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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 49
ANO DE 1970 27 DE NOVEMBRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
X LEGISLATURA
SESSÃO N.° 49, EM 26 DE NOVEMBRO
Presidente: Ex.mo Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto
Secretários: Ex.mos Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
João Bosco Soares Mota Amaral
SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 45 minutos.
Ordem do dia. - Evocação da figura e obra ao falecido Presidente Salazar.
Usaram da palavra o Sr. Presidente e os Srs. Deputados João Manuel Alves, Casal-Ribeiro, Themudo Barata, Ávila de Azevedo, Ribeiro Veloso, Montanha Pinto e Almeida Cotta.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 10 minutou.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se a chamada.
Eram 15 horas e 30 minutos.
Fez-se a chamada, a qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Bebiano Correia Enriques Carreira.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Pereira de Meireles da Bocha Lacerda.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Eugênio Magro Ivo.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Fernando David Laima.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco António da Silva.
Francisco Correia das Neves.
Francisco Estevas Gaspar de Carvalho.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Mancada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João António Teixeira Canedo.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
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João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Augusto Carreia.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José João Gonçalves de Proença.
José Maria de Castro Salazar.
José de Mira Nunes Mexia.
José dos Santos Bessa.
José da Silva.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Júlio Dias das Neves.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Luís António de Oliveira Ramos.
Luís Maria Teixeira Pinto.
Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel Marques da Silva Soares.
Manuel Martins da Cruz.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso.
Manuel Valente Sanches.
Maria Raquel Ribeiro.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Prabacor Bau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Rafael Valadão dos Santos.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Rogério Noel Píeres Claro.
Bui de Moura Ramos.
Sinclética Soares dos Santos Torres.
Teodoro de Sousa Pedro.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Víctor Manuel Pires de Aguiar e Silva.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 93 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 45 minutos.
O Sr. Presidente: - Devido à solenidade e importância da matéria dada para ordem do dia, não haverá período de antes da ordem do dia. Vamos entrar imediatamente na
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Evocação da figura e obra do Presidente Salazar.
Srs. Deputados: Não seria facilmente entendido, nem decerto bem aceite pela proporção enorme dos portugueses que lhe tributavam aplauso ou estima, faltar à memória do Presidente Salazar o preito declarado da Assembleia Nacional, logo que se reunisse após a passagem de tão grande homem ao repouso eterno.
Foi, pois, na certeza de apenas me adiantar ao movimento natural das razões e das sensibilidades, certeza prontamente confirmada por quantos de VV. Ex.as me ouviram o propósito, que destinei a sessão de hoje, primeira depois de nos organizarmos para novo ano de trabalhos, a evocar a pessoa e a obra do estadista definitivamente entrado nos umbrais da História.
Convidando a Assembleia a deter-se na lembrança dele, na reverência dos talentos ainda sob a emoção do afastamento final, não peço tanto para acrescentardes novos traços à figura luminosamente gravada nos cérebros e nos corações quanto espero ouvir, de vozes provindas de tão diversas partes do território como de caminhos distintos da vida, desdobrar as razões de lhe guardarmos respeito e rendermos agradecimentos.
Quando muitíssimo esta já dito, e por certos tão bem dito, e só falta o recuo do tempo para lhe escrever indelevelmente o nome entre as glórias perenes da Pátria, calarmo-nos sobre Salazar não lhe empanaria, porventura, os créditos, mas diminuiria os nossos pela falta ao dever de atestarmos o que é verdadeiramente sentimento e voz da Nação!
Sentimento que aliás vimos exprimir-se, espontâneo, puro e intenso, na concorrência permanente, noite e dia, sob as abóbadas lusitaníssimas dos Jerónimos; no silêncio respeitoso da Praça do Império, coalhada de gente naquela manhã de 30 de Julho; entre os pinhais e olivedos circundantes do sereno cemitério do Vimieiro, invadidos de multidão entristecida; na multiplicação dos sufrágios religiosos devotadamente concorridos; nos ecos das comunidades distantes; mas que em momento algum me repassou tanto como quando o vi manifestado por grupos de moradores de bairros dos mais desfavorecidos de Lisboa, que ao caminho do comboio fúnebre vieram afirmar, ostentando bandeiras de comovedores dizeres, a saudade que ofereciam ao homem incansavelmente aplicado ao bem da sua terral Porque se dirigiam a um morto e se moviam no anonimato, de nenhum desses se dirá que os engodava algum prémio; por serem tantos, que os impeliam constrangimentos; por virem com sacrifício de corpos ou de tempo, que os trouxera a mera curiosidade. Não! Era verdadeiramente o País, tocado no fundo da alma colectiva, que chorava o mais lúcido, o mais esforçado, o mais prudente, o mais isento, o mais animoso, o mais integralmente dedicado dós servidores que de todos os tempos conhecera!
Desde essa comoção correram meses; antes, a longa doença dera tempo a sedimentarem paixões; a Assembleia pode com alguma serenidade deter-se sobre a obra, que o consenso do povo já o conhece.
Mas, neste acto, também, eu desejo fazer o meu depoimento. Depoimento como poucos aqui, poucos já no País, podem prestar em iguais termos, pois é o de quem cresceu na vida enquanto Salazar crescia na autoridade, e assim observou por si mesmo, o que é bem diferente de ouvir dizer, os progressos do arrebatamento que ia tomando as almas generosas da juventude, como o larguíssimo sector da opinião cansado do descalabro político, na aprovação continuada de uma chefia inovadora o eficiente.
Eu era, com efeito, apenas estudante, mas já universitário, quando Salazar tomou posse de Ministro das Finanças; e revivo ainda plenamente a enlevada surpresa com que no dia imediato comentávamos à saída
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das aulas a nitidez de propósitos, a refrescante segurança, a precisão das regras de conduta que acabavam de surpreender o País.
Fomo-nos fazendo miais homens enquanto renascíamos para a esperança e logo a trocávamos por claras certezas de acção profícua; vendo novas perspectivas alargarem-se-nos ante os olhos, em verdade «atónitos e felizes, de tanto noa haver a decadência habituado a tê-las por impossíveis»; abrasados no andor sadio da luta conífera velhas fraquezas e no calor, dos êxitos; costas voltadas à apagada e vil tristeza de longos anos, conscientes das forças reavivadas, tomávamos Salazar por guia e fiávamos dele os anseios de mais e melhor! Os sedentos de seriedade e justiça, princípios de ordem a parte, verdadeiros contestadores desse tempo, em grande número se tornaram seus adeptos; e nem admira, pois a escassa dignidade da vida pública não fora para atrair espíritos idealistas.
Doutrinariamente já inclinado a aderir aos seus princípios, o êxito prático deles confirmava-me a autoridade de homem tão excepcional como fonte de bem público, e depressa me prontifiquei a apoiá-la, vencendo o pouco gosto da opção política, como seu remoto colaborador em postos modestos, mas não repousados, onde procurei, muito por essa intenção, ser prestável durante quase exactamente trinta e três anos.
Se o desfecho mão procurado foi a honra de me sentar perante VV. Ex.as, tão francamente como suputei, certo dia, que sob a autoridade do Presidente Salazar não teria subido a esta cadeira - presunção imodesta que não exprimia tanto desapego do governante como um conceito da sua informação-, do mesmo modo confessam que apenas a dedicação ao essencial da sua obra, culminando na esperança de a ver renovada na continuidade, me trouxe tão perto.
Estas retrospecções, mero testemunho pessoal oferecido à instrução do processo riquíssimo, não as tomem, como nostalgia de quem antolha o declive da vida e procura remoçamento ou desculpa em passados entusiasmos; são, sim, os fundamentos da declaração, que ora faiei, de que olhar para trás não me torna repeso nem da confiança inicial, nem da fidelidade subsequente.
Decerto afrouxou a corrente primeira de reformas enérgicas e ousadas que com perfeita propriedade autorizaram o Professor Salazar a qualificar-se de chefe de uma revolução; era isso fatal, pois a administração da causa pública, como dos negócios privados, lançadas as directrizes, não se foz a golpes quotidianos de novidades. Estabilizada a marche no caminho escolhido, o que cumpre é estar atento aos incidentes ou acidentes, do percurso, e manter as condições de atingir as alvos fixados, ou corrigidos; e o que importe é a capacidade de vencer aqueles e conservar o fito nestes.
Decerto, também, em tão longo percurso, não faltaram ocasiões de duvidar, até de temer, e mesmo de discordar; mas, ou os factos dissiparam apreensões, ou a razão mostrou prevalecerem os motivos de aplauso. Já está dito: o saldo positivo é enorme!
Consoante as inclinações dos espíritos, os pontos de observação, o desenvolvimento das análises, na obra que estamos evocando muitas e diversas facetas merecem enaltecimento, e por distintas avaliações se poderá concluir.
Porém, sendo essa obra de estadista, e estadista investido no mando supremo, sobrelevará considerar como se houve ele nas decisões máximas da governação.
Pela longura do exercício e acidentado dos tempos, é demais sabido, Salazar foi repetidas vezes chamado a resolver, na contingência de desastres irreparáveis, quando do seu bom juízo dependeriam os mais essenciais destinos do País e a própria segurança física da população. Crises desta gravidade, qualquer enumerará várias, logo as ligando a estados de guerra que nos circundaram ou feriram; mas quantas outras se terão apresentado no silêncio dos gabinetes, isso será reserva que só o tempo quebrará, se n fio ficou com quem a morte já levou.
Publicadas ou não, crises tais requereram decisão sob pressões as mais fortes, informações as mais inseguras, perspectivas as mais obscuras, urgências as mais imperativas, contra vontades dos mais exigentes e entre choques de pareceres os mais opostos. Que em tão temíveis conflitos de alma e de inteligência a visão se toldasse, a coragem vacilasse, e a conclusão finalmente errasse, seria apenas humano; e dez, vinte, trinta anos depois poderiam os mestres de obra feita, julgando descansadamente os acontecimentos, emitir displicentes suas críticas, que nem então todos os escrupulosos as subscreveriam, por respeito às dificuldades dos casos.
Mas que dez, vinte, trinta anos depois de tomadas opções tão difíceis, em circunstancias tão desfavoráveis, nem uma só dessas decisões cruciais do Presidente Salazar se não haja confirmado senão como lúcida e prudente; que nenhuma haja, no domínio, comprometido a integridade nacional e os destinos portugueses, aqui haveremos de marcar, Srs. Deputados, porventura o máximo direito do estadista ao apreço e reconhecimento da nossa e das vindouras gerações.
Virtude transcendente também é de atribuir ao efeito da sua gerência habilíssima que foi restituir ao País confiança nas forças próprias, fazendo-o exercitá-las.
Quem releia os comentadores da vida nacional dos três quartos de século que mediaram da consolidação do constitucionalismo monárquico à queda do democratismo republicano, ainda que ponha de lado as páginas dedicadas à crítica de políticas absorvidas no manejo das máquinas eleitorais, quando não de arruaças complementares, para se esgotarem em influências de baixo alcance, encontra invariavelmente o fio do desalento geral a entretecer-se na saudade das glórias passadas, que só alguns heróis da ocupação africana lá longe repetiam; e a pintura de uma sociedade sem posses a deliquescer na morneza de uma vida sem horizontes. Eça, Ramalho, Oliveira Martins, Fialho, João Chagas, quantos mais? O que nos deixaram foram histórias de ilusões perdidas, de sonhos abafados pela mesquinhez ou vacuidade dominantes, de degradação do património artístico e moral, escrevendo-as com penas molhadas no desgosto e na reprovação.
Veio Salazar; e, se a ganga das fraquezas humanas não foi eliminada, todavia a habilidade da sua gerência e a pertinácia da sua vontade souberam concentrar o País em acções positivas; mostraram-lhe recursos despercebidos e fizeram-no aproveitá-los; realizaram aspirações que durante decénios, se não séculos, haviam sido veleidades; propuseram-lhe temas exaltantes: do saneamento das finanças e estabilização do Governo à criação de infra-estruturas do progresso económico, criaram-lhe as condições de tomar terras mais avançadas já não como as miragens inauferíveis de outrora, mas como modelos que se impacienta de não igualar. E se os escritores de hoje não são mais apologéticos do poder constituído do que foram os seus antigos, tiveram de transferir para domínios menos concretos o forte das discordâncias.
Este reencontro Ida Nação com os suas energias profundas é outro grande legado do Presidente Salazar, que assim lhe terá deixado, com a integridade salva de conflitos tremendos, confiança em si mesma.
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Inteiro e seguro de si, Portugal poderá continuar afoito na demanda Ide melhores condições de vida para seus filhos. Quanto, sem a firmeza e a inteligência desses quarenta anos, teríamos pendido no caminho, não é das capacidades humanas assentar: mas, avaliando pelos antecedentes, e sem embargo de fugazes satisfações de propugnadores de outros métodos, é lícito crer que muitíssimo!
Salazar: homem e estadista, principios em acção. Vontade só obediente à razão e à lei morou; inteligência capaz das mais altas concepções, mas também cuidadosa dos mais miúdos pormenores. Indivíduo que honrou a espécie; português que engrandeceu a Pátria. Deixou-nos uma lição e fortificou-nos para o futuro.
É justo que o honremos!
Tem a palavra o Sr. Deputado João Manuel Alves.
O Sr. João Manuel Alves: - Sr. Presidente: Atrevo-me a subir a esta tribuna, a evocar a figura de Salazar, deslustrando o lugar e a memória do homenageado, com a modéstia do meu discurso, por duas razões que adiante enumerarei.
Entendo dever desculpar-me perante VV. Ex.as, Srs. Deputados, porquanto o momento é de tal modo sublime, pelo que encerra de gratidão, e são tais as responsabilidades desta Assembleia que não bastará, a quem queira entrar na composição da coroa de flores que a Câmara, ao iniciar os seus trabalhos, quer depositar na campa rasa do cemitério do Vimieiro, nem os sentimentos de profunda admiração pelo homem que se recorda, nem a sinceridade e independência dos juízos acerca da sua obra. Necessário se torna, ainda, que se lhe dê a forma que só a eloquência pode fazer bela, digna e nobre - como convém as responsabilidades e à tradição desta Casa e, naturalmente, aos desejos de todos nós.
Arrisco-me, por isso, a que as minhas palavras fiquem como peças destoantes do monumento que a eloquência dos demais Srs. Deputados vai deixar erigido.
