas minhas considerações sem me ocupar muito sucintamente de um problema da maior importância para o progresso da farmácia em Portugal. Refiro-me à valorização dos farmacêuticos, a quem é necessário dar mais amplos conhecimentos, de modo que possam acompanhar o desenvolvimento da ciência farmacêutica.
Há quem diga que com a industrialização cada vez mais intensa dos medicamentos o curso profissional de três anos será mais que suficiente para se dar a gerência técnica à farmácia, porquanto, uma vez que quase se não fazem manipulados, os conhecimentos dos programas actuais do ensino serão bastantes. Parece não perfilharem desta opinião os próprios farmacêuticos, os mestres e os alunos das escolas e Faculdade de Farmácia quando clamam por uma reforma do ensino da farmácia no sentido da elevação do seu nível e de uma maior actualização
Diz a este propósito o Prof. Doutor Albano Pereira Júnior, conceituado mestre da Escola de Farmácia de Lisboa, num artigo inserto na Boavista Portuguesa de Farmácia sob o tema «O ensino e o exercício farmacêutico».

Se em todo o Mundo a tendência é para elevar o nível de instrução dos cidadãos, mesmo daqueles que venham a exercer os mesteres mas simples, porque se há-de admitir para uma profissão destinada a pesquisar criar e dispensar os meios que preservam e restituem o maior bem por que a humanidade anseia - a sua saúde, primeiro factor do seu bem-estar físico digo, por que se há-de admitir que os que a exercem não precisam de uma cultura a nível universitário cada vez mais aperfeiçoada e sempre actualizada?

Na verdade, o farmacêutico moderno terá de estar bem preparado para poder resolver, por si, os novos problemas que se lhe põem com o notável progresso da indústria farmacêutica.
Por outro lado, o próprio progresso da indústria farmacêutica resultará da alta competência científica e do nível técnico e de investigação dos próprios farmacêuticos.
Seria de desejar que fosse incentivada a acção que o sindicato dos farmacêuticos empreendeu, promovendo determinadas conferências e cursos de actualização realizados por professores e técnicos, e que semelhantemente

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se procedesse no ultramar, onde os meios de actualização se limitam quase só às revistas farmacêuticas.
Se quisermos que a indústria farmacêutica progrida na fabricação de medicamentos, de que tanto carece, teremos de começar por elevar o nível do ensino da farmácia através de uma reforma que o torne mais consentâneo com os novos processos e técnicas da indústria e adaptá-lo também aos novos ramos da actividade farmacêutica.
Agi necessidades da indústria e as novas actividades farmacêuticas exigem cada vez mais licenciados farmacêuticos bem habilitados. Vem a propósito referir a necessidade de se restaurar em Lisboa a Faculdade de Farmácia. Sendo Lisboa o maior centro da actividade farmacêutica do País, e tendo a sua Escola de Farmácia a elevada frequência de 256 alunos, que provêm, geralmente, do Sul do País e das províncias ultramarinas, além dos da capital, parece justo que a esta escola superior se restituam os estudos completos, tanto mais que bastantes alunos do curso profissional deixam de tirar a licenciatura, para a qual é indispensável a elevada média de 14 valores, por não poderem, por ponderosas razões económicas e outras, deslocar-se para o Porto, onde existe a única Faculdade de Farmácia do País e onde teriam de permanecer durante dois anos

O Sr. Nunes Barata: - V. Exa. dá-me licença?
É para apoiar as considerações de V. Exa. e torná-las extensivas à Universidade de Coimbra, tanto mais que ali já houve uma Faculdade de Farmácia.
Felizmente, a Faculdade do Porto foi restaurada, mas Coimbra não obteve essa regalia.

A Oradora: - Agradeço a V. Exa. as suas palavras.
E, assim, alguns bons alunos são impedidos de completar e aprofundar os seus estudos, com manifesto prejuízo para a farmácia nacional.
Sr. Presidente: Termino estas considerações, que me foram suscitadas pela presente proposta de lei, dando-lhe o meu apoio na generalidade.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A oradora foi muito cumprimentada.

O Sr. Folhadela de Oliveira:- Sr. Presidente, Srs. Deputados: Tenho seguido, com o natural interesse de quem formou o seu espírito nas coisas de direito, a larga polémica suscitada pela proposta de lei sobre a propriedade da farmácia.
Não que me debruçasse sobre o assunto sem quaisquer ideias assentes. Mas radicou-se em mim lentamente, progressivamente, até se impor em forma definitiva, a opinião a que aderi e que vou explanar a VV Exas.
Antes de o fazer, porém, quero passar em revista sucinta as duas posições básicas adoptadas em países com os quais temos afinidades.
Assim, Estados Unidos da América, Inglaterra, Holanda, certos cantões da Suíça, Suécia, Noruega, Dinamarca, acatam - com ligeiras variações de elasticidade alguns - o regime a que podemos chamar de livre propriedade da farmácia. Quer dizer qualquer pessoa pode ser proprietário de uma ou mais farmácias em regime de propriedade exclusiva ou co-propriedade social, independentemente de possuir habilitações farmacêuticas. Em todos os casos, porém, a gerência técnica é obrigatòriamente exercida por um profissional.
Por outro lado, França - país do qual se afirma, sem contestação ser o de mais elevado nível farmacêutico -, Espanha, Itália, Alemanha Ocidental, Áustria, Bélgica, Grécia, Luxemburgo, Brasil e Argentina consagraram legislativamente o princípio oposto, isto é, o de indivisibilidade entre a propriedade da farmácia e a respectiva gerência técnica.
Portanto, nestas últimas nações, restringe-se ao farmacêutico a propriedade da oficina de farmácia.
Entre nós o regime em vigor é o da propriedade exclusiva dos farmacêuticos, sancionado pelo Decreto-Lei n.º 23 422, de 29 de Dezembro de 1933, que o estatuiu na esteira de uma tradição legislativa de séculos.
Tem-se atacado este ponto de vista procurando argumento para a distinção entre propriedade da farmácia e exercício ou gerência da farmácia. Esboçam os que assim pensam uma tímida afirmativa da existência histórica das duas situações para concluírem - como se fizessem a demonstração - que sempre foi permitida a livre propriedade da botica ou farmácia.
Como adverte o Prof. Albano Pereira, só por ignorância ou má fé se pretende fazer crer que anteriormente ao Decreto-Lei n.º 23 422 a lei reconhecia a livre propriedade da farmácia. Cita o ilustre professor textos legislativos de 1461, 1515, 1521, 1572, 1780 e 1810, que inculcam, todos eles, na tendência hoje vigente, sem que apareça um só que seja albergando o princípio oposto.
Mesmo que tal argumento histórico possa não representar grande valor, erro seria deixar de o considerar, pela influência que obviamente exerce no espírito dos legisladores contemporâneos que lhe deram acolhimento.
A nossa moderna legislação, nascida de instantes necessidades ditadas pelo interesse público, veio gradualmente caminhando para o condicionalismo criado pelo decreto de 1933. Basta estudar os textos legais que o antecederam dez anos.
Assim, o Decreto n.º 9341, de 16 de Fevereiro de 1924, visando pôr cobro aos desmandos, irregularidades e abusos atentatórios da saúde pública (são palavras do respectivo relatório), estabelece a obrigatoriedade de as farmácias serem permanentemente dirigidas por farmacêutico habilitado seu proprietário ou gerente técnico.
Cerca de três anos depois é publicado o Decreto n.º 13 470, de 12 de Abril de 1927, que vem limitar mais o estabelecimento da farmácia ou laboratório, prescrevendo, como condição, que o farmacêutico seu gerente técnico seja proprietário ou co-participante da empresa.
Com a entrada em vigor do Decreto n º 17 636, de 19 de Novembro de 1929, embora expressamente nele nada se diga em relação à propriedade da farmácia, exige-se do farmacêutico ou gerente técnico permanência e assuidade no desempenho da sua profissão, o que significa esforço válido e eficaz no sentido de não consentir, para o farmacêutico proprietário, o abandono da sua oficina nem uma gerência técnica apenas nominal.
Dentro da lógica destes diplomas, na cúpula das razões que os nortearam, vem a lume o Decreto n.º 23 422, publicado em 29 de Dezembro de 1933, e que consagra o princípio da propriedade exclusiva da farmácia para os farmacêuticos.
Reconhece-se no relatório daquele decreto que «a melhor garantia da assiduidade é o interesse directo do farmacêutico na propriedade da farmácia», ficando assim estabelecida solidamente «a orgânica mais apropriada à defesa da saúde do público e à moral da profissão farmacêutica».
Atendeu-se à situação das farmácias cujos proprietários não eram legalmente habilitados, permitindo-se continuarem a viver com direcção técnica (nos termos do Decreto n º 9431) enquanto permanecessem na posse de mesmo proprietário

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Interessa, pois, destacar o respeito que mereceu ao legislador a situação de facto de inúmeras farmácias.
Se no campo normativo podemos dizer que as ficaram assentes, mesmo considerando a existência de deficiências de pormenor, é chocante e atentatório da letra e espírito da lei o ambiente em que se vem processando quer a abertura de novas farmácias, quer a transferência de propriedade das existentes.
A fraude à lei atingiu proporções escandalosas.
Empregam-se os mais ardilosos, os mais subtil artifícios para iludir o conteúdo normativo do Decreto nº 23 422, mas, não poucas vezes, o despudor é tão grande que nem essa preocupação se acolhe as fazem-se com tal à-vontade que exalam imediatamente o característico odor dos negócios celebrados à margem da lei

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Actos simulados que são vexatórios quem os outorga, aviltantes de uma profissão pode ser útil quando prestigiada. Actos simulados cobrirem situações donde podem resultar graves e irreparáveis males para a saúde pública e que trarão inevitável descida no nível técnico da oficina de farmácia.
Aparência de cobertura legal em transmissões de propriedade de farmácias que foram adquiridas, quantas vezes, por pessoas sem competência, sem ética e moral.
Tantos e tão graves são os atropelos à lei que, 60 a 70 por cento das farmácias são propriedade de farmacêuticos, e dessas grande parte vivem contralegam.
Chegar-se a este ponto representa, antes de passividade, quando não imperdoável desleixo do Executivo, zelador, por definição, do cumprimento das leis.
Como de costume, e também nesta matéria, deu-se largas à nossa habitual transigência.
E nem sempre se torna fácil, em casos paralelos distinguir entre excessiva brandura, contemplação com situações em fraude à lei e conivência.
É neste clima que, em 1962, o Governo envia à Câmara Corporativa a proposta de lei sobre propriedade da farmácia, da autoria do Ministro Martins de Carvalho.
Reconhece-se no seu preâmbulo que o Decreto n.º 23 422 foi realmente ineficaz por falta de ré, regulamentação adequada e, assim, não se verificou a passagem para os farmacêuticos da propriedade da farmácia - objectivo tido como essencial para pôr cobro ao caótico ambiente.
Ora aquela proposta visava principalmente manter o princípio-base do decreto de 1933, propondo-se ir mais longe, pois queria assegurar aos proprietários não farmacêuticos preço justo a obter na venda da farmácia.
Por outro lado, e procurando reintegrar na ordem jurídica todas as outras farmácias em situação ilegal, usava-se a habitual benevolência, agora traduzida num período transitório bastante largo para o efeito.
A determinação do Governo naquela proposta, ao reafirmar a solução tradicional, vem impedir perigos que ameaçariam a farmácia portuguesa na hipótese de ser acolhida a tese da «livre propriedade».
O Ministro Martins de Carvalho afirmou, em de rações prestadas à Revista Portuguesa de Farmácia, «com a limitação da propriedade das farmácias aos farmacêuticos se procura evitar a excessiva concentração capitalista, traduzida na formação de trusts dominadores do comércio de medicamentos».
Anula-se, por este meio, a possibilidade de qualquer empresa produtora de especialidades farmacêuticas fornecer directamente o público através do controle de um terço das farmácias existentes. De forma categórica, a tese governamental impede o acesso dos médicos ou profissionais da «arte de curar» à propriedade da farmácia.
Mas não se limitou a estes argumentos em defesa do princípio eleito. É sabido que em redor do problema se agitam interesses de todos os profissionais de farmácia e convém não esquecer o facto de os ajudantes de farmácia pretenderem também ascender à propriedade.
Embora se me afigure de pouco valor a analogia feita com os ajudantes dos notários ou ajudantes de electroencefalografia de não poderem ter acesso à profissão plena, o certo é que a realidade demonstra ser impraticável tal solução.
O ajudante proprietário da farmácia - pela razão do não ter habilitações nunca poderá ser seu director - ficaria subordinado ao gerente técnico, que ao mesmo tempo era seu empregado.
Quer dizer ou o farmacêutico se limitava a um papel meramente passivo (de outro modo seria despedido) ou alugava o nome para garantir cobertura legal da oficina onde efectivamente geria pessoa sem preparação!
Deste modo, anulava-se por completo a independência e a liberdade do farmacêutico no exercício da sua actividade - princípio cuja salvaguarda é preciso manter por qualquer preço -, alicerçada em robusta preparação deontológica e científica.
Julgo nunca ser de mais relembrar que os ajudantes de farmácia foram beneficiados por uma série de medidas protectoras que não souberam ou quiseram aproveitar devidamente as facilidades concedidas para a obtenção do diploma das escolas superiores e Faculdade de Farmácia.
Ainda dentro da linha de pensamento do Ministro Martins, de Carvalho, há aspectos que reputo fundamentais para a orientação geral do futuro da farmácia e que, também por isso, reforçam a posição assumida pelo Governo.
Cada vez mais insistentemente, ergue-se o coro dos que clamam contra o exagero do emprego, hoje verificado, do remédio-série. É evidente que tal ideia nem é defendida nem deve aplicar-se com extremismo. Simplesmente se reconhece necessidade de individualizar o medicamento, tornando-o adequado ao doente.
Tal significa a tendência moderna que se desenha no sentido do regresso ao medicamento manipulado na oficina de farmácia. E a farmácia portuguesa não está estranha a esta orientação.
Verifica-se, também, considerável alargamento dia actividade farmacêutica, que se vai completando com laboratórios de análises, facto de que resultam evidentes vantagens para as populações, mormente na província, onde a instalação autónoma de um estabelecimento dessa especialidade nem sempre terá viabilidade económica.
O que venho referindo, e que é, aliás, a linha mestra da proposta do Governo presente à Câmara Corporativa, «marca uma orientação geral» que se interpreta como afastamento, cada vez maior, da concepção da farmácia como simples estabelecimento comercial.
Ninguém de boa fé pode deixar de reconhecer que na farmácia se realizam também actos comerciais. Mas não apenas estes. Tudo o que vai além disso, tudo o resto - uma função específica do exercício da profissão do farmacêutico, com as suas implicações deontológicas, morais, técnicas e científicas -, ultrapassa e sobreleva esse aspecto puramente secundário que é o mercantil.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Por essa razão, para da relevo à outra faceta que a excede, não duvidou o Governo em ligar indissolùvelmente a propriedade à gerência da farmácia.
E não se diga que constitui inovação tendenciosa ou doutrina despida de interesse para os nossos dias a orientação acolhida na proposta governamental.
Cada vez com maior insistência, organismos nacionais e internacionais advogam novos rumos que devem ser garantidos à farmácia. Desde a Organização Mundial de Saúde aos departamentos de saúde pública, desde os congressos internacionais às jornadas farmacêuticas portuguesas, invariàvelmente se vai propugnando pela necessidade, cada vez mais instante, da coincidência da propriedade com a gerência.
Note-se que até nos países de radicada tradição liberal da propriedade da farmácia se avolumam grandemente as reacções contra o que está estatuído, sem que, todavia, o fenómeno contrário se verifique nos países onde o princípio oposto vigora.
Portanto, e pela lógica das considerações anteriores, entendo que presidiu à proposta do Governo, da autoria do Ministro Martins de Carvalho, criteriosa finalidade de fazer evoluir a farmácia nos novos moldes que hoje se lhe exigem.
Acrescem às razões explanadas outras mais, que representam importantes aspectos de interesse público.
Cumpre salientar a necessidade de prestigiar o curso de Farmácia e dar incentivo à sua frequência como processo único de constituir um verdadeiro escol profissional. Fàcilmente se compreenderá que a livre propriedade da farmácia é poderoso factor em contrário.
Não quero deixar de transcrever o Prof. Doutor Correia da Silva, autorizadíssima voz em deontologia farmacêutica, que afirma

