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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES

SUPLEMENTO AO N.º 139

ANO DE 1968 23 DE FEVEREIRO

CÂMARA CORPORATIVA

IX LEGISLATURA

PARECER N.º 12/IX

Projecto de lei n.° 3/IX

Alteração da base XXI da Lei n.° 2114, de 15 de Junho de 1962

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.ª da Constituição, acerca do projecto de lei u.° 3/IX, sobre a alteração da base XXI da Lei n.° 2114, de 15 de Junho de 1962, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecção de Justiça), à qual foram agregados os Dignos Procuradores Aníbal Barata Amaral de Morais, Fernando Andrade Pires de Lima, João Carlos de Sá Alves, Joaquim Trigo de Negreiros, José Marques, Luís Quartin Graça e Manuel de Almeida de Azevedo e Vasconcelos, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto de proposta de lei n.° 507, sobre os contratos de arrendamento da propriedade rústica, enviado a esta Câmara em 1961, continha a seguinte base (XXII):

1. As divergências que surjam entre o senhorio e o arrendatário serão decididas por uma comissão arbitrai do arrendamento rústico, constituída, em cada concelho, por um representante da Junta de Colonização Interna, que presidirá, e por dois proprietários e dois arrendatários designados pelo Conselho Regional da Agricultura.

2. Compete, ainda, à comissão arbitrai do arrendamento rústico:

a) Fixar o montante dos prejuízos provocados nos prédios e coisas acessórias pela acção ou negligência do arrendatário;

b) Decidir, quando necessário, sobre as benfeitorias a efectuar pelo senhorio ou pelo arrendatário;

c) Fixar o montante das indemnizações, nos casos em que forem devidas;

d) Fixar a nova renda, nos casos em que seja pedida a revisão;

e) Decidir sobre os prejuízos referidos na base V 1.

3. A comissão decide exclusivamente questões de facto, sendo nulas e de nenhum efeito todas as deliberações que envolvam matéria de direito.

4. Os tribunais poderão conhecer das questões de facto referidas no n.° 2 desta base se a comissão não deliberar no prazo de 90 dias, a contar da data da

1 Para efeitos de redução da renda.

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entrada da petição na Junta de Colonização Interna, organismo que promoverá a convocação da respectiva comissão arbitrai do arrendamento rústico.

5. A comissão funcionará no grémio da lavoura ou numa das Casas do Povo do concelho, conforme por ela for resolvido, ou, na sua falta, na câmara municipal, sendo o respectivo expediente assegurado pelas mesmas entidades.

A criação de comissões arbitrais para julgamento fias divergências suscitadas entre o senhorio e o arrendatário, embora de competência limitada as questões de facto, não mereceu n aprovação desta Câmara. No seu parecer n.º 41/VII, de 6 de Abril de 1961 2, foram particularmente postas em relevo duas circunstâncias que se consideraram, só por si, decisivas do seu voto: a dificuldade em distinguir a maioria de facto da matéria de direito e a inconveniência em deixar nas mãos de juizes não togados, sem cultura jurídica, o julgamento das questões entre senhorios e arrendatários.

Chamou esta Câmara a atenção para a triste experiência que o Pais viveu com a criação, em 1931, de comissões arbitrais para resolver as divergências entre senhorios e arrendatários, quanto aos arrendamentos de prédios rústicos anteriores a 1930 (artigo 4.° do Decreto n.º 20 188, de 8 de Agosto), constituídas por três vogais, sendo um, o presidente, nomeado pelo governador civil, nas sedes de distrito, e pelo administrador do concelho, nesta circunscrição, sendo os outros escolhidos um por cada parte, devendo um engenheiro agrónomo ser escolhido para presidente, sempre que isso fosse possível.