Julguei, porém, que não devia negar o meu contributo, antes se me impunha tal atrevimento, já por representar aqui o circulo de Viseu, com a circunstância especial não só de ter responsabilidades político-administrativas na sua terra natal, como também de aí viver, já, ainda, porque, tendo nascido depois de Salazar ter anunciado ao País a Ordem Nova por que Portugal passou a reger-se, não entoam nos meus juízos, acerca da sua personalidade e da obra do Regime que instituiu, conhecimento directo dos factos (a não ser pela história que fizeram) precedentes do seu advento ma cena política do Pais.
Por outro lado, não tendo recebido favores pessoais, nem, do Regime, especiais responsabilidades, posso apresentar-me - e de facto sou- independente nas minhas
Quem acreditar que a Providência, nos seus divinos desígnios, vela tanto pelas pessoas como pelas nações, encontrará, tanto na personalidade de Salazar, na sua expressão endógena, como mós factos ou circunstâncias exteriores que contribuíram para a formar e robustecer, motivos bastantes para alimentar a sua crença.
É que sem Salazar, sem o sábio e pensador que ele ara das coisas políticas, quando o Exército, em 1926, tomou sobre os seus ombros a heróica tarefa de salvação nacional, pondo termo a anarquia em que a Nação mergulhara1 desde há um século, a ditadura que instituiu ficaria - como outras vezes aconteceu - ou como episódica reacção ao statu quo anterior ou descambaria para o despotismo, que haveria de ocasionar reacções de consequências ainda piores.
Salazar entra para o Governo apenas como técnico - uma das tarefas que se impunha para salvar a Nação era a reorganização das finanças do Estado -, mas, dentro em pouco, ele se mostrará ser o único, nesse Governo, que tinha, por formação intelectual, uma mensagem política.
E é o frio técnico de finanças que, dentro em breve, passa a ser porta-voz da orientação política da Ditadura e em quem se adivinha, afinal, também o seu definidor.
Estavam encontrados o homem e a doutrina, de que aquele momento difícil tão urgentemente carecia, de modo a que pudesse encher-se o vazio, que a supressão pêlos militares do anterior regime trouxera a vida política do País, e a Ditadura fosse o que afinal veio a ser - o início de uma nova era política para os Portugueses.
Podem discutir-se as soluções que defendeu e intransigentemente seguiu, mas do que ninguém duvidará é de que, sem elas, passado o período eufórico, ou se voltaria aos erros recentes ou se institucionalizaria a própria Ditadura, com os perigos do poder despótico e das reacções de que a História nos dá permanentes exemplos.
No primeiro caso, o movimento militar não passaria de mais um episódio heróico-romântico da nossa longa existência política; no segundo, talvez fosse acontecimento para esquecer, senão para só amarguradamente recordar.
Parece, assim -e aqui volto ao pensamento inicial-, que a Providência havia ordenado as coisas para que não fosse vã a acção desses militares, para que não fossem vãos os seus sentimentos puros de amor pátrio, que os levou a empunhar o gládio -que afinal nem usaram - para salvar a Nação da mediocridade e anarquia em que havia mergulhado. E ofereceu-lhe, na pessoa do Professor de Coimbra, um homem a quem, natural e carismaticamente predisposto para as grandes tarefas do espírito, várias circunstâncias, que rodearam a sua vida, haviam fortalecido a inteligência, apurado a vontade, sublimado a consciência do dever, gerado a renúncia material, desenvolvido o amor ao seu semelhante e á Pátria.
Essas circunstâncias levam-me a que acrescente aqui algumas reflexões à sua biografia.
Nasceu Salazar «pobre, filho de pobres», veio de baixo, do povo, da pobreza, de uma família de modestos agricultores, o que lhe deu, não só a vivência da inferioridade das condições de vida dos humildes, mas também uma perspectiva exacta do povo, do verdadeiro povo português, das suas carências materiais e das suas virtudes morais.
Quando a sua inteligência se começa a abrir para o mundo que o cerca, é Portugal sacudido da mórbida apatia em que havia caído, pela gesta heróica de Mouzinho e pelas acusações que este dirige aos políticos da época.
Ao contrário de muitos de igual condição, os pais fazem-no aprender as primeiras letras e mais: dada a falta de professor na sua terra, não hesitam, apesar das suas poucas posses, no sacrifício providencial de o mandar para Viseu concluir a instrução primária.
Concluídos os estudos primários, entra para o Seminário de Viseu.
Os seus biógrafos dão-nos conta de que desde muito novo Salazar se definiu como um espírito introspectivo, seduzido pêlos livros, pelas coisas da inteligência e do saber.
O recolhimento, a profunda vida interior, constituem o enquadramento, onde agora essa avidez de conhecer se começa a realizai1; a disciplina e a serena reflexão que se cultivam nessas casas mais lhe acrisolam o espí-
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rito metódico e o domínio da vontade; o estudo sério das humanidades, da filosofia e da teologia, abrem-lhe as portas do conhecimento crítico.
«Devo àquela casa grande parte da minha educação e aqueles bons padres a minha formação e disciplina intelectual» - haveria de proclamar mais tarde.
O curso de Direito fá-lo com classificações que espantam quantos por lá passaram.
E no final um facto circunstancial atira-o irremediavelmente na senda das ciências político-sociais.
Foi o caso de, por falecimento do Dr. Marnoco e Sousa, o Dr. Salazar ser convidado, de imediato, para reger a cadeira de Finanças. Estava em definitivo marcado o seu destino.
O moço seminarista, disciplinado e metódico, o rapaz com ideias sérias, era agora professor da Universidade mais prestigiada do País e tinha ali o mundo, o seu mundo a rodeá-lo: uma cela monacal a servir-lhe de gabinete de trabalho, nesse ambiente ainda hoje - e digo-o com muito apreço pêlos seus mestres - único, de recolhimento e de estado, que é o Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra, jovens para educar e formar, e livros, muitos livros, que ali, ontem como hoje, levam o que há de mais recente e actual no domínio da cultura jurídica e política.
«Às melhores revistas de todo o Mundo - espanholas, francesas, italianas, inglesas, americanas, alemos - estão ali para professores e alunos, e «as melhores colecções gerais, os maiores e maca completos tratados, as obras avulsas mais recentes, não faltam para satisfazer a curiosidade dos estudiosos» - como afirmou na sua Resposta.
Foi então que a sua inteligência invulgar, ia sua avidez de saber, a sua disciplina interior, o seu espírito metódico e a sua capacidade de reflexão se puderam inteiramente realizar, estudando e repensando o que os outros pensaram em relação a tudo que interessasse à sua cultura de sociólogo e humanista, e, sobretudo, reflectindo e reelaborando os próprios dados da sua experiência cultural e empírica - e, os mais próximos, não podiam deixar de ser os que lhe proporcionavam a vida política portuguesa de então. Buscar-lhes as causas, avaliar-lhes os efeitos, criticar-lhes os caminhos, ensaiar outras soluções, foi exercício a que se dedicou a sua inteligência, sem sentido ou fim imediato, apenas por puras razões especulativas de estudioso e mestre, mas, com certeza, incentivado também pelo profundo amor à sua pátria.
Quando, em 1928, foi chamado ao Governo, o modesto e quase desconhecido professor de Coimbra pôde dizer, por isso: «Sei muito bem o que quero e para onde vou.»
E, mais barde, explicaria: «E que me fui habilitando, lentamente, sem precipitações, quase sem dar por isso, liberto de qualquer ambição de ordem pessoal. E assim quando a minha intervenção na máquina do Estado pôde ser útil, ela foi aproveitada, talvez, como o não seria se eu tivesse improvisado uma cultura.»
Já vi escrito que toda a carreira de Salazar foi votada à satisfação de uma aspiração política.
Afirmação gratuita.
Nunca Salazar pensou no Poder, antes de este lhe haver sido confiado, sem que, paia tanto, conspirasse, chefiasse algum grupo ou vencesse adversários pela força ou pela intriga.
Como português inteligente e culto, não se podia alhear dos problemas do Poder; como professor, era seu dever estudar a organização política do Estado.
Há aqui, normalmente, um erro de perspectiva, qual é o de considerar apenas o professor de Finanças, esquecendo-se de que o fazia numa Faculdade de Direito, por onde foi formado, e que tis disciplinas que ensinava eram as Finanças Públicas, a Economia Política e o Direito
Fiscal, ciências que, por isso, não só têm por objecto certos aspectos da própria- organização jurídica do Estado, como também obrigam as seus cultores ao estudo das ciências afins, numa palavra, ao todo, político, social e jurídico do mesmo Estado.
O que se surpreende nos diversos momentos da sua vida pré-pública, em que saiu a terreiro, não é a aspiração do Poder, mas, sim, como já uma vez acentuou o Prof. Marcelo Caetano, uma extraordinária vocação política, o carisma do chefe político.
É essa vocação que se adivinha nas justas que uma por outra vez sustentou nesse período, nas quais, ou pôs à prova a sua capacidade de acção, ou expressou as suas ideias acerca da organização jurídica do Estado e dos seus fins.
A colaboração no Imparcial e as conferências que esporadicamente realizou são indispensáveis à crítica e conhecimento do seu pensamento político.
Mas, se aqui é, sem dúvida, um homem político que encontramos, isto é, um homem quê não pode deixar de sentir a sociedade que o rodeia, não é de modo nenhum o político, segundo o dicionário da época.
Tal actividade realiza-se como que à margem da política, e apenas ou para doutrinar a lição da Igreja ou para reivindicar para esta os direitos que, de facto, lhe eram negados. O ponto dominante é o seu catolicismo.
De qualquer modo, essa actividade não deixa de ser, para o pensador e intelectual puro, como que os exercícios práticos necessários, no domínio da acção e do concreto, ao seu futuro de condutor político.
E assim, quando Salazar chega ao Governo, não era apenas o técnico de finanças, como muitos julgaram e outros ainda pensam: com ele ia também o jurista e o sociólogo e, sobre tudo isso, o homem teorético por formação e temperamento, que, pois, não poderia deixar de ter em relação a essas ciências uma atitude filosófica, de as interrogar, quer na sua mútua compreensão, quer na sua relacionação com certas realidades que são objecto do seu conhecimento, do seu valor e da sua finalidade - o indivíduo só e na sociedade, as várias expressões desta, o Estrado, a sua ética e os seus fins.
Para muitas dessas interrogações, de resto, havia já formulado as respostas. Sabia bem o que queria e para onde ia.
E quem ler os célebres discursos proferidos na Sala do Risco, em 28 de Maio de 1980, e na Sala do Conselho de Estado, em 80 de Julho do mesmo ano, onde se encontra o travejamento mestre da doutrina política do Estado Novo, fica com a impressão de que as ideias ali expandidas brotam com tal espontaneidade, que logo se percebe não terem sido elaboradas na ocasião, mas antes terem vindo, de longe, a ser pacientemente tratadas e clarificadas no laboratório intelectual do seu autor: «Sou dos que têm meditado longamente os vários acidentes da vida pública portuguesa.»
São, afinal, ideias bem simples, que dão originalidade ao sistema político instituído com a Revolução Nacional.
Mas aí reside a dificuldade superada.
Na cultura, como na natureza, tudo o que é simples ou existe de mistura com outros elementos que lhe são contrários e que é preciso isolar ou envolto em jorras parasitárias que é mister remover.
E sempre aí esbarraram as grandes correntes do pensamento.
Dificuldade ainda, porque a partir do final da Grande Guerra, em 1918, o domínio das ideias e a teoria dos factos deixou de ter qualquer controle possível de enquadramento ou sistematização.
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As várias correntes filosóficas que histórica e evolutivamente marcaram épocas cronológicas do pensamento europeu, até ao final do século XIX, seguem-se sucessivas e rápidas explosões e consequente desabamento, no viver, no sentir e no pensar.
É esta ainda uma das características da era que vivemos.
É certo que entre nós, então, vivia-se politicamente ainda sob o domínio das ideias do século anterior.
Tanto pior.
Tornava-se necessário substituir essas e, sem se perder no torvelinho das actuais, encontrar a posição de equilíbrio para os vários valores que se chocam.
Simples, de facto, se não pensarmos «que a luz que ilumina a jorros tem por detrás um labirinto de raciocínios».
O homem humilde, quando filósofo, interroga-se também humildemente, afastando-se de todo o abstractismo, untes voltando-se para uma existência concreta do caso português:
O que é a Nação Portuguesa?
Como se deve organizar o Estado Português?
Quais os seus fins?
As respostas a estas questões serão as ideias mestras do seu sistema, do nosso sistema político.
Ora, a nação não se confunde com o conjunto de indivíduos que, em cada momento, a constituem. É, ontològicamente, um ser distinto dos seus componentes, constituída por uma comunidade de tradições, de língua, de costumes, de crenças e de leis, «somatório de realizações morais e materiais das gerações passadas».
Mas a nação tem, na sua base, outras realidades sociais: a família, a freguesia, o município, as corporações morais e económicas.
Só integrado nesses grupos naturais o indivíduo realiza os seus fins de homem.
Logo, o Estado deve exprimir a nação assim organizada, isto é, a forma que representa a sua ordem natural e racional.
Mas o Estado existe para, e realização do bem comum, entendido como categoria distinta da do bem particular ou da soma dos bens particulares de todos os indivíduos.
Daqui deriva a necessária autoridade do Estado, para impedir que os interesses particulares se sobreponham ao interesse geral e para a salvaguarda da paz e da justiça, nas mútuas relações dos indivíduos e dos grupos e nas relações destes com o Estado, temido, porém, como limites a Moral e o Direito.
O bem comum que o Estado prossegue não é apenas o de garantir aos cidadãos o bem-estar material, mas ainda o desenvolvimento dos valores espirituais, no que eles contêm de realização humana.
Por outro lado, voltando à observação da Nação Portuguesa, facilmente se apercebe uma constante de, sua história: a do absoluto domínio dos valores cristãos.
Se «nem todos os portugueses aceitam explicitamente a fé cristã, todos aceitamos uma oferta concepção de vida residualmente cristã que nos define como povos - dizia há pouco o episcopado.
Daqui derivam duas consequências:
O conteúdo ético da moral que deve limitar a acção do Estado é-lhe dado pêlos valores cristãos;
Garantir-se aos indivíduos poderem realizar livremente os seus fins eternos e transcendentes, fins estes que não podem ser prosseguidos pelo Estado, mas só pela Igreja, a quem o Estado deve dar condições para cumprir a sua missão domina.