A direcção técnica efectiva do farmacêutico só existirá se o farmacêutico for ao mesmo tempo, proprietário da farmácia. Todas as vezes que a propriedade pertencer a um não farmacêutico, mesmo que o farmacêutico esteja presente, a sua liberdade está comprometida.
A saúde pública exige que entre as duas direcções, económica e técnica, seja a direcção técnica que prevaleça. Isto admitindo que as duas direcções coexistem, porque a experiência ensina e a estatística confirma que quando a propriedade da farmácia é de um não farmacêutico, a direcção técnica do farmacêutico é, na maioria dos casos, dispensada. De resto, para falar mais cruamente, o ponto a atingir é dispensar pràticamente o farmacêutico.

A defesa da saúde pública julgo só poder ser assegurada quando, efectivamente, seja o farmacêutico a presidir não só na oficina, como também na entrega dos medicamentos solicitados.
O que venho de dizer são apenas os aspectos fundamentais e decisivos para acreditar como mais válido o princípio da propriedade exclusiva da farmácia para os farmacêuticos.
Entendo ser impossível, dentro do princípio oposto, salvaguardar devidamente o interesse público resultante de cada um dos pontos focados.
Triste é constatar, porém, que a intenção que informou aquele projecto de diploma legal não tivesse encontrado, na Câmara Corporativa, auditório suficientemente preparado para o analisar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Com mágoa reconheço que o parecer elaborado não esteve à altura quer do prestígio da Câmara Corporativa, quer da transcendência do texto em estudo.
Relutantemente aceita-se o princípio da indivisibilidade propriedade-gerência, mas, como se em tal não be acreditasse, abrem-se-lhe tantas excepções que não só o invalidam, como ainda conduzem à aceitação da tese contrária.
A apreciação do parecer da Câmara Corporativa não pode atentamente fazer-se sem a dissociar do estudo crítico sobre ele elaborado pelo Doutor Guilherme Braga da Cruz. O trabalho do ilustre professor da Universidade de Coimbra constitui documento notabilíssimo, onde de modo claro e exaustivo cada argumento é dissecado, com independência e objectividade, até ser reduzido à sua dimensão própria no quadro dos interesses em jogo.
É com verdadeiro prazer - o orgulho de um antigo aluno pelo seu querido mestre - que apresento ao insigne jurista calorosas felicitações pelo trabalho efectuado e que transcendeu o âmbito de um estudo crítico, vindo a constituir valioso subsídio para a resolução do problema legislativo da farmácia portuguesa.
Não resiste o parecer da Câmara Corporativa ao estudo do Doutor Braga da Cruz. Como, aliás, não alcançara mérito aos olhos de quem lhe dedicasse cuidadosa leitura. São palavras do Prof. Braga da Cruz.

Somos de parecer que o articulado do projecto do proposta de lei do Governo, com alguns retoques e com pequenos acrescentamentos, merece inteiramente ser convertido em lei pela Assembleia Nacional.

Assim o entendeu também o Governo Daí nova proposta subscrita pelo Ministro Neto de Carvalho, no relatório da qual expressamente se diz.

A Câmara Corporativa manteve-se fiel ao princípio da indivisibilidade, mas introduziu-lhe excepções tão numerosas e profundas que praticamente o tornam inoperante, impedindo que se alcancem os objectivos de interesse público que o diploma tinha em vista.

O novo texto agora presente à Assembleia Nacional reflecte os mesmos anseios, a mesma orientação, procura atingir as mesmas finalidades, que a proposta de 1962. Apresenta ligeiras modificações, que o valorizam, em parte, mas lhe podem desvirtuar o sentido.
Apesar disso, entendo não dever deixar de lhe dar, na generalidade, plena aprovação.
Não quero terminar estas modestas considerações sem deixar bem expresso o meu profundo regozijo pela esclarecida visão dos dois titulares da pasta da Saúde e Assistência e, do mesmo modo, apoiar o Governo pela atenção prestada a este momentoso assunto, que o interesse público perfeitamente justifica.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Costa Guimarães: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quando se anunciou a discussão da proposta de lei da propriedade da farmácia, hesitava sobre se valeria a pena trazer ao debate, onde sabia que não deixariam de proferir-se esclarecidos depoimentos, um modesto exteriorizar da minha sensibilidade e das minhas preocupações quanto aos pontos mais delicados da questão, em atitude fundamentalmente ditada por natural reacção a determinados aspectos que, entendo, não podem ser olhados apenas pela justeza de rígidas normas jurídicas, ma

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sim também por respeito a princípios fundamentais de ordem política, social, e até humana, que não deveriam ser menosprezados.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Hesitava, sobretudo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, porque entendia que, debruçando-se pobre a matéria ilustres parlamentares, todos esses aspectos que me afloravam ao espírito, e, mais que no espírito, a consciência, não deixariam de ser pormenorizada e esclarecidamente contemplados.
Nesta situação de dúvida e para que se esclareça a minha posição, seria minha intenção não meter a foice em seara alheia.
A evolução, porém, da reacção pública, e também, fundamentalmente, a do debate impuseram-me a necessidade desta intervenção. Será simplista e objectiva quanto eu puder, porque complicada é já a matéria em discussão, complicada e extremamente responsável, não tão-só pelo aspecto fundamental da saúde pública, mas também pelas repercussões políticas e sociais com que se apresenta.
Em esclarecimento prévio, desejo acentuar que não está em dúvida, na posição que assumo, a necessidade imprescindível de dignificar a missão do licenciado em Farmácia ou a de fomentar a preparação de técnicos os farmacêuticos com simultâneo interesse de prestigiar o respectivo curso.
Toda e qualquer profissão liberal, Sr. Presidente e Srs. Deputados, se reveste da sua ética e de uma discutível deontologia, e estes requisitos são sobretudo de exigência extrema para toda a actividade que reclame uma preparação universitária.
For isso o meu incondicional apoio a toda e qualquer legislação que promova o prestígio de uma classe profissional, no caso a nobilíssima e responsável da farmácia, a quem rendo as minhas respeitosas homenagens.
O que porém se me afigura delicado, no caso presente, é a impossibilidade constatada de defender e respeitar, concomitantemente, e num mesmo diploma, dois preceitos constitucionais básicos, seja o do intangível direito da propriedade, seja o da defesa da saúde pública por inexorável respeito a uma imprescindível deontologia profissional.
Sr. Presidente: É manifesta a perturbação que a matéria em discussão vem lançando no espírito de todas as pessoas responsáveis, perturbação mais acentuada no observador externo, como é o meu caso.
A actual proposta de lei, como é evidente, pretende ratificar, de forma decisiva, disposições melindrosas que uma legislação de mais de 30 anos (!) não conseguiu, expressa e categòricamente, pôr em execução. Prova-o a situação a que chegámos.
Como se sabe, decorreu uma longa geração sobre o Decreto-Lei n.º 23 422, de
Dezembro de 1933 - disciplinador da actividade de farmácia e definidor do regime da indivisibilidade -, e só em fins de 1962 surgiu um projecto de lei a contemplar a discutida matéria.
Sobre este e após longa controvérsia, pelo que sei, pronunciou-se a Câmara Corporativa em termos mais compreensivos quanto às posições e interesses em jogo.
Aqui começa a divisão de opiniões e o lançar da perturbação a que atrás aludi. A situação mais se agrava para o observador externo frise-se, quando se analisa o magnífico trabalho que é o conteúdo justificativo do voto vencido do ilustre Procurador que é também prestigioso mestre do nosso direito.
No entretanto é-nos oferecida, por longo e detalhado estudo de não menos prestigioso mestre de jurisprudência, uma implacável crítica ao referido parecer da Câmara Corporativa, trabalho que mais perturbados nos deixa.
Longe de mim, Sr. Presidente, a pretensão de escalpelizar toda essa matéria doutrinária profundamente discordante, pois para cada um o seu lugar próprio
Permita-se-me porém, que analise determinados aspectos e consequências que diviso e que aqui deixe algumas recomendações, acompanhadas, até, da viva preocupação pela abertura que, me parece, se produzirá nos princípios tradicionais da vida nacional.
Sr. Presidente: Do conteúdo da proposta se deduz que a situação para quem de futuro se quiser dedicar à actividade de farmácia se resume ao seguinte:
O alvará respectivo é pessoal, isto é, só poderá ser concedido às pessoas a quem seja permitido ser proprietário de farmácia, e acresce que a licença respectiva caduca em todos os casos de transmissão, salvo nas hipóteses previstas na lei.
Expressamente se define, ainda, que o alvará apenas poderá ser concedido a farmacêuticos ou a sociedades, em nome colectivo ou por quotas, se todos os sócios forem farmacêuticos e enquanto o forem.
Definem-se, assim, regímenes de propriedade e de actividade comercial - insisto neste aspecto com a observação de que as sociedades se constituem para uma exploração de que em última fase é comercial - rodeados de limitações e condicionalismos em ordem à plena salva-guarda da saúde pública.
Esta é, em resumo, a conclusão legal e a opinião de peritos - sejam técnicos ou jurisconsultos - numa definição de situação futura que cada um dos interessados na actividade farmacêutica terá de prever ao programar a sua vida de trabalho
Consequentemente, estabelece-se que sem propriedade do farmacêutico não pode haver boa farmácia, entendida esta ao serviço da máxima social que é a saúde pública!
Anote-se, se nos é permitido que se separarmos a «máxima» do «social» e se considerar-mos este termo no seu sentido lato, desligado dos princípios políticos que nos informam, sou obrigado a compreender, e rendo-me à solução de uma pseudonegação constitucional no que respeita e propriedade.
Afirma-se-nos, por outro lado, Sr. Presidente, que os princípios legais programados para a matéria em discussão não podem admitir excepções, isto para que se realizem integralmente os objectivos visados. E se bem que se pretenda asseverai que as deposições do base VII contemplam generosamente as situações criadas, isto é, as dos proprietários actuais não farmacêuticos, sejam as dos fictícios como as dos «reais», com o que não concordo, não vejo como não sei ia possível consegui uma significativa comparticipação, por forma legislativa, dos farmacêuticos técnicos diplomados no património perene dos farmacêuticos proprietários.
Esta, em minha modesta opinião, uma solução futura aceitável, moderada, com todas as garantias que se desejam, tanto proclamam e que eu apoio no que concerne à absoluta independência da direcção técnica na sua missão plenamente responsável e proficiente de exclusiva atenção pelo interesse público e na defesa da saúde das populações.
Igualmente assegurado, por esta via o estímulo de atracção para futuros farmacêuticos e o indispensável prestígio para um curso superior que não pode estudar à mingua de perspectivas seguras para aqueles que a ele se dedicam!
Considerada a indivisibilidade da propriedade e direcção técnica como tendência irreprimível e inatacável

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- pelo que se diz -, quero penalizar-me quanto à denunciada impossibilidade no processar de firme execução de uma rígida regulamentação de contrôle na actividade dos técnicos, pois que seria este um meio seguro de se solucionar o problema de uma boa farmácia, sem o recurso extremo definido, recurso que não deixa de ferir um princípio há muito assente - o do direito de propriedade!
Sendo solução irreprimível a que se preconiza, só posso, e em relação à mesma, pedir a profunda meditação da Câmara para que na discussão na especialidade se não minimizem situações adquiridas, seja ao abrigo das disposições do já citado Decreto-Lei n.º 23 422, seja ao das posteriores a este, muito embora estas últimas possam ser arguidas de uma pretensa ilegalidade.