Apontou também esta Câmara as severas críticas feitas a este diploma e aos seus maus resultados. Citou Júlio Augusto Martins, que, na Gazeta da Relação de Lisboa 2, depois de referir de forma quase, jocosa como funcionavam os tribunais arbitrais, escreveu estas palavras:

Raríssimos casos conheço em que. ou rendeiros ou senhorios, tenham recorrido no Decreto n. 20 188; e caso nenhum conheço em que as comissões nele instituídas hajam dado final sentença; no ano findo, em 1031, o que geralmente sucedia era convirem senhorios c rendeiros em que a renda ficava em 70 por cento do que se pactuara; no ano corrente, em que foram abundantes as colheitas, não tenho notícia de divergências sobre esse particular; e assim parece que o bom senso dos particulares e dos advogados pós de parte o decreto.

Mostrou ainda esta Câmara que na França(artigos 2.° e 3.º Ordennance de 4 de Dezembro de 1944) os tribunais paritiries são presididos, ou pelo juiz de paz, ou pelo presidente do tribunal civil. ou por uni dos juízes designados por esto: que na Itália (artigo 4.º da Lei n.° 1140, de 18 do Agosto de 1948) as secções especializadas para o julgamento de certas questões relativas nos arrendamentos rurais são constituídas por dois juízes jogados e por oito pontos nomeados pelo presidente; e que na Espanha (Artigo 51.º do Regulamento de 1959) a jurisdição para conhecer de todas as questões que surjam em matéria de arrendamentos rústicos pertenço, quando os valores não sujam superiores a 5000 pesetas, aos Juzgados Municipales y Comareales, e nos demais casos aos Juzgados da Primeira Instancia, com recurso para a Audiência Territorial competente.

A criação de tribunais especiais - escreveu-se, por último, no citado parecer desta Câmara (n.º 58) - não se impõe, dado, por um lado, o reduzido movimento judicial neste campo, e, por outro, a natural simplicidade das questões que normalmente são levadas à apreciação dos órgãos jurisdicionais do Estado. Mais razão haveria para a criação de tribunais especiais para o julgamento das questões de águas, muito mais complexas do que as relativas aos arrendamentos agrícolas.

A criação de comissões técnicas especializadas também se não justifica, acrescentou-se, não só pelas mesmas razões, mas ainda porque a sua intervenção iria demorar e complicar os julgamentos, quer na forma sumária, quer ordinária, dos respectivos processos.

Com base nestas e noutras considerações que constam do citado parecer, entendeu esta Câmara que apenas se devia considerar obrigatória para o tribunal a nomeação, como perito, de um engenheiro agrónomo ou silvicultor, conforme a natureza do arrendamento. Era esta a solução que mais se harmonizava com a doutrina do artigo 591.º do Código de Processo Civil.

A nova base proposta por esta Câmara- (XXI) encontrava-se, nesta orientação, assim redigida:

Nas questões entre senhorios o arrendatários, em que haja do proceder-se a exame ou vistoria, o juiz nomeará sempre para perito um engenheiro agrónomo ou silvicultor, conforme a natureza do arrendamento.

2. A& críticas desta Câmara parece terem sido aceites, em certa medida, pelo Governo, que apresentou a Assembleia Nacional a, seguinte proposta de alteração da base XXI:

1. As questões entre senhorios e arrendatários serão resolvidas por árbitros ou pelos tribunais comuns, nos lermos da lei de processo.

2. As partes podem dirigir-se à Junta de Colonização Interna, que indicará um ou mais árbitros, as quais julgarão ex- arquo et bono.

8. Se, correndo o processo nos tribunais comuns, houver o juiz de nomear qualquer perito, ou para arbitramento, ou nos termos do artigo 650.º do Código de Processo Civil, deverá esse perito ser escolhido entro os técnicos constantes de uma lista proposta pela Junta de Colonização Interna.

Esta proposta foi rejeitada, sem discussão, na sessão da Assembleia Nacional, de 27 de Fevereiro de 1962.

Parece, no entanto, a esta Câmara que ao sistema proposto pelo Governo, em substituição do anterior, nada haveria a opor. Continuariam os interessados, senhorios ou arrendatários, a poder recorrer, nos termos da lei de processo, aos tribunais comuns ou aos tribunais arbitrais. Como o recurso a estes últimos se tornava facultativo, desapareciam os principais inconvenientes do sistema primitivamente proposto.