O Estado, aqui, mais uma vez se põe de acordo com a Nação. E, deste modo, se superaram os obstáculos que as doutrinas filosófico-jurídicas, racionalistas ou empiristas e de raiz agnóstica, encontraram na sua realização prática.
O que deixo dito parece-me ser a súmula, embora de formulação modesta, da génese e da conceitualização do pensamento político de Salazar e as ideias mestras que informaram o «Estado Novo».
No perscrutar, na realidade objectiva e ontológica da Nação, o seu valor e os seus fins, está o seu nacionalismo, um nacionalismo nem exarcebado, nem romântico.
Divulgada a sua mensagem política, enquanto Ministro dos Finanças, com a adesão entusiástica dos contemporâneos, estava descoberto o chefe natural de que, naquela hora, os Portugueses precisavam. Daí, ao chefe de direito, na Presidência do Ministério, foi só um passo.
A partir de então, o que era só pensamento e ideias passa a ter expressão jurídica.
A Constituição Política de 1983, o Acto Colonial, a Carta Orgânica do Império, o Estatuto do Trabalho Nacional, o próprio programa da União Nacional e, finalmente, a Concordata com a Santa Sé, formam um todo, onde Re contém esse pensamento.
Não faço aqui qualquer juízo acerca da política levada a cabo, sob o domínio dessas ideias, no seu aspecto existencial e concreto, nem tão pouco à obra governativa pessoal do seu inspirador.
Deixemos que a história o faça, e ainda é cedo para o fazer.
Não quero terminar sem deixar duas reflexões: uma relativa à visão de conjunto dessa obra; outra referente à personalidade do seu principal responsável.
No transcurso destes quarenta anos assistiu-se a um mero suceder de factos políticos sincréticos, eclodidos pragmaticamente, por virtude de forças de vários sinais, surgidos no decorrer do tempo?
Ou antes estão esses factos indissoluvelmente ligados entre si por eles, que representam uma mesma força criadora, capaz de imprimir ao País uma feição nova, na sua estrutura política, económica e social, que o individualiza, nesta época, no desordenado mundo dos nossos dias, e também perante outras épocas da nossa história?
Suponho que ninguém se recusará a responder afirmativamente, mas tão-só a segunda interrogação.
Então é porque o sistema era válido.
Creio também que ninguém de boa fé pode negar que os Portugueses -a grande maioria, pelo menos, dos portugueses- aderiram sem reservas às ideias o princípios de acção que esse sistema contém e que, só assim, foi possível a longevidade do Regime.
Então, é porque o sistema era válido para a Nação Portuguesa, por um lado, e, por outro, porque as estruturas criadas têm o poder de adaptação suficiente para, sem prejuízo dos princípios e dos valores essenciais, responder às tensões de cada momento.
E nesta época ímpar na vida política do País, que felizmente continuamos a viver, não pode deixar de avultar e de projectar-se em toda a sua dimensão história a personalidade do homem que a idealizou e que até há pouco foi o principal responsável pela sua realização.
Dele se pode dizer, como um dia escreveu, que «a ponderação, o sentido das oportunidades, o equilíbrio, a independência, a firmeza temperada de maleabilidade, o conhecimento dos homens e das suas paixões, o dom de adivinhar a consciência pública e de prever o enca-
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deamento dos factos políticos e sociais, a dedicação desinteressada, essa entrega completa, esse sacrifício ao bem comum», foram dons que carismàtimente recebeu e que os acidentes da sua vida robusteceram. Por isso, a Nação adoptou-o como seu guia espiritual. Era um chefe natural.
E quando assim é, a adesão é total, espontânea e sem constrangimentos.
Assistimos também a isso, desde há dois anos, em relação ao eminente homem público que lhe sucedeu.
Mas, a par da sua vigorosa personalidade de governante, encontramos, para além do pensador fecundo, do prosador inconfundível, o homem, sensível às coisas simples, absolutamente desprendido das coisas materiais, sempre igual a si mesmo, incapaz de uma deselegância ou de maldade, e o cidadão que ensina a obediência aos poderes constituídos e que assume o Poder apenas para realização de um imperativo da sua consciência de português.
«Pobre, filho de pobres», saiu tão pobre como entrou. As especiais circunstâncias em que me encontro permitem-me afirmá-lo aqui e à Nação.
Humilde, quis regressar à humildade donde proveio e à paz do cemitério da sua terra.
Não deixou aos seus património material, mas legou-nos a todos um excelso património moral e, valiosamente acrescentado, o património comum.
Partamos dele, para fazer mais e melhor.
Foi esta decerto a sua última vontade.
Cumprindo-a, honraremos a sua memória.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Casal-Ribeiro: - Sr. Presidente: Quando em 1928, ao assumir o cargo de Ministro dos Finanças, o Doutor Oliveira Salazar anunciou os quatro pontos base em que deveria assentar uma acção, que havia dê redimir a Pátria de tantos erros acumulados através dos tempos, poucos seriam aqueles que pensavam que só quarenta anos volvidos, e abatido pela doença, esse estadista genial, esse homem honrado e bom que ao País consagrou em dádiva total a sua própria vida, interromperia uma acção governativa constante, servida por indómita e lúcida determinação de continuar, inflexivelmente, a obra de ressurgimento nacional a que se dedicara.
Salazar escreveu, em carta dirigida ao então Chefe do Governo, que «aceitar o encargo representava tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a ninguém». E, acrescentava: «Faço-o ao meu país como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido.»
E cumpriu! Durante quarenta anos, Salazar foi sempre igual a si próprio; silenciosamente, amas com uma vontade férrea, com um sentido de previsão insuperável; com aparente frieza, mas com uma sensibilidade enorme, suportou quatro décadas de governo, dizia eu, primeiro como Ministro dais Finanças, a cujas mãos iam ter todos os problemas vitais paia o País, e sempre dentro de total seriedade de princípios que orientaram, aliás, o trabalho de uma verdadeira equipa governativa, pôde revelar à Nação a vontade decidida de regularizar, por uma vez, a vida financeira e, consequentemente, a vida económica portuguesa. E não houve milagres no que se fez; se alguma coisa de milagroso aconteceu, teria sido talvez o do próprio aparecimento de Salazar, que, com a sua generalidade doutrinou e deu forma política ao movimento militar que redimiu a Pátria no doa 28 de Maio de 1926, consolidando as punias intenções que haviam levado os seus promotores a pôr cobro ao caos que ameaçava submergir o Bafe. Apenas houve, como disse o Doutor Marcelo Caetano «quando da monte do Presidente Salazar, «a aplicação como Ministro dos mesmos princípios que ensinava na cátedra».
Segundo ainda afirmou aquele estadista, em síntese lapidar: «... as finanças sanearam-se, e a vida regrada do Estado foi o alicerce onde firmou a solidez da moeda, a disciplina da Administração, o ressurgimento da economia.» E, continuando: «abriram-se escolas, rasgaram-se estradas, construíram-se portos, lançaram-se pontes, ergueram-se edifícios para que os Portugueses pudessem tirar maior partido do seu trabalho e aspirar a uma vida melhor.» Referindo-se depois à indisciplina dos partidos e a crise de autoridade, males que estiveram na raiz da Evolução Nacional, o Presidente Marcelo Caetano disse que Salazar, «inspirando-se na experiência política portuguesa e no carácter do povo, foi o autor da Constituição plebiscitada em 1988 e que ainda hoje nos rege. Nesse diploma fundamental - prossegue - se consagrou o sistema corporativo que introduziu em Portugal uma sã, constante e progressiva política social. Não havia nada feito em benefício dos trabalhadores: toda a legislação que hoje protege o mundo do trabalho nasceu daí», concluiu.
Quando um estadista da envergadura do actual Chefe do Governo - um dos grandes colaboradores do Doutor Oliveira Salazar na obra levada a cabo - fala desta forma à Nação, perante os restos mortais de quem o antecedeu no alto cargo para que fora chamado, que mais poderá dizer-se e pensar-se senão que o País perdeu de facto, com a morte do Presidente Salazar, um Homem? Um daqueles homens raros que de séculos em séculos aparecem na vida dos povos!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Como podem, com efeito, os demasiadamente impacientes ou os excessivamente jovens e inexperientes negar aquilo que afirmou Marcelo Caetano, que tantos pretendem seguir apressadamente; alguns a quererem dar a impressão de que nunca confiaram em mais ninguém! Para quê e com que fim, se, serenamente, o seu guia também «sabe o que quer e para onde vai», e, sobretudo, com quem pode e deve contar?
Marcelo Caetano, com a sua personalidade, superior inteligência e tacto político, não se vinculou nunca, rigidamente, à forma de governar que Salazar personificava; excluo, claro está, ao fazer esta afirmação, o ultramar português, a cuja defesa intransigente o actual Chefe do Governo tantas vezes se tem referido e em termos tais que constituem, só por si, a mais formal garantia de que o rumo seguido pelo Presidente Salazar será mantido sem desvios, pois é o único aconselhável a unidade da Pátria na sua verdadeira expressão e grandeza.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas, prosseguindo, ao proclamar «evolução na continuidade», alguma coisa de novo previu que sucederia: evolução de métodos, readaptação de estruturas, mas nunca o repúdio daquilo que, segundo ele próprio, estava na base de uma etapa decisiva do progresso do País; progresso que mil vicissitudes de origem externa e interna prejudicaram, mas que foi real e indiscutível; não é preciso ser-se velho, nem gasto, nem ultrapassado, nem, tão-pouco, estar imobilizado, para poder reconhecê-lo! Basta, para tanto, apenas ter-se objectividade, consciência e analisar os factos registados num passado recente, demasiado recente para poderem ser ignorados ou sequer esquecidos! Salvo, claro está, para aqueles que
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não querem ver, mas esses, di-lo o Evangelho, são os piores cegos ... A Pátria é que deve ignorá-los - ia a dizer, desprezá-los, e, sobretudo, esquecê-los!
Nem tudo foi perfeito, nem podia sê-lo, durante a longa acção governativa do Doutor Salazar. «Governar», disse-o o Doutor Marcelo Caetano, «é necessariamente descontentar; no balanço de uma política há, por força, um passivo a enfrentar o activo». Mas na hora da verdade em que falava o Presidente Marcelo Caetano - afirmou-o ele - «o saldo positivo é enorme». E tanto maior era quanto é certo que Salazar, ao assumir o cargo de Ministro das Finanças, «recebera um país arruinado, dividido, convulso, intoxicado por uma política estéril; e deixou-o ordenado, unido, consciente, seguro dos seus objectivos e com capacidade [e discernimento, acrescento eu] para os atingir».
E quem isto disse não é um político comum, pouco esclarecido ou faccioso; um homem que pretendesse defender qualquer coisa que julgasse prestes a perder ou da qual dependesse o seu destino político; quem o proclamou foi, justamente, um político hábil e sóbrio, um homem inteligente e firme; um estadista que aceitou substituir Salazar na chefia do Governo para prosseguir, embora adoptando o seu critério de governante, na defesa e engrandecimento da Pátria.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Não desejo alongar-me. Depois do que foi dito e escrito aquando da morte do Presidente Salazar, eu, humilde Deputado pelo círculo de Lisboa, que do Regime nada recebi, antes pelo contrário, algum esforço dei, algumas horas de vida trabalhosa e difícil e, sobretudo, em holocausto à Pátria, o meu filho mais velho, não encontrei, para sintetizar o meu pensamento e a minha amarga saudade, nada mais significativo e certo do que referir principalmente, e baseando aí algumas conclusões, as palavras e o sentir de quem, a partir de 27 de Setembro de 1968, aceitou sobre os seus ombros, voluntária e patrioticamente, o encargo de prosseguir para bem da Pátria na política . que tantas benesses trouxe à nossa terra e às suas gentes, elevando-as internamente e no conceito das nações; terra e gentes essas que, tendo como padroeira a Virgem Maria, a ela devem erguer preces para que as continue a proteger no momento crucial que a Humanidade atravessa, quando o espírito, a ordem, a moral e a própria Igreja parecem subverter-se num verdadeiro caos, para o qual não se descortina bom fim!
Não me parece descabido que nesta Assembleia, onde têm lugar antigos e distintos governantes, directos colaboradores, portanto, do Doutor Salazar, alguém, com menos credenciais, é certo, mas que por ele não tinha menos amizade, nem menor dedicação, erga a sua voz para afirmar, pública e solenemente, a sua total e eterna fidelidade à memória do Homem e aos princípios que ele encarnava; não pode esquecer-se que estes estiveram sempre coerentemente presentes na obra de ressurgimento nacional levada a efeito pelo eminente estadista, cuja memória acabo de evocar com profunda saudade, embora, infelizmente, sem qualquer talento ou sequer o menor brilho. Apenas sentidamente.
«Nunca todos seremos de mais para continuar Portugal.»
Pois bem, façamos más, Deputados, um exame de consciência sincero e (profundo; pensemos nas vicissitudes em que as forças do mal envolveram a nossa juventude que em África se bate pela Pátria, jogando generosamente a própria vida a coda instante, tentando derrotá-la também na retaguarda, pretende-se tirar-lhe aquilo que melhor pode ajudá-la: a confiança em si própria e nos oito séculos da história que a contemplam! Pensemos nos nossos camaradas - Drs. Leonardo Coimbra, Pauto Buli, Pinto Leite e Vicente Abreu - que, na Guiné, abnegadamente, perderam a vida pela causa que queriam aprofundar e conhecer melhor; pensemos no exemplo de Salazar e de quantos com ele serviram, no venerando Chefe do Estado, exemplo vivo da nulidade que se deseja; pensemos e recolhamo-nos por um momento! Temos, nesta Assembleia, de não trair os que nos elegeram e dê nós esperam que sirvamos e defendamos os seus legítimos interesses. Mas a melhor forma de os defender e cumprir o nosso dever de portugueses e de representantes d» Nação não é demolir, demolir sistematicamente!
Aponte-se, com inteira uberdade e franqueza, o que está mal; apresentem-se soluções práticas, exequíveis e, sobretudo, portuguesas. Deixemo-nos de figurinos estrangeiros ou adaptemos o que lá fora se faz de bom, de construtivo e pela grei ao nosso meio, às nossas possibilidades e às nossas gentes. Sem perda da nossa própria independência, sem ultraje à consciência Ide cada um, todos nós poderemos contribuir, dialogando e até -se quiserem- contestando (dentro dos justos limites, claro está), para que se governe sem dividir, dando assim a certeza ao Mundo sempre atento de que, quer nesta Câmara, dedicando à causa «pública todo o nosso esforço, quer nos compôs de batalha, com o sangue dos nossos filhos, quer, ainda, na retaguarda, com o suor do nosso povo, apenas e simplesmente, queremos continuar Portugal!