O Sr. Burity da Silva: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr Burity da Silva: - Quanto ao problema da ilegalidade resultante das situações posteriores ao decreto, é normativo em direito que a ilicitude pode perfeitamente conciliar-se com o próprio direito. Quando há uma série de factores a ponderar, uma série de circunstâncias que justificam determinadas ilicitudes, de tal maneira que houve uma tácita concordância do Poder, necessàriamente que decorridos anos aceita-se normativamente em direito a conciliação da ilicitude com o próprio direito.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Não houve concordância do Poder. Houve, como eu disse há dias, uma certa brandura em relação apenas ao que dizia respeito aos herdeiros legitimários.
V. Exa. está a confundir esses herdeiros com a situação de simulações e fraudes que se verificam.

Vozes: - Muito bem!

O Sr Burity da Silva: - Houve um consenso tácito perante os factos patentes e que se verificaram através de anos.

O Sr Martins da Cruz: - Se V. Exa., Sr. Deputado Costa Guimarães, me permite, eu queria apenas, como modesto profissional do direito, dizer que se me afigura de todo inaceitável a afirmação produzida pelo Sr Deputado Burity da Silva de que a ilicitude é compatível com o direito. Eu creio que eles se excluem e não se conciliam.
O que pode acontecer é que o tal consenso a que S. Exa. se referiu traga como consequência a revogação implícita de uma norma de direito positivo, substituída, assim, por uma norma costumeira. Isso é, porém, um problema que o direito prevê e que se aceita porque se trata de duas disposições de direito positivo que se revogam mutuamente. Mas que a ilicitude de alguma maneira se aproprie do próprio direito eu, como modesto escolar de direito, recuso-me a aceitar.

Vozes: - Muito bem!

O Sr Burity da Silva: - Pois eu já tenho lido essa afirmação feita por juristas

O Orador: - Pondere-se, porém, que tal ilegalidade é mais fictícia do que real, na medida em que a contemporização dos fiéis pelo cumprimento da lei fez crer, aos respectivos interessados, que o regímen legal em vigor seria de transição e que o seu caso não deixaria de vir a ser devidamente contemplado.
Sem querer meter a foice em seara alheia, e se tantos outros argumentos não puderem ser considerados, há pràticamente um direito incontestado de posse, com a conivência de todos os interessados e responsáveis.
É bom acentuar que das, aproximadamente, 2000 farmácias existentes, mais de 70 por cento vivem em regímen de propriedade fictícia, toda a gente o sabe.

O Sr Nunes de Oliveira: - Em que é que V. Exa se funda para fazer essa afirmação?

O Orador: - No próprio relatório da proposta de lei.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Ninguém o pode afirmar V. Exa. sabe uma coisa que eu desconheço e a própria Direcção-Geral de Saúde desconhece!

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Na reunião de anteontem dos ajudantes de farmácia fez-se a declaração de que 80 por cento das farmácias estão ilegais. E o que se lê no Diário de Notícias.

O Orador: - Apenas me louvo na informação que colhi no preâmbulo da proposta de lei. Aliás, o próprio parecer da Câmara Corporativa o afirma, o voto de vencido do digno Procurador Pinto Coelho o afirma, como igualmente o próprio trabalho crítico do Prof. Braga da Cruz.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Sem base alguma!

O Orador: - Então andamos a discutir vários assuntos sem base. Ora, é precisamente à procura dessa base que eu ando.
E destas, o que é extraordinário, umas oito mantêm intransigentemente a situação vigente até 29 de Dezembro de 1933 (Decreto-Lei n º 23 422). Se nenhuma atitude repressiva se tomou contra estes proprietários, é porque fortes razões morais lhes assistiam!
Antes de passar adiante nas minhas modestas considerações não resisto a pôr algumas interrogações, que quanto a mim terão cabimento no meio de tanta dúvida
Encastra-se a proposta de lei em discussão na tese firmada no citado Decreto-Lei n º 23 422, não será caso de que toda esta tese esteja já ultrapassada pela evolução vertiginosa com que a vida se vem processando.
Porquê o apoio em legislação estrangeira que em tantos outros aspectos é substancialmente diversa da nossa? E o meio não influi?
Será que só através da co-propriedade se obterão os melhores incentivos ou estímulos para a expansão de um curso superior e consolidação do respectivo prestígio?
E não se atingirão também os fins superiores que todos defendemos e apoiamos por uma regulamentação e estatutos da organização de classe prestigiadores e rigidamente defensores da saúde pública e de autêntica deontologia profissional?
Será que, de acordo com as modernas tendências para a normalização e racionalização dos programas de produção, estaremos de facto convictos e seguros de que se irá sustar a expansão crescente de especialidades fabricadas a níveis avançados de técnica industrial, para dar lugar a uma maior e mais significativa intervenção d mão-de-obra altamente qualificada, com uma produtividade forçosamente cara por via de uma necessária, justa e expressiva remuneração dessa mesma técnica?

O Sr. Nunes de Oliveira: - V Exa. dá-me licença?

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O Orador: - Faz obséquio.

O Sr Nunes de Oliveira: - V Exa. pode responder-me se a criação de trusts por parte de empresas podia satisfazer a saúde pública?

O Orador: - Não sei por qual das soluções a adoptar será mais fácil a permeabilidade dos trusts.
Deixo à meditação de quem melhor que eu possa, em consciência, fornecer-nos as respostas.
Sr. Presidente: Quem ao abrigo das disposições vigentes, sejam as efectivas e reais, sejam as de uma aceitação por forças de ordem moral, se estabeleceu com uma farmácia, não deixou de inverter na empresa todos os esforços para que, consolidando o seu património, pudesse assegurar para os seus, seja a mulher, filhos ou herdeiros, um futuro melhor!
É, de resto, esta preocupação o objectivo supremo de qualquer cidadão autêntico, objectivo para cuja realização os princípios constitucionais lhe conferem todo o apoio e segurança, ou não fosse a família uma das três componentes da trilogia sagrada da nossa vida política - Deus Pátria e Família!
Definindo-se doutrinação expressa quanto ao futuro não posso deixar de recomendar que as situações criadas sejam conscienciosamente ponderadas, em excepcionalidades que não vejo porque não possam caber, de forma mais ampla, no espírito da nova lei.
Não preciso de me alongar em justificações de contrastes que se evidenciam, por comparação com condições que se verificam em tantos outros sectores de actividade e nos quais a eficiente e livre actuação do profissional responsável se processa em termos de segura independência e fora de uma «necessária» co-propridade.
Em simples apontamento, sou forçado a interrogar uma vez mais, quanto aos motivos por que se não aplicam princípios de legislação similares aos que se intentam a sectores como os dos laboratórios, casas de indústrias alimentares, empresas construtoras, empresas mineiras, etc, todo um conjunto de actividades onde a actuação do técnico obedece, com manifesta similaridade a directrizes rígidas de deontologia profissional.

O Sr. Nunes de Oliveira: - V. Exa. dá-me licença?
Quero apenas dizer e deixar aqui vincado que não têm qualquer paralelismo as situações que V. Exa. está a referir.

O Orador: - V. Exa. tem essa opinião, mas eu tenho opinião absolutamente contrária. Por exemplo em matéria de segurança os empreiteiros de construção são obrigados a rodear-se de técnicos que trabalham em absoluta independência. Mas não obstante estarmos em desacordo pode V. Exa. interromper-me sempre que entender, pois terei nisso a maior satisfação.
Será na verdade implacável o condicionalismo de actividade em apreciação?
Aqui fica a dúvida, e para justificar esta, mais uma observação interrogativa convido as opiniões autorizadas a pronunciarem-se quanto ao que, em antecipação legislativa por consideração ao projecto em debate, se define Decreto n.º 45 266, de 23 de Setembro de 1963 - Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência - e particularmente no seu artigo 45.º
Um pormenor final a apontar, Sr. Presidente e Srs. Deputados, prende-se com a necessidade de que, pretendendo-se estabelecer uma legislação como a definida, seria intuitivo prever a criação de um fundo que prontamente pudesse fazer face a tantas situações de ordem financeira que por certo não deixarão de surgir. A menos que, pretendendo-se libertar a farmácia de «proprietários perniciosos a saúde pública», se prefira submetê-la ao peso dos encargos que por certo virão a suportar.
Finalizando, deixarei aqui o veemente apelo de que, a não ser possível vencer as limitações de tanto condicionalismo, interferindo-se em pontos fundamentais da proposta, sejam ao menos devidamente respeitadas tantas situações criadas e penosamente consolidadas!
Julgo que, em última instância, reportá-las todas à incidência da doutrina fixada em 1963 seria acto de magnânima compreensão e de boa vontade nacional!
Faço este apelo a bem do comum, o que, implìcitamente, é a bem da Nação, objectivo supremo da nossa responsável missão!
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr Burity da Silva: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Tenho acompanhado com o melhor interesse todos os aspectos que envolvem o delicado problema sobre a lei da propriedade da farmácia, acerca da qual o Governo fez subir a esta Câmara uma nova proposta, que está em apreciação na generalidade.
Tenho lido as várias críticas em pólos divergentes e até mesmo opostos formuladas por eminentes juristas, professores da Faculdade de Farmácia e pela nossa imprensa e escutado com a maior atenção os juízos até agora formulados pelos ilustres Deputados que me antecederam, cuja autoridade na matéria é relevante.
Embora eu não seja farmacêutico e não possua portanto os conhecimentos deontológicos e técnicos e científicos que a farmacologia comporta, não me senti no entanto desencorajado pela asserção já nesta tribuna expendida de que só aos farmacêuticos compete interferir nos problemas que dizem respeito à actividade farmacêutica.
Se o problema envolvesse matéria puramente de ordem técnica e deontológica e científica, natural é que eu lògicamente me remetesse ao silêncio, com imensa pena da posição que as circunstâncias me imporiam de ter que votar no fim sim ou não, sem poder formular o meu juízo. É sempre uma posição incómoda essa, que, felizmente, é raro verificar-se, uma vez que matérias dessa ordem, de especialização, costumam ser objecto de especiais regulamentos, estatutos, etc, que pela sua natureza não necessitam de vir à apreciação desta Câmara, porque não tem funções técnicas. Então sim, nesse caso os problemas gravitam sob a exclusiva audiência e interpretação dos respectivos técnicos.
Não é o caso da proposta de lei em discussão, sobre cuja matéria, quer oficialmente, quer nos sectores particulares, se têm pronunciado os mais distintos sectores da intelectualidade portuguesa, sendo de destacar, apesar de se tratar de problema relacionado com a actividade farmacêutica, os depoimentos antagónicos dos insignes juristas e professores de Direito Doutores Guilherme Braga da Cruz e José Gabriel Pinto Coelho, que, no próprio dizer do Prof. Braga da Cruz, é «sábio e prestigioso mestre», e, no entanto, defende nos termos mais amplos a tese da livre propriedade da farmácia. E defende-a em termos tais e em posição tão clara e insofismável que a exprime sem paliativos na sua notável declaração de voto como Digno Procurador à Câmara Corporativa, publicada em Actas, sob o n º 43, de 1 de Agosto de 1963, em aditamento ao parecer n.º 11/VIII, Actas n.º 41, de 4 de Junho de 1963.