Seria, porém, duvidosa a utilidade prática da nova proposta.

Apenas para dizer que a Junta de Colonização Interna devia indicar os árbitros, quando isso lhe fosse solicitado? Pareço que uma providencia dessa natureza teria melhor cabimento nos regulamentos da própria Junta.

Apenas para dizer que os árbitros indicados pela Junta de Colonização Interna julgariam ex arquo et bono? Esta solução estaria sempre na dependência da vontade das partes, como se preceitua no artigo l520.° do Código de Processo Civil.

2 Câmara Corporativa, Pareceres, VII Legislatura. vol. I. 1961, p.343.

3 O Decreto n.º 20 188. ano 46.2. p. 269.

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Apenas para dizer que a Junta deveria fornecer aos tribunais uma lista de árbitros? Parece que se trataria também de matéria regulamentar. Como tal foi, de resto, considerada pelo Governo, ao publicar o Decreto n.º 45 905, de 7 de Outubro de 1964.

Julga, pois, a Câmara Corporativa que a referida proposta do Governo não vinha acrescentar nada de substancial à sugestão feita por ela, em 1961.

3. Juntamente com a segunda proposta do Governo, foi apresentada à votação da Assembleia Nacional uma outra proposta, assinada por alguns Srs. Deputados, a qual foi aprovada, sem discussão, na mesma sessão em que foi rejeitada a do Governo. Foi essa proposta que se transformou na base XXI da Lei n.° 2114, com pequenas alterações de forma, indiferentes quanto ao conteúdo do texto.

Esta base encontra-se assim redigida:

As questões entre senhorios e arrendatários serão decididas, com recurso para o Tribunal da Relação competente, por uma comissão arbitral composta pelo juiz de direito da comarca, que presidirá, e representantes da Secretaria de Estado da Agricultura e da organização corporativa da lavoura.

Só em 7 de Setembro de 1964 (Decreto n.° 45 905) foi regulamentada esta base.

As comissões arbitrais passaram a ser constituídas pelo juiz de direito e por quatro árbitros, sendo dois designados pela Secretaria de Estado da Agricultura, sob proposta da Junta de Colonização Interna, e os restantes pela Corporação da Lavoura, sob proposta do grémio da lavoura da área da situação do prédio (artigo 2.°).

Os árbitros designados pela Secretaria de Estado da Agricultura são escolhidos de entre funcionários dos seus serviços que abranjam a área da competência territorial da comissão, devendo preferir-se na designação os engenheiros agrónomos e silvicultores (artigo 3.°, n.° 1). Dos dois árbitros designados pela Corporação da Lavoura, um será escolhido entre os senhorios e outro entre os arrendatários que se dediquem ao exercício da lavoura na área da competência territorial da comissão (artigo 4.°, n.º 1).

Com relevo especial dentro do sistema, encontra-se a necessidade da intervenção dos árbitros em todos os actos de instrução e nas decisões que ponham termo ao processo (artigo 7.°, n.° 3), devendo aqueles acompanhar até final e julgar a questão para que foram designados (artigo 5.°, n.° 2). Embora a preparação do processo compita ao juiz de direito, a comissão arbitrai deve apreciar os factos e aplicar o direito, como o faria o tribunal normalmente competente (artigo 7.°, n.° 2).

Apenas sob um aspecto, na opinião desta Câmara, se melhorou o sistema primitivamente proposto pelo Governo: o de se ter escolhido para presidente da comissão o juiz da comarca. A atribuição, porém, a essa comissão de competência para o julgamento da questão de direito não pode deixar de merecer os maiores reparos, e isso, sobretudo, explica que a base XXI não tivesse obtido boa aceitação por parte dos magistrados e advogados.