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Themudo Barata: - Sr. Presidente: 1. Evocar alguém pode ser apenas um frio exercício de memória, pode ser outras vezes um ardente chamamento da sensibilidade para satisfazer exigências do coração; mas pode ser bem mais e pode ser bem diferente.
Com efeito, a evocação de alguém que Deus chamou a Si, quando tenha lugar num templo, deverá ser acima de tudo um acto religioso, movido pela fé; quando efectuada numa academia, será por certo a construção de um pedaço de história, dominada naturalmente pela preocupação fria e objectiva do rigor científico; quando levada a cabo no círculo de familiares ou de amigos, falará por direito próprio a voz do coração, para exteriorizar a nobre fidelidade dos seus afectos e para tentar preencher, com o avivar da saudade, o vazio deixado por quem partiu; quando, porém, tal evocação - sobretudo de homem de Estado tão ilustre - seja feita nesta Gusa e deste lugar, por constituir ordem do dia desta sessão, ela é, por sim própria natureza, um neto essencialmente político.
Não quer isto dizer, é evidente, que a política deva ignorar ou possa esquecer Deus, aquele Deus que cria os homens e os chama a Si e que, misteriosamente, movimenta os grandes fios da História; ou que ela sirva de pretexto para impedir, ou sequer desaconselhar, que se estude e se critique o passado, com toda a amplitude e toda a objectividade, sobretudo na medida em que o tempo for ajudando a criar a justa perspectiva; não significa tão-pouco que se tenha por descabida uma palavra sincera e calorosa de admiração ou de reconhecimento - que muitas vezes será até um dever de pura e elementar justiça: quer dizer apenas que tal evocação, quando aqui feita, deverá estar marcada pela preocupação dominante do bem comum - que é o único sentido que eu entendo digno dar à palavra «política».
2. O bem comum «diz respeito ao homem todo, tanto às necessidades do corpo como às do espírito», mas não se restringe ao indivíduo, pois diz também respeito às
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necessidades materiais e espirituais da colectividade que formamos.
O homem esquece, por vezes, que não pode viver só e perdido no mundo.
As nações - como disse um grande poeta- todas são mistérios. São, de facto, mistérios do mesmo plano insondável da criação, que o fez surgir solitário e errante sobre a Terra, o fez multiplicar-se em tipos humanos tão diferentes, diversificados mais ainda por uma babilónia de línguas que dir-se-ia criada para que os homens se mantenham isolados e uns aos outros se não entendam, mas .ao mesmo tempo gravou no fundo- da sua alma o horror à solidão e marcou de tal forma a sua vida pela necessidade de convivência que o homem se vem sentindo atraído a viver harmoniosamente em sociedades, a coalescer em espaços humanos cada vez maiores, da pequena tribo às grandes nações. Uma nação representa, assim, um património colectivo que se não mede pela simples operação aritmética de somar os seus habitantes, os seus haveres e os seus desejos ou ambições particulares; mas, como corpo organizado, tem também a sua alma, tem também a sua vida.
Se juntarmos braços e pernas a um tronco avulso e o encimarmos por uma cabeça, não teremos, por certo, um homem - mas apenas um cadáver. O que fazia o homem era a harmoniosa conjugação de todos estes pedaços - e esta harmonia era a vida.
Ora, o bem comum, nesta hora em que tão grandes problemas se deparam à Nação para assegurar a sua defesa e para acelerar o seu progresso, penso que deve ser visto, sobretudo, nesta mais ampla e mais generosa perspectiva.
Portanto, se as situações difíceis que atravessamos nos impõem a todos que pensemos com clareza e com serenidade, com abertura de espírito e com redobrada coragem - pois também a há nos domínios do pensamento -, que trabalhemos ainda com maior dedicação, eficiência e rapidez, impõem-nos, acima de tudo, que não deixemos perder - antes procuremos constantemente revigorar - a fé e a unidade nos princípios essenciais, a tolerância e compreensão no acessório, num clima Ide confiança e respeito mútuo - que é, afinal, uma forma superior de saber respeitar-se a si próprio -, pois isto constitui o património miais precioso de uma comunidade que queira permanecer senhora dos seus destinos,
3. O Pais deu, aliás, ao Mundo um exemplo admirável de maturidade e uma prova dará de que sabe encarar as coisas nacionais na sua adequada perspectiva, quando, incapacitado Salazar, desiludiu todos aqueles que esperavam ver esboroar-se uma construção política, implantar-se a desordem e esfacelar-se a Nação.
A imagem serena, séria e digna do Chefe do Estado quando transmitia ao País a sua histórica decisão, tomada no exercício pleno, livre e independente do seu mandato e meditada grave e honestamente, como quem resolve um problema de consciência, e não como quem procurasse apenas habilidosamente equilibrar ambições ou interesses, foi não só o espelho do carácter de um homem, mas tombem o espelho do estado de espírito da Nação.
Continuou a dar o mesmo exemplo quando, escolhido o seu sucessor, apesar da natural diferença dos pessoas, dos seus modos de ser e de agir, de eventuais divergências de pontos de vista ou de piamos de acção, mostrou que sabia evoluir no despeito de uma obra e de uma personalidade.
E quando a morto fez entoar na serena paz de Deus a figura venerável e austera daquele homem que envelhecera a servir devotadamente a sua Pátria e que entrara já por direito próprio na sua história -, todo o País se sentiu emocionado ao escutar as palavras tão lúcidos e tão justos proferidas naquela hora pelo Sr. Presidente do conselho e que sentia serem também as suas. Acabara, de facto, de perder um homem - um grande homem que foi um grande pensador e um grande1 governante -, mas «naquela nobreza de atitudes, naquele equilíbrio dos juízos, naquele respeito, que correspondiam ao mais fundo e ao mais sincero dos sentimentos da generalidade dos portugueses, a Noção havia dado ao Mundo uma prova mais de maturidade e assegurado também a si própria a consoladora certeza de verificar que, mesmo que ao longo destas últimos décadas outra coisa se mão houvesse feito, se havia forjado no País uma alta consciência cívico e se haviam preparado homens que tornavam possível dar ao exercício da política tal elevação e tal dignidade.
4. Ligado às coisas militares pela formação que recebi e por uma carreira que foi já longa e variada - e até, de certo modo, singular; ligado também às coisas ultramarinas por anos intensos de vida, alguns deles em funções certamente honrosas, mas bem ingratas, não se estranhará que, ao evocar a figura de Salazar, o meu espírito se encaminhe para aqueles rumos e neles busque captar alguns traços dominantes das suas ideias, da sua personalidade e da sua obra.
5. É bem curioso que este homem, que nunca foi militar nem tinha por índole ou por vocação qualquer propensão para sê-lo, que, dado o seu temperamento, olharia talvez com natural receio os excessos de energia esfuziante, de desembaraço e até alguma rudeza no falar que a profissão por vezes origina, estivesse toda a sua vida pública tão estreitamente vinculado às coisas da guerra e da sua pena saíssem páginas de antologia sobre as virtudes e a função militar.
É ao homem que a si próprio se designa como «civil e mestre-escola, desconhecedor profundo dos regulamentos, da vida e da história militar» que, quatro anos volvidos sobre a sua entrada para o Governo - ainda então apenas Ministro das Finanças -, os chefes militares vão pessoalmente entregar, como preito de homenagem, a grã-cruz da Torre e Espada, a mais alta das condecorações militares com que acabava de ser agraciado e fora adquirida por subscrição entre a oficialidade de terra e mar.
E este mesmo homem, que vê a sua vida política abrir-se com a herança de um movimento militar a que teve de dar rumo; que, já então Presidente do Conselho, por nova e singular coincidência, assume interinamente a pasta da Guerra quando as labaredas do comunismo ameaçavam alastrar por Espanha, escassos dois meses antes de se iniciar a dolorosa provação da sua guerra civil. Toma posse do lugar, para que entrava interinamente, mas que viria a ocupar durante oito longos anos, com um discurso de pouquíssimos minutos, sóbrio e claro - rude, talvez até, na firme posição de chefe com que assumia o posto. Tomara essa decisão porque entendia que tínhamos de ter em prazo relativamente curto o Exército que nos é necessário para a defesa dos grandes interesses da Nação.
Os ecos da guerra de Espanha fazem-se logo sentir no País numa tentativa sediciosa de desviar navios de guerra para apoiar aquela «luta internacional num campo de batalha nacional», como desde logo a apelidou. Dominado prontamente o incidente, na comunicação que dirige ao País exprime-se como político de visão lúcida que compreende toda a extensão do conflito, como governante prudente e firme, mas fala também como chefe exigente e esclarecido quando escreve que entre as coisas que a força armada deve ter sempre presentes «a primeira é
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que o espírito está na base da sua organização e da sua vida. Podem não concordar todos com a orientação política ou captas medidas administrativas; mas se a honra e a Nação desaparecem da formação moral e intelectual do soldado, o Exército fica sem regra e sem finalidade. Quem é contra a Nação não pode ser militar»...
É sob a sua égide que vão ter lugar as reformas militares de 1937, que foram tão amplas e tão inovadoras que provocaram larga agitação política no País è grande preocupação nos meios militares.
Fossem ou não razoáveis as críticas e as preocupações - e autorizadas opiniões contemporâneas tecem-lhes os mais rasgados elogios -, parece de registar a coragem de impô-las numa situação política recém-saída de um golpe militar.
É ainda este homem que quer continuar tomando sobre si estas responsabilidades de natureza militar até quase ao termo da II Guerra Mundial, acumulando também o comando directo da acção diplomática neste período tão duro, tão arriscado e tão difícil.
As tropas hitlerianas, que já combatiam em África, permaneciam retidas nos Pirenéus por prodígios de sagacidade e de clarividência da política peninsular; os territórios portugueses espalhados pelo mundo estavam rodeados pelo espectro da guerra - que em Timor, infelizmente, foi dura realidade -, alguns deles situando-se em pontos nevrálgicos do Atlântico, naturalmente cobiçados por ambos os blocos em luta; e o País consegue atravessar intacto esta tempestade que devastava o mundo, sem comprometer a sua dignidade, nem o seu prestígio, nem os seus interesses.
Passados já 25 anos, a quem não viveu a época, com o seu condicionalismo tão dramático, com as paixões internas tão compreensivelmente exacerbadas pela grandeza e pela violência do conflito que tão próximo estava de nós e que criava dentro do País apaixonadas correntes de opinião pública a favor de cada um dos beligerantes, talvez lhe seja difícil compreender os prodígios de equilíbrio, de tacto, de firmeza e de inteligência que se tornavam necessários, e também a confiança moral que era preciso depositar em quem conduzia o País, para que pudesse ser vencida tão critica situação.
Considero de inteira, justiça estas palavras, posto que, se é verdade que o tempo desgasta naturalmente os homens - e não poupa portanto os homens públicos, também é verdade que enfraquece as memórias.
É, finalmente, ainda este mesmo homem que vê os derradeiros anos da sua vida assoberbados novamente com as mais graves preocupações militares e que, de novo também, resolve pessoalmente assumir as directas responsabilidades da condução da política militar.
O desencadear do terrorismo em Angola marca para Portugal o início; no seu território, desta nova e insidiosa forma de guerra em que o comunismo se especializou para levar a cabo os seus desígnios e que as grandes potências ocidentais manejam quase sempre tão desastradamente, talvez porque, com a sua prosperidade, foram deixando amortecer o valor que atribuem ao ideal.
É, de facto, uma nova forma de luta internacional em campo nacional, como Salazar já designara, a guerra em Espanha; é, na verdade, uma expressão clara e bem evidente daquela luta totalitária do comunismo contra o mundo ocidental, que parece esquecido de que o próprio Lenine - há cinquenta anos e já senhor da Rússia - o advertira, escrevendo num ensaio em que estuda e, estratégia e a táctica do marxismo, que a sua luta «é como luto encarniçada, sangrenta e não sangrenta, violenta e pacífica militar e económica, pedagógica e administrativa cantina os forças e as tradições do velho mundo».
Este velho mundo que nós queremos também transformado, mas cujos valores autênticos não - queremos destruídos, este velho mundo - convém não o esquecer - é e será sempre, para os detentores da bandeira do comunismo, o mundo ocidental, enquanto não deixar subjulgar-se e por maior vantagem que leve nos campos da economia ou da cultura, no respeito pela dignidade do homem, na liberdade que concede ou nas garantias sociais que faculta.
É, pois, nestas circunstâncias particularmente melindrosas que Salazar resolve chamar a si as funções de Ministro da Defesa Nacional. Como vinte e sebe anos antes, quando enfarara no Ministério da Guerra, são brevíssimas as suas palavras, nos quais transparece a mesma firmeza e a mesma íntima convicção de servir o Pais.
Neste posto lhe coube sofrer - e sofrer com a Noção toda - o tão duro golpe que atingiu Portugal com a premeditada e brutal agressão contra a índia Portuguesa.
Um ano depois decide abandonar a pasta da Defesa, mas o velho estadista permanece, contudo, quer para aqueles que o louvam, quer para aqueles que o combatem, o símbolo inflexível da resistência.
A sua atitude que foi saudada em Angola como a decisão salvadora; a sua posição intransigente que por outros foi considerada como uma teimosia obstinada e irritante: para ele - para aquele misto de político e de filósofo - era unicamente mais um dever que em consciência friamente cumpria, porque - nas suas próprias palavras - se «sentia apenas, no trabalho, na determinação, na inquebrantável resistência, intérprete dos sentimentos e direitos inalienáveis da Nação».
É curioso, na verdade, observar como este homem, que, por temperamento e por formação, se diria nada ter de comum com os militares; que recebe de suas mãos o Poder e desde logo abertamente procura, conforme ele mesmo declarou,, aliviar a força armada das tarefas da governação para evitar que se transformasse num partido militar ou, ocupada em funções políticas e embaraçada nos meandros da administração pública, sé perdesse para missões mais altas - sabe conservar inalterável o seu apoio, sem que para isso houvesse de conceder privilégios ou benefícios, às corporações ou aos homens que as servem, havendo mesmo sido no geral bem parcimonioso no tratamento que lhes deu.
Para alguns pode parecer, de facto, incompreensível esta tão ampla e tão aberta colaboração que, nos momentos decisivos da vida do País, Salazar sempre encontrou nas forças armadas, este generoso apoio que recebeu daqueles homens que, à luz utilitária das coisas - segundo palavras que usou também -, pessoalmente, directamente, nada lucraram com a sua acção.