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Estou, assim, também em boa companhia e em linha de coerência com a ideia de que o problema em questão não diz exclusivamente respeito aos diplomados em Farmácia (cujo nível técnico difere, aliás, entre uns e outros, embora se avolume a sua preparação científica como se fosse de igual nível, quando não é, dado que uns são licenciados e outros não, consoante o grau académico dos respectivos cursos). Este parêntese é importante para nos situarmos no plano de relação entre o nível académico e as remunerações correspondentes, que justamente têm sido motivo de preocupações em redor do problema económico-social dos diplomados em Farmácia.
E não diz (o problema citado) apenas respeito ao farmacêutico diplomado porque tem implicações com vários aspectos que com ele se relacionam.
Aspectos jurídicos, desde a inconstitucionalidade ao direito comum, à moral e à justiça em si mesma em relação a direitos sagrados, a salvaguardar em face de situações de facto, e toda uma estrutura sócio-económica e institucional em presença, ameaçada de frustração, estrutura de proporções que não devemos ignorar ou a que devemos dispensar a nossa atenção no momento em que à nossa consciência, à consciência de cada um de nós que ocupamos um lugar nesta Câmara, é posto um dilema de votar sim ou não num problema cuja delicadeza e gravidade deu margem a esta espantosa situação de ao cabo de 33 anos não ter sido possível ao Poder Executivo, moral e materialmente, fazer cumprir a lei com que se pretendeu resolvê-lo até às últimas consequências.
E como são várias as implicações desse equacionamento no plano sociológico e bastante delicados os seus reflexos na ordem moral e no enquadramento da hermenêutica jurídica, parece-me justificada a interferência dos não farmacêuticos na discussão das duas teses opostas - a livre propriedade de farmácia ou a indivisibilidade da mesma em função da gerência técnica
E acontece até - e não é paradoxo - que também a lese da indivisibilidade em beneficio dos diplomados em Farmácia só sustenta catedràticamente na doutrina de um jurista, tanto, quanto a mim, tenho como válida a tese contrária - a livre propriedade -, defendida por outro não menos ilustre jurista, ambos já por num citados.
A lei em discussão em pouco diverge, na sua essência e nos processos formais e informais, salvo pequenas alterações por sinal bastante contraditórias da própria tese que a inspira (às quais me referirei mais adiante) do objectivo fundamental que se contém no Decreto-Lei n º 23 422, de 29 de Dezembro de 1933, em cujo preâmbulo se lê ter obedecido a sua promulgação ao propósito de se alcançar o cumprimento por parte dos diplomados farmacêuticos da obrigação imprescitível de assumirem com a mais escrupulosa assiduidade a gerência técnica das farmácias, já anteriormente imposta pelo Decreto n.º 17 636, de 19 de Novembro de 1929, e bem assim com vista a criar uma orgânica mais apropriada à defesa da saúde pública e à moral da profissão farmacêutica.
Não podemos fugir aqui à hermenêutica jurídica que o problema comporta.
Ensinam-nos os juristas, quanto à conduta ilícita e às leis injustas, que, nas relações entre direito e justiça, «a lei procura descobrir o ponto de equilíbrio de uma oscilação variável se o consegue, é sentida como justa, se o não consegue, é sentida como injusta».
Quando se jogam os direitos e os interesses irredutíveis da pessoa humana e os da instituição da família por ela constituída, encontramo-nos perante o «dogma da família», considerada, segundo a expressão do meu ilustre mestre da cadeira do Finanças Públicas Prof. Vasco Fortuna, como «a célula das sociedades o alicerce da civilização, realidade viva e sempre actual em todos os tempos e em todos os lugares, que cada vez mais deve ser olhada como o verdadeiro fulcro da estrutura social e, portanto, das preocupações sociais».
A economia familiar, é ainda o distinto mestre de Finanças Públicas que o preconiza, «deve ser considerada tal como é na realidade um todo indivisível para o qual todos os membros contribuem indistintamente e de diversos modos».
Até moralmente, quando em favor do «monte comum» o não possam fazer materialmente, se entendermos, como ensinam os juristas e sociólogos, que a família em si mesma é sempre um estímulo espiritual para que o respectivo chefe se afadigue e use de toda a sua capacidade para garantir ao cônjuge e aos filhos um futuro o mais livre possível de incertezas. A sua obrigação de assegurar a sobrevivência da família estende-se para além da própria vida.
Estas premissas justificai ao principalmente a razão por que teve de ser abandonada a execução do Decreto-Lei n º 23 422, de 29 de Dezembro de 1933, citado, que se pretende revitalizar com a publicação de outro decreto-lei que quer dizer o mesmo e em certos aspectos pior.
E de como assim é, no próprio preâmbulo da proposta de lei se lê «Estas considerações bastam para justificar a orientação do Governo de manter, na sua essência, o texto do projecto inicial, introduzindo-lhe, embora, algumas alterações que não atingem o princípio posto» (o consignado afinal no citado Decreto-Lei n.º 23 422, de 1933, a revogar, ou seja o da indivisibilidade).
Sendo, porém, certo que «as ideias de direito e de justiça são indesligáveis e o fundamento da obrigatoriedade das normas jurídicas deve procurar-se na coincidência do direito com a justiça», como S. Tomás de Aquino e tantos pensadores ensinaram,
Que «o objectivo fundamental do direito é o da criação e garantia de um ordenamento normativo que apresente absoluta coincidência com o plano natural, constituído pelos interesses e realidades através da função construtiva do direito, essa coincidência total da norma, do valor da vida, aparece como ponto limite da evolução, a meta para a qual o direito se encaminha».
Cito Lições ao Introdução ao Direito, do Dr. José Hermano Saraiva, meu ex e distinto professor da cadeira de Direito Político no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e antigo Deputado a esta Câmara.
Na nossa Constituição Política - artigo 7.º e § 1.º do artigo 8.º - estatui-se que os cidadãos têm a liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho, indústria ou comércio, salvas as restrições legais requeridas pelo bem comum entendendo-se que os cidadãos deverão sempre fazer uso dos direitos e garantias sem ofensa dos direitos de terceiros nem lesão dos interesses da sociedade ou dos princípios da moral.
Quando a lei se abstrai da finalidade moral e de todas os implicações de ordem social e humana, necessariamente que «deixa de ser um instrumento eficiente e adequado na disciplina das relações, não tem existência como instrumento normativo, actuante e válido».
Nesse caso, cabe ao legislador revogá-la, conferindo-lhe novos princípios orientadores.
Mas não é o que se verifica em relação à revogação proposta, a qual mantém o espírito de «coacção potencial» que, segundo o parecer da Câmara Corporativa, só excepcionalmente deve ter lugar, pois «quando assim não acontece, é porque a lei ofende a realidade da vida que pro..

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regulamentar, tornando-se iníqua e sentimento do sentimento de justiça comum» (sic!).
E acrescenta o referido parecer que «perante essa indesejável realidade, e como que por força de um fatalismo cosmológico de justiça, ou a lei deixa de ser aplicada em todo o seu rigor, mercê de a Administração ser dominada por humano sentimento de brandura, ou os seus destinatários descobrem engenhosa e fraudulenta formal de lhe mitigarem os rigores».

O Sr. Nunes de Oliveira: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz obséquio.

O Sr Nunes de Oliveira: - Mas afinal essa situação está criada em relação a quem? Aqueles intrusos que se intrometeram na farmácia e que nada tinham a ver com ela. Houve uma intromissão de estranhos à profissão e eles é que são culpados da situação que criaram.

O Orador: - Não há intromissão sem haver um consenso da Administração. Não me vá V. Exa. dizer que o exercício da profissão farmacêutica se faz na clandestinidade.
E porque, diz o parecer, «qualquer destas atitudes, e ambas se verificaram na aplicação do Decreto-Lei n º 23 422, é indesejável e deve ser evitada, para valorização de direito e prestígio dos poderes da Administração».
Contudo, a proposta de lei em discussão outra coisa traduz do que a ratificação plena do referido Decreto-Lei n.º 23 422, apesar da triste experiência de longos anos dolorosamente vivida pelas famílias lesadas pelos efeitos lógicos do clima moral que tal lei gerou mesmo antes de ser publicada e que levou precipitadamente os proprietários a relegar em nome de farmacêuticos diplomados as suas propriedades de farmácia, tal o pânico suscitado numa instintiva e humana reacção pela sobrevivência própria e da família!

O Sr. Nunes de Oliveira: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz obséquio.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Qualquer cidadão tem liberdade de acesso a uma Universidade para tirar o respectivo curso. Parece mais lógico seguir-se esse caminho querer atingir determinadas posições servindo-se de atalhos. O caminho certo, o rumo direito, é apenas este, o Estado confere a todo o cidadão liberdade de inscrever-se numa Faculdade para tirar o seu curso.

O Orador: - Aquilo de que estou a tratar é do direito de propriedade.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Estou a compreender perfeitamente.

O Orador: - Ainda bem.
Apesar das conclusões a que chegou a Direcção-Geral, de Saúde, que em documento inserto no Diário Ilustrado, segundo li no jornal Diário da Manhã de 28 de Dezembro findo, confessou que «cedo se verificou que a rigidez do citado diploma se não ajustava à multiplicidade das situações criadas pela vida. Que se impunha ter presentes os interesses dos herdeiros do proprietário falecido, contra eventuais entendimentos de terceiros, só em aparente cumprimento das finalidades legais» (ipsis verbis).
Não pode deixar de impressionar profundamente estoutra declaração da Direcção-Geral de Saúde, a que o Diário da Manhã faz referência que ela, a Direcção-Geral de Saúde «deixou pràticamente de exercer nesta matéria qualquer espécie de acção coerciva»!

O Sr Nunes de Oliveira: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Há confusão da parte de V. Exa. na interpretação desse comunicado da Direcção-Geral de Saúde, que apenas refere especificamente uma certa benevolência que houve em relação às viúvas e aos herdeiros legitimários, e não em relação àqueles que iludiram fraudulentamente a lei vigente. São duas coisas distintas.

O Orador: - Eu penso que interpretei bem esse comunicado.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Posso garantir a V. Exa. que é como eu digo.

O Orador: - Estou a referir-me a lei morta que, ao cabo de 80 anos, não conseguiu fazer-se impor. E a autoridade que tinha de a fazer executar vem agora confessar que não lhe foi possível materialmente fazê-la impor.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Mas é a lei vigente.

O Orador: -Quando a lei não se faz impor, caduca.
É um princípio de direito a que não podemos fugir.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Mas V. Exa. não pode afirmar que a lei não se cumpre. Há uma larga percentagem em que ela foi cumprida.

O Orador: - Tudo quanto tenho lido da Câmara Corporativa, das afirmações feitas aqui, me diz que a Administração tem responsabilidades, que houve desleixo e que, no fundo, a lei não teve execução.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Houve incúria relativamente àqueles que estão fora da lei Mas a lei teve efeitos positivos relativamente àquela grande percentagem que está dentro da lei.

O Orador: - Refiro-me à ineficácia da lei, que é evidente e reconhecida por todos.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - A ineficácia pode sei total ou parcial, e neste caso é evidente que é uma ineficácia parcial.

O Orador: - Em face do que tenho lido, verifica-se que há uma situação deplorável . .

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Mas isso não lhe dá direito de reputar a lei como morta Para estar moita era preciso que não estivesse nenhuma farmácia dentro da lei, como está, dando, portanto, a certeza de que a lei está viva.

O Orador: - Quando a lei não tem força para se fazer cumprir, dizem os juristas que ela morre por si.
V. Exa. está a defender o seu ponto de vista, eu defendo o meu. Julgo, pois, que a Câmara já está esclarecida.

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O Sr. Costa Guimarães: - Porque é que a lei se não cumpriu na totalidade?

O Orador: - Talvez os meus ilustres opositores possam responder.
E é de salientar o comentário suscitado.
Com efeito

Parece uma prova concludente, insofismável, de que o regime citado, criado em 1933, de propriedade da farmácia, pelo Decreto-Lei n º 23 422, se mostrou iníquo, mormente na sua aplicação a viúvas e herdeiros. Só assim se poderá compreender que um departamento do Estado, cuja magnífica execução de serviço deve constituir motivo de justificado orgulho, venha a declarar que, na matéria em apreço, abandonou qualquer espécie de coacção, no sentido de obrigar ao cumprimento de disposições contidas em diploma legal.

Mas se assim é, pergunta-se no referido comentário e eu também formulo a mesma pergunta, perfeitamente justificada.
Porquê reincidir? Porquê tentar dar vida a um diploma cujas normas invocadoras se mostraram de tal modo divorciadas dos mais elementares princípios da moral e da equidade?
E os inconvenientes, no futuro, não incidirão apenas sobre a família do proprietário não farmacêutico, pois ninguém garante que os filhos ou filho de uni farmacêutico, por ele o ser, virão também a ser farmacêuticos mesmo compelidos a isso, hipótese que já vi afirmada por pessoas com responsabilidades, como se coerente e pedagògicamente ela se pudesse admitir!
E quando o farmacêutico não deixa prole? E a sorte do cônjuge depois do seu falecimento? E o inverso, quando o património seja do cônjuge, por herança, o marido não seja farmacêutico - porque é inteiramente admissível - e sejam este e os filhos sobrevivos?
São realidades sobre as quais todos devemos meditar, até mesmo os Srs. Farmacêuticos.
Por isso me dizia há dias um ilustre médico que daqui a umas décadas - o tempo é o grande mestre - natural é que o problema não seja visto pelos Srs. Farmacêuticos, classe a que eu rendo as minhas homenagens, sob o mesmo prisma.
A natureza humana tem destas coisas!
Claro que me hão-de contrapor o facto do interesse público uma maior garantia à defesa da saúde pública, maior estimulo para a carreira farmacêutica, o prestígio, a moral e a dignidade do farmacêutico, que, na opinião dos que defendem radicalmente a tese da indivisibilidade, só se pode alcançar desde que a propriedade da farmácia seja um monopólio do diplomado em Farmácia, e isto porque esta actividade não é um comércio como qualquer outro, embora se não possa contestar que, sendo um comércio especial, cujo exercício, pelas suas implicações com a saúde pública, requer medidas adequadas, é, no entanto, um ramo comercial, hoje mais do que nunca, em que a farmácia deixou de ser uma oficina de laboração de medicamentos, esta se transferiu para os laboratórios que fabricam mais de 95 por cento dos medicamentos, que a farmácia compra e vende com ânimo de lucro, que há-de existir sempre e existe, quer o proprietário da farmácia seja diplomado, quer não seja.

O Sr. Teles Grilo: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Teles Grilo: - O ânimo de lucro só existe nas farmácias dirigidas por não farmacêuticos.

O Orador: - A afirmação de V. Exa. é um pouco forçada. Que sejam os não farmacêuticos apenas a ter o ânimo de lucro, acho muito cândida a afirmação de V. Exa.

O Sr. Costa Guimarães: - O lucro é igual, porque os preços estão fixados.

O Orador: - Muito obrigado pela achega.
É comércio por definição própria e juridicamente confirmada por quem tem competência para o fazer, a Procuradoria-Geral da República, que já teve oportunidade de se pronunciar sobre a matéria, com a homologação respectiva e incontestável do Sr. Presidente do Conselho.
Tenho o maior respeito pelas razões invocadas, e julgo que ninguém coerentemente pode ter outra posição em relação às motivações de interesse público apresentadas e de prestígio da classe de farmacêuticos diplomados - e não digo da classe farmacêutica porque o pobre do ajudante de farmácia não conta no preconceito doutoral de uns tantos, que se esquecem de que, sem quebra do grau académico de cada um, as classes profissionais devem-se solidariedade humana e social imposta pela nossa ética cristã e por razões de justiça, porque só com a colaboração mútua umas e outras podem cumprir a sua missão e realizar o bem comum no trabalho e nas relações humanas.
Mas deixemos o ajudante de farmácia por agora, de cuja situação voltarei a referir-me mais adiante.
Com efeito, se essas razões se pudessem sustentar na base de uma argumentação sine qua non sem outra alternativa de soluções, eu curvar-me-ia muito lògicamente perante as mesmas razões - de interesse público. Este sim, e só ele, todos sabemos que deve ter prioridade na relatividade da valorização nos domínios da personalidade, no ordenamento dos valores entre a sociedade e a pessoa, mesmo agregada na inviolável instituição que é a família.
Mas não nos esqueçamos da interpretação que o eminente estadista, Chefe do Governo Português, Prof. Doutor Oliveira Salazar faz da nossa Constituição Política ao referir-se à mesma.