O Dr. Manuel de Oliveira Matos escreveu na Justiça Portuguesa 4:

A leitura do referido decreto evidencia que, não obstante o voto de qualidade conferido ao magistrado pelo n.° 4 do artigo 7.°, ficou reservado ao juiz de direito, nesta espécie de processos, função meramente sancionadora ou secundária. Servindo de relator, o magistrado judicial tem de reconhecer que é à comissão, em que ele tem apenas voto de qualidade, que cumpre apreciar os factos e aplicar o direito como faria o tribunal normalmente competente (o próprio juiz de direito), sendo-lhe vedado, portanto, julgar segundo a equidade, mesmo com autorização das partes [...] O problema mais melindroso surge, porém, do desconhecimento que normalmente se verifica entre os árbitros, dada a sua falta da formação jurídica, das competências que o direito positivo estatui para certas situações de facto estabelecidas pela prova e que estão ao alcance dos membros da comissão, tal como acontecia nos antigos júris. Os árbitros não podem decidir segundo as regras da equidade tendo de apreciar os factos e aplicar o direito como o faria o tribunal normalmente competente (n.° 2 do artigo 7.°). O juiz, por seu turno, só possui voto de qualidade, que necessariamente só poderá expressar quando se tenham formado duas correntes opostas de opinião. Consequentemente, se divergências não surgirem, o juiz poderá ter de relatar uma monstruosidade jurídica.

O Dr. José Gualberto de Sá Carneiro, para quem "mais avisado seria esse rumo (o da Câmara Corporativa) do que aquele que veio a ser adoptado na Assembleia Nacional" 5, escreve:

Por um lado, os pleitos que possam surgir a propósito de arrendamentos rurais não são de tal especialização que não possam ser resolvidos pêlos tribunais comuns, com a ajuda dos técnicos que intervenham em exames ou vistorias ou cujo parecer as partes ou o juiz solicitassem, nos termos do Código de Processo Civil. Na maioria dos casos, os problemas a resolver serão da maior simplicidade [...] Outros inconvenientes da instituição das comissões se nos antolham como evidentes. Complica-se a marcha do processo, sendo forçoso adiar os actos de produção de prova ou de julgamento quando faltar algum árbitro [. . .] . o processo é encarecido, pela necessidade de remunerar os árbitros. Em alguns concelhos haverá dificuldade em organizar a lista dos mesmos, no que toca aos arrendatários, pois, no Norte, eles suo, de um modo geral, incultos e alguns até analfabetos. Não se vê bem como pessoas nessas condições possam formar uma comissão arbitrai presidida por juiz togado.

Na própria Secretaria de Estado da Agricultura, que teve a iniciativa da proposta de criação das comissões arbitrais, se notou, logo após a publicação do Decreto n.° 45 905, algum descontentamento. Na verdade, em ofício dirigido pelo director-geral dos Serviços Agrícolas á Direcção-Geral da Justiça, aquela entidade aponta o inconveniente do chamamento constante de técnicos aos tribunais:

Há por aqui - escreve -, segundo parece, uma situação de facto a carecer de revisão superior, dado em casos dessa natureza convir aos serviços verificar a possibilidade da dispensa de comparência dos seus técnicos em tribunal [. . .] A circunstância de as deslocações, em dias e horas determinados, causarem perturbações no rendimento do trabalho dos serviços conduz a expor a V. Ex.ª Esta situação, a fim de

4 "Questões entre senhorios e arrendatários de prédios rústicos", ano 32.°, p. 49.

5 Revista dos Tribunais, ano 83.°, p. 296.

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promover o que julgar mais conveniente, possivelmente a de, em complemento do exposto no artigo 1.º do citado decreto, se dispensar a comparência dos árbitros para todas as «questões» que não envolvam apreciação técnica, nomeadamente a falta de pagamento de rendas.

Da informação prestada pelo director-geral da Justiça ao Ministro consta:

[. . .] embora não sejam legítimas dúvidas de que houve intenção de confiar aos técnicos da Setaria de Estado da Agricultura e aos representantes da Lavoura a própria aplicação do direito aos factos apurados, pode levantar-se, o problema d u justificação, utilidade prática e oportunidade de tão profundo desvio de princípios fundamentais do direito processual civil e da organização judiciária do País.