Creio fácil, todavia, encontrar a razão que o explica.
Havia, em primeiro lugar, em comum alguns traços pessoais: o seu estilo austero de vida, o gosto da disciplina, o culto dos valores morais, o apego a nobreza das atitudes e a forma como encarava a função pública. Mas, para além disso, havia, acima 'de tudo, o conceito que formava dos ideais superiores da nossa pátria, que naturalmente o levavam, nos momentos mais graves da vida nacional, a saber apresentar-se, não como o mero representante de uma administração que tem, evidentemente, os seus erros e as suas falhas, mas como o político lúcido e- intrépido que sabia situar-se, nessas horas singulares,- nas grandes linhas de rumo que correspondiam aos mais profundos sentimentos e interesses da Nação.
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Por parte das forças armadas tal explicação é também clara simples. Deveu-se à sua ética de sempre; ao facto de, no meio dos-sacrifícios1 impostos às corporações com a tão grande desproporção que no geral existe entre a grandeza das missões e a modéstia dos recursos, e dos sacrifícios; também impostos aos seus homens com as dificuldades da sua vida quotidiana, haverem sabido guardar - como ainda guardam - os mais nobres conceitos de honra e a mais elevada noção do dever, que lhes mostravam que, servindo nesses momentos decisivos as grandes linhas de uma política que sentiam servir a Nação, não serviam um homem - a quem, pessoalmente, não tinham favores a agradecer - serviam simplesmente a sua pátria.
6. Chegado a este ponto; pouco mais se tornará necessário dizer para interpretar, na linha desta exposição, o pensamento de Salazar quanto às coisas ultramarinas.
As linhas gerais da sua filosofia política não provêm, como alguns hoje porventura poderão supor, de época recente, quando se tornou necessário defender pelas armas a integridade da Nação contra o terrorismo ou defendê-la pela palavra na vida internacional contra as arremetidas do pós-guerra daquele conjunto de ambições è de interesses que já conhecemos no passado sob o poético nome de «mapa cor-de-rosa» e agora se disfarça sob a roupagem ciclópica dos chamados «ventos da história».
Não foi difícil certamente para o espírito lógico e objectivo de Salazar, como o não será para quem quer que estude e medite seriamente sobre esta laboriosa construção da História, compreender o que é o Portugal de hoje. Nação forjada por políticos que começariam talvez por pensar essencialmente no comércio, por místicos que ansiavam por dilatar a fé, por homens sedentos de grandeza e de aventura que sonhavam com a glória, mas que foi pacientemente amalgamada por este bom, valente e humilde povo, que sabia - como sabe ainda - doar-se com generosidade; quem se debruçar atentamente sobre ela será forçado a aperceber-se de que existe uma realidade moldada pela vida - e tão longa que já tem história de séculos - que foi dando novas e maiores dimensões à Nação Portuguesa e que, por isso, lhe foi criando paralelamente novos problemas e maiores responsabilidades.
Estes problemas e estas responsabilidades, no .passado como hoje, não podem resumir-se, é certo, à manutenção de um território e à sua defesa em situações críticas: são isso também nas horas difíceis, mas são, em todos as horas, as tarefas de tomar mais progressiva, mais próspera e mais feliz a sua gente.
A juventude actual poderá naturalmente perguntar - como, de resto, já sucedia, e sucede ainda hoje aos homens do meu tempo - por quê se não haveria procurado ou se não haveria conseguido caminhar mais velozmente, quer na metrópole, quer no ultramar, na educação e na cultura, por que terá existido tanta inércia e tanta lentidão, que parece inexplicável, em acertar o passo com os progressos da tecnologia ou em generalizar-se um espírito empreendedor, esclarecido e realista que levasse a progredir, sensata mas rapidamente, nos domínios do económico, do social e do político, actualizando as ideias, os hábitos e as técnicas, sem com caso abdicarmos de ser quem somos, posto que deste modo seriam seguramente menores os nossos actuais problemas e mãos leves as nossas actuais dificuldades.
Creio bem legítimos estes anseios, como creio bem legítimas as perguntas.
Salazar sentiu também o problema e pô-lo a si próprio, porque sentia - como escreveu apôs a dura experiência de quinze anos de Governo - as «dificuldades trazidas à vida pública pela teimosa mediocridade do meio onde ameaçam afundar-se todas as aspirações generosas, movimentos largos, planos do envergadura»; sentia como pesava «sobre todos e sobre tudo» aquilo que classificou de «acanhado ambiente, locai» que levava à não floração que sua terra das qualidades naturais dos portugueses que tão exuberantemente triunfam noutras paragens.
Não o refiro aqui para, condenar ou para absolver menciono-o ùnicamente para salientar até que ponto todos somos solidàriamente responsáveis na obra do progresso da Nação, desde o supremo chefe político ao mais humilde homem de. rua, posto que essa obra sem ambos ou, que o mesmo é dizer, sem a colaboração de todos não se poderá realizar.
Mas, para além destes aspectos tão importantes e que se prestariam a útil meditação, fica ainda a questão basilar da escolha das grandes rotas, do estabelecimento daquela filosofia política que terá de constituir o alicerce seguro, que confere solidez, e coerência a toda a acção, que dá aquela garantia e aquela confiança no rumo que trilhamos na vida e que multiplica a força dos homens como dos povos.
Aqui, Salazar foi, uma vez mais, o pensador clarividente e equilibrado em quem a fé nos ideais não fazia perder o eminente sentido do real e do possível.
Quantas dúvidas que vejo agitar ainda alguns espíritos, quando se fala de ajustar métodos de administração pública ou técnicas de aplicação dos princípios da economia os realidades presentes da Nação, se dissipariam se fossem atentamente relidas as suas palavras.
Cito quase ao acaso, para evidenciar a continuidade e o realismo de um pensamento político e a clara distinção que nele existia entre o que é permanente e o que deve ter-se por acidental.
Em 1960, falando nesta Assembleia, Salazar era bem claro ao afirmar que «a unidade da Nação na pluralidade dos seus territórios» implica «a unidade de direcção política, com a colaboração de todos», mas não tem nada a ver com certos problemas que apenas respeitam à organização administrativa e a maior ou menor descentralização e autonomia, problema acerca do qual via «muitas pessoas manifestarem-se altamente interessadas».
Para ele - dizia ainda - não se tratava de problema de princípio, mas sobretudo de possibilidades.
Estos palavras, todavia, limitavam-se a ser apenas eco de outras também por ele mesmo aqui proferidas no ano já tão distante de 1933 e que merecem recordar-se, pois são talvez mais claras ainda no plano político, embora então pudessem ser outras as técnicas julgadas mais aconselháveis para o desenvolvimento económico do conjunto nacional, ou não fossem iguais às de hoje, em todos os pormenores, as soluções administrativas:
Somos uma unidade jurídica e política, e desejamos caminhar para uma unidade económica tanto quanto possível completa e perfeita, pelo desenvolvimento da produção e intensa permuta das matérias-primas, dos géneros alimentícios e dos produtos manufacturados entre umas e outras partes deste todo.
Acentuava, em seguida, que os regimes económicos de coda uma têm de ser estabelecidos em harmonia com as necessidades do seu desenvolvimento, tendo em atenção a justa reciprocidade entre elos e os países vizinhos e os direitos e legítimos interesses das outras e do conjunto nacional.
E concluía com esta síntese magnífica:
Entre nós, constituímos a variedade da unidade, campo de trabalho comum nas condições definidas
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pelas conveniências de todos; perante os outros países somos simplesmente a unidade, um só e o mesmo em toda a parte.
É reconfortante poder recordar estas palavras, perfeitamente ajustadas ainda hoje, que bem mostram que os rumos que seguimos vêm de mais longe e de mais profundo: não nasceram como habilidosa manobra para enfrentar os novos ventos ou as novas tempestades-mas são aqueles que a Nação a si própria fixou e que ela deseja, portanto, prosseguir.
7. Cheguei ao fim das minhas considerações. Falei de um homem; procurei interpretar com fidelidade o seu pensamento e apreciar desapaixonadamente a sua actuação; sinto, porém, ficar longe do que pretendia se não conseguir resumir em breves palavras uma ideia que traduza o que eu próprio penso sobre ele.
Pois, agora, é talvez simples.
A ideia que me deixou este homem superior, sereno e lúcido, vontade férrea servindo uma inteligência penetrante e robustíssima, conhecendo os homens e as suas fraquezas como um perfeito príncipe de Maquiavel, mas possuidor das qualidades austeras de carácter dos grandes varões de Plutarco, a ideia que ele me deixou foi a de um homem a quem a Providência concedeu os dons e deu também a oportunidade de conduzir os destinos de Portugal em circunstâncias decisivas da sua vida, de imprimir a sua marca na nossa história, de ser, em suma, um verdadeiro chefe. Não aquele que manda simplesmente porque usufrui o Poder, mas aquele que manda porque tem a consciência de uma missão a cumprir.
A figura de Salazar poderá discutir-se; poderá criticar-se a sua obra - como a de todos os que foram grandes; mas, ao lembrá-lo, ter-se-á sempre de dizer que foi um homem que tinha fé inquebrantável nos ideais da sua pátria e que soube servir corajosamente o seu país.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ávila de Azevedo: - Sr. Presidente: O Professor Doutor António de Oliveira Salazar já pertence à história de Portugal. Inclui-se na galeria de reis, de presidentes, de estadistas que têm ajudado a construir e a manter os fundamentos nacionais da nossa pátria. Como todas as outras figuras contemporâneas é ainda demasiado cedo para que possamos encarar a sua personalidade, o seu pensamento e a sua obra com aquela objectividade e aquele rigor de análise que é timbre dos historiadores escrupulosos. A sua sombra dominadora e vigorosa ainda se projecta demasiadamente sobre nós e sobre a nossa época. Ainda nos falta a dimensão do tempo e a calma que sucede as paixões suscitadas por um político de envergadura para que o nosso juízo não seja prejudicado por um e pelas outras.
Julgo que o meu afastamento da vida pública do nosso país durante largos anos me permite apreciar o vulto de Salazar, nem influenciado pelo sentimento exaltante dos que conviveram com ele e o serviram directamente, nem muito menos por os que injustamente o têm procurado diminuir no conceito geral. E, como decerto outros oradores se referirão à sua obra nacional, escolhi por objecto das minhas palavras um tema, porventura menos tratado, mas que me pareceu aliciante: o pensamento político de Salazar.
Não houve certamente entre os mais eminentes estadistas portugueses nenhum outro que se preparasse tão longa e tão conscienciosamente para a arte do governo.
Quando sobraçou a pasta das Finanças em 1928 o Doutor Salazar já formara uma sólida cultura política, já possuía um corpo de doutrina bem estruturado, já meditara profundamente sobre as causas da nossa decadência, e já estabelecera uma linha de conduta para resolver os problemas que então preocupavam e mesmo angustiavam os Portugueses. No entanto, a sua carreira política, a primeira e inopinada chamada ao Ministério das Finanças em 1926 e o imediato regresso a Coimbra, e até as suas próprias declarações parecem desmentir esta asserção. . .
Também ao seu temperamento repugnava uma tentativa de assalto ao Poder, a preparação de um golpe de Estado à maneira dos conquistadores e dos ditadores.
Era evidente, porém, que ele constituía uma força política potencial. Dessas forças que esperam apenas o momento ou os caprichos do destino para se revelarem. Foi, na verdade, o reconhecimento do seu valor como mestre e como doutrinador, a carência de homens de Estado numa revolução empreendida por militares, n circunstância fortuita de um descalabro financeiro e a sua inegável competência como técnico de economia e de finanças que levaram os promotores do movimento de «28 de Maio» a chamá-lo -a chamá-lo angustiosamente - para resolver uma crise tão grave como as maiores crises da nacionalidade portuguesa: a perda da independência financeira de Portugal, que era o caminho resvalante para a perda da independência política.
Quando o Professor Salazar entrou para o Governo da Nação, aos 39 anos de idade, estava moldado o seu carácter e concluída a sua formação política. Fora um rapaz da província e caracteristicamente provinciano que ascendera a magistratura universitária pela lucidez da sua inteligência e pela decisão da vontade. Como disse o filósofo Alain, os homens não se afirmam pela altura da fronte, mas pela força do queixo. Ainda jovem professor de Direito, escrevia Salazar em 1919:
Pobre, filho de pobres, devo àquela Casa [referia-se ao Seminário de Viseu, onde seguira estudos secundários] grande parte da minha educação, que de outra forma não faria ...
Esta educação provinha do fundo tradicional da nossa inclinação cristã, tinha sido esclarecida pelas lições do seminário recebidas «daqueles bons padres» e sofrera a influência de um meio rural, com o seu apego à terra, a sobriedade dos costumes, a parcimónia dos gastos, o respeito pelas hierarquias e n sujeição ao patriarcalismo familiar. Na sua maneira de ser combinavam-se a modéstia, e mesmo a mediocridade de uma existência temperada pela dura lei do trabalho, com o legítimo orgulho de quem tudo devera a si próprio.
A Universidade, que ele frequentou em Coimbra, ofereceu-lhe então o privilégio de ampliar os horizontes das suas predilecções de espírito e prepará-lo para uma doutrinação política. De facto, toda a actividade deste futuro governante quase se circunscreve aos limites de uma velha província de Portugal e tem como centros a vila de Santa Comba Dão, o burgo de Viseu e a Coimbra universitária. A ascensão social do descendente de modestos lavradores à cátedra da Faculdade de Direito é bem o testemunho do espírito democrático das nossas instituições, que têm permitido, n elevação aos mais altos cargos da Nação dos mais humildes dos seus filhos. De resto, Salazar manteve-se sempre fiel à lição desta experiência, exaltando os benefícios dos princípios. do liberalismo a que devera a sua valorização pessoal.
A formação política de Salazar situa-se numa encruzilhada de correntes culturais contemporâneas, mas toda:;
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conducentes a robustecer as linhas dominantes do seu temperamento pessoal. Podemos salientar, entre elas, o pensamento social das encíclicas papais, em especial a encíclica designada Rerum Novarum, de Leão XIII, sobre a condição dos operários, a qual correspondia ao tipo de democracia por ele definido como «um facto histórico, uma corrente insuperável, uma conquista legítima perfeitamente conciliável com o catolicismo». Em segundo lugar, recebera a sugestão das doutrinas do integralismo lusitano, vulgarizada pela revista Nação Portuguesa e em diversas obras dos seus prosélitos, que procurava restabelecer os valores essenciais da nossa tradição nacional e iniciara, entre nós, o processo implacável ao parlamentarismo português no regime instituído pela República, em 1910.