Ela começa por estabelecer como limites à própria soberania a moral e o direito. Impõe ao Estado o respeito pelas garantias derivadas da natureza a favor dos indivíduos, das famílias, das corporações e das autarquias locais. Garante a propriedade, o capital e o trabalho, em harmonia social.

Lembro aqui um depoimento de ilustre mestre, que foi director da Escola Superior de Farmácia de Lisboa, Doutor Raul de Carvalho, que num estudo sobre deontologia e orientação profissional, publicado em 1942, afirmava

Há na maioria das vezes necessidade de continuar a posse de uma farmácia que já se herdou muitas vezes de pais para filhos ou de tios para sobrinhos. Também muitas vezes a descendência é apenas feminina e é um rapariga que deve a fortiori abraçar aquela profissão, sem discrepância. É certo que a legislação não salvaguarda convenientemente os interesses da viúva ou dos filhos de um farmacêutico proprietário de farmácia, o que certamente se procurará remediar em futura legislação.

Ora, acontece que nem essa excepção é contemplada humanamente, moralmente (eu entendo que o problema

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sociológico é igual, quer se trate de herdeiros de proprietários farmacêuticos, quer se trate de proprietários não farmacêuticos), na lei em discussão, sendo até autuação menos contemplada em face das disposições do n.º 1 da base IV e do n.º 3 da base XII, que impõem aos herdeiros o traspasse ou cessão da propriedade, no prazo máximo de um ano, a favor de farmacêuticos, se o cônjuge e os herdeiros legitimários não forem farmacêuticos, sob pena de caducidade do alvará. Situação tanto mais injusta quanto é certo que em relação à validade dos alvarás das farmácias pertencentes a sociedades comerciais que não satisfaçam às condições da lei em discussão, ou seja cujo capital social não pertença a farmacêuticos, o n.º 4 da base XII contempla uma excepção que relativamente, e só relativamente, brada aos céus. Neste caso de sociedade as farmácias podem continuar indefinidamente, merca da validade dos alvarás de dez em dez anos, na posse de proprietários não farmacêuticos.
Neste caso nem periga a saúde pública, nem há desprestígio para os directores técnicos.
Comentários? Fará quê?
E os postos farmacêuticos?
Poderá o farmacêutico que dirige a farmácia sede controlar directamente a distribuição e venda de medicamentos nesses postos, que podem estar a dezenas de quilómetros?

O Sr. Teles Grilo: - Pode. É a resposta, desde que lá esteja permanente e eficientemente.

O Orador: - Mas pode em que sentido?

O Sr. Teles Grilo: - No sentido de venda de medicamentos.

O Orador: - Eu refiro-me ao facto de a lei em discussão estabelecer que a farmácia sede pode possuir os farmacêuticos sob a sua orientação, e tenho dúvidas se as farmácias estão em condições de poder controlar os farmacêuticos.
O proprietário tinha um dom de ubiquidade sem perigo. Eu estou aqui sem qualquer interesse de parte ou de outra.

O Sr. Nunes de Oliveira: - V. Exa. dá-me licença? E é a última vez que o interrompo.

O Orador: - Eu cedu, mas, lamento que me í\ie\ tempo para as minhas considerações

O Sr. Nunes de Oliveira: - V. Exa. sabe, em relação aos postos farmacêuticos, qual a natureza dos produtos que lá devem existir?

O Orador: - Isso não me interessa.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Estou elucidado.

O Orador: - Já respondi quo os postos são para fornecer remédios ao público. As várias doenças não contingência.

O Sr. Nunes de Oliveira: - Não interrompo mais V. Exa., mas parece-me que não devia referir-se aos postos sem saber a natureza dos produtos farmacêuticos eles devem ter.

O Sr. Costa Guimarães: - Eu elucido V. Exa. nos postos só se vendem medicamentos bem receita médica.

O Sr. Sousa Rosal: - Então caem pela base todos os argumentos que militam a favor do princípio de que a farmácia não é um estabelecimento comercial, visto que os medicamentos vendidos nos postos farmacêuticos, ficando no campo de acção da actividade farmacêutica, podem ser vendidos por qualquer.

O Orador: - Muito obrigado pela achega. O que pergunto é o seguinte será que a saúde pública só preocupa em relação aos centros onde funcionam as farmácias cujo movimento seja econòmicamente aliciante
Deixo as perguntas para cada um de VV Exas., Srs. Deputados, tirar as conclusões que achar lógicas.
Não, Srs. Deputados, não estamos perante uma periculosidade da saúde pública tão flagrante que justifique medidas tão drásticas e que tanta perturbação causam a numerosas famílias dispersas em todos os lugares do País. Que geram a descrença nos princípios, que abalam a fé nos corações, a fé em todos nós que temos a responsabilidade de dizer a última palavra!
Não é este o único processo de resolver o problema do prestígio da farmácia e do farmacêutico diplomado, de o dignificar. E a experiência já nos mostrou que, não sendo justo em face das realidades incontroversas da situação da propriedade da farmácia em Portugal - onde em mais de 70 por cento esta constitui o património familiar de uma classe modesta -, não é o único caminho seguido no mundo civilizado, não sendo, portanto, um processo universal. E como a saúde é um predicado humano e, portanto, universal, que a todas as nações preocupa, bom será que não nos esqueçamos de que, se é certo que a França, a Itália, a Espanha o Brasil e outros países adoptam o princípio da indivisibilidade, outros grandes países, onde a saúde é tão preciosa como naqueles, merece também tantos cuidados e preocupações, como a Inglaterra, a Suécia, a Holanda, os Estados Unidos, a Grécia, a Jugoslávia, a Alemanha Ocidental, o Luxemburgo, a Finlândia, a Dinamarca, a Noruega, etc, adoptam o direito da livre propriedade, embora o exercício da actividade seja confiado. A direcção de um farmacêutico, e não se entende que haja nesses países menos apreço pela posição do diplomado e pela salvaguarda da sua dignidade moral, deontológica e científica, que não pode estar em causa por essa facto. Estará em cheque, sim, desde que não haja instrumentos jurídicos que personalizem a sua posição específica na farmácia, onde não pode ser prescindido como director técnico ou simultâneamente na qualidade de proprietário e como director técnico, efectivamente prestigiado na sua função por um estatuto profissional, uma regulamentação adequada e clara que não dê qualquer margem à invasão de atribuições.
Mas há, como todos nós sabemos, outras actividades em que o farmacêutico se realiza laboratoriais, em análises clínicas e laboratórios de produtos farmacêuticos, pedagógicas, nas competentes Faculdades e escolas e investigação científica.
Formula-se a relutância de um diplomado servir numa actividade propriedade de não diplomado. Penso que isso acontece no nosso país e em qualquer parte do Mundo, com médicos, advogados, engenheiros, agrónomos, etc, sem que o facto diminua a personalidade do diplomado. O facto de um indivíduo possuir um curso superior não pode de forma alguma pressupor que tenha de ser proprietário na sua actividade, nem que tenha capacidade administrativa e comercial. Não esqueçamos que a farmácia comporta as duas posições paralelas propriedade e direcção técnica, distintas e que têm necessàriamente que circunscrever-se no âmbito das respectivas compe-

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tâncias, salvo litígio para o qual a lei e as providências regulamentares e fiscais devem estar prevenidas.
Não é menor realidade o problema das remunerações a atribuir ao director técnico da farmácia, pois acredito que as farmácias, com a muito limitada margem de lucros que auferem, terão dificuldades em pagar condignamente um director farmacêutico, quer seja licenciado, quer não, para garantia da sua assiduidade e assistência permanente.
Em presença deste problema de justiça social, ao Estado compete, nas suas atribuições intervencionistas, estudar o problema, que me parece depender de ajustamento sobre a margem de lucros entre o laboratório e a farmácia.
Eu não desejo que os laboratórios não sejam ricos, mas apenas que eles sejam menos ricos para que os proprietários de farmácia sejam menos pobres e possam pagar condignamente os directores técnicos dos seus estabelecimentos.
Quer nas intervenções já nesta Câmara feitas, quer nos diversos depoimentos de sectores particulares e no parecer da Câmara Corporativa, todos são concordes em que o problema da dignificação da farmácia e do farmacêutico diplomado depende mais de um esquema global, de um ordenamento jurídico completo, incluindo um estatuto profissional que defina deontologicamente deveres e direitos, de uma regulamentação coordenadora da actividade farmacêutica, de uma estrutura fiscalizadora, que não se pretende tenha funções policiais, mas de disciplinação, etc.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Pena é que se quisesse começar pela parte mais delicada, como que a construção de qualquer edifício (este também é um edifício jurídico e social) pelo tecto.
A Câmara Corporativa, que dispõe dos elementos oficiais possíveis, reconhece que se trata de «um problema delicado, de real complexidade, quer pelos elevados valores materiais que nele estão envolvidos, quer pela emotividade com que é vivido pelas pessoas que, sob os mais diversos e por vezes antagónicos aspectos, lhe estão ligadas».
E embora concluísse pela indivisibilidade da propriedade, reconhece que a rígida aplicação da indivisibilidade no regime da propriedade da farmácia provocaria na vida leal as mais injustas situações.
Afirma que «se a violação do princípio da indivisibilidade representasse um perigo sério e inevitável para a saúde pública, nada mais haveria a fazer do que evitar situações que de qualquer modo dela se desviassem. A saúde pública é um bem tão precioso que a ele se devem sacrificar todos os demais interesses». Diz ainda a Câmara Corporativa no seu parecer, que é também subscrito pelo Sr. Ministro da Saúde, Doutor Francisco Pereira Neto de Carvalho, como digno Procurador, de cuja pasta ministerial dimana a lei em discussão.

Porém, o simples conhecimento do processo dos medicamentos e a experiência que a situação da nossa propriedade de farmácia nos oferece levam-nos a concluir que, embora o princípio da indivisibilidade seja o meio mais eficaz de proteger a saúdo pública, não tem sido esta sèriamente ameaçada pelo seu desrespeito.

Mas mesmo nos países em que o princípio da indivisibilidade predomina, na própria França se admitem as excepções e na Itália, como é sabido, respeita-se em absoluto a situação dos cônjuges e herdeiros legitimários, não sendo estes compelidos a alienar o património.
Quando está em jogo o interesse público e, mais do que isso, a saúde pública, a opinião pública reflecte-se através dos meios normais que exprimem as suas reacções.
Sem dúvida que a imprensa é o canal principal por onde ela se filtra. E a imprensa portuguesa é bem sensível nesse aspecto. Não perdoa quando o interesse público está iniludìvelmente em jogo. Para o meu ponto de vista, congratulo-me por ele coincidir com a posição que a nossa imprensa, vigorosa, mas justa, assumiu claramente.
Para num, e segundo é costume ser entendido, a posição tomada pela imprensa pressupõe que a reacção pública não considera, para além dos casos episódicos, que a cobertura farmacêutica no País, apesar das suas deficiências, que cumpre aos poderes competentes eliminar, disciplinando e melhorando a orgânica funcional, tenha evidenciado carácter de perigo para a saúde pública.
Foram-me patenteadas largas dezenas de declarações de médicos e sei que existem de farmacêuticos, afirmando a sua inteira confiança nesse modesto obreiro da actividade farmacêutica - o ajudante de farmácia, proprietário ou simplesmente ajudante, esse elemento prático, vinculado à actividade farmacêutica, - com que o nosso bom povo, da cidade e das aldeias, se habituou secularmente a contactar e a estimar e considerar.
O ajudante de farmácia é bem o símbolo do nosso tão tradicional boticário, tem sido e há-de ser sempre o colaborador indispensável do farmacêutico, temperado na prática constante junto deste.
E ele, evidentemente, que em regra manipula, que permanece ao balcão, que não é o lugar mais cimeiro do farmacêutico diplomado, cujo lugar mais adequado ao seu nível técnico reside no laboratório e na orientação da actividade.
Não é, portanto, um estranho um intruso, e bem merece, quando a sua capacidade lhe dê jus ou lhe caiba em legítima herança, o acesso à propriedade da farmácia, que nada tem que ver com a posição na direcção técnica do diplomado, pois não pode haver um problema de hierarquia em quadros perfeitamente distintos.
E sei que em tempos foram entregues ao digno Procurador à Câmara Corporativa, relator do parecer sobre a lei da propriedade da farmácia, Doutor Damasceno de Campos, muitas dezenas de declarações de farmacêuticos diplomados que, preocupados com este problema de justiça social e com a sobrevivência do património familiar, nelas afirmavam a sua plena concordância com a livre propriedade da farmácia.
Nesta evolução de promoção social, quando os cursos de aperfeiçoamento profissional constituem uma feliz iniciativa da Administração, aqui deixo a sugestão de que ao ajudante de farmácia, aquele que ocupa um papel na farmácia que não é lícito ignorar e que, por lei, substitui temporàriamente o farmacêutico num período que pode ir a três meses, seja ministrado um curso de aperfeiçoamento profissional que lhe proporcione a melhoria da sua preparação para que mais cabalmente possa cumprir o seu lugar.
E porque se contemplam medidas de excepção paia que as instituições de assistência à saúde e de previdência possam dispor de farmácias privativas para as suas próprias actividades, peço daqui ao Ministério competente e espero que elas contemplem extensivamente os Sindicatos dos Empregados do Comércio e dos Motoristas do Ultramar, onde as normas corporativas não estão integradas, mas que cumprem a mesma missão das caixas de previdência na metrópole.
E aproveito o ensejo para salientar deste lugar a larga e proficiente assistência médico-social que o Sindicato