Com base nesta informação e na solicitação da Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas, foi ouvida a Procuradoria-Geral da República.

Esta, no seu parecer de 5 de Dezembro de 1966, apoiando as considerações feitas pela Câmara Corporativa, em 1961, e pelo Dr. José Gualberto de Sá Carneiro, na Revista dos Tribunais, entendeu:

[. . .] acabar com n comissão pareço a solução preferível [. . .] mesmo a dar-se o caso de não existirem os inconvenientes apontados, porque o interesso da boa solução de um pleito sobre arrendamento rural já deverá considerar-se suficientemente, protegido se nos exames ou vistorias intervieram engenheiros agrónomos ou silviculturas, tal como o propôs a Câmara Corporativa, ou se, em julgamento da matéria de facto, quando suscite dificuldades, o juiz for assistido por aqueles técnicos, não se vêem quaisquer razões, válidas paru privar a jurisdição comum do julgamento de questões que normalmente lhi>. estariam afectas.

E conclui o referido parecer:

Tal modificação (a da legislação vigente) podem operar-se quer num sentido mais radical, que se julga preferível, que conduza à extinção da comissão arbitral criada pela Lei n.° 2114, quer num sentido mais restrito, que, embora o mantenha, circunscreva a sua competência ao julgamento da matéria de facto.

O problema foi levado polo Ministro da Justiça à, comissão nomeada para examinar as propostas de alteração ao Código de Processo Civil. Aí foi votada sem qualquer discordância, a revogação da base XXI da Lei n.° 2114, acrescentando-se ao Código de Processo Civil o seguinte número:

Nas questões relativas a arrendamentos rurais o perito do juiz será, conforme a natureza de arrendamento, um engenheiro agrónomo ou um engenheiro silvicultor dos serviços agrícolas.

Entendeu a comissão que esta modificação era suficiente para se dever considerar revogada aquela base. Não foi feita, porém, a alteração aprovada, apenas porque a urgência da publicação do diploma não permitiu que se obtivesse a tempo a concordância da Secretaria de Estado da Agricultura, a qual não chegou, de resto, a ser ouvida B.

4. O projecto agora apresentado à Assembleia Nacional não merece, como os antecedentes, a aprovação da Câmara Corporativa.

Há, no entanto, dois aspectos a assinalar em que a nova solução se valoriza em relação ao direito vigente: o de a comissão ser convocada pelo juiz somente quando o processo estiver preparado para julgamento e a de lhe competir apenas a apreciação da matéria de facto de índole essencialmente agrícola.

Ficariam, assim, resolvidas várias questões que se têm levantado, como a da intervenção ou não intervenção da comissão na hipótese do o réu não contestar, ou as relativas à confissão, desistência na transacção.

Também parece, dada a redacção da parte final do artigo 1.° do projecto, que o conhecimento do pedido no despacho senador, nos termos da alínea c) do n.º l do artigo 510.° do Código de Processo Civil - se a questão de mérito for Cinicamente de direito e puder ser já decidida com a necessária segurança, ou se, sendo a questão de direito e de facto, ou só de facto, o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa -, passaria a pertencer exclusivamente ao juiz da causa. Os árbitros não teriam, na verdade, de ser convocados senão para o julgamento final. A ideia de um acórdão senador que a lei actual não repele, e antes parece admitir, ficaria naturalmente afastada.

Mas começa aqui a revelar-se uma certa insuficiência ou incongruência do sistema. A que título se justifica esta diversidade de regime? A diferença entre o caso de a acção se encontrar em condições de ser julgada no despacho senador e o de dever ser julgada na sentença final é puramente ocasional e de forma - conter ou não o processo todos os elementos para uma decisão conscienciosa na altura em que é proferido aquele despacho.