Finalmente, aderira a uma escola sociológica que teve como animadores Lê Play, Tour du Pin e Edmond Demolins, autor de um livro então famoso A quoi ticnt la supériorité des Anglo-Saxons?. Nas próprias palavras de Salazar este grupo de sociólogos exaltava ca superioridade social dos particularistas sobre os comunitários». Os particularistas eram os Anglo-Saxões, que assentavam o seu sistema educativo na livre iniciativa e no sentimento da responsabilidade individual. Os comunitários éramos nós e os povos latinos, de uma maneira geral, em que a comunidade amparava e absorvia o indivíduo que nela encontrava as maiores vantagens com o mínimo de cooperação.
Estava então convencido de que o problema nacional em um problema de educação. Portanto - acentuava - de pouco valeria mudar de governo se não tratássemos, em primeiro lugar, de mudar os homens. E tivera ocasião de pôr em prática essas ideias como professor do Colégio da Via Sacra, em Viseu, que era «uma tentativa da adaptação a Portugal dos métodos e dos fins da educação inglesa».
A sua formação cultural e espiritual tivera ainda por complemento a especialização de um economista. Salazar fora discípulo de um dos mais distintos economistas portugueses, o professor Marnoco e Sousa. A cadeira regida por este mestre fora uma das conquistas dos novos planos de ensino do regime liberal da antiga Faculdade de Leis, que se transformara em Faculdade de Direito. Nela se havia revelado uma sequência de prelectores e de tratadistas do mais alto nível científico.
O curso ampliava a sua acção docente por uma abundante bibliografia, à disposição de professores e de alunos, em que se podiam consultar as melhores revistas publicadas no Mundo, as mais completas colecções de obras, as estatísticas mais recentes sobre a evolução económica. Os programas das lições rivalizavam com os professados, em Montpellier, em Toulouse e em Paris. Quando o Doutor Marnoco e Sousa faleceu, em 1916, Salazar sucedeu-lhe na cátedra. Assim a Economia Política, regida pelo novel professor, era apoiada por um centro universitário de informação e de investigação em que as fontes nacionais estavam largamente representadas.
Salazar podia dizer de si próprio, com verdade, que era «um rapaz com uma ideia séria», isto é, um pensamento de governo ... Já numa conferência pronunciada em Viseu no ano de 1910 expunha estas três ideias fundamentais que serviam de orientação às suas concepções políticas: a importância secundaria das formas de governo; as conquistas democráticas como realidades incontestáveis; a necessidade de as instruir, de lhes regular os movimentos, de os adaptar aos condicionalismos de uma época social e de um determinado agregado humano, segundo os ditames da escola sociológica de Lê Play e dos seus discípulos.
Mais tarde, escrevia ele que os homens de governo têm o seu sistema de ideias ou simplesmente as suas ideias se não tivessem conseguido determinar-lhes uma síntese superior. Ora, se houve estadista realmente fiel, inflexível, obediente aos princípios em que se inspirara, foi o Primeiro-Ministro português. Para ele existiam «três ou quatro, uma dúzia de ideias-mestras, ideias-mães de outras ideias, atitudes de espírito - dúvidas ou certezas ...». São estos ideias que vão nortear, precisar, informar e esclarecer a sua acção política em quarenta anos de governo - o mais longo governo da nossa história nos últimos dois séculos.
Constituíam elas os ingredientes que presidiram, não tonto à reforma da nossa mentalidade nacional, mas do nosso sistema e dos nossos costumes políticos. Nortearam todas as atitudes, todos os programas, todos os actos do homem que se nos apresenta como o guia do povo português e pretende oferecer-nos um modelo de instituições válido para a sua época e para a nossa psicologia social.
Armado com estas ideias-forças - como notou pertinentemente Paulo Valéry -, o estadista procura moldar a massa dos governados aos seus desígnios, às suas intenções e até às suas concepções de grandeza nacional. É então necessário - acentua ainda o grande pensador francês - que a mentalidade dos homens, sobre os quais exerce o Poder, seja expurgada, reelaborada, unificada e n sua espontaneidade provida de fórmulas simples e fortes que correspondam a todas as circunstâncias e previnam todas as objeccões. Ora, no caso de Salazar, estas fórmulas foram muito empregadas, principalmente no inicio da sua doutrinação:
Tudo pela Nação, nada contra a Nação.
É preciso deixar de fazer favores a alguns para poder distribuir justiça a todos.
Temos obrigação de sacrificar tudo por todos; não devemos sacrificar-nos todos por alguns.
Portugal pode ser, se quisermos, uma grande e próspera Nação.
Nas circunstâncias específicas da vida nacional os reformadores tomam naturalmente uma posição crítica em face dos erros e dos vícios da nossa conduta política; das nossas fraquezas individuais e dos nossos atrasos sociais; das carências de formação cívica de um povo que, em verdade, nunca se havia conseguido adaptar ao jogo das instituições parlamentares e ao uso das liberdades democráticas.
E desta maneira que o dualismo de autoridade-liberdade tem um significado relevante entre nós. Salazar, na construção do Regime, de que inegavelmente foi o principal obreiro, desejou conciliar estes termos antitéticos, dando, porém, a proeminência a autoridade e sacrificando, por consequência, algumas das liberdades consideradas fundamentais nos sistemas democráticos de tipo ocidental. Foi sempre um defensor acérrimo da autoridade, convencido de que pela sua manutenção - embora uma autoridade moderada pêlos nossos costumes e pelas instituições que pôs em funcionamento - se conseguiria a reeducação, a dignificação, a coesão e mesmo o progresso material do agregado nacional. Puderam então os seus adversários apodá-lo, fora de Portugal, de «ditador de gabinete».
A sua doutrina actuante, consignada na Constituição de 1938 e nas leis posteriores, fundamentava-se na oposição às instituições vigentes, tanto no nosso país como nas nações europeias enfraquecidas no pós-guerra, na manifesta decadência dos regimes representativos, na debilidade e na instabilidade dos governos, na incapacidade da Administração de resolver os problemas nacionais. Como já observámos, não só as doutrinas da democracia cristã, como o ideário da contra-revolução,
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tiveram influência dominante na formação do seu pensamento político. Hás as primeiras sobrepuseram-se ao último. Não esqueçamos que foi ele o fundador e o animador do Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra. No Congresso do Centro Católico, realizado em Lisboa no ano de 1922, o Doutor Salazar apresentou uma tese sobre «A natureza, a finalidade, a função religiosa e a política social do Centro». Um jornalista contemporâneo notava neste «monumental trabalho», segundo a sua própria expressão, «um rigor, uma previsão e uma exactidão inexcedíveis». Para Salazar, inspirado pela teocracia tomista, «as multidões deviam gozar de todos os direitos, mas sob a disciplina católica».
No entanto, o programa da contra-revolução estava patente em muitas das suas opções doutrinárias. Decerto, es leituras de Joseph de Maistre, para o qual a ideia de Deus se encontrava no centro de toda a filosofia da história, de Fustel de Coulanges, o autor de La Cité Antique, e, sobretudo, Charles Maurras devem ter influído poderosamente mo seu espírito. Com tal evidência que um adepto da Acuou Fironçaise pôde afirmar:
Sim, estos ideias são as nossas; mas ei-las aplicadas, realizadas, por um homem que governa, encarnadas numa- experiência actual, inscritas numa história viva.
Estas ideias podem assim sintetizar-se: Na ordem político - afirmou o Prof. Salazar - a primeira, realidade é a existência individual dia Nação Portuguesa; um Estado farte a servir-lhe de esteio, mas limitado pela moral, Estado «profundamente nacionalista, popular mas mão demagógico, representativo mas antidemocrático»; antiparlamentarismo consequente negação dos partidos como representação das correntes de opinião e até mesmo responsabilizados pelo enfraquecimento da unidade nacional; câmaras com a atribuição exclusiva de fiscalizar os actos do Governo, elaborar as leis e trabalhando apenas o tempo indispensável...; um Poder Executivo indepemdete, estável, com prestígio e forca, completamente alheio a sugestões parlamentares; reestruturações dos grupos em que se consubstancia a vida nacional: a família, as corporações morais e económicas, as federações e os confederações, atribuindo-lhes uma função mareante e activa na vida política da Nação.
É compreensível que, numa revolução em mancha, revolução não na rua, mas na maneira de pensar revolucionàriamente - como já havia observado Massis -, estes princípios foram-se acomodando ao fluir dos acontecimentos e às reações que foram suscitando. Como sublinhou um nosso colega mesta Assembleia, o Deputado Franco Nogueira, «era intransigente nos princípios, mesmo que pudesse correr risco de destruição; mas era flexível na táctica e subtil na mudança de rumos».
Sob a égide incontestada do Prof. Salazar, a Nação Portuguesa viveu desde 1928 a 1968 um período de tranquilidade, embora afastada e isolada do movimento de renovação europeia, acentuado no decénio de cinquenta. Criou-se, naturalmente, com a vinculação de uma personalidade como a do então Presidente do Conselho, uma adesão aquelas ideias por ele simbolizadas, um estilo de relações humanas e de subordinação política, uma corte de partidários sinceramente convencidos da perenidade da sua linha doutrinária, um culto que poderemos designar como o de salazarismo e que provavelmente ficará inscrito com este nome nos anais da, nossa história. Em alguns sectores da opinião pública, só o pensamento político de Salazar, aliás perfeitamente definido e condensado pela sua pena de brilhante ensaísta, constituiria a solução exequível dos nossos problemas fundamentais e da nossa sobrevivência nacional.
Temos, porém, de reconhecer, como foi muitas vezes lembrado, que tonto a formação política do Prof. Salazar como as êxitos da realização do seu sistema de governo, isto é o salazarismo, se inseriam no contexto nacional e europeu, em resposta a um momento de perturbação, digamos mesmo de desordem, provocado pelas consequências económicas e sociais das duas grandes conflagrações mundiais. Quanto à situação propriamente portuguesa, o Prof. Salazar teve ocasião de dizer que a ditadura militar sucedia «a uma das maiores desorganizações que em Portugal se devem ter verificado na economia, nas finanças e na administração pública». Esta desorganização, podemos acrescentar, em homenagem a serenos juízos da História, não era tonto motivada por culpa ou corrupção dos homens que nos governavam, mas pêlos vícios institucionais do sistema que eles representavam. A maior parte dos estadistas republicanos notabilizou-se pelo seu ardente patriotismo e por uma impoluta honestidade e desinteresse ao serviço da Nação.
A. medida que o condicionalismo político do regime anterior ao 28 de Maio se foi esbatendo e esquecendo - até porque a perturbação dos primeiros anos da República não tinha qualquer eco nas gerações nascidas depois de 1920 - era bem evidente que o salazarismo ia perdendo uma parte da sua força actuante e afrouxando a chama do ideal e do espírito revolucionário que animara os seus primeiros reformadores. Decerto não passará despercebido aos futuros historiadores que, no princípio do decénio de cinquenta e no termo deste decénio, se abrem as primeiras brechas no capital de confiança que os Portugueses haviam depositado na validade e na eficácia do sistema.
A partir de 1960, e, apesar da corajosa atitude na defesa da integridade territorial da Nação e da reafirmação da nossa vocação ultramarina, já as gloriosas recordações do passado primavam sobre as exigências, cada vez mais prementes, da reforma e de um dinamismo na política e na administração. As lições do passado ensinam-nos que os povos são sempre ingratos poro aqueles que melhor os servem. O general De Gaulle, herói da resistência a ocupação do seu país, o salvador da França como Joana d'Are, foi condenado por um plebiscito de opinião ao exílio da sua propriedade rural. O próprio Doutor Salazar parecia prever esta irreversível tendência quando escrevia:
As escolas políticas e sociais são como as literárias. Esgotada a sua capacidade criadora, a sua flama, perdem a força, extinguem-se, depois de terem deixado a sua marca, o traço profundo da sua influência.
Neste momento da vida política nacional temos de assinalar que um dos méritos da obra de Salazar foi o de permitir que, através das instituições por ele criadas, a sua sucessão se tenha operado numa linha de continuidade. Oferecendo as mais legítimas esperanças de uma abertura para horizontes mais vastos na convivência de Portugal no seio das nações europeias, no respeito pelas liberdades essenciais da pessoa humana e nas aspirações da prosperidade material e moral de todos os nossos concidadãos.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ribeiro Meloso: - Sr. Presidente: Radicado há mais de vinte anos em Moçambique e eleito Deputado por aquele círculo, cabe-me a honra, por amável convite de V. Ex.ª, de, como português de África, evocar hoje. aqui, Salazar.
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Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começo por trazer ao conhecimento de VV. Ex.ªs quão grande foi a tristeza e a dor que em Moçambique dominou a população logo que esta soube da morte de Salazar. Vi correrem lágrimas pela face de muitos homens ao evocá-lo e senti a comoção embargar-me a voz e os olhos marejarem-se-me de lágrimas ao ouvir, de pé, em minha casa, juntamente com os meus, os acordes do hino nacional transmitidos pela rádio, após a informação da sua morte. Tive a impressão de que grande parte da alma portuguesa desaparecia nesse momento e que tinha aumentado, a partir daí, a responsabilidade de todos nós.
Morria um dos maiores de Portugal, de todo o sempre.
Como o nosso pais é pluricontinental, em cada uma das parcelais da Nação espalhadas pelo Mundo não se vivem intensamente os problemas do dia a dia de cada uma das outras, salvo se esses acontecimentos ultrapassam o interesse local, por serem de interesse racional. Mas todas nós, os que vivemos em S. Tomé, Guiné, Angola, Moçambique, Estado da índia, Macau e Timor, tomos os olhos postos aqui em Lisboa e tudo quanto em Lisboa se decide, relativamente a cada uma destas parcelas da Nação, é vivido e sentido por todas as outras. E foi exactamente por isso que Salazar, logo desde o início da sua vida como Ministro, começou a granjear a estima idos que vivem no além-mar português, estima essa que se foi viçando através dos amos no coração de todos nos pela orientação que deu ao Governo, de modo a fundir e a caldear a alma dos que vivem a sombra da nossa bandeira, ara cadinho que ela representei. E quando ainda países da Europa se preparavam para conquistar impérios e mante-los como excrescências das suas metrópoles, já Salazar dizia que Angola, Moçambique ou a índia estavam sob a autoridade único de Estado tal como o Minho ou a Beira. Enquanto os outros países procuravam arranjar mercados e consideravam os naturais de além-mar como seres inferiores a colonizar, Salazar dizia e escrevia que todos eram iguais, todos eram portugueses à face da lei, porque era única a autoridade do Estado para todos eles.