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dos Empregados do Comércio de Angola exerce, bem como o dos Motoristas, que me foi dado bem recentemente apreciar, considerando a sua acção digna de todos os louvores e apoio.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Com as considerações que acabo de expor, pretendi dar as minhas achegas num problema de imensa delicadeza em que a minha consciência não se quis eximir de marcar posição.
Estou certo de que a Câmara se decidirá pelo bom senso, como do costume, e pela justiça social.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Teles Grilo: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Eu sou, decididamente, contra a livre propriedade da farmácia.
E não me coíbo, sequer, de afirmar que o princípio da indivisibilidade da propriedade da farmácia e da sua gerência técnica, defendido pela Câmara Corporativa e levado pelo Governo à proposta de lei agora em discussão exigirá até, à luz de um são critério de justiça cuja atendibilidade parece não dever suscitar grandes dúvidas, que a excepção prevista no n.º 3 da base II, no respeitante às farmácias privativas das instituições de previdência, seja daí eliminada.
É que deste modo, e para além das considerações que adiante bordarei sobre este ponto, o princípio da indivisibilidade surgirá com maior pureza de expressão mais perfeita solidez, com melhor contextura legal, racial e moral, e portanto menos atreito a censuras e ataques por parte dos seus detractores.
Aliás, tem de compreender-se e aceitar-se a existência de um razoável número de interessados em que o regime da livre propriedade da farmácia fosse imposto como regra.
Assim como deve reconhecer-se que o clima emocional em que o problema vem sendo debatido desde há décadas atingiu na actualidade a culminância precisamente porque, segundo a estimativa geralmente aceite, é maior agora o número de farmácias com gerência dissociada da respectiva propriedade do que o daquelas em que essa gerência se confunde na mesma pessoa seu legítimo dono.
É, pois, natural que o arruído à volta deste delicado assunto tenha aumentado consideràvelmente de volume e que as durindanas faiscantes dos contendores se mantenham, mais do que nunca, em luta acesa e porfiada pelas suas respectivas causas!
Só que, de um lado - e salvo raras excepções, que se reportam a situações criadas anteriormente ao Decreto-Lei n.º 23 422 -, essa luta é travada, desesperadamente por todos aqueles que, contra a lei expressa vigente País, conseguiram, por vários processos, artimanhas e expedientes, alcandorar-se a uma posição a que não direito, disso tendo consciência plena, por não poderem ignorar essa mesma lei, e de outro lado travada por quem, cônscio de direitos e deveres impostos pela sua profissão temente das complexas e graves consequências necessàriamente provindas daquela continuada e despudorada, violação da lei, ciente da sua específica e insubstituível missão colaborante na defesa da saúde pública, mais não faz do que alertar a consciência dos governantes para aqueles sagrados direitos e deveres, para aqueles efeitos lastimosos, para aquelas incríveis violações, para aquela .. missão.
E onde está a razão, afinal?
Se se quiser ser honesto na resposta, se se pretenderão esgrimir com argumentos que visem tão-só a apologia de meros interesses materiais, e se não puder esquecer-se que os fins últimos a prosseguir com a abolição da livre propriedade da farmácia nunca poderão identificar-se com tais interesses, e antes se situam num plano nacional elevado onde ocupa lugar de honra a saúde pública - bem precioso a reclamar constantemente, para sua inteira salvaguarda, a adopção de um sistema legal de protecção sem falhas de qualquer espécie nem possibilidades delas, se se atentar serena e desapaixonadamente em tudo isto, então a resposta só poderá ser a de que terão razão os que conseguirem demonstrar que a sua tese, se triunfante, conduzirá, precisamente, à plena e eficiente defesa dessa saúde pública e ao crescente prestígio e valorização científica, profissional e moral daqueles que, no puro campo farmacêutico, têm especiais responsabilidades ligadas a esse sector.
A solução do problema estará, pois, em meu modesto entender, na adopção de uma política farmacêutica devidamente estruturada, que vise como escopo principal, ou o afastamento ou a redução ao mínimo possível de todas as causas de carácter pessoal, técnico, científico, profissional e moral que de um modo ou outro possam contribuir para fazer perigar ou simplesmente afectar a saúde pública.
Ora, tanto quanto se consegue alcançar da prolixa argumentação em prol da livre propriedade da farmácia, nada aí se colhe de concreto em defesa da saúde - pública, e quando muito vê-se afirmado - o que não deixa de ser bizarro e estranho - que a saúde pública não tem sido ameaçada sèriamente pelo facto de ainda não ter sido imposto com rigor o princípio da indivisibilidade.
Não se esclarece, porém - nunca se esclareceu - , se tal resultado foi conseguido à custa de específicas medidas adoptadas nos arraiais da livre propriedade e tendentes a preservar de qualquer grave ocorrência aquele importantíssimo sector do bem comum, ou se ele não passa, afinal de um fruto feliz do acaso, de uma contingência agradável do destino, de um golpe de pura sorte, para que os adversários da indivisibilidade de modo algum contribuíram.
Temos assim que os defensores da livre propriedade da farmácia, quando se lhes fala da saúde pública como finalidade indiscutível a ter sempre presente em matéria de actividade farmacêutica, não explicam de que maneira a sua actuação se processa, que medidas põem em prática, que métodos utilizam, a fim de salvaguardar convenientemente essa saúde pública limitam-se a declarar que até agora ainda não houve novidade de maior.
Se bem me parece, não é essa, exactamente, a espécie de defesa que ao Estado interessa ver fazer da saúde pública. Deixar que as coisas vão correndo ao deus-dará, ao sabor da corrente, sem orientação, sem fiscalização, sem controle, sem atitudes positivas, e apenas na fria expectativa de vir a anotar um certo resultado, ou a apontar certa estatística ou certa percentagem, poderá sei interpretado de maneiras várias e à luz de díspares critérios, mas jamais significará preocupação consciente de conseguir algo de concreto em determinado campo, ou desejo honesto de prosseguir objectivos precisos em obediência a princípios previamente estabelecidos.
Nem outra atitude seria de esperar por parte de quem, em defesa da plena liberdade para a propriedade da farmácia, não adrega alinhar senão meia dúzia de argumentos, todos eles minguados de valor, a deixar no espírito de quem os aprecia penosa ideia de insuficiência e pobreza!
Na verdade, há-de legitimar-se a livre propriedade só porque o comum das pessoas olha a farmácia como um

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simples estabelecimento de venda de certos artigos, onde os farmacêuticos, por norma, não exercem qualquer fiscalização? Mas como haveria de exigir-se desse comum das pessoas a gama de conhecimentos indispensáveis a uma justa e conscienciosa apreciação do problema, em ordem à solução consentânea com as realidades sociais do nosso tempo? Ou como haveria de estranhar-se o facto de «os farmacêuticos não exercerem em regra qualquer fiscalização ou contrôle técnico sobre as especialidades que vendem», se pelas próprias contingências do regime da dissociação entre a gerência e a propriedade que entre nós vigora, embora contra legem, eles são relegados para um plano mais do que secundário, tratados como insignificantes empregados, pagos com afrontosos ordenados, considerados quase como um mal necessário, remetidos, enfim, para uma posição de chocante e a todos os títulos lamentoso desprestígio? Com base em que oídem jurídica ou moral poderão exigir-se obrigações sem uma correspectiva atribuição de direitos?
Há-de também adoptar-se o princípio da livre propriedade da farmácia em Portugal só porque ele foi perfilhado noutros países, como os Estados Unidos da América, a Inglaterra, a Holanda, alguns cantões da Suíça, etc?
A cópia de padrões estrangeiros só poderia justificar-se quando fosse demonstrada, no nosso país, a existência daquelas mesmas especiais circunstâncias de temperamento, de cultura, de tradições, de estrutura político-
-social; e tal demonstração, ao que julgo saber, não foi feita ainda em apoio do argumento invocado, nem muito menos foi referido o facto verdadeiro de naqueles países se estar a reagir fortemente contra o princípio da livre propriedade, que se deseja ver evoluir para um regime idêntico ao praticado em todos os países da Europa livre, excepção feita à Inglaterra. E de resto, cópia por cópia figurino por figurino, por que estranha e decisiva razão haveríamos de seguir nesta matéria os Anglo-Saxões e não os Latinos, que também somos? Claro que o problema não é de cópia, mas de escolha do regime mais racional, mais apropriado à defesa dos altos interesses que estão em jogo.
Há-de ainda caminhar-se resolutamente para a tese da não-indivisibilidade só porque a Constituição garante a «livre propriedade» e a «liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho, indústria ou comércio»? O argumento da «livre propriedade» só poderia impressionar se esse princípio constitucional estivesse formulado em termos absolutos Mas não está, como todos sabemos, e é até um dos que a própria Constituição sujeita a mais amplas limitações, por razões de interesse público e pela consideração de que os direitos privados deverão sacrificar-se ao bem comum, sempre que este o exija. Ora, se a saúde pública é um bem comum, como gregos e troianos reconhecem, nada impede e antes se impõe que o Estado promova e faça executar toda uma série de medidas tendentes a assegurar a plenitude e integridade desse bem comum. E na prossecução de tão imperativa como indispensável tarefa, poderá o Estado, adentro dos princípios que vier a perfilhar na matéria, socorrer-se de normas constitucionais de excepção que lhe permitam restringir ou reservar a propriedade da farmácia a uma certa categoria de entidades ou pessoas.
E quanto à liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho, apenas se dirá que ela não sofre qualquer limitação no regime da indivisibilidade da gerência técnica e da propriedade para farmacêutico, tal como para advogado, médico ou engenheiro, continuará a ir quem quiser, com a condição legal, porém, de completar o curso e assim conquistar o direito ao diploma que lhe permitirá exercer a respectiva profissão. Ou os proprietários de farmácia não farmacêuticos desejariam solução diferente para o seu caso?
Há-de, por outro lado, taxar-se de argumento válido, em favor da adopção da livre propriedade da farmácia em Portugal, a circunstância de haverem sido criadas, desde há largos anos, determinadas situações de facto que, tendo-se afirmado como único esteio económico e financeiro de muitos agregados familiares, acabaram por lhes impor certo modo de vida do qual só poderão retirar-se agora com penoso sacrifício?
Em primeiro lugar, não pode nem deve esquecer-se que tais situações configuram - excepção feita às que se estabeleceram anteriormente a 1933 - a concretização de actos que a lei proibia, por os considerar lesivos de um interesse público. Foram situações procuradas consciente e deliberadamente pelos interessados, com expressa infracção de normas em vigor, que eles muito bem conheciam pelo que tem de concluir-se que ao procederem deste modo, aceitaram desde logo conformar-se com as inevitáveis consequências do ilícito praticado. Que espécie de consideração pode então merecer quem assim se comportou? E que protecção há-de a lei dar a um facto que em si mesmo representa a consumação de uma fraude a essa própria lei?
Pois apesar de tudo, e por estranho que pareça, a sanção dessas ilegalidades foi defendida pela Câmara Corporativa, em termos o mais latos possível, e está preconizada na proposta de lei em discussão com uma latitude e uma benevolência tal que, por excessiva, bem parece difícil de justificar e aceitar
Em segundo lugar, o sacrifício que haja de impor-se às viúvas e filhos dos farmacêuticos falecidos, no sentido de lhes negar o direito de continuarem na posse da farmácia, a não ser por mais um certo prazo, não é maior, e até parece ser menor, do que o sacrifício suportado, por exemplo, pelas viúvas e filhos de médicos e advogados que, por seu falecimento, deixam valiosos consultórios e escritórios, dotados uns com aparelhagem caríssima, sobretudo se se trata de médicos radiologistas, apetrechados outros com bibliotecas jurídicas completas, sempre de valor incalculável, consultórios e escritórios que, por hipótese - e na realidade quantos casos verdadeiros! -, constituíram durante a vida dos respectivos profissionais o seu - e, pois, da sua família - único instrumento de trabalho, única fonte de receita, única base económica estável do lar. E todavia, morto o médico, morto o advogado, nem a viúva, nem os herdeiros, pensam um instante sequer em continuar à testa dos consultórios ou escritórios, pois sabem que isso não lhes é consentido por lei.
Sabem-no, acatam-no, e limitam-se, ordeiramente, conformadamente, a desfazer-se deles, logo que possível sem que a lei contemple o caso - tal como agora está proposto, e muito bem, em relação à venda ou cedência das farmácias - com quaisquer medidas tendentes a assegurar a defesa dos interesses particulares em jogo.

O Sr. Proença Duarte: - V. Exa. dá-me licença para um pequeno aparte?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Proença Duarte: - A situação que V. Ex. a apontou, do médico e do advogado que, tendo investido no seu escritório vultosos capitais, têm de se desfazer deles, não envolve que eles sofram a restrição do direito de propriedade.

O Orador: - Sofrem, porque a lei lhes impõe.

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O Sr. Proença Duarte: - Não podem continuar, mas não são obrigados a desfazer-se.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: -Também é farmacêutico.

O Sr. Proença Duarte: - O diálogo é comigo e com o orador.

O Orador: - O farmacêutico também não é obrigado a desfazer-se.