Esta incongruência de princípios nota-se também na circunstância de se exigir no projecto a intervenção da comissão arbitrai apenas nas «acções de despejo ou em quaisquer outras que redundem na cessação de um arrendamento rural». Estas serão porventura importantes, pelas suas consequências, mas esquecem-se outras em que a intervenção de técnicos não é menos importante para a administração da justiça.

É o que acontece, por exemplo, quanto ao pedido da indemnização devida ao arrendatário, nos termos da parte final no n.º 2 do artigo 1066.º do Código Civil, pelas providências tomadas pelo senhorio para assegurar a produtividade do prédio. É o que sucede também quanto ao pedido de redução equitativa da renda ou modificação do contrato, quando, por causas imprevisíveis ou fortuitas, como inundações, estiagens extraordinárias, ciclones, outros acidentes meteorológicos ou geológicos e pragas de natureza excepcional, o prédio não tenha produzido frutos ou os frutos pendentes se perderam em quantidade não inferior, no todo, a metade dos que produzia normalmente (cf. artigos 1069.° e 437.º do mesmo diploma). Revestem ainda a maior importância, sob este aspecto, as acções destinadas a obter a revisão da renda se, por virtude de nova lei ou de providências tomadas pela Administração ou por empresas concessionárias de serviço público, a relação contratual sofrer modificação considerável, de forma

6 Processo n.° 46/66, livro n.° 60, fl. 115. O parecer não se encontra publicado.

7 Constituída, sob a presidência do Ministro, pelos conselheiros José Osório, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e Lopes Cardoso, polo Dr. Campos Costa, ajudante do procurador-geral do República, e pelo relator deste parecer.

8 Informação verbal prestada no relator deste parecer polo Ministro da Justiça de então, Prof. Antunes Varela.

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que uma das partes seja favorecida e a outra prejudicada (cf. artigo 1070.°). Atenda-se, por último, ao pedido de suprimento judicial do consentimento do arrendatário ou do senhorio para se fazerem benfeitorias, e ao requisito da maior produtividade do prédio, exigido pelo n.° 3 do artigo 1072.° do mesmo Código, ou ao requisito de os melhoramentos serem de utilidade manifesta para o prédio ou para a produção, referido no n.° 4 do artigo 1074.° São de tal importância estas acções que no projecto de proposta de lei n.° 507, não obstante o n.° l da base XXII se referir a todas as divergências entre senhorios e arrendatários, o n.° 2, cautelosamente, lhe fez referência especial.

Alguma coisa há a dizer ainda quanto à limitação dos poderes da comissão à apreciação das questões de facto.

Procura regressar-se ao sistema do projecto de proposta do Governo n.° 507. Embora bem, no ponto de vista da Câmara Corporativa, pois se limita a competência da comissão, é de notar que se cria uma situação muito séria, desde que, segundo parece, é a própria comissão arbitrai, e não o juiz, quem faz a destrinça entre o que é matéria de facto e o que é matéria de direito. Já esta Câmara teve ocasião, no parecer acima referido, de chamar a atenção para o melindre desta solução. Os problemas que a comissão tem de enfrentar e resolver são dos mais complexos do Direito, pois se trata de definir a própria juridicidade 9. Citemos uma dificuldade ao acaso: a de saber «se a determinação do sentido juridicamente relevante das declarações negociais - a interpretação em sentido estrito - se reduzirá a uma averiguação ou apuramento de factos, em último termo à actividade probatória, ou se não manifestará antes uma intenção e um juízo especificamente jurídicos» 10. Que poderão pensar deste problema os lavradores-caseiros ou mesmo os proprietários das terras? Lembremo-nos de que as declarações negociais constantes de um contrato de arrendamento podem ter por conteúdo matéria de índole essencialmente agrícola, como é exigido para a intervenção das comissões.

Supondo-se que é ao juiz-presidente que cabe indicar aos técnicos a matéria sobre que têm de votar -o que não está no projecto -, as funções dos árbitros aproximar-se-ão das dos simples peritos. Não há, na verdade, quanto aos resultados práticos, diferença sensível entre as duas funções, embora teoricamente aos árbitros caiba decidir e aos peritos informar.