Nunca sentámos o desnivelamento de roços, nunca entre os habitantes das diversos parcelas de Portugal no. Mundo, houve o cidadão e o súbdito; sempre a posição dos indivíduos foi igual perante os instituições e os leis. E estes princípios, vividos e sentidos desde os primórdios da Nação, estão na alma de todo o povo português.
Na sua rápida passagem pelo Ministério das Colónias, em 1980, foi elaborado e promulgado o Acto Colonial estabelecendo as bases constitucionais do ultramar português, tornando-o, a partir daí, a porte integrante da Nação Portuguesa que hoje é. Foi o Acto Colonial a verdadeira base da unidade nacional que somos para o Mundo, Acto esse que teve base no nosso conceito histórico de civilizar, por considerarmos como iguais e com iguais direitos ao progresso todos os povos que viviam à sombra da nossa bandeira. Não foi, é cento, bem recebido por todos os do ultramar o Acto Colonial, chegando mesmo, como Salazar o diz, a haver descontentamento e queixas viris e desassombradas da parte de goeses pela doutrina expressa no Acto.
A própria designação do Ministério provocou também reacções e considerava-se que, num e noutro caso, tinha havido retrocesso. O Acto Colonial foi então integrado na Constituição Política, com as alterações que as circunstâncias aconselharam, mas certas consciências da nossa índia permaneceram sempre entre retraídas, receosas e magoados. E porquê? Nos começos do século XVII, afirma-se, numa informação do Conselho da índia, que tão português é o que nasce e vive em Goa ou no Brasil ou em Angola como o que vive e nasce em Lisboa. Dessa informação resultou a Lei de 2 de Abril de 1761, pela qual, conforme Salazar, "se declararam os naturais da Ásia portuguesa perfeitamente aguais perante a lei aos portugueses nascidos no reino, o que se entendia tanto para indianos, cristão ou não, como para os descendentes de europeus, como ainda para os muçulmanos". Ao surgir o Acto Colonial, julgaram que Salazar tinha esquecido ou desrespeitado as leis dos séculos. (Mas Salazar não só as não desrespeitou como lhes tirou o pó dos séculos, vivificando-as, pois agiu e decidiu em conformidade com as mesmas. A reacção manifestada no ultramar mostro, contudo, quão grande era o portuguesismo da sua gente, o qual só pode ser conseguido (devido à convivência fraterna que com eles sempre se manteve e também a absorção de princípios e conhecimentos que eles possuam. Foi assim que deixámos de constituir povos, para nos tornarmos num só povo multirracial, multirracionalismo este que não é somente de raças que vivem lado a lado, mas de raças que se cruzam através dos séculos, e foi graças a isso que a Nação aceitou, por plebiscito popular, a Constituição Política de 1033, onde, no seu artigo 1.°, se define a Nação como pluricontinental. Salazar não teria submetido a Constituição como esse artigo à aprovação da Nação se não estivesse bem certo de que era a Nação que assim o desejava.
A Constituição traduzia não a sua vontade, mas a da colectividade, e o conhecimento dessa vontade obteve-o Salazar, para usar exactamente a sua expressão, "indo bebê-lo às profundezas da consciência nacional".
Era um nacionalista intransigente, mas trabalhou sempre com claro sentido de solidariedade internacional, respeitando todos os países, mas exigindo que todos nos respeitassem a nós. E quando, por vezes, a intriga mundial, movida por interesses a que éramos alheios, dava azo a que a honra nacional estivesse em risco, logo Salazar esclarecia a Nação e o mundo, desfazendo equivocas combinações internacionais e dizendo o que a Nação esperava e desejava que ele dissesse. Assim aconteceu, por exemplo, quando, em 1937, o boato sobre o arrendamento de Angola à Alemanha deu volta ao Mundo.
Pois logo Salazar afirmou, com aquela serenidade e firmeza de chefe incontestado, que éramos "alheios a todos os conluios e que não venderíamos, não cederíamos, não arrendaríamos, não partilharíamos o que possuíamos, porque o não permitiam as nossas leis constitucionais ou, na ausência delas, não no-lo permitiria a consciência nacional". A Nação, que já então nele confiava, ficou definitivamente ciente de que o Chefe do Governo não permitiria nunca, como veio a prová-lo efectivamente, que qualquer parcela da Nação dela fosse desintegrada. E foi esta firmeza, que sempre vincou, que o tornou venerado por todos os portugueses espalhados pelo Mundo e o identificou, até mesmo entre os nossos inimigos, como o símbolo da nossa unidade nacional. Salazar tinha consciência disso, mas sabia que, para manter essa unidade, havia que organizar um exército, que, animado pelo valentia e galhardia dos nossos jovens, imporia, sempre que necessário, a ordem e a disciplina e defenderia do cobiça alheia qualquer parcela do solo pátrio.
E em boa hora criou esse exercito, porque a ele se deve hoje, coadjuvado pela Marinha e Força Aérea, a integridade da Nação.
A certeza que Salazar tinha nas nossas forças armadas, pequenas em número quando comparadas com as das grandes noções, mós grandes no brio, na disciplina e na coragem, como, aliás, se comprovou na pron-
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tidão com que o corpo expedicionário, em Dezembro de 1941, ficou preparado para partir de Moçambique com destino a Timor, permitiu-lhe, em 1943, fazer saber ao Governo Britânico que desejávamos que às nossas forcas colaborassem com forças daquele país nas operações que tivessem por objectivo a reocupação de Timor, de modo a livrar aquela parcela do solo pátrio da ocupação japonesa. Seguiram-se negociações morosas, que levaram a assinatura de dois acordos, respectivamente com a Inglaterra e os Estados Unidos, para definição da comparticipação portuguesa, e só com os Estados Unidos quanto a facilidades em Santa Maria para 03 aviões que se destinassem à guerra no Extremo Oriente. Entenderam os Governos dos Estados Unidos e Inglês que as facilidades por nós dadas nos Açores eram já uma muito válida e eficiente comparticipação no esforço de guerra, sendo dispensada, portanto, a participação activa das nossas forças armadas. Mas foi a atitude de Salazar perante a ocupação australiano-holandesa de Timor, a posterior insistência com os aliados para que nos fosse permitida cooperação militar na libertação daquela província da ocupação japonesa e a atitude prudente que tomou para não tornar catastrófica a situação de Macau, que fez respeitar a nossa posição de país do Oriente e garantir, pelas grandes potências aliadas, o nosso direito histórico sobre aquelas parcelas do território nacional.
A luta de Salazar para manter a integridade da Nação, isto é, para manter Portugal nas várias partes do Mundo, foi sempre travada à luz da razão e da justiça, procurando, com n sua inteligência lúcida, esclarecer e fazer compreender não só a legitimidade histórica do nosso direito, mas também, principalmente, da realidade sociológica e política que constituímos. Apesar de todos os seus esforços, este direito foi ignorado e amesquinhado e no Estado Português da índia deixou de flutuar a nossa bandeira. Mas nem por isso desfalecemos na nossa convicção e, tal como Salazar, não cremos "concebível Governo Português que possa algum dia reconhecer a espoliação".
Após anos de ocupação, continuamos a resistir espiritualmente, já que não se pode, nem poderá nunca resolver militarmente o conflito. E se temos vindo a resistir é porque os nossos irmãos da índia, que lá vivem, querem continuar a ser portugueses, como portugueses são todos os de lá oriundos e que vivem espalhados pelo Mundo e no mundo português, que é o mundo que também é seu. Por isso, continuamos a pugnar, já que há e haverá sempre, como disse Salazar, "impossibilidade humana de ceder, vender e entregar uma massa de cidadãos portugueses com a sua terra, como se fossem terras com o seu gado". E Salazar, ao fazer esta afirmação, defendia intransigentemente os nossos irmãos do Oriente e interpretava, fielmente, o desejo e o sentir da Nação.
18 de Abril de 19611 Neste dia, a .Nação falou mais uma vez através de Salazar, quando Salazar disse: "... Angola! . . . Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr a prova a nossa capacidade de decisão."
Que momentos de intensa emoção vivemos em Moçambique quando, cheios de ansiedade pelo desenrolar dos funestos acontecimentos, escutámos essa ordem de comando!
Tínhamos, assim, a certeza de que o infortúnio vivido em Angola estava prestes a dissipar-se na sua fase mais cruciante, já que Salazar, mais uma vez, não hesitava tomar as decisões que a alma nacional impunha! Este frémito de emoção que perpassou Moçambique de lés-a-lés, sentiu-o também todo o mundo português, que em uníssono, aplaudia a decisão de Salazar.
E se foi ingente e dominante no seu espírito a. ideia de manter integral a herança dos nossos maiores, não menos foi persistente a sua preocupação no campo da valorização económica e humana de todo o território de aquém e de além-mar.
Assim, o interesse e entusiasmo com que encarava obrais de envergadura, como as do Limpopo ou da gigantesca Cabana Bossa, era igual ao interesse e entusiasmo com que incentivava o esforço civilizador das massas populacionais. Para melhor dizer, a força que imprimia a marcha geral do progresso económico visava, como consequência primeira, a melhoria das condições sociais em todos os seus - sectores - desde a instrução à saúde e à garantia de tornar mais geral um nível desafogado de vida, condições básicas para o pleno desabrochar das potencialidades humanos em que a Nação tem de assentar.
A criação da Universidade em Luanda e Lourenço Marques deu ia Angola e Moçambique a possibilidade de ascenderem aos cimos da cultura, através dos seus filhos. Mais fácil será agora a promoção social, já que a escola é mais acessível e a cultura, verdadeira fonte da vida, ficou ao alcance de muitos mais.
Resgatar o caminho de ferro e o porto da Beira, tornar preponderante a posição do Governo Português, na sociedade que era detentora do caminho de ferro da Trans-Zambezia e da ponte sobre o Zambeze, foram actos de administração que dignificaram Portugal através de Salazar, por se haverem libertado too importantes sectores de Moçambique.
Descrever a obra de Salazar seria descrever, em pormenor, o progresso de Portugal durante o tempo do seu governo.
Foi, pois, neste incessante esforço de fortalecer a Nação, como um todo humano e territorial, sem nunca desfalecer na vontade e no ânimo, que Salazar continuou a sua promessa de actuação: partindo do muito que fizemos, realizar o muito que temos ainda que fazer".
Salazar morreu e a sua vida consumiu-se como dádiva abnegada. Mas a promessa ficou, viva, pulsante e premente! E havemos de continuar a cumpri-la com o mesmo entusiasmo e com a mesma fé que o animava! Havemos de prosseguir na senda do progresso e operar esse muito que nos cabe realizar para dar continuidade ao legado de Salazar que é Portugal.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Montanha Pinto: - Sr. Presidente: No início de novo período desta legislatura, sinceramente cumpro o grato dever de apresentar a V. Ex.ª os meus cumprimentos de muito respeito e do mais alto apreço.
Adivinhando que nestes próximos três anos não faltarão a V. Ex.ª preocupações e afazeres, atrevo-me a transmitir uma certeza e fundada confiança, daqueles que aqui represento, de que este período legislativo permitirá uma discussão do ideias donde resultem algumas soluções concretas e medidas actualizadas do mais alto interesse para a defesa do bem comum e da integridade nacional.
Sr. Presidente: Peço a V. Ex.ª para que me seja consentida uma saudação a todos os Srs. Deputados em geral, autorizando-me uma palavra de recolhida saudade e de respeitosíssima homenagem aos que foram nossos pares e que, no cumprimento de um dever, tombaram na Guiné Portuguesa, em holocausto a Pátria, servindo devotadamente a Nação.
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Peço ainda licença a V. Ex.ª para dirigir também uma palavra de agradecimento aos Srs. Deputados que, sem medirem incomodidades, nos deram, este ano, o prazer e a honra de uma visita a Angola, rápida embora, mas julgamos adivinhar quão útil terá sido e da qual, em qualquer oportunidade, nos darão o seu agora mais válido testemunho. Pois entendemos que a melhor forma de compreender as nossas verdades e os nossos problemas será precisamente verificar, pormenorizadamente, a forma como se materializa o nosso viver.
Sr. Presidente: Pedi a V. Ex.ª a minha inscrição para o dia de hoje, por imperativo de consciência e de coração. Cumprirei assim um mandato em nome de outros e do meu próprio. E me perdoem os mandantes se não conseguir expressar a nobreza moral e bela intenção dos seus desejos. Espero que a sinceridade das palavras supra a modéstia da forma. Bem desejaria desempenhar com elevação e à altura da Circunstancia tão magnífico encargo, pois trago comigo a homenagem de 5 milhões de portugueses.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: É honrosa a minha missão de hoje, demasiado pesada, para os meus frágeis ombros, mas tenho de me sentir profundamente feliz e orgulhoso por me ter sido confiada.
Na justíssima homenagem, prestada, no mais alto órgão da representação nacional, ao homem que reintegrou a Nação nas suas linhas de força e realizou uma obra que lhe marca lugar entre os maiores homens da História de Portugal não deve faltar uma palavra vinda de Angola e, em especial, uma palavra vinda do Congo Português.
Bem sei que não posso dizer nada de novo ou interessante nesta solene Assembleia, perante personalidades tão ilustres, onde todos serão mais cultos, mais eloquentes e mais capazes de exprimir a gratidão do povo português a um português do povo, que foi grande entre os maiores estadistas do nosso tempo.
Mas acontece que vivo em Angola, que vivo no Congo Português. E estava lá, nessa bela terra de Angola, em Abril de 1961, quando em toda a Nação, na formosa Lisboa ou nos redutos defensivos do Noroeste angolano, aos ouvidos dos militares e civis que vigiavam em Carmona, em São Salvador, no Quitexe ou na pequenina povoação isolada da Caipemba, quando aos ouvidos de todos esses saturam, aquelas palavras de milagre: "Para Angola, rapidamente e em força."
Palavras que representaram bem o símbolo dos nossos ideais e polarizaram e dinamizaram todas as energias da Nação.