O Sr. Proença Duarte: - Ai isso é que é, porque o alvará pode caducar.
Não há dúvida nenhuma de que o artigo 8.º, n.º 15.º, da Constituição consagra um direito originário, o direito de propriedade. Ora eu ainda não vi construir aqui uma teoria que justifique neste caso a restrição. É um direito originário, constando do direito à propriedade e do direito à transmissão pela morte.
Através desta proposta de lei, e neste caso, pretende-se fazer uma restrição a este direito de propriedade. Ora, como é que V. Exa. justifica que em matéria de tal importância, tratando-se de um direito originário se hajam de pôr limitações a esse direito de propriedade?

O Orador: - É tão legítimo o direito de propriedade da farmácia como o direito de propriedade de um consultório. Por que razão há-de a solução ser diferente num caso e noutros?

O Sr. Proença Duarte: - Uma coisa é o exercício da profissão e a direcção técnica, outra coisa é o de propriedade da farmácia.

O Orador: - Mas confundem-se na tese da indivisibilidade.

O Sr. Proença Duarte: - V. Exa. então pressupõe que a tese da indivisibilidade é que é a verdadeira Quod erat demonstrandum, isso é que eu queria que V. Exa. me demonstrasse. É que senão estamos num circulo vicioso.

O Orador: - É possível que sim. Cada um tem a sua opinião sobre o assunto.

O Sr. Proença Duarte: - Eu não estou a fazer um discurso de oposição a V. Exa, estou apenas a pedir um esclarecimento. É para isso que sei vem os apartes, já que me habituei desde o princípio desta situação política a que o aparte funcione como um pedido de esclarecimento, e não como um contradiscurso.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - O Sr. Deputado Teles Galo dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr Gamboa de Vasconcelos: - Se bem ouvi, há bem pouco tempo V Exa. dizia no seu discurso que se é certo que a Constituição garante o direito origina de propriedade, também não é menos certo que ela sobrepor o interesse geral ao interesse particular. Parece que é esta a melhor resposta à objecção feita.

O Orador: - Muito obrigado por esse esclarecimento que veio muito a propósito. O
Sr. Deputado Proença Duarte talvez não tivesse ouvido bem o que eu disse anteriormente.
No caso que estamos a apreciar, a justificação advém precisamente do facto de o Estado considerar em certos casos como útil ao bem comum impor determinadas limitações ao direito de propriedade.

O Sr. Proença Duarte: - Admito essas limitações, mas queria que V. Exa. me fizesse a construção jurídica de que neste caso é indispensável essa limitação do direito de propriedade.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Parece que no caso em discussão está perfeitamente justificado.

O Sr Proença Duarte: - O artigo 8 º da Constituição diz

Constituem direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses

15.º O direito de propriedade e a sua transmissão em vida ou por morte nas condições determinadas pela lei civil.

Considero este direito um direito natural. Porque é que neste caso se justificam limitações a esse direito?

O Orador: - Pode sofrer limitações, em determinados casos.

O Sr Proença Duarte: - Quais são os casos? E porquê? E porque é que neste caso se justificam?

O Orador: - O Estado entende que há um bem comum a defender, que é a saúde pública.

O Sr Proença Duarte: - Nós é que somos o Estado.

O Orador: - Entendeu-se que a saúde pública ficaria bem defendida desde que a propriedade seja indivisível.

O Sr. Proença Duarte: - Estamos numa petição de princípio.

O Orador: - Se V. Exa. quiser ter a bondade de ouvir mais um pouco, verá que adiante eu vou, precisamente, invocar razões que, penso eu, levam à conclusão de que as farmácias devem ficar indivisíveis.

O Sr. Proença Duarte: - Tenho muito prazer em ouvir as razões de V. Exa.

O Orador: - Há-de finalmente aceitar-se como argumento bom, em favor da tese da não-indivisibilidade, o de que não haveria necessidade de recorrer, em regime de livre propriedade da farmácia, e tal como a experiência de 30 anos tem demonstrado, à prática sistemática de actos simulados, com indesejável desrespeito pela lei e uma perniciosa aviltação da consciência?
A esta pergunta, ofereço como resposta condigna a que foi dada pelo eminente Prof. Doutor Braga da Cruz (in «Propriedade da Farmácia - Estudo Crítico sobre Um Parecer da Câmara Corporativa», p. 11).

[É um] argumento cuja consistência jurídica não merece sequer ser assinalada, tão evidente ela ressalta da sua simples formulação, e que, levado às últimas consequências, foiçaria a advogar a destruição da própria ordem moral e jurídica, como maneira prática de acabar com toda a sorte de simulações, de contra-

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vencões e de crimes, transformados, como por encanto, era actos lícitos, porque já nem reprovados nem punidos por qualquer norma de moral ou direito.

Depois disto que fica a restar da argumentação trazida à liça pelos adversários da indivisibilidade?
Nada, a não ser talvez o também já estafado argumento de que a industrialização dos produtos farmacêuticos atingiu hoje um tal grau de desenvolvimento que apenas em 5 ou 6 por cento dos casos a receita não ficará totalmente aviada pela entrega ao cliente de um ou mais produtos especializados, e para ser intermediário de tão comezinho acto de comércio não é necessário possuir um curso superior com uma breve prática de alguns meses, quiçá de semanas, o proprietário não farmacêutico ficará apto a vender ao público todas as especialidades existentes no seu estabelecimento!
Na verdade, a venda de um medicamento não passa de mero acto comercial para o proprietário não farmacêutico Para ele, de facto - e é claro que ressalvo aqui todas as honrosíssimas excepções existentes - , a única condição da entrega ao comprador da especialidade solicitada, quer por receita médica, quer verbalmente, está na conferência do nome do produto estampado na respectiva embalagem, e pouco mais. E ele pode fazer isso dezenas de vezes por dia, regularmente, mecanicamente, sem falhas Até que surge o «caso», e com ele a dúvida, por falta de conhecimentos técnicos, com ele a perplexidade, por falta de competência e consciencialização profissional e com ele, as mais das vezes, e pelas razões apontadas, uma solução errada, perigosa ou até moralmente censurável.
Não assim para o proprietário farmacêutico, como é evidente.
Como técnico diplomado por um estabelecimento de ensino superior, sentindo o peso da sua responsabilidade profissional e a grilheta sagrada do seu escrúpulo deontológico, familiarizado com toda a nomenclatura química, conhecedor profundo de posologia, indicações e contra-indicações terapêuticas, perito em tóxicos, antigenésicos, estupefacientes, abortivos, tranquilizantes e outros produtos cuja venda está regulamentada, o farmacêutico, à frente da sua oficina de farmácia, tem, necessàriamente, uma alta missão a desempenhar, muito diferente da de simples intermediário na venda dos medicamentos.
Com a sua formação cientifica, com a noção da sua responsabilidade, com o pensamento posto nos deveres da deontologia, ele, e só ele, está em condições óptimas de poder aconselhar, esclarecer, responder a dúvidas, recusar a entrega de determinados produtos sem prévia indicação clínica, e até negar o aviamento da própria receita médica quando constate haver nela erro ou omissão que torne a sua execução perigosa.
Bem diferente, na verdade! Tão diferente quão evidente é a impossibilidade da sua substituição por outrem não farmacêutico!
E quanto aos famigerados 5 ou 6 por cento de produtos que devem ser manipulados, e em cuja composição entram muitas vezes aqueles tóxicos, e estupefacientes, e tranquilizantes, etc, acaso essa percentagem, aparentemente diminuta, poderá fazer esquecer o perigo sempre iminente a que a saúde pública está sujeita?
Esse perigo não existiria mesmo que tal percentagem baixasse para 1 por cento? Não continuaria a existir sempre, mesmo com a eliminação completa dessa percentagem?
E tão óbvia a resposta que não nos deteremos mais sobre esse ponto.
Não resta, pois, mais nada da argumentação produzida em favor da tese da livre propriedade da farmácia.
Mas nunca será de mais repetir que sobre o aspecto primordial do problema em debate - a saúde pública - os defensores dessa tese não invocam, nunca invocaram, uma única razão válida demonstrativa de que o regime por eles preconizado é o mais aconselhável, o mais eficiente para a defesa daquele bem comum.
Remetem-se, sim, à afirmação cómoda e fácil de que a solução do caso estará na obrigatoriedade de uma «gerência técnica, pessoal e efectivamente exercida por farmacêutico» e sempre garantida por uma fiscalização rigorosa e implacável Deste modo ficará salvaguardado o aspecto sanitário da actividade farmacêutica e, portanto, defendido o interesse público.
Simplesmente, uma tal solução nunca poderia conduzir a resultados satisfatórios, quando considerados adentro do regime da livre propriedade.
E não porque, na imensa maioria dos casos, essa pretendida gerência dissociada da propriedade da farmácia seria - como já o é hoje - puramente nominal, e a pretendida fiscalização, rigorosa, actuante, implacável, seria uma deliciosa utopia, de nulos resultados práticos.
O impor a obrigatoriedade da gerência técnica no domínio da livre propriedade, a ser exercida pessoal e efectivamente por um farmacêutico, só terá real significado quando essa obrigatoriedade se refira a uma permanente e efectiva presença do farmacêutico-gerente na farmácia, e uma tal exigência implicará, por força, que o gerente técnico se conserve na farmácia todos os dias, desde a abertura ao encerramento, fora as noites de turno o os domingos por escala. Não poderá fazer mais nada, não poderá pensar em qualquer outra actividade lucrativa, não lhe restará tempo senão para ser, real e verdadeiramente, um gerente técnico.

O Sr. Burity da Silva: - V. Exa. dá-me licença? V. Exa. acha, pelo facto de o proprietário de uma farmácia ser o farmacêutico, que não se desviará de lá, estará sempre presente?

O Orador: - É assim que nós desejamos que seja.

O Sr. Sales Loureiro: - Mas para isso é necessária uma regulamentação.

O Orador: - É o que a lei em discussão pretende.

O Sr. Gamboa de Vasconcelos: - Acerca do mesmo assunto, como médico, posso informar que muitas farmácias de Lisboa têm à sua frente um farmacêutico, com permanência, e que na grande maioria das da província, pelo menos onde o princípio da indivisibilidade se verifica, o proprietário da farmácia está sempre à frente do seu estabelecimento.

O Orador: - Mas, chegado aqui, urge perguntar uma tal soma e qualidade de trabalho especializado como terá de ser remunerada? Com os irrisórios e quase ultrajantes 500$, 700$, o máximo 1000$, com que os proprietários não farmacêuticos vêm pagando o empréstimo do nome e do diploma do farmacêutico? Decerto que não, como todos, esses proprietários não farmacêuticos inclusive, hão-de concordar.

O Sr. Proença Duarte: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

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O Sr Proença Duarte: - E há farmacêuticos diplomados com um curso superior que aceitam essa remuneração?

O Orador: -Infelizmente é verdade, o que é de lamentar

O Sr Proença Duarte: - Essa remuneração não pode dizer muito mais

O Orador: - A remuneração é aceita porque não há qualquer apoio em favor de uma solução diferente- que é aquela que estamos aqui a pretender defender.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: -A remuneração da gerência técnica efectiva e permanente teria de ser feita na base de alguns milhares de escudos, talvez 5 ou 6, pois assim o exigiriam naturalmente os respectivos titulares e só assim seria justa e digna para eles, atendendo à sua qualidade de diplomados com um curso superior.
Ora, sabendo-se que, com excepção de uma ou outra grande farmácia dos grandes centros urbanos, todas as outras não dispõem de arcaboiço económico bastante para suportar o pagamento daquela justa remuneração, segue-se que, de duas uma ou o proprietário não farmacêutico, num esforço desesperado para salvar o seu negócio, acabaria por descobrir o truque, o expediente, a artimanha idónea para flanquear a lei, conseguindo, por influências várias, que o gerente técnico continuasse a ser o mesmo simples verbo de encher e o mesmo simples emprestador do nome e do diploma, ou esse esforço não resultaria por qualquer motivo, e ao nosso proprietário não farmacêutico restaria só a alternativa de passar a patacos o seu estabelecimento para quem de direito, cavando assim, possível e irremediavelmente, a sua própria ruína!
Por serem ambos péssimos como solução do problema posto, os termos desta disjunção terão de afastar-se, por igual. E assim rui pela base todo o sistema em apreciação, pelo que não interessa sequer analisar outros aspectos, ou facetas que directamente lhe respeitam, e que do mesmo modo levariam à ilação achada atrás.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E eis como, quase sem dar por isso, nos viemos a encontrar frente a frente, e a sós, com todos os argumentos e razões em prol da tese da indivisibilidade da gerência técnica e da propriedade da farmácia!
Procurámos até aqui demonstrar, em termos muito sucintos - e nem outros seriam consentidos pela índole desta intervenção -, a inanidade da argumentação contrária àquela tese.
E valerá agora a pena desfibrar, um a um, e em puro labor de justa exaltação e valorização, todos os ponderosos motivos que alicerçam, solidamente, o majestoso edifício da co-titularidade da gerência e da propriedade farmacêutica?
Vou pela afirmativa É que, se os vários aspectos do problema em debate são decerto conhecidos, melhor ou pior, por todos quantos lhe têm dedicado a sua atenção, todavia, no momento em que tal debate atinge o ponto culminante, ao ser trazido à mais alta assembleia da Nação, parece só haver vantagem na proclamação de todos os pontos básicos em que se apoia a tese da indivisibilidade, até porque só dessa forma o grande público que é também, e sempre, um dos juizes na causa - poderá melhor aquilatar das razões que a uns e outros assistem e melhor formar opinião sobre os méritos ou deméritos da solução que vier a ser consagrada na lei.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - Esses pontos, argumentos ou motivos, constam, exuberantemente, de muitos trabalhos, de que devo realçar, pelo brilhantismo que revestem, os da autoria dos insignes Profs Doutores Correia da Silva e Albano Pereira, do Dr Mourato Vermelho e do capitão-tenente Carlos Silveira, e ainda, num plano à parte, do colendo professor da Faculdade de Direito de Coimbra, Doutor Guilherme Braga da Cruz Neste capítulo não podem deixai também de referir-se e destacar-se as declarações do então ilustre Ministro de Saúde Dr Martins de Carvalho à Revista Portuguesa de Farmácia.
Confesso, porém, que de todos foi o estudo daquele eminente mestre de Direito que mais me impressionou, pela sua meridiana clareza, pela sua assombrosa facilidade em nos conduzir, sem esforço aparente, através dos raciocínios mais complexos, pelo dominante poder da sua lógica implacável, tudo atributos de eleição, só próprios de um espírito superior.
Pois decido aqui prestar a minha modestíssima homenagem a esse príncipe da inteligência transcrevendo, em remate condigno das considerações atrás feitas sobre o regime da propriedade da farmácia, o fundamental do seu pensamento quanto às razões determinantes da preferência a dar à tese da indivisibilidade em detrimento da tese da livre propriedade, pensamento que consubstancia e resume afinal, com brilho inexcedível, tudo quanto sobre o assunto tem sido escrito e afirmado