5. Não obstante, pois, a melhoria sensível do sistema proposto em relação ao vigente, na medida em que se limita a competência dos árbitros e se aumenta a do juiz, continua a Câmara Corporativa, como em 1961, a supor que com as comissões arbitrais não se obtêm decisões mais justas nem se prestigiam os tribunais.

A reacção por parte dos magistrados, que se vêem constrangidos a reunir à sua mesa, na sala do tribunal, em igualdade de posições, pessoas sem cultura jurídica, sem responsabilidade, sem uma investidura legal nas funções jurisdicionais e até sem uma beca que revele publicamente as altas funções em que estão investidas, tem o seu fundamento real e a sua razão de ser.

Este problema das comissões arbitrais anda, na generalidade dos países, intimamente ligado ao problema das reformas agrárias. Está nelas integrado e está, como elas dominado pêlos mesmos intuitos políticos e sociais, que não são precisamente, longe disso, os intuitos políticos e sociais que têm presidido às reformas no nosso país.

Esta palavra «social» tem-se prestado a muitos equívocos e tem dado lugar a receios por parte dos legisladores de todos os países, quando se propõem fazer reformas sociais nos seus ordenamentos jurídicos sem caírem num avançado socialismo agrário. É importante, entre nós, que não se veja nas comissões arbitrais, no espírito que as domina e nos autores que as inspiraram, razão justificativa para tais receios. Nunca se compreenderá bem que em matéria tão simples, como é correntemente a do arrendamento rural, se mostre necessária a criação de comissões especiais com funções de julgamento.

Anda também este problema muito relacionado, na teoria dos autores, com o problema do júri, instituição há muito banida da nossa legislação por razões que não importa, obviamente, aqui reeditar. Apenas referiremos, pela sua actualidade no Brasil, as palavras com que o professor, da Universidade de Rio Grande do Sul. Alcides de Mendonça Lima fecha o artigo recente, que intitulou «Júri - Instituição nociva e arcaica» 11:

O júri ressente-se, em alta dose, da falibilidade humana, como também se ressentem, naturalmente, os juizes togados. Entretanto, entre aqueles que se, dedicam à profissão de interpretar e de aplicar as leis nos mais variados sectores, aqueles que têm a formação especializada, aqueles que exercem uma actividade erigida em poder estatal, e os leigos, os normalmente incompetentes na matéria, aqueles devem ter a primazia por direito próprio para julgar os acusados, que, por enquanto, são levados ao tribunal do júri, em nome até da soberania nacional. Ninguém procura um alfaiate se precisa consertar um sapato, e vice-versa . . . É preciso, em uma época de especialização técnica, que só encolham e se elejam os técnicos na sua verdadeira função pessoal. Numa ordem social tão repleta de iniquidades, surgidas de uma hora para outra e que. por contingências invencíveis, não podemos evitar, nem extirpar, só no instante em que o julgamento de todos os litígios, de qualquer natureza, ocorridos entre os homens, seja exercido, exclusivamente, nos pretórios, sob a égide da absoluta integridade, indefectível autonomia e impostergável independência de seus membros, outorgando aos órgãos judiciários o verdadeiro papel político e ético que representam na sociedade, é que cada um poderá aspirar, como supremo anelo da própria civilização, a que a justiça seja eterna, riscando de luz os espaços obscuros da consciência humana!

6. Antes de concluir pela rejeição na generalidade do projecto em causa, a Câmara Corporativa entende dever dizer ainda o seguinte:

a) Afirma-se no preâmbulo do projecto que da Lei n.° 2114 «restam apenas as disposições de índole adjectiva, entre as quais sobressai, como mais relevante, a todos os títulos, a base XXI».

A base XXI não é, porém, a mais relevante, mas n unira que, por não conter matéria de direito substantivo, se pode considerar não revogada pelo Código Civil.

Este facto tem importância, pois é incompreensível que, pela substituição desta base, fique a existir a Lei n.º 2114. quando dela não fica nada em vigor.