Meus senhores, eu estava lá, também de arma pronta a disparar contra os inimigos da Pátria, num dos postos da milícia da cidade de Carmona. E sou testemunha presencial e viva do efeito prodigioso que o mais breve discurso de Salazar produziu em mim e em todos aqueles que comigo estavam, depois de muitas noites sem dormir, bem despertos e atentos a mensagem dessa voz firme e serena, que nos vinha de tão longe e que parecia vir do fundo dos séculos, com toda a força e com toda a autoridade da alma milenar da grei.
Um clarão de confiança iluminou todos aqueles rostos marcados pela enorme tensão dos dias precedentes. Senti-mo-nos, repentinamente, quase curados de todas as angústias dos dias de desespero. Em ninguém se notou a mais ligeira dúvida, antes certeza confortante, de que a promessa de Salazar seria cumprida. E, presos à estupenda ressonância histórica daquelas palavras sortilegas, momentaneamente nos esquecemos de que, a volta da cidade, os assassinos continuavam a espreita de uma nova oportunidade de mais sangue, de mais pilhagem, e de mais destruição. Uma nova oportunidade que nunca mais tiveram...
Nunca julguei possível, meus senhores, que três ou quatro frases, compostas com
Palavras simples pudessem a tamanha distância produzir um tão espantoso efeito psicológico em homens de todos os níveis sociais e de várias simpatias ideológicas. Nunca, antes ou depois, vivi um momento de tão alta, tão profunda e tão geral emoção, a que ninguém pode resistir, nem mesmo os mais convictos adversários políticos do Presidente Salazar.
E tal aconteceu porque, em boa vontade, nesse momento histórico, certamente um dos mais altos em toda a vida da Nação, Salazar não era um chefe político, nem o defensor de um determinado sistema de governo - era, sim, para todos nós, em toda a sua dignidade e na sua máxima grandeza, a expressão da vontade soberana de um. povo com oito séculos de independência, a própria voz infalível, imperativa e augusta de Portugal.
Por isso mesmo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, essa voz não se calou com a morte física do homem que, durante quarenta anos, sempre soube escutar na própria alma e transmitir aos seus concidadãos a voz resoluta e permanente da alma milenar da Grei. Essa voz continua e não só pelas resolutas e claras palavras do sucessor de Salazar, mas também na vontade e nos sentimentos de todo o nosso povo, continua a gritar-nos que é preciso defender o ultramar português.
Vozes: - Muito bem!
Nós, os portugueses de Angola, estamos inteiramente decididos a respeitar a ordem histórica de Salazar. Sejam quais forem os circunstâncias, os perigos e as dificuldades, a presença portuguesa em Angola cada vez se firmará com mais vigor, pois nós defenderemos Angola até ao fim dos nossos recursos e até ao sacrifício total das nossas vidas.
Vozes: - Muito bem!
Porque é esse o nosso direito, porque é esse o nosso dever.
A voz de Salazar continua e continuará a soar em toda a enorme vastidão de Angola, província que tanto lhe deve, inclusive a sobrevivência como terra portuguesa, pois foi Salazar que salvou Angola. E, salvando a Angola de hoje, tornou possível a Angola do futuro.
Entendemos que a melhor homenagem que podemos prestar à sua memória é demonstrar, com a vitória que já começou e há-de ser completa e definitiva, que Salazar, nas suas memoráveis palavras de Abril de 1961, indicou o rumo certo, deu renovada dimensão ao conjunto nacional e formou a sólida consciência do que somos, do que valemos e do que podemos, e abriu uma nova era que, se todos nós quisermos, há-de ser uma era de glória e grandeza para Portugal.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Almeida Cotta: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Os desígnios de Deus são insondáveis, mas no falível juízo dos homens as pátrias, grandes searas de seres humanos, têm dias bons e dias maus. Dias em que o sol esplendente brilha por sobre o orbe, fecundando A terra-mãe; em que a luz das estrelas ilumina as
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acções dos pobres mortais que somos. Dias generosos em que nascem os génios, os santos, os heróis, os mártires, a alta estirpe dos melhores de todos nós. Dias negros, tristes como a noite escura, em que a morte, ceifeira implacável, escolhe as suas vítimas dentre os melhores de todos nós.
O dia 27 de Julho de 1970 foi um daqueles em que a nossa pátria se viu marcada pela dor infinda de ver partir para sempre um dos seus mais ilustres filhos: o Doutor António de Oliveira Salazar.
Em semelhantes sentimentos de pesar se debate agora a França perante o desaparecimento do mundo dos vivos dessa alta figura de político e de soldado que foi o general De Gaulle.
Duas árvores gigantes do pensamento europeu, expoentes eminentes da civilização ocidental, morreram para a vida, mas fixaram-se para a eternidade no bronze da história de que foram magníficos obreiros, sejam quais forem as humanas limitações que se venham a notar na portentosa obra realizada, marcada, aliás, por algumas semelhanças, mas também por algumas diferenças, a provar a enorme fertilidade das fontes em que se inspirou.
Estranhos desígnios de Deus!
Quando nos Jerónimos, à roda do féretro onde repousava Salazar, passava Portugal, nas suas figuras mais representativas, nas suas crianças, nas suas mulheres, no seu povo; quando por esse mundo fora se manifestava o sentimento mais pungente pela perda de um grande valor que nos deixava a todos mais pobres, perguntava-me intimamente, na imensa solidão de alma que nos cercava, por que partia ele numa hora tão perturbada, numa hora em que a, confiança no homem, no homem imagem de Deus, expressão da Sua divina vontade, é tão instante, é tão precisa, é tão flagrantemente necessária e imperiosa?!
Por que partia aquele em que toda a sua vida, em toda a sua actividade de pensador, de professor, de estadista, de cidadão, foi buscar a força extraordinária do carácter, o vigor excepcional do génio, a nobreza das atitudes em todas as circunstâncias, precisamente à compreensão total, ao entendimento perfeito, sentido no mais íntimo de si próprio, do homem integral, dos homens, corpo e espírito, que umas vezes se elevam aos mais altos cumes da virtude e do bem, da sabedoria e do amor, outras descem as mais baixas e tenebrosas regiões onde a alma se perde e a carne se corrompe?!
Por que partia o humanista, o acérrimo defensor da dignidade da pessoa humana, privilégio da espécie e único que a perder-se arrastará à maior miséria, porque o homem só é verdadeiramente mísero e mesquinho quando despojado dessa dignidade, quando a sua expressão divina se evola ou se nega, quando o espírito se submerge na massa compacta de um materialismo grosseiro e sem esperança?
For que partia ele, o homem austero, simples, o patriota insigne, que nas horas mais agitadas e graves, como nas mais tranquilas, nos momentos mais cruciantes, como nos mais auspiciosos, retomava serenamente, diligentemente, perseverantemente, a tarefa que tinha em mãos e que não mais tem fim, porque sendo obra do homem e para o homem, integrado embora na Família ou na comunidade a que pertence, só desaparecerá na consumação dos séculos?
Estranhos desígnios; de Deus!
Por que partia ele, desde menino e moço votado ao trabalho, desde tenra idade exemplo do seu semelhante, mando-o como um asceta mas também como um lutador, isto é, pugnando pelo seu aperfeiçoamento moral e intelectual, pela sua ascensão social, moldando por isso as instituições de sorte a manter íntegros os princípios superiores da ética e da justiça, de sorte a salvaguardar o prestígio dos valores do espírito?!
Por que partia ele, a quem a Pátria tanto devia, nos bons como dos maus tempos, intérprete fiel dos Réus interesses, defendidos sempre, intemeratamente, e luz da razão e dos direitos e obrigações decorrentes da nossa História, inflexível lidador da ordem, no progresso e na paz?!
Por que partia o combatente da primeira linha na lide das ideias ou na arena das acções e dos exemplos, quando os conceitos doutrinários ou filosóficos da civilização ocidental correm perigo iminente?!
Por que partia ele, para quem as honrarias, as riquezas, a glória, só tinham sentido quando representavam honra, riqueza e glória da sua Pátria ou da própria Humanidade?!
Para quem o terrível ofício de mandar era como um sacerdócio donde havia de tirar-se o maior proveito para a colectividade e, por reflexo, para cada um dos seus membros; para quem as provações teriam o sabor do cilício que não se deseja, mas não se repele; para quem os êxitos se avaliam apenas em função do bem geral que proporcionem.
Por que partia aquele que amorosamente se entregou, em abnegação completa, ao exaustivo trabalho de refazer, no domínio financeiro, económico e social, uma Pátria doente, cansada talvez do esforço despendido durante séculos, agitada por um certo romantismo na acção e na reflexão, mais habituada a dar do que a receber, trabalho que, para ser duradouro e eficaz, não poderia limitar-se a revisão das estruturas orgânicas do Poder e da Administração, mas teria de ir muito mais longe, pois como, aliás, tudo quanto aspire a projectar-se na real essência das coisas teria de incidir sobre o centro à volta do qual todas rodam, teria de incidir sobre a cultura, teria de incidir sobre a formação integral do próprio homem?!
Por que partia aquele que, encarando as mais puras virtudes do povo português, misto de universalismo humanista e de acrisolado amor ao torrão natal, havia de pôr a prova toda a gama das suas excepcionais faculdades de estadista para defender, intransigentemente, a integridade territorial da Nação, ameaçada de um lado por a vaga de ambições que caíra sobre o vazio deixado por algumas potências no final da 2.ª Grande Guerra, de outro lado pela deterioração espiritual do Ocidente, que se deixara rodopiar à mercê de tempestades bem contrárias aos seus interesses e a sua história?!
Foi daqui, deste caminho da Europa, que se ergueu a voz solitária de Salazar, orgulhosamente só contra correntes e marés, serena e firme, mudando, porventura, o curso dos acontecimentos, pois, de facto, a vozearia que por aí anda, eivada de alucinantes expressões políticas, intelectuais e espirituais que parecia invadir o mundo, vai ficando bloqueada pela grande "massa silenciosa", extremamente apreensiva diante das suicidas manifestações, projectadas na vida quotidiana das pessoas e do próprio Estado, à qual já se alia também, não raro, o brado de entidades responsáveis, apelando vigorosamente para as forças da razão e da justiça, do direito e da moral, da decência e do carácter, indispensáveis ao ordenamento das sociedades civilizadas.
E aqui estamos ainda hoje, e assim nos manteremos, a continuar a sua obra, que é o preito maior que podemos prestar a sua memória, como povo que se preza de a não ter perdido na voragem das alucinações, dos prevenções ou das ilusões colectivas.
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A mesma instransigigência no essencial, a mesma agilidade na escolha dos caminhos que hão-de garantir a perenidade da nossa permanência no Mundo como nação pluricontinental e plurimocial.
Os mesmos objectivos de paz, interna e externa, na ordem e no progresso, e não por qualquer preço, a mesma força de ânimo para enfrentar as vicissitudes que o destino nos reserve, o mesmo espírito aberto a renovação dos métodos e processos da acção política, imposta pela inevitável evolução das sociedades humanas, pela incessante transformação do meio e das estruturas sociais. Mas tudo isto é ainda pensamento e ensinamento de Salazar, expressos, aliás, com toda a clareza, no seu discurso de Janeiro de 1949, pronunciado na cidade do Porto.
A grande lição do seu alto magistério político decorre limpidamente da admirável percepção que tinha das realidades, do sentido eminentemente prático que imprimia as soluções e as decisões, sem prejuízo, no entanto, antes na sequência lógica, do idealismo quase místico das suas concepções sobre a natureza e os fins superiores do Estado, produto da transcendente compreensão do homem e do seu destino, das enormes potencialidades e também das grandes limitações do género humano. Esta escola, que ele seguia monasticamente no claustro da sua consciência, exigia um agudo sentido do dever e da honra, da dignidade e da justiça, da virtude e do bem.
Mais pão, mais conforto, mais bem-estar para todos?
Sem dúvida, e nessa obsessão constante consumiu a vida (enquanto houver um lar sem pão, a revolução continua) e se consome agora também a vida dos seus continuadores.
Mas conjuntamente com a riqueza, e para além dela, os seus esforços - emanação dos ideias que informam uma filosofia política e selam a acção do estadista - dirigem-se convictamente, decisivamente, à reformulação dos princípios éticos do Estado como pessoa de bem, a criação de um clima social e económico susceptível de fazer prevalecer a justa harmonia dos interesses, de permitir uma coexistência pacifica entre a autoridade necessária do Estado e a liberdade essencial das pessoas, um clima de confiança, de estabilidade, mas também de evolução constante, de revolução na continuidade, por forma a acompanhar-se o ritmo do progresso e as aspirações da comunidade que se serve. Nem de outra maneira é possível a liberdade ou a criação de maior riqueza para todos; nem de outra maneira é possível corresponder aos anseios das gerações que se seguem, da juventude que se renova nos tempos, da qual se recebe a esperança e à qual se deve transmitir a confiança nos rumos a seguir.
Portentosa herança que se insere no cerne das questões mais importantes da actividade dos Estados e também tarefa ciclópica legada aos seus sucessores, pois, tanto ou mais do que a riqueza, esse património está sujeito a perecer ou a dissolver-se no hedonismo fácil, na luta estéril ou caprichosa, na dúvida sistemática, na contestação permanente, na corrupção dos costumes, na eterna batalha entre o bem e o mal.
Estranhos desígnios de Deus!
Salazar repousa finalmente, como diria Antero de Quental, na mão de Deus, na Sua mão direita.
E se lá no alto dos céus "memória desta vida se consente", jamais esquecerá esta Pátria que tanto amou e na qual tem marcado lugar imperecível entre os melhores de todos nós.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não está mais nenhum orador inscrito para falar sobre a matéria da ordem do dia. Vou, portanto, encerrar a sessão.
Amanhã não há sessão, para que as diversas comissões convocadas possam dedicar-se mais profundamente aos seus trabalhos. A próxima sessão será no dia 2 de Dezembro, a hora regimental, tendo como ordem do dia o início da discussão na generalidade da proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1971.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 10 minutou.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Bento Benoliel Levy.
Delfim Linhares de Andrade.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Fernando Augusto Santos e Castro.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
José Dias de Araújo Correia.
José Guilherme de Melo e Castro.
Manuel Artur Cotta Agostinho Dias.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Ricardo Horta Júnior.
Rui Pontífice Sousa.
Teófilo Lopes Frazão.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alexandre José Linhares Furtado.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Antão Santos da Cunha.
António Lopes Quadrado.
Armando Valfredo Pires.
Custódia Lopes.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
O Redactor - Luís de Avilles.
IMPRENSA NACIONAL
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