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - «É fácil de ver que o regime de propriedade e gerência técnica dissociadas peca por não salvaguardar suficientemente os diferentes aspectos do interesse público em causa na actividade farmacêutica, a contrastar com o regime da indivisibilidade, onde todos esses aspectos do interesse público ficam salvaguardados de uma forma simples, natural e inteiramente eficiente». Assim, e pela adopção do dito regime da indivisibilidade, resultará que
a) Fica salvaguardada «a plena liberdade e independência do farmacêutico no exercício da sua actividade profissional, condição basilar -logo após a da presença efectiva do farmacêutico na oficina de que é gerente técnico- para que fiquem suficientemente cobertos os riscos de ordem sanitária e de ordem moral implícitos na venda de medicamentos»,
b) Fica salvaguardado «um outro importante aspecto do interesse público que está em causa na actividade farmacêutica» e que é o da «plena consciencialização do farmacêutico no tocante às suas responsabilidades profissionais» ,
c) Fica salvaguardada ainda -e justamente pelo que acaba de dizer-se - «a plena responsabilização civil e criminal do farmacêutico pelos actos praticados no exercício da sua profissão, plena responsabilização que o público tem o direito de exigir e que o Estado tem obrigação de promover, porque assim lho impõe o preceituado nos n.ºs 1.º e 4 º do artigo 6.º da Constituição Política»,
d) Fica também salvaguardado «o prestígio social do farmacêutico, o que é de interesse fundamental, sobretudo nos meios pequenos, em que o farmacêutico desem-

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penha ainda, e felizmente, uma função paternal de guia, de conselheiro e de amigo da gente humilde» Mas só como dono e senhor da farmácia, e não sorno «simples assalariado de um comerciante de remédios de quem recebe ordens e é obrigado a obedecer», «é que o farmacêutico conseguirá socialmente impor-se e acreditar-se no meio, conquistando a confiança do público e desempenhando junto deste a importantíssima missão social que lhe compete»,
e) Fica igualmente salvaguardada «aquela faceta do interesse público que consiste em favorecer a moderna tendência para a individualização da farmácia» «De facto, a prática farmacêutica não pode individualizar-se sem um constante aperfeiçoamento técnico da oficina da farmácia como tal, com progressivos melhoramentos do seu dispositivo funcional, com aquisição de novos aparelhos adaptados às novas técnicas de preparação de medicamentos, com substituição da aparelhagem antiquada ou cansada pelo uso, com aquisição de stocks de matérias primas medicamentosas com que o farmacêutico esteja habilitado a aviar o receituário médico, etc. E é manifesto que tudo isso tem de ter um cunho de orientação pessoal do farmacêutico, que não se compadece com a sua subordinação aos interesses puramente comercialísticos do proprietário»

O Sr Burity da Silva: - V Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz favor

O Sr Burity da Silva: - O que pensa V Exa. sobre a livre propriedade da farmácia nos países que adoptam esse regime em face das considerações que acaba de fazer?

O Orador: -Ainda não acabei as minhas considerações, no entanto penso muito simplesmente o seguinte nesses países onde está a ser seguido esse regime está a registar-se uma fortíssima reacção para enveredar pelo caminho da indivisibilidade da propriedade da farmácia

O Sr Burity da Silva: - V Exa. pressupõe

O Orador: - Não pressuponho, é assim mesmo
f) Fica da mesma forma salvaguardada a «moderna tendência para a transformação das oficinas de farmácia em estabelecimentos polivalentes, pela adjunção a elas de laboratórios de análises clínicas e outras», podendo repetir-se aqui as considerações feitas na alínea anterior, com a agravante de, no caso desta alínea, os «investimentos serem de muito maior vulto e o cunho pessoal dado pelo farmacêutico à organização do laboratório muito mais acentuado»,
g) Fica, outrossim, salvaguardada «aquela outra faceta do interesse público que consiste em criar um clima de verdadeiro interesse pela profissão de farmacêutico, dando à profissão razoáveis perspectivas económicas que constituam um atractivo pelo curso de Farmácia, em termos de este universitariamente se valorizar e poder preparar um corpo de farmacêuticos que, em número e em série, esteja à altura das exigências do País. A dissociação entre a propriedade e a gerência técnica não só salvaguarda este aspecto basilar do interesse público em causa na actividade farmacêutica, como é, em sentido contrário, o mais eficaz convite a um crescente abandono da profissão de farmacêutico e um crescente desinteresse pelo curso de Farmácia»,
h) Fica de modo igual salvaguardado «um outro aspecto importantíssimo - talvez o mais delicado, porque arrasta consigo quase todos os outros já enumerados - do interesse público aqui em jogo, que é o de impedir a formação de trusts farmacêuticos, com todos os riscos que daí advêm para a economia nacional e para a saúde pública» Em regime de livre propriedade o risco da formação de trusts não é sequer afastado com a proibição de se poder ser proprietário de mais de uma farmácia, se porventura se consente que nas sociedades proprietárias de farmácia participem sócios não farmacêuticos,
i) De maneira semelhante fica salvaguardado «o risco da manutenção de farmácias abertas ao público por conta directa das empresas industriais de produtos farmacêuticos», pois, sendo elas impedidas de participar em sociedades exploradoras de oficinas de farmácia, em posição maioritária ou minoritária - pouco interessa -, já não surgirá o problema de «o sócio ou sócios farmacêuticos responsáveis pela gerência técnica da farmácia - e até em posição social maioritária responsáveis pela gerência económica da sociedade - terem a preocupação de fugir - se é que pudessem consegui-lo - à tendência de venderem só ou de insinuai em à clientela a preferência, entre os produtos similares, das especialidades farmacêuticas produzidas pelo laboratório que faz parte da mesma sociedade de venda ao público que eles», nem a preocupação de se furtar - se é que igualmente o pudessem conseguir - «a pressões dos médicos, maioritária ou minoritàriamente, participantes na mesma sociedade e nos respectivos lucros»,
j) E fica salvaguardado, finalmente, «o risco de os médicos e os outros profissionais da arte de curar, directa ou indirectamente, manterem interesses económicos na exploração de oficinas farmacêuticas», riscos que toda a gente sente e compreende e que a nossa legislação farmacêutica sempre procurou afastar pela declaração da incompatibilidade entre as chamadas «artes de curar» e a actividade farmacêutica. A inegável interdependência existente entre umas e outra aconselha efectivamente uma total dissociação dos respectivos interesses, única forma de garantir a moralidade profissional, a isenção e eficiência da medicação e a seriedade e honestidade indispensáveis no aviamento do receituário
E eis-me chegado ao fim.
Com tantos e tão valorosos e decisivos argumentos e lazões em prol do regime da indivisibilidade, eu próprio, se tivesse começado como defensor da livre propriedade com gerência técnica assalariada, estaria agora completamente rendido! Ainda bem que anunciei a posição tomada logo de princípio
Por isso, e com a mesma isenção e independência com que sempre me tenho apresentado nesta Alta Câmara desde há quatro anos, dou o meu voto, na generalidade, à, proposta governamental da lei sobre a propriedade da farmácia, com as respectivas alterações nela posteriormente introduzidas.
Reservar-me-ei, no entanto, para durante a discussão na especialidade justificar a minha discordância com certos aspectos de pormenor contidos numa ou noutra base, alguns deles de importância bem real, dada a sua implicação possível com sectores da vida nacional onde o problema do regime da propriedade da farmácia parece dever ser encarado sob prisma diferente daquele por que o foi na proposta em apreciação.
Quero referir-me em especial, como no começo referi à excepção ao princípio da indivisibilidade, preconizada no n º 3 da base II, para as instituições de previdência

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social no mesmo pé de igualdade com as Misericórdias e outras instituições de assistência.
Não se vê, efectivamente, que haja uma real necessidade de alargar o âmbito da aludida excepção as instituições de previdência, e antes se afigura que do facto poderão resultar dois graves riscos, pelo menos o risco de vir a ser violada a garantia oferecida pelo princípio da indivisibilidade no sentido de impedir a formação trusts farmacêuticos - neste caso pela organização uma escala nacional, de uma complexa rede de farmácias da previdência- e o risco, mais evidente ainda do conflito aberto que por força eclodiria entre a farmácia da previdência e a farmácia particular, e de que esta- fácil é antevê-lo- soma totalmente derrotada, esmagada!
E não é isto, positivamente, que se pretenderá conseguir com a nova lei a promulgar.
Se o escopo que parece ter iluminado a proposta governamental foi o de «impedir eficazmente a criação de novos casos contra a lei», tal como se lê no relatório que antecede o texto primitivo, de que forma há-de enquadrar-se nesse louvável propósito a lata excepção preconizada na mencionada base?
De resto, deve notar-se que no texto primitivo da posta do Governo não se incluíram, na dita base, as instituições de previdência. Elas surgiram depois, talvez por influência do parecer da Câmara Corporativa, de que discordo plenamente neste ponto, pelo menos.
De notar é, finalmente, que o problema agora em causa
- subtracção ou não das farmácias da previdência ao regime de excepção em referência - pode conduzir em linha recta ao problema muitíssimo mais sério da socialização da farmácia.
Ora, segundo julgo saber, não há de momento hipótese de que um tal destino da, até hoje, privada e livre farmácia portuguesa possa vir a ser encarado como possível adentro das instituições políticas vigentes e, consequentemente, possa vir a ser objecto de apreciação e discussão por esta Assembleia.
E, para evitar dúvidas, melhor seria, realmente, que o texto primitivo do n º 3 da base II retomasse de pleno o seu lugar na proposta que viesse a ser aprovada.

O Sr Gamboa de Vasconcelos:- V Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz o obséquio.

O Sr Gamboa de Vasconcelos: - Era apenas para dizer que penso que o receio manifestado por V. Exa. de vir a dar-se uma socialização por virtude de se tornar extensiva aos órgãos da previdência a possibilidade de abrirem farmácias ou postos está, pela proposta do Governo, salvaguardada no artigo que diz «quando haja farmacêuticos particulares».

O Orador: - Quanto aos órgãos da previdência creio que não, mas isso é assunto para discutirmos quando entrarmos na discussão na especialidade.

O Sr Gamboa de Vasconcelos:- Muito bem!

O Orador: - Quando se invocaram tantos argumentos em acérrima defesa do prestígio, da dignidade e da valorização da farmácia portuguesa e se previu que isso fosse alcançado através de toda uma complexa actividade a ser desenvolvida e prestada por profissionais diplomados com um curso superior, livres, independentes e plenamente responsabilizados, e quando, por fim, se vê proclamar corajosamente o princípio da indivisibilidade da propriedade da farmácia e da gerência técnica, eis que os nossos espíritos titubeiam, numa embaraçosa perplexidade, ao descobrir que a par daquela proclamação, lado a lado, e bem escancarada, fora também a porta por onde o adversário entraria facilmente, levando consigo toda a bagagem, todo o ferramental, todo o equipamento e todas as armas com que, num futuro mais ou menos próximo, destruiria o edifício laboriosamente levantado pela proposta de lei em discussão!
Remédio simples para o mal? Fechar a tal portal! Essa e todas as outras que também foram abertas, com o mesmo perigo, na base XII.
Nesse sentido votarei na especialidade.
Tenho dito.

Vozes:- Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado

O Sr. Presidente:- Vou encerrar a sessão. O debate continuará amanhã à hora regimental sobre a mesma ordem do dia.
Está encerrada a sessão.

Eram 20 horas

Srs Deputados que entraram durante a sessão:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alberto da Bocha Cardoso de Matos.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
Antão Santos da Cunha.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Burity da Silva.
António Calheiros Lopes.
António Júlio de Carvalho Antunes de Lemos.
António Moreira Longo.
Armando Francisco Coelho Sampaio.
Armando José Perdigão.
Carlos Coelho.
Francisco Lopes Vasques.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Joaquim de Sousa Birne.
Jorge Augusto Correia.
José Dias de Araújo Correia.
José de Mira Nunes Mexia.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.

Srs Deputados que faltaram à sessão:

Alberto dos Beis Faria.
Alfredo Mana de Mesquita Guimarães Brito.
António Gonçalves de Faria.
António Mana Santos da Cunha.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Tomás Prisónio Furtado.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Belchior Cardoso da Costa.

Página 4396

4396 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 180

Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando António da Veiga Frade.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Pinheiro da Silva.
Manuel João Correia.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Rogério Vargas Moniz.
Urgel Abílio Horta.
Vítor Manuel Dias Barros.
Voicunta Srinivassa Sinai Dempó.

O REDACTOR - António Manuel Pereira.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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