Parece que a única solução lógica seria, não a da substituição da base mas a da sua revogação e aprovação de um novo diploma.

9 Recentemente, o Doutor António Castanheira Neves, num 1.° volume de 921 páginas, quase se limitou, ao versar a «Questão de facto, questão de direito» ou o «Problema metodológico da juridicidade», a indicar o seu aspecto de crise.

10 Doutor Castanheira Neves, op. cif., p. 335.

11 Reviria Forense, ano 58.°, p. 16.

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b) O despejo, a que se refere o artigo 1.° do projecto, é, para o novo Código Civil, um simples facto que pode resultar da denúncia do contrato, ou da resolução, caducidade, ou anulação ou declaração de nulidade deste. Aos respectivos pedidos judiciais, e a todos eles, se quer claramente referir o projecto, sejam apresentados pelo senhorio ou pelo arrendatário, embora em alguns casos, como no da denúncia (salva a hipótese do artigo 1073.°, n.° 1), dificilmente se justificar a intervenção dos árbitros.

Ora, embora não tenham sido alteradas no Código de Processo Civil as referências às acções de despejo, parecia mais rigoroso que, ao publicar-se um novo diploma legislativo, se respeitasse a terminologia do Código Civil. Pelo menos, a lei ficaria mais precisa e mais clara.

c) É muito difícil a um jurista saber o que é matéria essencialmente agrícola, como também saber quando é que, efectivamente, ela é controvertida. O emprego de advérbios de modo nos textos legislativos torna-os obscuros. É o que acontece no presente caso.

d) Reduzida a uma unidade a representação da organização corporativa da lavoura, há-de essa representação recair, praticamente, ou num senhorio ou num arrendatário. A confiança nos julgamentos, que é uma das razões consideradas mais importantes para a defesa das comissões arbitrais, desapareceria por completo, pois crê-se evidente que nem o arrendatário confia na justiça do senhorio, nem este na justiça daquele.

e) Não se justificaria, por último, a entrada em vigor imediatamente da lei. Mais ou menos uns dias, depois de uma vigência de anos da Lei n.° 2114, não significa nada, e a solução projectada poderia criar dificuldades sérias. A l.ª série do Diário do Governo nem sempre chegaria a tempo, mesmo no continente, de evitar um julgamento por árbitros incompetentes.

II

Conclusões

7. É de parecer a Câmara Corporativa que o projecto deve ser rejeitado na generalidade.

Em sua substituição, para evitar os inconvenientes da legislação vigente, postos em relevo nas considerações que antecedem, sugere a Câmara que o projecto seja substituído por este outro:

Artigo 1.° É revogada a base XXI da Lei n.° 2114, de 15 de Junho de 1962.

Art. 2.° Ao artigo 591.° do Código de Processo Civil é aditado o seguinte número:

3. Nos questões relativas a arrendamentos rurais, o perito do juiz será, conforme a natureza do arrendamento, um engenheiro agrónomo ou um engenheiro silvicultor.

A redacção deste n.° 3 foi a aprovada pela comissão encarregada de rever a legislação processual civil a que acima se fez referência e corresponde à proposta feita por esta Câmara, em 1961.

Não se limitam os poderes do juiz no que respeita à nomeação dos peritos, por serem aqueles títulos suficientemente justificativos da escolha e poderem não existir nas respectivas comarcas funcionários da Secretaria de Estado da Agricultura.

Palácio de S. Bento, 13 de Fevereiro de 1968.

Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge.
José Alfredo Soares Manso Preto.
José Augusto Vaz Pinto.
José Gabriel Pinto Coelho.
Manuel Duarte Gomes da Silva.
Adelino da Palma Carlos.
Aníbal Barata Amaral de Morais.
João Carlos de Sá Alces.
Joaquim Trigo de Negreiros.
José Marques.
Luís Quartin Graça.
Manuel de Almeida de Azevedo e Vasconcellos.
Fernando Andrade Pires de Lima, relator.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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